O papel do direito nas sociedades contemporneas uma proposta para conciliao entre direitos humanos e multiculturalismo

Revista de Doutrina da 4 Regio, Porto Alegre, n.64, fev. 2015. Disponvel em:

Paulo Mrio Canabarro Trois Neto Juiz Federal, Professor da Unioeste

Sumrio. Introduo. 1. As funes sociolgicas do direito e sua particular importncia para a vida

cultural. 2. Problemas de reconhecimento e a importncia de uma resposta jurdica adequada. 3. Proposta de critrio para a soluo de questes relativas a conflitos multiculturais. Concluso. Referncias.

Introduo De acordo com a doutrina de Axel Honeth, a dignidade humana somente pode ser assegurada

mediante o atendimento a condies formais de interao que, em uma sntese apertada, dizem respeito a trs diferentes modelos de reconhecimento intersubjetivo: o amor (reconhecimento do indivduo como nico), o direito (reconhecimento do indivduo como igual) e a solidariedade (reconhecimento do indivduo como diferente)1

A essas trs formas de reconhecimento corresponderiam, em linhas gerais, trs caractersticas bsicas

do ser humano. Cada pessoa nica porque insubstituvel para aqueles que so do seu crculo mais prximo. Cada pessoa igual a todas as outras no sentido de que est ela dotada da mesma dignidade, compartilhada por todo o gnero humano, que fundamenta sua capacidade de titularizar e reclamar direitos. E cada pessoa diferente das demais no sentido de ter um prprio projeto de vida prprio, consoante seu ideal de vida boa.

Contudo, tais aspectos da personalidade podem ser objeto no apenas de validao interpessoal, mas

tambm de condutas negativas por parte de outras pessoas. A forma mais bsica de menosprezo a privao da autonomia fsica ou psquica, por meio de violncia ou intimidao que destri o reconhecimento primrio de algum (desrespeito sua dimenso fsica e emocional, fundada na individualidade de cada pessoa). Outra forma de menosprezo privar o indivduo de direitos que so prprios de quem est dotado dos caracteres da imputabilidade e da racionalidade (desrespeito sua dimenso jurdico-moral, fundada na igualdade entre as pessoas). Por fim, h o menosprezo que retira do indivduo a autonomia tica de conduzir sua prpria vida como bem lhe aprouver (desrespeito sua dimenso tica, fundada na diferena entre as pessoas)2. Na viso de Honeth, indivduos e grupos sociais inserem-se na sociedade atual por meio de uma luta por reconhecimento intersubjetivo que nasce da experincia dessas trs formas de menosprezo3.

O trinmio individualidade-igualdade-diferena constitui o eixo dos debates sobre as questes

suscitadas pela propagada tenso, objeto do presente estudo, entre multiculturalismo e direitos humanos. A atualidade do tema reside na paradoxal tendncia do fenmeno da globalizao de reavivar lutas por afirmao religiosa e cultural de grupos minoritrios4.

Os problemas desafiados pelo fenmeno do multiculturalismo so de diferentes tipos, mas apesar das

especificidades de cada caso, no se pode abrir mo da tentativa de estabelecer pautas argumentativas dotadas de universalizabilidade. Quando se cuida de determinar o mbito daquilo que se concebe como igual ou diferente, nada mais pernicioso que a utilizao de solues ad hoc, insuscetveis de uma justificao racional intersubjetiva.

O desafio deste estudo, portanto, identificar como o direito deve tratar as questes decorrentes do

multiculturalismo. Para tanto, no primeiro captulo, sero investigadas as funes sociolgicas do direito,

1 HONETH, 2009, p. 30.

2 Alm das trs formas de reconhecimento propostas por Honeth, Rainer Forst (2010, p. 329) sugere uma quarta, a do

reconhecimento como pessoa moral. Considerando a necessria abertura do direito para a moral, essa nova categoria pode ser dispensada se se entender a segunda forma de reconhecimento como uma dimenso jurdico-moral, e no meramente jurdica. Por essa razo o presente estudo modifica, parcialmente, a nomenclatura e a abrangncia dos conceitos defendidos por Honeth (2009, pp. 23-34). 3 Apud SALVADORI, 2011, pp. 189 e 191.

