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INSTITUTO SUPERIOR DE CINCIAS DO TRABALHO E DA EMPRESA ISCTE

EDUCAO NO-FORMAL um contributo para a compreenso do conceito e das prticas em Portugal

LUIS MIGUEL CASTANHEIRA SANTOS PINTO

Tese submetida como requisito parcial para obteno do grau de

Mestre em Educao e Sociedade

Orientadora: Professora Doutora Ana Lusa Oliveira Pires Professora Coordenadora na Escola Superior de Educao do Instituto Politcnico de Setbal

Dezembro, 2007

EDUCAO NO-FORMAL um contributo para a compreenso do conceito e das prticas em Portugal

LUIS MIGUEL CASTANHEIRA SANTOS PINTO

Dezembro 2007

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aos meus pais, pela inspirao, pelo exemplo, e por me ensinarem ainda hoje a no recuar perante os desafios mais exigentes

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Um agradecimento muito especial Professora Doutora Ana Lusa Oliveira Pires, minha orientadora, pela inabalvel confiana neste trabalho, desde o incio, e pela infindvel disponibilidade, pacincia e dedicao. O seu apoio foi decisivo. Muito obrigado.

A todos os meus colegas e amigos de caminhada nos trilhos sinuosos, mas extraordinariamente deslumbrantes, da educao no-formal.

Um agradecimento particular ao Programa Escolhas, sua equipa de coordenao central, e a todos os coordenadores de projecto, cujos contributos tornaram possvel o estudo emprico deste trabalho.

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RESUMO Este trabalho centra-se no estudo da educao no-formal (ENF), tendo como principais objectivos contribuir para a compreenso da problemtica da ENF luz do paradigma de aprendizagem ao longo da vida, para a clarificao da pertinncia da ENF enquanto conceito e proposta educativa, e ainda fornecer pistas para o desenvolvimento de polticas educativas integradas em Portugal. Assente numa pesquisa documental, foi desenvolvida uma abordagem multidisciplinar para procurar compreender a ENF a partir dos enquandramentos tericos e conceptuais existentes. Da mesma forma, este trabalho procura enquadrar a ENF nos vrios contextos institucionais a nvel nacional e internacional. O estudo emprico foi desenvolvido atravs de um trabalho de natureza qualitativa, recorrendo-se anlise de contedo de fontes documentais escritas os contributos dos coordenadores dos projectos do Programa Escolhas sobre a educao no-formal. Procura-se desta forma dar visibilidade e compreensibilidade s prticas e experincias existentes no contexto portugus, contribuindo para caracterizar e compreender a educao no formal numa perspectiva contextualizada. A partir da pesquisa realizada possvel apresentar a identificao de um conjunto de abordagens do conceito de ENF, fornecendo pistas de articulao e comunicao entre diferentes actores educativos. Como concluso, reconhecemos a necessidade de contextualizar o(s) conceito(s) de educao no-formal, no se conhecendo definies nicas ou consensuadas e relanamos a pertinncia e a incontornabilidade da educao no-formal na procura de novos paradigmas e novas respostas educativas. Palavras-chave: educao, no-formal, aprendizagem, extra-escolar, formao, aprendizagem ao longo da vida.

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ABSTRACT

This work focuses on the study of non-formal education (NFE), being its main objectives: to contribute to the understanding of the NFE problematic in the frame of the lifelong learning paradigm, to clarify the pertinence of NFE as a concept and as an educational proposal, and to provide guidelines for the development of integrated education policies in Portugal. Based on a documental research, a multidisciplinay approach was developed in order to seek understanding NFE from the existing theoretical and conceptual framework. In the same line, this work tries to set NFE within the various institutional contexts, both at national and international level. The empirical study was developed through a qualitative-oriented research, based on the content analysis of written documental sources the contributions of the project coordinators of Programa Escolhas, on non-formal education. By this means, we try to give visibility and comprehensiveness to the practices and experiences existing in the Portuguese context, contributing to characterise and understand non-formal education in a contextualised perspective. From this research, it is possible to identify a set of approaches to the concept of NFE, providing keys to the articulation and comunication between different education stakeholders. As a conclusion, we recognise the need to contextualise the concept(s) of non-formal education, given that the non existence of single or unanimous definitions, and we do relaunch the pertinence and inevitability of non-formal education in seeking new educational paradigms and responses.

Key-words: education, non-formal, learning, training, life-long learning.

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NDICE GERAL

INTRODUO.........................................................................................................................9 CAP. 1 PROBLEMTICA, OBJECTO DE ESTUDO, QUESTES ORIENTADORAS E METODOLOGIA..............................................................................12 1.1 Contextualizao e Problemtica.................................................................................12 1.2 Objecto de Estudo e Finalidades..................................................................................16 1.3 Questes Orientadoras.................................................................................................17 1.4 Opes e abordagens metodolgicas...........................................................................18 CAP. 2 PORQU FALAR DE EDUCAO NO-FORMAL, HOJE?........................31 2.1 Os desafios do novo paradigma de aprendizagem ao longo da vida...........................33 2.2 Transformaes sociais, desenvolvimento de novas competncias e as limitaes da escola ....................................................................................................................................37 CAP. 3 EDUCAO NO-FORMAL: ENQUADRAMENTO TERICO E CONCEPTUAL.......................................................................................................................46 3.1 Breve remisso histrica s origens da ENF................................................................47 3.2 O espectro educativo tripartido: educao formal educao no-formal educao informal.................................................................................................................................48 3.3 Critrios de diferenciao entre educao formal, no-formal e informal..................50 3.4 Outros conceitos de Educao No-Formal.................................................................54 CAP. 4 ENQUADRAMENTOS INSTITUCIONAIS.......................................................57 4.1 A ENF no contexto institucional Europeu...................................................................57 4.2 A ENF no contexto institucional Internacional............................................................64 4.3 A ENF no contexto institucional Portugus.................................................................69 CAP. 5 COMPREENDER A ENF A PARTIR DO PROGRAMA ESCOLHAS...........78 5.1 Breve caracterizao do Programa Escolhas...............................................................78 5.2 O Programa de Formao dos Coordenadores e a Oficina Virtual sobre ENF o corpus de anlise...................................................................................................................83 5.3 Leitura e interpretao dos dados.................................................................................84 CAP. 6 CONCLUSES.....................................................................................................103 BIBLIOGRAFIA GERAL...................................................................................................114

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ANEXOS................................................................................................................................123

Anexo 1 Timeline bibliography on the great debate on NFE Anexo 2 Listagem de projectos do Programa Escolhas participantes na oficinal virtual sobre educao no-formal Anexo 3 Corpus documental de pesquisa do trabalho emprico [em formato digital] Anexo 4 Grelha de anlise de contedo [em formato digital]

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INTRODUO Nos dias de hoje, e no contexto particular do novo paradigma da aprendizagem ao longo da vida, ouvimos com cada vez mais e mais frequncia o recurso ao conceito de educao noformal; e no entanto, nunca provavelmente como hoje o termo encerrou tanta incerteza, tanta confuso e tantas dvidas quanto ao seu significado, sua pertinncia e valor intrnseco. O que para uns um universo vasto, heterogneo e dinmico de prticas educativas fora do contexto escolar, para outros uma prtica metodolgica alternativa; o que para uns um programa educativo desenhado e implementado medida dos interesses governamentais e das agncias de desenvolvimento, para outros um movimento de base, quase ideolgica, em busca de uma nova educao transformadora; o que para uns do domnio da teoria e da investigao, para outros pertence prtica e experincia de terreno; o que para uns pertence a agentes educativos certificados, para outros dos que participam informalmente, dos aprendentes; o que para uns incontornavelmente o desafio futuro de uma educao renovada, para outros um termo em desuso, obsoleto. Independentemente das perspectivas e das posies relativamente educao no-formal, este no entanto, ainda hoje, um debate vivo. O termo aparece expresso numa mirade de documentos e discursos e anima um igual nmero de discusses, movimentos e tenses. No entanto, e como nos sugere Alan Rogers (2004:235): ... umas das caractersticas mais marcantes da utilizao contempornea do termo ENF, que os autores no citam qualquer literatura sobre ENF pesquisada (...). Todo o debate anterior ignorado, a herana tratada como se nunca tivesse existido (...). A nova utilizao desta linguagem alheia s suas razes.1 realmente escassa a literatura sobre educao no-formal particularmente em Portugal e em lngua portuguesa. O que est escrito sobre educao no-formal so normalmente contribuies dispersas e fragmentadas, quase sempre de forma adjacente a outros conceitos ou temticas no mbito da educao e da formao como sejam a educao de adultos, a educao permanente (ou aprendizagem ao longo da vida), a formao profissional, a1

Traduo livre.

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educao popular ou comunitria. O propsito e a motivao por detrs deste trabalho prendem-se pois com a necessidade de clarificar o conceito de educao no-formal, particularmente no contexto Portugus, bem como compreender as prticas a ele associadas. tambm deste domnio que me ocupo profissionalmente. Reconhecem-me algumas instituies nacionais e internacionais como formador e consultor no mbito da educao noformal, especializado em determinadas reas temticas como a aprendizagem intercultural, a educao para o desenvolvimento, para a cidadania participativa e para os direitos humanos, entre outras. Sou frequentemente chamado a participar em reflexes e debates sobre a educao no-formal em geral, e sobre o reconhecimento e valorizao pblicas e polticas deste sector educativo. esta, portanto, e na maior parte das vezes, a lente que coloco ao abordar temticas relativas s polticas educativas, s prticas pedaggicas, ao ensino, s dinmicas de transformao escolar, etc. Apesar de ter estudado economia, so as questes da educao que se situam no centro das minhas reflexes, preocupaes e prticas enquanto cidado activo, inicialmente atravs do movimento associativo juvenil, mais tarde enquanto profissional nesta rea. Interessado pelo e preocupado com o desenvolvimento do mundo em que vivemos, particularmente no que respeita s questes da pobreza, dos direitos humanos e da cidadania democrtica, atribuo educao um papel central na transformao de mentalidades, prticas e polticas que possam tornar este mesmo desenvolvimento mais justo, mais solidrio e mais centrado na pessoa humana. Nestas reflexes, considero-me eu prprio um produto da educao no-formal. No compreendo porque no hoje mais reconhecido e mais valorizado este mbito de aprendizagem e, consequentemente, mais tida em conta no desenho e construo de novas polticas educativas. Creio que o aprofundamento do conhecimento que temos sobre a educao no-formal enquanto conceito e enquanto prtica contribuir certamente para um reconhecimento mais alargado e mais generoso deste mbito educativo. Esta a motivao mais forte ao propor este trabalho sobre a educao no-formal em Portugal.

