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GRADUAÇÃO 2014.2 DIREITO DOS CONTRATOS AUTOR: JOSÉ GUILHERME VASI WERNER

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GRADUAÇÃO 2014.2

DIREITO DOSCONTRATOS

AUTOR: JOSÉ GUILHERME VASI WERNER

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SumárioDireito dos Contratos

I – ROTEIRO DE AULA ........................................................................................................................................... 4Aula 1 — Apresentação do curso e do Sistema de Avaliação. O que é o contrato? ............................................ 4Aula 2 — Contratos. Histórico. Contrato e vontade. Contrato e negócio jurídico. Princípios formadores. ........ 5Aula 3 — Teoria contratual hodierna. Revisão do papel da vontade. Novos princípios. Liberdade contratual e

Função social ..................................................................................................................... 20Aula 4 — Obrigatoriedade. Relatividade e estipulação a favor de terceiros. .................................................. 37Aula 5 — Boa-fé ......................................................................................................................................... 38Aula 6 — Consensualismo e formação do Contrato no Direito Civil e no Direito do Consumidor.

Fases da formação do contrato. ........................................................................................... 41Aula 7 — arras. Contrato com pessoa a declarar. Contrato preliminar. Forma e prova. Interpretação. .......... 42Aula 8 — Interpretação dos contratos .......................................................................................................... 43Aula 9 — Classifi cação. Contratos consensuais e reais. Contratos bilaterais e unilaterais ............................... 52Aula 10 — Contratos onerosos e gratuitos. Contratos comutativos e aleatórios. ............................................. 53Aula 11 — Contratos solenes e não solenes. Contratos principais e acessórios.

Contratos instantâneos e de duração. Contratos por tempo determinado e por tempo indeterminado. Contratos típicos/atípicos ........................................................ 54

Aula 12 — Contratos de adesão e cláusulas contratuais gerais. ..................................................................... 55Aula 13 — controle. Mecanismos de proteção das partes. Vícios redibitórios. Vícios e defeitos. ...................... 60Aula 14 — Evicção. Exceção de contrato não cumprido. .............................................................................. 61Aula 15 — Inviabilidade e extinção dos contratos. Causas anteriores ou concomitantes

à formação do contrato. nulidade. anulabilidade. Lesão. Estado de perigo .......................... 62Aula 16 — Causas supervenientes à formação do contrato. Impossibilidade. Onerosidade excessiva.

Revisão dos contratos no código civil e no direito do consumidor ......................................... 63Aula 17 — Impossibilidade com culpa. Cláusula resolutiva. Resolução legal e resolução negocial.

A resolução negocial no direito do consumidor .................................................................... 70Aula 18 — Vontade. Distrato. Resilição unilateral. Resilição e abuso de direito ............................................ 71Aula 19 — Contrato de compra e venda ...................................................................................................... 72Aula 20 — Cláusulas especiais do contrato de compra e venda. Permuta ...................................................... 73Aula 21 — Contrato de doação ................................................................................................................... 74Aula 22 — Contrato de depósito.................................................................................................................. 75Aula 23 — Contrato de mútuo .................................................................................................................... 76Aula 24 — Contrato de seguro .................................................................................................................... 77Aula 25 — Contrato de plano de saúde ....................................................................................................... 78

II – RESUMO DOS TEMAS ..................................................................................................................................... 79Introdução ................................................................................................................................................... 79O papel da vontade na teoria geral dos contratos .......................................................................................... 81Princípios da teoria geral dos contratos ......................................................................................................... 85A função social dos contratos ........................................................................................................................ 91Pressupostos e requisitos ................................................................................................................................ 93Formação dos contratos ................................................................................................................................ 97Forma e prova do contrato ......................................................................................................................... 104Interpretação dos contratos ......................................................................................................................... 105Classifi cação dos contratos .......................................................................................................................... 107Efeitos dos contratos ................................................................................................................................... 118Estipulação em favor de terceiro ................................................................................................................. 120Exceção de contrato não cumprido ............................................................................................................. 122Cláusula resolutiva tácita .......................................................................................................................... 128Arras ......................................................................................................................................................... 129Arras penitenciais ...................................................................................................................................... 132Vícios redibitórios ...................................................................................................................................... 138Evicção ...................................................................................................................................................... 143Inviabilidade dos contratos ........................................................................................................................ 145Doação ...................................................................................................................................................... 164

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Empréstimo ............................................................................................................................................... 170Comodato (comodante e comodatário) ....................................................................................................... 170Mútuo (mutuante e mutuário)................................................................................................................... 172Depósito .................................................................................................................................................... 180Mandato ................................................................................................................................................... 195Fiança ....................................................................................................................................................... 213Compra e venda ........................................................................................................................................ 221Venda ad corpus/ad mensuram ................................................................................................................ 231Venda sob amostras .................................................................................................................................... 231Pactos adjetos à compra & venda ............................................................................................................... 231Promessa de compra e venda (compromisso de compra e venda) .................................................................. 237Troca ......................................................................................................................................................... 246Locação ..................................................................................................................................................... 246Locação de coisas ....................................................................................................................................... 247Locação de imóveis urbanos (lei 8245/91) ................................................................................................. 253Prestação de serviço .................................................................................................................................... 257Empreitada (empreiteiro e dono da obra) ................................................................................................... 261Seguro ....................................................................................................................................................... 269

III – BIBLIOGRAFIA BÁSICA E COMPLEMENTAR ...................................................................................................... 292

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I – ROTEIRO DE AULA

AULA 1 — APRESENTAÇÃO DO CURSO E DO SISTEMA DE AVALIAÇÃO. O QUE É O CONTRATO?

OBJETIVO:

Apresentar o curso; situar o objeto do curso. Desenvolver, mediante cons-trução dialógica com a participação dos alunos, o objeto do curso.

INSTRUÇÕES:

Ler ARISTÓTELES (Ética a Nicômaco, Livro V); e PEREIRA (2001).

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AULA 2 — CONTRATOS. HISTÓRICO. CONTRATO E VONTADE. CONTRATO E NEGÓCIO JURÍDICO. PRINCÍPIOS FORMADORES.

INSTRUÇÕES:

Ler o texto abaixo, extraído de WERNER (2007):

“I — A TEORIA DO CONTRATO SEGUNDO A EVOLUÇÃO DO PAPEL DA VONTADE NA SUA FORMAÇÃO

A compreensão do estado atual do Direito das Obrigações em espe-cial no que se refere aos contratos, depende, em muito, de uma apre-ciação histórica de sua evolução. Pois ainda que muitas fi guras possuam valor extra-temporal, continuando a ser importantes instrumentos na operação jurídica, o modo como são apreendidas e relacionadas pode variar profundamente, abrindo ou limitando os campos de sua atuação e re-confi gurando o todo conceitual: “si le raisonnement logique abs-trait sur lequel repose cette construction a été en partie conservé, l´esprit du droit des obligations s´est trouvé bouleversé au cours de l´evolution du droit romain, comme au Moyen Âge sous l´infl uence des canonistes, comme enfi n depuis le Code Civil, par le législateur, que poussent les necessités sociales et économiques, et par les tribunaux, attachés à faire pénétrer plus profondement la morale dans cette partie du droit” (MAZEAUD, Henry, MAZEAUD, Léon, MAZEAUD, Jean et CHABAS, François. Leçons de Droit Civil. Paris: Montchrestien, 1998. p.22, §27).

A história não pode ser confundida com um aglomerado de fatos ul-trapassados, relegados. A atenção que se lhes dedica pode assegurar me-lhor e mais completa exploração das potencialidades do presente. Ju-dith Martins-Costa sugere tratemos o conceito de história “mais como uma inigualável fonte de compreensão do presente do que um nostálgico olhar sobre um passado congelado nos compêndios e manuais acadêmicos” (Crise e Modifi cação da Idéia de Contrato no Direito Brasileiro, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 3, p.127-154).

Não poderia ser diferente no que se refere ao presente jurídico e, no que se refere ao âmbito deste trabalho, ao estado atual do Direito dos Contratos.

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Caio Mario da Silva Pereira teve em conta essa diversidade de concepções, ao identifi car três etapas bem delineadas na história das obrigações em geral — e, portanto, das obrigações contratuais (uma etapa ancestral, desprovida de qualquer tipo de abstração; a romana; e a moderna), o que “não quer dizer que tenha havido três tipos de obrigação, nem que se tenha conservado uniforme e inalterado em cada um destes três momentos, senão que predominam, em cada um, idéias e infl uências que permitem distinguir o direito obrigacional peculiar a tal ou qual” (Instituições de Direito Civil. 19 ed. v.2. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p.5).

Dentre tais etapas, é a de Roma que serve de marco inicial no acom-panhamento da evolução da Teoria Contratual.

I. — O TRATAMENTO ROMANO

É tarefa bastante árdua buscar identifi car a fi losofi a ou o sistema de pensamento que determinava a visão de mundo romana e que pode, por sua vez, ter contribuído para estabelecer o conceito de obrigação tal qual o elaboraram.

Por certo, tendo sofrido a infl uência da civilização grega, Roma esta-va a par das correntes fi losófi cas que ali puderam se desenvolver. Muito se destaca a presença do estoicismo como parâmetro de comportamen-to e relacionamento com a natureza e o outro, para a maior parte da gente comum e mesmo para as elites (muitos fariam referência a Cícero e Marco Aurelio). Mas é incerta a interferência que possa ter estabele-cido além do plano moral-subjetivo das micro-relações particulares, es-pecialmente quando se lembra do papel secundário que representavam as coisas do governo para esse sistema: “o Estado tem, entretanto, uma importância apenas secundária — o que importa realmente é o aperfei-çoamento moral, fruto de uma disciplina infalível e rigorosa, de um forte sentimento do dever para consigo mesmo e seu próximo, e da indiferença para com os assuntos comuns da vida, coisa de importância secundária” (ROSTOVTZEFF, Michael. História de Roma. 5ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1983. p. 184-5).

Tem-se como certo que os romanos não desconheceram a distinção entre moral e direito, mas as fórmulas clássicas (“jus est ars boni et ae-qui” e “justitia est constans et perpetua voluntas suum cuique tribuere”), que indicaram a defi nição de seu Direito, não dão pista acerca do em-basamento fi losófi co que poderia ter jazido sob as normas da cidade.

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Em verdade, costuma-se destacar o gênio prático dos romanos, o que resta patente em comparação com as comunidades da época, no-tadamente as gregas, mostrando que, nesse ponto, não sofreram sua infl uência.

Aquele foi um povo que soube dosar com perícia a força da tradição (“mos maiorum”) e os ditames da política expansionista, tendo, com sucesso, em diversas ocasiões, encontrado a medida de sua conciliação (é signifi cativo, nesse sentido, o uso, por Mario, pela primeira vez, da massa de proletários para as fi leiras do exército, tradicionalmente com-postas por fi lhos da aristocracia: “Mario fu il primo che, nella formazione del suo esercito destinato per l´Africa, derogò dalla condizione che fosse possidenti chi voleva entrare nelle legioni, permettendo di associarvisi come volontario anche il più povero cittadino, purché abile al servizio, la rior-ganizzazione contemporanea dell´esercito sarà forse stata promossa dal suo autore per pure considerazioni militari...” — MOMMSEM, Th eodor. Storia di Roma Antica. v.II. t.1. Firenze: Sansoni, 1991.p. 188).

O Direito, ou pelo menos o conjunto de regras observadas na cida-de, era a consolidação de costumes adotados desde os primórdios da ci-vilização latina (tanto que a própria palavra “jus” parece ter advindo da noção de “ordenado”, “sacramentado”), o que não impedia sua revisão de acordo com as exigências das circunstâncias. Mesmo assim, grande parte dos confl itos internos que assolaram a cidade decorreu da luta en-tre os que queriam preservar a “mos maiorum” (geralmente os cidadãos das classes dirigentes, que não queriam ver diminuída sua infl uência) e aqueles que queriam, por razões populistas ou genuinamente altruístas, a revisão do que chamariam de alguns “privilégios”.

Independentemente do maior ou menor apego às tradições, o certo é que os romanos tinham um grande orgulho de sua comunidade e um especial senso da relevância do indivíduo para seu sucesso e eleva-ção perante outros povos. A contribuição para o engrandecimento de Roma era o caminho mais certo para a glória e distinção, o que assegu-rava o reconhecimento de gerações e gerações.

A “dignitas” (que não pode ser confundida com os termos portugue-ses “dignidade” e “honra”) era, em verdade, o modo como o cidadão se expressava, falava, atuava e tratava os demais e os seus, inclusive clientes e família, assim também como se relacionava no exército e como mos-trava suas aptidões. Era, enfi m, o estatuto moral e social do indivíduo;

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seu conceito em relação à comunidade e o mais importante atributo de uma pessoa.

Desse signifi cado se vê a importância dada à vida pública de um homem e, por conseqüência, à publicidade de seus atos. Era essa pu-blicidade que legitimava o ‘status’ do cidadão, do “pater familiae”, do proprietário, do credor. Era deveras considerada a ritualidade desses atos e sua exteriorização. No campo jurídico, essa liturgia é que se co-locava como a matriz da formação dos direitos e a causa de seus efeitos. A solenidade tinha suma importância.

Pois, no âmbito das obrigações, esse personalismo e esse ritualismo foram fundamentais para sua confi guração. Afi nal, só eram reconheci-das a partir de uma solenidade e signifi cavam um vínculo interpessoal de subjugação e sujeição, o que valia tanto para as obrigações derivadas de ato ilícito quanto para aquelas que se amparavam em um “negotium contractum”.

São precisamente o personalismo e o ritualismo que merecem desta-que na fase romana do direito das obrigações.

O primeiro porque determinava a força do vínculo (ob-ligatio) en-tre os envolvidos. Esse vínculo era tão intenso que signifi cava a sujeição total do devedor, mesmo através de seu corpo, com a cassação de sua liberdade e, em casos extremos, de sua integridade corporal e até de sua vida. Mesmo após a Lex Poetelia Papiria (428 a.C.), que limitou a res-ponsabilidade ao patrimônio do devedor, o liame não perdeu a carac-terística personalista, já que ainda permanecia a ligação clientelista (até hoje a doutrina ainda tende a defi nir a relação obrigacional como sendo esse vínculo inter-pessoal, quase psico-físico entre credor e devedor — é curioso notar que grande parte das defi nições, talvez por homenagem à tradição, cuide da obrigação como o “vínculo jurídico....”).

O segundo porque colocava em plano secundário a vontade na criação do vínculo (no caso das obrigações decorrentes de contratos tinha-se como corrente a fórmula: “ex pacto non nascitur jus”), o que acabou por impedir, durante muito tempo, a correção de iniqüidades e distorções entre os efeitos tradicionalmente reconhecidos e aqueles idealizados pelos envolvidos.

Com o desenvolvimento e expansão da cidade e das transações co-merciais, sempre avessas aos formalismos, é que surgiram quatro fi guras

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que obrigavam por si sós, independentemente de solenidade: eram a venda, a locação, a sociedade e o mandato. Eram chamadas de pacta. Os demais contratos ainda exigiam as solenidades.

Essa foi a primeira brecha que se abriu no formalismo dos contratos e que acabou condenando-o para sempre.

Posteriormente, a própria evolução do processo e a admissão de ações atípicas pelos pretores reduziram ainda mais o jugo do formalis-mo.

II. — O TRATAMENTO MEDIEVAL

Em 410 d.C., Alarico e os visigodos saqueiam a grande cidade e o evento é reconhecido pelos homens da época como o signo do fi m de uma era de segurança e certeza. E de fato mostraram sensibilidade: um acontecimento ocorrido apenas alguns anos depois (a deposição de Rômulo Augústulo por Odoacro — 476) foi fi xado por convenção universal como marco terminal da Idade Antiga.

A cidade foi poupada, mas seus alicerces culturais foram arrasados. É signifi cativo, sobre o estado desolador da cultura e do conhecimento após a queda, o lamento de Boécio a seu sogro na introdução da carta em que lhe comentava seu “Tratado Sobre a Trindade”: “bem poderás compreender o que sinto todas as vezes que confi o à pena meus pensamen-tos: seja pela própria difi culdade do tema, seja pela escassez de interlocu-tores: na verdade és o único capaz de entendê-los e o único com quem os discuto (...) pois, excetuando a ti, para onde quer que eu olhe só vejo, por um lado, a pasmaceira ignorante e, por outro, a inveja astuta...” (in Cul-tura e Educação na Idade Média. Org. Luiz Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 82-3).

A visão de mundo da antiguidade deu lugar a uma nova concepção (a cristã) que, entretanto, em muito daquela se aproveitou, ali encon-trando importantes fontes ideológicas para sua consolidação. Em ver-dade, os fragmentos que restaram foram recolhidos e alguma coisa foi reconstituída. Mas boa parte das peças não foi encaixada.

Essas peças acabaram sendo utilizadas para a construção de um novo edifício teórico a cargo da Igreja, instituição que passou a representar a sobrevivência de Roma e do Império e que permitiu uma certa con-tinuidade: “a Igreja aparecia aos jovens povos como uma poderosa criação

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real, na qual sobreviviam ao mesmo tempo, como realidades presentes em carne e osso, Roma e o império romano...” (WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 2ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993. p. 17).

Dessa tarefa ela se desincumbiu com inteligência, através de um me-ticuloso trabalho de resgate e conservação das obras do passado, que contou com a notável colaboração de uma intelectualidade anônima na luta contra a ignorância e cupidez.

Com sabedoria, a Igreja se valeu do arcabouço teórico da antigui-dade para garantir o sucesso de sua doutrina. Foi assim, por exemplo, com o idealismo de Platão (onde se enxergou a presença de Deus) e o sistema epistemológico de Aristóteles (do qual São Tomás de Aquino, por exemplo, emprestou alguns elementos), ambos ancorados no pres-suposto de uma razão universal.

E embora razão e fé fossem até então vistas como antagônicas, a fi losofi a cristã tentou conciliá-las e durante bom tempo achou tê-lo conseguido. A razão foi identifi cada em Deus e a lei dos homens agora buscava conformar-se a Ele.

O pensamento cristão acabou, nesse esforço, compatibilizando-se com o estoicismo, muito observado pelos antigos, que através dele viam-se integrantes de uma comunidade universal unida pela razão, cujos preceitos valorizavam a temperança, a inteligência, a fraternida-de, a resignação com as difi culdades da existência e o uso da virtude para enfrentá-las: “a Igreja cristã podia ser interpretada como a verdadeira realização da idéia estóica de uma sociedade organizada compreendendo o mundo inteiro. A ética estóica, que ressaltava a moderação, o autocontrole e a fraternidade, era compatível com o cristianismo” (PERRY, Marvin. Ci-vilização Ocidental — Uma História Concisa. São Paulo: Martins Fon-tes, 1999. p. 134). O Cristianismo integrou essas virtudes, dando-lhes uma justifi cativa espiritual.

No mundo jurídico, as normas de direito em muito se confundiram com os preceitos da religião, posto que inevitavelmente se impregna-vam do conteúdo ético-cristão em voga. Muitas eram verdadeiramente oriundas da mesma fonte que aqueles (os Cânones); e estes grande-mente observados, o que lhes conferia um certo cunho cogente (WIE-ACKER. op.cit. p. 17-8).

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No direito houve, pois, enorme infl uência da visão de mundo cristã. A espiritualidade e a ética estabelecidas pela Igreja se infi ltraram em diversos institutos, modifi cando, às vezes substancialmente, a confi gu-ração que lhes fora dada pelos romanos (ver o caso da lesão e usura). A espiritualidade que ditava a apreciação da vida e das relações humanas foi essencial na inauguração de um enfoque que considerava sobrema-neira o posicionamento moral do indivíduo, sua atitude subjetiva.

É possível dizer, com relação ao Direito das Obrigações, que essa subjetividade é a principal característica do período, signifi cando um passo a mais na luta contra o formalismo (é interessante traçar um paralelo entre o ataque ao formalismo da lei rabínica por Jesus e a in-vestigação canônica da subjetividade do vínculo — em ambos os casos buscando-se privilegiar o conteúdo por detrás da forma, dando a ela cada vez menos importância).

No que se refere ao inadimplemento contratual, passou-se a enten-der que a quebra do acordo, do compromisso fi rmado, era um atentado à verdade, uma fraude, uma mentira; enfi m, um pecado. E dava-se ênfase, então, à palavra dada, ao assentimento, no qual se passava a enxergar uma força vinculante.

O cristianismo tinha um forte caráter de personalismo que se refl e-tiu na manutenção da idéia do vínculo obrigacional como ligação entre pessoas, com a particularidade de que essa ligação ganhava um cunho de espiritualidade, passando a ser regida e sancionada, também, em um plano superior.

III. — O TRATAMENTO MODERNO — A Teoria Contratual Chamada “Clássica”

Em certo momento, como que de repente, todos se davam conta de que o mundo medieval estava saturado. Suas instituições e sua cultura não mais comportavam os anseios irreprimíveis daqueles que, cada vez mais em contato com o conhecimento (oriundo da educação de uma classe média assurgente), comparavam as possibilidades de outras épo-cas com as limitações da sua.

E esse conhecimento que foi, talvez, uma das grandes causas des-sa insatisfação, serviu como instrumento da respectiva reação. Barbara Tuchman, ao apontar como principal característica do período medie-val o Cristianismo, identifi ca a conscientização quanto ao papel do in-

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divíduo e das coisas da vida mundana como o ponto de transição entre as Idades Média e Moderna: “its (Cristianismo) insistent principle that the life of the spirit and of the afterworld was superior to the here and now, to material life on earth, is one that the modern world does not share, no matter how devout some present-day Christian may be. Th e rupture of this principle and its replacement by belief in the worth of the individual and of an active life not necessarily focused on God is, in fact, what created the modern world and ended the Middle Ages” (A Distant Mirror. New York, Alfred A. Knopf: 2002. p. XIV).

Na falta de um ideário próprio, a cultura e a fi losofi a antigas foram a melhor arma de que os modernos poderiam se utilizar. Ao institu-cionalismo e ao coletivismo, estes opuseram o convencionalismo e o individualismo. A uma visão teológica, contrapuseram uma visão an-tropológica do mundo e da organização social. Enquanto São Tomás de Aquino dizia ser Deus a medida de todas as coisas, resgatavam o lema de Protágoras: “o homem é a medida de todas as coisas”. No Direito, deixaram de lado os cânones e foram abeberar-se no jus civile roma-no; e diretamente, sem intermediários: “a desarticulação da “respublica christiana” e o nascimento do espírito laico tenderam a modifi car a sensi-bilidade intelectual. A preocupação jurídico-política instalou-se ao lado da vontade ético-religiosa, que se manifestara com tanta insistência desde os primórdios da era cristã” (GOYARD-FABRE, Simone. Os Fundamentos da Ordem Jurídica, São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 41).

E a importância do simples compromisso, do mero consenso como fonte de obrigações intensifi cou-se nessa busca pelo homem e suas po-tencialidades, que foi característica do Renascimento, e, sobretudo, do Humanismo.

Este, refl exo intelectual da nova posição assumida pelo homem fren-te ao mundo, desencadeou o desenvolvimento da noção de que nada poderia derivar senão do indivíduo, o que permitiu que sua vontade fosse vista como o motor que movia o orbe. Para tanto, aproveitou-se das veredas abertas desde o século XIII pelos teóricos voluntaristas: “os sinais de uma desestabilização da ordem cosmoteológica, na qual a fi losofi a inseria o direito, fi caram perceptíveis já no fi nal do século XIII na obra de Duns Scot, e depois, um pouco mais tarde, na de Guilherme de Ockam. Com a afi rmação de um voluntarismo absoluto, esses ‘novos fi lósofos’, sem ainda formatar realmente os problemas específi cos do pensamento mo-derno, abalaram a metafísica ontoteológica já tradicional e engendraram

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tendências inéditas que viriam a encontrar um Buridan ou um Nicolau Oresme” (idem. p.41)

Foi o humanismo que acabou resgatando o indivíduo das trevas do corporativismo medieval, que o oprimia, ensejando sua elevação à posição de supremacia no ordenamento das coisas, que ele passou a comandar através de seu querer, de sua vontade. Esta foi erigida em ins-trumento de sua potencialidade, tida como infi nita. Daí sua relevância cada vez maior, que tendia a crescer na mesma medida que o papel do indivíduo.

E quando caíram as grades da estratifi cação social com a ruína das instituições medievais e o indivíduo se viu livre de seus grilhões, po-dendo trilhar todo o caminho aberto à sua potencialização, o poder da vontade pôde atingir sua plenitude. A Revolução Francesa, refl exo político do resgate da posição preponderante do indivíduo, ao mesmo tempo que pôs fi m às distinções decorrentes do ‘status’ e às restrições impostas aos homens comuns, garantiu (ao menos em tese) a igualda-de de tratamento, indepedentemente de classe ou condição (‘liberté’ e ‘egalité’).

Com isso, a cada um dos indivíduos era garantida a mesma poten-cialidade. Suas vontades eram, nessa concepção, equipolentes. Dessa forma, se todos eram livres e todos eram iguais, somente se admitia que se vinculassem (juridicamente) por obra de sua própria vontade que, por lógico, bastava para justifi car tal vinculação.

A — Princípio da Liberdade de Contratar

Sob a premissa de que as partes são livres em sua vontade e que são iguais perante a lei, concluiu-se que poderiam regular seus interesses da maneira que melhor lhes conviesse.

O Princípio da Liberdade de Contratar refl ete-se na “Liberdade de Contratar propriamente dita”, que foi defi nida como o consenso de vontades na auto-regulação dos interesses privados, como o poder con-ferido abstratamente às partes de produzir os efeitos que quiserem; e na “Liberdade Contratual”: liberdade de estipular o contrato e determinar seu conteúdo.

Afi nal, se as partes são livres e iguais, em conjunto podem estipular o que bem desejarem (“com base nesta, afi rmava-se que a conclusão dos

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contratos, de qualquer contrato, devia ser uma operação absolutamente livre para os contraentes interessados: deviam ser estes, na sua soberania individual de juízo e de escolha, a decidir se estipular um certo contrato, a estabelecer se conclui-lo com esta ou aquela contraparte, a determinar com plena autonomia seu conteúdo, inserindo-lhe estas ou aquelas cláusulas, convencionando este ou aquele preço” — ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 1988. p. 32).

A liberdade de contratar, como princípio, encontra origem, segundo se conta, no voluntarismo, doutrina fi losófi ca defendida por Boécio e desenvolvida por Duns Scotus e Guilherme de Ockham, segundo a qual a vontade (o querer) era o motor das ações e não a razão ou co-nhecimento. Embora Scotus e Ockham tenham elaborado a doutrina para referir-se às ações e prescrições divinas, acabou sendo aplicada na explicação das ações humanas: “...quando a secularização e o laicismo tirarem a idéia de um querer divino que justifi que a bondade das coisas e sirva de parâmetro para descobrir o bem e o mal, a base da conduta huma-na será apenas o consenso voluntário das pessoas, que decidirão, por meio da lei e do contrato, o que é bom ou ruim, sem precisarem fazer qualquer referência à natureza das coisas. Tendo sido algo querido, ele é bom para as partes e não há critério objetivo, externo à vontade das partes, que possa ser utilizado para contestar o conteúdo do querer. Aí está totalmente dese-nhado o voluntarismo, tão fundamental para explicar a noção clássica do contrato” (MORAES, Renato José. Cláusula Rebus Sic Stantibus. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 6).

E é nesse momento que a vontade se vê em condições de assumir o papel de maior relevância dentre as fontes das obrigações. E é precisa-mente então que o consensualismo pôde conquistar de vez o campo da formação dos contratos.

B — Princípio do Consensualismo

Pelo princípio do consensualismo, os contratos formam-se tão so-mente pela vontade, ou melhor, pelo acordo de vontades, pelo consen-so: “não é preciso haver qualquer início de execução da prestação, forma, sinal, ou causa para que o contrato seja efi caz entre as partes: é sufi ciente o acordo de vontades despido, o chamado nudum pactum” (idem p. 6-7).

Uma vez alcançado o consenso, nada mais é exigido para que se admita a vinculação entre as partes e a sanção estatal a eventual inob-

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servância do pactuado. Basta o consenso para obrigar (“Solus consensus obligat”).

Com ele se pretendeu dispensar e afastar qualquer traço cerimonia-lista que, como a solenidade, pudesse competir com a vontade, com o querer, como fonte de vinculação.

E a maior herança do período foi o parâmetro de conduta social que identifi cava no respeito à vontade do outro o limite ético da atuação do indivíduo. Dessa ética decorreu a obrigatoriedade dos contratos, demonstrada ‘more geometricus’: se as vontades de cada uma das partes têm a mesma intensidade e o contrato é o acordo dessas vontades (‘est duorum vel plurium in idem placitum consensus’), a soma das vontades individuais é maior que a vontade de um só e, por isso, mais poderosa, não podendo apenas por esta ser superada.

C — Princípio da Obrigatoriedade

Um dos mais infl uentes princípios da teoria contratual, o princípio da obrigatoriedade, ou da força obrigatória dos contratos, enuncia que, tendo as partes livremente aceito o conteúdo do contrato, também li-vre e voluntariamente restringiram sua liberdade, não havendo amparo moral para a desvinculação.

Essa construção era, por suas próprias premissas, verdadeiramente ética e por isso permaneceu tão arraigada na idéia dos juristas: “cada um é absolutamente livre de comprometer-se ou não, mas, uma vez que se comprometa, fi ca ligado de modo irrevogável à palavra dada: “pacta sunt servanda”. Um princípio que, além da indiscutível substância ética, apresenta também um relevante signifi cado econômico: o respeito rigoroso pelos compromissos assumidos é, de facto, condição para que as trocas e outras operações de circulação da riqueza se desenvolvam de modo correto e efi ciente segundo a lógica que lhes é própria, para que não se frustrem as previsões e os cálculos dos operadores” (ROPPO. op.cit. p. 34).

Diante dessa concepção, em que a liberdade e a igualdade eram pressupostas, o contrato, expressão maior da vontade individual, pas-sou a ser visto como o instrumento por excelência da justiça: “Quand quelqu´un décide quelque chose à l´égard d´un autre, dira Kant, il est toujours possible qu´il lui fasse quelque injustice, mais toute injustice est impossible quand il décide pour lui même” (RIPERT, Georges. La Régle Morale dans les Obligations Civiles. Paris: LGJD, 1949. p.38).

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As codifi cações viveram seu apogeu nesse momento: “com efeito, não é realmente possível falar em código, no sentido moderno, enquanto a capa-cidade de direito — patrimonial, familiar, sucessória, negocial — restasse diferenciada em razão de um sistema particularista como o sistema feudal” (MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: RT, 1999. p. 175). Com elas, a lei viria a alcançar prestígio até então inigualado. É a mesma autora que ensina: “a lei funda seu prestígio em dois elementos: na origem que lhe foi traçada pelos teóricos do iluminis-mo — Rousseau, Voltaire e Montesquieu, em particular —-, radicada na ‘volonté génerale’, fundamento e metáfora da soberania popular, e na sua generalidade, vale dizer, na sua aplicabilidade a todos, conseqüência do princípio da igualdade...” (idem. p.185).

Se a vontade era vista como a principal fonte de obrigações, a lei que a venerava (produto de um consenso em larga escala) passou a deter papel de preponderância dentre as fontes de direito. As codifi cações, ti-das inicialmente como roteiros de uma sociedade mais justa, inspirada em uma ética natural, acabaram sendo vistas, por conta do otimismo e confi ança gerados pela revolução que representavam, como o produto acabado da razão e da civilização. De instrumento passaram a obra. E obra-prima, cujos autores seriam identifi cados com o individualismo e com o racionalismo: “a teoria jusnaturalista de tradição clássica será subvertida pela compreensão “moderna” do conceito de direito natural que, doravante instalado numa fi losofi a que descobriu o homem como tema, se construirá em torno de tais noções-chave: o humanismo, o individualismo e o racionalismo” (GOYARD-FABRE. op.cit. p. 43).

Esse desvirtuamento foi obra da escola da exegese e da sistematização pandectística ao abrir caminho para a invasão positivista na ciência do direito. Esta, encorajada pela euforia cientifi cista da explicação de to-dos os fenômenos pelos preceitos da razão, desprezaria qualquer infl u-ência externa ao Direito, já confundido com a lei, com o ordenamento normativo sistemático. O Positivismo “deduzia as normas jurídicas e sua aplicação exclusivamente a partir do sistema, dos conceitos e dos princípios doutrinais da ciência jurídica, sem conceder a valores ou objetivos extra--jurídicos... A fundamentação ética desta convicção foi extraída de Savigny e pelos seus contemporâneos da teoria jurídica de Kant, segundo a qual a ordem jurídica não constitui uma ordem ética, mas apenas a possibilita, tendo, portanto, uma existência independente” (WIEACKER. op.cit. p. 492).

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Na introdução a uma das edições brasileiras de “A Luta Pelo Direi-to”, Roberto de Bastos Lellis sintetiza: “o êxito das ciências fi siconaturais a as suas aplicações técnicas convidam os pensadores a abandonar as espe-culações puramente fi losófi cas, sobretudo a metafísica, para ocuparem-se somente com o dado positivo” (Rio de Janeiro: Liber Juris, 1987. p.XIV).

Nesse abandono, qualquer tentativa de revisão dos princípios que inspiraram a teoria das obrigações e, notadamente, a teoria geral dos contratos, era inteiramente difi cultada. O voluntarismo (e toda a fi lo-sofi a individualista que o justifi cava) restou aprisionado no bojo dos códigos civis, impedindo, ali, o reconhecimento da regra moral.

É nesse contexto ideológico (e certamente não histórico) que se in-sere nossa primeira codifi cação civil. Elaborado no seio de uma so-ciedade patriarcal, colonialmente dependente, agrária e oligárquica, o projeto de Clóvis Beviláqua levou dezessete anos tramitando no Con-gresso. O Código Civil entrou em vigor em 1º de janeiro de 1917 mas seu projeto data de 1899. É, também nesse sentido, um representante do passado.

Orlando Gomes conta a sua história, tendo em vista a sociedade que lhe serviu de substrato. A economia era comandada pelo interesse lati-fundiário rural, ao qual convinha manter a estrutura que tivera origem no tempo da colônia, amparada na exportação de matérias-primas para o abastecimento da metrópole. Com a desvinculação da organização política portuguesa, a oligarquia rural limitou-se a substituir o desti-natário de sua produção, dirigindo-a diretamente às nações industriais. A República trouxe poucas mudanças a essa confi guração. Consolidou novos pólos geográfi cos de infl uência, mas a orientação básica perma-neceu: “a despeito de sua ilustração, a aristocracia de anel representava e racionalizava os interesses básicos de uma sociedade ainda patriarcal, que não perdera o seu teor privatista, nem se libertara da estreiteza do arca-bouço econômico, apesar de seu sistema de produção ter sido golpeado pro-fundamente em 1888. Natural que o Código refl etisse as aspirações dessa elite e se contivesse, no mesmo passo, no círculo da realidade subjacente que cristalizava costumes, convertendo-os em instituições jurídicas tradicionais. Devido a essa contenção, o Código Civil, sem embargo de ter aproveitado frutos da experiência jurídica de outros povos, não se liberta daquela pre-ocupação com o círculo social da família, que o distingue, incorporando à disciplina das instituições básicas, com a propriedade, a família, a herança e a produção (contrato de trabalho), a fi losofi a e os sentimentos da classe

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senhorial” (Raízes Históricas e Sociológicas do Código Civil Brasileiro in Direito Privado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961. p.94).

Mesmo concebido em uma época em que, nos países industrializa-dos, já se superava o liberalismo e o individualismo, o nosso código de 1916 desprezou a questão social. Segundo o mestre baiano, o legislador “estava convencido de que as ‘novas formações’ não possuíam substantivi-dade, não se lhes devendo injetar seiva, para que se não procurasse uma intervenção funesta na economia da vida social” (idem p.106).

Em outro artigo, ele diz: “entrando em vigor no ano de 1917, o Có-digo Civil é expressão retardada do individualismo jurídico. Na época de sua promulgação, o pensamento jurídico começava a inclinar-se para ou-tros rumos. Algumas codifi cações já haviam abandonado a fi losofi a ultra--individualista do Código de Napoleão. Perduravam, contudo, quer na doutrina, quer nas legislações, os princípios caldeados na Revolução Fran-cesa. O Código Civil brasileiro permaneceu confi nado, em consequência, à atmosfera da doutrina individualista, embora já amenizada por descargas que a desoprimem do radicalismo primordial” (O Código Civil e sua Re-forma. in Direito Privado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961. p. 120).

E durante bom tempo, aqui ou alhures, os teóricos continuaram a identifi car a justiça no contrato (“qui dit contractuel dit juste”). E isso, mesmo quando as premissas liberais e individualistas já se mostravam frágeis. A relevância da vontade (e, por lógico, do consentimento) que caracterizou a teoria jurídica no período moderno fora construída com base na igualdade que, em verdade, era um alicerce comprometido pela ausência de conteúdo material.

A civilização urbano-industrial desvelou as profundas iniqüidades que se escondiam sob a expressão jurídico-conceitual do homem. Para o direito, este era “pessoa”, independentemente de suas particularida-des, de sua condição social ou fi nanceira, de suas idiossincrasias (o que, de todo modo, foi extremamente útil para consolidar o fi m das diferen-ças pré-constituídas). Sendo pessoa, era reduzido ao mesmo estatuto de qualquer outro homem, não importando quão diferente fosse. A exploração do homem pelo homem (“homo omni lupus”), que Hobbes pensou ter acabado com o pacto social, foi a conseqüência histórica dessa redução. A ironia é que fora o próprio pacto social, liberalmente concebido, que lhe deu origem: era a liberdade que escravizava (Jean Lacordaire).

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Ainda assim, muito se persistiu na apreciação do fenômeno obrigacio-nal sob a luz da vontade individual. Não foi à toa que se desenvolveu a teoria da vontade (“Willenstheorie”), que propugnava a interpretação do negócio através de uma quase exclusiva análise da intenção do agente.”

SUGESTÕES:

Ler MARTINS-COSTA (2000), parte I.

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AULA 3 — TEORIA CONTRATUAL HODIERNA. REVISÃO DO PAPEL DA VONTADE. NOVOS PRINCÍPIOS. LIBERDADE CONTRATUAL E FUNÇÃO SOCIAL

INSTRUÇÕES:

Ler o texto abaixo, extraído de WERNER (2007):

“A CRISE DA TEORIA CLÁSSICA DOS CONTRATOS

Mas a reação não tardou. Propagaram-se as doutrinas socialistas e o capitalismo teve de se posicionar, vindo a intervir diretamente nas relações inter-individuais para assegurar um mínimo de igualdade ma-terial. O poder da vontade do indivíduo arrefeceu e os princípios que nele se fundaram (liberdade contratual e obrigatoriedade dos contra-tos) foram mitigados e relativizados. A teoria da vontade foi suplantada pela teoria da declaração (“Erklarungstheorie”) que já buscava na decla-ração de vontade, ou seja, na vontade tal qual recepcionada pelo ‘alter’, a chave para a interpretação do negócio. As teorias da confi ança e da responsabilidade, que procuraram aproximar os efeitos negociais das expectativas hauridas no trato com o outro são deveras representativas da tendência para reagir ao individualismo.

Se antes houvera uma certeza primordial (a razão), ora revelavam--se inúmeras perplexidade: “a partir disso, a fi sionomia do racionalismo jurídico oriundo da fi losofi a das luzes francesas perde nitidez: já não pode ter a forma altiva e pura uma ordem sistemática; curva-se e se fl exibiliza ao sabor de suas múltiplas e incessantes relações com seu contexto social...” (GOYARD-FABRE. op.cit. p. 146).

O mundo teve que reconhecer a diversidade. A razão não mais servia para integrar os indivíduos e legitimar suas ações: “toda a experiência humana era realmente estruturada por princípios em grande parte incons-cientes, que não eram absolutos e atemporais. Ao contrário, fundamental-mente variavam em diferentes eras, diferentes culturas, diferentes classes, diferentes línguas, diferentes pessoas e em contextos existenciais diferentes” (TARNAS, Richard. A Epopéia do Pensamento Ocidental. Rio de Janei-ro: Bertrand Brasil, 1999). Nessa frustração, não só o setor negocial foi abalado. Todo o sistema jurídico (de base positivista) foi alvo de crítica e repreensão.

Afi nal, limitava-se a estudar o conjunto das normas em vigor, sem se preocupar com os seus fudamentos, facilitando a manutenção da

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ordem estabelecida, desprezando a função transformadora do Direito e desperdiçando a chance de combater as distorções do sistema.

Sua validade e sua efi cácia, bem como a legitimação do discurso po-sitivista, foram postas à prova por ocasião da proliferação das normas (fenômeno que mereceu a análise de Natalino Irti em “L´Età della De-codifi cazione”). Cada vez mais detalhadas e direcionadas a certos grupos de interesse, elas se afastaram de sua função de expressão da “volonté gé-nerale” e em conseqüência viram diluída sua potencialidade. Essa proli-feração decorrente da necessidade cada vez maior de atender e proteger setores específi cos da sociedade, é mais um sintoma da diversidade, da falência dos discursos totalizadores e do que muitos denominam de síndrome pós-moderna: “a infl ação legislativa, por sua vez, minou pela base a ideologia da unidade legislativa. Aos códigos civis foram sendo agre-gadas inúmeras ‘leis especiais’, no início ditas ‘leis extravagantes’, porque (vagare) sobrevagavam o sistema refl etido no Código. O sentido da quebra da unidade legislativa está em que não é mais possível acomodar, num mes-mo e harmônico leito, todos os interesses, porque não há apenas um único sujeito social a ser ouvido, não há mais um sujeito comum, como aquele desenhado na esteira da Revolução Francesa pelo princípio da igualdade, abstrata, frente a lei” (MARTINS-COSTA. A Boa-Fé... p. 281).

E é exatamente no reconhecimento de desigualdades e diferenças, de características, vantagens e fraquezas identifi cadas com um deter-minado grupamento social ou com um conjunto de pessoas sujeitas a determinadas práticas, que residia a ruptura com o ideário moderno.

Com a constatação da falência do sistema burguês-liberal de igual-dade dos indivíduos; diante do reconhecimento da existência, no seio da comunidade jurídica, de “pessoas” em situação de inferioridade ou defi ciência em face de outras, aliado à descoberta ou desenvolvimento de uma função regulatória e provedora do Estado, justifi cou-se a in-tervenção dos governos na esfera antes destinada à autonomia privada.

Tal intervenção, assim justifi cada, visava garantir a proteção daque-les que se encontravam em posição de sabida desvantagem perante ou-tros ou, pelo menos, minimizar a desigualdade verifi cada. E foi o novo papel da lei que a viabilizou. É o que se resume no lema de Lacordaire: “entre o fraco e o forte é a liberdade que escraviza e a lei que liberta”.

De várias formas o Estado se fez intervir: (a) pelo controle da ativi-dade de determinadas empresas economicamente poderosas ou pres-tadoras de serviços ou produtos essenciais, até mesmo obrigando-as a contratar (a vender, não esconder estoques, etc.); (b) pelo nivelamento do poder das partes para sua equalização, restaurando-se a igualdade real (v.g. contratos coletivos de trabalho); e (c) pelo dirigismo contra-tual, que é a interferência do Estado no conteúdo do contrato e no

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seu processo, com a restrição da liberdade das partes ao impor-lhes determinada atuação (trata-se de uma interferência na estipulação do contrato que afasta o poder da vontade em determinada área conside-rada essencial).

Tecnicamente, tal intervenção opera através da invasão de normas imperativas ou proibitivas (jus cogens) no campo antes dominado por normas supletivas ou dispositivas (jus dispositivum).

O Direito do Trabalho, como um todo, e as leis do inquilinato, são exemplos dessa intervenção.

O Código de Defesa do Consumidor, porém, por sua abrangência e pelas premissas que estabelece, é o refl exo por excelência dessa política.

Diante da alteração signifi cativa no modo de interação econômi-ca com a substituição da contratação entre burgueses (relativa, via de regra, a bens infungíveis, e eventual) pela contratação de massa (de bens de toda espécie e em caráter quase que ininterrupto, de forma reiterada), o equilíbrio de forças entre as partes foi igualmente altera-do. O nível de complexidade dos produtos e serviços oferecidos não só concentra o conhecimento sobre eles nas mãos do fornecedor (que pode se valer dessa vantagem), mas também faz com que o consumidor passe a ser cada vez mais dependente do fornecedor para consegui-los, já que não teria como obtê-los de outro modo. O fornecedor pode se aproveitar dessa defi ciência e impor ao consumidor condições iníquas na contratação.

O Código de Defesa do Consumidor declaradamente reconhece essa vulnerabilidade (artigo 4º, I) e contra ela reage, estabelecendo uma série de regras que têm como principal objetivo o resgate do equilíbrio de forças.

E para maior efi cácia, essa reação opera em quatro frentes: (i) na concessão de vantagens ao consumidor, não estendidas ao fornecedor, bem ao estilo das ações afi rmativas (desistência da contratação, facili-tação da defesa em juízo; direito de escolha nos artigos 18 e 20 e no artigo 54, §2º; interpretação mais favorável); (ii) na proteção direta contra o atuar lesivo do fornecedor, proibindo-lhe determinadas con-dutas (proibição de publicidade enganosa, venda casada, envio de pro-duto ou serviço sem solicitação, além da proibição de certas cláusulas); (iii) na garantia da qualidade (segurança e adequação) dos produtos e serviços; e (iv) na imposição da transparência, seja por meio da previsão de deveres de informação, seja através da proteção da confi ança, com a vinculação à publicidade e à informação, a correção da desinformação do consumidor e a garantia das suas expectativas. Esta última frente de reação contra o desequilíbrio originário da relação de consumo é item

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essencial para a compreensão do fenômeno da formação dos contratos de consumo, como se verá adiante.

A reação também se dá em fases distintas do fenômeno contratual. Mesmo antes do estabelecimento de qualquer tipo de contato entre fornecedor e consumidor, (a) na fase do “marketing” do produto ou serviço, na veiculação de publicidade (em caráter geral, ou mesmo na oferta individual); na (b) fase de conclusão do contrato, com a vincu-lação às promessas feitas, com a proibição de cláusulas abusivas; na (c) fase de execução do contrato com a proibição de práticas abusivas e ga-rantia do direito de modifi cação e revisão de cláusulas de desequilíbrio; e, por fi m, até (d) na fase pós-contratual, assegurando ao consumidor o direito à plena reparação dos danos eventualmente sofridos.

No campo do Direito das Obrigações e, particularmente, no âmbito da Teoria dos Contratos, o reconhecimento da diversidade produziu signifi cativas revisões em conceitos até então indiscutíveis. O papel da vontade como fonte e elemento integrador do conteúdo dos negócios foi o mais atingido. Se não há igualdade de condições na formação de um negócio, perdem toda a sua justifi cativa as idéias de livre vinculação e obrigatoriedade.

A noção de boa-fé, cuidadosamente elaborada no curso da história e na prática da jurisprudência alemã, ganhou posição de destaque nesse âmbito e foi instrumentalizada para unifi car o tratamento de todas as relações obrigacionais, não importando a qualidade e particularidade do indivíduo. Foi ela que explicou e integrou as teorias interpretativas do negócio jurídico, resgatou a noção de equilíbrio, de sinalagma ob-jetivo; e formulou a solução para o problema dos contratos em massa (ao menos na ordem jurídica alemã, tendo sido importada por outros ordenamentos, não sem críticas, como as de José de Oliveira Ascensão e Joaquim de Sousa Ribeiro em Portugal).

A construção de seu conteúdo ocasionou seu transbordamento do âmbito contido do dispositivo em que se inseria (§242 do Burgerliches Gesetzbuch — “BGB”), transmutando-o, de um mero preceito conti-nente de um conceito-jurídico-indeterminado, em uma norma fl exível, impregnada e impregnável de elementos éticos plenos de preocupação social. A esta norma se chamou, por isso mesmo, de “cláusula geral”, ou “cláusula aberta” que acabou se infi ltrando no seio das demais ex-pressões normativas.

E a experiência extraída da operatividade da boa-fé através da ela-boração (ainda por concluir) de um conceito de cláusula geral, reper-cutiu no plano mais elevado da metodologia da ciência jurídica, o que ocorreu quando os teóricos se deram conta da potencialidade dessa estrutura normativa na superação do rigor estagnante da leitura positi-

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vista e, por conseguinte, na instrumentalização da reação à proliferação normativa.

Talvez esteja aí a chave para a compreensão do papel do novo Códi-go Civil brasileiro e para sua apreensão por nosso ordenamento. Valen-do-se de cláusulas abertas (como já fi zera o CDC), propõe-se a servir de base para o enfrentamento jurídico das mais diversas manifestações da sociedade (é a sua primeira diretriz fundamental a “compreensão do Código Civil como lei básica, mas não global, do Direito Privado” —-Ex-posição de Motivos do Supervisor da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil). Talvez se tenha atingido a conclusão de que a multi-plicidade de normas enseje uma diluição de seu conteúdo coercitivo e uma crise de valores. Talvez, ainda, se tenha constatado que a sociedade carece de um referencial e que este deve ser fornecido o quanto antes a seus magistrados, dando-lhes as condições para que o observem em suas decisões, em uma melhor e mais livre apreciação dos fenômenos sociais, para “acolher os modelos jurídicos validamente elaborados pela ju-risprudência construtiva de nossos tribunais, mas fi xar normas para supe-rar certas situações confl itivas, que de longa data comprometem a unidade e a coerência de nossa vida jurídica” (Décima Segunda Diretriz da Ex-posição de Motivos), sem que isso derive para um “engessamento” da ordenação jurídica.

A idéia por detrás das cláusulas gerais, dentre as quais exerce posição de destaque o dispositivo da boa-fé, está em permitir a abertura do sis-tema para o infl uxo de experiências e de leituras ‘meta-jurídicas’ e, com isso, possibilitar sua vivifi cação e dinamização, enfi m, sua auto-reno-vação. Pretende-se, com elas, evitar a prematura superação do sistema normativo, que causara a frustração do modelo racional-positivista (em que “se supõe que todas as respostas estão já previstas nas premissas dogmá-ticas do sistema, podendo ser alcançadas por meio da atividade mental da subsunção” — MARTINS-COSTA. A Boa-Fé... p. 364), concedendo ao juiz o dever de traduzir e importar para o plano jurídico o sentimento objetivamente encontrado no seio social acerca de um problema com o qual é confrontado. Esse enfoque objetivo faz parte do desafi o e da responsabilidade do magistrado que acompanha essa sua nova função, não podendo recorrer a uma impressão meramente pessoal, subjetiva.