4 [A globalizao] tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posies de

identificao, e tornando as identidades mais posicionais, mais polticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-histricas (HALL; 2004, p.87).

com nfase na sua especial relevncia no tema do multiculturalismo; no segundo captulo, sero apresentados trs diferentes problemas de reconhecimento intersubjetivo espera de uma resposta jurdica adequada; por fim, no terceiro captulo, ser feita a defesa de uma concepo capaz de fornecer pautas argumentativas para soluo das colises entre direitos culturais e outros direitos humanos.

1. As funes sociolgicas do direito e sua particular importncia para a vida cultural. De acordo com a doutrina, as funes sociolgicas do direito seriam: a de realizar o controle social,

por meio de tcnicas intimidatrias, repressivas, ressocializadoras e promocionais5; a de resolver conflitos interindividuais, ou ao menos canaliz-los e dar-lhes tratamento adequado6, notadamente pela via da jurisdio, mas tambm cada vez mais por meio de vias alternativas; a de orientao de condutas7, por meio da qual o direito impe aos indivduos modelos de comportamento estabelecidos de forma genrica e abstrata8; a de distribuir bens e encargos, mediante estabelecimento de critrios de mrito ou demrito pelos quais se pode dar (ou reconhecer) a cada um o que seu9; a de legitimar o poder, mediante racionalizao do seu exerccio, de modo a contribuir para ele seja aceito pela generalidade dos membros da sociedade10.

A par de todas essas funes do direito, convm destacar uma outra, enfatizada por Gregorio Robles,

que faz a interconexo entre todas as outras. Trata-se da funo de delimitar os campos prprios dos diversos subsistemas sociais. Embora o direito seja, ele prprio, um subsistema dentro do sistema social, na verdade constitui um subsistema muito especial, pois por meio dele que a sociedade pode se organizar institucionalmente.11

Gregorio Robles identifica a vida privada, a vida econmica e a vida poltica como os trs subsistemas

sociais que seriam diferenciados e, ao mesmo tempo, aproximados pelo direito. Ao subsistema da vida privada pertenceriam todos os aspectos da vida humana em que o indivduo atua autonomamente, isto , em que decide por si s, sem se submeter a nenhuma instncia superior: eis a esfera da privacidade, da liberdade de pensamento e de tudo que no se introduz na economia ou na poltica (como, por exemplo, as relaes de amizade). Ao subsistema econmico pertencem todas as aes do indivduo e dos grupos sociais que intervm nos processos de produo, distribuio e consumo de bens: eis a esfera do homo oeconomicus, cuja posio na cadeia produtiva pode determinar aspectos muito importantes da sua vida (tempo disponvel, classe social, grau de acesso a bens de consumo, etc). Ao subsistema poltico pertencem as aes do indivduo como membro de parcela da soberania que fundamenta o exerccio do poder: eis a esfera do cidado, que por meio do voto e da participao poltica pode criar, juntamente com os demais cidados, deveres a si prprio.12

A vida privada conecta-se com o subsistema poltico por meio das liberdades pblicas, como o direito

liberdade religiosa, que pressupe a secularizao do poder, impedindo a intromisso estatal em assuntos de f. A conexo jurdica entre vida privada e economia, por sua vez, ocorre pelos direitos de liberdade de escolha e exerccio profissional e pela regulao de aspectos decisivos da vida econmica, como propriedade, contratos, relaes trabalhistas, relaes de consumo, etc. Por fim, tambm pela forma jurdica que a economia penetra na poltica, por meio dos impostos, das obras pblicas, do financiamento de