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Organizao da Tese Esta tese est organizada em seis captulos centrais. Feita a contextualizao do objecto de estudo e explanada a metodologia de investigao adoptada, no primeiro captulo, procuramos explorar a pertinncia da educao no-formal nos dias de hoje. De outra forma, ainda antes de avanarmos para o enquandramento do conceito na perspectiva terica, conceptual e institucional, importa perceber porque relevante compreender a educao no-formal nos dias de hoje. De certa forma, preocupamos-nos em responder s interrogaes sobre a pertinncia do termo ou sobre a evoluo do conceito num futuro prximo. O enquadramento da educao no-formal do ponto de vista terio e conceptual, feito no captulo 3, um marco central deste trabalho. Na literatura como nos discursos, as referncias tericas ao conceito so dispersas e fragmentadas. Neste trecho do trabalho procuramos reunir num bloco as noes bsicas sobre educao no-formal, das suas razes diferenciao entre educao formal, no-formal e informal. O quarto captulo desta tese procura situar a educao no-formal segundo as polticas e os discursos dos principais actores institucionais internacionais. O mesmo procurmos fazer relativamente ao contexto portugus como entendida e reconhecida a educao no-formal nas polticas educativas em Portugal. Que tratamento institucional merece? Este dois captulos, representando em si mesmos um trabalho de pesquisa necessrio compreenso da educao no-formal, servem tambm de enquadramento ao trabalho emprrico que apresentamos no captulo 5. Aqui, partimos da experincia dos projectos do Programa Escolhas no mbito interveno social e educativa, para caracterizar, neste contexto especfico, uma abordagem educao no-formal em Portugal. A partir do conjunto destes contedos e reflexes, retiramos as concluses que apresentamos no captulo 6. Por fim, apresentamos a bibliografia geral que serviu de suporte a este trabalho, assim como a legislao e os stios de internet consultados. Anexamos ainda um conjunto de documentos de suporte a este trabalho, em particular aqueles que se referem investigao emprica.

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CAP. 1 PROBLEMTICA, OBJECTO DE ESTUDO, QUESTES ORIENTADORAS E METODOLOGIA As cincias so, em cada momento, um conjunto de resultados. Mas o caminho que a tais produtos vai conduzindo, que lhes acrescenta novos elementos ou que os contesta, tem de ser concebido como uma prtica social, especfica e activa. O seu primeiro momento o da interrogao, do questionamento a certas dimenses da realidade (Silva e Pinto, 1986:62).

1.1 CONTEXTUALIZAO E PROBLEMTICA Um pouco por todo o mundo e na Europa em particular se fala de educao no-formal. No mbito da aprendizagem ao longo da vida, mesmo um dos elementos estruturantes da estratgia lanada pelo Conselho da Unio Europeia em 2002. O reconhecimento, a valorizao e a promoo da educao no-formal tornam-se objectivos expressos e explcitos num conjunto de medidas legislativas e directivas comunitrias. Tambm o Conselho da Europa, na sua Assembleia Parlamentar de Dezembro de 1999 afirma expressamente: The Assembly recognises that formal education systems alone cannot respond to the challenges of modern society and therefore welcomes its reiforcement by non-formal education practices. (...) The Assembly recommends that governments and appropriate authorities of member states recognise non-formal education as a de facto partner in the lifelong process and make it accessible for all (Council of Europe, 1999 cit in Rogers, 2004:1). Ainda num contexto internacional, tm sido relevantes as reflexes, as chamadas de ateno e as recomendaes de instituies como a UNESCO, a OCDE ou o Banco Mundial no sentido da valorizao e reconhecimento crescente da educao no-formal veremos mais adiante alguns dos seus contributos especficos.

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Um pouco por todo o mundo sobretudo no domnio da educao de adultos, da juventude e da luta contra a pobreza e excluso social em particular organizaes da sociedade civil, movimentos sociais e peritos, tm apelado ao reconhecimento do valor das estratgias educativas fora do contexto escolar, e em articulao com este. Em Portugal, esta efervescncia pela valorizao dos mbitos de educao no-formais e pelo reconhecimento das aprendizagens adquiridas em contextos formais e informais tambm se tem feito sentir. Podemos identificar um nmero considervel de prticas educativas que associaramos facilmente educao no-formal. So frequentemente levadas a cabo por organizaes da sociedade civil e assumem as mais diversas formas, desde seminrios de formao a oficinas temticas ou trabalhos/visitas de campo. Apesar desta prtica existente, o conceito de educao no-formal raramente utilizado enquanto tal e essas mesmas prticas nem sempre so reconhecidas enquanto educao no-formal.

Tambm no campo acadmico e cientfico, as investigaes realizadas em Portugal que se dirigem para a anlise, compreenso e problematizao dos processos de aprendizagem fora do contexto escolar, parecem no privilegiar o conceito de educao no-formal propriamente dito. H at, em alguns casos, uma indiferenciao entre a aprendizagem no-formal e informal ou entre educao no-formal e informal. Em boa parte dos casos, procura compreender-se como aprendem os adultos (com especial enfoque nos no-escolarizados) a partir da sua experincia de vida nos domnios profissional, familiar e social. H efectivamente uma grande preocupao em compreender esse processo de aprendizagem, os seus elementos constituintes e factores que o determinam, mas menos a preocupao de estudar a proposta educativa a montante dessas aprendizagens, onde se enquadra o conceito de educao no-formal. Esta realidade parece querer indicar-nos que as preocupaes de investigao no momento se centram mais no reconhecimento e valorizao das aprendizagens no-formais e informais com vista sua certificao com referncia ao sistema de ensino formal, e menos com a valorizao e reconhecimento da educao no-formal enquanto tal. Reconhecer a educao no-formal numa perspectiva social, educativa e poltica, significa possibilitar o enquadramento numa estratgia e numa poltica educativa determinadas, das prticas, dos actores e dos processos j existentes, valorizando e potenciando o que lhe especfico e complementar ao sistema educativo formal.

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Na perspectiva poltica, por seu turno, os desafios colocados pela aprendizagem ao longo da vida (e, provavelmente, respaldados pela investigao cientfica existente) tm obtido uma resposta aparentemente mais assente nos domnios do ensino (no modelo de educao/formao por competncias, na educao de adultos, etc.), na formao e qualificao profissional e nos sistemas de reconhecimento, validao e certificao de competncias (CRVCC). Os processos de RVCC2 so, provavelmente, a face mais visvel deste esforo institucional e poltico. Mas outras manifestaes de valorizao da educao no-formal, em Portugal, so tambm meritrias de nota. A ttulo de exemplo registamos:

O Seminrio organizado conjuntamente pelo Conselho Nacional de Educao e o Conselho Nacional de Juventude (1999) sob o tema Educao e associativismo para alm da escola, tendo como marco central o papel das associaes juvenis enquanto agentes de educao no-formal;

Todo um conjunto de seminrios, conferncias e projectos organizados no mbito da educao de adultos em Portugal onde se destaca o papel das respostas educativas / de formao fora do contexto escolar;

O projecto MAPA Motivar os Adultos para a Aprendizagem, da responsabilidade da Direco Geral de Formao Vocacional (DGFV), centrado nas actividades de e no papel da educao no-formal enquanto motivadoras e promotoras da aprendizagem nos adultos;

O Programa ESCOLHAS (3 fase3), da responsabilidade conjunta do Ministrio da Presidncia do Conselho de Ministros, do Ministrio do Trabalho e da Solidariedade Social, do Ministrio da Educao e do Ministrio da Cincia e do Ensino Superior no qual a promoo da educao no formal um objectivo explcito, acompanhado de orientaes de aplicao concretas que devem guiar os vrios intervenientes na implementao do Programa.

Mais recentemente, os cursos de formao de formadores em educao no-formal, organizados pelo Conselho Nacional de Juventude, que tm como finalidade capacitar os participantes para conceberem, implementarem e avaliarem actividades de

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Ou, mais recentemente, toda a bateria de respostas e solues de qualificao, mecanismos de formao e desenvolvimento de competncias, reunidos sob o emblema das Novas Oportunidades - programa lanado em 2007. Referimo-nos, no Cap.5, s anteriores fases do Programa Escolhas.

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formao em educao no formal. O termo educao no-formal a sua utilizao enquanto tal no aparece, no entanto, espelhado num leque to largo e abrangente de prticas educativas quanto poderamos imaginar. Ao contrrio, ele parece ter lugar, por excelncia, num conjunto relativamente restrito de espaos, organizaes, movimentos e projectos a que Incio Nogueira chamaria de terceiros lugares educativos: Existem, pois, hoje, em Portugal, os Terceiros Lugares Educativos e um Terceiro Sector, por excelncia locais de educao no formal ou informal. Foram-se aperfeioando nas duas ltimas dcadas, com especial incidncia nos anos 90, dando respostas organizadas e alternativas ao sistema formal de ensino, no mbito da Educao-Formao. Recolocaram tambm a questo da participao cvica e introduziram o debate na territorializao da educao, desenvolvimento local, direitos humanos, solidariedade social e outros (Nogueira, 2007:12). Se podemos seguramente dizer, pela sua natureza, que a educao no-formal, ou que actividades educativas no mbito da educao no-formal, tm lugar um pouco por toda a parte, j no to certo podermos afirmar que a conscincia deste conceito ou deste mbito educativo est presente nessa multiplicidade de espaos ou lugares educativos fora do contexto escolar. E isto particularmente verdade no contexto portugus. O que se entende, nestes espaos, por educao no-formal? pertinente utilizar este conceito para designar toda essa panplia de prticas educativas fora do contexto escolar? Devemos apostar num esforo de reconhecimento alargado da educao no-formal? Importa notar, desde logo, que quando falamos de reconhecimento da educao no-formal poderamos identificar dois caminhos de interpretao possveis: a) Por um lado, entender o reconhecimento da educao no-formal como o reconhecimento das aprendizagens geradas e adquiridas em contexto de educao noformal. Aqui se encontrariam, por exemplo, as abordagens desenvolvidas no mbito do Reconhecimento, Validao e Certificao de Competncias (Pires, 2005, 372-374);

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b) Numa outra perspectiva, poderamos entender o reconhecimento da educao noformal como o reconhecimento da importncia e do valor da educao no-formal num contexto social, poltico e educativo determinado. esta segunda abordagem que mais nos interessa, por ser justamente onde a educao noformal entendida como proposta educativa pode ser mais questionada. E nesta segunda perspectiva, por reconhecimento teremos que entender um conjunto alargado de aces, atitudes e intencionalidades combinadas entre si de forma nem sempre objectiva e organizada. Podero estar associadas ao conceito de reconhecimento, neste contexto particular, ideias como: identificar, distinguir por certas particularidades, admitir, aceitar, constatar, verificar, ficar convencido de, confirmar, conferir um dado estatuto a, declarar autntico ou legal,... entre outras. Neste caminho, importa pois clarificar o que entendemos por educao no-formal, ou ainda, melhor, que entendimentos possveis existem do conceito de educao no-formal.