É o que parece ter sido levado em consideração pelos elaboradores: “o que se tem em vista é, em suma, uma estrutura normativa concreta, isto é, destituída de qualquer apego a meros valores formais e abstratos. Esse objetivo de concretude impõe deixar margem ao juiz e à doutrina, com fre-qüente apelo a conceitos integradores da compreensão ética, tal como os de boa-fé, eqüidade, probidade, fi nalidade social do direito, equivalência de prestações etc., o que talvez não seja do agrado dos partidários de uma con-

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cepção mecânica ou naturalística do Direito, mas este é incompatível com leis rígidas de tipo físico-matemático. A exigência de concreção surge exata-mente da contingência insuperável de permanente adequação dos modelos jurídicos aos fatos sociais ‘in fi eri’” (Exposição de Motivos, item 13, §4º).

O Direito das Obrigações (e, particularmente, o Direito dos Con-tratos), como parte desse novo sistema e tendo sido, historicamente, o campo de maior aplicação do voluntarismo e do individualismo, será, por certo, palco de intensos entrechoques, de embates ferozes entre a força infl uente da tradição e a “evidência do fato social”.

É possível que o conservadorismo simplista tente se impor com am-paro na preservação formal da maior parte dos dispositivos da parte geral das obrigações, cumprindo então a todos os operadores a tarefa de afastá-lo, dando curso normal aos anseios do legislador, tão claramente manifestos na Exposição de Motivos do novo Código. Afi nal, se de fato há a manutenção da literalidade dos dispositivos do Código Beviláqua em grande parte dos artigos contidos no Livro das Obrigações, estes ganharam potencialidade antes não concebível, o que, sem dúvida, transmuta-os em sua própria essência.

Pois essa transformação normativa acaba por conciliar o novo Di-reito das Obrigações com o esforço de aperfeiçoamento do processo contratual levado a cabo pelo legislador do CDC, um esforço que se refere não só aos meios de conduzir esse processo, mas, sobretudo, aos seus fi ns, que nunca poderão se confundir com aqueles visados por uma só das partes.

II — A NOVA PRINCIPIOLOGIA

Os antecedentes acima descritos impõem à teoria contratual uma profunda revisão. Para tanto, cumpre investigar quais de seus funda-mentos podem ser mantidos e quais devem ser afastados, por com-prometidos; quais de seus princípios permanecem e quais devem ser esquecidos; e, ainda, como esses princípios devem ser articulados entre si, ou seja, como serão inter-relacionados e conciliados (e aqui se faz alusão à distinção entre normas e princípios, segundo Ronald Dworkin (Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978), as normas seguem o comando “all or nothing”: diante de uma contra-dição, uma deve cair; por sua vez, os princípios, mesmo diante de uma contradição, não perdem validade, podem ser afastados em determina-da situação concreta mas não perdem validade).

Se a premissa da igualdade deve ser afastada, como se viu, com ela a da autonomia absoluta da vontade — que só era justifi cada pela auto--limitação das vontades equipolentes (se uma vontade sobressai e se

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1 Neste trabalho, entende-se inadequa-

da a classifcação das exigências gráfi cas

como exigências de forma. São, em ver-

dade, exigências de solenidade, como

se verá no Capítulo III, item II.A.2.

impõe à outra pela força, não há mais possibilidade de limitação priva-da) — e a da liberdade contratual absoluta.

Ao falar sobre o desenvolvimento da teoria de Ludwig Raiser sobre a justifi cativa da liberdade contratual, Joaquim de Sousa Ribeiro pos-tula que esta somente poderia ser vista e entendida com um sentido teleológico: “é pela sua natureza de elemento constitutivo de uma ordem jurídico-social idealizada que a liberdade contratual se deixa fundamentar (...) Cunhada, de antemão, pelos traços delimitativos que resultam de sua integração na ordem jurídico-econômica global e pelas funções específi cas que, enquanto princípio regulador, aí desempenha, a liberdade contratual, enquanto faculdade, não pode ser reivindicada como algo de absoluto ou formal, desprendido de qualquer injunção fi nalizadora” (O Problema do Contrato — As Cláusulas Contratuais Gerais e o Princípio da Liberdade Contratual. Coimbra: Almedina, 1999. p. 502).

Assim, se a liberdade contratual é exercida contrariamente a essa função, há abuso de uma posição subjetiva, que, então, passa a ser ob-jeto de controle.

O princípio da obrigatoriedade dos contratos, que encontrava su-porte na ética de compromisso assumido por iniciativa e vontade pró-prias no exercício da liberdade individual, perdeu, conseqüentemente, esse ponto de apoio, passando-se a admitir que pudesse ser colocado de lado quando aquela condição essencial não era verifi cada.

O princípio do consensualismo é tido por um dos mais atingidos. As exigências gráfi cas que envolvem a elaboração das cláusulas do con-trato, destinadas a garantir uma melhor apreensão do programa contra-tual, vêm sendo identifi cadas com um renascimento do formalismo: “le formalisme connâit une renaissance évidente comme mode de protection. Si le consensualisme reste de règle, le législateur subordonne de plus en plus souvent la conclusion du contrat au respect de certes exigences formelles” (FONTAINE, Marcel. La Protection de la Partie Faible dans les Rapports Contractuels (Rapport de Synthèse) in La Protection de la Partie Faible dans les Rapports Contractuels. Paris: LGDJ, 1996. p. 615-53).

De todo modo, se as exigências gráfi cas1 acabam reduzindo a área de concessão do monopólio da vontade na criação de obrigações, não chegam a afetar a função histórica do princípio, ligada ao reconhe-cimento do todo da relação contratual entre os celebrantes, já que a inobservância das regras de solenidade vicia apenas as cláusulas que não se conformaram. Deve ser lembrado, ainda, que, dentre nós, tais exigências ainda se restringem aos contratos de consumo, não havendo, nesse ponto, uma regulação genérica, no âmbito civil, para as “ccg” ou contratos de adesão.

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2 Não obstante o idealismo ínsito à

noção contratualista de “volonté géne-

rale”, a representação de uma vontade

coletiva não deixa de refl etir parte de

sua função.

É possível dizer que o princípio do consensualismo permanece, mas o “solus consensus obligat” deve receber uma leitura diferente, tendo em conta que, se, em regra, ainda basta o consenso para obrigar, este deve se formar sob a cada vez mais limitada esfera de atuação da vontade individual.

Porém, a maior ameaça ao prestígio e à relevância desse princípio talvez resida no âmbito da formação dos contratos de consumo. É que, ali, como se verá, o consenso é, em certos casos, verdadeiramente des-tituído de sua função criadora de vínculos. Se a ameaça representada pelo formalismo fere seu monopólio mas não o alija do processo de formação dos contratos, dividindo com ele essa função, na formação dos contratos de consumo ele deixa de ser um etapa do processo que, em determinadas situações, pode ser concluído sem a sua participação.

Vê-se que, seja ela qual for, a nova teoria contratual terá sido cons-truída como uma reação ao individualismo e ao reconhecimento abso-luto da autonomia da vontade individual. Em verdade, está vinculada, no campo fenomenológico, à redução da esfera de liberdade dos indi-víduos com a correspondente intensifi cação do papel da lei e do Estado (que, através do juiz, pode ali intervir).

Se é possível dizer que a lei é expressão de uma, por assim dizer, “vontade coletiva”2, essa nova teoria importa em uma re-alocação de forças entre esta e a vontade individual.

Essa ampliação do campo de atuação daquela “vontade coletiva”, com a conseqüente redução do campo da vontade individual (antes restrito, praticamente, à esfera dos deveres militares e tributários), é uma tendência que tem se verifi cado de modo geral nessa nova fase da teoria contratual, pois, segundo Ricardo Luis Lorenzetti, “trata-se de evitar que a autonomia privada imponha suas valorações particulares à sociedade; impedir-lhe que invada territórios socialmente sensíveis (...) de evitar a imposição a um grupo, de valores individuais que lhe são alheios” (Fundamentos do Direito Privado. São Paulo: RT, 1998. p.540). Nessa direção posiciona-se o recém reconhecido princípio da função social dos contratos.

I. — A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS

Enzo Roppo já dizia que os contratos não podem ser enxergados ex-clusivamente sob a ótica jurídica. Como todos os conceitos de Direito, “refl ectem sempre uma realidade exterior a si próprios, uma realidade de in-teresses, de relações, de situações económico-sociais, relativamente aos quais cumprem, de diversas maneiras, uma função instrumental” (op.cit. p.7).

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No contexto, o autor pretendia demonstrar a importância da expres-são econômica do contrato na sua interpretação e no seu tratamento jurídico, lembrando que ele sempre cumpre uma função dessa ordem.

Mas essa função não é a única, até porque, como os demais ‘fi os’ de expressão da vida humana (religiosa, política, cultural,jurídica etc.) toma parte na conformação da própria ‘trama’ social. A circulação de riquezas que o contrato, de certa forma, sempre proporciona, através da transferência de bens e tecnologia que enseja, é prova signifi cativa dessa participação. Portanto, todo contrato tem já a sua infl uência no âmbito social.

Pois a partir do momento em que essa infl uência passou a ser objeto de atenção por parte dos juristas, surgiu a noção de “função social dos contratos”, da mesma forma que antes fora reconhecida a função social da empresa e da propriedade (no caso dos contratos, essa preocupação com o interesse social em um campo antes dominado exclusivamente pelo jogo das vontades individuais, é mais um refl exo do reexame das fundações de sua teoria geral).

Segundo Paulo Luiz Netto Lôbo, “o princípio da função social deter-mina que os interesses das partes do contrato sejam exercidos em conformi-dade com os interesses sociais, sempre que estes se apresentem” (Princípios Sociais dos Contratos no Código de Defesa do Consumidor e no Novo Có-digo Civil. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo. v.11. n.42. p. 187-95).

Mas essa consideração a um “ideal” coletivo não é, contudo, própria da função social. É comum a todas as vertentes de incidência da ordem pública, dentre as quais se poderia incluir a boa-fé objetiva.

E é esse vetor comum que acaba levando a interseções conceituais que confundem seus campos de atuação e prejudicam sua efi cácia. Des-de já devem ser evitadas em honra à precisão terminológica.

Importa, pois, distinguir essas noções.No que respeita aos contratos, a ciência já é capaz de identifi car duas

vertentes de aplicação da idéia de ordem pública: o princípio da boa-fé e a função social. Ambos formam campos especializados de incidência daquele item fundante da ordem jurídica, ainda que cada um opere em uma determinada esfera e com metas particulares.

A boa-fé, de seu lado, se presta à garantia de que uma conduta so-cialmente aceita e prescrita como modelo de interação individual seja observada por cada uma das partes no contrato que as entrelaça.

O controle que eventualmente permite é referente a um interesse imediatamente individual (que abomina uma conduta em desconside-ração à “etiqueta” das relações) mesmo que, mediatamente, venha aten-der à ordem pública que, dentro de suas prescrições, inclui a ‘eticidade’

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(reporta-se, aqui, à linguagem divulgada pela Exposição de Motivos do Novo Código Civil).

Já a função social não se identifi ca diretamente com um interes-se individual, remetendo à proteção de um interesse difuso ameaçado pelo exercício da liberdade de contratar (o que não impede que, even-tualmente, sirva para garantir indiretamente um interesse individual compatível com o coletivo). A função social diz respeito ao campo da ‘socialidade’, que, juntamente com a ‘eticidade’, caracteriza o estatuto de uma sociedade que “tenta ultrapassar o individualismo” (MARTINS--COSTA. O Novo Código Civil Brasileiro: Em Busca da “’Ética da Si-tuação’”, in Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro. p.131).

Portanto, não se afi gura adequada a conceituação da função social que, confundindo-a com a boa-fé, pretenda vê-la como instrumento de defesa do indivíduo no inter-relacionamento privado, especialmente no que se refere a um equilíbrio de prestações, como vem sendo defen-dido por alguns autores.

Menos adequada ainda é a identifi cação da função social com a pró-pria ordem pública, a que a escassa precisão na delimitação do tema e a ampliação desmedida daquele conceito podem conduzir. De fato, de nada valem as conceituações que apresentam a função social como o instrumento de garantia de um interesse social nos contratos, sem que se lhe indique um uso específi co, pois essa garantia é tarefa do próprio ordenamento jurídico, através da idéia de proteção da ordem pública que, por sua conotação abrangente, justifi ca, em última análise, todo o controle incidente sobre o exercício da liberdade individual em suas variadas manifestações, desde o âmbito civil, passando pelo âmbito ad-ministrativo, até o âmbito penal.

A ordem pública pode ser vista como um instrumento de auto--referência ou “autopoiesis” do sistema, na medida em que controla as manifestações — não só as leis — contrárias à sua própria justifi cação, à sua “ordem de valores”, como diz RIBEIRO: “entre esses limites (à atuação dos agentes), e ao lado do que resultam da projeção, no campo do direito, de regras basilares da moral social (...) contam-se os que perma-necem originariamente do próprio ordenamento jurídico. E não só os que pontualmente explicita, através de regras cogentes, mas também os que são dedutíveis da totalidade de sentido dos princípios fundamentais em que assenta o conjunto da ordem jurídica ou alguns dos institutos que a com-põem” (op.cit. p.526).

Seria a ordem pública, nesse entender, o que justifi caria a concessão de vantagens a uma parte reconhecidamente debilitada (como ocorre no âmbito das relações de consumo), a restrição a determinadas práti-

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cas e o controle das cláusulas contratuais gerais, tudo para assegurar o equilíbrio na contratação que é base de sustentação do sistema.

Pois sem as devidas especifi cações, a função social se torna difusa, mera aplicação da idéia de ordem pública no direito contratual, pouco ganhando em termos de precisão conceitual.

Em verdade, é justamente a maior precisão conceitual que deve caracterizar a função social em relação à ordem pública, pois, como também se deu com a boa-fé, foi obtida exatamente no esforço de de-marcação de sua incidência.

A idealização do modelo de conduta (no caso da boa-fé) e a desco-berta de um emprego do contrato para além do exercício da liberdade dos indivíduos nele envolvidos (no caso da função social), são como “mapeamentos” de uma pequena “área” do “território” muito pouco desbravado da ordem pública, que certamente contribuem para que sua abrangência e conteúdo sejam — ao menos em parte — defi nidos. A efetiva aplicação desses instrumentos na regulação de confl itos reais representa, então, a realização da própria idéia de ordem pública; a concretização de uma abstração.

Todas essas idéias (‘ordem pública’, ‘função social’ e ‘boa-fé’) são aparentadas, mas não podem ter seus conceitos superpostos.

Por tudo, mesmo que se admita que o desenvolvimento científi co pode ser sempre colhido em meio à riqueza da diversidade de opini-ões e teses, já é hora de seguir o alerta de Humberto Th eodoro Junior e afastar a abrangência operacional da função social, colocando-a em limites que se possam conhecer — e, conseqüentemente, reivindicar — para a melhor e mais efi caz aplicação do Direito: “em face dessa es-trutura de codifi cação inovada, a conceituação de função social do contrato não deve ser tão genérica que abranja tanto o comportamento interno dos contratantes entre si, como o comportamento externo deles, perante o meio social em que o negócio projeta seus efeitos” (Os Contratos e sua Função Social. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p.36)

Porém, ao contrário do que parece defender esse autor, o balizamen-to da função social não passa pela sua interferência na relatividade.

A — A Função Social, a Relatividade e a Liberdade Contratual

Preocupado em afastar um entrelaçamento conceitual entre a boa--fé e a função social e deixar de lado todas as tentativas de enxergar na função social uma ferramenta de controle do âmbito interno do con-trato (tarefa cuja relevância já foi destacada), THEODORO Jr. parece perder-se na conceituação da fi gura. Acaba apresentando uma visão dirigida exclusivamente para o âmbito dos efeitos do contrato perante

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terceiros: “o que surgiu desses estudos de interferência do contrato no meio social foi a sistematização dos denominados ‘efeitos externos das obrigações’. A correspondência imediata se faz sentir na fl exibilização que se teve de admitir para o clássico princípio da relatividade dos efeitos do contrato” (op.cit. p.39).

Decerto que a infl uência da função social na revisão do princípio da relatividade não pode ser desconsiderada.

Para além dos interesses individuais das partes, impõe a considera-ção de interesses outros, difusos, concernentes ao conjunto dos mem-bros da comunidade em que o negócio se insere e para a qual ganha relevância, levando ao reconhecimento de deveres em face de tal grupo.

Pois quando o Direito admite que a esses deveres podem correspon-der prerrogativas e pretensões dirigidas às partes, passa a reconhecer no-vos efeitos ao contrato que não se restringem à relação básica, fi cando aberto o caminho para a revisão do princípio da relatividade.

Nesse sentido, a conclusão da Jornada de Direito Civil, grupo de Estudos formado para debater o Novo Código Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no perí-odo de 11 a 13 de setembro de 2002 (Enunciado n. 21: “a função social do contrato prevista no art. 421 do novo Código Civil constitui cláusula geral, que impõe a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do con-trato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito”).

Todavia, a revisão dimensional da relatividade é apenas uma das conseqüências da funcionalização social do contrato. Não é a única e nem serve para delimitar seu conceito ou alcance.

As análises que se concentram demasiadamente nessa resultante (vide, p.ex., THEODORO Jr., op. cit.; e a riquíssima obra de Teresa Negreiros: Teoria do Contrato — Novos Paradigmas. Rio de Janeiro: Re-novar, 2002), pecam por deixar em segundo plano a mais importante conexão da fi gura: a liberdade contratual.

Em verdade, é nela que a função social encontra seu principal cam-po de incidência, o alvo primordial de seu emprego, onde originalmen-te teve reconhecida a sua operação.

Não que deva ser reduzida a mera exceção casuística ao princípio da liberdade de contratar, como bem lembra Claudio Petrini Belmonte: “a liberdade contratual não pode ser concebida inicialmente com algo de absoluto, para só depois a confrontarmos com seus limites, com ingerências compressoras do ordenamento” (Principais Refl exos da Sociedade de Massas no Contexto Contratual Contemporâneo. Revista de Direito do Consu-midor. São Paulo. v.11. n.43. p. 133-57).

É preciso que se lhe apreenda em conexão com seu devido campo de atuação, conforme o seu desenvolvimento histórico: “assim como

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ocorre com a função social da propriedade, a atribuição de uma função social ao contrato insere-se no movimento de funcionalização dos direitos subjetivos: atualmente admite-se que os poderes do titular de um direito subjetivo estão condicionados pela respectiva função (...) portanto, o direito subjetivo de contratar e a forma de seu exercício também são afetados pela funcionalização, que indica a atribuição de um poder tendo em vista certa fi nalidade...” (MARTINS-COSTA. O Novo Código Civil... p.158).

Ao falar sobre o princípio da liberdade de contratar, embora sem mencionar diretamente a função social, Enzo Roppo proporciona um vislumbre desse conteúdo histórico, como contraponto à liberdade de contratar: “os limites a uma tal liberdade eram concebidos como exclusi-vamente negativos, como puras e simples proibições: estas deviam assinalar, por assim dizer, do exterior, as fronteiras, dentro das quais a liberdade con-tratual dos indivíduos pode expandir-se sem estorvos ou controlos: não con-cluir um certo contrato, não inserir nele uma certa cláusula. Inversamente, não se admitia, por princípio, que a liberdade contratual fosse submetida a vínculos positivos, a prescrições tais que impusessem aos sujeitos, contra a sua vontade, a estipulação de um certo contrato, ou a estipulação com um sujeito determinado ou por um certo preço ou em certas condições...” (op.cit. p.32).

Não é demais dizer que a disposição do artigo 421 do Código Civil consolidou e reuniu sob a mesma fi gura e um só fundamento comum, as restrições ao exercício da liberdade de contratar às quais a doutrina clássica sempre aludiu, ainda que não identifi cando esse elemento agre-gador.

Pois a função social é o opósito natural da liberdade de contratar, à qual se impõe e contrapõe, em uma conciliação indispensável para a correta compreensão do fenômeno contratual, que, como o “Yin-Yang” do “I-Ching”, não pode ser entendido fora de uma lógica de comple-mentaridade: o Yin Yang “é, em suma, a expressão do dualismo e do com-plementarismo universal. Yin e Yang só existem em relação um ao outro. São inseparáveis e o ritmo do mundo é o próprio ritmo de sua alternância” (CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 18 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. p.968).

Gustavo Tepedino, sempre preciso em suas análises, não deixa de enxergar a importância da tarefa da função social frente à liberdade de contratar, também ressaltando o jogo dos interesses envolvidos no contrato: o interesse individual, nunca ausente; e o interesse social ex-tracontratual: “à luz do texto constitucional, a função social torna-se razão determinante e elemento limitador da liberdade de contratar, na medida em que esta só se justifi ca na persecução dos fundamentos e objetivos da República acima transcrito. Extrai-se daí a defi nição da função social do

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contrato, entendida como o dever imposto aos contratantes de atender — ao lado dos próprios interesses individuais perseguidos pelo regulamento contratual — a interesses extracontratuais socialmente relevantes, dignos de tutela jurídica, que se relacionam com o contrato ou são por ele atin-gidos” (Crise das Fontes Normativas e Técnica Legislativa na Parte Geral do Código Civil de 2002. Revista Forense. Rio de Janeiro. v.98. n.364. p.113-24)

Não é à toa que foi essa a conexão expressamente admitida em nosso sistema: “art. 421 — a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

A Jornada de Direito Civil conclui, sob o Enunciado nº 23: “a fun-ção social do contrato prevista no art. 421 do novo Código Civil não eli-mina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses meta-individuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana”.

B — O Verdadeiro Significado de “Liberdade de Contratar” no art. 421

E já é hora de precisar a terminologia referente ao campo de inci-dência da função social, uma vez que a doutrina costuma distinguir os termos ‘liberdade contratual’ e ‘liberdade de contratar’.

De fato, para alguns autores, dentre os quais se pode apontar GO-MES (Contratos. 17ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997) e Silvio Rodri-gues (Direito Civil. 28 ed. v.3. São Paulo: Saraiva, 2002), a ‘liberdade de contratar’ deve ser apartada da noção de ‘liberdade contratual’. Os termos servem para circunscrever os âmbitos de particularização da au-tonomia da vontade, que poderiam ser compreendidos (i) na liberdade de contratar ou deixar de contratar; (ii) na liberdade de contratar com a pessoa escolhida; e (iii) na liberdade de determinar o conteúdo do contrato. Os dois primeiros aspectos referindo-se à “liberdade de con-tratar” e o último à “liberdade contratual”

Muito embora a função social tenha se relacionado inicialmente com os primeiros aspectos (justifi cando a proibição de certas avenças contrárias ao interesse público ou, inversamente, a obrigatoriedade da contratação), não deixa de referir-se também ao último, não se privan-do de interferir na ‘liberdade contratual’.

Ainda que a restrição à livre fi xação do conteúdo do contrato seja, na maior parte dos casos, alvo de um controle destinado à proteção de um interesse individual (de um dos contratantes contra uma conduta contrária aos limites objetivamente traçados) — e por isso operado com base na boa-fé —-, pode também ser conseqüência, em certas

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situações, da proteção de um interesse difuso, comum a um grupo con-siderado socialmente signifi cante.

Basta que se imagine, por exemplo, um contrato que, na forma em que foi elaborado, venha a ser tomado como prejudicial à livre concor-rência ou ao meio ambiente. Não se exige que o contrato, como um todo, constitua uma ameaça a interesses coletivos. Desde que o modo como foi confi gurado o torne prejudicial, é cabível o controle (que, aliás, pode ajustá-lo ao modelo socialmente admitido).

De todo modo, ao contrário da boa-fé (que impõe seu controle em todos os contratos, pois todos envolvem, sempre, um interesse indivi-dual), a função social somente irá justifi car uma intervenção na liber-dade de fi xação do conteúdo contratual naquelas situações em que o contrato venha a qualifi car-se como relevante perante o esquema social.

Muito embora o legislador do novo Código Civil tenha escolhido se referir a ‘liberdade de contratar’ no art. 421, o alcance da função social não pode fi car limitado ao signifi cado por vezes atribuído a esse termo. Em outras palavras, seu controle não pode incidir tão somente sobre a escolha individual entre contratar ou não.

De modo a garantir o melhor emprego do contrato como item de integração e desenvolvimento social, deve ter-se em mente que não apenas a sua existência, mas também o modo como venha a ser cum-prido pode interferir naquele esquema: “o contrato é um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e medida” (REALE, Miguel. O Projeto do Código Civil. São Paulo: Saraiva, 1986. p.9).

Por isso, eventual comportamento com ele incompatível, deve ser passível de controle. Restringir a operação da função social ao campo da ‘liberdade de contratar’ poderia levar à consolidação de situações de submissão do interesse social pelo interesse individual, o que, no que se refere ao âmbito contratual, não mais se admite.

Justifi cada está, portanto, a proposta de alteração da redação do art. 421, contida no Projeto de Lei nº 6960/2002, já noticiada por Paulo Nalin (A Função Social do Contrato no Futuro Código Civil Brasileiro. Revista de Direito Privado. São Paulo. v.3. n. 12. p. 50-60) substituin-do a expressão ‘liberdade de contratar’ por ‘liberdade contratual’.

Tal proposta, talvez por desconhecimento do ilustre revisor acerca dessas nuances terminológicas, está assim recomendada à rejeição: “a mudança proposta não passa de um jogo de palavras que, ainda por cima, piora o texto, pois contrato não tem liberdade, quem tem liberdade é a pes-soa, cuja liberdade de contratar está vinculada à função social do contrato, imposta pelo ordenamento jurídico. Pela rejeição” (Parecer do Relator da

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Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, Depu-tado Vicente Arruda).

Espera-se que a técnica prevaleça.

C — A Função Social como Princípio

Obter uma aproximação conceitual da função social é tarefa árdua, o que transparece já de uma rápida leitura da produção doutrinária sobre o tema, que, de modo geral, se perde em meio a contradições e superposições.

Essa difi culdade em conseguir uma pronta defi nição deriva do que MARTINS-COSTA chamaria de uma “vagueza semântica”, que pode-ria levar à sua inclusão na categoria dos “conceitos jurídicos indetermi-nados”.

Mas ela é mais que isso, pois tal categoria é composta de termos que, não obstante sua imprecisão inicial, podem ser defi nidos através de uma simples operação hermenêutica (para maiores considerações, v. Capítulo IV, item III.J), o que não é o seu caso.

Somente será possível determinar se a ‘função social’ foi observada, no exame da situação concreta em que o contrato se insere. A determi-nação do seu signifi cado pode variar na razão da variação de sua aplica-ção prática, que, por sua vez irá envolver a referenciação a um interesse social, em grande parte não traduzível em linguagem jurídica.

Por isso que a função social constitui verdadeira cláusula geral, permi-tindo o infl uxo de compreensões colhidas da experiência meta-jurídica e não apenas no âmbito auto-referenciado do sistema de normas (Enun-ciado nº 22, Jornada de Direito Civil: “a função social do contrato prevista no art. 421 do novo Código Civil constitui cláusula geral, que reforça o prin-cípio da conservação do contrato, assegurando trocas justas e úteis”).

De outro lado, a difi culdade da conceituação é amenizada pela pre-sença do termo “função” que, por óbvio, já indica o caminho a trilhar.

Pois a função social (não à toa a sua denominação) carrega uma du-pla funcionalidade: (i) a imposição de um controle do atuar privado, com vistas a fi scalizar a observância de um interesse coletivo (função controladora); e (ii) a sinalização do processo hermenêutico para esse interesse. Quanto a esta última, já dizia o douto Carlos Gustavo Di-reito: “logo, cabe ao intérprete do contrato, seja o juiz, sejam as partes ou até mesmo o árbitro, estabelecer um limite de incidência à vontade dos contratantes, submetendo-a ao interesse público. Isto quer dizer que não basta para a interpretação dos contratos a simples busca das condições su-bentendidas das partes, faz-se necessário saber qual é o objetivo social deste instrumento, isto é, se interessa à coletividade a sua manutenção na forma

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em que está estabelecido entre os contratantes” (A Função Social do Con-trato. Adv. Advocacia Dinâmica. Seleções Jurídicas. v.10. p.43).

E são essas tarefas (de controle e de modelagem da interpretação), cumpridas não apenas no terreno da liberdade contratual, mas em toda a extensão do Direito dos Contratos, onde colocam em jogo os fi ns atribuídos ao negócio, que fi nalmente revelam o seu estatuto de prin-cípio.

Essa natureza se reafi rma na dimensão operacional dada à função so-cial (art. 2.035, Código Civil: nenhuma convenção prevalecerá se contra-riar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos).

Como princípio, a função social atua de forma a exigir, em face do exercício da liberdade contratual, a consideração das partes ou do intér-prete ao emprego socialmente desejado para o contrato.

Assim, tratando-se de contratos destinados à circulação de bens ou serviços tidos como vitais ou imprescindíveis para o desenvolvimento social, a função social pode servir para garantir a sua obtenção frente à invocação da liberdade de contratar para recusar a formação ou a continuação do negócio (e nisso reforça o princípio da preservação dos contratos, bastante presente no âmbito do CDC, (v. §2º, art. 51).

A essencialidade do bem posto em circulação pelo contrato é quali-fi cação que deriva de sua relevância no âmbito da comunidade em que se insere, não obstante possa, em boa parte dos casos, coincidir com o interesse individual daquele que se vê em confl ito com o modo pelo qual seu parceiro pretende se valer da liberdade contratual.”

SUGESTÕES:

Ler PEREIRA (2014), capítulo XLI; Ler THEODORO JR. (2003), ca-pítulos VI a X.

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AULA 4 — OBRIGATORIEDADE. RELATIVIDADE E ESTIPULAÇÃO A FAVOR DE TERCEIROS.

INSTRUÇÕES:

Ler NEGREIROS (2002), capítulos 4.2 e 4.3; ler acórdãos do STJ nos REsp nº 976.679/SP, AgRg no REsp nº 1.336.758/RS e REsp 249.008/RJ para discussão em sala.

SUGESTÕES:

Ler AZEVEDO (2009), parte I, capítulo 8.

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AULA 5 — BOA-FÉ

INSTRUÇÕES:

Ler acórdãos do STJ nos REsps nºs 1.417.641, 1.324.712, 1.342.899, 1.162.985, 1.202.514 e 1.230233 para discussão em sala.

SUGESTÕES:

Ler TEPEDINO (2005), capítulo 2; ler o texto abaixo, extraído de WER-NER (2007):

“(...) A BOA-FÉ OBJETIVA

A boa-fé, que já há muito se encontra positivada nas legislações eu-ropéias, especialmente nas alemã (§ 242 do “Bürgerliches Gesetzbuch” — BGB, sob a fórmula “Treu und Glauben”) e italiana (artigo 1.175 do Código Civil Italiano — “Buona fede”), impõe às partes um dever de lealdade, clareza, coerência, fi delidade e respeito, enfi m, a “correttezza” a que se refere Alberto Trabucchi (Istituzioni di Diritto Civile. 39ed. Padova: Cedam, 1999. p. 533-5).

O mandamento contrapõe-se à perfídia, à velhacaria, àquela atuação que fi cou consagrada no folclore popular como a “lei de Gérson”.

Se antes uma vil ‘esperteza’ nos negócios era vista como algo admirá-vel, como uma sagacidade a ser recompensada, depois da boa-fé só lhe resta a condenação pelo Direito. Este tomou para si, nesse particular, a função de reeducação dos indivíduos, deles exigindo uma conduta rigorosamente ética, dirigida a um ideal de mútua responsabilidade, genuinamente solidária em face de seu forte conteúdo de ‘alteridade’.

E esse magistério se professa através da boa-fé, que se constitui em instrumento de reformulação de todo o direito privado, agora que foi inserido em nosso Código Civil, através da disposição do artigo 422.

A boa-fé já fora prevista no sistema do Código de Defesa do Consu-midor, inspirando, aliás, toda a Política Nacional de Relações de Con-sumo (art. 4º, III, Lei nº 8.078/90) e grande parte do elenco de regras protetivas do consumidor, além do controle do equilíbrio contratual e outros ditos “princípios” (transparência, informação, confi ança), unin-do-os como uma poderosa argamassa.

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Em verdade é nela que se descobre a origem de diversos outros man-damentos espalhados pela legislação em geral e pelo Código de Defesa do Consumidor em particular e que permitem à jurisprudência estabe-lecer certos parâmetros de comportamento.

De fato, como princípio, a boa-fé é uma verdadeira norma de con-duta baseada no entendimento social objetivo e, por isso, permite que sejam trazidas ao mundo jurídico experiências de outras esferas sociais (que não apenas a jurídica); e autoriza que seja considerada no exame do contrato a interferência de outros fatores que não apenas a vontade das partes.

É a boa-fé que acaba “permitindo que integrem (a relação contratual) não apenas os fatores e circunstâncias que decorrem do modelo tipifi cado na lei ou os que nascem da declaração de vontade, mas, por igual, fatores extra-voluntarísticos, atinentes à concreção de princípios e standards de cunho social e constitucional” (MARTINS-COSTA. A Boa-Fé... p. 395).

A aplicação da boa-fé sempre funciona conectada com uma regra de conduta estabelecida socialmente, objetivamente, de forma que essa aplicação dependa de uma comparação do comportamento em ques-tão (adotado, a adotar ou meramente permitido (como através de uma cláusula, por exemplo)) com esse paradigma ou parâmetro.

Pois que embora tenha sido originalmente elaborada para o controle da atuação do devedor na relação obrigacional (§242 do BGB), a boa--fé teve seu conteúdo alargado para servir à inteligência do contrato em todas as suas manifestações.

Primordialmente, o controle da atuação da parte na relação obriga-cional dirigiu-se também ao credor.

Já em uma segunda fase, a boa-fé passou a ser aplicada para contro-lar e coibir o abuso do exercício de direitos em uma posição jurídica determinada, até que, num terceiro momento, ultrapassando o âmbito original de fundamento de controle de um atuar concreto, foi mais uma vez ampliada para servir ao controle das cláusulas contratuais ge-rais e à interpretação do conteúdo negocial.

Esse alargamento levou à identifi cação de três funções articuladas pela boa-fé e que se impõem às diversas fases do fenômeno contratual, sempre operando através do recurso ao paradigma objetivo de conduta.

Na função interpretativa, o exame do sentido a ser extraído do ne-gócio ou cláusula deve se dar tendo por base a leitura ou tradução que a sociedade legitimaria, ou seja, aquela que o conjunto virtual dessa sociedade obteria.

A boa-fé pode ser vista como uma tradutora universal da linguagem ou dos sinais que encerram essa vontade coletiva; linguagem que, ex-

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pressa em dialeto meta-jurídico, precisa ser convertida de modo a ser apropriada pelo ordenamento.

Na função criadora de deveres, o paradigma é colocado novamente como balizamento, mas desta vez para que se verifi que a sufi ciência do feixe de deveres legal ou voluntariamente previstos, de modo a determi-nar a necessidade de eventual complementação. Assim, outros deveres podem surgir para o efeito dessa complementação, deveres que objeti-vamente se exigiriam.

Uma expressão dessa função é a identifi cação de deveres de infor-mação e transparência, além de seus consectários, ou de deveres que assegurem que o contrato alcance sua fi nalidade principal: a satisfação dos interesses de ambas as partes. Nesse sentido, as decisões que têm re-conhecido o dever, por parte do fornecedor, de providenciar a baixa nos cadastros de restrição ao crédito após o pagamento de dívida em atraso.

Por fi m, no que diz respeito à função delimitadora do exercício de posições jurídicas ou de restrição ao exercício irregular de direitos, o paradigma é adotado para os fi ns de restringir a atuação do agente, evitando que ultrapasse as fronteiras do socialmente adequado ou que faça despertar a expectativa de que determinado comportamento irá corresponder àquela atuação.

Em outras palavras, na função delimitadora do exercício de posições jurídicas ou de restrição ao exercício irregular de direitos, a aplicação da boa-fé recorre ao paradigma de conduta estabelecido socialmente para considerar abusiva ou inadequada (ensejando o reconhecimento de responsabilidade ou vínculo) a atuação no mundo social que, por seu alarde, chama a atenção e desperta interesse por um comportamento respectivo, congruente, concernente, enfi m, costumeira ou logicamen-te conectado àquele atuar.

Não importa que seja uma atuação positiva ou negativa. É mesmo possível reconhecer a aplicação da boa-fé na fi xação de responsabilida-de daquele que adota atitude omissiva quando era esperado que tomas-se determinada iniciativa. Muitos dos casos em que tradicionalmente se identifi cou a operação da teoria da aparência podem se inserir nesta hipótese.”

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AULA 6 — CONSENSUALISMO E FORMAÇÃO DO CONTRATO NO DIREITO CIVIL E NO DIREITO DO CONSUMIDOR. FASES DA FORMAÇÃO DO CONTRATO.

INSTRUÇÕES:

Ler SILVA (2011), capítulo 3.

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AULA 7 — ARRAS. CONTRATO COM PESSOA A DECLARAR. CONTRATO PRELIMINAR. FORMA E PROVA. INTERPRETAÇÃO.

INSTRUÇÕES:

Ler PEREIRA (2014), capítulo XL; Ler Acórdãos dos REsps nº 1.224.921/PR 1.056.704/MA para discussão em sala.

SUGESTÕES:

Ler AZEVEDO (2000), Capítulo Terceiro, § 2º; ler TEPEDINO (2005), capítulo 20.

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AULA 8 — INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS

INSTRUÇÕES

Ler texto abaixo, extraído de WERNER (2007):

A INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS DE CONSUMO

O problema da interpretação dos contratos de consumo remete o estudioso a questões referentes à interpretação dos negócios em geral e dos contratos e às antigas discussões, que tanto apaixonaram os juristas do século XIX, envolvendo as teorias da vontade e da declaração (Wil-lenstheorie e Erklarungstheorie). Tais questões referem, por sua vez, ao tema da base do negócio jurídico: “l´una diretta a dare la prevalenza alla <<volontà reale>> del dichiarante cosí nell´interpretazione come nel giudizio sulla validità del negozio, l´altra, per contro, diretta a dare preva-lenza alla dichiarazione astrattamente considerata, cosí come si presentava al solo destinatario o nell´ambiente sociale” (BETTI. op.cit. p.333)

Muito se debateu sobre o fundamento desse instrumento de auto--determinação dos indivíduos, de modo a identifi cá-lo na vontade ou na declaração dessa vontade.

Historicamente, parece estar superada a idéia de que a base do ne-gócio jurídico é a vontade (aqui no sentido da intenção dirigida a de-terminados fi ns), o que retira da Willenstheorie muito do substrato teórico que a justifi caria.

Como se sabe, a Teoria da Vontade (“Willenstheorie”), que encontrou em Friedrich Karl von Savigny seu mais ardente divulgador, propunha a explicação do negócio jurídico e seus efeitos através da intenção do agente em criar, modifi car ou extinguir direitos e obrigações. Embora exigisse para a formação do negócio tanto a vontade interna quanto a declaração de vontade (assim GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 274-5), era aquela que impulsionava e determinava a direção das transformações que seriam instrumentalizadas pelo negócio, sendo a declaração mera forma de sinalização daquela intenção.

Por isso, havendo confl ito entre a intenção e a declaração, a primei-ra deveria prevalecer. Essa era a regra de interpretação que derivava da teoria: “a função da interpretação seria a determinação da vontade do autor do negócio. O objeto da interpretação seria assim a própria vontade real do sujeito, que se procuraria reconstituir” (ASCENSÃO. op.cit. v. II. p.155).

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A expressão radical dessa teoria foi de pronto rechaçada com a crí-tica já por todos conhecida: era um entrave à segurança das relações jurídicas ao permitir, em tese, que a funcionalidade de um negócio fos-se atacada por um agente que alegasse contrariedade às suas intenções subjetivas.

Pela Teoria da Declaração (“Erklarungstheorie”) procurou-se afastar essa ameaça reconhecendo-se na declaração a base estrutural do negó-cio, de modo que se erigiu, ao mesmo tempo, em fundamento dos seus efeitos jurídicos e ponto-de-partida para sua interpretação.

Passa a importar no exame do negócio não a vontade do autor da declaração, mas sim a expressão dessa vontade, ou seja, o que foi de-clarado.

Mas o enquadramento do negócio conforme a declaração, no âm-bito das relações interindividuais e especialmente no campo contra-tual, não poderia decorrer de modo automático, sem maiores consi-derações a um equilíbrio entre as posições de cada uma as partes. Por isso o abrandamento refl etido na teoria da confi ança, segundo a qual a declaração somente poderia se impor enquanto a outra parte fosse levada a nela confi ar, em um processo objetivamente chancelado (em comparação com a confi ança angariada por qualquer pessoa normal que se encontrasse na mesma situação), ou em outras palavras, em um processo legitimado pela boa-fé: “La teoria dell´affi damento addita tale giustifi cazione (a justifi cação e limite que componha o confl ito de interesses entre declarante e destinatário) e tale limite nella garanzia della legiti-ma aspettativa del destinatario: il quale deve secondo buona fede, poter fare affi damento sul signifi cato comune, usuale, oggetivo della dichirazio-ne univoca che gli perviene; il solo normalmente riconoscibile nel mondo sociale alla stregua, appunto, della buona fede” (BETTI. op.cit. p.336).

Certo é que nenhuma dessas teorias (vontade e declaração) foi ou é aplicada radicalmente.

Antonio Junqueira de Azevedo ensina que mesmo na França, onde a “onipotência da vontade ultrapassou o estágio da fi losófi ca pura para atin-gir o grau de verdadeiro princípio político, que, com a Revolução Francesa, se enriqueceu de uma signifi cação concreta e positiva, na medida em que o voluntarismo foi um instrumento de luta contra as antigas estruturas feu-dais e corporativas” (Negócio Jurídico — Existência, Validade e Efi cácia. 3ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p.74), a teoria da vontade não foi levada ao extremo.

Na Alemanha, onde o BGB se aproximou da teoria da declaração, também “houve concessões a ambas as teorias” (idem. p.75), como no caso do ato simulado.

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E nem poderia ser diferente, pois, “por mais respeitável que se afi gure o propósito de imprimir segurança às relações disciplinadas pelo Direito, nem por isso poder-se-á desconhecer a função fundamental dos elementos volitivos na formação e na efi cácia dos negócios” (RÁO. op.cit. p.170).

Mesmo assim, tende-se a reconhecer a prevalência da declaração so-bre a vontade: “admite-se o predomínio da declaração sobre a vontade em caso de confl ito” (idem).

Como diz Antonio Junqueira de Azevedo, “que na interpretação e avaliação das declarações e comportamentos não se deva parar na forma ex-terior ou literal da atitude alheia, mas se deva procurar a mens animadora ou o sentido nela objetivado, não signifi ca que mens e sentido se possam adivinhar, prescindindo da forma na qual se tornaram reconhecíveis” (op.cit. p.82).

É essa consideração ao querer do agente sem perder de vista os limi-tes necessariamente impostos por sua exteriorização que sempre presi-diu a interpretação dos negócios em nosso sistema e que ditou a correta extração do sentido da norma do artigo 85 do Código Civil de 1916 (art. 85. nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção do que ao sentido literal da linguagem).

Embora o preceito se refi ra à “intenção” do agente, esta não repor-taria à vontade interna, mas à vontade tal qual integrada na sua exte-riorozação.

Essa inteligência é mais facilmente obtida ao se tratar dos negócios bilaterais ou dos contratos. Na sua interpretação não se busca propria-mente a vontade real de cada parte, mas o consenso: “tem-se entendi-do que não se pode prescindir a investigação da vontade interna de cada parte, mas a verdade é que o fi m da disposição legal é obrigar o intérprete a verifi car o espírito do contrato, isto é, o seu signifi cado genuíno. Inter-pretação correta da regra hermenêutica estatuída no Código Civil para a interpretação dos negócios jurídicos em geral não pode admitir que a alusão à intenção de declaração de vontade seja, no contrato, a de cada declarante, pois a vontade singular de cada parte é sempre irrelevante para o fi m de interpretação do acordo” (GOMES. Introdução... op.cit. p.455).

O novo Código Civil corrigiu a imprecisão do antigo ao inserir na disposição antes contida no artigo 85 a menção a “intenção consubs-tanciada” (art.112: nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciadas do que ao sentido literal da linguagem), o que te-ria atendido aos reclames de Eduardo Espínola, citado por José Carlos Moreira Alves: “são precisamente o respeito à boa-fé e à confi ança dos interessados, e a consequente responsabilidade do autor que, no caso de intrepretação judicial do ato jurídico, mandam atender à intenção con-substanciada na declaração, ao invés de procurar o pensamento íntimo do

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declarante” (A Parte Geral do Projeto de Código Civil Brasileiro. 2ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p.108)

BETTI faz questão de ressaltar que, a depender do tipo do negócio, um ou outro tipo de interpretação pode se mostrar mais adequado, conforme a vontade ou a declaração: “è inoltre da tener presente che la questione interpretativa non si pone in termini uniformi per tutte le categorie di negozi” (op.cit. p.334). RÁO também se mostrou sensível a essas peculiaridades ao mencionar a teoria da declaração: “mas nem todos os sequazes dessa teoria a sustentam até suas conseqüências extremas, pois, em sua mor parte, ora a aplicam só às declarações entre vivos, ora aos contratos bilaterais tão somente” (op.cit. p.169).

Negócios “causa mortis”, por exemplo, devem ser em regra interpre-tados buscando a vontade do declarante.

I. — APLICAÇÃO DAS REGRAS HERMENÊUTICAS DOUTRI-NÁRIAS AOS CONTRATOS DE CONSUMO

Feitas algumas breves considerações sobre a doutrina que se volta para a interpretação dos negócios e contratos em geral, cabe examinar a eventual aplicação dessa doutrina aos contratos de consumo, cujas pe-culiaridades foram apontadas (ainda que não à saciedade) no decorrer deste trabalho.

Importa saber se as mesmas idéias que presidem a interpretação da-quelas fi guras podem ser utilizadas na análise dos contratos de con-sumo como itens de uma pauta genérica (ressalte-se, desde já, a regra própria do artigo 47 da Lei nº 8.078/90 que, contudo, não cobre todas as situações: até mesmo para que se faça a interpretação mais favorável, há que se determinar o leque de opções existente).

Afastada a noção (inspirada na teoria da vontade) de que o negócio jurídico tem por base a vontade (vontade interna ou real do agente) e estabelecida a preponderância da teoria da declaração, não se pode perder de vista que esta, não obstante seu posicionamento antagônico em relação àquela, foi-lhe historicamente ligada através da herança vo-luntarista (a teoria da declaração somente pode ser compreendida, em sua manifestação histórica, como uma reação à teoria da vontade, pois que veio apenas a substituir o foco da apreciação científi ca do fenôme-no negocial da vontade para a declaração dessa vontade: “afi rma-se, o que é decisivo não é a vontade do autor da declaração, mas aquilo que, a bom direito, como vontade aparece a quem a declaração se dirige” (RÁO. op.cit. p.169).

É dessa herança que o jurista deve se libertar ou apartar, buscando uma concepção atualizada do negócio, para que possa aproveitar de

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forma plena a construção da teoria da declaração na interpretação dos contratos de consumo.

E a doutrina caminha nesse sentido, movida por uma maior atenção dispensada às repercussões objetivas do negócio (até mesmo por força de sua massifi cação), tendendo a desvincular a declaração da vontade, que, cada vez mais, deixa de ser “declaração de vontade” para ser apenas “declaração” (Antonio Junqueira de Azevedo dedica boa parte de sua referida obra relatando e defendendo essa tendência).

Essa metodologia é que permitirá o correto tratamento do fenôme-no negocial no âmbito das relações de consumo. Basta lembrar que os contratos de consumo podem ser formados independentemente da vontade do fornecedor (ainda que não dispensem a vontade do consu-midor), o que certamente minimiza a relevância de inquirições sobre a vontade real.

Como visto (Capítulo III), o que importa para a formação dos con-tratos de consumo é a declaração realizada de modo que possa ser re-conhecida como vinculante pelo ordenamento. Este, na análise desse efeito vinculante manda desprezar por completo a intenção do forne-cedor-declarante e se concentra nos refl exos objetivos da declaração.

Aqui se encontram ecos da teoria da confi ança que, se em um pri-meiro momento serviu para atenuar o rigor da teoria da declaração em sua confi guração original, agora pode ser útil na fundamentação do controle e do exame dos efeitos dos contratos de consumo, desde que relacionada à boa-fé.

É o recurso à boa-fé, como base de comparação para a apreciação e valoração da confi ança despertada no declaratário, que permitirá que a interpretação deixe de se fundar em espaços subjetivos para se valer de elementos objetivos no trato dos negócios de consumo.

Se os contratos de consumo são, na sua maior parcela, negócios massifi cados, oponíveis a todo um universo de pessoas, uma apreciação de seus efeitos baseada no entendimento singular do consumidor indi-vidualmente considerado não seria, de modo algum, precisa.

É a observação das experiências coletivamente colhidas nesse espaço comum que irá fornecer os elementos necessários e sufi cientes para a correta análise dos efeitos a serem extraídos da declaração.

Afi nal, se em última análise é a interpretação que dita os efeitos a serem produzidos pelo negócio (“uma coisa é o sentido juridicamente relevante, outra o sentido que venha a ser o juridicamente decisivo, porque resultante da valoração total pela ordem jurídica do ato das partes (...) só dessa valoração total resultam afi nal os efeitos jurídicos a atribuir ao negócio (...) porque a ordem jurídica dá relevância aos negócios porque queridos, mas não se compromete quanto a uma correspondência total dos

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efeitos queridos e dos que são afi nal atribuídos” ASCENSÃO. op.cit. v. II. p.158), nada mais justo que esses efeitos sejam resultantes de uma experiência legitimada pelo corpo social e não fi quem sujeitos às in-constâncias do plano subjetivo.

E uma investigação conformada com a prática objetiva vem sendo acolhida pela doutrina da tradicional teoria da confi ança que, muito embora em sua concepção original protegesse tão somente a expectati-va ou confi ança do destinatário que foi diligente ao captar a declaração, aos poucos se afasta desse rigor subjetivo para fundar-se na boa-fé ob-jetiva: “nel diritto moderno si è maggiormente sentito che anche il creare delle apparenze o lasciare che esse si formino implica poi um rispetto per chi nella vita dei traffi ci neccessariamente si deve affi dare a ciò che appa-re credibile. La tutela dell’affi damento si basa specialmente sopra questa valutazione oggetiva delle situazioni, quando l’interessato abbia avuto motivi de credere alle apparenze” (TRABUCCHI, Alberto. Istituzioni di Dirito Civile. 39ed. Padova: CEDAM, 1999. p.195 — grifou-se).