5 Alguns autores caem no maniquesmo de identificar a tcnica repressiva com o Estado Liberal, atribuindo a ela uma conotao

pejorativa, e a tcnica promocional, por sua vez, com o Estado Social, reservando a esta a condio de tbua de salvao para a justia social (ver, por todos: ARAJO, 2011). Todas essas tcnicas podem e devem conviver para a proteo efetiva dos direitos. A defesa do carter de fragmentariedade e de subsidiariedade dos tcnicas repressivas no pode ser confundida com alternatividade. Tambm deve ser ressaltado que, embora parte da doutrina conceba tais tcnicas como funes autnomas, na verdade elas so apenas instrumentos para a realizao do controle social (FARIAS e outro, p. 143). 6 Sob uma perspectiva funcionalista ou objetivista, que concebe o conflito como uma patologia do meio social, fala-se em resoluo

de conflitos; sob uma perspectiva subjetivista, que concebe o conflito como algo que sempre est presente na sociedade, prefere falar-se em tratamento ou canalizao de conflitos (FARIAS e outro, 2006, p. 138). 7 Essa funo tambm chamada de planificao social (ROBLES, 1997, p. 173) ou configurao das condies de vida

(REHBINDER, 1981, pp. 101-72). 8 FARIAS e outro, 2006, p. 141.

9 Na sociedade atual, aps a falncia do chamado socialismo real, o principal mecanismo de distribuio de bens e encargos o

mercado. Isso, contudo, no significa que o Estado deixe de intervir no trfico mercantil, em graus muito variados, instituindo mecanismos jurdicos de redistribuio. Ver, por todos: ROBLES, 1997, 171-2. 10

ROBLES, 1997, p. 176. 11

1997, p. 153 e 156. 12

ROBLES, 1997, pp. 154-5.

projetos privados, etc. Em todos esses exemplos, o subsistema jurdico serve como canal de comunicao entre os demais subsistemas sociais.13

Os subsistemas sociais no se esgotam, porm, nos que foram at aqui mencionados. O prprio

Gregorio Robles admite que a essa lista poderiam ser acrescentados o subsistema militar, o educativo e o religioso14. Este trabalho parte da necessidade de reconhecer, como subsistema delimitado pelo direito, tambm o subsistema cultural, capaz de abranger os aspectos educativos e religiosos. A vida cultural, sem dvida, est relacionada com a vida privada (escolha de amigos que tenham origem ou identidade comum, uso de vestimentas tpicas, etc), a vida econmica (padres de consumo conforme tradies, feriados religiosos, etc) e a vida poltica (associaes culturais, cultos em locais pblicos, etc), mas de modo algum pode ser inteiramente absorvida por algum desses subsistemas.

A necessidade de conceber a cultura como um subsistema dotado de relativa autonomia em relao

aos demais vai reforada, ainda, pelo papel central da diversidade cultural nos problemas das sociedades atuais. H quem defenda, a propsito, que a preveno da humilhao ou do menosprezo estaria tomando o lugar da eliminao das desigualdades econmicas no centro das preocupaes do mundo contemporneo. Nancy Fraser vai ao ponto de sustentar que estaria em curso uma transio da ideia de redistribuio ideia de reconhecimento15. Embora haja nessa assertiva um certo exagero, j que no se trata da substituio gradativa de um objetivo por outro, mas da necessria coexistncia de ambos, o desafio contemporneo do multiculturalismo parece exigir um projeto normativo cada vez mais atento s lutas por reconhecimento, de modo que no se pode mais medir a justia social apenas em funo da maior ou menor igualdade da distribuio ou redistribuio de bens materiais.

2. Problemas de reconhecimento e a importncia de uma resposta jurdica adequada. Quanto mais homognea uma sociedade, isto , quanto maior a uniformidade das aspiraes ticas

dos indivduos que a compe, tanto menor seria o problema do reconhecimento intersubjetivo. Contudo, uma tal homogeneidade imaginvel apenas em grupos sociais muito pequenos e fechados interao com outros grupos no pode ser pressuposta nas sociedades em que vivemos atualmente, marcadas pela pluralidade das concepes individuais e setoriais de vida boa.