1.2 OBJECTO DE ESTUDO E FINALIDADES O objecto deste estudo centra-se pois na educao no-formal, em particular no contexto Portugus. O que se entende por educao no-formal? Qual a relevncia do reconhecimento da educao no-formal em Portugal no contexto social, poltico e educativo actual? Quo importante este se afigura, no contexto do desenvolvimento de polticas educativas integradas, como resposta aos desafios colocados pela necessidade de empregabilidade, qualificao, coeso social e cidadania participativa no contexto de desenvolvimento actual do pas e do mundo? Como se configura em Portugal o processo de reconhecimento da educao noformal qual a sua situao actual luz das exigncias colocadas pelo novo paradigma da aprendizagem ao longo da vida? Que actores, tenses e problemticas chave caracterizam este processo? No conseguiremos nem pretendemos com este estudo abordar de forma sistemtica e conclusiva todas estas questes. Reconhecemos, isso sim, que elas configuram uma problemtica mais abrangente que poder dar origem a vrios outros trabalhos de investigao

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a ela associados. So pois finalidades deste estudo: Compreender a pertinncia o valor e a necessidade da educao no-formal enquanto conceito e enquanto proposta educativa. Contribuir para compreender e explorar a problemtica da educao no-formal luz dos referenciais tericos/conceptuais existentes e no mbito dos desafios colocados pelo paradigma da aprendizagem ao longo da vida; Fornecer pistas para a definio de polticas educativas integradas, em Portugal, consentneas com o paradigma de aprendizagem ao longo da vida e com o papel da educao no-formal na aformao de novas propostas educativas, mais transformadoras.

1.3 QUESTES ORIENTADORAS As questes que acabmos de levantar no ponto anterior, ao enquadrar o objecto de estudo deste trabalho, no so questes fceis de sintetizar; no , sobretudo, evidente, sintetizar questes que so todas elas complexas e interligadas entre si numa questo orientadora simultaneamente abrangente (de forma a dar espao abordagem holstica desta problemtica) e especfica (por forma a determinar um percurso de investigao bem definido e enfocado). at inquietante pensar que o cursor de uma investigao sobre uma matria to vasta e (ainda) agreste como a educao no-formal parta de uma nica pergunta inicial, orientadora. E, no entanto, como nos dizem Quivy e Campenhoudt (2005:31), Uma investigao por definio algo que se procura. um caminhar para um melhor conhecimento e deve ser aceite como tal, com todas as hesitaes, desvios e incertezas que isso implica. (...) Por conseguinte, o investigador deve obrigar-se a escolher rapidamente um primeiro fio condutor to claro quanto possvel, de forma a que o seu trabalho possa iniciar-se sem demora e estruturar-se com coerncia. E assim demos ns tambm incio ao nosso caminho, definido como questo inicial:

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O que se entende por educao no-formal, particularmente no contexto portugus? Desta questo inicial derivam quatro outras questes orientadoras que procuraremos explorar ao longo deste trabalho: pertinente, na actualidade, falar de educao no-formal, em particular no contexto social, econmico e educativo portugus? Que contributos tericos e conceptuais nos podem ajudar a compreender melhor este conceito? Como se enquadra institucionalmente a educao no-formal num contexto internacional, europeu e portugus? Que concepes e prticas educativas do forma educao no-formal em Portugal? A abordagem destas questes releva as trs dimenses distintas mas complementares desta tese: (1) a primeira que incide sobre a relevncia a importncia, o valor, a pertinncia da educao no-formal luz do contexto social, poltico e educativo actual; (2) uma outra que incide sobre a anlise do conceito propriamente dito: as suas origens histricas, as fronteiras que o delimitam, as diferentes expresses que assume, o papel institucional que representa e as concepes e prticas que lhe do forma; (3) e, finalmente, a identificao de prticas significativas de educao no-formal, exemplos concretos contextualizados na realidade portuguesa, ilustrados neste trabalho a partir dos contributos dos projectos do Programa Escolhas.

1.4 OPES E ABORDAGENS METODOLGICAS

Esta uma temtica por natureza complexa e de grande ambiguidade. No que toca educao no-formal no se conhecem definies consensuadas cientificamente. tambm um objecto por natureza eminentemente poltico, da hermenutica da realidade social e educativa e da interveno sobre esta. ainda um campo de investigao onde, apesar de alguns contributos significativos, se tem produzido pouco no universo acadmico (e menos ainda em Portugal). Muito do que conhecemos hoje sobre estas matrias frequentemente do domnio meramente

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opinativo, ensastico, na maior parte das vezes marcado poltica e ideologicamente. Augusto Santos Silva (Silva e Pinto, 1986:31) identifica trs nveis a que podem surgir obstculos na produo de conhecimento cientfico sobre domnios do social com estas caractersticas: (1) o senso comum, (2) as formaes ideolgico-doutrinrias e (3) as ramificaes destas no interior de disciplinas cientficas consolidadas. A educao no-formal situa-se, justamente, na interseco destes trs. Vejamos apenas como exemplo o seguinte: No improvvel que um cidado comum seja capaz de emitir uma opinio sobre a relevncia das aprendizagens efectuadas fora do contexto escolar, sobre a sua importncia e valor para a vida, e a partir destas ajuizar sobre o lugar da escola e o lugar dos outros espaos de educao na formao dos indivduos que somos hoje4; A educao no-formal tem sido utilizada por grupos e movimentos de oposio ao sistema escolar de ensino como proposta alternativa fundamentada, com uma determinada ideia de desenvolvimento e transformao do mundo em que vivemos; A educao no-formal, enquanto conceito, est hoje inscrita num conjunto de reflexes e debates no mbito das cincias da educao, da psicologia, da sociologia, da gesto de recursos humanos, entre outros; na sua construo conceptual impregna-se de variadas abordagens e propostas pedaggicas, validadas cientificamente, e serve igualmente de enquadramento a outras tantas. Percebe-se assim, a dificuldade de impermeabilizar a investigao sobre a educao noformal a estes obstculos epistemolgicos contidos em muito conhecimento corrente (idem, p.39). E, no entanto, se verdade que esse esforo acrescido de um maior rigor e exigncia metodolgicos se reveste da maior importncia, essa mesma metodologia deve ser tambm pelo que acabamos de descrever suficientemente plstica e permevel de forma a poder absorver a complexidade e, em alguma medida, a novidade deste objecto de estudo expressa nos elementos e nas pistas do senso comum. Como nos diz ainda Augusto Santos Silva: A ruptura com o senso comum no constitui, por tudo isto, um trabalho realizado, de uma vez por todas, na fase inicial de investigao; (...) nem consiste, muito menos, em evacuar as evidncias do senso comum do objecto de4

Veja-se a este propsito a obra de Carmn Cavaco (2002) referenciada na bibliografia.

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anlise, postulando que as vivncias dos actores no interessam cincia. Representa, outrossim, um proceso continuado e sempre incompleto. E um processo em que a cincia se questiona a si prpria, porque questionada por valores, doutrinas, saberes prticos. Mesmo quando estes implicam obstculos produo de conhecimentos sobre o social, o facto de interrogarem ou contestarem a pesquisa , ainda assim, positivo e imprescindvel para o desenvolvimento desta. (Silva e Pinto, 1986:51). Do ponto de vista metodolgico procurmos pois desenvolver uma abordagem qualitativa, multidisciplinar que facilitasse o processo hermenutico e o caminho heurstico que fariam seguramente parte deste trabalho. De facto, no mbito da problemtica que apresentmos e tendo em conta a questo inicial desta investigao, fazia-nos todo o sentido esta abordagem qualitativa. Como nos dizem Bogdan e Biklen, a abordagem da investigao qualitativa exige que o mundo seja examinado com a ideia de que nada trivial, que tudo tem potencial para constituir uma pista que nos permita estabelecer uma compreenso mais esclarecedora do nosso objecto de estudo (1994:49). Trata-se, pois, de fomentar uma prtica investigativa essencialmente indutiva, significativamente descritiva e interpretativa, entendida enquanto processo em espiral (com avanos e recuos), capaz de procurar compreender de forma progressiva uma determinada realidade. Em suma, se escolhemos esta abordagem qualitativa no mbito da nossa metodologia de investigao, foi porque a entendemos mais consentnea com as interrogaes que nos colocmos ao incio e essas questes encerram em si mesmas uma imensa subjectividade, acompanhadas da vontade genuina de compreender, sem certezas adquiridas nem hipteses a confirmar e, sobretudo, o desejo de, neste caminho de investigao, aprender com o processo e no apenas com os seus resultados. Da descrio desse caminho percorrido, valer a pena realar o seguinte: Importava definir partida um quadro de referncia terico e conceptual, que servisse de suporte compreenso desta temtica. Este foi um primeiro passo importante do caminho a percorrer. Sem ambicionar uma anlise e reflexo aprofundadas sobre as grandes questes da contemporaneidade, importava, no entanto, descortinar de forma genrica e interpretativa aquilo que so as principais mutaes e os principais desafios da realidade em que 20

vivemos do ponto de vista social, poltico e educativo. luz destas mutaes e destes desafios que se configuram os novos paradigmas educativos, e nestes o papel chave da educao no-formal. Nesta contextualizao dos debates e das reflexes em torno da educao no-formal, procurmos em simultneo identificar alguns dos aspectos que explicitam a sua pertinncia. Em certa medida, procurmos responder questo: porqu falar de educao no-formal hoje?. Com recurso a um conjunto de documentao que foi sendo identificado ao longo do percurso, em permanente actualizao, procurmos compreender como se enquadrava que lugar tinha o conceito de ENF e o seu reconhecimento numa perspectiva institucional a nvel nacional e internacional. Realizmos neste caminho um conjunto de entrevistas exploratrias, que nos ajudassem a suscitar novas pistas de leitura, interpretao e compreenso desta temtica, luz das questes orientadoras de investigao. Procurmos enriquecer este percurso realizando um trabalho emprico que desse visibilidade e compreensibilidade s prticas e experincias existentes no contexto portugus. Decidimos ento proceder anlise de contedo das respostas produzidas pelos coordenadores de projectos no mbito do Programa Escolhas, e tentmos, a partir desse trabalho, contribuir para caracterizar e compreender a educao no formal numa perspectiva contextualizada. Pesquisa documental: elementos metodgicos

Este trabalho realizou-se essencialmente com base numa pesquisa documental. portanto um trabalho de natureza eminentemente qualitativa e fortemente hermenutica. Esta pesquisa documental foi como explicamos adiante complementada em paralelo com entrevistas exploratrias e anlise de experincias concretas, ilustrativas de uma determinada realidade. Foi nesta lgica dialctica que melhor procurmos fundamentar e desenvolver as questes de investigao. Tal como nos sugere Canrio (2000, p.119 cit Vieira, 2006:3), a actividade investigativa e reflexiva visa como objectivo primeiro (com base numa teoria e num mtodo), a produo de uma descrio no arbitrria de uma realidade, permitindo produzir compreenso e atribuio de sentido, onde, antes, apenas existia desordem.