É o que a faz aplicável nas relações de consumo, em que uma das partes se encontra em posição original de inferioridade, o que infl uen-cia na análise de sua expectativa e coloca a outra parte (o fornecedor) em situação de zelar para que evite expectativas frustráveis.

É possível dizer que se a teoria da confi ança, na sua elaboração tra-dicional, dependia quase que exclusivamente de uma ausência de má-fé para tornar a declaração vinculante, atualmente socorre-se, cada vez mais, para esse tanto, da boa-fé objetiva (“affi damento non vuol dire valore assoluto dell’apparenza, ma protezione della buona fede” — idem).

Por isso que a teoria se afasta cada vez mais das críticas feitas por Emilio Betti quanto à unilateralidade de sua justifi cação: “in quanto cioè considera e valuta il confl itto degli interessi fra dichiarante e desti-natario dal solo punto di vista di quest´ultimo” (op.cit. p.336): o ponto de vista não é propriamente o do destinatário, mas de um declaratário virtual, repositório de uma, por assim dizer, consciência coletiva.

De todo modo, a crítica não comprometeria a explicação da inter-pretação dos contratos de consumo, em que se pressupõe a vulnerabi-lidade de uma das partes. Não é o mesmo dizer que se está utilizando um critério que considera o ponto de vista do declaratário para chegar à interpretação da exteriorização do declarante se as partes estão em iguais condições (o que poderia parecer um privilégio) e dizer que se considera o ponto de vista do declaratário que se encontra em posição de inferioridade.

Aliás, é isso o que o legislador expressamente desejou ao determinar a interpretação mais favorável ao consumidor.

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Como se vê, a boa-fé ganha papel preponderante também no que se refere à interpretação. A bem da verdade, esse papel sempre corres-pondeu a uma de suas mais importantes funções, chamada de função “hermenêutico-integradora”.

Como as demais funções da boa-fé, opera com base em uma com-paração com um comportamento socialmente reconhecido como ade-quado para as partes numa situação como aquela do caso concreto.

No caso da interpretação, esse parâmetro é tomado para analisar a correspondência do programa contratual com o escopo coletivamente imaginado para um caso como aquele em exame. O intérprete, con-frontado com o conteúdo do contrato, deve buscar o sentido que me-lhor atenda os fi ns do negócio, conforme seria objetivamente conside-rado, a partir das circunstâncias concretas.

Assim, perdem relevância eventuais particularidades ou especifi ci-dades que decorram da condição subjetiva das partes: “torna-se claro, nesse entendimento, que o princípio da boa-fé na interpretação dos con-tratos é uma aplicação particular do princípio mais amplo da confi ança e auto-responsabilidade, segundo o qual deve reconhecer a validade de uma declaração negocial quem a emitiu por forma que o destinatário não possa, com a diligência ordinária, emprestar-lhe outro sentido, pouco importan-do o que o declarante quis realmente atribuir” (GOMES. Introdução... p.462-3 — grifou-se)

É tempo de frisar que a interpretação conforme a boa-fé, exata-mente por sua desvinculação dos planos subjetivos, não dependerá de uma provocação das partes diante do confl ito quanto à inteligência do programa contratual. Desde que o juiz seja chamado a apreciar uma questão decorrente do contrato, cuja solução dependa do alcance de uma norma contratual, este poderá ser objeto de comparação com o paradigma objetivo trazido pela boa-fé (“por esta deve ser compreendido, neste específi co campo funcional, o mandamento imposto ao juiz de não permitir que o contrato, como regulação objetiva, dotada de um específi co sentido, atinja fi nalidade oposta ou contrária àquela que, razoavelmente, á vista de seu escopo econômico-social, seria lícito esperar” — MARTINS--COSTA. A Boa-Fé...p.432).

Isto se aplica em especial no universo dos contratos de consumo, submetidos a normas de ordem pública e interesse social (artigo 1º da lei nº 8.078/90), dentre as quais a disposição do inciso III do artigo 4º, que impõe o recurso à boa-fé na apreciação de todas as relações entre fornecedores e consumidores. Porém, mesmo no âmbito das relações paritárias, a boa-fé será obrigatoriamente invocada. Lembre-se que o novo Código Civil brasileiro fez constar, em seu artigo 113, regra de-terminando expressamente tal invocação na operação hermenêutica.

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3 Ao julgar ação visando indenização

pela inscrição do nome do consumidor

de serviços bancários em cadastro res-

tritivo pelo alegado inadimplemento

da obrigação de pagar as prestações de

renegociação de dívida, o juiz descobre

que o pagamento seria feito através de

depósitos em uma conta aberta especí-

fi ca e exclusivamente para esse fi m; o

consumidor depositava o valor combi-

nado mas o banco fazia incidir na conta

cuja abertura ele mesmo determinou,

taxas e encargos não contratados, o

que era responsável pelo abatimento

da quantia depositada pelo cliente com

o fi to de pagar as prestações; as quan-

tias, com os débitos, se mostravam

insufi cientes para esse fi m e o consumi-

dor foi considerado inadimplente pelo

banco; embora nenhuma das partes in-

voque, para sustentar sua posição, uma

específi ca inteligência de determinada

cláusula contratual — até porque o

acordo não contém uma cláusula que

trate especifi camente de tarifas —,

o juiz pode interpretar o negócio de

forma a reconhecer a abertura de uma

conta corrente sem cobrança de encar-

gos e tarifas, até porque seu único fi m

era o de servir como instrumento do

pagamento e quitação das parcelas da

renegociação. O mesmo pode se dizer

daqueles casos em que a jurisprudência

utilizou o termo “cobertura completa”

inserido em cláusula de plano de saúde

para vedar determinada exclusão de

cobertura que estaria sendo aplicada

pela operadora.

A lição de Flávio Alves Martins o reforça: “a vigência do princípio da boa-fé não pode ser revogada pela vontade das partes. O respeito à au-tonomia pode ter sido um entendimento absoluto em outro tempo, porém, atualmente, o âmbito da autonomia está limitado por considerações de caráter geral, tais com princípios, normas, atuação jurisprudencial e outros (...) O Estado não pode proteger vontades contrárias às normas básicas de convivência nem a princípios dentre os quais se destaca a boa-fé” (A Boa--Fé Objetiva e Sua Formalização no Direito das Obrigações Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p.23).

II. — A INTERPRETAÇÃO MAIS FAVORÁVEL AO CONSUMI-DOR

Sem prejuízo da aplicação da boa-fé na tarefa hermenêutica, o legis-lador do CDC escolheu por assegurar que as normas de um contrato de consumo sejam munidas de um sentido mais favorável ao consumidor sempre que sua inteligência venha ser objeto de controvérsia.

Aqui se cuida, ao contrário da operação ordinária de análise do con-teúdo contratual, de uma apreciação detonada pelo surgimento de uma questão específi ca quanto ao sentido da norma. Se a regra da boa-fé pode servir ao exame do contrato de consumo mesmo que as partes não levantem controvérsia sobre o sentido de uma norma específi ca3, o mesmo não se dá com a regra do artigo 47 do CDC. Esta será aplica-da somente no caso de um confl ito expresso (levantado como questão necessária para o julgamento) entre a inteligência extraída pelo consu-midor e aquela extraída pelo fornecedor.

Há que se notar que, diversamente da regra que protege generica-mente o aderente em contratos de adesão (interpretação “contra-sti-pulatorem”, em nosso direito contida no artigo 423 do novo Código Civil), a regra do artigo 47 do CDC não depende de cláusulas prévia e unilateralmente estabelecidas. Sua operação se dá em toda e qualquer cláusula de contrato de consumo, seja ou não de adesão.

E aí se vê que o fundamento dessa disposição não pode ser o mes-mo que justifi ca a proteção contra o aderente, até porque a proteção ao aderente é amparada em bases distintas daquelas que sustentam a proteção ao consumidor (vide considerações sobre o fundamento do controle das cláusulas contratuais gerais e contratos de adesão).

A interpretação mais favorável é efeito da política legislativa de proteção ao consumidor, parte mais vulnerável (artigo 4º, I da lei nº 8.078/90) na relação com o fornecedor. É medida de fomento ao equi-líbrio efetivo de posições entre essas partes; em última análise, uma vantagem concedida ao consumidor sem justifi cação propriamente ju-

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rídica, mais ao estilo do velho “favor debitoris” (não pode ser vista como uma espécie de ônus pelo exercício de um monopolizado poder conformador, a exemplo do que se dá no caso das cláusulas gerais ou das cláusulas de contratos de adesão).

SUGESTÕES:

Ler MAXIMILIANO (1996), itens 407 a 438; ler BETTI (1994), capi-tolo sesto.

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AULA 9 — CLASSIFICAÇÃO. CONTRATOS CONSENSUAIS E REAIS. CONTRATOS BILATERAIS E UNILATERAIS

INSTRUÇÕES:

Ler AZEVEDO (2009), capítulo 11; PEREIRA (2014), capítulo XXXVIII, itens 190, 191 e 193.

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AULA 10 — CONTRATOS ONEROSOS E GRATUITOS. CONTRATOS COMUTATIVOS E ALEATÓRIOS.

INSTRUÇÕES:

Ler PEREIRA (2014), capítulo XXXVIII, itens 192 e 194; Ler Acórdão do REsp nº 1.155.200/DF para discussão e sala.

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AULA 11 — CONTRATOS SOLENES E NÃO SOLENES. CONTRATOS PRINCIPAIS E ACESSÓRIOS. CONTRATOS INSTANTÂNEOS E DE DURAÇÃO. CONTRATOS POR TEMPO DETERMINADO E POR TEMPO INDETERMINADO. CONTRATOS TÍPICOS/ATÍPICOS

INSTRUÇÕES:

Ler AZEVEDO (2009), capítulos 14 a 20.

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AULA 12 — CONTRATOS DE ADESÃO E CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS.

INSTRUÇÕES:

Ler NEGREIROS (2002), item 7.1; Ler o texto abaixo, extraído de WER-NER (2007):

Cláusulas Contratuais Gerais

Já por serem dirigidas a um destinatário indeterminado, não se po-deria querer assemelhar as cláusulas contratuais gerais (“ccg”) a uma proposta (superado em nossa doutrina o uso do termo “condições ge-rais de contrato”, é tempo de corrigir a terminologia, na esteira da lição de Joaquim de Sousa Ribeiro, pois “cláusulas gerais de contrato” já en-cerram termo de signifi cado próprio: “cláusulas gerais” (op.cit.)). São, no entanto, também destinadas a uma aceitação, Em princípio, bastará tal aceitação para que a vinculação de ambas as partes possa ser reco-nhecida e se regule conforme o programa contratual que estabeleçam).

A simples elaboração e disponibilização das “ccg” já pode confi gurar movimento de poder atrativo, com conseqüente conteúdo vinculante. Por isso o estudo com a fase do primeiro movimento. Na verdade, na estruturação atual dos contratos é o principal instrumento de manifes-tação da posição do fornecedor sobre o conteúdo da avença.

Ainda que alguns autores se utilizem do termo como sinônimo de “contrato de adesão”, ou pelo menos como fase necessária desse fenô-meno (“os contratos de adesão são a concretização das cláusulas contratuais gerais, que enquanto não aceitas pelo aderente são abstratas e estáticas...” — NÉRY JÚNIOR, Nelson. In Código Brasileiro de Defesa do Consu-midor — Comentado pelos Autores do Anteprojeto. 5ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998 p.361; ver também NOVAIS, Aline Ar-quette Leite. A Teoria Contratual e o Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT, 2001) é importante distinguir tais noções, sendo essa distinção o que permite o estudo da fi gura das “ccg” junto à fase do primeiro movimento.

Atualmente, tem-se reservado o termo “contrato de adesão” para designar a contratação alcançada através da aceitação por assinatura aposta em instrumento escrito (vide MARQUES, Contratos...), onde constem cláusulas pré-elaboradas e sujeitas a nenhuma ou quase ne-nhuma alteração (a Lei nº 8.078/90, na Seção III do Capítulo VI, ao

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estabelecer o controle dos ‘contratos de adesão’ por certo não se fi lia a essa restrição, pois vislumbra a possibilidade de contratos de adesão que não sejam escritos (§ 3º)). Menos mal: não fosse assim, o legislador es-taria negando a proteção aos consumidores que fi gurassem em contra-tos que, celebrados com base em “ccg”, não fossem instrumentalizados; um exemplo é a restrição à efi cácia das cláusulas resolutivas expressas: se o §2º do artigo 54 se limitasse aos contratos escritos, todos aqueles que decorressem de aceitação às “ccg” não estariam sujeitos a ele.

Essas cláusulas podem ter ou não um caráter genérico, isto é, podem ou não ter sido elaboradas com o propósito de regular, de forma geral, a relação contratual com destinatários indeterminados. Neste último caso, serão chamadas de “cláusulas contratuais gerais”.

Vê-se logo que, nesse universo, os contratos de adesão se caracteri-zam por sua forma instrumental e as cláusulas contratuais gerais por sua destinação (generalidade de destinatários).

Por isso pode haver contratos de adesão que não sejam contratos sob cláusulas contratuais gerais (note-se que nossa lei não insere na de-fi nição de contrato de adesão do artigo 54 do CDC a generalidade das cláusulas — “un contrat fait sur mesure peut également être imposé par une partir a l´autre” (FONTAINE. op.cit)) e contratos sob cláusulas contratuais gerais que não sejam contratos de adesão (e aí a doutrina lembra dos contratos que não são celebrados através de instrumento escrito, com a adesão a disposições pré-estabelecidas por meio de con-dutas sociais típicas, de teclados, de máquinas etc. — vide MARTINS--COSTA. A Boa-Fé... p.397 et seq.). Mas também pode haver contra-tos de adesão sob cláusulas contratuais gerais (o que se verifi ca, sem dúvida, na maior parte dos casos). Se as duas fi guras fossem represen-tadas por conjuntos, haveria uma área de interseção relacionada a esta última hipótese.

Esse entender (no sentido de que pode haver contratos de adesão sem “ccg”) é o mais adequado para a completa proteção do consumidor levando-se em conta o posicionamento do legislador do CDC. Este tratou apenas dos contratos de adesão e, a se pensar que estes teriam, igualando-se às “ccg”, um caráter de generalidade, não estariam sujei-tos a qualquer proteção os consumidores que contratassem aderindo a cláusulas previamente elaboradas dirigidas especifi camente aos seus casos particulares. A propósito, esse sistema acabou sendo adotado em Portugal, com a combinação do Dec-Lei nº 446/85 (que introduziu as regras comunitárias quanto às “ccg” no regime português); do Dec-Lei nº 220/95 (que introduziu, alterando, a Diretriz 93/13/CEE); e do Dec-Lei nº 249/99 (que estendeu a proteção da diretriz aos contratos individualizados em que uma das partes não possa infl uenciar na elabo-

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ração das cláusulas), com a diferença que não se restringe aos contratos de consumo. É o relato de José de Oliveira Ascensão (Direito Civil — Teoria Geral. v.III. Coimbra: Coimbra, 2002. p. 223-5)

Os contratos de adesão são sempre contratos; as “ccg” não. Por isso, o contrato de adesão não pode, ao contrário do que se dá com as “ccg”, ser estudado em correlação com a fase inicial da suscitação. O contrato de adesão tem sentido, numa análise comparativa entre as concepções clássica e renovada do fenômeno contratual, apenas em uma fase de conclusão. É a fi gura das cláusulas contratuais gerais que pode melhor servir no desenho de uma renovada fase inicial.

(...)

Contratos de Adesão

Por falar no artigo 54, é de se lembrar que o estudo dos contratos de adesão (considera-se aqui, diante da opção feita por nosso legislador, superada a discussão quanto à natureza contratual da fi gura) se enqua-dra dentro do estudo da fase de assimilação. Só há sentido tratar de contratos de adesão se há adesão a cláusulas pré-estabelecidas. Se não há adesão, não há assimilação e não há contrato. Não se justifi ca tratar de contratos de adesão em uma fase inicial em que é compreendido apenas o movimento de uma das partes; o contrato de adesão exige que se cuide de um movimento de iniciativa e de um movimento de reação a ele, com sua assimilação.

A adesão é precisamente uma das formas de assimilação, em verdade a mais comum.

Como visto, o contrato de adesão pode parecer mera fase de uma contratação baseada em “ccg”. Essa impressão, porém, não é verdadei-ra, ainda que desculpável pela recorrência de casos em que o é.

Se na maior parte das vezes o contrato de adesão refere-se a “ccg”, há casos em que a adesão se dá a cláusulas pré-estabelecidas mas sem caráter de generalidade. Já se viu que considerar esta última hipótese como contrato de adesão garante maior proteção ao consumidor (vide Capítulo III, item I.B.5).

De todo modo, salvo esse caráter de generalidade, o contrato de adesão e as “ccg” possuem elementos comuns e, por isso, seu controle funda-se nas mesmas premissas do controle sobre estas últimas (não se aplicando, por óbvio, a tese de RAISER quanto à concorrência com a ordem pública, nos casos em que não há generalidade).

Aquele que se vale de cláusulas pré-elaboradas, tolhe a autodetermi-nação da contra-parte e com ela a respectiva auto-responsabilidade pelo

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FGV DIREITO RIO 58

4 Foi em razão da força dessas cláusu-

las estabelecidas unilateralmente, que

se chegou a dizer que os contratos de

adesão trariam, ínsito, sempre um

vício permanente de consentimento,

reconhecível em uma espécie de coa-

ção sofrida pela parte mais forte (vide

Georges Ripert. La Règle Morale dans les

Obligations Civiles. Paris: LGDJ, 1949) ou

que teriam caráter normativo (Teoria

Normativista), ou seja, que se asseme-

lhariam a regras de direito objetivo (lei)

e que incidiriam quando o contratante

aderisse: “Para os normativistas, o mo-

mento de formação da relação jurídica

individual e concreta tem também sig-

nifi cado, porque constitui o pressuposto

de efi cácia do direito objetivo... e direta

como sucede com as demais, que inde-

pendem sabidamente de qualquer de-

claração de vontade dos destinatários”

(GOMES, Orlando. Contratos. 17ed. Rio

de Janeiro: Forense, 1997. p. 114). Por

aí se concluiu que o contrato de adesão

não seria contrato, mas verdadeiro ato

unilateral.

uso de sua liberdade, ensejando, conseqüentemente, maior carga de responsabilidade ao benefi ciário dessas cláusulas, obrigando-o a zelar não só por seus interesses mas também pelos do aderente (“o controlo do conteúdo a que as ccg estão sujeitas representa, pois, dogmaticamente, uma redução da auto-responsabilidade do aderente pelo conteúdo de estipulações que declarou aceitar (...) pelo que, em correspondência, a sua vinculação não deve ser total, não abrangendo as cláusulas que o prejudiquem excessi-vamente. E assim este paradigma explicativo consegue conciliar dois princí-pios que, à partida, se diria em oposição irredutível: a autonomia privada, com a correlativa auto-responsabilidade (...) e o controlo do conteúdo, que visa precisamente a salvaguarda de padrões mínimos de justiça contratual, tipicamente ameaçada no contexto negocial das ccg” — RIBEIRO. op.cit. p.289).

O contrato de adesão se caracteriza por ser composto de cláusulas e condições previamente redigidas ou estabelecidas (já se viu que deve ser afastada a generalidade dessas cláusulas para um conceito genérico de contrato de adesão que melhor satisfaça o interesse da parte vulne-rável). Tais cláusulas podem ser fruto: (a) de regulamento administra-tivo (consórcios); (b) da vontade de terceiro; (c) da própria parte pre-dominante. Retirada a generalidade, se caracterizariam por elementos comuns às “ccg”: (i) sua pré-determinação unilateral; e (ii) sua rigidez (que não precisa ser absoluta: a discussão de uma ou algumas cláusulas e sua inserção no esquema pré-redigido não descaracteriza a fi gura (é o que determina o § 1º do artigo 54 do CDC))4.

Já em um segundo momento, se caracteriza o contrato de adesão pela peculiaridade de sua formação (a adesão às cláusulas como ver-dadeira aceitação; foi essa adesão que permitiu o reconhecimento da natureza contratual da fi gura, sendo a doutrina hoje predominante aquela que aceita essa natureza; como diz Orlando Gomes, Georges Ripert foi uma das mais importantes vozes a ter-se levantado, em Fran-ça, contra os anticontratualistas, criticando a distinção que era feita entre consentimento e adesão; Ripert criticava a idéia de que nesses contratos sempre haveria uma espécie de vício de consentimento; na verdade, ele chegou mesmo a dizer que alguns contratos formados tra-dicionalmente eram mais propensos a perpetrar injustiças que os con-tratos de adesão, dada a sua regulamentação, fi scalização e ao número de contratantes que acabavam igualando as partes; foi ele que permitiu inaugurar a idéia de que os contratos de adesão eram contratos como outros quaisquer, cuja única diferença se mostrava na formação; é hoje é pacífi ca, como reporta Cláudia Lima Marques, a natureza contratual do contrato de adesão).

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É possível dizer que os cuidados a que são submetidos os contratos de adesão não se fundam na adesão, propriamente, mas no objeto dessa adesão. Ripert dizia não ser a desigualdade dos contratantes, por si só, que o torna objeto de críticas, mas o abuso que poderia provir dessa desigualdade (“Ce n’est pas parce qu’il n’est pas de nature contractuelle que le contrat d’adhesion est suspect, c’est au contraire parce qu’il est contrat” op.cit. p. 103).

Suas características são, portanto: (i) sua pré-determinação unilate-ral; (ii) sua rigidez; e (iii) seu modo de aceitação (adesão).

São elas que ensejam o controle a que estão submetidos, seja no esquema civil, seja no esquema consumerista.

No primeiro, contudo, restringe-se à imposição de cláusula que afaste direito fundamental inerente à natureza do contrato (artigo 424 do Código Civil).

No segundo, envolverá, no âmbito pátrio, não só a proteção espe-cífi ca do artigo 54 mas a proteção dispensada genericamente a todo e qualquer contrato de consumo (as regras dos artigo 46, e 51 não são destinadas apenas aos contratos de adesão, mas aos contratos baseados em “ccg” e aos eventuais contratos cujas cláusulas sejam discutidas en-tre o consumidor e o fornecedor).

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AULA 13 — CONTROLE. MECANISMOS DE PROTEÇÃO DAS PARTES. VÍCIOS REDIBITÓRIOS. VÍCIOS E DEFEITOS.

INSTRUÇÕES:

Ler AZEVEDO (2009), capítulo 9; Ler REsp 991.317/MG para discus-são em sala.

SUGESTÕES:

Ler SIMÃO (2003).

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AULA 14 — EVICÇÃO. EXCEÇÃO DE CONTRATO NÃO CUMPRIDO.

INSTRUÇÕES:

Ler REsp 973.165 e REsp 734520 para discussão em sala.

SUGESTÕES:

Ler AZEVEDO (2009), capítulo 10

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AULA 15 — INVIABILIDADE E EXTINÇÃO DOS CONTRATOS. CAUSAS ANTERIORES OU CONCOMITANTES À FORMAÇÃO DO CONTRATO. NULIDADE. ANULABILIDADE. LESÃO. ESTADO DE PERIGO

INSTRUÇÕES:

Ler AZEVEDO, itens 9 a 12; Ler REsp nº 1.155.200/DF para discussão em sala.

SUGESTÕES:

Ler PEREIRA (2001).

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AULA 16 — CAUSAS SUPERVENIENTES À FORMAÇÃO DO CONTRATO. IMPOSSIBILIDADE. ONEROSIDADE EXCESSIVA. REVISÃO DOS CONTRATOS NO CÓDIGO CIVIL E NO DIREITO DO CONSUMIDOR

INSTRUÇÕES:

Pesquisar e trazer para discussão o texto da Lei Francesa (Loi Failliot) de 21.01.1918; Ler o seguinte texto, extraído de WERNER (2007):

Onerosidade Excessiva

Antes de mais, é bom fi xar o uso da terminologia “onerosidade ex-cessiva” neste trabalho. Refere-se não só à teoria com esse nome, de origem italiana, mas também às teorias da imprevisão (francesa) ou da base do negócio (alemã) que, não obstante suas peculiaridades his-tórico-geográfi cas a impedir que sejam vistas como uma só, alcançam fi nalidade prática comum.

Todas elas, de uma forma ou de outra, enunciam a possibilidade de revisão judicial do contrato em razão de interferências críticas em seu equilíbrio, geradas por um evento posterior à sua formação, que não guarde relação com o atuar das partes e não tenha sido previsto.

Assim é que muitos autores, após introduzi-las, passam logo a reuni--las sob um estudo conjunto (v.g. MORAES, op.cit.; e DONNINI, Rogério Ferraz. A Revisão nos Contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1999).

Se o direito de Roma não cogitava dessa possibilidade de revisão por sua visão estreita e estanque das obrigações no “negotium contrac-tum”, o direito medieval esboçou sua primeira justifi cativa ao atentar, no exame da execução do contrato, às condições em que foi formado. A famosa glosa de Neratio (“contractus qui habent tractum successivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibus intelliguntur”), aplicada ao caso de restituição de esponsais, serviu com paradigma na apreciação dos contratos de duração.

Com a fomulação da teoria contratual fundada na vontade foi, porém, banida das codifi cações liberais e quase esquecida (a jurispru-dência francesa recusa-se a reconhecê-la desde que, em 1876, julgou a demanda de Valot contra as empresas Jamet (MAZEAUD et al. op.cit. p.865).

Por outro lado, um evento traumático ajudou a despertar a atenção adormecida. A I Guerra Mundial, causando inseperado impacto no valor da moeda, obrigou, em 21 de janeiro de 1918, à edição da Lei

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Failliot que: “permit au juge de résilier certains contrats conclus avant 1914, contrats dont l´exécution était devenue trop onéreuse pour le débi-teur. De même, la loi du 22 avril 1949 a autorisé les tribunaux à pronon-cer la résiliation des contrats conclus avant le 2 septembre 1939...” (idem. p. 861). A verdade é que a jurisprudência administrativa francesa já admitira a revisão desde 1916, limitada, contudo, aos contratos públi-cos, contribuindo, desde então, para que a doutrina paulatinamente a reconhecesse e incentivasse.

Paralelamente ao desenvolvimento francês, a doutrina alemã cons-truía seu próprio enfoque das situações de desequilíbrio na execução dos contratos com as contribuições de Bernard Windscheid e sua teoria da pressuposição, logo superada pelas noções de base do negócio de Paul Oertmann (subjetiva) e Karl Larenz (objetiva).

De um modo geral, as teorias acima referidas estabelecem os mes-mos requisitos condicionantes da revisão.

Em primeiro lugar, há que se cuidar de um contrato de duração (ou de trato sucessivo), aí incluídos aqueles que contenham prestações de execução instantânea, mas diferida, e aqueles que contenham presta-ções continuadas ou sucessivas.

Em segundo lugar, a execução de tais contratos deve ter sofrido a interferência de um evento imprevisível para as partes no momento de sua formação. Há que se lembrar que no regime do CDC, de acordo com a redação da segunda parte do inciso V do artigo 6º, a impre-visibilidade foi dispensada como pressuposto para a revisão, como já reconheceu a Ministra Nancy Andrighi por ocasião do julgamento do processo nº 2001/0003354-7, mas nos casos em que for exigida, “deve abarcar tanto as causas de desproporção não previsíveis, como também as causas previsíveis mas de resultados imprevisíveis”. Essa foi a conclusão reproduzida no Enunciado nº 17 da Jornada de Direito Civil.

Como terceiro requisito, esse evento imprevisível deve ter sido capaz de provocar uma crise grave do equilíbrio entre as prestações das par-tes, de modo a acarretar, para uma delas, uma oneração excessiva em relação ao momento da formação do contrato. A doutrina lembra que a todo contrato corresponde já uma álea natural, de modo que “um desequilíbrio de valor económico entre os dois termos da troca contratual combinados entre as partes, não justifi ca, de per si, uma reacção do orde-namento jurídico destinada a tutelar a parte atingida pela <<injusta>> proporção” (ROPPO. op.cit. p.259). A princípio, as desvantagens nego-ciais estão inseridas dentre os riscos da atividade escolhida.

Por fi m, a alteração não deve guardar relação com o atuar de qual-quer das partes, ou seja, não pode ser imputada a nenhuma delas, o que, de regra, se resolveria por meio das disposições sobre mora, inuti-

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lidade ou impossibilidade imputável ao devedor. A alteração, em suma, deve ser objetiva: “diferentemente da resolução por incuprimento, de base subjectiva, o fundamento objectivo que justifi ca a cessação do vínculo re-laciona-se com a alteração das circunstâncias, não pressupondo, portanto, o incumprimento de prestações contratuais” (MARTINEZ. op.cit. p.69). Isso pode ser aplicável ao sistema brasileiro, mas, no direito compa-rado, algumas legislações já admitiram, em uma aproximação com a disciplina da onerosidade excessiva, a suspensão da obrigatoriedade de alguns contratos de consumo. Assim se deu, por exemplo, na Bélgica, onde, segundo o relato de DOMONT-NAERT, a lei prevê a possibi-lidade de revisão nos contratos com consumidores em casos como os de doença, acidente, greve, fechamento da empresa e até o divórcio: “ce sont des préocupations d´ordre social — le souci de ne pas aggraver la situation des consommateurs qui ont à faire face à une diminution subite de leurs revenus — jointes aux inconvénients présentés par l´article 1244 du Code civil qui ont conduit le législateur à imaginer une procédure spé-ciale de suspension des engagements du débiteur em matiére de crédit à la consommation” (op.cit).

Muito ainda se discute sobre a fundamentação dessa prerrogativa de revisão, já identifi cada com a ausência de vontade, com a lesão, com o enriquecimento sem causa e até com uma inclusão implícita da cláu-sula “rebus”. Entende-se, porém, que a melhor explicação está ligada à boa-fé. Diante da alteração signifi cativa na economia do contrato, é contrário à boa-fé o comportamento da parte que se avantajou e exige o desempenho de uma prestação que se tornou excessivamente onerosa.

Embora a teoria da onerosidade excessiva tenha sido desenvolvida para chancelar a revisão, o certo é que seus fundamentos também fo-ram utilizados na justifi cação da resolução. A idéia é que o desequi-líbrio pode ser tamanho que não comporte a revisão. Para MARTI-NEZ, “teria de se verifi car se a manutenção do contrato põe em causa os princípios da boa-fé negocial (boa-fé objectiva). Este requisito encontra-se, de algum modo, relacionado com o anterior (dano), pois, para a sua ve-rifi cação, teria de se apurar se a subsistência do vínculo contratual seria demasido onerosa para a parte que invoca a alteração das circunstâncias a ponto de se aceitar a quebra no princípio da estabilidade dos contratos” (op.cit. p.154).

Daí o direito da parte prejudicada pela onerosidade de liberar-se do vínculo, pleiteando a resolução do contrato. É com essa função que veio a ser positivada em boa parte dos códigos. O artigo 478 do novo Código Civil, até porque inserido no capítulo referente à extinção dos contratos, reforçou essa fi nalidade, embora admita a manutenção do vínculo se a outra parte oferecer a correção (artigo 479).

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O sistema do Código de Defesa do Consumidor, contudo, não pode compactuar com uma tal solução, desde que adota o princípio da pre-servação dos contratos.

Tal princípio foi diversas vezes mencionado no curso deste trabalho e já é hora de lhe dedicar algumas palavras.

O princípio da preservação dos contratos, como a própria denomi-nação indica, insere na agenda do exame contratual a defesa da manu-tenção do respectivo vínculo, de forma que o juiz, ao defrontar-se com uma situação que lhe autorize a decretar o fi m da relação contratual, não o faça sem antes considerar a importância do contrato e de suas expressões meta-jurídicas para a comunidade onde opera.

Esse princípio volta-se para o interesse ultra-relacional, preterindo a conveniência meramente individual das partes em prol da preservação e seus benefícios sociais.

Assim é que, em última análise, pode ser visto como um corolário da função social do contrato, não na sua rotineira manifestação pré-con-tratual (compelindo ao vínculo), mas em manobra concomitante à ple-na execução do programa negocial, de modo a evitar seu abortamento.

Pois é lógico que o mesmo interesse que comanda a formação do vínculo, deseja sua manutenção.

Ainda que o CDC não contenha disposição expressa que submeta as relações de consumo a esse princípio, sua interpretação sistemática autoriza a aceitação desse comando. A conjugação da Política Nacional das Relações de Consumo (que objetiva a harmonização dessas rela-ções); a boa-fé; os direitos básicos do consumidor e os refl exos expressos nos artigos 6º, V e 51, § 2º do CDC, permitem seu reconhecimento.

Precisamente na consideração do desequilíbrio efetivo entre as pres-tações do consumidor e do fornecedor, o legislador reconhece como direito daquele a revisão e modifi cação das cláusulas que chancelem esse desequilíbrio, não a anulação ou resolução.

E mesmo nos casos de nulidade de uma disposição contratual, im-pede que todo o contrato seja contaminado, mantendo-se as demais disposições, a não ser que a cassação do dispositivo importe em ônus excessivo para qualquer das partes.

Por conta desses refl exos, não pode haver dúvida quanto à adoção do princípio no sistema do CDC.

Como se vê, na formulação do rol de direitos básicos do consumidor do artigo 6º, o legislador da Lei nº 8.078/90 estabeleceu a revisão das prestações tornadas excesivamente onerosas, não a resolução de todo o contrato.

É discutível, pois, que o consumidor possa pleitear, em lugar da revisão, a resolução.

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Não bastasse o inciso V do artigo 6º só falar em revisão, a exceção feita pela 2ª parte do §2º do artigo 51 do CDC quanto à preservação do contrato se refere à nulidade de cláusula abusiva. Ora, a onerosidade excessiva não se encerra na abusividade de uma cláusula e nem importa na nulidade da disposição (é uma eventualidade que atinge a relação posteriormente à sua formação e por isso sempre foi inserida, no que se refere às causas de extinção, em item classifi catório apartado).

Por não envolver vício de grave intensidade que, atingindo a estru-tura ou os elementos-base da disposição, aconselhe a cassação de todos os seus efeitos, a onerosidade excessiva não precisa ser relacionada obri-gatoriamente a um arrasamento completo desses efeitos.

A onerosidade excessiva da cláusula envolve uma desconformidade econômica das prestações das partes que não decorre de sua própria estrutura e formação e, assim, sua correção não necessita da retirada da cláusula do programa contratual, o que não acontece com a nulidade.

Ao impor tal subtração, com o fi to de corrigir uma irregularidade ou mesmo um desequilíbrio pontual, a nulidade pode acarretar um novo desequilíbrio, agora na economia do contrato como um todo, o que justifi ca, excepcionalmente, a sua integral invalidação (art. 51, §2º, 2ª parte).

Quanto à revisão, não se imagina hipótese em que possa resultar em descontrole da balança econômica do contrato já que, por seu conteú-do teleológico, é, por defi nição, dirigida à restauração de um equilíbrio perdido.

Enquanto se fala em fi nalidade, é possível reconhecer a divergência ou antagonismo entre a revisão e a nulidade. Se a revisão serve para res-taurar o equilíbrio econômico do contrato, a nulidade serve para retirar a disposição viciada do mundo jurídico, para que não o contamine.

Seguindo esse raciocínio, pode-se dizer que a resolução tem fi nalida-de ainda mais radical, pois visa não só a cláusula ou disposição mas ao contrato como um todo. Relaciona-se ao interesse da parte prejudica-da pelo evento descompensador em desligar-se do vínculo, mesmo se, com alguns ajustes, o programa puder continuar operando.

Ora, diante do prestígio concedido ao interesse meta-individual, que, como visto, sempre poderá ser atendido sem o prejuízo da eco-nomia individual (já que revisar é restaurar o equilíbrio objetivo), essa solução não pode prevalecer.

O próprio fundamento geralmente admitido para a justifi cação das teorias derivadas da cláusula “rebus sic stantibus” parece mais adequado à solução do desequilíbrio pela sua restauração (que é remédio direta-mente dirigido ao mal) do que pela resolução (que é mero instrumento — de efi cácia indireta — de equalização da economia da partes).

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A eqüidade, o princípio do equilíbrio objetivo das prestações e a boa-fé, normalmente apontados pela doutrina que se afasta do mero voluntarista para amparar tais teorias (ver o preciso relato de MORAES sobre a doutrina brasileira acerca do tema — op.cit. p. 87-161), com a consideração que dispensam à alteridade, melhor se conectam com a revisão, solução que sempre permitirá o respeito ao interesse da outra parte. Não assim a resolução, restrita ao interesse da parte inicialmente prejudicada pela onerosidade excessiva em livrar-se do contrato.

Aliás, esse respeito ao interesse da contra-parte parece ter presidido o comando do artigo 479 do novo Código Civil, sem falar no que dispõe o art. 317 que, se não encontraria lugar dentre as disposições sobre a resolução dos contratos por referir-se a uma obrigação isoladamente, não deixa de servir de modelo ao programa sinalagmático.

Onerosidade Excessiva e Lesão

No seu conceito objetivo — e original, constante da lei segunda — a lesão acabava englobando qualquer tipo de desequilíbrio entre as pres-tações, já que bastava para sua caracterização a desproporção existen-te entre as prestações das partes em um contrato. Nessa idéia, refl etia mais o dano, o prejuízo, o estrago causado ao patrimônio de alguém (o termo “lesão” é, na origem, “laesio”, “laedere”), sendo muitas vezes usado somente nesse sentido. Silvio Rodrigues e Darcy Bessone assim a entendem, valendo transcrever o conceito concebido pelo primeiro: “o prejuízo que um contratante experimenta quando, em contrato comuta-tivo, não recebe, da outra parte, valor igual ao da prestação que forneceu” (op.cit. v.3. p.216).

Daí a necessidade do esclarecimento de PEREIRA: “(...) bem pode acontecer que a desconformidade do ganho se prenda ao momento de sua formação, como venha a resultar de eventos futuros, que, alterando fun-damentalmente as condições das partes, proporcionem a uma delas maior lucro e levem à ruína a outra (...) Aqui temos uma categoria especial de lesão, não decorrente do contrato naquilo que diz respeito ao momento de sua formação (...) lesão superveniente...” (Lesão nos Contratos. Rio de Janeiro: Forense: 1999. p.109).

Dessa lição já se extrai uma primeira diferença, geralmente utilizada com sucesso na separação das fi guras. A desproporção envolvida na lesão é concomitante à formação do contrato, enquanto que o desequi-líbrio decorrente da onerosidade excessiva é posterior a ele, ocorrendo na fase de execução do contrato.

A essa diferença LE GAC-PECH soma mais uma: a medida de res-tauração do equilíbrio quebrado. Na lesão, há oportunidade para uma

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reformulação do balanço contratual enquanto que na onerosidade ex-cessiva a intervenção se restringe a restabelecer o equilíbrio original (do momentio da formação): “alors que le système mis en place pour combat-tre la lésion tend à instaurer un nouvel equilibre entre les prestations des parties, celui imagine em cas d´imprévision ne serait que la copie conforme de l´équilibre initial (...) le premier equilibre est construit, le second recons-truit” (op.cit. p. 344).

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AULA 17 — IMPOSSIBILIDADE COM CULPA. CLÁUSULA RESOLUTIVA. RESOLUÇÃO LEGAL E RESOLUÇÃO NEGOCIAL. A RESOLUÇÃO NEGOCIAL NO DIREITO DO CONSUMIDOR

INSTRUÇÕES:

Ler REsp nº 734.520/MG; Ler REsp nº 1.337.902/BA

SUGESTÕES:

Ler ASSIS (1999)

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AULA 18 — VONTADE. DISTRATO. RESILIÇÃO UNILATERAL. RESILIÇÃO E ABUSO DE DIREITO

INSTRUÇÕES:

Ler acórdão do REsp nº 1.400.779/SP para discussão em sala.

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AULA 19 — CONTRATO DE COMPRA E VENDA

INSTRUÇÕES:

Aula reservada a trabalho de grupo para fi ns de avaliação

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AULA 20 — CLÁUSULAS ESPECIAIS DO CONTRATO DE COMPRA E VENDA. PERMUTA

INSTRUÇÕES:

Aula reservada a trabalho de grupo para fi ns de avaliação

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AULA 21 — CONTRATO DE DOAÇÃO

INSTRUÇÕES:

Aula reservada a trabalho de grupo para fi ns de avaliação

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AULA 22 — CONTRATO DE DEPÓSITO

INSTRUÇÕES:

Aula reservada a trabalho de grupo para fi ns de avaliação

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AULA 23 — CONTRATO DE MÚTUO

INSTRUÇÕES:

Aula reservada a trabalho de grupo para fi ns de avaliação

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AULA 24 — CONTRATO DE SEGURO

INSTRUÇÕES:

Aula reservada a trabalho de grupo para fi ns de avaliação

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AULA 25 — CONTRATO DE PLANO DE SAÚDE

INSTRUÇÕES:

Aula reservada a trabalho de grupo para fi ns de avaliação

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II – RESUMO DOS TEMAS

INTRODUÇÃO

Antes de iniciarmos o estudo dos contratos, é interessante que nos in-daguemos acerca da noção que originariamente temos do termo contrato. Sobre o que pensamos quando falamos de contrato?

Podemos pensar: (i) no papel, no conjunto de disposições, de cláusulas ou artigos escritos; (ii) na combinação, no acerto, na negociação para regular in-teresses comuns através da criação de direitos e obrigações; ou (iii) na relação, no relacionamento entre as partes que surge dessa combinação.

Devemos deixar claro que o contrato não pode ser associado àquela pri-meira impressão. O escrito, o papel, quando muito é instrumento do con-trato, ou seja, tão somente uma das formas pela qual a vontade das partes se materializou, se exteriorizou. Um contrato pode mesmo ser verbal, sem que a ele esteja associado qualquer instrumento.

O contrato é, na verdade, acordo, consenso. Na idéia canônica: “contractus est duorum vel plurium in idem placitum consensus” (é o consentimento de dois ou mais no mesmo lugar; vontades que se encontram).

Mas não se pode deixar de reconhecer que esse acordo, esse consenso, gera uma série de obrigações e direitos entre aqueles que o celebram e daí também se falar em contrato como toda a relação, como o conjunto de relações jurí-dicas que deriva do consenso.

Aliás, Judith Martins-Costa menciona que para os romanos, o contrato “era visualizado como um vínculo objetivo, mais propriamente servindo para designar as conseqüências do acordo, vale dizer, a vinculação obrigacional daí decorrente, e não como a manifestação de vontades opostas e convergentes ou a expressão da liberdade e autodeterminação individual: nada mais distante, por-tanto, da concepção subjetiva ou voluntarista acolhida no primeiro código mo-derno, o Code Napoléon, ao qual subjazia o brocardo ‘qui dit contractuel dit juste’, com a força de uma verdade indiscutível, colocado aí, em primeiro plano, o aspecto subjetivo do indivíduo” (Crise e Modifi cação da Idéia de Contrato no Direito Brasileiro, Revista Direito do Consumidor, Ed. RT, v. 3, p.127-154).

Acordo, encontro de vontades, consentimento, consenso.Vontade: essa é em verdade uma palavra chave no entendimento da teoria

dos contratos.Porquê esse destaque dado à vontade? Porquê o contrato é entendido

como encontro de vontades? O que faz essa vontade (ou vontades)? Qual o papel que ela desempenha?

Na verdade, a vontade tem papel relevante na teoria contratual pois a ela é reco-nhecido o poder de criação, modifi cação e extinção de relações jurídicas/direitos.

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5 Renato José de Moraes (“Cláusula Re-

bus Sic Stantibus”, p. 2) chama a aten-

ção para a impropriedade na referência

geralmente feita a essa teoria como

“teoria clássica dos contratos” pelo fato

de ter se desenvolvido na Idade Moder-

na e não na Antiguidade Clássica.

Essa idéia foi consolidada por volta dos séculos XVII e XVIII, quando se formulou a teoria tradicional dos contratos5, infl uenciada essa formulação por idéias fi losófi cas prevalentes na época que consideravam a vontade do indivíduo como o motor do mundo.

E se vontade é a vontade do indivíduo, a ele se permite a auto-regulação de interesses. Se pela sua vontade o indivíduo pode criar, modifi car e extin-guir relações jurídicas é porque a ele é dada certa autonomia no âmbito do ordenamento jurídico.

E para continuar o estudo dos contratos é preciso que dominemos a no-ção de autonomia privada ou autonomia da vontade como ainda preferem alguns.

Segundo Orlando Gomes, a autonomia privada é a “esfera de liberdade da pessoa que lhe é reservada para o exercício dos direitos e a formação das relações jurídicas do seu interesse ou conveniência”.

É o reconhecimento do poder da vontade para o uso, gozo e disposição dos direitos (exercício dos direitos) e para a criação, modifi cação ou extinção das relações jurídicas.

É, em suma, o poder de autodeterminação de uma pessoa.Autonomia = auto (próprio) + nomos (norma/regra) = auto-regulaçãoEu estou dizendo isso porque não só aos fatos que encontram previsão

expressa no ordenamento é reconhecida a função de geradores desses efeitos.Toda e qualquer ordem jurídica, de qualquer país que seja, em maior ou

menor grau, concede a seus súditos um espaço livre de imposições, de nor-mas imperativas, em que é reconhecida (e portanto tutelada) a possibilidade ou o poder do indivíduo para gerar efeitos específi cos por meio de determi-nados atos.

Lembrem-se da distinção entre normas imperativas de conduta, que obri-gam a determinado comportamento (jus cogens — imperativas e proibitivas), e as normas dispositivas, que deixam à vontade da parte a possibilidade ou não de sua aplicação (jus dispositivum).

As relações humanas não vêm com programação fornecida pela norma jurídica.

Os homens não podem ter toda sua vida regulada pelo Direito, o que nem mesmo se mostraria possível.

Há um campo aberto para que eles possam agir da forma que melhor lhes aprouver.

E é nesse campo que vivem os negócios jurídicos, nos quais se insere o contrato.

Segundo Orlando Gomes, o “negócio jurídico é o instrumento próprio de circulação dos direitos, isto é, de modifi cação intencional das relações jurídicas”.

E ele quer dizer com isso que é através do negócio jurídico que os homens vão movimentar seus direitos, adquirindo-os, desfazendo-se deles e transfe-

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rindo-os para outros. Não fosse pelo negócio jurídico, os homens só pode-riam fazer aquilo que estivesse previsto na lei, aquilo cujos efeitos já estariam previstos na lei, sendo quase como autômatos.

Orlando Gomes ainda diz: “se a autonomia privada é o poder de autodeter-minação, o negócio jurídico é o instrumento através do qual o poder de autode-terminação se concretiza”.

Poderíamos dizer que o negócio jurídico é o instrumento para a auto--regulamentação dos interesses privados.

O contrato nada mais é que um negócio jurídico (bilateral sempre) e que, por isso, é um instrumento através do qual os indivíduos podem fazer ex-pressar suas vontades e determinar os efeitos que querem produzir, ou seja, determinar qual a criação, modifi cação ou extinção de relações jurídicas que desejam.

E é a vontade (do indivíduo) que, em última análise, gera esses efeitos.O contrato é fonte de obrigações. A geração de obrigações é a principal

função reconhecida no contrato e, por isso, ele se situa dentre as fontes das obrigações no sistema dos Códigos.

E é a vontade que gera essas obrigações.Hoje em dia é até intuitivo que liguemos o contrato ao consenso.Mas nem sempre foi assim.

O PAPEL DA VONTADE NA TEORIA GERAL DOS CONTRATOS

Papel Inexistente ou Secundário:

Na época de Roma, o papel da vontade era inexistente, pelo menos secun-dário. Era o vínculo entre duas pessoas que gerava obrigações, não a vontade em si.

Os romanos tinham um grande senso de comunidade, arraigado desde os primórdios de sua história na luta contra os demais povos dos lácio e da península dos apeninos. Por isso, entendiam que a validade dos atos da cida-dania dependia da publicidade, do conhecimento geral. Era essa publicidade que legitimava o status do cidadão, do pai de família, do proprietário, do credor.

Assim, pouco importava a vontade das partes em um negócio qualquer, mas a ritualidade de sua consagração, de sua exteriorização pública. Esta, sim, era vista como a matriz dos efeitos e a causa do vínculo que se formava. A solenidade tinha suma importância.

Os romanos não admitiam que o mero consenso pudesse alterar uma situ-ação jurídica, enfi m, que pudesse criar, modifi car ou extinguir direitos. Para tanto, o Direito de Roma só admitia uma solenidade pública e presenciada

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por todos os membros da cidade, como uma troca de símbolos (no inglês: “tokens”), uma entrega ou um pacto de sangue.

Mesmo o empréstimo, o mútuo, não era visto como uma conseqüência da vontade. O que prevalecia, na fi gura que se chamou de nexum, era a vincu-lação que surgia entre aquele que emprestava e aquele que tomava o emprés-timo, um verdadeiro liame de natureza pessoal que colocava o devedor, seu corpo e sua liberdade, à mercê do credor.

Essa idéia de certa forma se confi rma na constatação de que os romanos, embora tenham elaborado a primorosa obra técnica que foi a teoria das obri-gações, pouco tenham se importado com as suas fontes.

Existia ainda a fi gura da sponsio que consistia em um juramento perante os símbolos da religião da cidade, as divindades, de realização de um benefício em favor de alguém. Sua quebra, porém, não tinha consequências jurídicas, apenas religiosas. Da sponsio nascia vínculo entre o prestador do juramento e a divindade. O benefi ciário não tinha como fazê-la cumprir. Dela, contudo, posteriormente derivou a stipulatio em que já se admitia a ação do credor pela quebra do juramento.

Desenvolvimento da Importância:

Somente com o desenvolvimento da cidade e das transações comerciais, sempre avessas aos formalismos, é que surgiram quatro fi guras que obriga-vam por si sós, independentemente de solenidade: eram a venda, a locação, a sociedade e o mandato. Eram chamadas de pacta. Os demais contratos ainda exigiam as solenidades.

De todo modo, essa foi a primeira brecha que se abriu no formalismo dos contratos, o que permitiu que os canonistas, que eram os intérpretes e elaboradores dos cânones do Direito da Igreja (Direito Canônico) passassem a entender, sob a inspiração da idéia espiritualista cristã, que a quebra de um compromisso fi rmado era um atentado à verdade, era um pecado, uma mentira, uma fraude.

A própria palavra, o assentimento dado, por isso, passava a ter, por si só, força vinculante, contribuindo para que se afastasse a importância das for-malidades.

Segundo se infere de Ripert, contudo, a evolução do Direito Canônico não levaria ao absolutismo da vontade que caracterizou a teoria clássica dos contratos. A aplicação da ética cristã aos preceitos da lei talvez não permitisse as aberrações que se verifi caram no auge do primado liberal.