Essa pluralidade no decorre apenas do fator demogrfico e da crescente especializao daquilo que

os socilogos clssicos chamariam de diviso do trabalho social. A tendncia heterogeneidade vai reforada tambm por fenmenos que surgiram ou se intensificaram mais recentemente, como: a) o avano exponencial dos meios de comunicao, do que resulta o intercmbio contnuo e onipresente de informaes e experincias entre pessoas; b) o renovado fenmeno da imigrao, que propicia a convivncia direta, nem sempre harmnica, entre pessoas pertencentes a culturas muito diversas; c) a diversificao dos estilos de vida cuja adoo reafirma a identificao do indivduo com seu respectivo grupo social16.

Nota-se, com efeito, a perda de importncia do conceito marxiano de luta de classes, que to bem

descreveu a realidade do sculo XIX. Nas sociedades de risco da atualidade, o conceito de classe demasiadamente fraco e antiquado para dar conta da nova radicalidade e complexidade das desigualdades sociais17. As sociedades da modernidade tardia so atravessadas por diferentes divises e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes identidades ou posies de sujeito para os indivduos18. De forma crescente, as paisagens polticas do mundo moderno so fraturadas por identificaes rivais e deslocantes advindas da eroso da classe como identidade-mestra e da emergncia das novas identidades que esto base dos movimentos sociais atuais, como o feminismo, as lutas por afirmao tnica, os nacionalismos e regionalismos, as campanhas ecolgicas, etc19.

nesse contexto que o menosprezo aos atributos humanos da igualdade e da diferena est base

de tenses sociais que demandam uma resposta jurdica adequada aos problemas de reconhecimento.

13 1997, p. 154-6.

14 1997, p. 158.

15 Apud HONETH, 2009, p. 10.

16 Em sentido semelhante: YOUNG, 2002, p. 34; TORBISCO, 2001, p. 282.

17 BECK, 2010, p. 365-6.

18 HALL, 2004, p.17.

19 Mercer, K. Welcome to the jungle. In Rutherford, J. (org). Identity. Londres: Lawrence and Wishart, 1990. Apud HALL, 2004,

pp. 20-1.

Seleciona-se, como pontos de referncia para o enfrentamento da questo relativa delimitao da vida cultural pelo direito, trs casos que esto na ordem do dia. A escolha de exemplos de gravidade e origem to discrepantes proposital, justamente para permitir a reflexo sobre que critrios de soluo dos problemas poderiam ser aceitos como pautas objetivas de deciso.

O primeiro exemplo diz respeito ao uso do hijab (vu islmico) na Europa, que remete ao problema da

interconexo entre os subsistemas sociais da poltica e da cultura. Sabe-se que a Frana proibiu o uso do vu em ambientes pblicos, sob o argumento de liberar as mulheres muulmanas da opresso paterna ou marital. Tambm a Espanha, embora no imponha uma proibio, permite que as escolas o faam sob a alegao de que o acessrio no seria parte do uniforme exigido dos estudantes. Surge, assim, a questo sobre em que medida, e sob que fundamentos, o Estado pode interferir ou permitir interferncias privadas na indumentria das pessoas por intermdio do direito.

O mesmo se pode dizer dos infanticdios20 praticados em comunidades indgenas no interior do Brasil.

Crianas so mortas por tribos pelas razes mais variadas: equilbrio entre os sexos (Ianomamis); deficincia fsica (Suruwahs); concepo mediante violncia sexual (Kaiabis); concepo mediante adultrio (Tapiraps); nascimento de gmeos (Kaiabis); miscigenao entre ndios e no-ndios (Ticunas), etc21. Cumpre questionar, ento, como a preservao de hbitos culturais indgenas que tornam particular um determinado grupo social pode ser conectada exigncia universal de respeito vida humana.

O terceiro exemplo diz respeito prestao de provas por adventistas do stimo dia. Para os fiis de

tal religio, a Bblia proibiria a realizao de qualquer trabalho fsico ou intelectual nos sbados (ao menos enquanto o sol ainda no se ps). Como no Brasil se costuma evitar realizar vestibulares e concursos pblicos em dias teis, o Judicirio tem sido a arena de frequentes discusses sobre se deveria ser reconhecido aos adventistas o direito de se submeter a exames em datas ou horrios diferentes dos demais candidatos. A questo de fundo diz respeito a como conciliar diferena religiosa com igualdade de oportunidades.