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esta a linha de pensamento que seguimos sobretudo nesta pesquisa documental. No se trata portanto de produzir propostas conceptuais ou definies de trabalho em torno da educao no-formal, mas antes de encontrar pistas estruturadas e orientadas de compreenso de uma realidade que , ela prpria, objecto de variadas concepes e interpretaes. A escolha da pesquisa documental como metodologia de base deste estudo pareceu-nos responder ao seu propsito por um conjunto de razes das quais destacamos:

A necessidade de construir um enquadramento terico e conceptual de base, partilhvel. Em Portugal, a investigao sobre educao no-formal ainda dispersa, fragmentada e normalmente adjacente a outros campos de investigao mais consolidados, como sejam a educao de adultos ou a educao permanente, por exemplo. Importava pois, reunir num texto, contributos de variadas fontes documentais at aqui dispersas e muitas vezes desconhecidas entre si. A preocupao em identificar e compreender os enquadramentos institucionais do conceito de ENF no mbito de instituies como a ONU, a OCDE, a Unio Europeia, e do prprio Estado portugus particularmente no mbito da poltica educativa, remetianos incontornavelmente para a anlise de propostas de directivas, leis, documentos regulamentares, oramentos, despachos, etc. O valor e a importncia atribudos pelas autoridades pblicas educao no-formal seriam em primeira instncia aferidos pelo que fizesse prova documental. Cruzmo-nos, j no caminho de investigao, com um conjunto de materiais documentais que nos pareceram de significativa importncia e meritrios de serem includos neste estudo sobretudo por no estarem ainda tratados em nenhuma outra sede. o caso das contribuies dos coordenadores dos projectos do Programa ESCOLHAS sobre a educao no-formal no contexto dos seus projectos, que aproveitamos de forma particular para ilustrar um entendimento da ENF a partir de uma experincia concreta e contextualizada. Esta opo segue tambm uma abordagem de Pirre de Saint-Georges (1997:31) que nos diz que a criatividade do investigador lev-lo- por vezes a documentar-se de maneira inovadora, recorrendo a fontes existentes mas at ento inexploradas, porque ningum antes dele pensara em utiliz-las ou, pelo menos, em

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utiliz-las dessa maneira.

Estamos conscientes que no mbito da investigao em cincias sociais, a pesquisa documental, por si s, dificilmente suscita os procedimentos empricos tpicos do conhecimento cientfico que pretendem descortinar os diferentes sentidos de uma mesma realidade, fazendo emergir novas fontes de leitura, interpretao e compreenso. A pesquisa documental no tem, por natureza, essa vocao. Como nos sugere Pirre de Saint-Georges a pesquisa documental trabalha sobre o que j existe. E, no entanto, diz-nos ainda o mesmo autor, ela pode, em certos casos, tornar-se uma tcnica particular de recolha de dados empricos quando se desenvolve de modo a considerar os documentos (escritos ou no) como verdadeiros factos de sociedade (1997:17). tambm neste sentido que entendemos a pesquisa documental neste trabalho de investigao. Combinada complementarmente com outras tcnicas de investigao as entrevistas exploratrias e a anlise de contedo, das quais falamos mais adiante alimentmos a convico de que ela poderia efectivamente suscitar novos dados empricos.

Partimos ento para este trabalho de um conjunto vasto de fontes documentais, constituindo um corpo bastante heterogneo, multidisciplinar e significativamente dinmico. A educao no-formal, ao inscrever-nos num outro paradigma educativo para l dos sistemas escolares de ensino suscita tambm um novo paradigma cientfico e investigativo, baseado na transdiciplinaridade, na complexidade, na tica, na sensibilidade, imprescindvel ao exerccio de uma cidadania escala planetria (Sousa Santos, 1987 cit in Vieira, 2006:115). pois foroso, transcender as fronteiras da sociologia da educao em particular, e partir descoberta dos contributos das reas da educao, da psicologia, das cincias polticas, da economia, da interveno social, da antropologia, do desenvolvimento, etc. O conjunto bibliogrfico que foi sendo explorado ao longo deste processo, espelha isto mesmo. Sendo essencialmente constitudo por fontes exclusivamente escritas, so combinadas fontes oficiais e no oficiais, incluindo fontes estatsticas. Aos trabalhos e publicaes acadmicos e cientficos das mais diversas reas, fizemos associar documentao institucional, documentao legislativa, directivas comunitrias, discursos polticos, artigos de opinio, publicaes organizacionais, relatrios, tomadas de posio, entre outros.

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A recolha e anlise desta documentao no foi objecto de uma metodologia pr-definida prpria, detalhadamente inscrita em etapas e procedimentos especficos de investigao. Procurmos antes levar a cabo uma leitura crtica e atenta dos documentos, tomados como o ambiente natural de uma investigao qualitativa, e a partir do qual fomos tomando notas e registos sistemticos das pistas que nos permitiriam compreender melhor o conceito de educao no-formal. Neste sentido, foram-nos teis as recomendaes de Bogdan e Biklen (1994:64) que nos indicam que o investigador procede com rigor no que diz respeito ao registo detalhado daquilo que descobre e isto, tambm, que o distingue afinal de outros actores igualmente atentos e interessados, mas porventura menos cuidadosos do ponto de vista da investigao. Entrevistas Exploratrias Tal como foi referido anteriormente, a construo e a anlise desta documentao foi acompanhada de algumas entrevistas exploratrias. Assim como nos explocam Quivy e Campenhoudt, as entrevistas exploratrias permitem-nos revelar determinados aspectos do fenmeno estudado em que o investigador no teria espontaneamente pensado por si mesmo e, assim, completar as pistas de trabalho sugeridas pelas suas leituras (2004:69).

As entrevistas foram efectuadas em momentos e contextos diferentes a seis indivduos que correspondiam, complementarmente, aos seguintes perfis:

com experincia governativa na rea da educao e/ou com cargos de relevo na administrao pblica ligada educao;

com actividade prtica evidenciada no mbito da educao no-formal, quer a nvel nacional, quer a nvel internacional e reconhecidos pelos seus pares;

a realizar investigao em reas prximas / adjacentes educao no-formal, como sejam a educao de adultos, o desenvolvimento comunitrio, a educao para os direitos humanos, a participao da sociedade civil;

Este perfis, parece-nos, correspondem em boa medida s trs categorias de pessoas que podem ser interlocutores vlidos em entrevistas exploratrias, tal como apresentadas por

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Quivy e Campenhoudt: (1) docentes, investigadores especializados e peritos, (2) testemunhas privilegiadas e (3) o pblico a que o estudo diz directamente respeito5.

Estas entrevistas revestiram-se todas de uma informalidade significativa, e foram conduzidas de forma aberta e flexvel. Esta opo prende-se com a natureza e a funo das entrevistas exploratrias propriamente ditas: ... servem para encontrar pistas de reflexo, ideias e hipteses de trabalho, e no para verificar hipteses pr-estabelecidas. Trata-se, portanto, de abrir o esprito, de ouvir, e no de fazer perguntas precisas, de descobrir novas maneiras de colocar o problema, e no de testar a validade dos nossos esquemas (Quivy e Campenhoudt, 2004:70).

Podemos falar, pois, de entrevistas semi-directivas ou semi-estruturadas. Da mesma forma que quismos deixar margem suficiente para que os entrevistados pudessem exprimir os seus prprios pontos de vistas e as suas interrogaes, numa linguagem que fosse sua, fazendo apelo sua prpria experincia e aos seus lugares conceptuais, queramos simultaneamente direccionar estas entrevistas em torno de duas questes centrais: a) Porque to ausente, em Portugal, o conceito de educao no-formal (at do ponto de vista terminolgico)? b) pertinente, hoje, falar de educao no-formal e promover o seu reconhecimento?

Esta perguntas no foram formuladas sempre desta mesma forma nem sequer nesta sequncia. Foram intercaladas com outros aspectos e questes suscitadas pelos prprios entrevistados, e foram, em quase todos os casos, precedidas de uma conversa introdutria, de esclarecimento, procurando auscultar os diferentes entendimentos que entrevistador e entrevistado poderiam ter de um determinado conceito por exemplo, o de educao no-formal. Procurmos tambm certificar-nos que eram conhecidos os enquadramentos terico-conceptuais ou o contexto social, poltico e educativo que vinham servindo de base a este trabalho por exemplo, sobre o paradigma de aprendizagem ao longo da vida, as dinmicas de reconhecimento da ENF, sobre a Lei de Bases do Sistema Educativo Portugus, etc. Por5

Relativamente a esta ltima categoria, as pistas de investigao foram melhor encontradas a partir dos intervenientes na experincia do Programa Escolhas, tal como apresentada no captulo 5. Incidimos portanto, essencialmente, nas duas primeiras categorias.

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ltimo, assegurmo-nos que eram conhecidos pelo entrevistado os objectivos e objecto de estudo deste trabalho.

Estas preocupaes, despistadas com conversas introdutrias anteriores entrevista propriamente dita, assentam tambm numa encruzilhada de base metodolgica. Por um lado, a informao contextual, pode parecer-nos influenciar ou sugerir respostas em determinadas direces e, desta forma, estaramos a esvaziar de sentido a prpria funo das entrevistas exploratrias. Por outro lado, o risco de dessintonia conceptual, terminolgica ou contextual pode levar a resultados perfeitamente irrelevantes para o propsito destas entrevistas ou do conjunto do trabalho de investigao.

O contributo de William Foddy a este propsito ajudou-nos a assumir uma opo. (...) parece difcil justificar o pressuposto de que no informar inquiridos sobre os objectivos de cada uma das perguntas aumenta a probabilidade de obter informao mais vlida. (...) faz mais sentido elucidar os objectivos especficos de cada pergunta ou conjunto de perguntas. Assim, pelo menos, ao responder s perguntas, todos tero em conta a mesma informao contextual (Foddy, 2002:79-80). Foi ento este o caminho escolhido.