A revitalização do direito romano na idade média tardia, com os glosado-res e comentadores, de certa forma interrompeu o processo de moralização do direito e ensejou o retorno da técnica estrita:

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“Peut-être même, si l´on faisait une compte exact de ce que nous devons sur ce point au droit romain, faudrait-il, tout em reconaissant les services que nous a rendu sa savante technique, lui imputer une conception trop rigide de la théorie de l´obligation. Il est possible que la renaissance romaine ait arrêté les canonistes dans l´elaboration d´une conception plus souple du contrat et de la responsabilité civile” (Geoges Ripert, La Régle Morale Dans les Obligations Civiles, LGDJ, 1949, p.33).

E a importância do simples compromisso, do mero consenso na geração dos efeitos obrigacionais ganhou força com o advento do humanismo e do renascimento (e em boa parte da reforma e de seu contrapeso, a contra-re-forma), na medida em que promoveram o indivíduo, ressaltando seu papel no mundo.

De acordo com o ideal humanista, nada poderia derivar senão do homem, senão do indivíduo e, portanto, sua vontade individual, seu livre arbítrio, era o motor do mundo. Nada estaria legitimado se não contasse com seu aval. E ao indivíduo foi dada a supremacia no ordenamento das coisas, que ele co-mandava a partir de sua vontade, abrindo espaço para a propagação do con-sensualismo (“solu consensus obligat”). Ressuscitou-se o lema de Protágoras: “o homem é a medida de todas as coisas”.

E isso é até compreensível quando se toma tais movimentos como parte de uma reação (em típica visão dialética), tendo em conta que na Idade Média a sociedade era dividia em grupos, em castas (guildas, mercadores, corpora-ções de ofícios, nobreza, vassalos, Igreja) e somente eles tinham importância. Somente aos grupos era dada consideração. Fora deles, o indivíduo não era nada.

R.C. van Caenegem resume bem as principais causas da crítica ao antigo regime, colocando em destaque essas desigualdades: “em primeiro lugar, na desigualdade diante da lei, que era mantida pelo sistema político dos “Estados” com seus privilégios fi scais para as ordens da nobreza e do clero e o acesso limitado ao cargo público” (Uma Introdução Histórica ao Direito Privado; 2 ed.; Mar-tins Fontes: São Paulo; 2000, p.162).

Elevação a Dogma:

E de fato o antigo regime acabou caindo por completo com a Revolução Francesa de 1789, que bem representa sua deposição. Se o renascimento, o humanismo e a reforma foram a reação à Idade Média no campo das artes e do pensamento, a Revolução Francesa o foi no campo político-institucional. Foi a aplicação prática da supremacia individual sobre as antigas instituições corporativas, ainda que capitaneada por uma peculiar parcela de cidadãos: a burguesia. Como se dá com toda reação vitoriosa, o indivíduo, que passou

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a ser então a única medida do mundo, foi considerado acima de tudo e de todos os grupos. Só ele agora importava. Tudo deveria nele se legitimar. E em sua vontade. Os contratos não precisavam de mais nada para criar efeitos, para criar obrigações. Bastava a vontade, o consenso de dois indivíduos.

Note-se que tudo passou a se explicar com base na vontade, até as organi-zações sociais (os Estados e os governos somente se constituíam por força da vontade de seus súditos, melhor dizendo, através do consenso de seus súditos: e a noção moderna de contrato, de tão natural que passou a ser considerada passou para além do Direito; e se falou em “contrato social”).

“La doctrine de droit naturel enseignât la superiorité du contrat en fondant la societé même sur le contrat” (Georges Ripert, La Régle Morale dans les Obli-gations Civiles, LGJD, 1949, p.37).

E a legitimação da vontade, do consenso, enfi m, do contrato, como fonte de obrigações, se tornou plena no momento em que os indivíduos passaram a ser tomados por iguais. E iguais não só em sua condição, mas em sua liber-dade.

Todos sabem que a Revolução Francesa foi o marco da superação política do Antigo Regime que ainda dividia a sociedade em estratos, com privilégios para alguns grupos e a discriminação de outros. A Revolução foi a reação da burguesia à perpetuação dessa condição medieval nas instituições políticas (“pas des diferences”, “pas des priviléges”) e suas conseqüências mais imediatas foram o fi m das diferenças, a garantia da igualdade de tratamento a todos os indivíduos (“egalité”) e o levantamento das restrições impostas aos cidadãos comuns (“liberté”). Não é à toa que liberdade e igualdade tenham sido os dois primeiros brados do lema revolucionário.

Foi precisamente a partir desse ponto, assegurada a liberdade para a reali-zação dos interesses econômicos da burguesia, aliada à igualdade presumida de condições entre os indivíduos, que pode fl orescer a idéia, transformada em dogma, da autonomia da vontade, ou seja, o dogma da liberdade incondicio-nada do indivíduo para situar-se como bem lhe aprouvesse perante o mundo.

E as fi losofi as da época legitimaram essa condição ao conceber a conclu-são lógica da fusão entre essas então premissas básicas da sociedade: se todos os homens são livres e todos os homens são iguais; e se cada um tem na sua vontade o poder de legitimar o mundo, somente na vontade de outrem en-contram restrição.

Fixou-se o limite da vontade individual: outra vontade individual.E vinha fácil a conclusão: se as vontades se unem, o poder por elas criado

é logicamente maior que a vontade de um só e, portanto, a ela apenas não pode sucumbir.

Aí está o fundamento da obrigatoriedade, verdadeiro mandamento da éti-ca contratualista liberal.

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E aí se fundem em uma só as justifi cativas do consensualismo (basta o consenso para obrigar) e da obrigatoriedade dos contratos.

Com a escola do Direito Natural, sob os princípios do individualismo e racionalismo então dominantes, consolidou-se fi nalmente a idéia de que o “fundamento racional do nascimento das obrigações se encontrava na vontade livre dos contratantes” (Orlando Gomes) e que, portanto, no caso específi co dos contratos, era o consentimento (o acordo de vontades livres) que bastava para obrigar.

“Quand quelqu´un décide quelque chose à l´égard d´un autre, dira Kant, il est toujours possible qu´il lui fasse quelque injustice, mais toute injustice est impossible quand il décide pour lui même” (Georges Ripert, La Régle Morale dans les Obligations Civiles, LGJD, 1949, p.38).

E um trecho da obra de José Renato de Moraes resume a ética contratu-alista:

“Nessa visão clássica, o contrato é sempre justo, pois seu conteúdo é o resultado da livre (liberdade) manifestação de vontade (vontade) dos próprios contratantes (que eram iguais). O equilíbrio entre as prestações das partes é de se presumir. Portanto, a única coisa que necessita ser examinada é se as partes exprimiram seu consentimento de maneira livre e consciente... A lei não intervém no processo se-não para garantir a concretização do que as vontades dos contratantes, de manei-ra livre e consciente, determinaram” (Cláusula Rebus Sic Stantibus, p. 9-10).

A partir de sua igualdade e de sua liberdade, os indivíduos poderiam di-rigir suas vontades no sentido que quisessem, relacionar-se com o mundo como e quando desejassem e criar, modifi car e extinguir as relações jurídicas que preferissem.

PRINCÍPIOS DA TEORIA GERAL DOS CONTRATOS

E de tudo o que se disse até agora, extraímos os primeiros princípios que regem toda a teoria dos contratos:

1) Consensualismo

Os contratos formam-se tão somente pela vontade, ou melhor, pelo acor-do de vontades, o consenso.

“Não é preciso haver qualquer início de execução da prestação, forma, sinal, ou causa para que o contrato seja efi caz entre as partes: é sufi ciente o acordo de vontades despido, o chamado nudum pactum” (Renato José de Moraes; Cláu-sula Rebus Sic Stantibus, p. 6-7).

“Solu consensus obligat”.

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2) Autonomia da vontade:

Supondo que as partes são livres em sua vontade e que são iguais, colo-cadas em um mesmo plano, podem regular seus interesses da maneira que quiserem.

A autonomia da vontade é a liberdade de contratar que se divide em:Liberdade de Contratar propriamente dita: consenso de vontades na auto-

regulação dos interesses privados, o poder conferido às partes abstratamente de produzir os efeitos que quiser; e

Liberdade Contratual: liberdade de estipular o contrato e determinar seu conteúdo. Afi nal, se as partes são livres e iguais, elas em conjunto podem estipular o que bem quiserem.

“Com base nesta, afi rmava-se que a conclusão dos contratos, de qualquer con-trato, devia ser uma operação absolutamente livre para os contraentes interessa-dos: deviam ser estes, na sua soberania individual de juízo e de escolha, a decidir se estipular um certo contrato, a estabelecer se conclui-lo com esta ou aquela con-traparte, a determinar com plena autonomia seu conteúdo, inserindo-lhe estas ou aquelas cláusulas, convencionando este ou aquele preço” (Enzo Roppo, p. 32).

“Liberdade de contratar e igualdade formal das partes eram portanto os pilares — que se completavam reciprocamente — sobre os quais se formava a asserção peremptória segundo a qual dizer “contratual” equivale a dizer “justo” (“qui dit contractuel dit juste”)” (Fuillé, após Kant, cit. em Enzo Roppo, p. 35).

Esse princípio encontra origem, segundo se conta, no voluntarismo, dou-trina fi losófi ca defendida por Boécio e desenvolvida por Duns Scotus e Gui-lherme de Ockham, segundo a qual a vontade (o querer) era o motor das ações e não a razão ou conhecimento (Dicionário Oxford de Filosofi a; Dicio-nário de Obras Filosófi cas). Embora Scotus e Ockham tenham elaborado a doutrina para referir-se às ações e prescrições de Deus, acabou sendo aplicada na explicação das ações humanas:

“...quando a secularização e o laicismo tirarem a idéia de um querer divino que justifi que a bondade das coisas e sirva de parâmetro para descobrir o bem e o mal, a base da conduta humana será apenas o consenso voluntário das pessoas, que decidirão, por meio da lei e do contrato, o que é bom ou ruim, sem preci-sarem fazer qualquer referência à natureza das coisas. Tendo sido algo querido, ele é bom para as partes e não há critério objetivo, externo à vontade das partes, que possa ser utilizado para contestar o conteúdo do querer. Aí está totalmente desenhado o voluntarismo, tão fundamental para explicar a noção clássica do contrato” (Renato José de Moraes, p.6).

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3) Força obrigatória

Enuncia que já que as partes livremente com sua vontade aceitaram o con-trato, livremente se vincularam, também livre e voluntariamente restringiram sua liberdade, pelo que não haveria razão para não cumprirem o acordo.

Essa era a verdadeira ética contida em todo o sistema e por isso tão arrai-gada:

“Cada um é absolutamente livre de comprometer-se ou não, mas, uma vez que se comprometa, fi ca ligado de modo irrevogável à palavra dada: “pacta sunt ser-vanda”. Um princípio que, além da indiscutível substância ética, apresenta tam-bém um relevante signifi cado econômico: o respeito rigoroso pelos compromissos assumidos é, de facto, condição para que as trocas e outras operações de circulação da riqueza se desenvolvam de modo correto e efi ciente segundo a lógica que lhes é própria, para que não se frustrem as previsões e os cálculos dos operadores” (Enzo Roppo, p. 34).

Mas ninguém pode impedir que um contratante, por arrependimento, ou por qualquer outra razão, deixe de cumprir o avençado, pelo que a simples vontade na ocasião da pactuação não vincula. O contrato obriga porque a lei o garante. A atitude do contratante que não cumpre fi ca isolada, pressionada pela norma ao cumprimento através dos meios garantidos ao credor e aos interessados para exigir a execução do contrato que nada mais seria que o cumprimento das respectivas obrigações.

E a lei reconhece a obrigatoriedade do vínculo ao assumir a posição liberal de não intervenção na autonomia dos indivíduos, pois se o fi zesse ou se per-mitisse que se o fi zesse, estaria interferindo na vontade dos contratantes, em sua liberdade de contratar.

O fundamento fi losófi co dessa opção legal era a lógica quase matemática que se extraía do princípio do absolutismo da vontade:

Se todos os homens são livres e todos os homens são iguais; e se cada um tem na sua vontade o poder de legitimar o mundo e somente na vontade de outrem encontram restrição, quando duas dessas vontades se unem, ainda que por um átimo, o poder por elas criado é logicamente maior que aquele da vontade de um só e, portanto, a ela apenas não pode sucumbir.

O princípio da obrigatoriedade (enunciado na regra clássica pacta sunt servanda) é de origem liberal, tem sua história no ideário liberal que aceitava a soberania, o absolutismo da vontade. Pode-se dizer que o princípio da obri-gatoriedade reforça a liberdade de contratar, garantindo-a no tempo.

Refl ete-se no art. 1.134 do Code: “Les conventions légalement formées tien-nent lieu de loi à ceux qui les ont faites”.

Segundo Caio Mario, Messineo já dizia que a obrigatoriedade seria um consectário da liberdade de contratar afi rmando que o contrato obriga por-que as partes livremente o aceitaram.

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Dizer que o princípio da obrigatoriedade se refl ete na intangibilidade do contrato (intocabilidade do contrato), impossibilidade de sua alteração ou modifi cação posterior de uma só das partes ou pelo Juiz (provocado por ela). Vale dizer que qualquer modifi cação ou ajuste passaria pela desconsideração do acerto original, feito livremente, o que seria um atentado à soberania da vontade. O que foi feito livremente só livremente poderia ser desfeito.

4) Boa-fé

5) Relatividade

Exceções ao Princípios:

Toda a teoria dos contratos, como vimos, que enxergava neles o produto de vontades livres se fi rmou no contexto liberal e racionalista do séculos XVIII e XIX, quando se propunha a igualdade e a liberdade total dos indivíduos, bem como que o mercado de trabalho e de capitais deveriam ser livres, concepções essas que, se podem estar voltando à ordem do dia atualmente, não mais são consideradas absolutas em face das desigualdades que se fi zeram surgir.

“Pour la formation du contrat la loi éxige deux consentements; elle ne mesure pás au dynamométre la force des volontés (...) Pendant longtemps on s´est con-tenté de l´égalité théorique et abstraite, revelée pour l´échange des consentements” (Georges Ripert, La Régle Morale dans les Obligations Civiles, LGJD, 1949, p.100).

A felicidade e confi ança que certamente caracterizaram aquela época plena de certezas e cheia de si duraram não mais que o séc. XIX. A desilusão bur-guesa com a constatação das desigualdades reais, presentes no seio de toda sociedade industrial, fi zeram desmoronar as bases fi losófi cas sobre as quais se assentava o império burguês.

“Sua reivindicação (da razão) era estabelecer certezas objetivas e universais, que fossem válidas para toda humanidade. Mas tais ambições nunca se realiza-ram. O que parecia justo em todas as circunstâncias a um estudioso, um povo, uma época ou civilização, não era visto da mesma maneira por outros” (R.C. van Caenegem, Uma Introdução Histórica ao Direito Privado; 2 ed.; Martins Fontes: São Paulo; 2000, p.162).

Abriu-se espaço para a propagação das doutrinas socialistas e de seu con-traponto eclesiástico mais moderado, a “Rerum Novarum”.

O Estado, até então, mero assegurador das igualdade formal, passou a intervir diretamente nas relações inter-individuais de modo a proteger os in-teresses coletivos recém-reconhecidos (direitos de 3a geração), buscando asse-gurar uma igualdade material.

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Os princípios da teoria contratual, antes absolutos, pois produtos diretos de uma certeza primordial, o poder ilimitado da vontade individual, assenta-do na razão, foram mitigados e enfraquecidos pelo necessário reconhecimen-to de diversas situações excepcionais às quais não se aplicavam.

Mas não quer dizer que tenham perdido sua importância. Ainda são es-senciais ao estudo da teoria contratual tal qual é hoje entendida e de certa forma ainda embasam a noção que hoje temos do contrato.

Seu estudo ainda é essencial, pois é somente a partir de uma visão histórica do contrato e do ideário que esteve por trás dele que podemos compreender e melhor entender a evolução do tratamento jurídico que ele vem receben-do nos últimos séculos e, particularmente, as últimas alterações e modifi ca-ções (que às vezes é mais adequado tratar como uma verdadeira revolução do modo de pensá-los) que a teoria contratual vem refl etindo.

Ao mencionar a importância da análise desses princípios históricos, Enzo Roppo já dizia: “uma análise que se nos afi gura de particular interesse e impor-tância, seja porque aqueles princípios constituem, historicamente, uma das má-ximas e mais signifi cativas expressões de todo o direito burguês, amadurecida de forma plena justamente no momento mais alto da hegemonia política, econômica e cultural da burguesia, seja porque — como já se assinalou — a sua herança, continua em vária medida a estar presente nos textos legais e nas doutrinas jurí-dicas de que hoje dispomos” (p. 32).

Judith Martins-Costa sugere tratemos o conceito de história “mais como uma inigualável fonte de compreensão do presente do que um nostálgico olhar sobre um passado congelado nos compêndios e manuais acadêmicos” (Crise e Mo-difi cação da Idéia de Contrato no Direito Brasileiro, Revista Direito do Consu-midor, Ed. RT, v. 3, p.127-154).

Contar a história do liberalismo, sua ascensão e queda (soerguimento?)Começar com as exceções à liberdade de contratar, dizendo que a igualda-

de pregada na revolução francesa na verdade não existia, era apenas formal; que, portanto, a principal premissa liberal nos contratos — a de que as partes contratavam em pé de equidade, que eram livres e iguais — caiu por terra.

A liberdade de contratar, é óbvio que não foi sempre desenfreada. Mesmo nas épocas mais libertinas, sempre encontrou restrições nos limites da ordem pública e nos bons costumes. Já começo destacando aqui que nem por isso se levantou que os homens não seriam livres ao contratar.

O que aconteceu é que mesmo diante dessas restrições, ainda havia ampla liberdade de se estipular o que quisesse e tais restrições passaram a não ser sufi cientes para evitar abusos.

De fato, a liberdade de contratar presumia a igualdade das partes para discutir os termos do contrato e contraí-lo. Partindo dessa premissa não havia porque estabelecer qualquer controle sobre a vontade soberana das partes.

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Ocorre que a igualdade das partes era apenas jurídica e não real. A supe-rioridade econômica de uma parte signifi ca pressão sobre a outra e imposição de termos do contrato.

Nesse ponto foi necessária a intervenção do Estado na formação dos con-tratos. O resultado negativo do exercício da liberdade contratual foi conden-sado magnifi camente por Lacordaire: “entre o fraco e o forte é a liberdade que escraviza e a lei que liberta”.

E a intervenção do Estado para evitar essa escravização se deu de várias formas:

a) pelo controle da atividade de determinadas empresas economicamen-te poderosas ou prestadoras de serviços ou produtos essenciais, até mesmo obrigando-as a contratar (a vender, não esconder estoques, etc.) = exceção à liberdade de contratar propriamente dita.

b) pelo nivelamento do poder das partes para sua equalização, restauran-do-se a igualdade real (contratos coletivos de trabalho) = exceção à liberdade de contratar propriamente dita ao impor a contratação com determinada parte.

c) pelo dirigismo contratual, que é a interferência do Estado no conteú-do do contrato e na sua vida (vida do contrato). O Estado toma a direção dos termos do contrato, restringindo a liberdade das partes ao impor-lhes determinada atuação (ex.: o contrato deve ter pelo menos dois anos e meio, etc.). É uma interferência na estipulação do contrato que afasta a atuação da vontade, a soberania da vontade em determinada zona do contrato. É uma exceção à liberdade contratual.

tecnicamente se dá através da invasão de normas imperativas ou proibiti-vas (jus cogens) no campo onde viviam normas supletivas ou dispositivas (jus dispositivum).

Dois exemplos recentes e excelentes desse dirigismo se encontram no Có-digo do Consumidor (Lei 8078/90) e na Lei do Inquilinato (Lei 8245/91).

É preciso notar que o dirigismo estatal (através das normas de ordem pú-blica), embora visando o interesse coletivo, não pode, por força da proteção constitucional, atingir ao ato jurídico perfeito e o direito adquirido.

A liberdade contratual também pode ser restringida. É o que se dá, por exemplo, no caso dos contratos por adesão. Como suas cláusulas já são es-tabelecidas, de antemão, por uma das partes, a outra parte não teria como discutir o conteúdo do contrato.

O Código do Consumidor tratou dos contratos de adesão:Art. 54: Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido apro-

vadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo for-necedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modifi car substancialmente seu conteúdo.

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Por conta disso, já se entendeu que o contrato por adesão não seria real-mente um contrato, por faltar a liberdade contratual.

Ocorre que (à exceção de alguns exemplos que fazem jus à crítica) mesmo tendo restringido a liberdade contratual, ainda restaria a liberdade de contra-tar e, a partir do momento em que a parte aceita celebrar naqueles termos, teria nascido o contrato.

Mesmo assim, a legislação tenta amenizar ao máximo a inferioridade da parte que adere a esses contratos:

Art. 54, § 3º: Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, de modo a facilitar sua compre-ensão pelo consumidor.

Art. 54, § 4º: As cláusulas que implicarem limitação de direito do con-sumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão.

Art. 18, § 2º: Poderão as partes convencionar a redução ou ampliação do prazo previsto no parágrafo anterior (reclamação de vícios).... Nos contratos de adesão, a cláusula de prazo deverá ser convencionada em separado, por meio de manifestação expressa do consumidor.

Depois de tudo o que falei sobre as exceções ao princípio da liberdade de contratar vocês vão perguntar: e agora, qual a exceção ao princípio da força obrigatória depois desse dirigismo? Afi nal, se o contrato foi criado em aten-ção à determinação estatal que espelha o bem comum, como esse contrato pode ser modifi cado, deixando de ser obrigatório?

É uma bela pergunta. Mas a resposta é simples.O mesmo princípio de proteção e equidade que inspira a interferência do

Estado no momento da formação do contrato, o obrigam em determinadas situações (excepcionais) a intervir na vida do contrato, na sua execução nor-mal.

Essa interferência sempre foi polêmica, exatamente pela violência na viola-ção à soberania da vontade (mexer em um ato jurídico já formado, já acerta-do), ou seja, uma violação à intangibilidade e à obrigatoriedade do contrato.

O princípio da obrigatoriedade, originalmente absoluto, teve de ceder, por razões de equidade, ante os casos em que um acontecimento imprevisível alterasse a situação econômica vigente na época da celebração de tal modo que uma das partes fi casse em posição de extremo desequilíbrio em relação à outra.

A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS

Enzo Roppo já dizia que os contratos não podem ser enxergados exclusi-vamente sob a ótica jurídica. Como todos os conceitos jurídicos, “refl ectem

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sempre uma realidade exterior a si próprios, uma realidade de interesses, de re-lações, de situações económico-sociais, relativamente aos quais cumprem, de di-versas maneiras, uma função instrumental” (O contrato. Coimbra: Almedina, 1988. p.7).

No contexto, o autor pretendia demonstrar a importância da expressão econômica do contrato na sua interpretação e no seu tratamento jurídico, lembrando que este tem sempre uma função econômica (apreciável objeti-vamente, ou seja, independentemente da intenção que moveu cada uma das partes), sendo a mais óbvia a circulação de riquezas.

Ora, a circulação de riquezas é não só uma conseqüência econômica do contrato. Exerce pressão sobre a esfera social. E sendo esta formada pela con-jugação de todas as expressões da vida humana (religiosa, política, econômica, jurídica), a pressão que exerce pode infl uenciar intensamente a confi guração do estrato social. Basta que se associe a circulação de riquezas à possibilidade de sua melhor distribuição.

De todo modo, independentemente da efetiva distribuição de riquezas e exatamente por conta da necessária interferência da esfera econômica no es-trato social (eis que aquela integra este), a mera circulação de riquezas já seria uma função social do contrato.

É claro que essa função é exponenciada se a circulação se transforma em distribuição, servindo então para atender a um dos objetivos fundamentais de nossa sociedade organizada:

Art. 3º, III, CR/88: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desi-gualdades sociais e regionais.

O mesmo se dá quando a riqueza constitui em bens ou serviços de impor-tância vital. O contrato servirá, então, para garantir a sua obtenção. Nessa idéia, o que o Código de Defesa do Consumidor chamaria de serviço essen-cial (artigo 22, Lei 8.078/90).

É expressão da operação da função social dos contratos as decisões no sentido de garantir o fornecimento de serviços de água, luz e telefonia, por exemplo, mesmo ao cidadão inadimplente, impedindo a interrupção da pres-tação como forma de coerção ao pagamento.

Verifi ca-se, nesse ponto, um confl ito entre o interesse coletivo-social por detrás do contrato em assegurar a continuidade dos serviços necessários para garantir a existência hígida do cidadão e o interesse individual meramente patrimonial.

Ainda quando não se cuida de um bem ou serviço de importância vital mas de uma prestação que possa assegurar o acesso a meios de uma existência mais digna ou confortável (lembrando que a dignidade da pessoa humana é fundamento constitutivo da República Federativa do Brasil — artigo 1º, III,

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CR/88), essa função social do contrato vai justifi car a preterição do princípio da liberdade contratual:

É o caso dos negócios de concessão de crédito, por exemplo, que não podem ser vedados àqueles que se dispõem a contratá-los e não possuam ne-nhuma restrição econômico-fi nanceira para tanto. Entende-se que, em honra a uma plena operacionalização desse princípio, deva ser apresentada, em caso de recusa, uma razão objetiva que a justifi que.

A função social dos contratos foi descoberta na medida em que a vontade individual (e portanto o jogo de interesses individuais) foi perdendo impor-tância em face da maior relevância do que se chamaria de uma “vontade coletiva”, ligada a interesses sociais.

Não no primeiro momento desse processo, que se identifi ca na preteri-ção da garantia de satisfação das intenções individuais por uma proteção da segurança das relações contratuais (transição da teoria da vontade para a te-oria da declaração). Mas numa fase seguinte, quando a análise do negócio desvencilhou-se do ponto de vista dos anseios individuais para prender-se à consideração das expectativas objetivas das partes, isto é, extraídas de uma consciência comum, relativa à sociedade como um todo (é o que se tem cha-mado de expectativas legítimas).

Após uma leitura do excelente capítulo de Judith Martins-Costa, “O Novo Código Civil Brasileiro: Em Busca da “’Ética da Situação’”, in Diretrizes Teó-ricas do Novo Código Civil Brasileiro, São Paulo: Sariva, 2002, não se pode olvidar do alerta contra uma interpretação literal e leviana do dispositivo do artigo 421 do novo estatuto:

Art. 421: A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato..

Não se pode querer enxergar na disposição a imposição da função social dos contratos como uma mera exceção ao princípio da liberdade contratual.

A função social tem hierarquia de princípio, no mesmo patamar do prin-cípio da liberdade contratual servindo de contra-ponto, de limite, não po-dendo ser entendida como aplicável de forma meramente excepcional.

É expressão da perspectiva da socialidade, presente em todo o novo Códi-go Civil segundo o próprio redator (Exposição de Motivos) que, juntamente com a eticidade (refl etida no princípio da boa-fé), caracteriza o estatuto de uma sociedade que “tenta ultrapassar o individualismo” (Judith, p.131).

PRESSUPOSTOS E REQUISITOS

Muito embora o programa da faculdade fale em pressupostos e requisitos do contrato, dividindo-os em subjetivos, objetivos e formais, eu prefi ro usar a estruturação dada pelo Orlando Gomes para os negócios jurídicos, já que o

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contrato nada mais é que um negócio jurídico bilateral, como vimos, ou seja, realizado entre duas partes.

Mas cabe alertar que o Orlando Gomes em sua obra, ao discorrer sobre os elementos dos contratos, divide-os em elementos intrínsecos e extrínsecos, de maneira diversa da que aqui propomos, ainda acrescentando a causa e o consentimento.

Para Orlando Gomes, que nada mais faz que basear sua estruturação no sistema do Código Civil, todo negócio jurídico deve ter como elementos:

(a) a capacidade do agente (extrínseco, pressuposto, subjetivo);(b) a legitimidade do agente (extrínseco, pressuposto, subjetivo);(c) um objeto possível (física e juridicamente) (extrínseco, pressuposto,

objetivo);Aqui, antes de mais nada, cabe a indagação: o que se entende por objeto

do ato ou negócio jurídico e, portanto, do contrato? Certamente não é o mesmo que o objeto do Direito que, como vocês devem saber, é tudo aquilo em que recai o interesse do titular, aquilo que imediatamente lhe servirá.

O objeto do direito real é uma coisa que o titular desfruta sem a necessida-de da participação ou colaboração de outrem. É diferente do direito pessoal, que tem por objeto um comportamento. É o comportamento do devedor que interessa imediatamente ao titular do direito pessoal, ainda que, através dele, este consiga usufruir ou aproveitar de uma coisa (aqui cabe anotar que no direito real o objeto do direito não coincide com o objeto da relação jurí-dica respectiva, enquanto que no direito pessoal o objeto do direito e o objeto da relação jurídica são o comportamento).

O objeto do direito também não se confunde com o objeto da obrigação que se insere em um direito subjetivo de crédito, da espécie pessoal. O ob-jeto da obrigação, que se confunde com a relação jurídica do direito, é uma prestação de caráter patrimonial. Por sua vez, o objeto da prestação é uma atividade ou uma coisa (obrigações/prestações de fazer/não fazer e dar); é o que através da prestação se obtém.

E o objeto do ato jurídico ou negócio jurídico? O negócio jurídico é a de-claração de vontade dirigida à produção de efeitos jurídicos correspondentes a um intento prático pretendido pelo agente. Seria, então, o objeto do negó-cio jurídico o fi m, o objetivo, os efeitos perseguidos? São então esses efeitos que não podem ser impossíveis e ilícitos e que devem ser determinados ou pelo menos determináveis? Para Orlando Gomes, o objeto se constitui de “vantagens patrimoniais ou extrapatrimoniais, consistentes em coisas ou serviços que interessam aos indivíduos”. Parece dizer que seria o mesmo objeto da pres-tação, no caso de direito de crédito.

Mas se for isso, esse objeto é considerado de uma posição de mediatidade. Depois ele diz que o objeto “em uma relação jurídica é o comportamento a que se obrigam as partes, considerado isoladamente, não na sua conexão teleológica.

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Assim é que o negócio pelo qual se atribui uma recompensa pela abstenção de um delito tem causa ilícita não objeto ilícito...”

Antes ele ainda diz que o objeto “nos contratos, tanto pode ser uma presta-ção de dar, como de fazer ou não fazer”, pelo que se depreende que para ele o objeto do contrato é o mesmo objeto das obrigações nele nascidas (Intro-dução, págs. 367-369). No volume sobre contratos, ele parece reafi rmar essa vinculação quando diz que “o objeto do contrato não é a prestação nem o objeto desta. A prestação é o objeto da obrigação e seu objeto tanto pode ser a entrega de uma coisa como o exercício de uma atividade ou a transmissão de um direito. Objeto do contrato é o conjunto dos atos que as partes se comprometem a praticar, singularmente considerados, não no seu entrosamento fi nalístico, ou, por outras palavras, as prestações das parte, não o intercâmbio entre elas, pois este é a causa”.

Já para Trabucchi, o objeto do contrato deve ser o objeto da prestação, ainda que admita que o Código Civil Italiano o considera como sendo igual ao objeto da obrigação: “In ogni caso non si devere confondere l´oggetto dell´obligazioni, che noi abbiamo chiamato il contenuto — comportamento do-vuto come prestazione — con quello che è a sua volta il bene dedotto nel rapporto, cioè la materia sulla qualle incide l´obbligazione, con l´oggeto della prestazione o del contratto. Per esempio, nel contratto di locazione di una casa, l´immobile locato è l´oggeto della protezione e del contratto, mentre l´oggeto dell´obligazione è il comportamento del locatore che deve lasciar godere la casa al conduttore... Nella terminologia del Codice “oggeto del contratto” corrisponde al contenuto dell´obligazione”.

E eu pergunto de novo: mas sendo o objeto do contrato a soma das pres-tações ele não é um objeto por demais mediato? Não, na verdade, é mais próximo que os efeitos jurídicos perseguidos. O que o sujeito quer é algo mais próximo, mais palpável (mais próximo de sua realidade). Como diz San Tiago Dantas, às vezes ele nem sabe quais os feitos jurídicos que o negócio vai produzir.

O objeto do negócio é o mesmo objeto que as obrigações dele nascidas? Sim, quando esse negócio tem caráter patrimonial — segundo Orlando Go-mes que é o único autor que o diz com precisão. E se não tem? Qual o objeto? Quer dizer: e se do negócio não nascem obrigações?

Uma adoção por exemplo. É um ato jurídico, não um negócio jurídico. Nesse caso, o objeto é querer dar ao adotado a condição de fi lho ou essa é a causa? Para mim, é a causa sim. Mas qual seria o objeto? Um comportamento do adotante, dele mesmo? Não. Uma situação? Um reconhecimento, uma declaração de estado?

Em um contrato de compra e venda, por exemplo, há uma colaboração necessária mas que, por si só, quando cumprida, já atingirá, alcançará, o interesse desse agente. Uma declaração de Estado? Não acho que haja muita diferença entre essa declaração e a causa, o fi m perseguido. Acho que o objeto

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dos atos jurídicos em geral tem que ser determinados do mesmo modo que o objeto dos direitos. Na verdade, os atos jurídicos têm como conseqüência a criação, modifi cação conservação ou extinção do direito.

Assim, para buscarmos o objeto de um ato jurídico, temos que indagar qual o interesse do agente ao realizá-lo. Parece lógico que o interesse de al-guém a realizar um ato jurídico que tenha por fi m adquirir o direito de pro-priedade seja a coisa, que é o mesmo objeto do direito de propriedade. E isso, ao contrário da idéia de Orlando Gomes, que diz que o objeto do contrato é o objeto das obrigações nascidas do contrato, serve também para qualquer ato jurídico em geral.

Assim eu diria que em uma adoção, por exemplo, o objeto do ato jurídico é a criança mesmo, a pessoa a ser adotada. Nela recai o interesse do adotante e em mais nada.

Já em um contrato, o objeto seria o bem a ser adquirido ou transferido por esse negócio. Quem celebra um contrato de compra e venda de um carro. Onde recai o interesse do comprador? No ato do vendedor, de tradição do carro? É que a pergunta é diferente. Quando se pergunta qual o objeto da obrigação, pergunta-se qual o bem onde recai o interesse direto do credor. No caso do contrato do carro, é o carro?

Não, pois o credor, para ter o carro, primeiro tem que esperar o devedor entregá-lo. Então, o enfoque deve ser frio. O interesse do credor está no com-portamento do devedor, na prestação do devedor quanto à entrega do carro, da qual ele depende para satisfazer seu interesse econômico. Somente depois de ter recebido o carro é que ele vai iniciar o seu aproveitamento quanto a ele e o seu interesse vai passar a recair diretamente sobre o carro.

> Agora, no caso do contrato, o enfoque, o ponto de vista é um pouco diferente. É que o contrato não tem a fase de tensão que caracteriza a obriga-ção. O contrato é mesmo a fonte das obrigações; é anterior a elas. Primeiro vem o contrato, celebrado, nascem as obrigações. O contrato é um ponto, a obrigação é um traço. O contrato é o ponto apenas de partida.

O que se deve indagar para descobrir o objeto do contrato é mesmo o que interessa ao contratante. Não diretamente, mas mesmo indiretamente (pois não se pode falar ainda em comportamento, já que não nasceram obri-gações), o bem sobre o qual recai seu interesse, que lhe move a contratar: no caso de compra e venda do carro, o que quer o vendedor? O dinheiro. E o comprador? O carro.

Já a causa do contrato seria aquisição da propriedade em troca do preço. Também deve ser vista de um enfoque englobante das duas partes. Por isso, que concordo com Trabucchi quando diz que, no contrato, o objeto é o mesmo das prestações das obrigações dele nascidas. Esse enfoque não trata de modo distinto o contrato de outros negócios ou de outros atos jurídicos lato sensu.

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Então, podemos dizer que o contrato não pode ter por objeto algo ilícito, como herança de pessoa viva (pacta corvina).

O contrato também não pode ter por objeto algo impossível fi sicamente, como locação de um terreno em Plutão. A impossibilidade jurídica se insere na ilicitude. Lembrem que tudo que não é proibido, vedado pelo ordena-mento, é lícito. Outro exemplo de impossibilidade jurídica seria a venda de remédios proscritos. A venda é fi sicamente possível mas não juridicamente.

Deve se dizer que a impossibilidade não deve ser confundida com a falta de atualidade. Nada impede, como veremos, que eu venda uma coisa que é do Ronaldinho. Posso vender uma coisa prometendo entregá-la em dez dias sem tê-la ainda adquirido. É a venda de coisa futura.

O objeto deve ser também determinável pelo menos. Aquele deve ser de-terminado só na hora do cumprimento, na execução. Posso vender coisas de um gênero qualquer, como por exemplo, dois cavalos de minha criação, sem determiná-los, o que somente se fará na entrega.

Por fi m, deve o objeto ser economicamente apreciável, deve ter patrimo-nialidade.

(d) Forma prescrita ou não-defesa em lei (intrínseco, requisito, objetivo).(e) Consenso de vontades, acordo, conjugação de vontades. Esta deve

sempre existir, não pode ser viciada ou obtida com vício. Vontades no mesmo lugar, que se encontram (in idem placitum consensus) (intrínseco, requisito, objetivo).

Como esses elementos são comuns e necessários, que devem estar presen-tes em todo e qualquer ato jurídico, eles são os ELEMENTOS ESSENCIAIS.

Por outro lado, todos os atos jurídicos podem ter como elementos:(f ) um termo;(g) uma condição;(h) um encargo.São, por não serem necessários, mas apenas facultativos, os ELEMEN-

TOS NÃO ESSENCIAIS.Como os contratos são atos jurídicos/negócios jurídicos, com eles não

pode ser diferente. Por isso que não se deve usar uma estruturação para os atos e outra para os contratos. Pode confundir.

FORMAÇÃO DOS CONTRATOS

A base do contrato é a vontade, já dissemos, e nos contratos, negócios jurídicos bilaterais que são, concorrem duas vontades, sempre, a de cada uma das partes. Nada mais lógico que dizer então que o contrato se forma quando as vontades se encontram, quando há o consenso de vontades. E esse é exata-mente o princípio do consensualismo.

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Mas quando há o consenso das vontades?Quando a proposta de um é aceita pelo outro.Podemos dizer que o contrato nasce com a aceitação.

Fase Preliminar (fase das tratativas)

Sabe-se que antes da celebração do contrato pode haver muitas e demoradas negociações para discussão de seus termos. Quem trabalha em escritório na parte empresarial societária já viu isso. São as chamadas negociações preliminares. A fase das minutas, das tratativas. Essa fase não é prevista na lei mas nem por isso pode deixar de gerar consequências. Na fase das tratativas, a princípio, nenhuma das partes se obriga, e pode-se mudar de idéia e desistir de contratar sem problemas:

Muitas vezes os contratos mais complexos precisam de uma fase de pré-ce-lebração. Se alguém algum dia for trabalhar em escritório de direito societário ou empresarial verá que por várias vezes alguns contratos levam meses em discussão até que se chegue a um consenso sobre todos os pontos envolvidos.

Quando o contrato envolve a venda, por exemplo, de alguma participação societária ou controle acionário, é comum que seja prescindido de uma auditoria (due diligence) até para que se verifi que o estado real da empresa. Essa seria uma fase da contratação chamada de fase de negociações preliminares ou tratativas.

Além das minutas, podem ser lembrados: ‘letters of intent’, ‘heads of agreement’, ‘instructions to proceed’, acordos de base, memorandos de en-tendimento etc.

Essa fase não recebe atenção específi ca do Direito. O Código Civil não trata dela em particular. Então, a princípio, poderíamos dizer que essas nego-ciações não merecem a atenção do Direito e que tudo que ocorra nelas não pode ser conhecido e, portanto, protegido pelo Direito.

Na verdade, não há nenhum direito ou obrigação de natureza contratual que tenha nascimento ou fonte nessa fase, que signifi ca que se as negociações fracassam nenhum dos envolvidos terá qualquer responsabilidade, salvo o que já falamos sobre o contato social.

Essa fase de negociações é a fase das minutas, da troca de esboços do texto ou rascunho do instrumento idealizado pelos tratantes.

É importante chamar a atenção para o fato de que só porque o direito não cuida especifi camente da fase das tratativas não signifi ca que os envolvidos estejam totalmente desprotegidos. É claro que se algum deles, por exemplo, leva o outro a uma expectativa fundada de concretização do negócio que o leva a despender até mesmo alguma quantia para iniciar a sua montagem, aí poderá se caracterizar alguma responsabilidade.

Se uma das partes agiu de forma a levar a outra a crer que o contrato seria celebrado, esta teria como alegar dano e pedir perdas e danos.

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Neste caso, o dano alegado seria, obviamente, extracontratual, fundado na culpa aquiliana (é a chamada culpa in contrahendo, visto que o contrato esta-va ainda em fase de formação). Nesse sentido a situação de fato teria efeitos reconhecidos na hipótese de caracterizar um ilícito extracontratual:

Art. 159: Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fi ca obrigado a re-parar o dano.

Haveria o que se chama de “venire contra factum proprium”, ou seja, a atuação contrária a uma situação gerada pelo próprio agente (omissão em manter comportamento coerente com o sinalizado;omissão em adotar pro-vidências necessárias à correta formação do negócio; exigência de requisitos cuja informação foi omitida).

Aqui é importante falar do conceito de boa-fé objetiva que, segundo a doutrina mais recente, inspiraria todas as relações contratuais e também aquelas em que haja um contato entre as partes, ainda que não necessaria-mente através de contrato, mas que permita enxergar uma ligação que as obrigue, mutuamente, a considerarem os interesses da outra.

A boa-fé seria a fonte de deveres de conduta decorrentes desse “contato social”, deveres que seriam gerados não somente da relação obrigacional mas pela própria proximidade entre as partes e, assim, independentes da formação do contrato.

A diferença prática com a solução através do art. 159 é a de que, neste úl-timo caso, bastaria a prova de que houve a violação do dever, não precisando demonstrar a culpa do violador.

Diferença entre Fase Preliminar e Contrato Preliminar:Mas não se pode confundir negociações preliminares com o contrato preli-

minar. O contrato preliminar, em sua concepção tradicional, é um contrato em que uma das partes, ou ambas, se obriga a contratar, a celebrar um contrato de-fi nitivo. Contrato preliminar seria um contrato preparatório em que as partes estabelecem as delimitações e as cláusulas do contrato defi nitivo, obrigando-se a celebrá-lo. É o que os romanos chamavam de “pactum de contrahendo”. Nessa concepção, tais contratos, que já são contratos, ao contrário das negociações preliminares, estabelecem uma obrigação de fazer, que é a obrigação de contra-tar, sendo que as partes têm que chegar a um outro consentimento, formar um novo acordo ou, no caso do contrato preliminar unilateral, que dar a declaração de vontade necessária para a formação do contrato prometido.

Fase da Proposta ou Policitação

A Segunda fase na formação do contrato é a fase da proposta. Se para que exista o contrato é necessária a concorrência de duas vontades, a proposta é

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a vontade de uma parte buscando o encontro com a outra, de forma mais concreta.

A proposta pode surgir por si só, diretamente, sem que tenha havido con-tato prévio entre as partes (tratativas) e pode surgir após a fase de negociações preliminares, como sua evolução natural. Neste último caso, as vezes é muito difícil distinguir quando termina a fase de tratativas e quando se está diante da proposta, que deverá ser estabelecido base em provas de uma e de outra.

Isso é muito importante pois ao contrário da fase das tratativas esta já recebe uma atenção do direito, atenção específi ca direcionada, sendo con-siderada obrigatória em regra e tão obrigatória que vincula os herdeiros do proponente.

Só não obriga caso se trate de contrato personalíssimo.A proposta pode ser feita de qualquer modo. Não há forma específi ca para

ela, mas é importante que se tenha algum meio de prová-la, dado suas con-sequências. Alguém pode fazer uma proposta oral e depois dizer que não fez.

E para que seja proposta deve conter todos os elementos do contrato que se pretende formar.

A proposta deve ser clara, transparente, sem qualquer má intenção.Pode ser verbal, escrita, gestual etc.A proposta, ao contrário do convite e da oferta ao público, deve conter

todos os elementos do contrato que se pretende fi rmar.O que importa é seu caráter obrigatório. Uma vez feita, não pode ser reti-

rada sob pena de perdas e danos.Vejamos o artigo 1.080 do Código CivilArt. 1.080: A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário

não resultar dos termos dela, da natureza do negócio ou das circunstâncias do caso.

Mas como vemos do próprio artigo, ele mesmo reconhece exceções a essa obrigatoriedade:

(i) se não resultar dos termos da própria proposta essa não-obrigatoriedade;(ii) se essa obrigatoriedade não combinar com a natureza do negócio; eUm bom exemplo é o contrato de seguro. A proposta depende da verifi ca-

ção dos riscos e do exame do objeto segurado.É o que a TELEMAR gosta de dizer a respeito do THT, dizendo que não

poderia ser obrigada a cumprir por não estar de acordo com a natureza do negócio que dependeria das condições de instalação.

(iii) se essa obrigatoriedade não combinar com as circunstâncias do caso (particularismos do caso).

A doutrina se refere às circunstâncias do caso como aquelas apontadas no artigo 1.081. Mas há uma diferença ainda que tênue entre as exceções do artigo 1.080 e as circunstâncias do artigo 1.081.

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O artigo 1.080 trata, nas exceções, dos casos em que a proposta não obri-ga, ou seja, desde o começo.

Já o artigo 1.081 fala dos casos em que a proposta era obrigatória (pela regra geral) mas deixou de sê-lo.

Art. 1.081: Deixa de ser obrigatória a proposta:I. — Se, feita sem prazo a uma pessoa presente, não foi imediatamente

aceita.Presente é a pessoa com quem se tem contato direto e imediato, em tempo real.Considera-se presente a pessoa que contrata por meio de telefone.Poderia ser pela Internet, mas não por fax, pois não se pode dizer que o

oblato estará do outro lado ao mesmo tempo em que chegar a proposta.Obviamente, se a proposta foi feita com prazo, tal prazo será observado. Se

até o fi nal do prazo não tiver sido aceita, perderá a validade.II. — Se, feita sem prazo a pessoa ausente, tiver decorrido tempo sufi cien-

te para chegar a resposta ao conhecimento do proponente.Ausente é a pessoa que não está em em interlocução com o proponente,

policitante, que não está em contato com ele. Não confundir com o ausente declarado pelo juiz que é, nos termos do Código, incapaz.

Se feita sem prazo a uma pessoa ausente, considera-se que perde a obriga-toriedade se tiver medrado tempo sufi ciente para o retorno da resposta. Vai depender das particularidades de cada caso.

III. — Se, feita a pessoa ausente, não tiver sido expedida a resposta dentro no prazo dado.

Agora, se feita com prazo, deixa de ser obrigatória se a resposta não tiver sido expedida dentro do prazo dado. Isso vale tanto para pessoas presentes quanto para ausentes.

IV. — Se, antes dela, ou simultaneamente, chegar ao conhecimento da outra parte a retratação do proponente.

Daqui se extrai que a proposta não é absolutamente obrigatória, podendo, sem qualquer razão especial ser retirada desde que essa retirada seja feita antes do conhecimento do oblato sobre ela.

Ao mesmo tempo que a lei confere ao proponente a faculdade de se arre-pender e retirar sua proposta, também confere ao aceitante a faculdade de se arrepender e retirar sua aceitação:

Art. 1.085: Considera-se inexistente a aceitação, se antes dela ou com ela chegar ao proponente a retratação do aceitante.

O artigo 1.082 fala que se a resposta chegar tarde, isto é, depois do tempo mencionado no artigo 1.081, deve o proponente comunicar imediatamente a situação, sob pena de responder por perdas e danos.

Art. 1.082: Se a aceitação, por circunstâncias imprevistas, chegar tarde ao conhecimento do proponente, este comunicá-lo-á imediatamente ao aceitan-te, sob pena de responder por perdas e danos.

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Se o destinatário, após o decurso do tempo, dá resposta afi rmativa, mas com modifi cações, adições ou restrições, é o mesmo que ele estivesse fazendo nova proposta, que vai ser considerada como tal.

Fase da Aceitação

Não é com a proposta que nasce o contrato.O contrato nasce com a aceitação da proposta:A terceira fase do contrato é a aceitação. Com ela se estabelece o consenso

das vontades. A vontade do proponente dirigida através da proposta é encon-trada pela vontade do oblato na aceitação.

Assim se forma o consenso, por isso a idéia de espaço comum dada pela defi nição canônica: “contractus est duorum vel plurium in idem placitum con-sensus”.

Diferença da formação dos contratos consensuais e reais:Os contratos consensuais, além de nascerem com a aceitação, se aperfei-

çoam com ela.Já os contratos reais, só se aperfeiçoam com a tradição da coisa.Nos contratos que dependem de forma escrita para sua validade, a aceita-

ção é a assinatura.E nos contratos epistolares?Contratos epistolares são os contratos por correspondência, em que a pro-

posta é enviada por via postal (ou assemelhada) ao oblato.O Direito conhece várias teorias para caracterizar a formação dos contra-

tos epistolares:

1) Teoria da Cognição:

Segundo essa teoria, considerar-se-ia aperfeiçoado o contrato epistolar so-mente quando a aceitação chegasse ao conhecimento do proponente.

A proposta aqui deve percorrer o seu ciclo por completo para que o con-trato se considere formado:

(i) O proponente envia a proposta(ii) A proposta chega ao oblato(iii) O oblato toma conhecimento da proposta(iv) O oblato aceita a proposta(v) O oblato expede a aceitação(vi) A aceitação chega ao proponente(vii) O proponente toma conhecimento da aceitação.

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O inconveniente dessa teoria é deixar ao arbítrio do proponente a forma-ção e o momento da formação do contrato.

Poderia dizer que não recebeu a aceitação.