Em todos esses casos avulta a funo do direito como delimitador do espao de vivncia cultural. O

ordenamento jurdico protege, prima facie, tanto o direito de se vestir conforme cdigos culturais e religiosos, como o direito de no ser compelido a seguir tais cdigos; tanto o direito de membros de comunidades indgenas de reafirmar suas tradies como o direito vida dos integrantes das tribos; tanto o direito de prestar provas e concursos sem ser privado de suas convices religiosas como o direito de prestar provas e concursos em igualdade de condies com outros candidatos. Cumpre, ento, elucidar os critrios para a ponderao dessas colises normativas.

3. Proposta de critrio para a soluo de questes relativas a conflitos multiculturais. Casos como os que foram introduzidos no captulo anterior poderiam ser solucionados base de dois

enfoques. Embora ambos pressuponham ponderaes, diferentes so as estruturas argumentativas pelas quais elas seriam realizadas. A questo bsica reside em tratar os casos apenas como colises de direitos individuais ou trat-los como colises em que tomariam parte tambm direitos coletivos. A tese central deste trabalho de que a anlise dos problemas de reconhecimento intersubjetivo deve ser feita mediante ponderaes dos direitos individuais colidentes, sem apelo a novas categorias de direitos humanos.

Os defensores da ideia de direitos coletivos supostamente dotados da mesma moralidade dos

direitos humanos ora reconhecidos, partem do suposto de que o processo usual de tomada de decises em um Estado democrtico (regra da maioria) no constituiria uma via adequada para atender aos reclamos do multiculturalismo. Parecem cticos, outrossim, com as possibilidades interpretativas dos catlogos familiares de direitos individuais assegurados pelas constituies nacionais e por tratados internacionais.22

20 A expresso "infanticdio" usada aqui no sentido comum de homicdio de recm-nascido, e no no sentido mais estrito utilizado

no Cdigo Penal brasileiro (art. 123), que exige a "influncia do estado puerperal". 21

Exemplos atribudos Ana Keila Pinezi. Apud ATINI - Voz pela Vida (2011). 22

TORBISCO, 2001, p. 279. Embora a argumentao se situe da argumentao moral, isso no retira sua importncia para a teoria do direito. Dado o carter preferencial dos direitos humanos (ALEXY, 2007, pp. 47-8), sustentar que algum tem um direito moral opera como razo de suma relevncia para defender a necessidade de seu reconhecimento e proteo mediante a criao de novas normas jurdicas (TORBISCO, 2001, p. 279). TORBISCO, 2001, pp. 286-7.

Essas duas objees, contudo, no autorizam a concepo de direitos culturais como direitos especiais titularizados por grupos minoritrios. certo que a regra maioria no suficiente para a assegurao de aspectos culturalmente relevantes de certos grupos sociais, haja vista que muitos problemas de reconhecimento podem ser reconduzidos falta de disposio de algumas maiorias em colocar-se na perspectiva do outro. Contudo, essa constatao no torna inteis os procedimentos democrticos, apenas exige a adoo de um conceito compreensivo de democracia que v alm da simples prevalncia da vontade da maioria e que abranja, consequentemente, a instituio de mecanismos contramajoritrios de proteo s minorias.

Problemas de reconhecimento devem ser enfrentados luz de uma teoria dos direitos capaz de

estabelecer as condies pelas quais eles podem ser intersubjetivamente justificados. Direitos humanos tm faces de Jano que se voltam simultaneamente para a moral e para o direito23. So universais tanto em sua estrutura, no sentido de que so direitos de todos contra todos, como em sua validez, no sentido de que so justificveis moralmente perante todos que aceitam uma fundamentao racional24. Uma aplicao dos direitos humanos que faa jus ao multiculturalismo do mundo moderno implica a pretenso de um horizonte interpretativo comum que possa ser aceito sob um ponto de vista transcendente prpria cultura25.