A explorao das entrevistas exploratrias foi feita, tambm ela, de forma muito aberta e dinmica, de forma intercalada e complementar s leituras em curso. Foram tomadas notas das entrevistas, registando de forma selectiva as pistas que mais nos ajudariam a abordar as questes orientadoras deste trabalho, e que melhor nos ajudariam anlise documental em curso, numa perspectiva hermeneutica.

Estas entrevistas forneceram-nos efectivamente pistas de reflexo e pesquisa bastante teis. Por um lado, desocultaram abordagens possveis educao no-formal at ento inexploradas nesta investigao como sejam as da educao de adultos ou da educao comunitria ou at mesmo da formao profissional. Por outro lado, forneceram pistas concretas de pesquisa bibliogrfica que complementaram significativamente a recolha at ento efectuada. Importa ainda notar que estas entrevistas permitiram evidenciar mais claramente que a ENF pode estar associada, tambm em Portugal, quer ao universo

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acadmico, quer ao trabalho educativo no mbito do terceiro sector, quer ainda a programa governamentais de educao extra-escolar. Estas pistas foram-nos teis para traar vrios novos caminhos de pesquisa.

Anlise de Contedo caractersticas e procedimentos

O trabalho emprico deste estudo foi realizado com recurso anlise de contedo, a partir dos contributos dos projectos do Programa Escolhas6 no mbito do programa de formao dos respectivos coordenadores.

Laurence Bardin (2004) aponta-nos trs etapas fundamentais do processo de anlise de contedo: (1) a pr-anlise, (2) a explorao do material e (3) o tratamento dos resultados, a inferncia e a interpretao. Metodologicamente, seguimos esta proposta de trabalho, com as adaptaes devidas.

Escolha do Material No nosso caso, o universo de documentos de anlise estava identificado partida. No mbito do programa de formao dos coordenadores dos projectos do Programa Escolhas (2007-2009), foi lanada uma oficina virtual com o objectivo de explorar o conceito de educao no-formal, a partir da experincia dos prprios projectos7. Por ser preparada e animada pelo autor desta dissertao, a oficina foi introduzida com um texto em muito similar em contedo e forma ao enquadramento conceptual aqui apresentado. A partir da leitura desse texto, era pedido aos coordenadores dos projectos Escolhas que, em equipa, respondessem ao questionrio disponibilizado e, em seguida, respondessem questo:

Como se definiria educao no-formal no contexto do vosso projecto Escolhas?

As respostas a esta questo partilhadas online na plataforma virtual de apoio a este curso de formao constituem, assim, o corpus em anlise.

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O Programa ESCOLHAS implementa-se atravs do apoio a e coordenao de 120 projectos de base local designamos frequentemente estes projectos de projectos Escolhas. A educao no-formal uma das quatro reas estratgicas de interveno do Programa Escolhas.

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Responderam a esta questo 70 dos 120 projectos do Programa Escolhas. Foram analisadas todas as respostas disponibilizadas. A nosso ver, fica assim cumprida a regra da representatividade tal como descrita por Bardin (2004:91). Foram tambm consideradas vlidas e pertinentes todas as respostas fornecidas, uma vez que se mostraram adequadas enquanto fonte de informao, de modo a corresponderem ao objectivo que suscita a anlise (Bardin, 2004:92).

Por se tratar de respostas a uma nica questo aberta, sem um formato de resposta predefinido em jeito de entrevista no directiva (Bardin, 2004:166) no podemos em rigor apoiar-nos na ideia da homogeneidade dos textos analisados. Desde a dimenso, ao formato, ao contedo e ao estilo de resposta, evidente a diferena entre eles. No entanto, todos eles procuram responder questo formulada e nenhum deles apresenta demasiada singularidade fora do mbito e do formato de partilha dos contedos analisados (Bardin, 2004:91).

Leitura Flutuante Antes da anlise, propriamente dita, do documento em questo, foi feita uma leitura flutuante, que procurou estabelecer contacto com os documentos a analisar e conhecer o texto deixando-se invadir por impresses e orientaes (Bardin 2004:90). Foi esta primeira leitura que permitiu, por um lado, aferir da pertinncia e validade das respostas em anlise e, por outro, enunciar as primeiras hipteses emergentes e comear a delinear as categorias de anlise.

Formulao das hipteses e objectivos O objectivo central desta anlise de contedo o de caracterizar a educao no-formal no contexto dos projectos do Programa Escolhas. Com este exerccio, e desta forma, procuramos tambm contribuir para compreender melhor o conceito de educao no-formal em Portugal.

A leitura flutuante das respostas do coordenadores dos projectos Escolhas permitiu pois formular, num procedimento de explorao (Bardin 2004:93), explorar: 28 as primeiras hipteses a

No contexto dos projectos do Programa Escolhas, a ENF essencialmente associada sua dimenso pedaggica ( ideia de metodologia no-formal), com caractersticas prprias e diferentes daquelas mais presentes no ensino tradicional; No contexto dos projectos do Programa Escolhas, a ENF associada a um processo de transformao pessoal e social, assente em valores, desenvolvendo competncias outras que a escola no consegue desenvolver; No contexto dos projectos do Programa Escolhas, a ENF entendida de forma complementar ao sistema formal de ensino ( educao formal) e ao papel educativo das famlias e da comunidade (educao informal).

Definio das categorias e sub-categorias de anlise

Foram ento definidas as seguintes categorias de anlise: (1) Caractersticas da ENF a partir da qual se definiriam as sub-categorias: intencionalidade e objectivos, estratgia educativa, papel do aprendente no processo educativo, valorizao da experincia pessoal no processo de aprendizagem, importncia das actividades ldico-pedaggicas e de expresso artstica, importncia da relao afectiva e de proximidade, dinmicas de participao, processos de avaliao, educao assente em valores, processo de transformao pessoal e colectivo; (2) Competncias e (3) Articulao com a educao formal e informal.

A partir daqui, procedemos ento explorao do material. Procurmos retirar, de forma sistemtica, projecto a projecto, todas a inseres (frases, completas ou incompletas, e expresses) que pudessem corresponder s categorias acima definidas. Permitimos que algumas destas inseres surgissem pontualmente sob mais do que uma categoria, uma vez que entendemos que elas permitiam ilustrar, a partir de uma mesma frase, dois atributos distintos da educao no-formal. Por ltimo, reconstrumos o conjunto total de anlise, reorganizmos as categorias, as suas denominaes e negligencimos as inseres que pudessem parecer menos pertinentes. O resultado final deste trabalho apresentado num quadro que disponibilizamos em anexo.

Por ltimo, procedemos inferncia e interpretao. Procurmos nesta etapa, analisar e 29

interpretar os contedos reunidos sob cada uma das categorias identificadas. Importava no apenas fazer a sntese dos diferentes contributos, mas sobretudo inferir da intensidade ou importncia de determinados aspectos em relao a outros. Neste exerccio, procuramos ter em conta o conjunto mais alargado de fontes documentais de anlise, assim como o contributo particular das entrevistas exploratrias anteriores. A partir da, fomos estabelecendo as nossas concluses, procurando responder s questes iniciais, confirmando ou no as hipteses exploratrias que levantmos neste ponto.

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CAP. 2 PORQU FALAR DE EDUCAO NO-FORMAL, HOJE?

Sabemos que a educao no-formal, enquanto conceito, eclodiu explosivamente no final da dcada de sessenta. Nesse periodo, soavam os alarmes das instituies internacionais para o que se viria a chamar a crise mundial da educao. Um pouco por toda a parte, ouviam-se vozes de protesto contra a instituio-escola e entoavam-se quase em unssono os dfices e os falhanos do sistema formal de ensino. A situao precria tanto em termos educativos quanto em termos sociais de uma percentagem significativa da populao mundial (incluidos os pases ditos desenvolvidos) e as exigncias dos modelos de desenvolvimento vigentes, pressionavam para encontrar novas respostas educativas. s limitaes e condicionantes reconhecidas na escola, respondia-se com os programas de educao noformal libertos dos formalismos do sistema tradicional de ensino, das burocracias governativas, das polticas educativas oscilantes, e apostados na adaptabilidade das prticas pedaggicas s necessidades e expectativas especficas dos seus pblicos-chave, porventura mais desfavorecidos. E hoje? Ser ainda assim? Conquistados nveis de democratizao do acesso ao ensino nunca antes previstos; restruturados programas curriculares e modelos de gesto escolares; adaptadas as metodologias pedaggicas s novas paisagens sociais e culturais da massa de alunos; ser hoje necessrio falar de e promover a educao no-formal? Um estudo recente da UNESCO, em 2002, apontava para pelo menos cerca de 800 milhes de pessoas em situao de analfabetismo. Nada nos espanta, portanto, que os planificadores da educao se voltem para as modalidade educativas diferentes dos sistemas escolares, tornados incapazes de responder crescente procura de educao (...). (Poizat, 2003:17)8 Mas o desgnio da alfabetizao e em particular da alfabetizao dos adultos no ser seguramente o nico argumento, nem tavez o mais forte, que justifique o reconhecimento do valor da educao no-formal nos dias de hoje. So sobretudo duas as ordens razo que, na nossa perspectiva, sublinham a pertinncia actual desta temtica:8

Traduo livre

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A educao no-formal uma componente integrante e incontornvel do novo paradigma de aprendizagem ao longo da vida e inscreve-se inequivocamente na estratgia configurada no Memorando da Aprendizagem ao Longo da Vida, pela Comisso Europeia. Existem desde h muito um conjunto de prticas educativas fora do contexto escolar, para as quais o memorando de aprendizagem ao longo da vida adoptou tambm a designao de educao no-formal. No possvel, pois, dar resposta a este novo paradigma e desgnio comunitrio, sem a compreenso e operacionalizao do conceito de educao no-formal propriamente dito.

As transformaes operadas nas ltimas dcadas nos tecidos social, econmico e poltico exigem hoje por parte dos indivduos o desenvolvimento de novas competncias socialmente reconhecidas e valorizadas que o sistema de ensino formal, por si s, no tem sido capaz de promover correndo o risco acrescido de produzir e reproduzir desigualdades sociais. Por outro lado, a educao no-formal tem vindo a revelar-se um mbito educativo mais capaz de proporcionar oportunidades de aprendizagem para aqueles que, por motivos vrios, no integram nenhum dos sistemas e sub-sistemas de ensino. Tem funcionado, alm do mais, como uma espcie de laboratrio de novas prticas pedaggicas e andraggicas, respondendo assim necessidade de construo de novos paradigmas educativos. A articulao entre educao formal e no-formal pois fundamental para o desenvolvimento dessas novas competncias, inscritas num determinado modelo de desenvolvimento humano e social.