2) Teorias da Agnição:

2.1) TEORIA DA AGNIÇÃO PURA:

Segundo essa teoria, considerar-se-ia aperfeiçoado o contrato epistolar desde o momento em que o oblato aceitasse a proposta:

O ciclo é percorrido apenas até sua quarta fase:(i) O proponente envia a proposta(ii) A proposta chega ao oblato(iii) O oblato toma conhecimento da proposta(iv) O oblato aceita a propostaEssa teoria inverte o inconveniente em relação à teoria da cognição. Deixa

ao arbítrio do aceitante a formação e o momento da formação do contrato.Poderia dizer que não aceitou

2.2) TEORIA DA EXPEDIÇÃO:

Segundo essa teoria, considerar-se-ia aperfeiçoado o contrato epistolar no momento em que o oblato expedisse a aceitação:

O ciclo é percorrido até sua quinta fase:(i) O proponente envia a proposta(ii) A proposta chega ao oblato(iii) O oblato toma conhecimento da proposta(iv) O oblato aceita a proposta(v) O oblato expede a aceitaçãoÉ a teoria adotada pelo Código Civil brasileiro:Art. 1.086: Os contratos por correspondência epistolar, ou telegráfi ca,

tornam-se perfeitos desde que a aceitação é expedida, exceto:I. — No caso do artigo antecedente:Art. 1.085: Considera-se inexistente a aceitação, se antes dela ou com ela

chegar ao proponente a retratação do aceitante.II. — Se o proponente se houver comprometido a esperar resposta.Nesse caso, os contratantes afastam a teoria da expedição, preferindo a

teoria da recepção (v. abaixo).III. — Se ela (aceitação) não chegar no prazo convencionado.As exceções previstas pelo Código indicam a fragilidade e a imperfeição da

teoria da expedição.

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Reconhecendo essa fragilidade, a doutrina desenvolveu a teoria da recep-ção, a mais moderna entre elas.

2.3) TEORIA DA RECEPÇÃO:

Segundo essa teoria, o contrato só se aperfeiçoa com a chegada da aceita-ção ao proponente (não com o conhecimento da aceitação pelo proponente, como queria a teoria da cognição):

O ciclo é percorrido quase até o fi nal:(i) O proponente envia a proposta(ii) A proposta chega ao oblato(iii) O oblato toma conhecimento da proposta(iv) O oblato aceita a proposta(v) O oblato expede a aceitação(vi) A aceitação chega ao proponente

FORMA E PROVA DO CONTRATO

A regra quanto à forma é a de que os contratos podem ser celebrados por qualquer meio ou, melhor dizendo, que o consenso de vontades pode ser expressado de qualquer forma: verbal, escrita, gestual:

Art. 129: A validade das declarações de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir (art. 82).

Art. 1.079: A manifestação da vontade nos contratos pode ser tácita, quando a lei não exigir que seja expressa.

As disposições sobre os contratos não trazem exigência especial quanto à forma. Existem apenas as exigências na Parte Geral, pelo que as regras sobre isso nos contratos nada mais são que especifi cidades do geral:

Art. 133: No contrato celebrado com a cláusula de não valer sem instru-mento público este é da substância do ato. É a possibilidade de que as partes exijam forma especial.

Art. 134: Negócios que exigem a escritura pública como substância do ato: contratos de direitos reais sobre imóveis.

Art. 1.088: Quando o instrumento público for exigido como prova do contrato, qualquer das partes pode arrepender-se, antes de o assinar, ressar-cindo à outra as perdas e danos resultantes do arrependimento.

Então, não pode a lei deixar de enunciar também como regra geral que os contratos podem ser provados por qualquer meio e, nesse caso, também se aplicam as regras gerais a todo ato jurídico, sendo que o instrumento particu-lar é capaz de provar qualquer contrato.

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Art. 135: O instrumento particular, feito e assinado, ou somente assinado por quem esteja na disposição e administração livre de seus bens, sendo subs-crito por duas testemunhas, prova as obrigações convencionais de qualquer valor. Mas os seus efeitos, bem como os da cessão, não se operam, a respeito de terceiros (artigo 1.067), antes de transcrito no registro público.

Mas também os provam:Art. 136: Os atos jurídicos, a que não se impõem forma especial, poderão

provar-se mediante:I. — confi ssão;II. — atos processados em Juízo;III. — documentos públicos ou particulares;IV. — testemunhas;Restrições da prova testemunhal.Art. 142, Código Civil e 402 do Código de Processo Civil.V. — presunção;VI. — exames e vistorias;VII. — arbitramento.

INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS

Aqui faço uma inserção acerca da boa-fé nas obrigações em geral e nos contratos. O conceito é um tanto vago, mas é alcançável e vem sendo deline-ado pela doutrina, especialmente a estrangeira. Consulte-se Antunes Varela e Alberto Trabucchi.

A boa-fé, segundo se diz, inspira não só o cumprimento das obrigações, mas todo o seu processo (na visão dinâmica do relacionamento obrigacional) e até mesmo a fase pré-contratual, em uma idéia de colaboração (que opôe-se à concorrência) entre credor e devedor.

A boa-fé lembra idéia do bonus pater familiae, do homem diligente. É uma atitude que é devida e, portanto, pode ser cobrada, de retidão, de lealdade, de colaboração com a outra parte, de fi delidade ao combinado (não ao literal), enfi m, “correttezza”, que visa principalmente evitar o abuso do direito por qualquer das partes.

Ela se faz presente e deve ser observada no relacionamento pré-contratual, no momento da redação e da celebração do acordo de vontades e durante o relacionamento obrigacional, no cumprimento e até mesmo após o cumpri-mento da obrigação.

Diz respeito aos chamados deveres acessórios de conduta que, ao contrário dos deveres secundários da prestação, não se ligam ao cumprimento em si da prestação, mas a envolve, a facilitam ou a garantem, como, por exemplo, no

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dever de um sujeito que vendeu um cavalo a outro para entrega posterior, de cuidar dele com toda diligência, não o submetendo a trabalho exagerado etc.

A gama dos deveres acessórios, inspirados na boa-fé, é bem ampla e se espalha por diversas fases, como vimos, da obrigação, e se mostra em diversas facetas.

Muitas vezes, porém, se refl ete no dever de informar a outra parte acerca de dados importantes para a formação de sua convicção sobre o negócio e para o seu posicionamento no decorrer da existência da relação, de modo que infl ui na interpretação do contrato, principalmente pela parte obrigada.

Aliás, essa função hermenêutico-integradora é a primeira das funções re-conhecidas à boa-fé objetiva.

Desse modo, visa a evitar o cumprimento apenas literal ou meramente formal do avençado. E o juiz, em casos de discussão judicial sobre a verda-deira vontade das partes, deve levar em conta esse espírito de boa-fé que deve pairar sobre o contrato. Assim, nõa deixa de ser uma nuance dessas idéias, a regra adotada na maioria das legislações no sentido que as declarações de vontade devem ser interpretadas não tanto pelo sentido literal, mas tendo em vista real intenção das partes.

É esse princípio de interpretação que está inscrito no artigo 85 do Código Civil:

Art. 85: Nas declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem.

Esse artigo dever ser entendido hoje como contendo o equilíbrio entre as duas teorias históricas da interpretação da vontade: a Willenstheorie, teoria da vontade, e a Erklarungtheorie, teoria da declaração. A primeira, elaborada no auge do primado individualismo, pelos pandectistas, para quem o respeito ao indivíduo era supremo, considera que a vontade interior é que importava. A Erklarungtheorie, ao contrário, a vontade declarada. O equilíbrio foi alcan-çado com a declaração sendo considerada uma pista, uma indicação para se chegar à vontade interna. Do mesmo modo que a lei é interpretada com base no texto legal, interpreta-se a vontade interna com base na sua exteriorização.

Notem que o artigo 85 não enuncia a boa-fé. Mas esta vem sendo reco-nhecida pelos aplicadores do Direito com base na experiência estrangeira. Mas ainda assim, tem sido relegada a um segundo plano, não merecendo ainda a consideração que os alemães a ela dispensam. Talvez isso já esteja mu-dando com a previsão expressa nas relações de consumo através do Código de Defesa do Consumidor.

Outra regra de interpretação é a do artigo 1.090 que diz que os contratos benéfi cos se interpretam restritivamente. Afi nal, já há um desequilíbrio entre as partes (claro que desejado pelo que benefi cia) e se sua vontade for interpre-tada mais favoravelmente ao benefi ciário o desequilíbrio poderá se agravar. O direito prefere um benefício menor a um prejuízo maior.

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CLASSIFICAÇÃO DOS CONTRATOS

1) Bilaterais e Unilaterais

Para Clóvis Beviláqua, os contratos bilaterais ou sinalagmáticos são “aque-les em que as obrigações são para ambas as partes contratantes, por cotas iguais ou não”.

Orlando Gomes, após relatar que alguns contratos geram obrigações recí-procas, enquanto outros criam obrigações unicamente para uma das partes, afi rma não ser pacífi ca a noção. Diz que alguns autores assim consideram todo contrato que produz obrigações para as duas partes. Por outro lado, outra corrente sustenta que deve haver interdependência recíproca entre as prestações, o que caracterizaria o sinalagma. Logo em seguida, afi rma que nesses contratos a obrigação de uma das partes é a razão de ser da obrigação da outra, parecendo adotar a tese do sinalagma.

Vê-se que, embora Clovis Beviláqua os equipare aos contratos sinalagmá-ticos, parece dizer que podem ter prestações não equivalentes.

Para os Mazeaud, “dans les contrats synallagmatiques ou bilatéraux, les obli-gations creés sont réciproques: chacun des contractants est, à la fois, créancier et débiteur; ses obligations ont pour cause celles de son cocontractant”.

Por isso, parecem considerar sinônimos os termos.Os italianos evitam o uso do termo bilateral, preferindo falar em contratos

de prestações correspectivas:Trabbuchi explica a diferença entre o sinalagma genético e o funcional,

falando sobre este último: “Il diritto segue anche la vita del rapporto, e per-tanto il contratto può venir risolto se inseguito una delle due obbligazioni viene a mancare o non può essere eseguita; qui hanno fondamento la risoluzione per inadempimento e la risoluzione per impossibilità sopravevnuta. La prestazione di una parte rimane legata, non solo all’esistenza originaria, ma anche al perdurare dell’obbligazione corrispondente della controparte, e quindi all’adempimento o alla possibilità di adempimento (sinalagma funzionale)”.

Lembrem-se, para confundir um pouco, que todo contrato traz em si já uma carga de bilateralidade. É que todo contrato já é um negócio jurídico bilateral.

Assim, para os contratos, se fôssemos dissecar o termo teríamos que o contrato unilateral seria um negócio jurídico bilateral unilateral e o contrato um negócio jurídico bilateral bilateral. Como pode?

É que o 1o bilateral refere-se à participação de mais de uma parte e o segundo bilateral diz respeito aos efeitos das obrigações nascidas, isto é, o contrato bilateral é aquele que faz nascer obrigações para ambas as partes e obrigações que tenham certa equivalência, certa correspondência.

Não se pode confundir essa equivalência com uma exigibilidade depen-dente, ou seja, com uma dependência recíproca entre as obrigações de cada

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uma das partes, de modo que a obrigação de um só será exigível se a de outro for cumprida e vice-versa.

Isso é o que se chama de sinalagma. Para que um contrato seja bilateral, basta que ele faça nascer obrigações equivalentes para ambas as partes. Por sua vez, os contratos unilaterais seriam aqueles dos quais nasce obrigação para apenas uma das partes ou que a obrigação de uma das partes seja insignifi can-te em relação à outra, de modo que não haja uma correspondência.

2) Onerosos e Gratuitos

A onerosidade de um contrato se faz presente quando se exige um sacrifí-cio de uma parte para que possa exigir a obrigação da outra. Note-se que não é necessário que esse sacrifício alcance equivalência, correspectividade, cor-relação com a obrigação da outra, pelo que pode haver um sacrifício exigível para uma parte que não torne o contrato bilateral, exatamente porque para a bilateralidade do contrato se exige a correlação, equivalência.

Deve haver atenção para que não se confunda, como parecem fazer vários autores, a onerosidade de um contrato e a sua bilateralidade. Esta é caracte-rizada pela correspectividade das prestações, das obrigações nascidas do con-trato; aquela carece dessa correspectividade, a dispensa:

Parecem fazer essa confusão Pontes de Miranda e Zeno Veloso, que o cita: “o modus de jeito nenhum faz oneroso o contrato de doação. Há ônus, mas sem se estender ao contrato o elemento de onerosidade. Qualquer alusão a correspecti-vidade seria absurda” (p.114).

Para ele, contrato oneroso e contrato bilateral são conceitos que se con-fundem.

Assim, o contrato de doação onerada com encargo é um contrato one-roso, pois o donatário tem que realizar um sacrifício para obter o benefício que advém da liberalidade do doador, mas não um contrato bilateral, já que as prestações não são equivalentes: o encargo não é uma contraprestação da obrigação de dar a coisa doada:

Alguns até mesmo reconhecem o sinalagma no caso de um contrato uni-lateral oneroso, mas suspeito de que estejam tratando o sinalagma como bila-teralidade e não sob uma ótica causalista como “a interdependência recíproca entre as prestações”. E aí consideram que pode haver um contrato bilateral (que crie obrigações para ambas as partes) e ao mesmo tempo gratuito, sem que elas sejam equivalentes:

“Mas a prestação imposta ao benefi ciado (dar, fazer ou não fazer) não consti-tui uma contraprestação ao benefício recebido. Por exemplo, na doação com en-cargo, estamos diante de um negócio jurídico sinalagmático, porém gratuito, por-

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que não há relação de causalidade entre as obrigações do doador e do donatário, porque o encargo não é a contraprestação da doação efetuada” (Leoni, p. 797).

“Os autores que para a caracterização dos contratos sinalagmáticos, exigem o requisito da equivalência das prestações, excluem, obviamente, que da natureza desses contratos possa participar a doação gravada; mas, os que se satisfazem com o requisito da simples reciprocidade, sustentam que a doação submodo é um con-trato sinalagmático a título gratuito (Demolombe, Cours, v.XX, n.575; Laurent, Príncipes, v.XII, n.487; Baudry-Lacantinerie et Colin, Des Donations entre Vifs et Testaments, v.I, n.1543; Josserand, Cours, v. III, n.1618 etc)” (Vicente Ráo, p.372).

O contrato gratuito é aquele em que ao proveito de uma das partes no recebimento da prestação da outra não equivale qualquer sacrifício de sua parte.

Vejamos alguns exemplos:Com toda certeza o contrato de compra e venda é um contrato oneroso.

À obrigação do vendedor de entregar a coisa, transferindo a propriedade, opõe-se o sacrifício do comprador no pagamento do preço. É um contrato oneroso, não gratuito, pois o comprador não recebe a coisa sem qualquer contrapartida.

É claro que é um contrato bilateral, pois o preço tem equivalência, corre-lação com a coisa a ser dada.

E um contrato de doação? O doador entrega a coisa sem qualquer con-trapartida do donatário. É um contrato gratuito e também unilateral. Nesses exemplos que vimos, sempre que o contrato foi oneroso, foi bilateral e sem-pre que foi gratuito foi unilateral.

Mas existe sempre essa correspondência? Não. Na verdade, todo contrato bilateral é oneroso, mas nem todo contrato oneroso é bilateral, exatamente em razão do grau de contraprestação, do grau de sacrifício exigido para um e outro.

Vejam o mútuo feneratício, que é o empréstimo a juros (remuneração do uso do capital). É, com certeza, um contrato oneroso, pois para que o mu-tuário possa utilizar o dinheiro, por exemplo, deve pagar os juros. Mas é um contrato bilateral? Não. É um contrato unilateral tão somente, pois só nasce obrigação para uma das partes. A obrigação de disponibilizar o dinheiro não é obrigação, mas pré-requisito de formação do contrato.

Outro exemplo seria o depósito remunerado.Consequências:(i) o contrato benéfi co interpreta-se restritivamente;(ii) Os gratuitos são tratados diversamente no que diz respeito ao interesse

de terceiros:Fraude contra credores.Pagamento Indevido de imóveis.

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3) Consensuais e Reais

4) Comutativos e Aleatórios

A comutatividade pode dar uma idéia de reciprocidade, mas o sentido do termo não é esse. A comutatividade, se vista assim, iria se confundir com a bilateralidade. A comutatividade é utilizada para identifi car a característica dos contratos bilaterais e onerosos cuja reciprocidade vai sempre existir ou nos quais haja certeza quanto à troca da prestação.

O sentido de comutatividade é exatamente a troca (se lembram do colé-gio, propriedade comutativa da adição, da multiplicação?).

Mas não seria assim em todo contrato bilateral, oneroso?Nem sempre, porque existem contratos em que há incerteza quanto a essa

reciprocidade, quanto a essa troca, que é exatamente o caso dos chamados contratos aleatórios.

Aleatório vem de álea = sorte ou incerteza.Quem não conhece a célebre frase atribuída a César antes de cruzar o

Rubicão para atacar Pompeu: alia jacta est. Quer dizer não os dados estão lançados, mas a sorte está lançada.

Contratos aleatórios são aqueles em que a obrigação de uma das partes é incerta quanto à sua existência, está submetida a uma condição, a um evento futuro e incerto e pode não vir a existir, a nascer, podendo vir a não ser exi-gível, portanto.

Note-se que nem por isso o contrato deixa de ser bilateral ou oneroso, pois a incerteza da obrigação já era prevista pelas partes e a fi xação da contra--prestação, ou seja, da obrigação certa da outra parte, já levou em conta essa incerteza. Assim não se pode dizer que não havia uma equivalência entre as obrigações. Certamente o preço a ser pago por uma parte já foi estabelecido levando-se em conta a incerteza e seu grau.

O que não existe na verdade é a comutatividade, pois não há certeza quan-to à troca de uma obrigação pela outra.

Um exemplo seria um contrato em que alguém se obrigue a comprar toda a produção de um pescador em determinado dia. Não se sabe se o pescador vai ou não pescar alguma coisa, mas o sujeito paga por isso. E paga a mesma coisa caso pegue um peixe ou 1.000 peixes. Essa é a álea do contrato.

Agora, o que eu posso dizer quanto a esse contrato aleatório é que não vai haver, então, no caso em que a obrigação não nasça, ou melhor que a condição de sua exigibilidade não se verifi que, que seu objeto não venha a existir, uma interdependência recíproca, pois uma vai ser exigível e outra não, embora houvesse interpendência recíproca no seu nascimento. Fala-se, então, que não há sinalagma funcional, embora tenha havido sinalagma genético (Trabucchi, págs. 685/686).

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Silvio Rodrigues diz que a troca poderia ser efetuada no momento mesmo da celebração do contrato no contrato comutativo, enquanto que no con-trato aleatório isso não seria possível em vista da incerteza de uma prestação.

Falamos brevemente da teoria da imprevisão, não falamos? Pois é, com o desenvolvimento dessa teoria, fi cou claro que todos os contratos de trato su-cessivo ou de execução continuada tem sua álea normal, podem ser afetados por eventos futuros e incertos. Mas nem por isso se transformam em contra-tos aleatórios em que a álea é da substância do contrato.

Os contratos de jogo e aposta também seriam aleatórios.Os contratos comutativos estariam sujeitos ao controle da lesão e do esta-

do de perigo, enquanto que os aleatórios não.No entanto, Anelise Becker afi rma que, em certas situações, mesmo os

contratos aleatórios poderiam se submeter à revisão por conta da lesão. É que haveria uma certa proporcionalidade entre a prestação certa de uma parte e a prestação aleatória da outra, que permitira identifi car eventuais casos de um patente desequilíbrio.

4) Contratos solenes e não solenes / formais e não formais

Solene — a forma é da substância. O contrato só se forma quando o con-sentimento é expresso por determinada forma.

É uma exceção, tanto quanto os contratos reais, ao princípio do consensu-alismo (solus consensus obligat).

Um exemplo de contrato solene seria o contrato de compra e venda de imóveis acima da taxa legal, que simplesmente não é válida se não revestir a forma de escritura pública. Nesse caso não que é a escritura prove o contrato. Ela, na verdade, confi gura o contrato. Sem ela não há contrato e, portanto, não há obrigação de transferir a propriedade por parte do vendedor.

Note-se que o contrato é consensual quando a forma é da substância “ad substantiam”. Não será consensual quando a forma seja tão somente “ad pro-bationem” para a prova da existência do contrato.

Assim é que um contrato de compra e venda de uma coisa móvel não pre-cisa, para sua validade, ter forma especial, mas se for de uma coisa superior a 10 salários mínimos, não vai poder ser provado por somente testemunhas, deve haver, pelo menos, um começo de prova escrita.

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5) Contratos principais e acessórios / Principais e dependentes

Acessórios — são dependentes porque estabelecem disposições que au-xiliam o cumprimento das estipulações do outro ou, principalmente, que garantem o cumprimento.

Em geral os contratos acessórios são contratos de garantia, como a fi ança, o penhor, a hipoteca. E eles são dependentes porque seguem a sorte do prin-cipal. Se este se extingue, aqueles também são terminados exatamente porque somente completavam ou complementavam.

É importante para não confundir, que nem sempre eles têm que ser ela-borados em um mesmo instrumento (por favor, não confundir contrato com o instrumento do contrato), como a fi ança em um contrato de locação, por exemplo.

6) Contratos Instantâneos e de Duração

Contratos Instantâneos: são aqueles que a prestação, a obrigação pode ser cumprida em um só ato (pagamento/entrega de uma coisa). Embora essa obrigação possa ser cumprida em um só ato, as partes podem postergar o cumprimento da obrigação para que se dê no futuro.

Um exemplo seria o contrato de compra e venda para pagamento em trinta dias.

O pagamento poderia ser feito na hora, mas passa para depois.Vejam que não deixa de ser uma obrigação, na verdade um prestação que

pode ser cumprida imediatamente.Ou mesmo o contrato de compra e venda para pagamento em prestações:

o simples fato de terem as partes convencionado o pagamento do preço em parcelas, não retira a instantaneidade da prestação.

Daí se dividem os contratos instantâneos em contratos instantâneos de execução imediata (as obrigações são cumpridas no mesmo momento, ime-diatamente como na compra e venda à vista); e contratos instantâneos de execução diferida (embora a obrigação possa ser cumprir imediatamente, em um único momento, esse momento foi postergado, diferido).

Já os contratos de duração (muitos se referem ainda a eles como contratos de trato sucessivo — contractus qui habent tractum successivum et dependen-tiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur) são aqueles em que a prestação não pode ser cumprida imediatamente. Por sua própria natureza, tem que ser cumprida durante certo período de tempo.

Dividem-se em contratos de execução continuada e de execução sucessiva.Os contratos de execução continuada são aqueles em que a obrigação não se

cumpre em um só momento, mas se dá em uma ação contínua, ininterrupta.

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Uma prestação de serviços, de manutenção, de trabalho ou o fornecimen-to de energia elétrica ou telefonia, a própria prestação do locador no sentido de manter a coisa disponibilizada para o uso.

Já os contratos de execução sucessiva são aqueles de prestações periódicas, intermitentes, que, por sua própria natureza, só interessam em conjunto.

São exemplos os contratos de assinaturas de jornais e revistas.Não se trata de diversas obrigações singulares reunidas. Ninguém melhor

que Orlando Gomes para explicá-lo: “a despeito de ter a execução prolongada no tempo, contínua, periódica ou salteada, o contrato de duração não se compõe de sucessivas obrigações (a execução é que sucessiva — inseri). Toda prestação periódica e singular não constitui objeto de obrigação distinta. A obrigação é única; fracionam-se as prestações”.

As diferenças entre os contratos instantâneos e de duração são importantes porque geram tratamentos diversos.

Nas prestações de duração, a rescisão do contrato não vai afetar, alcançar os efeitos já produzidos, as prestações já cumpridas, pois aquilo que já foi feito, o serviço, geralmente um atuar ininterrupto ou periódico, não pode ser restituído, devolvido.

Já no contrato de execução instantânea, as prestações, objetos das obriga-ções, podem ser devolvidas, restituindo-se o estado anterior.

A teoria da imprevisão atua sobre os contratos de duração.Segundo Caio Mario, “a prescrição da ação de resolução do contrato, por

descumprimento, corre separadamente de cada uma das prestações, podendo-se acrescentar que a prescrição do direito de receber cada prestação independe das anteriores como das posteriores” (vol. III, pág. 49).

Falar do caso da Zetax, Siscom etc.

7) Tempo determinado e indeterminado

Falamos do contratos instantâneos e de duração. Agora falaremos dos con-tratos por tempo determinado e tempo indeterminado.

Tanto os contratos de execução instantânea diferida quanto aos contratos de duração têm sua execução dilatada no tempo. Os primeiros, é claro, por exclusiva vontade das partes, que resolvem postergar a execução que poderia ser imediata. Os segundos, por naturalmente pedirem uma dilação, já que as prestações têm que ser cumpridas de um modo contínuo, como o fornecimento de energia.

De qualquer forma, tanto aqueles quanto estes, encontram um fi m, um término, ou um momento em que cessam de todo seus efeitos.

Nos contratos de execução instantânea diferida, sempre haverá a determi-nação desse momento, exatamente porque o diferimento decorreu da vonta-de das partes e não da natureza da prestação.

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O que realmente importa no estudo dos contratos por tempo determina-do e indeterminado (nessa classifi cação) são os contratos de duração, ou seja, aqueles em que pelo menos a obrigação de uma das partes é duradoura, con-tínua ou ao menos sucessiva (exemplo: contratos de fornecimento de vinhos, de assinatura de jornais, de revistas). Vejam que o contrato de assinatura de um jornal, ainda que de um mês, é considerado um contrato de execução sucessiva, em razão da necessidade de entrega do jornal todos os dias. Esses contratos, de execução continuada ou de fornecimento, podem ser determi-nados ou indeterminados.

Determinados são aqueles em que as partes estabelecem direta ou indire-tamente a duração, o momento em que se extinguirão.

E qual é a técnica de se fazer isso?Através da aposição de termo que é evento futuro e certo. Mas não é qual-

quer termo que transforma o contrato em determinado. É necessário que o termo seja “certus quando”, não apenas “certus an”. A morte de alguém é um evento que se caracteriza como um termo, pois embora incerta quanto ao momento, é certa quanto à sua ocorrência. É um termo, mas um termo “certus an” e “incertus quando”.

Todos os contratos em que as partes fi xam um prazo para sua duração, são contratos por tempo determinado, isto é, que estabeleçam que vigorará até determinada data, por determinado período de tempo, até um evento futuro certo e determinado (início das Olimpíadas).

Por outro lado, todos os outros contratos em que as partes não fi xem um prazo determinado para sua duração ou que estejam submetidos a condição (evento futuro e incerto) ou termo “incertus quando” (evento futuro e certo quanto à ocorrência mas incerto quanto ao momento) são contratos por tem-po indeterminado (v. Arnoldo Wald, já que Orlando Gomes parece admitir que contratos sob condição também seriam determinados).

Qual a importância de se fazer essa distinção? É que, em regra, os con-tratos por tempo indeterminado contêm a possibilidade de serem extintos, terminados, por vontade de qualquer das partes.

Essa faculdade é exercida através da “denúncia” e, para se ressaltar que não depende de qualquer outro requisito senão a vontade, fala-se em denúncia vazia.

Em alguns casos, a denúncia deve obedecer a certas regras, como no con-trato de trabalho, em que se exige o aviso prévio para evitar as consequências da ruptura brusca (Orlando Gomes — pág. 131).

Essa faculdade se erige em verdadeiro direito potestativo da parte em um contrato por tempo indeterminado.

Já no contrato por tempo determinado, não é possível a denúncia exatamen-te porque “a cláusula mediante a qual se apõe o termo tem por fi m, precisamente garantir a efi cácia do contrato por certo tempo” (Orlando Gomes, pág. 132).

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Agora, há que se atentar para o fato de que não se impede que a parte, se quiser, deixe de cumprir suas obrigações antes do prazo, por arbitrariedade. O que vai ocorrer, se não for possível fazê-la cumprir as obrigações, é que ela certamente será condenada a pagar perdas e danos pelo não-cumprimento.

Existem contratos que, por força da intervenção estatal, acabam sendo obrigatórios para as partes durante pelo menos certo período de tempo. Um exemplo é o contrato de locação residencial urbana, em que não é possível contratos por menos de 30 meses, o que impede qualquer término unilateral por parte do locador.

Nos contratos com prazo determinado podem as partes estipular a sua prorrogação por outro prazo determinado. É a recondução expressa. Mas a recondução pode ser tácita, isto é, pode haver prorrogação do contrato pela própria atitude das partes, se continuarem cumprindo o contrato ou se os usos, costumes a fazem presumir.

Os contratos prorrogados tacitamente tornam-se indeterminados, passan-do a valer as regras quanto à extinção dos contratos indeterminados.

A prorrogação pode ser legal, isto é, determinada em lei.

8) Contratos típicos e atípicos (nominados / inominados)

9) Contratos mistos

10) Contratos de adesão

Como ensina Orlando Gomes, a compreensão dos chamados contratos de adesão é difícil pois “sua estrutura não se ajusta bem no esquema clássico do contrato”.

Caracteriza-se pela imposição da vontade de uma das partes a outra, a quem só resta aceitar ou não contratar e, às vezes, modifi car levemente al-guma disposição (nesse caso, a inserção terá prevalência no que se refere à interpretação).

A parte aderente aceita em bloco as cláusulas do contrato.Formação:A formação dos contratos de adesão permite identifi car uma fi gura que

muitos autores pretendem equiparar ao próprio contrato de adesão e, toman-do-a por perspectiva, elaborar a explicação de sua natureza e características.

1) É que, em primeiro lugar, o contrato de adesão se caracteriza por ser composto de cláusulas e condições previamente redigidas ou estabelecidas, formuladas de modo uniforme:

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A elas quis se dar o nome de condições gerais de contrato, como são co-nhecidas pelos escritores alemães, termo que vem sendo usado mais recente-mente.

Orlando Gomes o critica, lembrando que “condição” é termo já reservado na técnica jurídica e, por isso, prefere Cláusulas Gerais de Contrato.

De qualquer forma, pouco importando o termo utilizado, elas refl etem o próprio conteúdo do contrato (ou parte dele) previamente elaborado e adap-tado para o fenômeno da contratação em massa.

Podem ser fruto:(a) de regulamento administrativo (consórcios)(b) da vontade de terceiro(c) da própria parte predominanteEssas cláusulas gerais se caracterizam (e essas características se irradiam

como características do próprio contrato de adesão) por:(i) Sua pré-determinação unilateral;(ii) Sua rigidez;(iii) Sua uniformidade (para que seja aplicável a uma generalidade de si-

tuações).E em razão da força dessas cláusulas estabelecidas unilateralmente, se che-

gou a dizer que os contratos de adesão trariam, ínsito, sempre um vício per-manente de consentimento, reconhecível em uma espécie de coação sofrida pela parte mais forte (Ripert, “La Règle Morale dans les Obligations Civiles”).

E em razão da força dessas cláusulas estabelecidas unilateralmente, se che-gou a dizer que teriam caráter normativo (Teoria Normativista), ou seja, que se assemelhariam a regras de direito objetivo (lei) e que incidiriam quando o contratante aderisse:

“Para os normativistas, o momento de formação da relação jurídica individu-al e concreta tem também signifi cado, porque constitui o pressuposto de efi cácia do direito objetivo... e direta como sucede com as demais, que independem sabida-mente de qualquer declaração de vontade dos destinatários” (Orlando Gomes, pág. 114).

Daí se chegou, logicamente, a concluir que o contrato de adesão não seria contrato, mas verdadeiro ato unilateral.

Mas Orlando Gomes faz questão de chamar a atenção para o fato de que as cláusulas gerais de contrato não tem caráter vinculatório, lembrando que, sem a aceitação não são mais que um pedaço de papel (Stückpapier/Muster-formulare) e que a relação só se forma com a aceitação e, portanto, a adesão.

E para que sejam reconhecidas como obrigatórias, hoje se impõe não só um controle formal de sua existência (arts. 46 e 54 do Código de Defesa do Consumidor), pois que devem ter sido dadas ao conhecimento do contra-tante e redigidas de acordo com algumas regras, mas igualmente um controle

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material (de sua abusividade — art. 51 do Código de Defesa do Consumi-dor).

2) Já em um segundo momento, portanto, o contratante adere a esse con-teúdo (que lhe deve ser previamente disponibilizado).

É essa adesão que permite o reconhecimento da natureza contratual da fi gura, sendo a doutrina hoje predominante aquela que aceita essa natureza.

Não há liberdade contratualMas há liberdade de contratar (ainda que em grau mínimo).Como diz Orlando Gomes, Georges Ripert foi uma das mais importantes

vozes a ter-se levantado, em França, contra os anticontratualistas, criticando a distinção que era feita entre consentimento e adesão.

Ripert criticava a idéia de que nesses contratos sempre haveria uma espécie de vício de consentimento. Na verdade, ele chegou mesmo a dizer que alguns contratos formados tradicionalmente eram mais propensos a perpetrar injus-tiças que os contratos de adesão, dada a sua regulamentação, fi scalização e ao número de contratantes que acabavam igualando as partes.

Foi ele que permitiu inaugurar a idéia de que os contratos de adesão eram contratos como outros quaisquer, cuja única diferença era na formação.

E hoje é pacífi ca, como reporta Cláudia Lima Marques, a natureza contra-tual do contrato de adesão.

Suas características são, portanto:(i) Sua pré-determinação unilateral;(ii) Sua rigidez;(iii) Sua uniformidade (para que seja aplicável a uma generalidade de si-

tuações);(iv) Seu modo de aceitação (formação).Interpretação:Ripert dizia não ser a desigualdade dos contratantes, por si só, que o torna

objeto de críticas, mas o abuso que poderia provir dessa desigualdade (“Ce n’est pas parce qu’il n’est pas de nature contractuelle que le contrat d’adhesion est suspect, c’est au contraire parce qu’il est contrat” pág. 103).

Ainda que, segundo ele, a interpretação não fosse o meio de solucionar a questão dos contratos de adesão, entendendo que deveria ser assumido pelo legislador o controle desse tipo de contrato, é importante notar que hoje, cinqüenta anos depois, o legislador já estabeleceu, ele mesmo, algumas regras que devem ser seguidas na interpretação.

Assim é que a interpretação desses contratos deve ser, em caso de dúvida:(a) sempre contrária à parte que redigiu as cláusulas,(b) no caso de cláusula inserta no tipo datilografado ou pré-impresso, deve

ela prevalecer;(c) art. 85 e boa-fé (reporto ao capítulo sobre interpretação).Controle (Formal e Material).

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Quanto à nomenclatura, ainda se diferenciava os contratos DE adesão dos con-tratos POR adesão, sendo que nos primeiros não haveria oportunidade de recusa da contratação enquanto que nos segundos ela poderia se dar, com a escolha entre contratar e não contratar. Humberto Th eodoro Jr., em nota a Orlando Gomes, dá conta de que o Código de Defesa do Consumidor não adotou essa diferenciação.

11) CONTRATOS DE CONSUMO

EFEITOS DOS CONTRATOS

A matéria envolve o princípio da relatividade dos contratos.Se lembram? Segundo ele, os contratos produzem efeitos entre as parte e

somente entre as partes. E que efeitos são esses?

Criação de Obrigações:

Ora, o principal efeito dos contratos é a criação de obrigações.Nós não podemos esquecer que, se estudamos o contrato em separado, é

por sua importância, mas ele é fonte de obrigações e seu estudo se insere no âmbito das obrigações.

E é importante notar que toda e qualquer obrigação nascida do contrato é uma obrigação de dar, fazer ou não fazer algo.

Então, ainda que a obrigação seja a de dar (strictu sensu) alguma coisa, que diz respeito à transferência de direito real, pelo simples contrato o direito real não se transfere.

O contrato não tem, em nosso sistema, efeito real, ou seja, o contrato não pode produzir efeitos reais por si só, como a transferência da propriedade. O efeito do contrato é tão somente criar direito pessoal (obrigacional ou de crédito), nunca um direito real.

O direito real se transfere com a tradição, cumprimento da obrigação, mas o contrato por si só não produz direito real. Isso ao contrário das legislações francesa, portuguesa e italiana, que admitem que o simples consenso possa transmitir a propriedade, o que é herança de Napoleão:

“O direito romano queria que a translação da propriedade se eff ectuasse por um acto externo, visível e público, de modo que, sobre ella, convergissem as at-tenções. A tradição acha-se nessas condições, e, portanto, antes della e pelo simples eff eito da obrigação de dar, se não transferia o domínio: Traditionibus et usuca-pionibus, non nudis pactis, dominia rerum transferuntur”.

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“Mas o Código Civil francez trouxe uma innovação a esses princípios, que tinham por si uma experiência muitas vezes secular, admittindo (arts, 711 e 1.138), que a propriedade se transmittisse por eff eito immediato da convenção...” (Clóvis Beviláqua, Direito das Obrigações, pág. 87).

Então, agora, podemos dizer que os contratos têm como principal efeito a criação de obrigações entre as partes.

Mas existem outros efeitos?

Irretratabilidade:

Sim, podemos dizer que os contratos também produzem os efeitos da irretrata-bilidade, isto é, a impossibilidade de serem revogados apenas por uma das partes.

Se o contrato é formado pelo consenso, apenas pelo consenso pode se desfazer.

É claro que acabamos de ver que o contrato pode acabar, terminar, com a vontade de um só (contrato por tempo indeterminado) mas é que, nesse caso, como vimos, diz-se ter havido uma autorização tácita para a denúncia, não chega a haver derrogação do princípio

Essa irrevogabilidade do contrato é, em suma, um corolário, uma decor-rência do princípio da obrigatoriedade dos contratos, que é reforçado por ele.

Nesse mesmo sentido, poderíamos dizer que outro efeito dos contratos é sua intangibilidade.

Da mesma maneira que o contrato não pode ser revogado por vontade de uma só das partes, tampouco pode ser modifi cado por vontade individual, unilateral.

Já vimos e ainda vamos retornar ao assunto, que circunstâncias especiais, podem autorizar a modifi cação das cláusulas do contrato pelo Juiz, mesmo sem a autorização de uma das partes. É uma Exceção.

Agora, nada impede que pelo mútuo consentimento, ambas as partes re-solvam alterar o contrato, o que, quando por escrito, é feito através de adi-tamento.

O aditamento, a modifi cação em geral, signifi ca um novo contrato?Depende da profundidade da alteração.Se o aditamento é tão somente para prorrogar a vigência, não confi gura novo

contrato, mas o mesmo. Se a modifi cação é profunda, aí importa em novação.

Relatividade:

Bom, o principal efeito é a produção de obrigações para as partes. E só para as partes em razão da relatividade. Só as pessoas que estipularam o con-

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trato se obrigam (por isso se diz que o contrato “é lei entre as partes”). O contrato é res inter alios acta.

Mas há exceções, em que o contrato atinge terceiros com seus efeitos.Como seria isso? Impondo-lhes obrigações?Em geral, um contrato celebrado pelas partes não pode impor obrigações

a terceiros, o que, aliás, seria um prejuízo para a segurança das relações. Era assim que pensavam os romanos (alteris stipulatio non potest).

(i) Mas há uma exceção: a dos sucessores a título universal, que recebem todos os direitos e obrigações do de cujus (ainda que até as forças da herança).

Olhem bem. Um contrato pode perfeitamente prometer um fato de ter-ceiro (fulano lhe entregará o livro no fi nal da semana). Obviamente pressu-põe que aquele que está contratando já tinha uma combinação com o fulano.

Mas mesmo nesse caso, não podemos dizer que o contrato atinja terceiros, pois o que vai acontecer se o terceiro não cumprir? NADA contra o terceiro.

O contratante pode exigir do terceiro a entrega do livro? Não, pois ele não se obrigou pelo contrato. Ele não tinha qualquer obrigação.

Outra situação é a venda de coisa de outra pessoa. Nada impede, como veremos, que eu contrate vender para vocês uma coisa que pertence a outra pessoa. Nesse caso, se a outra pessoa não entrega a coisa, não vão vocês poder exigir a coisa dela, pois ela não se obrigou. Aqui também não há exceção ao princípio da relatividade.

(ii) Outra situação em que há realmente exceção ao princípio da relati-vidade é a estipulação em favor de terceiro. Se o Direito não admite que os contratos celebrados entre as partes obriguem a terceiros, acaba admitindo, diante da necessidade da prática, os contratos celebrados entre as partes que benefi ciem terceiros.

ESTIPULAÇÃO EM FAVOR DE TERCEIRO

Histórico:

O Direito Romano não aceitava a extensão dos efeitos a terceiros (alteri stipulatio non potest; res inter alios acta tertius nec prodes, nec nocet):

Dizia-se que o terceiro não poderia exigir o cumprimento da obrigação pois não teria direito de crédito; e, ao mesmo tempo,

Que o estipulante também não o poderia. Não por não ter direito de cré-dito, mas por não ter interesse (San Tiago Dantas, pág. 211).

No entanto, o Direito moderno admite expressamente a hipótese, a pos-sibilidade de que o próprio benefi ciário exija a prestação e admite que o estipulante também o faça.

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Como funcionam essas estipulações?

Duas partes celebram negócio em que uma delas se obriga, a pedido da outra, a entregar ou fazer algo em benefício de terceira pessoa. A pessoa que pede chama-se estipulante (ou promissário) e a que se obriga, a pedido da outra, a entregar ou fazer algo, promitente. O terceiro é o benefi ciário.

Exemplos:Contrato de seguro de vida;Doação com encargo em favor de uma terceira pessoa;Contrato de transporte — entrega em favor de terceiro.Troca de um terreno por outro com a condição de dar passagem a terceiro.Defi nição: “é o contrato em que um dos contratantes (promitente) atribui,

por conta e à ordem do outro (promissário), uma vantagem a um terceiro (bene-fi ciário), estranho à relação contratual” (Antunes Varela, pág. 421).

A estipulação em favor de terceiro não se confunde com outros contratos em que há um benefi ciado que, contudo, não dispõe de qualquer direito de crédito em face do devedor: exemplo: presente de casamento.

Os alemães chamam de “contratos autorizativos da prestação a terceiro”.Para que haja contrato a favor de terceiro é preciso que este seja titular do crédito.

Efeitos:

Do contrato a favor de terceiro, nascem duas relações distintas:(i) a relação entre o promissário e o promitente; eNesse sentido o contrato a favor de terceiro é um meio de que se serve o

promissário para fazer uma atribuição patrimonial indireta.Relação de Cobertura ou de Provisão.O promissário tem direito de crédito quanto à prestação:Art. 1.098: O que estipula em favor de terceiro pode exigir o cumprimen-

to da obrigação.O promissário continua a ter os direitos decorrentes do contrato (denún-

cia, anulação, rescisão, exigir indenização etc).O promitente também.O promitente só não pode invocar meios de defesa baseados na sua relação

com o terceiro ou na relação entre o terceiro e o promissário.(ii) a relação entre o promissário e o terceiro:Relação de Valuta.O terceiro tem direito de crédito quanto à prestação, a não ser que se trate

de benefício sujeito à revogação ou alteração em razão da própria natureza do contrato:

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Art. 1.098, parágrafo único: Ao terceiro, em favor de que se estipulou a obrigação, também é permitido exigi-la, fi cando, todavia, sujeito às con-dições e normas do contrato, se a ele anuir, e o estipulante o não inovar nos termos do art. 1.100.

Art. 1.100: O estipulante pode reservar-se o direito de substituir o tercei-ro designado no contrato, independentemente de sua anuência e da do outro contratante.

Tem também direito quanto aos consectários do contrato (redibição etc).O promissário/estipulante não pode exonerar o devedor:Art. 1.099: Se ao terceiro, em favor de quem se fez o contrato, se deixar

o direito de reclamar-lhe a execução, não poderá o estipulante exonerar o devedor.

Se fôssemos considerar o princípio tal qual era no âmbito do Direito Ro-mano, não poderíamos aceitar que isso ocorresse, pois alteri stipulatio non potest e res inter alios acta tertius nec prodes, nec nocet.

Isso consta expressamente dos arts. 1098 e 1099 do Código Civil.

EXCEÇÃO DE CONTRATO NÃO CUMPRIDO

Quando falamos das classifi cações dos contratos, vimos, dentre elas, aque-la que diferencia os contratos unilaterais dos bilaterais. Essa é uma das mais importantes classifi cações pois o fato de um contrato se unilateral ou bilateral faz com que o legislador atribua a ele consequências serias, principalmente quanto à interpretação e à existência de determinados mecanismos que a eles se aplicam.

Nós vimos que o principal efeito de um contrato é que ele cria obrigações.No contrato unilateral não nascem obrigações equivalentes para as par-

tes, mas no contrato bilateral nascem obrigações equivalentes para ambas as partes. De acordo com o princípio da obrigatoriedade (pacta sunt servanda), essas obrigações devem ser cumpridas por cada uma das partes, não podendo sofrer alteração ou serem desconsideradas por só uma delas.

Ora, em razão disso, essa obrigatoriedade que vincula as partes o que deve acontecer se uma delas não cumpre sua obrigação?

Em um primeiro momento (e para o Direito Romano era assim), como cada uma das partes estava restringida com o peso da obrigatoriedade, com o peso da sua própria obrigação, não era lógico que deixasse de cumpri-la se a outra parte não cumprisse a sua, pois do contrato nasceram obrigações es-pecífi cas e isoladas para cada uma das partes e, considerando-as isoladamente cada uma delas estaria adstrita ao cumprimento de sua obrigação.

Lembrem-se do Direito das Obrigações que estudaram no período passa-do: a partir do momento em que surge a obrigação, nasce o direito do credor

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de exigir o cumprimento e esse deve ser feito sob pena de responsabilização por perdas e danos. Nessa idéia técnica, cada uma das partes de um contrato estaria adstrita ao cumprimento de sua obrigação, não importando o que ocorresse. E essa era, então, a solução adotada pelos lógicos e técnicos roma-nos.

No entanto, como reporta San Tiago Dantas (pág. 188, vol. 2), desde cedo se percebeu que essa “solução lógica contrariava fortemente a equidade e o próprio interesse que preside o funcionamento dos contratos”. E eu acrescentaria: especialmente o funcionamento dos contratos sinalagmáticos, que, como vi-mos, são aqueles contratos bilaterais em que há sempre uma interdependên-cia recíproca entre as prestações (sinalagma genético e funcional).

Nesses contratos, a obrigação de uma parte é causa, é a justifi cativa da obrigação da outra parte; uma não existe sem a outra, não justifi ca sua exis-tência senão na outra.

Por isso, se uma das partes não cumpre sua obrigação, a outra pode recu-sar-se a cumprir a sua, já que esse cumprimento, pelo contrato sinalagmático, somente se justifi caria perante o outro. A parte compradora só paga o preço para obter a coisa. Se não obtém a coisa visada, não precisa pagar o preço.

É nisso que consiste a exceção de contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus), que se encontra prevista no artigo 1.092, caput, 1ª par-te, do Código Civil: “Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro”.

Vejam que o dispositivo refere-se a contrato bilateral em que há obrigações equivalentes de ambas as partes. Mas isso não é sufi ciente, pois, como vimos, há contratos bilaterais em que uma parte mesmo se cumprida a sua obrigação não poderá exigir a do outro se a obrigação do outro for aleatória e a condição não se tiver verifi cado.

Aqui há uma interdependência inicial das obrigações, mas pode não haver troca entre elas.

Por isso é que além de bilateral, para que seja aplicada a exceção, o contra-to tem que ser sinalagmático, genética e funcionalmente.

A exceção de contrato não cumprido é exatamente a faculdade que tem uma parte em um contrato bilateral, sinalagmático, de recusar o cumprimen-to de sua obrigação caso a outra parte não tenha cumprido a dele.

Nomenclatura:

Bom, exceção, porque? Vejam que eu disse que inicialmente não se acei-tava essa forma de opor-se à pretensão da outra parte, mesmo que ela não tivesse cumprido. Pois é, a exceptio passou a ser admitida, com a evolução do Direito, precisamente em razão da equidade e do equilíbrio entre as partes.

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E ela só passou a ser admitida pois sua argumentação passou a ser insistente-mente deduzida na defesa contra a outra parte “cara de pau” que mesmo sem cumprir sua parte vinha exigir a do outro.

E “exceção”, na linguagem processual, é defesa. Antigamente, defesa era chamada de exceção.

E justamente por ter surgido como defesa contra a parte “cara de pau”, passou a ser conhecida como exceção de contrato não cumprido que, na épo-ca, nada mais era, que defesa por contrato não cumprido.

Hoje em dia, no processo civil, o termo (“exceção”) é usado como uma espécie de defesa dilatória ou extintiva.

A exceção era então utilizada para impedir, para bloquear o pedido do autor evitando que ele conseguisse ver seu direito reconhecido.

Utilização:

Agora, não é por isso que a exceção, essa faculdade de recusar o cum-primento diante do inadimplemento da outra parte, só possa ser usada por alguém que esteja na posição de réu. Começou assim. Mas nada impede que a faculdade seja usada em uma inicial pela parte na posição de autor.

É só imaginar o caso em que a parte não cumpriu com sua obrigação esteja exigindo, por exemplo, através de boletas bancárias o pagamento da outra e inclusive com ameaças de levar seu nome ao SPC. A parte inocente não precisa fi car esperando o “cara de pau” cobrar em Juízo para só então se valer da exceção como réu. Ela pode simplesmente ajuizar uma ação para que seja reconhecido o seu direito de não pagar até que a outra cumpra.

E quais as condições para o uso da exceção?(i) Ora, a primeira delas é um tanto óbvio. A princípio só se pode valer da

exceção a parte que teria que cumprir em segundo lugar, pois só ela tem a seu favor o descumprimento da outra.

O uso da exceção raramente será feito em contrato instantâneo de execu-ção imediata. Neste, uma parte recebe a obrigação da outra ao mesmo tempo em que cumpre a sua. Basta lembrar do contrato de compra e venda à vista. O vendedor entrega a coisa e o comprador paga o preço na mesma ocasião.

Mas se um comprador acerta com um vendedor para que este entregue a mercadoria no dia 30.09, devendo pagar o preço só no dia 30.10 e o ven-dedor, chegado o dia 30.09, não cumpre, deixando de entregar a coisa, e mesmo assim, vem a exigir o pagamento do preço, o comprador poderá opor a exceção de contrato não cumprido, pois ele é que teria de cumprir em se-gundo lugar.

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Assim, parece óbvio que alguém que tenha que cumprir em primeiro lugar não possa invocar a exceção pois não poderá alegar o descumprimento da outra parte.

É, mas não se assustem seu eu disser que há uma exceção a essa regra.O que vocês diriam se eu lhes contasse a seguinte história: os mesmos

comprador e vendedor do exemplo acima celebram um contrato nas mesmas condições. Agora imaginem que na data acordada para a entrega da coisa, dia 30.09, o vendedor fi ca sabendo que o comprador não poderá cumprir com sua obrigação, pagando o preço, por estar com sua falência decretada ou em outra situação qualquer que o impeça de cumprir. O comprador deve mesmo assim cumprir a dele?

Não, pelas mesmas razões de equidade e de equilíbrio, seria injusto obrigá--lo a entregar a coisa sabendo de antemão que o comprador não poderia pagar. Então, nessa condição excepcional que se daria, por exemplo, com a falência do comprador, ele pode se valer da exceção.