Com isso se adentra na segunda objeo dos defensores dos direitos coletivos, a da insuficincia de

uma concepo dos direitos humanos centrada na individualidade da pessoa humana. Que somente homens e mulheres, como indivduos, possam ser titulares de direitos humanos26, no significa olvidar a necessria dimenso comunitria das pessoas. O respeito dignidade humana exige uma poltica de reconhecimento que preserve a integridade do indivduo inclusive nos contextos vitais que conformam sua identidade, j que a individualizao somente possvel por meio da coletivizao em sociedade27.

A defesa apressada da ideia de que haveria uma tenso entre relativismo relativismo cultural e

universalidade dos direitos humanos tem prejudicado muito a racionalidade dos debates acadmicos sobre o multiculturalismo. Trata-se de uma falsa dicotomia, pois universalidade e relativismo so conceitos que se referem a aspectos diversos da problemtica dos direitos humanos.

O relativismo cultural insere-se no prprio mago da pesquisa antropolgica. A tarefa de compreender

uma determinada realidade cultural exige do sujeito cognoscente um esforo de suspender, tanto quanto possvel, os condicionamentos de sua prpria cultura e os juzos de valor dele decorrentes28. Uma atitude etnocntrica, isto , impregnada de valores e crenas tpicas do prprio meio cultural do observador29, faria desmoronar o carter cientfico da antropologia. importante no confundir, todavia, as condies de inteligibilidade de culturas diversas com uma renncia a qualquer critrio de juridicidade ou moralidade de certas prticas culturais. O relativismo cultural, bem compreendido, no atenta contra a pretenso de universalidade dos direitos humanos, seno que integra uma condio essencial para a correta aplicao de tais direitos em uma determinada realidade cultural.

Direitos expresso cultural coexistem com outros direitos igualmente protegidos pelo ordenamento

jurdico, com os quais podem entrar em rota de coliso. Os critrios para equacionamento de tais colises so eminentemente jurdicos: no podem ser ticos, pois isso implicaria uma escolha apriorstica de uma determinada concepo de vida boa; mas devem estar abertos moral, aqui entendida como a aptido para fundamentar uma regra de deciso aceitvel por todos aqueles que analisassem o problema de modo racional e imparcial. Com diz Habermas, o direito igualdade de respeito que cada um pode reivindicar tambm nos contextos vitais formadores da prpria identidade nada tem a ver com a suposta excelncia de sua cultura de origem30.

As lutas por reconhecimento que perpassam os reclamos pela liberao do uso vu islmico na Europa

e pela realizao de provas em datas diversas do sbado para os adventistas no Brasil no precisam ser

23 HABERMAS, 2003, p. 72.

24 ALEXY, 2007, p. 47.

25 HABERMAS, 2003, p. 75.

26 ALEXY, 2007, p. 45. Os bens fundamentais, mesmo os que dizem respeito aos chamados direitos sociais, sejam distribudos

individualmente (salrio, tempo livre, etc) ou utilizados individualmente (transporte, assistncia sade, educao, etc). Ver, a propsito: HABERMAS, 2002, p. 231. 27

HABERMAS, 2002, p. 235. 28

PALMA, 2009, p. 58. 29

PALMA, 2009, p. 56. 30

2002, p. 250.

reconhecidos sob a forma de direitos especiais de grupos religiosos minoritrios. Trata-se do mesmo direito de conduzir a prpria vida conforme seus hbitos culturais de vestimenta e suas convices religiosas que as maiorias j usufruem.

Quanto ao uso do hijab, a questo no sobre se as muulmanas deveriam ter um direito especial a

cobrir os cabelos, mas se elas no deveriam ter o mesmo direito das catlicas ou judias de usar um smbolo de sua cultura/religio, tal como um crucifixo ou uma estrela de Davi. Nisso reside a universalidade do direito humano manifestao cultural e religiosa. O relativismo ingressa no discurso jurdico no como uma nota caracterstica do direito, mas como algo que integra a base cultural sob o qual o direito deve ser aplicado.