Estas duas ordens de razo complementares entre si tm em comum o entendimento de que, no contexto social, poltico e econmico actual, no possvel nem desejvel exigir da escola que responda, por si s, a todos os desafios educativos colocados. Como nos diz Jaume Sarramona na introduo colectnea de textos sobre educao no-formal, ... a educao no-formal tem hoje o necessrio papel de complementar a educao formal escolar, a qual, logicamente, no pode atender a todas as dimenses da complexa educao actual (Sarramona, 1998:7)9. Debruar-nos-emos, em seguida, sobre cada uma destas ordens9

Traduo livre.

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de razo que, a nosso ver, sustentam que se continue no apenas a falar de mas tambm a promover a educao no-formal hoje.

2.1 OS DESAFIOS DO NOVO PARADIGMA DE APRENDIZAGEM AO LONGO DA VIDA ce qui a modifi en profondeur les tendances ducatives actuelles: la conception dune ducation non pas initiale mais permanente (Poizat, 2003:31). Nos ltimos anos, o esforo levado a cabo por estados e organizaes para a afirmao do novo paradigma de aprendizagem ao longo da vida, tem gerado o enquadramento poltico at ento inexistente para o reconhecimento e valorizao da educao no formal e das aprendizagens adquiridas em contextos informais e no-formais. No entanto, e ao contrrio do que alguns poderiam ser levados a crer, o conceito de aprendizagem ao longo da vida no surge tanto como estratgia de valorizao dos espaos extra-escolares, mas antes como resposta a uma encruzilhada da prpria poltica educativa assente na predominncia da forma de ensino em contexto escolar. Na realidade, so as alteraes econmicas, sociais e culturais catapultadas pelas mutaes da segunda metade do sculo XX, que originam novos contextos e necessidades educativos. Estas mutaes so rpidas, e as novas necessidades emergentes exigem propostas educativas mais velozes que as dinmicas inter-geracionais. Como respostas a estes desenvolvimentos, instala-se a afirmao da aprendizagem ao longo da vida e a conscincia de que os adultos so um grupo prioritrio em termos de interveno educativa. Como nos diz Carmn Cavaco, a capacidade de aprender atravs da experincia reveste-se de uma importncia capital numa sociedade que coloca o nfase na educao permanente dos seus membros e que espera que continuem a aprender ao longo de toda a vida (Landry, 1989:13), surgindo assim a valorizao das modalidades educativas no-formal e informal, como complementares da educao formal (Cavaco, 2002:27-28).

E assim a aprendizagem ao longo da vida se tem tornado, de facto, no enquadramento poltico para o reconhecimento das ou para a necessidade de reconhecer as aprendizagens formais, no-formais e informais. 33

O Memorando de Aprendizagem ao Longo da Vida (Comisso Europeia, 2000) indica explicitamente a necessidade de reconhecimento destes trs mbitos de aprendizagem, e acrescenta ao desgnio da aprendizagem lifelong um outro da aprendizagem lifewide, inscrevendo o paradigma da aprendizagem ao longo da vida na articulao permanente entre estas duas dimenses. A motivao individual para aprender e a disponibilizao de vrias oportunidades de aprendizagem so, em ltima instncia, os principais factores para a execuo bem sucedida de uma estratgia de aprendizagem ao longo da vida. essencial aumentar a oferta e a procura de oportunidades de aprendizagem, principalmente para os que menos beneficiaram de aces educativas e de formao. Todas as pessoas deveriam ser capazes de seguir percursos de aprendizagem da sua escolha, em vez de serem obrigadas a trilhar caminhos pr-determinados conducentes a destinos especficos. Implica isto, simplesmente, que os sistemas de educao e formao devero adaptarse s necessidades e exigncias individuais e no o contrrio (Comisso Europeia, 2000:9). Este desafio traduzido em termos grficos geraria uma grelha semelhante a seguir apresentada10, em que no eixo vertical se considerariam diferentes etapas da vida do aprendente, e no eixo horizontal os trs mbitos de aprendizagem identificados: Esquema 1: Lifelong Lifewide LearningSniores Adultos Jovens Adultos Adolescentes Crianas Lifelong Lifewide Formal No-Formal Informal

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Quadro e abordagem desenvolvidos no mbito de um trabalho de grupo sobre a Aprendizagem ao Longo da Vida: um possvel trajecto de aprendizagens formais, no-formais e informais, para a disciplina de Prospectiva, Planeamento e Avaliao em Educao deste curso de mestrado, elaborado pelo autor desta tese em co-autoria com Ins Moura Martins, Marta Romana e Miriam Costa.

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Uma poltica educativa assente no novo paradigma da aprendizagem ao longo da vida, implicaria preencher cada uma daquelas clulas de forma integrada, complementar e articulada entre si. Na realidade, esta abordagem sugere-nos vrias pistas de reflexo: Indica-nos claramente que a educao ao longo da vida no se circunscreve unicamente educao de adultos; ela abrange todo um espectro etrio, dos mais jovens aos mais idosos. Deixa tambm claro que a educao ao longo da vida no diz respeito apenas ao chamado ensino recorrente, ou seja, no se destina queles que no alcaaram nveis de escolarizao desejveis; ela aplica-se tambm a todos os se integram nos sistemas formais de ensino e a todos os que atingiram os nveis mximos de escolarizao. Ao mesmo tempo que a aprendizagem ao longo da vida explicita a sectorizao do espectro educativo (em formal, no-formal e informal) e isto, por si s, representaria j um desenvolvimento em termos de poltica educativa ela sugere-nos, ainda que menos explicitamente, que a articulao entre estes sectores que desejvel. Por ltimo, sai ainda reforada desta abordagem a ideia de que todos e no apenas alguns podero encontrar caminhos, oportunidades e estratgias de aprendizagem e desenvolvimento para si num paradigma assim configurado. Desta forma, este novo paradigma de aprendizagem ao longo da vida potencia portanto, como sugere Gonzalo Vazquez, uma abordagem sistmica da educao. E nesta abordagem que devemos procurar compreender hoje o papel da educao no-formal: ... la educacin no formal entra en relacin directa con la educacin formal y con la educacin informal, componiendo un (sub)sistema educativo que se desarrolla a lo largo de toda la vida de los individuos y las comunidades (Vazquez, 1998:16-17). A educao no-formal portanto incontornvel no apenas enquanto sector a valorizar, por si s, mas tambm, e sobretudo, enquanto parte integrante de um todo educativo, sem a qual seria impossvel implementar coerentemente uma estratgia de aprendizagem ao longo da vida.

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A acrescentar a esta ideia, e na mesma linha de reflexo, o estudo levado a cabo no mbito do projecto MAPA, da responsabilidade da Direco-Geral de Formao Vocacional, em Portugal, conclui que necessrio valorizar as vias que garantam o acesso facilitado aprendizagem de jovens e adultos pouco escolarizados ou pouco qualificados. Uma destas vias passa pela utilizao optimizada das actividades realizadas em contexto de educao noformal, a montante ou em paralelo formao formal, actividades essas que constituem condies privilegiadas para a motivao dos adultos para a aprendizagem. (MorandAymon, 2007:17) Esta preocupao com a (ainda) desigualdade no acesso ao sistema formal de ensino tem estado no centro dos debates sobre a estratgia de aprendizagem ao longo da vida. Podemos ler, ainda no mbito do estudo supra-citado: As pessoas pouco escolarizadas ou no qualificadas, os trabalhadores da precaridade, os beneficirios da segurana social, os que esto procura de emprego e em particular os desempregados de longa durao, os imigrantes e em cada uma destas categorias, mais frgeis ainda, as mulheres (...), no esto inseridos no sistema de educao formal. (...) para eles, a porta de acesso ao projecto de sociedade de aprendizagem ao longo da vida, por mais ambicioso e generoso que seja, muito estreita. Eles constituem, por isso, um autntico desafio para a implementao de um projecto desta natureza (ANQ, 2007:39) Este mesmo papel, atribudo educao no-formal, de gerar oportunidades de aprendizagem a pblicos que, partida, no as aproveitaram ou aproveitaro no mbito do sistema formal de ensino, tambm amplamente referido no mbito dos projectos ESCOLHAS, analisados mais adiante neste trabalho.

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2.2 TRANSFORMAES SOCIAIS, DESENVOLVIMENTO DE NOVAS COMPETNCIAS E AS LIMITAES DAESCOLA

... a demasiada confiana que se depositou na escola provocou uma cegueira generalizada. (Lahire, 1999 cit in Cavaco,2002:20)

A necessidade de educar para novas competncias e a emergncia de um novo paradigma educativo

Vivemos tempos de grandes e velozes transformaes sociais. A crescente inter-dependncia e consciencializao do global, a emergncia e afirmao de uma sociedade do conhecimento e de risco, o desenvolvimento de um pensamento mais reflexivo sobre a prpria realidade (Ambrsio, 2001), a par de todos os desenvolvimentos tecnolgicos, da agilidade dos mercados de bens e servios, das transformaes demogrficas e ambientais, so alguns dos aspectos que vo configurando estas mutaes. Algumas destas tm um impacto mais directo sobre o paradigma educativo: as novas correntes e teorias de aprendizagem, as mutaes no perfil dos pblicos escolares, a intensificao dos movimentos migratrios e da mobilidade (e o seu impacto na paisagem cultural escolar), as novas necessidades e exigncias do mercado de trabalho, a emergncia das novas tecnologias de informao e comunicao, etc. (Carneiro, 2000; Castells, 2002; Giddens, 2002).

Todas estas transformaes apelam emergncia de novas competncias (individuais e colectivas), necessrias no apenas para o desenvolvimento social e econmico sustentvel do mundo em que vivemos, mas tambm e sobretudo necessrias para a realizao plena de uma cidadania participativa, para o desenvolvimento de uma conscincia tica global, para a coeso social e a construo de plataformas de entendimento e dilogo mais consentneas com a dignidade da pessoa humana, na sua diferena e individualidade.