É o que diz o artigo 1.092, caput, 2ª parte, do Código Civil. Mas é claro que tem que haver fundadas razões para a invocação:

Art. 1.092, caput: Nos contratos bilaterais, nenhum dos contraentes, an-tes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.

Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratan-tes diminuição em seu patrimônio, capaz de comprometer ou tornar duvi-dosa a prestação pela qual se obrigou, pode a parte, a quem incumbe fazer prestação em primeiro lugar, recusar-se a esta, até que a outra satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la.

(ii) É exigida também certa equivalência nas prestações para que se possa invocar a exceção.

Jurisprudência:

1) Importância no que se refere à formação de título executivo:32063185 JCCB.1092 — DIREITO PROCESSUAL CIVIL — PRO-

CESSUAL CIVIL — AGRAVO DE INSTRUMENTO — EXECUÇÃO — CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE ADVOCACIA — O processo de execução impõe ao executado o ônus de garantir o juízo através de constrição judicial, que se torna ato oneroso ilegítimo quando o título executivo em que se fulcra a execução não se apresenta, prima facie, com todos os requisitos previstos em lei. No caso de contrato regente de obri-gações bilaterais a serem cumpridas pelas partes, tem entendido a jurispru-dência que não é título executivo quando “passível de alegação da exceção de contrato não cumprido” (art. 1092, CC). Agravo de instrumento instruído com documentos sufi cientes para retirar a força executiva que decorreria do

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contrato de prestação de serviços de advocacia, devendo as relações existentes ou que existiram entre as partes obter acertamento pela via própria. Agravo de instrumento provido. Decisão reformada com a extinção da execução. Co-nhecer. Dar provimento. Unânime. (TJDF — AGI 19990020032254 — 3ª T.Cív. — Rel. Des. Campos Amaral — DJU 15.03.2000 — p. 19)

2) Peculiaridade do Contrato de Seguro:310874 — JCPC.743.IV SEGURO — PRÊMIO E INDENIZAÇÃO

— EXCEÇÃO DE CONTRATO NÃO-CUMPRIDO — EXCESSO DE EXECUÇÃO INEXISTENTE — I — “Qualquer indenização decorrente do contrato de seguros dependerá da prova de pagamento do prêmio devido, antes da ocorrência do sinistro” (art. 12, parágrafo único, do Decreto-lei nº 73, de 21 de novembro de 1966). II — Estabelecida legalmente a sucessivi-dade no cumprimento das obrigações, não cabe ao segurado, para eximir-se do pagamento do prêmio, invocar a exceção de contrato não-cumprido re-lativamente a indenizações a que julgar ter direito, cujos pagamentos foram negados, seja por falta de liquidação do sinistro, seja por falta de pagamento do respectivo prêmio, daí não se confi gurar qualquer excesso de execução (art. 743, IV, do CPC). III — Inexistência de prova, outrossim, de não ter a seguradora, que se encontrava sob intervenção extrajudicial, capacidade de pagamento das indenizações. IV — Apelação improvida. (TRF 1ª R. — AC 89.01.24601-5 — AM — 3ª T. — Rel. Juiz Conv. Jamil Rosa de Jesus — DJU 12.02.1999 — p. 171)

3) Visão arcaica da relação contratual. Pelo Código de Defesa do Consu-midor é possível admitir a exceção, já que, embora envolvendo mais de duas partes, para o consumidor a relação é uma só:

33018870 — CONSTITUCIONAL, CIVIL E PROCESSUAL CIVIL — EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL — CONTRATO DE MÚTUO IMO-BILIÁRIO — CORREÇÃO PELA TAXA REFERENCIAL — EXCEÇÃO DE CONTRATO NÃO CUMPRIDO, INCABIMENTO — CAUTELAR PARA SUSPENSÃO DO LEILÃO — LIMINAR INDEFERIDA — I. A constitucionalidade da execução extrajudicial de contrato de mútuo imobili-ário, nos termos do Decreto-lei nº 70, 21 de novembro de 1966, foi muitas vezes afi rmada pelo antigo Tribunal Federal de Recursos e por este Tribunal, cf., respectivamente, AC nº 148.203-SC, relator Min. PEDRO ACIOLI, e AC nº 94.01.24085-0/PI, relatora Juíza ELIANA CLAMON, entre outros julgados. II. A possibilidade de dano irreparável, com a venda de imóvel em leilão, é veraz. A periclitação do direito da mutuária, entretanto, decorre de ato seu, deixando deliberadamente de pagar as prestações do fi nanciamento, afi rmando que “não mais interessa o pagamento das prestações se a suplicante tem créditos a serem havidos junto à suplicada”, em face de ação de rescisão de contrato de compra e venda ajuizada contra a mutuante e a incorporado-ra, ao fundamento de que o imóvel é de qualidade inferior à prometida, e que

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a correção das prestações está sendo feita pela Taxa Referencial, por isso invo-ca a exceção de contrato não cumprido. III. Entretanto, a exceção de contrato não cumprido não pode ser oposta à mutuante e credora hipotecária, que cumpriu inteiramente a obrigação que lhe cabia, colocando à disposição da mutuária o dinheiro necessário à aquisição do imóvel, não havendo, como seria curial em contratos sujeitos à referida exceção, simultaneidade das pres-tações. No contrato de mútuo de dinheiro há sucessividade no cumprimento das obrigações de cada parte, cabendo ao mutuante entregar o dinheiro, que posteriormente será devolvido pelo mutuário, com os acréscimos contrata-dos. IV. Agravo improvido. (TRF 1ª R. — AG 01028625 — DF — 3ª T. — Rel. Juiz Jamil Rosa de Jesus — DJU 26.02.1999 — p. 282)

4) Deve haver equivalência das prestações:32044591 JCPC.1070 JCPC.18.2 — DIREITO CIVIL — Compra e

venda com reserva de domínio. Mora. Registro do contrato. Litigância de má—fé. Comprovada a mora, não subsiste a alegação de carência da ação dos arts. 1.070 e seguintes do CPC — O registro do contrato é exigível para prova perante terceiro. A falta de imediato registro não exime o devedor do pagamento das prestações devidas, muito menos impede o protesto e a co-brança pelo credor. Não há campo para o exercício da exceção de contrato não cumprido. Adequação da indenização deferida ao réu, com base no art. 18, § 2º, do CPC — Apelo desprovido. (TJDF — APC 027088 — (Reg. 20) — 4ª T.Cív. — Rel. Des. Mário Machado — DJU 03.11.1999)

5) Entrega de Imóveis32052811 — DIREITO PROCESSUAL CIVIL — Sentença. Nulidade.

Civil. Promessa de compra e venda. Rescisão. I — A sentença extra peti-ta incide em nulidade porque soluciona causa diversa da que foi proposta através do pedido. O defeito da sentença ultra petita, por seu turno, não é totalmente igual ao da extra petita. Naquela, o juiz decide o pedido, mas vai além dele, dando ao autor mais do que fora pleiteado. A nulidade, então, é parcial, não indo além do excesso praticado, de sorte que não cabe a anulação de todo o decisório, mas apenas o decote daquilo que ultrapassou o pedido. II — Constantes dos autos elementos de prova documental sufi cientes para formar o convencimento do julgador, inocorre cerceamento de defesa se jul-gada antecipadamente a controvérsia, precedentes do STJ. III— assenta-se a exceção do contrato não cumprido, no princípio de que cada um dos contra-tantes está sujeito ao cumprimento estrito das cláusulas contratuais. IV — O contrato consubstancia uma avença que envolve um conjunto de interesse adaptados a um momento histórico e a uma realidade econômica reinante. Dentro dessa concepção, se alguém compra um imóvel a ser entregue em certo prazo é porque o quer e dele necessita naquele prazo. Nesse contexto, a grave inadimplência da vendedora, atrasando a entrega da obra por 06 (seis) meses, constitui causa autônoma e por si só sufi ciente para a rescisão, sendo

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devida a devolução de todas as importâncias recebidas, devidamente corri-gidas a partir de seu efetivo desembolso. (TJDF — AC 3760495 — (Reg. 2.785) — 3ª T.Cív. — Rel. Des. Nancy Andrighi — DJU 06.03.1996)

CLÁUSULA RESOLUTIVA TÁCITA

É uma disposição que se aplica tão somente aos contratos bilaterais. Em-bora seja uma das hipóteses de rescisão do contrato, deve ser tratada aqui para aproveitar a distinção, feita quando da classifi cação dos contratos bilaterais.

E as mesmas considerações feitas à exceptio aplicam-se aqui. Não basta que o contrato seja bilateral, mas tem que ser também sinalagmático.

Já vimos que no Direito Romano a técnica e a lógica não permitiam que a parte se esquivasse do cumprimento de sua obrigação porque a outra não o fez. As obrigações eram consideradas de modo distinto e só podiam ser infl uenciadas por fatores externos, específi cos e fortuitos.

Mas pelos mesmo motivos que se passou a admitir a recusa de cumpri-mento através da exceção, também se passou a admitir que a parte prejudi-cada pelo inadimplemento da outra, ao invés de permanecer vinculada ao contrato, pedisse logo a extinção do vínculo, a resolução, já que se o outro não cumpriu ela também poderia ser exonerada do cumprimento.

Na verdade, porquê manter a relação contratual, estagnada pelo uso da exceção indefi nidamente? Essa indefi nição quanto ao cumprimento da parte que inicialmente inadimpliu geralmente faz com que não haja mais interesse (por parte do prejudicado) no recebimento da prestação inicialmente recu-sada e, portanto, na própria manutenção do vínculo. Mais vale desfaze-lo de pronto.

Inicialmente isso se deu através da imposição de um pacto comissório (pacto de extinção), uma cláusula inserida nos contratos.

Nomenclatura:

De acordo com a lição de Francisco Clementino de San Tiago Dantas, no Direito francês antigo, a inclusão dessa cláusula era permitida mas seus efei-tos só se davam após declarada sua aplicação por sentença. E de tão comum a sua utilização, chegou a um ponto em que passou a ser presumida existente mesmo quando não expressa. E foi assim que foi incorporada tacitamente a todos os contratos sinalagmáticos (Mazeaud rechaça essa explicação, dizen-do que a origem deve ser reconhecida nos contratos inominados do Direito Romano: ver p.1139). Daí cláusula resolutiva tácita. Está prevista em nosso Direito no parágrafo único do artigo 1.092:

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Art. 1.092, parágrafo único: A parte lesada pelo inadimplemento pode requerer a rescisão do contrato com perdas e danos.

Efeitos:

(i) O sistema francês, que adotamos, considera que a cláusula resolutiva não opera de pleno direito (ipso iure), mas requer declaração judicial para que opere seus efeitos (ope judice), exigindo a intervenção judicial para que o vínculo seja desfeito.

E porque?Porque se reconhece ainda haver para o prejudicado a faculdade de exigir o

cumprimento da obrigação, o que se saberá com a interpelação judicial (nesta o prejudicado dirá se pretende a execução ou o desfazimento).

(ii) A sentença tem natureza constitutiva (negativa).(iii) As coisas se restituem ao estado em que antes se encontravam.Falar da Cláusula resolutiva expressa.

ARRAS

Nomenclatura e Origem:

A palavra vem, como reportam Caio Mário e Darcy Arruda Miranda, do latim “arrha” que teve talvez origem semítica, querendo signifi car garantia, penhor.

Lembrem-se de que lhes falei que no Direito Romano os contratos não se formavam pelo simples consentimento? Que as partes se valiam de determi-nados rituais e objetos para simbolizar e solenizar o acordo a que haviam che-gado? Pois bem, em diversas situações as partes trocavam objetos ou davam uma parcela daquilo sobre o que contratavam exatamente para indicar, para comprovar a realização do consenso:

Surgiram “no Direito Romano, num tempo em que o consenso, por si só e de-sacompanhado de outras formalidades, não bastava para vincular o contratante” (Silvio Rodrigues, p. 83) e, por isso, tinham, historicamente, a função de confi rmar, de reforçar o vínculo.

Admite-se a existência de arras, também, no Direito de Família (arras es-ponsalícias) para confi rmar o casamento.

Função:Foi mais ou menos com essa função de comprovação que as arras chega-

ram ao Direito Moderno, sendo utilizadas mesmo sabendo-se que é o con-senso que basta para obrigar e vincular as partes (solu consensus obligat) para

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reforçar e confi rmar a celebração do contrato, isto é, o alcance do consenti-mento mútuo do consenso.

“À medida que as convenções se tornaram obrigatórias, pela própria força do consentimento, as arras perderam esse caráter de elemento reforçador do vínculo, para se tornarem instrumento probatório, isto é, uma demonstração ostensiva da realização do contrato” (Silvio Rodrigues, p. 84).

Servem para indicar, precisar e demarcar (facilitando a comprovação) aquele específi co momento em que o consentimento de uma parte e de outra se encontram, no mesmo lugar fi cando (duorum vel plurium in idem placitum consensus).

Tem-se então que as arras chegaram até nós como uma confi rmação do acordo de vontades que é dada exatamente no momento (concomitantemen-te) ou posteriormente à celebração (muito embora Orlando Gomes reporte existência das chamadas “arras assecuratórias” que seriam prestadas anterior-mente à formação do vínculo contratual).

E nesse sentido, exatamente por servirem como marco ou sinal do mo-mento da celebração do consenso, dadas as arras por uma das partes, não há dúvida de que tal contrato está concluído, de modo que se uma das partes se recusa a cumprir está quebrando o contrato.

É essa idéia que se encontra no artigo 1.094 do Código Civil: “o sinal, ou arras, dado por um dos contraentes fi rma a presunção do acordo fi nal, e torna obrigatório o contrato”.

“Firma a presunção” — é exatamente que através dela se reconhece o con-senso. A presunção é absoluta.

Vejam que a lei fala em “torna obrigatório o contrato”, mas na verdade não são as arras que tornam o contrato obrigatório. Como já sabemos, o contrato é obrigatório pelo simples consentimento; o que torna o contrato obrigatório é o consenso. Mas através das arras temos a certeza desse consenso.

É por isso que as arras são dadas no momento ou após a celebração do contrato, nunca antes. Essas arras, por tudo isso, recebem o nome de ARRAS CONFIRMATÓRIAS em oposição às ARRAS PENITENCIAIS que já es-tudaremos.

O que pode constituir em arras:

Pode constituir arras qualquer coisa móvel, sendo geralmente uma quantia em dinheiro. Lembrem-se que, nas origens, as arras consistiam em um obje-to, geralmente de valor de estimação (emocional) de uma das partes, por isso podem até hoje ser assim constituídas.

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Destino das Arras em Dinheiro:

O artigo 1.096 diz que: “salvo estipulação em contrário, as arras em dinheiro consideram-se princípio de pagamento”.

O que se quer dizer é que elas são computadas no preço total a ser pago ao se cumprir fi nalmente o contrato. Elas entrarão como parte do preço pago. Não constituem um valor a mais.

A doutrina aponta uma imperfeição nesse ponto (ao se referir apenas a di-nheiro), pois se o objeto a ser dado for uma coisa fungível, as arras podem ser dadas em outras coisas da mesma espécie e, assim também podem consistir na parte ou parcela inicial do pagamento (v. Carvalho Santos, pág. 277, vol. XV).

Destino das Arras que Não Dinheiro ou Bem Fungível com o Objeto do Contrato:

Se não forem dinheiro ou uma outra coisa fungível, da mesma natureza do objeto do contrato, não podem ser consideradas princípio de pagamento e, conforme determina o artigo 1.096, segunda parte, devem ser restituídas, seja quando:

(i) o contrato for concluído (e concluído aqui foi colocado equivocada-mente, pois não quer dizer celebrado, mas cumprido, executado, como o próprio Clóvis Beviláqua observa), posto que a coisa só fora dada como pro-va, não poderia ser aproveitada como parte do pagamento; ou

(ii) fi car desfeito (e com isso quer dizer resolvido sem culpa de qualquer das partes, como por exemplo, fi car impossibilitado por motivo de força maior ou caso fortuito).

Agora, o que ocorre se o contrato em que foi dado um sinal confi rmatório se impossibilitar por culpa de uma das partes?

O Código Civil trata do assunto no artigo 1.097 que é um dos mais dis-cutidos e criticados do Livro das Obrigações.

Art. 1.097: Se o que deu arras der causa a se impossibilitar a prestação ou a se rescindir o contrato, perde-las-a em benefício do outro.

Esse artigo trata da culpa daquele que deu arras.Seria a punição do Código ao inadimplente ou culpado que deu arras que

não obedeceu ou prejudicou a obrigatoriedade do contrato.Mas e aí? É só isso?Se o que deu o sinal, dá causa à impossibilidade, por exemplo, o outro,

prejudicado, fi cará com as arras. E só?Não tem direito a perdas e danos? Para responder, precisamos comentar

sobre as chamadas arras penitenciais, de modo a comparar a solução de umas e de outras.

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ARRAS PENITENCIAIS

As arras confi rmatórias é que existiam originalmente, como falamos. As arras confi rmatórias é que preenchem a função de prova do consenso cele-brado. Mas na fase de codifi cação do Direito Romano, na era de Justiniano, talvez por uma confusão na interpretação das fontes, passou-se a admitir a possibilidade de arrependimento mesmo após dadas as arras ou o sinal. De-senvolveu-se, então, a idéia de que as arras poderiam ser dadas anteriormente à celebração do contrato (e obviamente antes do nascimento do vínculo e da obrigatoriedade), pelo que perderiam a sua função confi rmatória, passando a servir como compensação pelo arrependimento, de modo que se o arrependi-do fosse o que deu arras, perdê-las-ia e se fosse o que as recebeu, devolvê-las-ia em dobro. Não haveria, portanto, já que dadas antes do consenso, que se falar em quebra do contrato que ainda não fora celebrado.

No entanto, passou-se a admitir também que as arras, mesmo dadas após a celebração ou junto a com a celebração, poderiam ter essa função de autorizar o arrependimento stricto sensu e, mesmo o inadimplemento.

Algumas legislações, como a francesa, adotaram essa arras, que se chama-vam ARRAS PENITENCIAIS (de pena em razão da desistência) como regra.

Arras Confirmatórias como Regras:

Nosso Direito anteriormente seguia essa orientação, mas com o Código de 1916, adotou o sistema alemão, voltando à tradição e considera as arras confi rmatórias como regra, embora admita as penitenciais por estipulação das partes.

É o que diz o artigo 1.095: “Podem, porém, as partes estipular o direito de se arrepender, não obstante as arras dadas. Em caso tal, se o arrependido for o que as deu, perdê-las-á em proveito do outro; se o que as recebeu, restitui-las-á em dobro”.

Veja que o dispositivo fala em “não obstante as arras dadas” que, de regra, teriam o caráter confi rmatório.

Nosso Direito, quis, então, afastar a possibilidade de arrependimento na regra das arras, estabelecendo a presunção de arras confi rmatórias o que im-pediria a recusa de cumprimento do contrato após esse tipo de arras dadas.

Função:

Ao contrário, as arras penitenciais dão conta da possibilidade de arrepen-dimento e funcionam à semelhança de uma cláusula penal, pré-fi xando as

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perdas e danos ou pela não-celebração do contrato ou pelo próprio desfazi-mento do contrato.

Diferenças com Outras Figuras:

Mas é importante frisar que as arras penitenciais não se confundem com a cláusula penal. Têm caráter real (dependendo da entrega da coisa para pro-duzir os efeitos) e são prestadas com antecipação, ao contrário desta que é meramente consensual e são devidas posteriormente.

Além disso, a cláusula penal está vinculada ao inadimplemento, à quebra do contrato, enquanto que as arras relacionam-se a uma simples desfazimen-to, no máximo uma resilição. Relacionam-se não a um ilícito contratual, mas ao exercício de um Direito.

Voltando ao art. 1.097:

Bom, exatamente porque nosso Direito quis evitar o arrependimento como regra, dando, salvo cláusula em contrário, às arras a função de com-provação do vínculo, não poderia o artigo 1.097 ter dado solução igual à do artigo 1.095 (arras penitenciais) como parece fazer crer sua redação: “Se o que deu arras der causa a se impossibilitar a prestação, ou a se rescindir o contrato, perdê-las-á em benefício do outro”.

Isso é o mesmo que admitir o arrependimento pois dá à parte a faculdade de escolher, de trocar o cumprimento da obrigação pelas arras dadas!!!

Neste caso, as arras confi rmatórias também teriam o signifi cado de uma pré-fi xação das perdas e danos! e aí estariam relacionadas à quebra do contra-to, embora também não se erigissem em cláusula penal.

“Com efeito, se a lei dispõe que o inadimplente perde as arras dadas ao não cumprir o ajuste, deve-se entender que esta é a única pena que o legislador impõe, donde deriva a necessidade de se interpretar o texto no sentido de ser sempre lícito o arrependimento, mesmo na falta de convenção expressa, mediante perda do si-nal. Ora, através dessa exegese, de resto a mais literal, estaria o legislador de 1916 reinstalando no Código, pelo art. 1.097, o entendimento penitencial das arras, que ele mesmo banira com o art. 1.094” (Silvio Rodrigues, p. 90).

Por isso que muitos vêm entendendo que não se fi ca restrito só à retenção das arras, mas admitem pleitear também perdas e danos (J.X. Carvalho de Mendonça e João Luiz Alves).

O que outros, como Silvio Rodrigues, entendem ser uma solução iníqua, pois permitiria o enriquecimento da parte prejudicada que, mesmo tendo re-cebido a reparação através das perdas e danos, ainda reteria as arras. Segundo

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ele, que compara a redação de nosso Código com aquela do art. 338 do BGB, sua eventual fonte de inspiração, a solução é alternativa: ou a parte escolhe fi car com as arras ou pede perdas e danos, caso em que as arras devem ser imputadas na indenização.

Caio Mário, após dar conta de que, atualmente, a tendência é afastar a característica limitativa das perdas e danos (p.68), diz que a solução vai variar de acordo com o exame do contrato concreto, donde se poderá determinar se as partes tiveram ou não a intenção de, através das arras, pré-fi xar as perdas e danos.

Resumindo, quatro são as posições:(i) as arras cumprem a função de indenização; nada mais é devido (Or-

lando Gomes (p.100), WBM (p.44), Arnaldo Rizzardo (p.192) e Clóvis Be-viláqua);

(ii) as arras podem ser cumuladas com as perdas e danos (J.X. Carvalho de Mendonça, João Luiz Alves e J.M. Carvalho Santos (p.280));

(iii) a parte prejudicada deve escolher entre fi car com as arras ou pedir perdas e danos, descontadas as arras (Silvio Rodrigues (p.92));

(iv) a solução vai depender do caso concreto (Caio Mario (p.68)).Interpretação Extensiva do art.1.097:Outra coisa com relação ao artigo 1.097: o Código só previu solução para

o caso de culpa daquele que deu as arras. E se for aquele que recebeu? A (i) doutrina majoritária entende que só restaria a solução em perdas e danos, com a aplicação do art. 1.056 (Carvalho de Mendonça, Carvalho Santos, Clóvis Beviláqua, WBM), mas (ii) alguns prevêem a aplicação analógica do artigo 1.095, devolução em dobro (Caio Mario menciona essa posição, assim como Roldão); (iii) outros, a possibilidade de escolha entre ambos (Silvio Rodrigues, p. 92); e ainda temos (iv) a posição do Caio Mario inserida em seu Projeto de Código das Obrigações (caso concreto).

Aplicação do art.1.096:

Como se aplica o artigo 1.096 do Código Civil? Pode ele dizer respeito às arras confi rmatórias e penitenciais?

Nada impede que, dadas as arras penitenciais em dinheiro, essa quantia seja utilizada no cômputo do total do preço.

E a segunda parte do artigo (arras penitenciais diversas de dinheiro)?Nada impede sua aplicação ao contrato com arras penitenciais no caso de

cumprimento do contrato (contrato concluído). Afi nal, se a coisa dada como arras penitenciais for diferente do objeto do contrato, não servirá como parte do pagamento se o contrato for cumprido, devendo ser restituída, sob pena de enriquecimento indevido.

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E se o contrato for desfeito sem culpa?Aí a situação é diferente.Cabe anotar que essa parte do artigo não pode se aplicar ao caso das arras

penitenciais dadas anteriormente à celebração (aí não existe contrato a ser desfeito), mas tão somente àquelas dadas concomitantemente.

De qualquer modo, temos que não seria justa a retenção das arras dadas antes da celebração, pelo que devem ser restituídas (e nesse caso, mesmo em dinheiro, pois se as arras foram dadas antes da celebração, não podem considerar-se princípio de pagamento, pois o vínculo ainda não existiria).

No caso de arras dadas concomitantemente, deve ser aplicada a regra do artigo, pois não terá havido arrependimento já que o contrato fi cou desfeito sem culpa.

O arrependimento (Silvio Rodrigues) se dá também no inadimplemento.

Natureza Jurídica das Arras:

Qual a natureza jurídica das arras?Já vimos que se distinguem da cláusula penal, tanto a penitencial quanto

a confi rmatória.Não se confundem também com as obrigações alternativas pois nestas as

prestações são todas principais e as arras têm caráter acessório.São uma convenção acessória ao contrato?No caso das confi rmatórias sim.Mas e no caso das penitenciais anteriores ao contrato? Aí têm mais a natu-

reza de uma opção? Desenvolver. Dizer que é acessória pois sempre se refere a um contrato que pode ou não vir a ser celebrado.

Só se admitem nos contratos bilaterais.Arras e o Art. 53 do Código de Defesa do Consumidor

Jurisprudência:

1. — Posição no sentido de que as arras não esgotam a alternativa às per-das e danos:

DIREITO CIVIL — CIVIL — RESCISÃO CONTRATUAL — CON-TRATO SEM CLÁUSULA DE ARREPENDIMENTO — ARRAS CON-FIRMATÓRIAS — LUCROS CESSANTES — CUMULAÇÃO — BEN-FEITORIAS ÚTEIS — O sinal dado em contrato que não contém cláusula de arrependimento, ao revés, prevendo que o pacto seria irrevogável e irre-tratável, há de ser considerado confi rmatório do negócio jurídico, e não se confunde com os lucros cessantes, devidos em virtude da contraprestação

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pela ocupação prolongada do imóvel por quem deu causa à rescisão con-tratual, mesmo após serem constituídos em mora. As benfeitorias que pro-piciam aumento ou facilitam o uso da casa, mesmo que feitas por pura e exclusiva vontade dos apelados, sem nenhuma interferência dos apelantes, e que proporcionam um preço mais vantajoso no momento da alienação do imóvel a terceiros devem ser indenizadas. Dar parcial provimento. Unânime. (TJDF — APC 5081398 — 5ª T.Cív. — Relª Desª Sandra de Santis — DJU 03.05.2000 — p. 46)

2. — Arras penitenciais não dão ensejo às perdas e danos, já que as esgo-tam:

CONTRATO — RESCISÃO — PRETENDIDA DEVOLUÇÃO DE SINAL EM DOBRO — ADMISSIBILIDADE, DIANTE DE EXPRESSA PREVISÃO CONTRATUAL — Inadmissibilidade, entretanto, de perdas e danos, consubstanciadas em valores despendidos pelo apelado para se instalar no imóvel adquirido — Cuidando-se de arras penitenciais, é inadmissível a cumulação com perdas e danos — Recurso parcialmente provido para afastar a condenação em perdas e danos. (TJSP — AC 092.736-4 — São Paulo — 10ª CDPriv. — Rel. Des. Ruy Camilo — J. 09.02.2000 — v.u.)

3. — Culpa recíproca (de ambas as partes) enseja a restituição ao status quo ante:

CONTRATO — RESCISÃO — CULPA RECÍPROCA — ARRAS — Em tal caso, segundo o acórdão local, “o desfazimento do negócio com o retorno à situação anterior pela devolução simples da quantia recebida é a solução a ser admitida como justa”. Em assim sendo, não se ofendeu o art. 1.095 do Código Civil. Agravo regimental improvido. (STJ — AgRg-AG 233.957 — RJ — 3ª T. — Rel. Min. Nilson Naves — DJU 25.10.1999 — p. 81)

4. — Equívoco de interpretação, talvez pela intenção de proteção contra abusos das construtoras; arrependimento é uma modalidade de descumpri-mento, devendo ser aplicada, na hipótese, a regra do art. 1.097. A introdução é boa para confi rmação da função das arras.

COMPRA E VENDA — ARRAS CONFIRMATÓRIAS — ARRE-PENDIMENTO DA COMPRADORA — INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 1.094 A 1.097 DO CC — Ordinariamente, as arras são simplesmente con-fi rmatórias e servem apenas para início de pagamento do preço ajustado e, por demasia, se ter confi rmado o contrato, seguido a velha tradição do direito romano no tempo em que o simples acordo, desvestido de outras formalida-des, não era sufi ciente para vincular os contratantes. O arrependimento da promitente compradora só importa em perda das arras se estas foram expres-samente pactuadas como penitenciais, o que não se verifi ca na espécie. (STJ — REsp 110.528 — MG — 4ª T. — Rel. Min. Cesar Asfor Rocha — DJU 01.02.1999)

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5. — Também aqui se vê a preocupação em estabelecer o equilíbrio do contrato:

DIREITO CIVIL — Contratos. A respeito das arras o entendimento aceito é de que se não há estipulação quanto ao arrependimento, caso em que as arras seriam penitenciais, as mesmas arras são consideradas confi rmatórias, exercendo a função de confi rmar o contrato e antecipar a prestação prome-tida. O art. 924 do CC permite ao juiz, na moderna dicção jurisprudencial promanada do STJ, que se reduza o valor da cláusula penal a patamares jus-tos e razoáveis, afastando penalidades escorchantes. (TJDF — AC 5096598 — (Reg. 22) — 2ª T.Cív. — Rel. Des. Getúlio Moraes Oliveira — DJU 17.11.1999)

6. — Mostra a equivocada confusão entre os arts. 1.097 e 53 do Código de Defesa do Consumidor:

CONTRATO — ARRAS — MORA — CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR — PRECEDENTES DA CORTE — PREQUESTIO-NAMENTO — SÚMULAS NºS 05 E 07 DA CORTE — 1. O art. 1.097 do Código Civil não está revogado pelo art. 53 do Código de Defesa do Con-sumidor, e, na linha dos precedentes da corte, o especial não se presta para o reexame e a nova interpretação de cláusulas contratuais com o propósito de averiguar a pactuação de arras ou de simples prestação (Súmula nº 05/STJ). 2. Não pode a Corte examinar a constituição em mora pela regra do Decreto--Lei nº 745/69 se o mesmo não foi desafi ado pelo acórdão recorrido, ausentes os declaratórios. 3. A apreciação da culpa recíproca depende do exame da prova dos autos, o que não é possível a teor da Súmula nº 07 da corte. 4. Re-curso especial não conhecido. (STJ — REsp 138805 — SP — 3ª T. — Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito — DJU 05.10.1998 — p. 75)

7. Idem:JCCB.1097 COMPRA E VENDA — Contrato. Rescisão. Perda das ar-

ras. Cabimento. Art. 1.097 do CC — Inaplicabilidade do art. 53 do CDC, que se refere a prestações e não a sinal. (TJSP — AC 262.094-2 — 16ª C — Rel. Des. Bueno Magano — J. 27.06.1996) (01 173/46)

8. — Posição pela prevalência das perdas e danos quando se tratar de des-cumprimento causado por quem recebeu as arras, o que não é previsto no art. 1.097:

AÇÃO ORDINÁRIA — COMPRA E VENDA DE IMÓVEL — AR-RAS CONFIRMATORIAS — CONTRATO NÃO CUMPRIDO — IN-DENIZAÇÃO — PROVIMENTO PARCIAL — Ação ordinária. Perdas e danos. Compromisso de compra e venda. Sendo confi rmatorias as arras dadas, e não se completando o contrato por culpa exclusiva dos vendedores, que alienaram o imóvel à terceiro, é devida a indenização de perdas e danos, já pre-fi xadas no próprio instrumento. A devolução em dobro do sinal não é devida. Provimento parcial do recurso. (TJRJ — AC 3266/97 — (Reg.

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121297) — Cód. 97.001.03266 — Teresópolis — 10ª C.Cív. — Rel. Des. Sylvio Capanema — J. 15.10.1997)

VÍCIOS REDIBITÓRIOS

Conceito:

São vícios ocultos em uma coisa que a tornam imprópria ao uso normal ou diminuem seu valor. Isso se verifi ca da análise do artigo 1.101 do Código Civil.

Qual a importância dessa conceituação? É que a descoberta de um vício oculto tem importante consequência que é a de permitir ao adquirente da coisa viciada enjeitá-la: “a coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada por vícios ou defeitos...”.

O que é enjeitar? Enjeitar vem do latim “ejectare” que quer dizer recusar/devolver.

O adquirente de uma coisa com vício oculto que a tenha tornado impró-pria ao uso a que é destinada ou lhe diminua o valor pode devolvê-la pedin-do, obviamente, a devolução do preço que tenha pago, com o desfazimento do vínculo.

Essa rejeição importa em que? Se o vício é redibitório, na redibição do negócio? É, mas o que é redibição? Redibir vem do latim “redhibere”, anular judicialmente.

E os vícios redibitórios ensejam mesmo a anulação do contrato? (ver aula na PUC, sobre as hipóteses de anulação) até — é rescisão, então?

Não, não é rescisão pois esta depende do inadimplemento, ou seja, da culpa da parte e a solução na teoria dos vícios redibitórios não depende de culpa como se vê do artigo 1.102. Aplica-se mesmo sem a falta da parte transferinte.

Trata-se de quê, então, já que não é nem anulação nem rescisão?É hipótese de resilição, em razão do direito potestativo concedido pela lei

quando há vício oculto. Basta que o adquirente queira a redibição.Agora, voltando à primeira pergunta: o que é enjeitar? Rejeitar, devolver.

É só isso que o adquirente pode fazer, devolver a coisa viciada?Não, a lei dá a ele a oportunidade de escolher entre:(i) a redibição;(ii) e o abatimento do preço. Nessa última hipótese, a lei reconhece que a

ele pode interessar fi car com a coisa mesmo, dando-lhe o direito de pedir o abatimento do preço.

A solução é similar à depreciação na obrigação de dar coisa certa. E vejam que de certa forma há uma semelhança de situação, pois a coisa que foi re-

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cebida com vício o foi em virtude de uma obrigação de dar ou entregar que, a partir da escolha, invariavelmente tornou-se certa, podendo ser aplicada as mesmas soluções.

Art. 1.105: Em vez de rejeitar a coisa, redibindo o contrato (art. 1.101), pode o adquirente reclamar abatimento no preço (art. 178, § 2o e § 5o, IV).

Para cada uma dessa alternativas, o recebedor da coisa tem uma ação dis-tinta. São as chamadas “ações edilícias”.

Porque elas têm esse nome?Pois são o resultado de criação dos “edis curules” (singular — “edil curul”)

que eram os fi scais dos mercados romanos que tinham poder de pretores (juízes) na solução de confl itos entre mercadores e clientes. Foram eles quem primeiro desenvolveram a teoria dos vícios, elaborando dois tipos de ação, que passaram a aceitar conforme o prejudicado quisesse devolver a coisa ou fi car com ela. No primeiro caso, utilizava-se a ação redibitória, para desfazer o vínculo e possibilitar a devolução da coisa e do preço pago plenamente. No segundo caso, valia-se da ação “quanti minoris”, fi cando consolidado o vínculo, o contrato, mas dando-se a oportunidade do abatimento do preço em razão do vício.

Tais ações chegaram até nos, preservando sua função original. Se o ad-quirente quer rejeitar a coisa (artigo 1.101), usa a ação redibitória e se quer continuar com ela mas abater o preço pago, usa a ação estimatória (para estimar o valor da diminuição causada pelo vício) — que nada mais é que a ação “quanti minoris”.

Vale notar que uma vez escolhido o caminho, o adquirente não pode mu-dar de idéia. A escolha entre uma e outra é irrevogável.

O que se pode nas ações edilícias? Vimos que a solução não depende de culpa, devendo o transferente restituir o preço pago (na redibitória) ou resti-tuir parte dele (na estimatória).

Mas a solução pode variar de acordo com outro fator: o conhecimento ou desconhecimento do vício pelo transferente, isto é, sua má-fé ou boa-fé.

Se há boa-fé, ou seja, se ele não conhecia o vício, ele só restitui isso que dissemos.

Já se ele conhecia o vício (e isso caracteriza sua má-fé ao não informar o adquirente de sua existência), tem que restituir isso e ainda responde por perdas e danos.

Características:

Agora que já estudamos o que são e o que acarretam. Já podemos, para consolidar nosso estudo, enumerar as características vícios redibitórios:

(i) devem ser ocultos;

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(ii) devem ser desconhecidos pelo adquirente:(iii) devem ser pelo menos existentes ao tempo da transferência;(iv) devem tornar a coisa imprópria para o uso a que se destina ou dimi-

nuir-lhe o valor de modo signifi cante.

Fundamentos:

Qual o fundamento das regras sobre os vícios redibitórios?Orlando Gomes aponta três teorias que o tentaram explicar:(i) A primeira fundava a proteção no inadimplemento pela entrega de

coisa viciada. No entanto, tal teoria não leva em conta que o inadimplemen-to decorre de culpa e a proteção no caso dos vícios dispensa a existência de culpa.

(ii) A segunda justifi ca o mecanismo no erro: o adquirente não teria ad-quirido a coisa se soubesse da existência do vício ou, pelo menos, teria pago menor valor. Não se encaixa, pois o erro leva à anulação do negócio e o vício redibitório, como vimos, não sempre. O adquirente pode escolher o abati-mento.

(iii) Por fi m, a solução se fi rmaria na teoria dos riscos. Mas o equívoco é fl agrante. Afi nal, a teoria dos riscos estuda as consequências da perda e da deterioração causadas por evento fortuito e futuro e os vícios redibitórios não são nem um nem outro. Ao contrário, existem desde antes da contratação.

De certa forma, porém, há semelhança nos fundamentos da teoria dos ris-cos e dos vícios redibitórios que as aproximam. É que, não obstante a teoria dos vícios redibitórios se inclua na matéria dos contratos e a dos riscos mais intensamente no Direito das Obrigações, onde é mais especifi camente disci-plinada, as consequências desta última também dizem respeito a relações em que há obrigações de ambas as partes. É só nos lembrarmos que no caso, por exemplo, de uma obrigação de dar coisa certa em que ocorra a deterioração da coisa a obrigação pode persistir e ser exigida pelo credor que, então, terá direito ao abatimento no preço.

Veja-se pois que se está considerando a solução no âmbito da teoria dos riscos em atenção à correlativa obrigação de pagar o preço. A matéria poderá perfeitamente estar inserida no tópico dos contratos.

Qual é o fundamento dessa faculdade de se exigir o abatimento? Se pen-sássemos apenas na obrigação de dar a coisa certa, teríamos que considerar apenas o dever da parte em entregar a coisa certa à outra (independentemente do abatimento), já que a coisa certa ainda existe, não havendo motivo para que a obrigação não fosse cumprida.

A faculdade de exigir o abatimento do preço só é dada pelo legislador por-que ele considera que correspectivamente à obrigação de entrega havia (ou

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poderia haver) uma obrigação de trocá-la por um preço (quantia equivalen-te). Veja-se que não deixa de ser uma expectativa de haver a coisa sem defeito.

Quando ocorreu a deterioração, houve uma diminuição do valor da coisa e como essa coisa estava no patrimônio do devedor, foi este que sofreu a dimi-nuição. Não há que se falar em responsabilidade pois o patrimônio do devedor não foi chamado a responder com seus elementos integrantes. Ele simples-mente foi diretamente atingido (um de seus elementos o foi). Se a coisa ainda vai ser transferida pelo devedor, o vai diminuída. Se não houvesse considera-ção com a obrigação de pagar o preço, o credor pagaria o mesmo preço ante-riormente estabelecido para a coisa não deteriorada e o que estaria ocorrendo seria uma transferência da diminuição patrimonial do devedor para o credor já que este estaria entregando o valor total da coisa e não o valor abatido.

Não há explicação jurídica (técnica, obrigacional, tradicional, pois a boa--fé o explicaria) para essa faculdade de abatimento. Assim como não há para a faculdade de opor a exceção do contrato não cumprido já que, tecnicamente, logicamente, cada obrigação teria de ser considerada de per si, isto é, sem a interferência da outra como, aliás, entendiam os romanos.

Mas essa lógica não se mostra justa, fere o equilíbrio entre as partes já que suas obrigações eram equivalentes ou, pelo menos, amparados uma na outra. O patrimônio do devedor sofreu a deterioração, não garantiu nada. Se se conti-nuasse a exigir o pagamento do preço total, a diminuição seria transferida para o patrimônio do credor. O mecanismo legal visa, então, a impedir o desequi-líbrio. É uma medida de eqüidade que só pode ser adotada após vislumbrar-se as obrigações das partes como um sistema fechado que só admite correções e balanceamentos internos. O balanço se dá entre as obrigações correlatas.

Mas e o caso dos vícios redibitórios? Aqui também há diminuição patri-monial pelo defeito que impede o uso normal ou diminui o valor.

Orlando Gomes fala em garantia legal através do patrimônio do alienante ou transferidor da coisa que acaba colocando o patrimônio dele para respon-der pelos vícios. É isso mesmo? Eu ouso considerar que não há que se falar em responsabilidade (respondabilidade) do transferidor. Se analisarmos bem, já que o vício era anterior à transferência, o patrimônio do transferidor já sofre-ra efetivamente a diminuição consubstanciada no vício (independentemente dele diminuir o valor da venda ou não). O que ocorreu é que, depois, essa diminuição foi transferida ao adquirente que recebeu a coisa com vício mas pagou seu valor pleno (valor de uma coisa perfeita). A solução que a lei dá não faz com que o patrimônio do transferidor responda pelo vício, pois ele já havia sofrido a diminuição.

A solução que o legislador traz serve para restabelecer, para restaurar o ba-lanço, o equilíbrio entre as obrigações, dando ao adquirente a possibilidade de conseguir abatimento ou a devolução da coisa, contra o enriquecimento indevido do transferidor Na verdade, não vai responder pelos vícios, nem pela

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diminuição causada por ele e pelo pagamento do preço pleno que instaurou o desequilíbrio. Ele vai ter é que sofrer a diminuição. Não vai haver indeni-zação, mas restituição de algo que era do credor. Seu fundamento é mesmo a equidade, mais precisamente a vedação do enriquecimento indevido.

O fundamento não é a garantia legal; a lei torna o patrimônio do transferidor responsável, mas porquê? A idéia de Orlando Gomes não responde a pergunta.

Cláudia Lima Marques dá conta da Teoria da Qualidade, de Antonio Her-mann Benjamim, que encontraria a solução do dever anexo de qualidade a ser cumprido por qualquer fornecedor, com base na boa-fé.

Aplicação:

Qual a aplicação da teoria dos vícios redibitórios? Segundo o artigo 1.101, se aplica a todo contrato comutativo. Se lembram o que é um contrato co-mutativo? É aquele em que vai haver a troca das prestações, das obrigações de uma parte, tanto por tanto. A obrigação de uma parte será cumprida em troca da obrigação da outra e há certeza quanto a isso, ao contrário dos con-tratos aleatórios.

Mas essa comutatividade é mesmo necessária? Entendo que não. Se eu prometo a entrega de meu vídeo-cassete em troca de um lanço de rede, inde-pendentemente do que acontecer no lanço (ainda que o pescador não pegue nenhum peixe), se o vídeo-cassete está com vício oculto, porque não permitir a aplicação? O que indica a possibilidade é a equidade; é o restabelecimento do equilíbrio e esse equilíbrio pode-se encontrar até mesmo em alguns con-tratos apenas onerosos para uma das partes. Mas Carvalho Santos diz expres-samente que não se aplicariam aos aleatórios.

De qualquer forma o parágrafo único do artigo 1.101 faz exceção ao dis-posto, admitindo a aplicação à doação com encargo. A doutrina e jurispru-dência estendem ao comodato modal.

Por fi m, há que se lembrar que o mecanismo aplica-se inclusive se a coisa se perde em poder do adquirente, o que, pela teoria dos riscos não acontece-ria (res perit domino).

Mas não se aplica nas vendas em hasta pública.

Diferença entre Erro e Vício Redibitório

diferença conceitualconseqüênciasprazosexemplos (jóia dourada x livro faltando páginas)

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Diferença entre Inadimplemento e Vício Redibitório

exemplos (pedido carro com motor 1.8 vem com 1.6 x carro com defeito irreparável)

conseqüências

EVICÇÃO

É claro que vocês lembram que eu acabei de comparar a solução adotada nos vícios redibitórios com aquela da deterioração na obrigação de dar coisa certa e que a solução é a mesma pois o fundamento é o mesmo, isto é, a ma-nutenção do equilíbrio na relação entre as partes, balanceando uma e outra obrigação entre si. Pois bem. A evicção, ou melhor, o mecanismo adotado pelo legislador para o caso de evicção também se funda nessa mesma idéia de eqüidade.

Evicção vem do latim “evictio” = perda judicial de uma coisa. Na evic-ção, a coisa recebida pelo adquirente não se deteriorou nem apresentou vício oculto. Mas também não se perdeu, no sentido de perecimento. Ela se perde para o adquirente, para seu patrimônio, deixa de fi gurar em seu patrimônio pois foi tomada judicialmente por um terceiro em razão de direito anterior à alienação. Esse direito do terceiro sobre a coisa (reconhecido agora) fazia com que o alienante tivesse menos direito ou um menor direito do que parecia ter.

Diante disso, vários autores fazem uma analogia com os vícios redibitórios para dizer que o defeito não estava na coisa como nestes, mas no direito que o alienante tinha sobre aquela coisa.

Um caso seria o de alguém que vende uma coisa que estava sendo reivin-dicada por terceiro e após concretizado o negócio, esse terceiro acaba conse-guindo obter a coisa, tomando-a do adquirente.

Veja-se que assim como no caso dos vícios redibitórios, o adquirente (alie-nante) não tinha o que parecia ter ou tinha um direito menor que o que pensou ter transferido. Ele é que detinha a redução patrimonial, o passivo em seu patrimônio. Só que quando vendeu a coisa pelo preço pleno, trocou aquela coisa com direito viciado pelo valor de uma coisa com direito perfeito, transferindo o revés patrimonial ao adquirente.

Se a diminuição ou o passivo fora sofrido pelo alienante, não poderia este ter transferido isso para o adquirente como se tudo estivesse perfeito. A essa tomada da coisa recebida por parte de um terceiro em razão de direito ante-rior à alienação é que confi gura a evicção.

Imaginemos o caso de alguém que vende um terreno para outro, mas naquele terreno já havia outra pessoa há mais de trinta anos, caracterizando o usucapião. Esse terceiro resolveu, então, após a venda ingressar com ação

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de usucapião e ganha, vendo reconhecido seu direito à propriedade sobre o terreno. Ele, então, retoma o terreno. Seu direito era anterior à alienação (venda) pois já houve usucapião há pelos menos dez anos atrás. O adquirente fi ca a ver navios? Não, graças a regra do Código sobre evicção que devolve ao patrimônio do alienante a responsabilidade, a “respondabilidade”, a assunção da diminuição que seria sofrida pelo adquirente:

Art. 1.107: Nos contratos onerosos, pelos quais se transfere o domínio, posse ou uso, será obrigado o alienante a resguardar o adquirente dos riscos da evicção, toda vez que não se tenha excluído expressamente essa responsa-bilidade.

Aqui desse artigo se vê que as partes podem excluir essa responsabilidade. É território de jus dispositivum.

Mas o parágrafo único diz que, por outro lado, as partes podem reforçar a garantia estabelecendo, por exemplo, um multa, uma cláusula penal em caso de evicção. Agora, não obstando a cláusula que exclui a garantia da evicção, “se esta se der, tem direito o evicto (quem sofre a evicção) a recobrar o preço que pagou pela coisa evicta se não soube do risco ou, dele informado, não o assumiu”. O que o Código quer dizer com isso? Que de nada adianta a cláusula exclu-dente da garantia? Não, pois, de qualquer maneira, o alienante fi ca, mesmo que se dêem essas hipóteses, isento de responder por perdas e outras verbas.

Já voltaremos a isso. Mas primeiro, falemos das verbas devidas pela evic-ção, que estão no artigo 1.109 e outras perdas (não perdas e danos). Se há cláusula exonerativa de qualquer maneira ele fi ca isento das verbas de perdas, podendo responder só pelo preço.

O que o Código quis evitar com a regra do artigo 1.108 é que os contratos não passem a ter cláusula genérica contra a evicção que chancelaria eventual enriquecimento sem causa. O que se quer é que a cláusula da evicção men-cione o risco específi co que pesa sobre a coisa e que este tenha sido assumido pelo adquirente. Só assim é que o alienante se isenta da responsabilidade.

Pode acontecer então que:(i) não há cláusula excludente — responde por tudo(ii) há cláusula excludente mas o adquirente não tinha conhecimento

do específi co risco — responde pelo preço(iii) há cláusula excludente, o adquirente tinha conhecimento do risco

mas não o assumiu — responde pelo preço(iv) há cláusula excludente, o adquirente tinha conhecimento do risco e

o assumiu — não há responsabilidade.A responsabilidade do alienante subsiste mesmo se a coisa estiver deterio-

rada. Se o imóvel, por exemplo, valia 100 e apenas 30 na época da evicção, a responsabilidade é pelos 100.

Artigo 1.112 — Se o adquirente fez benfeitorias necessárias ou úteis que não foram pagas pelo terceiro, pode cobrá-las do alienante. O que ocorre

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aqui é que mesmo estando o terceiro a retomar uma coisa sua, há casos em que ele tem que indenizar o possuidor (é questão atinente às regras sobre posse). Se ele o faz, tudo bem. Mas se não indeniza, quem tem que indenizar é o alienante.

Os únicos casos em que vai haver dedução no valor da indenização são os dos artigos 1.111 e 1.113. Em primeiro lugar quando o adquirente tiver auferido vantagem da deterioração (o exemplo dado por San Tiago Dantas é muito bom, diz respeito à alienação de uma pedreira que tenha sido explora-da pelo adquirente até a data da evicção. Se o evicto não tiver sido condenado a indenizar o evictor, o alienante pode deduzir o valor das vantagens. Em segundo lugar, se as benfeitorias indenizadas pelo evictor tiverem sido feitas pelo próprio alienante ou às as custas. Esse valor será deduzido da indeniza-ção por ele devida.

Evicção parcial — a evicção pode ser parcial, atingindo apenas parte da coisa, sendo as indenizações calculadas proporcionalmente.