A justificativa oficial do governo francs de que a proibio protegeria a mulher muulmana da tirania

paterna ou marital no parece se sustentar luz de uma anlise sociolgica. Vrios so os motivos pelos quais uma mulher possa querer usar o vu, independentemente de presso familiar: a prpria f religiosa, a vontade de respeitar a tradio e, num contexto cultural em que os cabelos so considerados a parte mais sensual do corpo feminino (tal como ocorre no Oriente Mdio), tambm e principalmente o recato, isto , a inteno de no parecer provocante em pblico. Que todas as pessoas devam ter o direito de vestir-se de forma recatada, se assim o quiserem, diz respeito ao trao da universalidade do direito humano que vem sendo violado na Frana. J a necessidade de constatar os modos de especficos de considerar tal direito assegurado ou violado em certa realidade cultural, por sua vez, diz respeito ao relativismo metodolgico que deve integrar a anlise sociolgica capaz de permitir a correta aplicao dos direitos humanos.

O mesmo critrio serve para enfrentar o problema da realizao de provas aos sbados por

adventistas. O direito liberdade religiosa exige prima facie a remoo de obstculos ou desvantagens a quem queira conduzir sua prpria vida de acordo com dogmas de uma religio. No se trata de perguntar por que se deveria excepcionar um dever imposto pelo edital do certame a um candidato, pelo fato de este ser diferente dos outros (no sentido de que integra uma certa minoria religiosa), mas de perquirir que razes existiriam para que um candidato igual aos outros (no sentido de que exerce uma postura religiosa, como catlicos, protestantes, ateus...) tivesse que arcar com uma desvantagem por praticar sua religio.

Para boa parte da sociedade brasileira, pode ser difcil imaginar o prejuzo a um adventista, seja

porque no se tem notcia da marcao de concursos para o domingo de Pscoa ou para a vspera de Natal, por exemplo, seja pela tendncia geral daqueles que esto frente de governos, empresas e entidades da sociedade civil em evitar a prtica de atos que possam atingir uma questo sensvel das religies crists predominantes no Brasil. Mas no se pode impor uma certa viso cultural, ainda que majoritria, como pauta para apreciar pleitos de quem participa de outra viso cultural. O relativismo ganha sentido, novamente, na apreciao do contexto em que os pleitos se inserem.

verdade que garantir o exerccio das convices religiosas dos adventistas no deve trazer

vantagens injustificadas aos que professam tal f. Se os concursos existem para conceder igualdade de oportunidades e selecionar os melhores, ento se deveria evitar que os adventistas fizessem, em um outro dia, uma prova de cujo contedo eles j poderiam ter se informado, ou mesmo uma prova diferente da dos demais candidatos. A soluo correta parece ser manter a obrigatoriedade de os concorrentes chegarem ao local da prova no mesmo horrio, facultando-se que o seu comeo seja postergado at o pr-do-sol (de acordo com a f adventista, no cair da noite j no haveria mais vedao religiosa ao trabalho). Nesse caso, aos adventistas seria imposta a exigncia de esperar mais tempo para realizao da prova, e haveria um ligeiro incremento de custos organizao do certame (necessidade de manter fiscais no prdio por mais tempo, gastos adicionais com iluminao, etc). Esses diminutos prejuzos, contudo, so plenamente justificveis luz da busca pela consecuo de uma eficcia tima entre os todos os direitos sob ponderao.

O exame de tais casos prova que a criao da categoria dos direitos especiais desnecessria,

porque, como j dito, a considerao dos aspectos culturais como inerentes ao livre desenvolvimento da personalidade humana capaz de fundamentar as pretenses de preservao de certas formas de vida, sem o recurso a novas frmulas. A tese deste estudo , porm, mais forte. Ela sustenta a assero de que a introduo de tais direitos especiais seria no apenas prescindvel, mas tambm perigosa para a efetivao dos direitos humanos, esta j sujeita a tantos percalos polticos e institucionais.