Neste contexto, claro o desafio de Teresa Ambrsio ao dizer-nos que o que nos compete

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como investigadores e formadores enquadrar as nossas decises, estudos e aces num quadro prospectivo e reflexivo das mudanas que se avizinham. (...) preciso (...) reinventar o pensamento educativo. Isto , rever os fundamentos e os fins do sistema escolar, promovendo e conformando um novo paradigma da educao ao longo da vida e da formao contnua do indivduo, em vez de tentar apenas remendar o que est ultrapassado por fora da dinmica histrica e social (Ambrsio, 2001: 14-15).

neste contexto que se revela novamente pertinente o recurso ao conceito e prtica da educao no-formal, enquanto via educativa complementar com o sistema formal de ensino. Abordaremos, por isso, em primeiro lugar e de forma ligeira, a realidade da situao escolar, hoje. Preocupar-nos-emos, neste caso, e sobretudo, em compreender a dificuldade sentida pela escola em combater por si s as desigualdades sociais luz de um novo contexto social, cultural e econmico que exige, da sua parte, o desenvolvimento de novas competncias.

A situao da escola hoje

empiricamente comprovvel o papel hegemnico que atribumos escola na resposta a todos e quaisquer desafios educativos. Centramos nela a responsabilidade histrica, social e institucional de encontrar solues para novas necessidades educativas, no obstante anunciarmos sem constragimentos o estado latente de crise do ensino e da escola e at, muitas vezes, da educao em geral. Dizemo-lo como se de uma evidncia se tratasse, sem apelo a uma opinio contrria, apenas invocando uma soluo futura esperada, que responda s imensas dificuldades com que a escola e o ensino se deparam.

Aquilo que hoje nos parece, de facto, incontornvel que as transformaes sociais, polticas, econmicas e culturais operadas no decurso das ltimas dcadas tm colocado escola um conjunto alargado de desafios estruturais e pedaggicos que so pela sua natureza novos e que configuram caractersticas tambm elas desconhecidas at ento. Perante estes desafios, a escola parece situar-se numa encruzilhada desenhada pela sua prpria natureza: por um lado, sua funo social dar-lhes resposta, adaptando-se aos novos contornos educativos exigidos, mas por outro lado, a sua estrutura, enformada histrica e 38

socialmente, no lhe permite ajustamentos nem rpidos, nem radicais. Porqu? Guy Vincent sugere que, na resposta a esta questo, procuremos conhecer e compreender melhor aquilo que designa de forma escolar moderna, de como esta forma se impregna na nossa sociedade contempornea. Importa pois falar de forma escolar e no (apenas) de escola ou ensino, para compreender o que constitui a unidade duma configurao histrica particular, surgida dentro de certas formaes sociais, numa determinada poca e simultaneamente com outras transformaes (Vincent e outros, 1994:13). Por outras palavras, a situao anunciada de crise da escola hoje, no se pode compreender sem a remisso a este percurso histrico especfico. O que podemos aferir das explicaes destes autores que a encruzilhada, a crise, em que a escola se encontra, fruto, ainda que paradoxalmente, do seu prprio sucesso. Isto , porque crescemos num modo de socializao escolar, exigimos hoje escola e no a outrem respostas institucionais aos desafios educativos com que nos deparamos. E no entanto, conhecemos bem as limitaes e condicionantes de que as escola se rodeia. Preocupa, naturalmente, decisores polticos e agentes educativos que a escola no seja capaz de responder positivamente a estes desafios. Preocupa, ainda mais, que esta incapacidade de resposta se traduza no aprofundamento e reproduo de desigualdades sociais, em particular na populao escolar. A situao de crise nascente a ocasio de discernir os pressupostos escondidos num sistema tradicional [de ensino] e os mecanismos capazes de o perpetuar quando os preliminares do seu funcionamento j no so mais completamente executados. (Bourdieu, s/d:136) As pistas e as propostas bem conhecidas de Bourdieu e aquelas de alguns dos seus seguidores ajudam-nos a compreender melhor estas preocupaes e, de algum modo, esta crise do sistema escolar de ensino. Podero, na mesma medida, dar-nos indicaes do papel complementar da educao no-formal na resposta aos desafios escolares. Como nos diz Vtor Manuel Pea Ferreira, a originalidade de Pierre Bourdieu reside () no facto de ter tentado criar um quadro terico capaz de relacionar dialecticamente os agentes sociais e as estruturas de dominao (Giroux, 1983:260) e no facto de tentar ler a escola a partir desse quadro. 39

Conceitos como o de capital cultural, habitus e ethos de classe, so instrumentos tericos e metodolgicos de extrema importncia quando se analisam contextos educativos concretos () (Ferreira, 19-:11-12). No seguramente o objecto deste trabalho questionar, aprofundar, problematizar os conceitos apresentados por Bourdieu. O propsito destes pargrafos to-somente o de questionar o papel potencial da educao no-formal na correco de assimetrias sociais no espao educativo, luz das abordagens de Bourdieu, tendo em conta a tendncia da escola para reproduzir essas desigualdades em vez de as esbater. O espao social de classes e as trajectrias sociais Na lgica de Bourdieu, a construo de classe funo de uma articulao inter-dependente de diversos factores constitutivos, com pesos diferentes em momentos e espaos sociais diferentes. Numa leitura simples (porventura simplista) das propostas de Bourdieu, o espao social das classes seria composto de trs dimenses fundamentais, a saber: (1) o volume de capital, (2) a estrutura do capital e (3) da trajectria do capital. Estes espaos sociais enformam e esto enformados por um determinado habitus que por sua vez desencadeia um conjunto de prticas e representaes sociais, projectadas, entre muitas outras, na esfera educativa, profissional, familiar, etc. O volume de capital seria constitudo, segundo Bourdieu, por um conjunto de capitais, entre os quais o capital econmico, o capital escolar, o capital social e o capital cultural. precisamente o capital cultural que aqui mais nos interessa. O capital cultural seria composto pelo capital escolar e pelas aprendizagens fora de escola, e seria apresentado em trs estados: (1) objectivado, (2) incorporado e (3) institucionalizado. Numa linguagem que no a de Bourdieu, diramos que a mobilidade social, a possibilidade de ascenso social ou ainda, por outras palavras, a possibilidade de passar de uma classe social a outra estaria altamente condicionada, entre outros, por estes capitais de origem e pelos seus estados respectivos e, naturalmente, pela possibilidade de interveno sobre ou 40

transformao destes (nomeadamente, atravs do percurso escolar). Estas trajectrias, como nos explica Bourdieu, no so no entanto nem completamente aleatrias nem necessariamente pr-determinveis. O efeito de trajectria manifesta-se quando um conjunto de indivduos ocupando uma posio social parecida na origem, so separados no curso do tempo por diferenas associadas evoluo do volume e da estrutura do seu capital (Bourdieu, 1979:124). Estas trajectrias individuais so resultantes de dois efeitos principais a saber: (1) o efeito de inculcao directamente exercido pela famlia ou pelas condies de existncia originais e (2) pelo efeito de trajectria social propriamente dito, quer dizer, o efeito que exerce sobre as disposies e sobre as opinies a experincia da ascenso social ou do declnio (idem). Falamos portanto, por outras palavras, de efeitos de origem ou efeitos de trajectria, podendo estes ltimos circunscrever trajectrias modais e/ou individuais. Configuradas analiticamente estas trajectrias sociais que desenhariam, na nossa linguagem, uma determinada mobilidade social compete-nos perguntar se, num contexto educativo, ser possvel intervir nestas trajectrias (modais ou individuais) de forma a, por exemplo, esbater desigualdades sociais ou corrigir mecanismos de discriminao e excluso social. O papel da escola e a reproduo escolar Numa sociedade altamente escolarizada na sua forma11, somos permanentemente tentados a procurar nela (e, por vezes, apenas nela) a soluo educativa para intervir nos processos de socializao, se quisermos, para intervir nas trajectrias dos indivduos. Mais, progressivamente, o modo escolar de socializao, quer dizer, a socializao pensada e praticada como educao, pedagogia, etc., imps-se como referncia (no-consciente), como modo de socializao por si mesmo, legtimo, dominante (Vincent e outros, 1994:43). Esta parece ser tambm de alguma forma a leitura de Bourdieu, ao dedicar uma boa parte das suas propostas ao papel da escola na relao com as desigualdades sociais. A literatura recente sobre esta matria leva-nos a crer no entanto que a escola parece encontrar11

Falamos aqui de sociedade escolarizada no sentido da sua forma escolar (cf Guy Viencent), e no no sentido do nmero de indivduos que frequentam a escola.

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grandes dificuldades em fazer face desigualdades sociais chegada, sendo na maior parte dos casos incapaz de intervir nas trajectrias sociais dos seus alunos, reconvertendo eventualmente capital pobre em capital rico. Ao contrrio, a escola tende a reproduzir essas mesmas desigualdades e, em alguns casos, a acentu-las. Esta pelo menos tambm a perspectiva de Bourdieu. Na realidade, assistimos ainda hoje a uma crise do sistema escolar do ensino que, semelhana da realidade analisada por Bourdieu, parece no conseguir fazer face aos desafios de uma populao escolar cada vez mais diversa quer no seu espectro social quer cultural. Ao contrrio, as escolas tendem a valorizar certas formas de conhecimento, de expresso lingustica e de relao com o mundo (capital cultural) que no se encontram igual ou neutralmente distribudas na populao escolar (Ferreira, 19-:12). Segundo Bourdieu, o rendimento pedaggico precisamente funo da distncia do habitus inculcado anteriormente: A anlise das variaes da eficcia da aco de inculcao que se efectua principalmente na e pela relao de comunicao conduz, portanto, ao princpio primeiro das desigualdades do sucesso escolar dos estudantes provenientes das diferentes classes sociais: com efeito, podemos pr por hiptese, que o grau de produtividade especfica de todo o trabalho pedaggico que no seja o trabalho pedaggico realizado pela famlia, funo da distncia que separa o habitus que ele tende a inculcar (...) do habitus que foi inculcado por todas as formas anteriores de trabalho pedaggico e, no termo da regresso, pela famlia. (Bourdieu, s/d:100). Esta reproduo de desigualdades sociais sobretudo analisada por Bourdieu atravs dos factores de comunicao pedaggica da lngua e logo a ele afirma que a mortalidade escolar no pode crescer seno medida que se vai em direco s classes mais afastadas da lngua escolar (Bourdieu, s/d:103). Mas este processo de seleco e diferenciao social escolar no naturalmente funo directa do volume ou estrutura de capital de cada aluno chegada ao sistema escolar, nem sequer do habitus prprio da sua classe social. Ao contrrio, ... o processo escolar de eliminao diferencial segundo as classes sociais (...) produto da aco contnua dos factores 42