Características:

Da defi nição que demos inicialmente, podemos extrair as características necessárias para a confi guração da evicção:

(i) perda da coisa(ii) por direito anterior de terceiro(iii) reconhecido judicialmente (ver aula na PUC)

Finalmente, o artigo 1.117 traz alguns casos que não confi guram evicção.Falar do caso do carro em que medida administrativa pode confi gurar

evicção — opinião de Arnold Wald (diversas jurisprudências).

Indenização

VerbasDeduções (exemplos: mina; salineira; vaca leiteira, táxi)

INVIABILIDADE DOS CONTRATOS

Passei a usar esse título para tratar da matéria que veremos nesta aula ao verifi car que o termo extinção dos contratos, por alguns utilizado, é adequa-do tão somente a algumas hipóteses, notadamente aquelas em que se verifi -cam causas de ruptura supervenientes à formação do vínculo entre as partes.

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6 O termo crise, segundo Aurélio, em

sentido genérico é a “manifestação

violenta e repentina de ruptura de

equilíbrio”. Segundo Hélio Jaguaribe

é “ruptura, confl ito, luta”, em seu sen-

tido etimológico oriundo do grego;

“uma desconformidade estrutural entre

um processo e seu princípio regulador”

(Sociedade e Cultura, Ed. RT, Edições

Vértice, pág. 105).

O termo inviabilidade, aqui utilizado se refere à inviabilidade quanto aos fi ns, às funções normais dos contratos, tal qual objetivamente reconhecidas.

Pois bem, o contrato ou a relação contratual, como um processo dirigido a uma fi nalidade (e aí se vislumbra a idéia causalista e a noção das próprias obrigações como processo) pode entrar em crise6, antes ou durante sua for-malização, com a presença de um óbice; ou havendo uma ruptura no equilí-brio entre as partes, durante ou após sua formalização. Nesses casos, verifi ca--se uma inviabilização do contrato.

Antes de mais nada, é meu dever alertar que a matéria é palco de inúmeras divergências em sua nomenclatura, discrepância essa que pode ser imputada aos legisladores e à própria doutrina, que por vezes afastou-se do sentido ori-ginal e histórico dos termos (Ver Araken de Assis, Resolução do Contrato por Inadimplemento, RT, 3a Ed., 1999).

Embora não se chegue a discordar integralmente quanto às situações que de fato geram ou causam a inviabilidade dos contratos, dá-se a elas nomes diversos o que, com certeza, atrapalha o entendimento.

A idéia da doutrina é sistematizar essas causas, apontando-lhes os efeitos na relação entre as partes.

Em razão da divergência doutrinária, como o veículo para um primeiro contato de vocês com a matéria, procurarei dar ênfase na forma como se dá inviabilidade dos contratos sem, contudo, passar a vocês a nomenclatura que adoto, seguindo, em geral, a orientação de Orlando Gomes.

A inviabilidade dos contratos pode se dar mesmo com a inviabilidade do próprio ato e aí se fala em causas ou fatores relativos à sua formação; ou decorre mais indiretamente das obrigações ou da relação obrigacional de que o contrato é fonte (ver Antunes Avrela, pág. 273, vol. II e Orlando Gomes, pág. 170).

Pode ocorrer, então, a destruição, o desfazimento do vínculo, da relação; ou mesmo o impedimento à sua formação.

E aí podemos falar de inviabilidade derivada de causas anteriores ou su-pervenientes à formação do contrato (que se incluiriam na hipótese de impe-dimento à formação) e inviabilidade por causas supervenientes.

Inviabilidade por causas anteriores ou concomitantes

1) Nulidade e Anulabilidade:

Pode acontecer que alguns dos elementos necessários à formação do con-trato (como negócio jurídico que é) estejam viciados, inquinados de algum vício ou defeito. O que acontece então?

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Esses vícios podem ser irregularidades tão graves que não permitem a re-gularização, a sanação, e fazem com que o negócio não possa ter a capacidade de produzir efeitos, não possa ter validade. Essa é a sanção civil para o desres-peito às normas que protegem interesses tidos como superiores.

Nesse caso, os vícios tornam o contrato nulo e este nem vem a produzir efeitos pois é como se não existisse. Não se forma. Não gera a relação con-tratual entre as partes. Mas pode gerar outra relação, dependendo das conse-qüências da nulidade.

Por outro lado, se os vícios não forem tão graves assim, a ordem jurídica permite que o negócio viciado, o negócio irregular, tenha um princípio de validade e possa ser sanado, corrigido expressa ou tacitamente, neste caso bastando que as partes não se manifestem os levantando.

E assim o negócio se consolida, torna-se plena e defi nitivamente válido.Trata-se da nulidade relativa ou anulabilidade.Tal se dá nos casos de incapacidade relativa das partes ou vícios de consen-

timento, lembram?Pois bem, neste caso, se uma das partes levanta a existência do vício e pede

a anulação do contrato e esta é reconhecida judicialmente, dá-se a ruptura do vínculo entre as partes e o processo contratual se encerra, ainda que depois de este ter sido válido durante algum tempo. O contrato se inviabiliza.

O que deve fi car claro é que mesmo o contrato tendo vigorado por algum tempo, ele se rompeu por uma causa anterior ou concomitante à sua forma-lização.

2) Lesão

Insere-se também nas causas anteriores ou concomitantes à formalização do contrato, a hipótese de lesão.

“Lesão” vem do latim laesio, laedere.Lesão é originariamente, o dano, ferimento, estrago, causado a alguém.Nunca a alguma coisa.O sentido amplo de lesão, como dano, vem dessa idéia de estrago:Lesão, então, como defeito do negócio jurídico, pode ser entendida como

“o prejuízo que uma pessoa sofre na conclusão de um ato negocial, resultante da desproporção existente entre as prestações das duas partes” (Caio Mario, Inst. pág. 376).

Para Silvio Rodrigues, segundo Demontés, é “o prejuízo que um contra-tante experimenta quando, em contrato comutativo, não recebe, da outra parte, valor igual ao da prestação que forneceu” (pág. 216).

Essas são defi nições da lesão em sentido amplo, genérico, que acaba ser-vindo para englobar uma outra situação diversa, a onerosidade excessiva:

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“... bem pode acontecer que a desconformidade do ganho se prenda ao mo-mento de sua formação, como venha a resultar de eventos futuros, que, alterando fundamentalmente as condições das partes, proporcionem a uma delas maior lu-cro e levam à ruína a outra (...) Aqui temos uma categoria especial de lesão, não decorrente do contrato naquilo que diz respeito ao momento de sua formação (...) lesão superveniente..” (Caio Mário, p. 109).

É o conceito objetivo de lesão, que leva em conta tão somente a despro-porção entre as prestações.

Ocorre que, mais modernamente, a lesão vem sendo entendida de forma mais estrita, através da apreciação de um fator subjetivo: o aproveitamento de uma situação de inferioridade da outra parte.

Ocorreria quando uma das partes em um negócio bilateral se aproveita da situação de inferioridade da outra para lhe impingir uma troca desvantajosa.

Vejam que não bastaria mais o estrago, a desproporção, mas também um aproveitamento de um estado de inferioridade para obter essa desproporção.

É um conceito subjetivo de lesão.

HISTÓRICO:

Segundo Caio Mario (Lesão nos Contratos, pág. 11), o instituto decorre de dois fragmentos do Codex, das Constituições de Diocleciano e Maximi-liano que ele assim traduziu:

“Se tu ou teu pai houver vendido por preço menor uma coisa de maior preço, é eqüitativo que, restituindo tu o preço aos compradores, recebas o fundo vendido, intercedendo a autoridade do juiz, ou, se o comprador o preferir, recebas o que falta para o justo preço. Menor porém presume-se ser o preço, se nem a metade do verdadeiro preço foi paga”.

Ele mesmo, contudo, conclui pela inautenticidade dos textos, que teriam recebido alterações por Justiniano.

Para os romanos, a presunção é que a venda teria sido feita por necessida-de.

Do texto se vê duas alternativas quando da constatação de uma venda por preço anormal:

(i) desfazer a venda; ou(ii) pedir a complementação do preço.Em princípio aplicar-se-ia tão somente à compra e venda.Os glosadores teriam estendido a lesão ao comprador (dobro do preço).No direito romano, bastava o critério objetivo, a desproporção do preço

para que fosse reconhecida e atacada.A partir de São Tomás de Aquino, a venda por preço maior que o justo

preço foi considerada pecado, mas somente quando excessiva a diferença.

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Mas se fi rmou como fundamento a justiça comutativa que deveria ser obser-vada nos contratos.

Desenvolveu-se a idéia da usura pecuniária e real: ganho excessivo em qualquer negócio.

Surge o elemento subjetivo, exigindo-se, na sua caracterização, a ignorân-cia quanto ao justo preço.

Na época moderna, com o racionalismo e os princípios iluministas, com o dogma da vontade a justifi car todos os atos, estagnou-se a evolução do instituto e este conheceu um retrocesso em sua aplicação. Recusou-se o seu reconhecimento nos contratos, pois que as partes teriam liberdade para con-tratar o que quiserem e que qualquer preço, por mais que pudesse ser tido objetivamente como injusto, era decorrente da vontade soberana das partes que não poderia ser contrariada pois fruto da liberdade e da igualdade.

Isso não impediu, como reporta Caio Mario, que o instituto fosse previsto no código napoleônico, dada a infl uência do direito antigo nos idealizadores.

A aplicação, contudo, era restrita. Apenas o vendedor poderia invocá-la; a diferença passou para 7/12 (era reconhecida no preço equivalente a 7/12 ou menos do preço justo); e só para as vendas imobiliárias.

O código francês o colocou como um vício de consentimento, presumin-do a coação pela necessidade, não o erro, como sustentava Pothier.

Mas a igualdade das pessoas era apenas formal e por isso não tinha o mes-mo alcance o exercício de suas liberdades. A parte mais forte era mais livre às custas da liberdade da mais fraca (“entre o fraco e o forte é a liberdade que escraviza e a lei que liberta”).

Daí o instituto não ter sido abolido e vir ressurgindo nos últimos tempos, como fruto da intervenção do Estado no domínio privado, para coibir os abusos decorrentes do desequilíbrio.

Nosso Direito anterior ao Código Civil de 1916 previa o instituto. O Código Civil o aboliu.

Mas, conforme Caio Mario, foi restaurado após o aparecimento da Lei de Usura.

Já em 1938, segundo o entendimento inaugurado por Caio Mario, teria sido readmitida através da lei da usura (Dec. 869/38, substituído pela Lei nº 1521/51) que consideravam crime:

“obter ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que exceda o quin-to do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida”.

E está prevista no projeto do Código Civil, assim como no Código de Defesa do Consumidor, como veremos.

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CONCEITO:

Segundo Caio Mario, a conceituação da lesão não pode mais se basear tão somente no critério objetivo (desproporção da troca), mas deve ser enrique-cida com um fator subjetivo.

E isso para que melhor pudesse se adaptar a diversos negócios e não só ao contrato de compra e venda.

A tarifação não se mostrava mais sufi ciente, pois cada contrato tem um grau de elasticidade quanto ao preço normal distinto.

Por outro lado, ensina, deixar o instituto dependente de uma despropor-cionalidade seria fruto de instabilidade.

Por isso conclui que o reconhecimento deve ser buscado “na iniqüidade do negócio, a qual não se encontra na simples desproporção de valores, mas no abuso da situação da outra parte que faz presumir a falta de espontaneidade e de liberdade do consentimento” (Lesão, pág. 116).

E é assim que a doutrina veio considerando. O elemento subjetivo foi incorporado na conceituação da lesão, como vimos:

“Ocorre lesão quando o agente, abusando da premente necessidade ou da inex-periência da outra parte, aufere do negócio jurídico um proveito patrimonial desarrazoado ou exageradamente exorbitante da normalidade” (Caio Mario, Lesão, p. 197);

“Consiste na exagerada desproporção de valor entre as prestações de um con-trato bilateral, concomitante à sua formação, resultado do aproveitamento, por parte do contratante benefi ciado, de uma situação de inferioridade em que então se encontrava o prejudicado” (Anelise Becker, p. 185).

Note-se que essas defi nições não exigem tão somente a desproporção, mas o aproveitamento da situação de inferioridade (para Caio Mário, dissecada em necessidade ou inexperiência).

Não mais se aplicam à onerosidade excessiva.Já segundo o Projeto do Código Civil não há mais menção ao elemento

subjetivo:“Ocorre lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperi-

ência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta” (art. 157 do texto consolidado).

Mostra que o legislador pode ter sido sensível às necessidades da moderna prática jurídica.

Segundo Anelise Becker, todavia, o elemento subjetivo é essencial, ainda que não precise ser provado diretamente (sétima conclusão):

“O aproveitamento é essencial para confi gurar-se a lesão, mas, porque só pode ter por objeto situação de inferioridade, no âmbito civil, desnecessária sua prova direta, bastando que se demonstre a existência desta e de exagerada desproporção entre as prestações” (p.186).

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Mas esse entendimento daria margem a que a outra parte pudesse fazer prova de que não se aproveitou e que, por isso, não houve lesão, obtendo a manutenção do negócio). Tal solução não é admissível atualmente, ao menos no âmbito do Código de Defesa do Consumidor em que a inferioridade é objetivamente reconhecida e cuja fi nalidade maior é evitar a iniqüidade (para o que pouco importa a condição subjetiva do fornecedor)

Mas todas as defi nições ainda continuam servindo para conceituar, de maneira geral, também a fi gura do “estado de perigo” que já estudaremos.

A doutrina e as legislações, como a italiana e o projeto de nosso novo Có-digo Civil, preferiram separar os institutos para melhor trata-los em suas par-ticularidades, mas ambos são nuances da lesão em seu conceito subjetivo (des-proporção + aproveitamento da situação de inferioridade, de uma necessidade).

A diferença é que a situação de inferioridade no estado de perigo se dá pela necessidade para salvar do perigo a que está ameaçado o prejudicado ou alguém próximo, enquanto que na lesão propriamente dita, o estado de inferioridade se dá pela necessidade econômica.

E tanto é assim que Caio Mario formula um exemplo de lesão que, com a divisão dos dois institutos, se enquadra especifi camente no estado de perigo (para salvar o fi lho, contrata um médico com honorários extorsivos).

REQUISITOS:

Requisitos para que a lesão possa ser alegada para a invalidade do negócio (e aí já estamos falando de lesão como o ato lesivo):

(i) desproporção quanto ao valor da coisa.(ii) inexperiência, ignorância ou necessidade do agenteNecessidade: é uma necessidade contratual, de obter o objeto do negócio,

não obrigatoriamente um estado de miséria. Um milionário pode sofrer lesão.Inexperiência: com relação ao negócio específi co.Leviandade: incúria, indiferença, descaso com as consequências.Note-se que no âmbito do Código de Defesa do Consumidor nada disso

é necessário, já que a condição de inferioridade do consumidor é legalmente reconhecida (art. 4º)

(iii) aproveitamento por parte do outro contratante dessa inexperiência, ignorância ou necessidade

Ver considerações acima sobre o âmbito do CDC.O primeiro constitui o elemento objetivo para a lesão.Os dois últimos, conjugados, formam o requisito subjetivo.

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NATUREZA:

É um vício do consentimento ou mais um defeito dos negócios?Não seria a lesão, quando originada de ignorância ou inexperiência da

outra parte um verdadeiro erro quanto ao valor? Sim, mas não caracteriza o erro vício do consentimento, pois não se dá sobre uma faceta essencial do negócio, ou seja, nem sobre a identidade, nem sobre alguma qualidade essencial da coisa. O valor não é qualidade da coisa, é um atributo externo, que depende de apreciação subjetiva objetivada. Já qualidade é um atributo interno, ínsito, ainda que também de apreciação subjetiva objetivada.

Segundo Caio Mario não seria um vício do consentimento pois que não haveria incompatibilidade entre o querer real e o querer formalizado no ne-gócio. E essa incompatibilidade, para ele, seria necessária para a caracteriza-ção do vício de consentimento.

De qualquer forma ele entende que seria uma outra espécie de defeito do negócio jurídico.

Se confunde com a causa quando em estado de necessidade? Afi nal, a falsa causa (na verdade, motivo), vicia o ato se for dele determinante.

Se alguém contrata um reboque por R$1.000,00, porque acha que seu carro não tem jeito e se encontra parado na estrada, à noite? Só pode se o mo-tivo não fosse verdadeiro, ou seja, se não estivesse na situação que pensava es-tar e o tivesse contratado precisamente porque alegava estar naquela situação.

Mas a lesão permite que mesmo o motivo sendo verdadeiro, isto é, exis-tindo realmente a situação de vida ou morte, ainda assim o negócio pode ser atacado.

De qualquer forma acho que seria um vício do consentimento pois o agente não teria contratado como contratou se não estivesse parado na estra-da, desesperado.

APLICAÇÃO:

Contratos Bilaterais:Para Caio Mario, só aos comutativos.Aliás, a função da lesão seria a de servir à comutatividade, a de garantia da

equivalência.Contudo, Anelise Becker sustenta que possa ser aplicada até em contratos

aleatórios, pois mesmo nesses se pode vislumbrar um valor pela álea.Nessa posição, bastaria, o sinalagma genético.Não se aplica aos contratos unilaterais, ainda que onerosos.

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EFEITOS:

Sendo defeito do negócio jurídico, deveria levar à anulabilidade, como os demais defeitos. É nesse sentido que está no projeto do Código Civil.

A grande sacada do Caio Mario foi dizer que, já que a lesão passou a ser crime, voltou a ser possível anular o negócio em que ela se verifi casse, através do art. 145, II:

Art. 145: É nulo o ato jurídico:II. — quando for ilícito ou impossível seu objeto.Caio Mario conclui que a usura real é, na verdade, a lesão.A solução seria, então a nulidade.Mas o próprio Caio Mário dizia que a lei dava solução diversa: a estipu-

lação de juros ou lucros usurários será nula, devendo o juiz ajusta-los à medida legal, ou caso tenha sido cumprida, ordenar a restituição da quantia paga em ex-cesso, com os juros legais a contar da data do pagamento indevido (art. 4°, § 2°).

Passou a dizer que a nulidade seria apenas relativa.Eu diria parcial, pois referente apenas ao preço, ao valor.No Código de Defesa do Consumidor, embora o texto legal mencione

nulidade de pleno direito, é de fato nulidade parcial, como sustenta Ane-lise Becker para todas as cláusulas abusivas do art. 51. Afi nal, permite a modifi cação.

Art. 51, IV: São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas con-tratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade.

Art. 6o, V: São direitos básicos do consumidor: a modifi cação das cláu-sulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem onerosamente excessivas.

Note-se que no Código de Defesa do Consumidor não se exige o elemen-to subjetivo.

Ele é presumido de forma absoluta.Voltou a bastar o elemento objetivo:Art. 39, V: É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras

práticas abusivas: exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva.A inferioridade do consumidor é pressuposta na lei (art. 4o, I).O projeto do Código Civil a coloca como anulável, mas estabelece a pos-

sibilidade de re-equilíbrio (art. 171, II c/c 159, §2º do texto consolidado).No caso em que a parte lesada prefere a extinção da relação contratual,

deve pedi-la, o que se faz através da rescisão (ex tunc).Esse termo, segundo a doutrina (Orlando Gomes, Caio Mario, Arnoldo

Wald e Rogério Ferraz Donnini), deveria ser reservado a esse caso.

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Contudo, vem sendo usado, inclusive por nosso Código Civil, para os casos de inadimplemento culposo de obrigação contratual equivalente (art. 1.092, p. único)

3) Estado de Perigo:

Paralelo à lesão, também reconhecido como um dos defeitos dos negócios jurídicos está o estado de perigo.

O legislador e a doutrina acharam por bem separar o instituto embora ontologicamente semelhantes.

Refere-se ao ato lesivo de quem tenha se aproveitado da necessidade de salvar-se ou a alguém de sua família para obter vantagem desproporcional à sua prestação.

Note-se que a diferença entre a necessidade no estado de perigo e na lesão está em que naquele, a necessidade é de salvar-se a si ou a alguém da família; e nesta uma necessidade econômica qualquer (está necessitado do objeto do negócio e não importa porque).

Requisitos:(i) Perigo para a pessoa ou sua família(ii) Perigo Atual e IminenteNão pode ser perigo futuro, pois o agente pode encontrar meios de dele

se livrar.(iii) Perigo Grave(iv) Conhecimento desse perigo ela outra parte(v) DesproporçãoEx.: Alguém sofre um acidente e contrata um médico para salvar-lhe por

R$100.000,00.

EFEITOS:

Tendo a mesma natureza da lesão, gera os mesmos efeitos desta.Aqui se dá também a rescisão.

Note-se que em todos as causas de inviabilidade anteriores ou concomi-tantes à formação do contrato, são causas relativas ao ato, ao negócio jurídico em si.

Bom, o que realmente importa no estudo da inviabilidade dos contratos são as causas supervenientes à sua formação. Veremos como isso pode acon-tecer e quais as suas conseqüências e, como falei, daremos os nomes para cada uma das hipóteses.

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INVIABILIDADE POR CAUSAS SUPERVENIENTES

1) Impossibilidade:Quando a obrigação devida se torna impossível por causa não imputável

ao devedor (caso fortuito ou força maior), se resolve e, com ela, toda a relação contratual (os efeitos obrigacionais transbordam para o contrato).

Se isso é lógico em um contrato unilateral, a regra da eqüidade, do equilí-brio, não poderia deixar de incidir nos contratos bilaterais, já que a prestação de uma das partes é a razão de ser da outra.

“Se falta um dos termos da troca (ainda que por causas de força maior, sem que algum dos contratantes tenha culpa) falta a própria operação econômica, o contrato perde a sua funcionalidade” (Enzo Roppo, p.255).

Efeitos:

O contrato se resolve.Resolução (ex tunc).

Características da Impossibilidade:

É uma causa relativa à relação obrigacional nascida do contrato, ao con-trário das nulidades ou lesão.

A impossibilidade não pode ser temporária, deve ser permanente, a menos que sua duração a faça desinteressante para o credor.

Também não é aquela que advém de fortuito interno.A impossibilidade não pode ser relativa somente ao devedor, mas absoluta,

genérica, no sentido de ser uma impossibilidade objetiva.Mas não precisa ser uma impossibilidade física (incêndio no apartamento

a ser entregue — Roppo).É claro que uma difi culdade, ainda que sirva para tornar mais onerosa a

prestação não é, em princípio, impossibilidade que seja causa de liberação do vínculo.

Todo contrato tem sua álea natural.Mas se tem admitido, como impossibilidade e, portanto, causa de libe-

ração e resolução, quando “situações posteriores, embora não impedindo, em sentido absoluto, a prestação, incidem nesta, de tal forma que o seu cumprimento exigiria actividades e meios não razoavelmente compatíveis com aquele tipo de relação contratual, em termos de a transformar numa prestação substancialmente diversa da acordada” (Roppo, p. 256).

É o que passaremos a estudar em seguida.

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2) Onerosidade Excessiva

Quando estudamos os princípios da teoria dos contratos, vimos também suas exceções. Vimos que o dirigismo contratual foi uma necessidade imposta pelas circunstâncias sociais para tentar restabelecer o equilíbrio entre as par-tes, cuja igualdade mostrou-se uma ilusão. O dirigismo é a grande exceção ao princípio da liberdade contratual, com a imposição de normas cogentes em território até então dominado por normas dispositivas.

No entanto, uma questão se colocou. Se um contrato formado sob a in-fl uência do dirigismo contratual é um contrato objetivamente considerado equilibrado, sua obrigatoriedade seria indiscutível.

Afi nal, se o contrato foi criado em atenção à determinação estatal que espelha o bem comum, como esse contrato pode ser modifi cado, deixando de ser obrigatório?

É uma bela pergunta. Mas a resposta é simples.O mesmo princípio de proteção e eqüidade que inspira a interferência do

Estado no momento da formação do contrato, o obriga, em determinadas situações (excepcionais) a intervir na vida do contrato, na sua execução nor-mal.

Essa interferência sempre foi polêmica, exatamente pela violência na viola-ção à soberania da vontade (mexer em um ato jurídico já formado, já acerta-do), ou seja, uma violação à intangibilidade e à obrigatoriedade do contrato.

O princípio da obrigatoriedade, originalmente absoluto, teve de ceder, por razões de equidade, ante os casos em que um acontecimento imprevisível alterasse a situação econômica das partes no decorrer da relação contratual (com relação àquela vigente na época da celebração), de tal modo que uma das partes fi casse em posição de extremo desequilíbrio em relação à outra.

A aplicação da interferência se fazia necessária no âmbito dos contratos de duração, ou pelo menos, nos contratos instantâneos de execução diferida.

A doutrina estudou as situações e os requisitos para se reconhecer e autori-zar essa intervenção, elaborando-se a teoria da imprevisão ou da onerosidade excessiva.

Histórico:

Os acontecimentos que marcaram a evolução do Direito nesse sentido foram, sobretudo, as duas grandes guerras deste século que infl uíram signi-fi cantemente no equilíbrio das partes nos contratos de trato sucessivo ou de execução diferida.

A chamada Lei Failliot, de 1918, inaugurou a possibilidade de revisão dos contratos mercantis celebrados antes de agosto de 1914.

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A doutrina e a jurisprudência tentaram justifi car a intromissão no âmbito dos contratos (que a princípio eram obrigatórios), inicialmente através da aplicação da cláusula canônica rebus sic stantibus (a situação deve permanecer a mesma) que refl etia um sentido de equidade entre as partes para determinar que o estado de fato existente no momento da celebração do contrato não de-veria ser alterado (contractus qui habent tractum successivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur).

No entanto, desde logo se verifi cou que a aplicação pura e simples da cláu-sula ameaçava a segurança das relações jurídicas ao permitir que os contratos fossem revistos por conta de qualquer alteração na situação de fato.

Passou-se, portanto, a exigir mais um requisito para a revisão dos contra-tos: que a alteração fosse imprevisível. Daí a teoria ter passado a se chamar de Teoria da Imprevisão.

“Exige-se que a alteração nas circunstâncias seja de tal ordem que a excessiva onerosidade da prestação não possa ser prevista” (Orlando Gomes).

Se a alteração podia ser razoavelmente prevista, não há que se admitir a resolução do contrato ou a alteração de seu conteúdo.

Há que se ter em mente que, ao celebrar o contrato em um determinado momento econômico, os contratantes também levam em conta o futuro que aquele momento lhes indica. Dentro desse quadro, o contrato tem que ser cumprido. É que cada contrato de trato sucessivo ou de execução diferida já traz em si uma álea, uma incerteza. Se essa álea se conserva dentro dos limites da normalidade, mesmo que dela decorra uma onerosidade excessiva, não se admite a revisão do contrato pela teoria da Imprevisão.

Por esse motivo nos contratos do Brasil pré-real, não se admitia a invoca-ção da teoria com base na infl ação. Esta já era uma “infeliz realidade”, como concluiu o STF.

Conceito:

A onerosidade excessiva deve ter decorrido de acontecimento extraordiná-rio e imprevisível.

Orlando Gomes sintetiza bem a caracterização da teoria e de suas conse-quências:

“quando acontecimentos extraordinários determinam radical alteração no es-tado de fato contemporâneo à celebração do contrato, acarretando consequências imprevisíveis, das quais decorre excessiva onerosidade no cumprimento da obriga-ção, o vínculo contratual pode ser resolvido ou, a requerimento do prejudicado, o juiz altera o conteúdo do contrato, restaurando o equilíbrio desfeito”.

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Fundamentos:

Já se tentou fundar a aplicação da teoria da imprevisão de várias formas:Abuso do direito de obter o cumprimento da obrigaçãoEnriquecimento sem causaEquidadeBoa-féMas essas seriam justifi cativas da existência da teoria, não fundamentos

jurídicos para sua aplicação.Segundo Orlando Gomes, para Messineo, a aplicação da teoria da im-

previsão deve ser encontrada na vontade contratual. Se a parte atingida pela onerosidade excessiva tivesse conhecimento da situação futura no momento da celebração não teria declarado sua vontade ou, pelo menos, não teria de-clarado sua vontade do modo como fez.

É dessa concepção que decorre a noção de que a revisão vai acarretar não na substituição da vontade das partes pela do juiz, mas apenas no reajuste, por ele, da declaração de contade.

Requisitos:

Caio Mário disseca os requisitos da teoria:(i) contrato (comutativo) de execução diferida ou sucessiva (ou continuada)(ii) alteração radical do estado de fato em relação ao vigente no momento

da celebração(iii) onerosidade excessiva para uma das partes em decorrência dessa alteração(iv) imprevisibilidade da alteração.Quanto a este ponto, cabe mencionar a contribuição dada por Winds-

cheid (Teoria da Pressuposição), que acabou levando à defesa do uso do ter-mo onerosidade excessiva para denominar a teoria, por considerá-la mais fundamental para a justifi cação da revisão do que a própria imprevisibilidade.

Ele alegava que poderia haver situações que alterassem radicalmente o es-tado de fato em relação ao vigente na celebração, mas que não seriam exata-mente imprevisíveis, visto já estarem presentes naquela época.

O melhor exemplo é o da infl ação, que, mesmo existindo na época da ce-lebração, poderia levar à onerosidade excessiva caso seus índices se elevassem de modo imprevisível.

Ora, de fato, a infl ação realmente já poderia existir, mas a imprevisibili-dade não diria respeito a ela, e, sim, aos índices. Não acho que a imprevisão tenha perdido qualquer importância.

Não obstante essa minha crítica, o que é certo (e quanto a isso não há argumentos) é que o Código do Consumidor realmente dispensou a impre-

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visibilidade. Assim, pelo menos nas relações de consumo, o que importa é a onerosidade excessiva:

Art. 6º, V: São direitos básicos do consumidor: a modifi cação das cláu-sulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.

Efeitos:

Ocorrendo anormalidade da álea que todo contrato dependente de futuro encerra, pode-se operar sua resolução ou a redução das prestações.

Efeitos da aplicação da Teoria:Alteração do conteúdoResolução do contratoQuando a alteração é tamanha que exige o término da relação contratual,

dá-se a resolução.O contrato é desfeito a partir da alteração excessivamente onerosa (ex nunc).

3) Impossibilidade com culpa: Inadimplemento/ Inexecução/ Falta de Cumprimento culposo

Embora o Código Civil use o termo rescisão, o que é seguido pelos usos comuns, este termo, como vimos, deve ser reservado à lesão.

Deve se falar em resolução.Tanto é assim que embora o texto do art. 1.092, parágrafo único fale em

rescisão, refere-se à cláusula resolutiva tácita.Efeitos ex tunc.Resolução legal e negocial

Resolução Legal (Cláusula Resolutiva Tácita):

Sabemos que no Direito Romano, as obrigações eram consideradas como sendo relações estanques, separadas, incomunicáveis, mesmo as obrigações de contratos comutativos. De modo que a situação de uma não interferia na solução da outra. Se uma das obrigações não pudesse ser cumprida por algum motivo, seja qual fosse, não é por isso que a outra deixaria de sê-lo:

“...ainda na época diocleciana, as únicas ações concedidas aos parceiros na compra e venda, ou seja, no campo dos contratos nominados, buscavam a prestação: a actio venditi (C, 4, 38, 8; C, 4, 64, 12; C, 4, 49, 6) e a actio empti” (C, 4, 44, 12) (Araken de Assis, p.38/39).

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Existia, na época, a chamada “lex commissoria”, ou pacto comissório, que, contudo, deveria ser previsto expressamente que, mesmo assim, só foi erigido em condição resolutiva por Justiniano.

Como ressaltou San Tiago Dantas, desde cedo se vislumbrou a iniqüidade desse tratamento. E já no Direito Romano, como reporta Araken de Assis, ela-borava-se o raciocínio da “causa data, causa non secuta” para algumas relações.

Teria sido a Idade Média a época da declaração expressa do instituto. Atri-bui-se a Inocêncio III a utilização da faculdade, quando liberou os católicos do respeito aos bens e à pessoa do Conde de Toulouse em face do assassinato de um dignitário do Papa. O brocardo “fragenti fi des non est fi des servanda” foi então cunhado. Considerou-se que a recusa a manter a palavra era verda-deiro pecado, ofensa à fé. Nada era devido, pois, àquele que não cumpre sua própria obrigação.

A faculdade foi plenamente reconhecida na modernidade ao ser incorpo-rada ao Código Civil francês, em seu art. 1.184: “...la partie envers l´aquelle l´engagemnent n´a point été execute, a le choix ou de forcer l´autre a l´execution de la convention lorsqu´elle est possible, ou d´en demander la résolution avec dommages-intérêts”.

Mas foi, de certa forma, esquecido seu verdadeiro fundamento, trocando--o pela justifi cativa na autonomia da vontade (Domat e Pothier).

Daí sua inserção como condição. Embora, como narra Mazeaud, mantida a noção de sanção, refl etida na necessidade de declaração pelo juiz.

Segundo famosa lenda no meio jurídico, teria a possibilidade advindo da aplicação recorrente da “lex commissoria” que, no direito costumeiro francês, teria se tornado objeto de inserção tácita.

Daí sua invocação como condição ou cláusula tácita, subentendida em todo contrato comutativo

Mas Mazeaud afasta tal entendimento, assim como Araken de Assis, di-zendo que, na verdade, a possibilidade de resolução se originou nas ações de repetição permitidas nos contratos inominados do direito romano. Previa-se uma dupla sanção: a repetição ou a exigência da prestação.

É uma condição?Não, pois se realmente o fosse, operaria automaticamente após a notifi cação.É tácita?O recurso à alegação de que seria uma disposição inserida de forma tácita pelas

partes é mera tentativa de buscar explicação segundo a ótica do voluntarismo.Pontes de Miranda afi rma que seria verdadeira superfetação assim o enten-

der, diante da prescrição legal (eu diria que é submeter a lei à vontade privada).Embora nosso Código Civil não fale em “condição”, ainda se refere à possi-

bilidade como uma cláusula “tácita”, o que indica o apego à lenda tradicional.

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Teorias:Algumas teorias tentaram explicar, fundamentar a possibilidade de resolu-

ção ante o inadimplemento:(i) teoria da condição implícita;(ii) teoria da causa:

• a resolução se daria pelo fato de que, nos contratos comutativos, uma obrigação é a razão de ser da outra, a sua causa; faltando uma, a outra não mais se justifi caria;

• no entanto, a causa é relativa à formação do contrato e não à sua exe-cução; não se pode dizer que um contrato resolvido não tenha tido causa;

• a falta de causa é motivo de nulidade do contrato e não de resolução;(iii) teoria da reparação:

• a resolução se autorizaria como forma de reparação dos interesses da parte fi el, na medida em que permitiria melhor salvaguarda de sua posição, especialmente combinada com o pleito de perdas e danos;

• todavia, a demanda de cumprimento também autoriza a combinação com o pedido de perdas e danos;

(iv) teoria da interdependência:• sustenta que a resolução se baseia na interdependência recíproca das

prestações no contrato sinalagmático;• embora mais fi rme que as demais, não permite a diferenciação com a

teoria dos riscos.(v) teoria da equidade:diz-se que não justifi caria juridicamente (tecnicamente) o mecanismo;

• não há, contudo, razão mais nobre para a aplicação; é imperativo de equilíbrio das posições das partes em um contrato dessa espécie;

• com a boa-fé positivada, ousaria sugerir sua fundamentação nesse princípio ético-jurídico;

• segundo Araken de Assis, “enquanto direito, posto no art. 1.092, pará-grafo único do Código Civil, a resolução legal prescinde de fundamenta-ção diversa da equidade. Não se trata de algo etéreo e vago, e, sim, de um remédio plausível e específi co para corrigir vicissitude da vida do contrato, que, de outra forma, restaria incompleta ou inadequadamente atendida. Esta é a justiça subjacente ao dispositivo comentado” (p.68).

Vantagens: dispensa o credor de executar e pedir o cumprimento e permi-te retomar sua prestação sem que se submeta ao concurso de outros credores. Cria verdadeiro privilégio ao credor, segundo Mazeaud.

Operatividade:A resolução legal (termo mais adequado que resolução tácita) não opera de

forma automática (ipso jure). Deve ser pronunciada pelo juiz (ope judice — daí os franceses a chamarem de “résolution judiciaire”).

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A decisão judicial não constata (declara) a resolução. A constitui.Exige a interpelação prévia (constituição em mora).O juiz pode ou não reconhecê-la, o que se justifi ca por ser a ação de reso-

lução uma ação de responsabilidade, em que o se vai analisar o peso da obri-gação descumprida no programa contratual e a existência de culpa; pode até determinar um prazo para que o devedor cumpra ou estipular outra forma de reparação.

É o que se denomina sistema francês, adotado por nosso Código Civil.Esse sistema permite que o juiz aprecie o descumprimento e seu grau, en-

sejando o entendimento de que a resolução somente caberia diante da inutili-dade da prestação, embora a escolha, tradicionalmente, caiba exclusivamente ao credor.

No sistema alemão, ao contrário, a resolução se dá automaticamente, de pleno direito, sem necessidade de interpelação.

Efeitos:Existe possibilidade de que o credor escolha entre a execução da prestação

faltante e a resolução.Há aqui um “jus variandi”? Ou eleita uma via não mais se permitirá a

outra (“electa una via non datur regressus ad alteram”)?Reconhece-se o direito de variar a alternativa (ver Brandão Proença) desde

que escolhida primeiro a execução. Se inicialmente se pretendeu a resolução, não há espaço para variação.

Escolhida a resolução e reconhecida, opera-se “ex tunc”, restituindo as par-tes ao estado de fato anterior.

Enseja-se as perdas e danos em cumulação, em qualquer das hipóteses.Aplicação:O art. 1.092 se refere tão somente aos contratos bilaterais.A doutrina e jurisprudência francesas já estendem a possibilidade aos con-

tratos bilaterais imperfeitos e a doutrina vem tendendo a admiti-la também nos contratos unilaterais. Araken de Assis e Brandão Proença também o re-portam, referindo-se ao mútuo feneratício, em que o credor fi caria preso à cobrança demorada dos juros a vencer.

E quanto aos contratos aleatórios? Não há dúvida de que os contratos de seguro tem sido objeto de resolução por inadimplemento.

Possibilidade de modifi cação? Não. A modifi cação do conteúdo do con-trato somente se justifi caria diante de uma excessiva onerosidade da parte a ser benefi ciada com a modifi cação. Ao contrário, na resolução, a parte que dela se pode benefi ciar não tem qualquer problema com o cumprimento e, por isso, estando quites com suas prestações, pode fi gurar na posição de plei-tear a execução ou a resolução.

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Resolução Negocial (Cláusula Resolutiva Expressa):

Através dela, as partes fazem prever situação específi ca que ensejará o tér-mino, o fi m da relação contratual.

Diante dessa previsão, não cabe qualquer exame quanto ao equilíbrio do contrato, como se dá na resolução legal; uma vez verifi cada a hipótese previs-ta no contrato, opera-se automaticamente a extinção do contrato.

Não há necessidade de que se constitua judicialmente a resolução. Esta se dá de pleno direito.

Se o apontado inadimplente se vir abusado pela resolução, caberá a ele a ação para pleitear eventual reparação.

Para todos os efeitos o contrato está resolvido e a parte fi el desde então dispensada de qualquer prestação.

Nada impede que venha a pleitear a declaração da resolução em juízo.A sentença tem caráter declaratório.É claro que, se encontrar resistência na parte inadimplente para reaver sua

prestação ou indenização, terá que ajuizar a respectiva ação.A grande diferença com a resolução legal é na iniciativa. Na resolução le-

gal, a parte fi el, de modo a assegurar sua posição, deve buscar a desconstitui-ção judicialmente. Na resolução negocial é desnecessária qualquer assistência judicial. Dependendo de sua posição, nada precisará fazer.

Contratos de Adesão:Nos contratos de adesão, é autorizada a aposição de cláusula resolutiva (re-

solução negocial) expressa, desde que alternativa e à escolha do consumidor (art. 54, § 2o do CDC).

Signifi ca que o fornecedor, diante da hipótese prevista para detonar a res-cisão, deve assegurar ao consumidor a faculdade de escolher entre sana-la ou ver resolvida a relação contratual.

Não se trata de mera interpelação para constituição em mora, mas verda-deira oferta da alternativa. Não basta dizer que o consumidor não pagou. É preciso que diga que ele tem as duas opções e deve exercê-las.

4) Vontade:

4.1) Vontade Bilateral:

As mesmas vontades que geram o consenso podem consentir em desfazer a relação.

Os efeitos se dão a partir do consenso em desfazer o contrato (ex nunc).A fi gura que acarreta é a resilição bilateral.É o distrato.

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4.2) Vontade Unilateral:

Sendo um dos princípios dos contratos a obrigatoriedade de suas cláusu-las, que tem como corolários a intangibilidade e a irrevogabilidade, não seria de se admitir que apenas uma das partes pudesse pôr fi m à relação.

Todavia, alguns casos com isso se compatibilizam; outros o justifi cam.Desde que seja prevista na lei ou no contrato, é admitida.Geralmente se dá através da denúncia que pode exigir ou não aviso prévio

(Orlando Gomes):Não justifi cada (vazia).Justifi cada (cheia).Revogação: em alguns contratos unilaterais, como na doação e no man-

dato, dada sua natureza, pode a parte cujo interesse é realizado no contrato, mediante determinadas condições, desfazer o vínculo. Isso se dá pela perda da confi ança (são negócios fi duciários).

A fi gura que acarreta é a resilição unilateral.Efeitos ex nunc.

DOAÇÃO

Estamos estudando a doação como um dos contratos típicos, discrimina-dos em nosso Código Civil.

Mas a doação é mesmo contrato?Faço essa pergunta porque em algumas legislações, a doação não é vista

como tal, mas como uma das formas de aquisição da propriedade.Essa idéia surgiu pela primeira vez no Direito francês por graça e obra de

Napoleão Bonaparte que não conseguia compreender a natureza contratual da doação se apenas uma das partes se obriga (não há bilateralidade das pres-tações).

Mas para nós, assim como para a maioria dos estrangeiros, a doação é, sim, um contrato e o é em razão de ser um negócio jurídico bilateral, for-mado pelo consenso de vontades, isto é formado por duas declarações de vontade que se encontram (in idem placitum consensus).

O contrato deve ser reconhecido, pois a doação envolve o consenso quan-to à transferência do bem. Tal transferência deve receber a concordância do donatário.

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Causa:

Qual a causa da doação?Lembrem-se que não falamos do motivo (causa fi nal-intenção subjetiva),

mas da causa objetivada.É a causa a transferência de um bem por liberalidade, isto é, sem contra-

partida equivalente do donatário.Ou é a transferência de um bem por liberalidade ainda que com a exigên-

cia de um encargo ou ônus.Art. 1.165: Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por li-

beralidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra, que os aceita.

E é também através deste artigo que encontramos uma defi nição para o a doação, que o Código faz questão de enfatizar ser um contrato.

Características:

São, portanto, como se vê da defi nição do Código, características da do-ação:

(i) Ser um contrato;(ii) decorrer de uma liberalidade (e aqui que se identifi ca a causa)(iii) acarretar uma transferência de bem ou vantagem:É preciso, contudo, cuidado com o colocar desta última característica,

pois o contrato de doação tem meros efeitos obrigacionais, não reais.Não se transfere a propriedade pelo simples contrato.Este apenas gera a obrigação de transferí-la.A transferência da propriedade depende da tradição no caso dos móveis e

do registro no caso de imóveis. Não é pelo contrato que se faz.Nesse ponto, a doação se distingue da renúncia e da remissão, pois estas,

embora benefi ciem, não importam em transferência de bens ou vantagens (na doação, o bem ou vantagem parte do patrimônio do doador, por vontade deste, para o patrimônio do donatário).

Somente a renúncia translativa (a herança é renuciada em favor de um herdeiro determinado) importaria em transferência.

Mas a causa não seria contratual. Pode haver coincidência e compatibili-dade de vontades, mas não consenso, não uma vontade em direção ao encon-tro da outro (idem placitum consensus).

Também não há doação no abandono, ainda que as vontades sejam com-patíveis.

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Elementos:

Quanto aos elementos dos contratos, o que podemos de encontrar de particularidades na doação?

(i) Quanto à capacidade, alguma particularidade?Quanto à capacidade ativa, não.Quanto à capacidade passiva, sim:É possível a doação ao nascituro:Art. 1.169: A doação ao nascituro valerá, sendo aceita pelos pais.É possível a doação pura aos incapazes:Art. 1.170: Às pessoas que não puderem contratar é facultado, não obs-

tante, aceitar doações puras.É possível a doação para pessoa indeterminada:Art. 1.173: A doação feita em contemplação de casamento futuro com

certa e determinada pessoa, quer pelos nubentes entre si, quer por terceiros a um deles, a ambos, ou aos fi lhos que, de futuro, houverem um do outro, não pode ser impugnada por falta de aceitação, e só fi cará sem efeito se o casamento não se realizar.

(ii) Quanto à legitimação:O ascendente pode doar para o descendente? Sim. E porquê é diferente

da compra e venda? Porque no caso da doação, haverá certamente a colação do bem à herança:

Art. 1.171: A doação dos pais aos fi lhos importa adiantamento da legítima.A doação entre marido e mulher só é permitida se não for de encontro ao

regime matrimonial (226, 235, IV, 242, I).Tutor e curador.Doação para concubina:Art. 1.177: A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anu-

lada pelo outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até 2 (dois) anos depois de dissolvida a sociedade conjugal (arts. 178, § 7, IV e 248, I).

(iii) Quanto ao objeto:Não pode abranger todos os bens (doação universal):Art. 1.175: É nula a doação de todos os bens, sem reserva de parte, ou

renda sufi ciente para a subsistência do doador.Não pode abranger bens que ultrapassem a parte disponível (doação ino-

fi ciosa):Art. 1.176: Nula também é a doação quanto à parte, que exceder a de que

o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento.Doação em forma de subvenção periódica (pensão):Art. 1.172: A doação em forma de subvenção periódica ao benefi ciado

extingue-se morrendo o doador, salvo se outra coisa se dispuser.(iv) Quanto à forma:

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Há divergência na doutrina quanto à classifi cação do contrato de doação como um contrato formal ou não formal.

Caio Mario entende que seria um contrato formal pois exige sempre forma escrita (pública ou particular), podendo ser verbal se versar sobre bens de pe-queno valor e se seguir a tradição. Outros entendem que seria de forma livre.

Estou com Caio Mario. É que o contrato não tem forma livre. Ou é verbal (e mesmo assim para bens móveis de pequeno valor) ou é escrito. Só pode ser verbal para bens de pequeno valor.

É sempre por ato inter vivos, salvo no caso do art. 314.

Aceitação:

Sendo a doação um contrato, só se forma com o consenso das partes. Mas a esse consenso só se chega se a parte benefi ciada, isto é, o donatário, aceita a liberalidade.

Com relação a essa aceitação também se colocam algumas peculiaridades.Embora deva ser expressa em geral, até mesmo porque em regra o contrato

deve ser feito por escritura pública ou instrumento particular, pode ser presu-mida às vezes. É o caso do art. 1.166:

Art. 1.166: O doador pode fi xar prazo ao donatário, para declarar se aceita, ou não, a liberalidade. Desde que o donatário, ciente do prazo, não faça dentro nele, a declaração, entender-se-á que aceitou, se a doação não for sujeita a encargo.

Luiz Roldão de Freitas Gomes entende que, nesse caso, há verdadeira pro-posta e não um contrato (e entendo também dessa forma, já que a doação é contrato e, portanto, depende de aceitação).

E o Código fala mesmo em aceitação, sem a qual não há contrato.De qualquer modo, ao se entender que a aceitação pode ser presumida, há

que se reconhecer mais uma exceção à regra do caput do art. 1.168, pois nesse caso, não haveria forma escrita do contrato, mas apenas forma da proposta.

Pode a doação ser técita também no caso do casamento (propter nuptias):Art. 1.173: A doação feita em contemplação de casamento futuro com

certa e determinada pessoa, quer pelos nubentes entre si, quer por terceiros a um deles, a ambos, ou aos fi lhos que, de futuro, houverem um do outro, não pode ser impugnada por falta de aceitação, e só fi cará sem efeito se o casamento não se realizar.

Em outro ponto, como considerar a aceitação dos incapazes?Se sua vontade é reconhecidamente insufi cente, precária, para a realização

dos negócios?Acho que há de se entender que, nesse caso, o legislador não considera o

menor incapaz e eles poderão aceitar a doação sempre que possam expressar de alguma forma sua vontade.

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Todavia, Orlando Gomes acha que deve haver intervenção dos represen-tantes para a declaração expressa de vontade(mas, se for assim, qual a diferen-ça para o mecanismo normal de superação das incapacidades?).

Alguns dizem que a vontade dos incapazes é presumida, outros que é dis-pensada.

Classificação Genérica:

Unilateral (só há obrigação para uma das partes)Consensual ou real (é consensual)É oneroso ou gratuito?Às vezes é oneroso, às vezes gratuito.Depende se há ou não encargo.Ex.: Doação de um sítio, com casa de caseiro em que se obrigue a deixar

o caseiro morando ali.É comutativo ou aleatório?Não há sentido falar em comutativo ou aleatório já que não é bilateral.É Formal ou Não-Formal?Ver considerações acima.

Classificação Própria:

Pura:Nada é exigido em troca e nem é colocada sob condição ou termo.Condicional:Entende-se que é lícita a condição de determinada pessoa para casar.Modal ou com Encargo:Impõe uma restrição ao donatário em favor do doador ou de terceiro e

transforma o contrato em oneroso, mas não em bilateral.Remuneratória:Visa a recompensar serviços que não tenham gerado obrigação juridica-

mente exigível:Art. 1.167: A doação feira em contemplação do merecimento do donatá-

rio não perde o caráter de liberalidade, como não o perde a doação remune-ratória, ou a gravada, no excedente ao valor dos serviços remunerados, ou ao encargo imposto.

Em ContemplaçãoCom Cláusula de reversão:Art. 1.174: O doador pode estipular que os bens doados voltem ao seu

patrimônio, se sobreviver ao donatário.

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Efeitos:

Obrigacionais, não reais.Irrevogabilidade: não pode se recusar a doar e entregar, salvo nos casos

expressos em lei:Art. 1.057: Nos contratos unilaterais, responde por simples culpa o contra-

ente, a quem o contrato aproveite, e só por dolo, aquele a quem não favoreça.Doação para mais de uma pessoa (presume-se feita em partes iguais — art.

1.178)Com cláusula de reversão: torna a propriedade resolúvel (seqüela)Art. 1.179: O doador não é obrigado a pagar juros moratórios, nem é

sujeito à evicção, exceto no caso do art. 285 (dote).E se é doação modal, onerosa?