Os exemplos de infanticdio em tribos indgenas brasileiras ajuda a ilustrar esse segundo aspecto. A questo jurdica a ser resolvida apresenta-se sob a forma de uma coliso entre o direito individual da criana vida o direito individual de todos os membros da tribo manifestao cultural e preservao de suas tradies. fcil reconhecer, nesse caso, a primazia do justo (preservao da vida da criana) sobre uma determinada concepo do bom (preservao de um trao cultural que integra a vida cultural dos membros da tribo): apenas a primeira pretenso poderia ser justificvel perante um auditrio universal, isto , no restrito ao auditrio particular formado pelos integrantes da prpria tribo.

Se concebssemos, todavia, que alm dos direitos individuais em jogo tambm deveriam ser

considerados direitos especiais titularizados pela comunidade indgena, aos quais se atribuiria aprioristicamente a mesma moralidade prpria dos direitos humanos individuais, a ponderao possivelmente haveria de ser realizada sob outras bases. Uma bem-intencionada incluso de direitos coletivos aos catlogos de direitos humanos, retirando o indivduo da sua posio privilegiada no sistema de direitos, poderia inadvertidamente abrir frestas para a instrumentalizao da pessoa humana.

Deveras, direitos individuais fundamentam deveres para outras pessoas apenas indiretamente, de

modo a possibilitar a coexistncia das liberdades. Como no existem culturas estticas, um dissenso produzido no seio da tribo sobre a introduo de uma exceo prtica do infanticdio estaria no mbito de exerccio do direito prima facie manifestao cultural. A me que deseja salvar o segundo gmeo, por exemplo, poderia abandonar a tribo ou questionar a manuteno da tradio na comunidade, e o mesmo se poderia dizer do verdugo possivelmente encarregado de sacrificar a criana. Direitos coletivos, de seu turno, fundamentam diretamente deveres individuais, no apenas para quem no pertence ao grupo, mas tambm e aqui reside o perigo para seus prprios membros. O direito de cada integrante da tribo preservar a cultura em que est inserido poderia se transmutar em um dever de preservao de tal cultura, imposto pela comunidade, ora titular desse novo direito especial. Ainda que se tratasse de um dever prima facie, suscetvel de ponderao, a adoo desse novo enfoque poderia afetar a estrutura do discurso ponderativo, por meio da supresso da liberdade e da dignidade da pessoa humana como eixo central das cargas de argumentao.

A defesa de formas de vida e tradies geradoras de identidade deve servir, em ltima instncia,

defesa de seus membros, no podendo ser invocada para reprimir qualquer brecha autotransformao cultural31. Como ensina Habermas, um argumento semelhante ao da conservao das espcies, prprio da ecologia, no poderia ser transportado ao debate do multiculturalismo32. A tarefa do direito de possibilitar a reproduo de universos vitais no pode ser confundida com uma garantia de imutabilidade cultural que, ao fim e ao cabo, privaria os prprios integrantes do respectivo grupo da liberdade de dizer sim ou no33.

Concluso. As sociedades atuais so marcadas pela pluralidade cultural e, consequentemente, pela existncia de

distintos ideais de vida boa. Essa crescente heterogeneidade social tem agravado problemas de reconhecimento intersubjetivo, o que parece trazer dificuldades adicionais funo sociolgica do direito de promover a interconexo tima dos diversos subsistemas sociais.

No necessrio nem oportuno, para dar uma resposta adequada s lutas por reconhecimento,

renunciar centralidade do indivduo nos catlogos de direitos humanos. A mtua complementaridade funcional entre os conceitos de universalidade dos direitos humanos e de relativismo cultural a chave para a proteo efetiva de direitos culturais de integrantes de grupos minoritrios.

Uma teoria dos direitos humanos, corretamente entendida, deve conciliar o carter igualitrio do

direito com as condies concretas em que este deve ser aplicado. A ordem jurdica deve ser eticamente neutra, no sentido de no predeterminar uma concepo particular do bom; ao mesmo tempo, porm, no pode fechar os olhos para as diferenas culturais, isto , deve reconhecer de que estas compem um importante aspecto do livre desenvolvimento da personalidade individual.

Referncias:

31 HABERMAS, 2002, pp. 250-1.

32 2002, p. 250.

33 HABERMAS, 2002, p. 250.

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