que definem a posio das diferentes classes em relao ao sistema escolar, a saber o capital cultural e o ethos de classe (Bourdieu, s/d:120). Ora, escola no portanto fcil responder a esta complexidade e exigncias. Tanto mais quanto reconhecemos que ... um sistema de ensino que se fundamenta numa pedagogia de tipo tradicional no pode desempenhar a sua funo de inculcao seno enquanto se dirigir a estudantes dotados do capital lingustico e cultural e da aptido para o fazer frutificar que ele pressupe e consagra sem nunca o exigir expressamente e sem o transmitir metodicamente. Segue-se que, para um tal sistema, a prova verdadeira menos a do nmero do que a da qualidade social do seu pblico (Bourdieu, s/d:137). Por outras palavras, a leitura das abordagens de Bourdieu leva-nos a considerar que no s a escola incapaz de esbater as desigualdades sociais presente no universo do seu pblico, como ainda reproduz essas mesmas desigualdades, e como parece incapaz de se transformar internamente luz dos novos paradigmas educativos emergentes. O papel da educao no formal La escuela es, seguramente, la institucin pedaggica ms importante de entre las que hasta hoy la sociedad ha sido capaz de dotarse. Pero () la escuela ocupa slo un sector del universo educativo; en el resto del mismo encontramos, por una parte, el inmenso conjunto de efectos educativos que se adquieren en el curso ordinario de la vida cotidiana (), y, por otra parte, aquel sector heterogneo, mltiple y diverso (): la que se ha dado en llamar educacin no formal (Trilla-Bernet, 2003:11). No discurso de Bourdieu no est presente, sem surpresa, o conceito de educao no formal (o conceito, enquanto tal, apareceu com mais intensidade na literatura acadmica nos finais dos anos 70). Mas tambm no est o lugar, o espao conceptual, que ocupa a educao noformal no espectro educativo. A abordagem de Bourdieu neste domnio praticamente bipolarizada: a educao organizada e orientada tem lugar ou no seio da famlia, ou na escola; o resto, so situaes mundanas, frutos do acaso (Bourdieu, 1979:122), diramos ns, de um processo de socializao espontneo e no necessariamente intencional presente no quotidiano de todos os 43

indivduos. Ora, a educao no formal pode ser, precisamente, o que se situa entre estes dois plos. Voltamos portanto questo atrs colocada (agora reformulada): ento possvel intervir nas trajectrias dos indivduos, sem ser pelo acontecimento quotidiano, mas num contexto educativo estruturado e orientado fora do sistema escolar? Isto , seremos capazes de intervir nas (orientaes das) trajectrias dos indivduos e desencadear um processo educativo que, menos permevel s desigualdades de origem e s dinmicas de reproduo do sistema escolar, permitisse a valorizao de todo o conjunto de capital cultural incorporado e a sua passagem a um estado institucionalizado? No , evidentemente, fcil responder a estas questes nem naturalmente o objecto deste trabalho. Mas o reconhecimento e a valorizao do papel da educao no-formal podem abrir-nos pistas interessantes a explorar. Os processos de aprendizagem em contexto de educao no-formal no esto sujeitos s mesmas condicionantes que o sistema de ensino dito tradicional. A educao no-formal no est condicionada pelas relaes de poder intrnsecas ao prprio corpo institucional como o sistema de ensino, nem pelas necessidades de reproduo desse mesmo corpo (Bourdieu, 1984). Num contexto de educao no-formal, a influncia do capital lingustico (Bourdieu, s/d:103) no representa necessariamente um factor de sucesso ou insucesso nem de maior ou menor valorizao do capital cultural dos aprendentes. Num processo de aprendizagem em educao no-formal no h lugar obteno de graus, nem mecanismos de julgamento prprios de um sistema de avaliao selectivo. Num contexto de educao no-formal, os contedos de aprendizagem podem ser veiculados a partir da experincia particular dos aprendentes, tendo em conta o conjunto do seu capital cultural incorporado. O que acontece por exemplo a um jovem que, oriundo de uma classe popular e portador de um capital cultural dito pobre, combina o seu percurso escolar com a participao activa no movimento associativo juvenil e num conjunto de aces de formao orientadas e estruturadas fora do contexto escolar? Que influncia tero todo um conjunto de actividades educativas levadas a cabo junto de grupos sociais de classes populares, concebidas e moldadas de acordo com as necessidades e 44

especificidades prprias desse grupo, com vista, por exemplo aprendizagem da gesto de micro-negcios, na configurao das trajectrias individuais e modais no seio desse mesmo grupo? Poderemos considerar que esta aco educativa, quando orientada, estruturada, e logo publica e politicamente reconhecida e valorizada, contribui para transformar capital cultural incorporado em capital cultural institucionalizado, sem o recurso instituio escola? Estes exemplos (entre muitos outros) do-nos pistas de como um novo paradigma educativo assente no reconhecimento e na valorizao de trs sectores educativos a educao formal, no-formal e informal articulados entre si (e no apenas a famlia, a escola e os acontecimentos quotidianos), poder ajudar a responder a alguns dos desafios que, insistentemente, procuramos direccionar apenas para o universo escolar. Pela definio e construo deste paradigma educativo passar seguramente o papel a atribuir educao para l da escola. Este parece ser tambm o entendimento de Teixeira e Fontes (1996, cit in Cavaco, 2003): No futuro, devido ao ritmo e dinmica dos processos sociais, a formao dos indivduos tem de se assumir como processos de construo, cuja prossecuo ultrapassa, necessariamente, os limites dos sistemas formais de ensino. Por aqui se justifica tambm a necessidade de reconhecer e valorizar a educao no-formal, assim como de a compreender melhor equanto conceito. A anlise que faremos mais adiante da realidade da educao no-formal no contexto dos projectos do Programa ESCOLHAS, procurar explorar esta abordagem, reforando ou questionando as ideias que aqui expusemos.

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CAP. 3 EDUCAO NO-FORMAL: ENQUADRAMENTO TERICO E CONCEPTUAL La educacin no formal, como concepto, surge como consecuencia de reconocer que la educacin no puede considerarse como un proceso limitado en el tiempo y en el espacio, confinado a las escuelas y medido por los aos de asistencia (Vazquez, 1998:11).

No conhecemos hoje em dia uma definio nica ou consensual de educao no-formal. O conceito e tem sido nas ltimas dcadas objecto de um intenso e prolongado debate sobre as suas origens, os seus contornos, a sua aplicabilidade e, sobretudo, a sua utilidade ou pertinncia nos diferentes contextos polticos, sociais, econmicos, culturais e educativos da actualidade. E, no entanto, como no diz Rogers (2004:3), it is possible that no other educational programme or ideology (not even 'popular education') had received such intensive discussion and such widespread support. Este debate global alicerou-se sobretudo em torno dos conceitos de educao formal, educao no-formal e educao informal. Esta ainda hoje uma partio corrente, abundantemente utilizada, que suscita um pouco por toda a parte as mais acesas discusses sobre os seus potenciais e limitaes. E, desde logo, como nos alerta Rothes (2005:173), esta demarcao conceptual entre formal, no formal e informal , como vimos, teoricamente construda, sendo uma classificao que apenas pretende clarificar as prticas que consideramos educativas. ento esta partio do espectro educativo adequada e pertinente? O que caracteriza cada uma destas categorias? Como se definem estes conceitos? Que fronteiras e/ou que interligaes conceptuais e prticas existem entre eles? Como se relacionam estes conceitos com diversas prticas e com as polticas educativas? Estas so algumas de entre muitas outras questes que tero dado e continuam a dar corpo a um debate que se estende escala global. Tentaremos neste trabalho abordar algumas delas.

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3.1 BREVE REMISSO HISTRICA S ORIGENS DA ENF O termo educao no-formal surge pela primeira vez com maior relevncia ou popularizado, como sugere Poizat (2003) a partir da Conferncia sobre a Crise Mundial da Educao (1967), organizada pela UNESCO sob a direco de P. H. Coombs. Esta no no entanto a primeira vez que o conceito de educao no-formal aparece referido. Como nos diz Alan Rogers (2004:71): The term had been used in a few earlier writings but without a systematic context of debate. Alan Rogers prope-nos, alis, uma reviso cronolgica bibliogrfica dos contributos mais significativos para o debate sobre a educao no-formal, cuja primeira entrada se situa realmente na dcada de 50.12 Parece, no entanto, consensual dizer-se que a educao no-formal surgiu, como conceito e como resposta educativa, para superar os problemas no resolvidos do sistema formal de ensino, sobretudo num contexto de desenvolvimento. Uma boa parte dos autores geralmente referenciados aponta, alis, como preocupao despoletadora da educao no-formal a pobreza no contexto rural ou, de forma mais genrica, a necessidade de suprir carncias educativas nos pases sub-desenvolvidos13, particularmente nos continentes Africano e da Amrica Latina. (Coombs & Ahmed, 1968; LaBelle, 1986; Vazquez, 1998; Trilla-Bernet, 2003; Poizat, 2003). Nas palavras de LaBelle (1986:1), educao no-formal trata-se, alis: [of] the term chosen by the international development agencies in the 1970s to refer to local-level programs for the adult poor, and draws attention to some of the issues surrounding its use among the oppressed of the Third World. O conceito ento apresentado por P.H. Coombs, e mais tarde desenvolvido em conjunto com M. Ahmed, definia a educao no formal da seguinte forma: Non-formal education is any organised, systematic, educational activity carried on outside the framework of the formal system to provide selected types of earning to particular subgroups in the population, adults as well as children (Coombs & Ahmed,12 13

Ver Anexo 1 ou de Terceiro Mundo, ambas designaes utilizadas pelos autores da poca (anos 60-70).

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1974:8 cit Rogers, 2004:78-79). Esta definio no era no entanto apresentada isoladamente mas sim, como nos habituaremos a encontrar, apresentada a par dos conceitos de educao formal e informal: Formal education as used here is, of course, the highly institutionalised, chronologically graded and hierarchically structured education system, spanning lower primary school and the upper reaches of the university (Coombs & Ahmed, 1974:8 cit Rogers, 2004:76). Informal education as used her is the lifelong process by which every person acquires and accumulates knowledge, skills, attitudes and insights from daily experiences and exposure to the environment at home, at work, at play; from the example and attitudes of family and friends; from travel, reading newspapers and books; or by listening to the radio or viewing films or television. Generally, informal education is unorganised and often unsystematic; yet it accounts for the great bulk of any persons total lifetime learning including that of even a highly schooled person (Coombs & Ahmed, 1974:8 cit Rogers, 2004:74-75). De todas as definies de educao no-formal que circulam na literatura e documentao consultada, esta , de longe, a mais utilizada. A partir daqui, e at aos nossos dias, o conceito evoluiu quer a sua definio quer