Revogação:

Pode se dar:(i) Por ingratidão:Art. 1.181: Além dos casos comuns a todos os contratos, a doação tam-

bém se revoga por ingratidão do donatário.(ii) Por descumprimento do encargo:Art. 1.181, parágrafo único: A doação onerosa poder-se-á revogar por

inexecução do encargo, desde que o donatário incorrer em mora.Em ambos os casos, depende de sentença para se desfazer.É sujeita à decadência (art. 1.184 — 1 ano).É personalíssimo o direito (art. 1.185 — não se transmite aos herdeiros).Não prejudica direito de terceiros:Art. 1.186: A revogação por ingratidão não prejudica os direitos adquiridos

por terceiro, nem obriga o donatário a restituir os frutos, que percebeu antes de contestada a lide; mas sujeita-o a pagar os posteriores, e, quando não possa restituir em espécie as coisas dadas, a indenizá-las pelo meio termo de seu valor.

A revogação é uma das formas de resolução dos contratos pelo desfazi-mento da relação. Não deixa de ser uma espécie de resilição unilateral, ainda que condicionada à verifi cação de determinado evento.

A revogação é irrenunciável antecipadamente. Mas se pode renunciar ao direito de revogar por determinado fato já ocorrido.

Doações excluídas da revogação (art. 1.187).

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EMPRÉSTIMO

É o contrato através do qual uma das partes recebe para uso ou consumo uma coisa, devendo, depois de certo prazo, restituí-la ou entregar coisa equi-valente.

Caso o empréstimo seja para uso e a coisa em si tenha que ser devolvida; ou seja para consumo e, então, obviamente, por não ser possível a sua devo-lução, deva ser dada coisa equivalente (do mesmo gênero, qualidade e quan-tidade), será ele comodato ou mútuo.

Essas duas modalidades do empréstimo, comodato e mútuo, contudo, são tão diferentes, que poderiam ser consideradas contratos distintos.

COMODATO (COMODANTE E COMODATÁRIO)

É o empréstimo de uso.Mas também se faz para gozo, como se percebe da lei:Art. 1.254: O comodatário não poderá jamais cobrar do comodante as

despesas feitas com o uso e gozo da coisa emprestada.Art. 1.250: Se o comodato não tiver prazo convencional, presumir-se-

-lhe-á o necessário para o uso concedido; não podendo o comodante, salvo necessidade imprevista e urgente, reconhecida pelo juiz, suspender o uso e gozo da coisa emprestada, antes de fi ndo o prazo convencional, ou que se determine pelo uso outorgado.

Caracteriza-se por ter como objeto uma coisa infungível e ser sempre gra-tuito (caso não fosse, se confundiria com a locação), além de temporário.

Ainda assim, se admite excepcionalmente, o chamado comodato modal, que é um comodato oneroso, em que se estabelece não uma obrigação em si para o comodatário, mas um ônus, como sacrifício exigido para desfrutar a liberalidade.

Sua causa é a cessão de uma coisa infungível para outrem, em liberalidade.O comodato só estabelece obrigações para uma das partes, isto é, só para

o comodatário, que tem, principalmente, que devolvê-la.Mas aí vocês vão perguntar?E a entrega da coisa?O comodante não tem que entregar a coisa para o comodatário?Tem, mas isso não é uma obrigação, é um pressuposto do contrato.O contrato só se perfaz com a entrega da coisa e por isso é um contrato

real.Então, se as partes chegam ao consenso sobre o comodato, e o que seria

comodante resolve desistir de entregar a coisa, ele não está descumprindo qualquer contrato, pois contrato ainda não existe.

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Pode acontecer, tão somente, que esse consenso tenha caracterizado uma promessa. Aí sim, gera a obrigação de fazer.

Art. 1.248: O comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis. Perfaz-se com a entrega do objeto.

Classifi cação:UnilateralRealGratuitoComutativo? Não, não faz sentido?Sinalagmático? Também não faz sentido.Solene? Não (a menos que se considere a entrega como uma solenidade ou

o resquício de uma solenidade).Execução instantânea? Sim. Diferida.Quanto aos elementos do contrato, há particularidade no que se refere à

Legitimidade:Art. 1.249: Os tutores, curadores, e em geral todos os administradores

de bens alheios não poderão dar em comodato, sem autorização especial, os bens confi ados à sua guarda.

Podem ser comodantes todos aqueles que tiverem o uso da coisa. Não precisam necessariamente ser proprietários.

Objeto:Coisas infungíveis:Móveis eImóveis.Obrigações do Comodatário:(i) A principal obrigação do comodatário é restituir a coisa emprestada ao

fi m do prazo:E se não houver prazo expresso?Presume-se que será pelo tempo necessário para o uso concedido:Art. 1.250: Se o comodato não tiver prazo convencional, presumir-se-

-lhe-á o necessário para o uso concedido, não podendo o comodante, salvo necessidade imprevista e urgente, reconhecida pelo juiz, suspender o uso e gozo da coisa emprestada, antes de fi ndo o prazo convencional, ou o que se determine pelo uso outorgado.

E se não restituir?Pagará aluguel pelo prazo excedente, além das perdas e danos:Art. 1.252.> Alguns entendem aplicar-se o art. 1.196 que permite o arbitramento

do aluguel pelo comodante. Mas essa solução é mesmo exagerada e deve ser proporcionada. Não é um direito absoluto de impor o aluguel.

Ao contrário da locação, em que a ação é de despejo, aqui a ação é posses-sória, em razão da posse precária.

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(ii) Outra obrigação importante é a de conservar a coisa como se sua fosse, não podendo usá-la senão de acordo com o uso do contrato ou a natureza dele.

Art. 1.251.Se usar para outra fi nalidade, responde por perdas e danos.Mas pode pedir a rescisão por isso?Segundo Silvio Rodrigues (pág. 249), sim.Aliás, a idéia do Código de proteger a coisa como se sua fosse não é precisa.É que no caso de correr perigo o objeto do comodato, juntamente com

outros do comodatário, este tem que proteger o objeto do comodato em pri-meiro lugar, sob pena de responder pelo dano, ainda que causado por fortuito:

Art. 1.253.Em razão dessa obrigação, alguns entendem que deve ser atenuado o rigor

do art. 1.254 para possibilitar ao comodatário o ressarcimento de despesas extraordinárias de emergência, isto é benfeitorias necessárias, mas antes deve comunicar ao comodante para que este as proveja.

Riscos:Quanto aos riscos não há particularidade.Segue a regra res perit domino, pois a coisa emprestada é de propriedade ou

está sob o domínio do comodante.Só há particularidade no caso já visto do art. 1.253.Extinção:

MÚTUO (MUTUANTE E MUTUÁRIO)

Definição e Objeto

Diz-se ser o empréstimo “de consumo”, em contraposição ao empréstimo “de uso” (comodato).

Isso pode ensejar confusão quanto a ser objeto do contrato formado ape-nas por coisas consumíveis, o que não é verdade.

Pode haver mútuo de coisas não consumíveis (o exemplo clássico envolve o empréstimo de animais que devam ser restituídos em outros da mesma espécie, sem que se exija a identidade individual).

Não se pode confundir coisas consumíveis com fungíveis; e estas são o objeto do mútuo:

Art. 1.256: O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisas do mesmo gênero, qualidade e quantidade.

Portanto, basta que o mutuário restitua coisas do mesmo gênero, qualida-de e quantidade, não estando obrigado a restituir os mesmo itens empresta-dos, caso que envolveria o outro tipo: comodato.

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Transferência do Domínio

Então qual o destino das coisas emprestadas no mútuo?Qualquer que lhes dê o mutuário (na maior parte dos casos, o destino será

o consumo), já que este delas se torna senhor:Art. 1.257: Este empréstimo transfere o domínio da coisa emprestada ao

mutuário, por cuja conta correm todos os riscos dela desde a tradição.É lógica tal conseqüência: se o mutuário tem autorização para consumir a

coisa emprestada, não poderia, por óbvio, restitui-la.E a restituição é, então, a chave para que o contrato não tenha os mesmos

efeitos da doação.A causa do mútuo não é a transferência do domínio, mas uma conseqüên-

cia da natureza das coisas que servem como seu objeto. A causa é a cessão do “gozo que se obtém com o uso do dinheiro ou de outras coisas fungíveis” (Arnaldo Rizzardo, p.718).

Temporariedade

= Por isso que a temporariedade também é requisito essencial, sem a qual poderia haver confusão entre os dois negócios (Orlando Gomes, p.318). Evi-ta-se a indeterminação do contrato, reforçando-se a regra do art. 952 (331):

— Art. 1.264: Não se tendo convencionado expressamente, o prazo do mútuo será:

I. — Até a próxima colheita, se o mútuo for de produtos agrícolas, assim para o consumo como para a semeadura.

II. — De 30 dias, pelo menos, até prova em contrário, se for de dinheiro.III. — Do espaço de tempo que declarar o mutuante, se for de qualquer

outra coisa fungível (O artigo 952 estabelece que o pagamento pode ser exi-gido imediatamente caso não haja prazo estipulado).

A transferência da propriedade ao mutuário é relevante na falência ou insolvência ocorrida durante o contrato, já que o mutuante terá de concorrer com os demais credores para reaver a coisa.

Riscos

Outra importante conseqüência que deriva da transferência diz respeito aos riscos. No comodato, se a coisa se perde ou deteriora durante a vigência do contrato, quem sofre a diminuição patrimonial correspondente é o co-modante, dono da coisa; no mútuo, a regra “res perit domino” fi ca ao lado do emprestador: afi nal, ao efetuar a entrega (que é verdadeira tradição), o

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FGV DIREITO RIO 174

domínio da coisa passa ao mutuário e, com ele, os riscos pela perda ou dete-rioração fortuitas.

“Realidade”

Da redação do artigo 1.256 ainda se extrai o caráter real do contrato de mútuo, que somente se perfaz com a tradição da coisa.

O mútuo somente se aperfeiçoa com a tradição. Antes disso, pode haver apenas uma “promessa de mútuo”, esta, sim, contrato consensual e que, acaso descumprida, ensejará a sanção das perdas e danos.

Promessa de Mútuo

Não pode ser exigida a entrega?Em regra, os chamados “contratos preliminares” ou “pré-contratos” so-

mente ensejam a sanção das perdas e danos, visto que envolvem verdadeira obrigação de fazer, consubstanciada na celebração do contrato defi nitivo.

Nosso Direito anterior à vigência do Novo Código Civil reconheceu o caráter vinculatório da promessa de compra e venda de imóvel, impondo--lhe efeito prático correspondente à celebração do contrato pelo promitente vendedor, ou seja, impondo-lhe o efeito da transferência da propriedade. A solução era, contudo, restrita ao caso.

O Novo Código Civil traz disposições específi cas sobre o contrato pre-liminar (artigos 462 a 466), reconhecendo neles o caráter obrigatório em relação ao objeto do contrato defi nitivo, desde que contenha todos os re-quisitos essenciais do contrato defi nitivo (art. 462), não preveja cláusula de arrependimento (art. 463) e se a natureza da obrigação não for com isso incompatível (art. 464).

Arnaldo Rizzardo afi rma que a promessa de mútuo é “suscetível de revogação por decisão do promitente mutuante quando há sensível mudança nas garantias patrimoniais de parte do pretendente, de modo a induzir sua insolvência” (p.719).

A prova dessa condição deve ser do promitente.No âmbito do Direito do Consumidor, a oferta (qualquer informação ou

publicidade) feita vincula o fornecedor, consubstanciando verdadeira obriga-ção que, se inadimplida, pode ser exigida em si, desvinculando-se, a solução, da regra vetusta do artigo 880 do Código Civil:

Art. 84: Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específi ca da obrigação ou de-terminará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

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§1º: A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por ela optar o autor ou se impossível a tutela específi ca ou a obtenção do resultado prático correspondente.

O Código de Defesa do Consumidor é formado por um conjunto de nor-mas de ordem pública que se espraiam por vários ramos do Direito, atingin-do o direito material e o direito processual no qual traz soluções específi cas para os direitos que reconhece naquele. É o que ocorre neste caso.

Unilateralidade

A “realidade” do contrato o torna essencialmente unilateral.Só há obrigações para o mutuário, nunca para o mutuante:A tradição não é obrigação, mas pressuposto.Note-se que nem mesmo há deveres de reembolso por despesas feitas com a con-

servação da coisa. Estes se justifi cam no comodato, em que a coisa é do comodante.E para que se confi gure o contrato de mútuo, basta que haja a vinculação

do mutuário à entrega de coisas equivalentes em determinado prazo.

Gratuidade e Onerosidade

Daí ser ele originalmente gratuito.Originalmente pois foi historicamente assim concebido.Já há algum tempo, destaca-se a cobrança de juros, vista como verdadeira

causa para a celebração do contrato por parte do mutuante, o que desvirtua sua função (na origem, benefi cente).

O Código Civil de 1916, embora identifi cando essa tendência, ainda a considerava excepcional:

— Art. 1.262: É permitido, mas só por cláusula expressa, fi xar juros ao empréstimo de dinheiro ou de outras coisas fungíveis. Esses juros podem fi -xar-se abaixo ou acima da taxa legal (artigo 1.062) com ou sem capitalização.

Com o advento dos empréstimos em massa, de dinheiro, feitos pelas insti-tuições fi nanceiras, consolida-se o desvio, do mútuo, de seu caráter de libera-lidade. Passa a ser considerado, em regra, como um contrato oneroso. Afi nal, como dito, a causa do contrato deixou de ser, na maior parte dos casos, a liberalidade, vindo a se identifi car na cessão do gozo temporário de certa quantia em dinheiro em troca de remuneração.

O Novo Código Civil vai nessa linha:— Art. 591: Destinando-se o mútuo a fi ns econômicos, presumem-se de-

vidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual.

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FGV DIREITO RIO 176

Ao empréstimo em dinheiro, a juros, chama-se mútuo feneratício (do la-tim ‘foenus’).

Classificação:

UnilateralRealGratuito, mas é comum que seja OnerosoComutativo? Não, não faz sentido?Sinalagmático? Também não faz sentido.Solene? Não (a menos que se considere a entrega como uma solenidade ou

o resquício de uma solenidade).Execução instantânea? Sim. Diferida.

Elementos:

Só podem ser mutuantes aqueles que têm a propriedade da coisa.Claro, o mútuo envolve a alienação.Há particularidade no que se refere à capacidade:Art. 1.259: O mútuo feito a pessoa menor, sem prévia autorização daque-

le sob cuja guarda estiver, não pode ser reavido nem do mutuário, nem de seus fi adores ou abonadores.

Isso vai ao encontro das regras sobre incapacidade (genéricas a todo contrato).Mas torna-se válido o mútuo nas hipóteses do art. 1.260, tendo o artigo

589 do novo Código Civil acrescentado mais duas (se o empréstimo reverteu em benefício do menor; se o menor obteve o empréstimo maliciosamente).

O objeto, como se viu, está restrito às coisas fungíveis (não necessariamen-te por sua natureza).

Obrigações do Mutuário:

Aqui, ao contrário do comodato, só há como obrigação principal a entrega de coisa equivalente no prazo estipulado.

Já que a coisa é destinada ao consumo, ou é fungível, não há necessidade de conservá-la.

Quando há previsão de juros, soma-se àquela obrigação a de pagar os juros.

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FGV DIREITO RIO 177

Juros

Conceito:São frutos civis; não decorrem de acréscimo natural da coisa mas de uma

convenção.Confi guram a contrapartida merecida pela cessão e pela indisponibilidade

do capital (estão sempre vinculados a uma dívida de capital, com origem contratual ou legal).

Conforme se trate de contrapartida pela cessão ou pela indisponibilidade, os juros são chamados de compensatórios e moratórios.

Espécies:Compensatórios: como o nome indica, compensam, remuneram a cessão

do capital.Moratórios: entende-se que são uma retribuição pela indisponibilidade do

capital.SimplesCompostos (integrados pelos juros anteriores e outras verbas)Reais: segundo Arnaldo Rizzardo, são aqueles que perfazem a remunera-

ção líquida

Limitação:Para o Código Civil de 1916, não havia limitação (podiam ser cobrados

“abaixo ou acima da taxa legal”).A taxa legal é aquela do artigo 1.062: 6% (seis por cento) ao ano.Isso, contudo, durou até 1933, com a vigência do Decreto 22.626:Art. 1º, Dec. 22626/33: É vedado, e será punido nos termos desta Lei, esti-

pular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro do limite legal.Os juros, a partir de então, fi caram limitados a 12% (doze por cento) ao

ano, quer fossem moratórios, quer remuneratórios.Estes, contudo, ainda podiam sofrer um acréscimo de mais 1% (um por

cento):Art. 5º, Dec. 22626/33:Admite-se que pela mora dos juros contratados

estes sejam elevados de um por cento e não mais.Em 1964, porém, a Lei 4.595 alterou a política fi nanceira e monetária.

Criou o Sistema Financeiro Nacional, a ele vinculando as instituições fi nan-ceiras (art. 17) e o CMN (Conselho Monetário Nacional), ao qual outorgou a competência de estabelecer as diretrizes monetárias. Nesse sentido, em seu artigo 4º, IX, transferiu-lhe a função de “limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, descontos, comissões e qualquer outra forma de remuneração das operações e serviços bancários ou fi nanceiros...”.

Diante disso, o STF passou a entender que, no que concernia às institui-ções fi nanceiras, que o Decreto 22.626/33 estava afastado, fi cando livre a

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estipulação de juros em seus contratos. O entendimento foi consolidado na Súmula 596: as disposições do Dec. 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas que integram o Sistema Financeiro Nacional.

Esse entendimento sempre foi considerado injusto e discriminatório.Com a promulgação da Constituição da República, as discussões voltaram

à tona e perduram até hoje.Art. 192, § 3º: As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quais-

quer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento (12%) ao ano; a co-brança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos do que a lei determinar.

Por força desse dispositivo, parecia que a Constituição estabelecera a limi-tação a 12% de modo geral e irrestrito.

No entanto, o STF entendeu, de modo nem sempre compreendido, que o dispositivo não pode ser aplicado, dependendo de regulamentação.

Enquanto não regulamentado o dispositivo constitucional, de nada adian-ta querer aplicá-lo, já que o STF não reconhece tal aplicabilidade.

Com a promulgação, passou a ser do STJ a competência, em instância superior, para dirimir as controvérsias relativas ao confl ito de leis federais. A partir daí, a súmula 596 não mais representava, ofi cialmente, a interpretação nacional.

Alguns julgados fi zeram interessante abordagem da questão.Uma delas, esposada por Arnaldo Rizzardo, é baseada na interpretação do

termo “limitar”, constante da Lei 4.595/64: para a 4ª Turma, ao dizer que o CMN passou a poder “limitar” as taxas de juros “sempre que necessário”, o legislador não liberou a estipulação de quaisquer taxas. “Limitar” quer signi-fi car fi xar, estabelecer, pelo que a cobrança de taxas superiores àquelas da lei de usura dependeria da autorização expressa do CMN para tanto (ex.: RESP 328.220 — Ruy Rosado de Aguiar).

No entanto, a hipótese se limita às cédulas de crédito rural, comercial e industrial.

Ambas as turmas decidem dessa forma.A mais ousada, todavia é a abordagem relativa à não-recepção da Lei

4.595/64 pela CR/88, segundo a qual, tendo o artigo 22, VI e VII, ao tratar da competência privativa da União, inserido os temas de sistema monetá-rio e política de crédito, remetendo-os à legislação exclusiva pelo Congresso Nacional (artigo 48, XIII), retirou a legitimidade da Lei 4.595/64, editada em tempo de regime ditatorial. Além disso, o artigo 25 do ADCT revogou expressamente “os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional...” (ver Márcio Mello Casado, p.48).

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No âmbito dos Juizados Especiais Cíveis no Estado do Rio de Janeiro, há um enfoque distinto, atacando a fi xação de juros de modo unilateral, sem informação prévia acerca da taxa cobrada, o que permite a variação unilateral do preço do serviço bancário (remuneração pelo fi nanciamento concedido).

Afora isso, o STJ tem mantido o entendimento do STF, adotando a inter-pretação da súmula 596.

No Novo Código Civil, há autorização para a cobrança de juros até o limi-te da taxa usada para a correção dos tributos federais (SELIC).

Capitalização:A capitalização também era autorizada pelo Código Civil de 1916 (art.

1.262) e passou a ser proibida pelo Dec. 22.626/33, através de seu artigo 4º: é proibido contar juros dos juros; esta proibição não compreende a acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos em conta corrente de ano a ano.

Mesmo quando pactuada expressamente, não pode ser cobrada. Esse é o entendimento pacifi cado no STJ que somente acata o anatocismo quando haja autorização legal (Súmula 121, STF: É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada, proibição essa que alcança também as instituições fi nanceiras).

No entanto, (i) o próprio STF estabeleceu uma exceção a essa proibição, refl etida na Súmula 596 e (ii) o próprio dispositivo que impõe a proibição ao anatocismo, já lhe aplicava um exceção, além (iii) da exceção na desapro-priação:

(i) Súmula 596: As disposições do Decreto 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema fi nanceiro nacional.

(ii) Art. 4º, Dec. 22.626/33: É proibido contar juros dos juros; esta proi-bição não compreende a acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos em conta corrente de ano a ano.

(iii) Súmula 102, STJ: A incidência dos juros moratórios sobre os compen-satórios, nas ações expropriatórias, não constitui anatocismo vedado em lei.

203906 — APROPRIAÇÃO INDÉBITA — VALOR RECEBIDO PARA CONSTITUIÇÃO DE UMA FIRMA — NEGÓCIO NÃO CON-CRETIZADO — NOVAÇÃO COM SURGIMENTO DE CONTRATO DE MÚTUO — FALTA DE PAGAMENTO DE UMA PARCELA — DÍ-VIDA CIVIL — NÃO CARACTERIZADO DE ILÍCITO PENAL — No contrato de mútuo o mutuante dá a coisa ao mutuário para que a use ou consuma (art. 1.257 do CC). Impossível, pois, nessa hipótese, falar-se em apropriação indébita. E não descrevendo a denúncia alguma fraude mas um negócio mal sucedido, não se caracterizou, no caso, qualquer crime. (STJ — REsp 12.602 — RJ — 5ª T. — Rel. Min. Assis Toledo — DJU 25.11.1991) (RJ 173/116)

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125816004648 — RECURSO ESPECIAL — CONTRATOS DE ABERTU-

RA DE CRÉDITO DE FINANCIAMENTO — LIMITAÇÃO DA TAXA DE JUROS — CAPITALIZAÇÃO DOS JUROS — SÚM. 596 E SÚM. 121/STF — 1. Conforme jurisprudência desta Corte, em regra, ao mútuo bancário, não se aplica a limitação dos juros em 12% ao ano, estabelecida na Lei de Usura (DEC 22.626/33, art. 1º). Incidência da Súm. 596/STF. 2. No tocante à capitalização dos juros, permanece em vigor a vedação contida na Lei de Usura, exceto nos casos excepcionados em lei, o que não ocorre com o mútuo bancário comum, tratado nos presentes autos. 3. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido. (STJ — REsp 156.773 — RS — 3ª T. — Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito — DJU 24.08.1998 — p. 80)

DEPÓSITO

Conceito

Pelo Depósito, uma pessoa entrega à outra um bem móvel para que seja guardado e devolvido quando quiser.

Segundo Silvio Rodrigues, é “o contrato pelo qual uma pessoa recebe, para guardar, um objeto móvel alheio, com a obrigação de restituí-lo quando o depo-sitante o reclamar”.

E esse conceito em muito se aproxima da defi nição legal:Art. 1.265: Pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto mó-

vel, para guardar, até que o depositante o reclame.Partes: Depositante (entrega) e Depositário (recebe para guardar).Mas a locução ‘para guardar’ pode esconder a verdadeira vinculação do

depositário, posto que este não fi ca obrigado apenas a armazenar a coisa, mas a zelar por ela. Daí alguns autores preferirem falar na noção de custódia (Orlando Gomes).

Causa

De todo modo, dela se vislumbra a causa do contrato de depósito, a cus-tódia de coisa alheia.

É esse o motivo “oggettivato” (Trabucchi) do contrato.E é ela que diferencia o contrato de depósito de um contrato de comodato

ou de locação (se o depósito for remunerado).No comodato, a causa é o uso e gozo da coisa.

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Embora exista o dever de guarda e conservação da coisa nesse tipo de contrato, ele é mera conseqüência da cessão do uso e gozo e não sua causa.

No depósito, ao contrário, a guarda é a causa e o uso é, em princípio, vedado.

Mesmo nas hipóteses excepcionais em que o uso é autorizado, não pode haver desvirtuamento do contrato, já que este será conseqüência da custódia. O direito de uso, nesses casos, vem “a reboque” da custódia.

Prazo de interesse do depositante

E a causa se identifi ca com o interesse do depositante.É por isso que, ao contrário do empréstimo e da locação, o prazo do de-

pósito não se fi xa, em regra, em benefício do recebedor da coisa, mas em benefício do entregador (depositante).

Assim, mesmo quando há prazo especifi cado para a vigência do contrato, a coisa depositada pode ser exigida pelo depositante a qualquer tempo:

Art. 1.268: Ainda que o contrato fi xe prazo para a restituição, o depositá-rio entregará o depósito, logo que se lhe exija, salvo se o objeto for judicial-mente embargado, se sobre ele pender execução, notifi cada ao depositário, ou se ele tiver motivo razoável de suspeitar que a coisa foi furtada, ou roubada (art. 1.273).

Caráter Gratuito

O interesse do depositante é tão marcante no contrato de depósito que em regra exclui qualquer interesse do depositário.

O contrato de deposito é essencialmente gratuito. Na sua origem, não se concebia a remuneração pela guarda.

Contudo, a sociedade contemporânea tem admitido a remuneração do depositário.

E nesse sentido se dirigiu o Código Civil:Art. 1.265, Parágrafo Único: Este contrato é gratuito, mas as partes po-

dem estipular que o depositário seja gratifi cado.Se a gratifi cação se transforma em uma remuneração pela guarda, o con-

trato pode passar a oneroso.Atualmente é verifi cada a grande incidência de contrato de depósito que

são celebrados não apenas no interesse do depositante, mas também no in-teresse do depositário, como, por exemplo, no caso dos armazéns e estacio-namentos, cuja principal atividade é exatamente a exploração comercial do depósito.

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Caráter Real

Da redação do artigo 1.265 é possível vislumbrar seu caráter real, posto que o contrato se aperfeiçoa somente com a entrega. Esta é pressuposto da gênese da obrigação de guardar.

Essa entrega pode ser real (física) ou fi cta (chaves de um carro).Transfere não a posse ou o uso (salvo no depósito irregular), mas a detenção.

Objeto

É também a redação do artigo 1.265 que indica a natureza dos bens que podem ser objeto de comodato: bens móveis.

Não se admite o depósito de imóveis pela razão de Pothier: o que se guarda não é o imóvel em si, eis que não pode ser removido, mas o que está em seu interior.

Se por acaso há dever de vigilância e cuidados com relação ao imóvel, trata-se de mandato e não de depósito.

Ainda assim, a doutrina mais moderna vem admitindo que imóveis pos-sam ser objeto de depósito, principalmente pela abertura dada pelos depósi-tos judiciais (penhora).

Creio, contudo, que o caso do depósito judicial não ilide a restrição legal, posto não poder ser tomado por contrato.

Anote-se que a doutrina francesa considerou o depósito um “ato” exata-mente para que nele pudesse ser enquadrado o depósito judicial (“séquestre”).

Esses bens são, em regra, coisas infungíveis, individuadas, que devem ser restituídas em si.

Todavia, excepcionalmente, se admite o depósito de coisas fungíveis, que é chamado de Depósito Irregular.

Nesse caso, assemelha-se ao mútuo e, por isso, regula-se em conformidade com ele:

Art. 1.280: O depósito de coisas fungíveis, em que o depositário se obri-gue a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, regular-se-á pelo disposto acerca do mútuo (arts. 1.256 a 1.264).

Assemelha-se ao mútuo porque não se poderia impedir, em face da na-tureza das coisas depositadas, que o depositário as utilizasse como bem lhe aprouvesse. A ele é facultado, nesses casos, o uso e gozo da coisa depositada e, por isso, as regras do mútuo são pertinentes.

Ainda assim, não se confunde com o mútuo. Como visto, a causa é dis-tinta.

Espécies:O depósito, segunda a lei, pode ser voluntário ou necessário.

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Voluntário é o depósito que se faz com a escolha, pelo depositante, do de-positário, ou seja, a quem confi ará a guarda da sua coisa. Por isso, tem caráter “intuito personae”. Neste caso, há consenso entre as partes.

Já o depósito necessário se caracteriza por não ser dada ao depositante essa faculdade. Decorre da lei.

Obrigações:Já se pode ver, da própria redação do art. 1.265, que o depósito gera, em

regra, obrigação apenas para o depositário, qual seja, a de guardar a coisa e de restituí-la quando o depositante quiser.

(i) A primeira e principal obrigação do depositário e, então, guardar a coisa.

A não ser que se torne impossível ou muito difícil a guarda, o que o Códi-go reconhece, permitindo, então, até mesmo em razão da regra da gratuida-de, que o depositário se esquive do dever de guarda:

Art. 1.270: Ao depositário será facultado, outrossim, requerer depósito judicial da coisa, quando, por motivo plausível, a não possa guardar, e o de-positante não a queira receber.

(ii) Conservar a coisa:Deve zelar pela coisa com toda a diligência.Como se lhe pertencesse.Art. 1.266: O depositário é obrigado a ter na guarda e conservação da

coisa depositada o cuidado e diligência que costuma com o que lhe pertence, bem como a restituí-la, com todos os frutos e acrescidos, quando lho exija o depositante.

Essa obrigação guarda semelhança com a obrigação do comodatário, mas a deste é um pouco mais rigorosa, pois contém a estipulação de que, em caso de perigo, deve salvar a coisa emprestada em primeiro lugar.

No depósito não há semelhante regra.Basta que o depositário haja com a diligência de um homem médio.Mesmo assim, cabe a ele o ônus da prova de que agiu com essa diligência.

Se a coisa depositada perece ou sofre danos, o depositário tem que provar o evento que superou sua diligência:

Art. 1.277: O depositário não responde pelos casos fortuitos, nem de for-ça maior; mas, para que lhe valha a escusa, terá de prová-los.

(iii) Restituir a coisa depositada:a) Ainda que o contrato estipule prazo, o depositário é obrigado a restituir

sempre que o depositante o reclame (como se viu, o prazo é fi xado no inte-resse do depositante):

Art. 1.268: Ainda que o contrato fi xe prazo para a restituição, o depositá-rio entregará o depósito, logo que se lhe exija, salvo se o objeto for judicial-mente embargado, se sobre ele pender execução, notifi cada ao depositário,

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ou se ele tiver motivo razoável de suspeitar que a coisa foi furtada, ou roubada (art. 1.273).

E se não restituir por dolo ou porque culposamente a transferiu?Veja-se que se trata de recusa injustifi cada ou culpa.Deve haver a intenção dirigida à não-devolução ou culpa.O depositário pode ser preso até que devolva:Art. 1.287: Seja voluntário ou necessário o depósito, o depositário, que o

não restituir, quando exigido, será compelido a fazê-lo, mediante prisão não excedente a 1 (um) ano, e a ressarcir os prejuízos (art. 1.273).

É a famosa pena de prisão do depositário infi el, uma das duas únicas pri-sões civis, por descumprimento de uma obrigação civil, que restaram em nosso Direito.

Art. 5º, LXVII, CF: Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do respon-sável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infi el.

— A República Federativa do Brasil aderiu ao Pacto de São José da Costa Rica, promulgado pelo Decreto Executivo 592, de 06.07.1992. O artigo 7º, nº 7 desse tratado determina: “Ninguém será detido por dívidas; este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em vir-tude de inadimplemento de obrigação alimentar”.

— Por isso, uma corrente passou a sustentar a derrogação das normas sobre a prisão civil do depositário, especialmente nos casos de alienação fi du-ciária em garantia, em que o Decreto-Lei 911/69 autorizou o procedimento de prisão à semelhança do depositário infi el.

— Não obstante, o STF não admitiu a derrogação sob os argumentos de que:(i) embora seja norma de mesmo grau hierárquico que a norma do art.

1.287 do Código Civil, tem caráter infraconstitucional geral, não poden-do derrogar as normas infraconstitucionais especiais sobre prisão civil (HC-72131; RE-206.482);

(ii) como o Pacto de São José tem estatuto de norma infraconstitucional, não pode sobrepor-se à norma constitucional do art. 5º, LXVII (“se se enten-der que ele, por haver apenas excepcionado da prisão civil o inadimplemento de obrigação alimentar, revogou, tacitamente, a legislação infraconstitucional inter-na relativa à prisão civil do depositário infi el em caso de depósito convencional ou legal (este com referência, inclusive, aos penhores sem desapossamento e à alie-nação fi duciária em garantia), essa interpretação advirá do entendimento, que é inconstitucional, de que a legislação infraconstitucional pode afastar exceções impostas diretamente pela Constituição...”); e

(iii) o §2º do artigo 5º da CR/88 (“os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela dotados, ou dos tratados internacionais em que a República federativa do Brasil seja parte”) não se aplica aos tratados internacionais sobre direitos e garantias

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fundamentais que ingressaram em nosso ordenamento após a promulgação da CR/88, porque não se admite tratado internacional com força de emenda constitucional (RE-253.071, Min. Sepúlveda Pertence).

Diante disso, não pode haver dúvida de que o depositário infi el continua sujeito à pena de prisão.

Em verdade, não se trata de pena, mas de meio enérgico de compelir o depositário a cumprir seu dever de restituição.

E se não puder mesmo restituir?Aqui ele não restitui pois fi cou impossibilitado de fazê-lo por causas alheias

à sua vontade, isto é, sem culpa.Essa questão se refere aos RISCOS no contrato de comodato.Quem deve sofrer a diminuição patrimonial relativa à perda da coisa de-

positada?Deve o depositante fi car sem a coisa e não receber nada em seu lugar?Ou deve o depositário pagar o equivalente da coisa ao depositante?Se considerarmos a natureza gratuita do contrato de depósito e que o de-

positante é que é o dono da coisa, temos que a solução da lei impõe os riscos do contrato ao depositante, seguindo a regra res perit domino.

É o que já vimos do art. 1.277:Art. 1.277: O depositário não responde pelos casos fortuitos, nem de for-

ça maior; mas, para que lhe valha a escusa, terá de prová-los.Pode ocorrer que o depositário tenha, em razão de algum contrato de

seguro ou da responsabilidade de um terceiro pela perda da coisa, recebido uma indenização, recebido o equivalente à coisa depositada. Neste caso, a lei impõe, com justeza, que o depositário transfi ra ao depositante aquilo que recebeu em lugar da coisa:

Art. 1.271: O depositário que por força maior houver perdido a coisa depositada e recebido outra em seu lugar é obrigado a entregar a segunda ao depositante, e ceder-lhe as ações que no caso tiver contra o terceiro responsá-vel pela restituição da primeira.

E isso, claro, para evitar enriquecimento indevido do depositário.b) E tem que restituir a coisa no estado em que a recebeu:Art. 1.267: Se o depósito se entregou fechado, colado, selado ou lacrado,

nesse mesmo estado se manterá; e, se for devassado, incorrerá o depositário na presunção de culpa.

c) Inclusive com os frutos e acrescidos:Art. 1.266: O depositário é obrigado a ter ma guarda e conservação da

coisa depositada o cuidado e diligência que costuma com o que lhe pertence, bem como a restituí-la, com todos os frutos e acrescidos, quando lho exija o depositante.

Essa é uma regra de justiça.

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Afi nal, se o depositante sofre o risco, é justo que também receba os me-lhoramentos da coisa.

d) A obrigação de restituir passa aos herdeiros e estes, então, são obriga-dos a restituir a coisa. Mas pode acontecer que os herdeiros vendam a coisa depositada de boa-fé, sem saber que existia o contrato de depósito. Nesse caso, a lei admite que eles possam entregar coisa equivalente, ou seja, o preço recebido pela venda:

Art. 1.272: O herdeiro do depositário, que de boa-fé vendeu a coisa de-positada é obrigado a assistir o depositante na reivindicação, e a restituir ao comprador o preço recebido.

e) Também não pode o depositário querer reter a coisa depositada como compensação de crédito que tenha com o depositante:

Salvo se:Esse crédito decorrer de despesas feitas com a coisa depositada;De prejuízos do depósito (danos a coisas do depositário por defeito na

coisa depositada (contaminação))Ou se o crédito for de outro depósito.Art. 1.279: O depositário poderá reter o depósito até que se lhe pague o

líquido valor das despesas, ou dos prejuízos, a que se refere o artigo anterior, provando imediatamente esses prejuízos ou essas despesas.

Pode reter se for oneroso? Se a gratifi cação confi gurar remuneração, ha-vendo exploração comercial do depósito, este passa a oneroso e, por isso, não é demais admitir a retenção até que se receba a remuneração ajustada. Seria uma especifi cação da regra do artigo 1.092 do Código Civil.

f ) Só em poucos casos, pode o depositário se eximir da obrigação de en-tregar a coisa depositada:

(i) quando o objeto for embargado;(ii) quando sobre o objeto pender execução, notifi cada a ele.(iii) quando tiver forte motivo de suspeita de que o objeto é furtado ou

roubado.Art. 1.273: Salvo os casos previstos nos arts. 1.268 e 1.269, não poderá

o depositário furtar-se à restituição do depósito, alegando não pertencer ao depositante, ou opondo compensação, exceto se noutro depósito se fundar (art. 1.287).

Faculdades do Depositário:Em regra o depositário tem apenas deveres quanto à coisa, não direitos em

relação a ela.Como vimos, deve guardá-la e conservá-la.Não pode fazer uso dela, a não ser que expressamente autorizado:Art. 1.275: Sob pena de responder por perdas e danos, não poderá o de-

positário, sem licença expressa do depositante, servir-se da coisa depositada.

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Obrigações do Depositante:Há obrigações por parte do depositante no contrato de depósito?Pode haver, mas nem sempre.Por certo, não há obrigação de entregar; esta é pressuposto do contrato.Pode haver obrigações, mas apenas em caráter circunstancial.E essas obrigações circunstanciais estão dentre aquelas cujo descumpri-

mento permite o direito de retenção por parte do depositante:Art. 1.278: O depositante é obrigado a pagar ao depositário as despesas

feitas com a coisa, e os prejuízos que do depósito provierem.Exatamente por serem meramente circunstanciais, derivadas de situações

especiais, ocorridas no curso do depósito, é que não podem vir a ser conside-radas como inerentes ao contrato.

Por isso que o contrato continua sendo unilateral (quando não remunera-do), embora alguns, em razão dessas obrigações eventuais, prefi ram chamá-lo de bilateral imperfeito.

Se o depósito for remunerado, aí já será a obrigação de pagar a remunera-ção, os salários, uma obrigação essencial para esse chamado depósito oneroso.

Classifi cação:(i) Unilateral, podendo ser bilateral, quando oneroso.E hoje em dia é, na maioria dos casos, bilateral.(ii) Real (só se perfaz com a entrega da coisa a ser guardada).(iii) Gratuito segundo a regra da lei, podendo ser oneroso.(iv) Se oneroso é comutativo.(v) Não-solene, a despeito do art. 1.281:Art. 1.281: O depósito voluntário provar-se-á por escrito.Notem que a forma exigida aqui é apenas ad probationem e não ad substan-

tiam, isto é, não se exige para a validade do contrato, apenas para sua prova.Depósito Necessário:A lei abrange sob o nome de depósito necessário o que a doutrina divide

em depósito legal e depósito necessário strictu sensu.Seria, nesse sentido, o depósito em que o depositante, por força da lei ou

premido pelas circunstâncias, não tem chance de escolher o depositário (per-de o caráter intuitu personae).

Sua característica é essa, a impossibilidade de escolha do depositário.Art. 1.282: É depósito necessário:I. — o que se faz em desempenho de obrigação legal (art. 1.283);Refere-se aos diversos casos em que a lei estabelece para uma pessoa a res-

ponsabilidade de depositário.Art. 1.284: A esses depósitos é equiparado o das bagagens dos viajantes,

hóspedes ou fregueses, nas hospedarias, estalagens ou casas de pensão, onde eles estiverem.

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Parágrafo Único: Os hospedeiros ou estalajadeiros por elas responderão como depositários, bem como pelos furtos e roubos que perpetrarem as pes-soas empregadas ou admitidas em suas casas.

Para Arnaldo Rizzardo, o fundamento dessa responsabilidade é a confi an-ça que o público deposita nesses estabelecimentos.

Entende-se que a enumeração é meramente enunciativa. Segundo Pontes de Miranda, estende-se aos teatros, hospitais, transportes de leito, cassinos, clubes, restaurantes e cafés com guarda-volumes ou chapelaria.

Nesse ponto, cabe mencionar o problema da efi cácia da cláusula de não indenizar, geralmente afi xada nas paredes dos estabelecimentos.

Para a doutrina, resta claro que qualquer aviso nesse sentido é inefi caz.Afi nal, trata-se de ato unilateral que não pode impor efeitos ao cliente,

mesmo que previsto em regulamento interno.Arnaldo Rizzardo diz que só convenção expressa a validaria.Essa afi rmação é discutível. A doutrina e a jurisprudência tem limita-

do o alcance das cláusulas de não indenizar, mesmo no campo das relações contratuais, se atinge os “elementos substanciais da avença”, não podendo ser ajustada “para afastar ou transferir obrigações essenciais do contratante” (Sergio Cavalieri Filho, p.341).

Esse entendimento foi consolidado pelo legislador no âmbito das relações de consumo, em que se consideram nulas as cláusulas que restrinjam “direi-tos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual” (Artigo 51, §1º, II). Há item específi co no artigo 51,I.

Em verdade, a se admitir uma cláusula desse tipo nos contratos de depó-sito, estar-se-ia mitigando a intensidade do dever de custódia, cerne do ne-gócio. Na prática, acaba privando de efeitos todo o negócio, erigindo-se em verdadeira condição potestativa pura, vedada em nosso ordenamento (artigo 115 do Código Civil: são lícitas, em geral, todas as condições, que a lei não ve-dar expressamente. Entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o ato ou o sujeitarem ao arbítrio de uma das partes). Segundo Orlando Gomes, tais condições criam uma “contradição em si”, retirando a efi cácia do negócio.

Exclusão da responsabilidade (art. 1.285): (i) se for provado que o fato era inevitável; e (ii) se houver força maior, como roubo a mão armada, escalada, invasão ou violências semelhantes.

II. — o que se efetua por ocasião de alguma calamidade, como o incên-dio, a inundação, o naufrágio ou o saque.

É o também chamado depósito miserável.Difere do Depósito Voluntário, principalmente:Por não precisar de forma específi ca em nenhuma hipótese:

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Art. 1.283, Parágrafo Único: Essas disposições aplicam-se, outrossim, ao depósitos depósitos previstos no art. 1.282, II; podendo estes certifi car-se por qualquer meio de prova.

Por não se presumir gratuito:Art. 1.286: O depósito necessário não se presume gratuito.

Depósito e Outras Figuras

O estudo do contrato de depósito ganhou importância na vida moderna pois tem servido como verdadeiro paradigma para soluções de problemas que se apresentam no âmbito de outros negócios ou outras fi guras jurídicas com que não se confunde. Destacam-se, em especial, a questão da respon-sabilidade intensifi cada pelo dever de guarda e conservação e a disposição do artigo 1.287, que permitir a prisão do depositário infi el. Em ambos os casos o que se busca é a aplicação analógica ou direta das normas do contrato de depósito. No primeiro, de modo a facilitar a reparação dos danos sofri-dos pela coisa-objeto-do—contrato, com a presunção de culpa do detentor e a conseqüente inversão do ônus da prova quanto à existência ou não do inadimplemento; no segundo, para reforçar a garantia do crédito, através da equiparação do devedor ao depositário.

Depósito e Estacionamento de Veículos:

O caso dos estacionamentos de veículos é uma das hipóteses em que pode haver a equiparação ao depósito e em que a jurisprudência tem reconhecido deveres de guarda e zelo. Mas há que se distinguir se o estacionamento é explorado comercialmente como atividade fi m ou é apresentado como um serviço de conveniência para os fregueses.

Exploração Comercial de Estacionamento

Quando o estacionamento é explorado comercialmente, como a atividade a que se dedica o empresário, parece não haver óbice no reconhecimento de um verdadeiro contrato de depósito. Afi nal, ainda que seus prepostos não detenham as chaves do veículo e, portanto, sua posse, o carro é ali entregue para que fi que guardado e protegido.

É certo que as partes não lhe impõem tal “nomen juris” mas as principais características do contrato de depósito podem ser nele vislumbradas, subsu-mindo-se, em princípio, à espécie tipifi cada no código (art. 1.265).

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Todavia, parece que os tribunais não têm preferido considerar o negócio dessa forma. Ao se referirem a ele, dizem haver um “serviço de estacionamen-to”. Talvez porque, em grande parte das vezes, a intenção seja apenas a de deixar o automóvel fora de locais proibidos pelos órgãos de trânsito.

De todo modo, o estabelecimento responde pela omissão nos deveres de guarda e vigilância.

Se o veículo é furtado, não há dúvida acerca dessa responsabilidade.Mas o STJ tem reconhecido (RESPs nºs 303.776/SP, de 25.06.2001 e

230.180/SP, de 16.10.2001, Ministros Aldir Passarinho e Barros Monteiro, res-pectivamente) que há responsabilidade mesmo no caso de roubo a mão armada.

Sustentam que, nas grandes cidades, esse crime não pode mais ser visto com o imprevisível e que a atividade-fi m do estabelecimento o obriga a pro-videnciar um mínimo aparato de segurança para evitá-lo.

Estacionamento-Conveniência

Se o estacionamento não é a atividade-fi m do estabelecimento, sendo ele oferecido como item de conveniência e conforto aos clientes, a situação é um tanto diversa, embora a solução seja semelhante.

A situação é diversa pela razão de que não há um contrato ou outro negó-cio propriamente dito encetado entre o estabelecimento e seus clientes. Não há declaração de vontade de parte a parte no sentido de se vincularem. Há, tão somente, o ato do cliente que manobra e para seu veículo em uma das vagas disponibilizadas.

Assim, é difícil reconhecer a existência de um contrato de depósito, em-bora o próprio STJ já o tenha feito (ultimamente, os acórdãos têm rechaçado essa adequação).

Os enfoques metodológicos mais recentes talvez imputem a tentativa de enquadrar a fi gura no modelo tipifi cado do contrato de depósito a um apego à noção de sistema fechado, segundo a qual todas as soluções para os pro-blemas jurídicos estão situadas no interior do sistema de normas e princípios ancorados na premissa maior da razão, devendo ser desprezada a busca de qualquer recurso que não esteja inserido no sistema.

Isso acaba provocando grandes distorções no seio da estrutura normativa em face do clamor por soluções de novos problemas: não resistindo às pres-sões das transformações sociais, que apresentam problemas não tradicional-mente previstos e, ao mesmo tempo, lutando para manter a coerência e a coesão do sistema (no qual sempre fundou a validade das soluções jurídicas), a jurisprudência contemporânea a essa crise (toda crise, termo que expressa ruptura, confl ito, luta, nas palavras de Hélio Jaguaribe, exprime uma des-conformidade estrutural entre um processo e seu princípio regulador, uma

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transformação) termina por forçar o enquadramento das novas fi guras nos velhos compartimentos normativos.

Mas as novas fi guras de relações inter-individuais e coletivas impõem a revisão de conceitos e pontos-de-vista elaborados para explicar as fi guras tra-dicionais já superadas e a inauguração de um novo enfoque de sistema: um “sistema aberto” ou pelo menos sujeito a aberturas, a interferências externas, através da quais seja possível fazer uma “sintonia fi na”, um ajuste mais preciso das normas aos fatos(!), de modo que estes não se contorçam e se descarac-terizem com um enquadramento forçado. É o que vem ocorrendo com a inserção das chamadas cláusulas gerais ou abertas que permitem dar um tra-tamento pleno ao fato, buscando, na sua ‘realidade’, na sua ‘autenticidade’, na sua expressão extra-jurídica (não na sua conformação a um modelo típico muitas vezes inadequado) os efeitos a serem juridicamente reconhecidos (e por isso socialmente legitimados).

É o que se pode dizer que acontece com o reconhecimento do dever de custódia nos estacionamentos para clientela.

A impossibilidade de enquadramento no contrato típico de depósito não afasta a confi guração do dever de custódia.

O Fundamento do Dever de Custódia

Vem sendo reconhecida a necessidade de se distinguir, como fonte das obrigações, não só aquelas tradicionalmente admitidas (a lei e o contrato), mas também as decorrentes do chamado “ato existencial”.

É de se adotar a lição de Clóvis do Couto e Silva (que teria sido pioneiro na divulgação dessa idéia entre nós): algumas relações há que não especifi ca-mente fundadas em um contrato, cuja juridicidade decorre mais diretamente de um fato, em que não existe, necessariamente, uma declaração de vontade identifi cável mas ao qual vem sendo atribuído o nascimento de deveres de diligência e atenção aos interesses mútuos.

O fundamento da criação e existência desses deveres (assemelhados àque-les gerados em função de negócios jurídicos), é encontrado na boa-fé ob-jetiva que tem como uma de suas principais funções a criação de deveres outros que não aqueles formados ou a se formar pelas fontes tradicionais (lei e vontade). É ela que permite que integrem as relações sociais “não apenas os fatores e circunstâncias que decorrem do modelo tipifi cado na lei ou que nascem da declaração de vontade, mas, por igual, fatores extravoluntarísticos, atinentes à concreção de princípios e standards de cunho social e constitucional” (Judith Martins-Costa, A Boa-Fé no Direito Provado, p.395).

É ela que, modernamente, explica a responsabilidade pré-contratual e a culpa ‘post factum fi nitum’, em face do reconhecimento de um dever genéri-

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co de colaboração recíproca, de lealdade, de clareza, coerência, fi delidade e respeito, enfi m, a “correttezza” a que se refere Alberto Trabucchi entre todos aqueles que travam um contato social (seja ele de natureza contratual ou fáti-ca), oriundos, principalmente, da confi ança gerada nesse contato.

No específi co caso de estacionamentos de veículos, ainda que não se vis-lumbre um ato de vontade como a entrega de chaves ou de tíquetes, nasce para o encarregado do estacionamento um dever de guarda do veículo.

É nesse ponto que se insere a melhor solução para o caso de furto de veícu-los e objetos em seu interior ocorridos em estacionamentos disponibilizados para a clientela, gratuitos ou pagos. Ao alardeá-los como mais uma facilidade e conforto, às vezes mencionando mesmo a segurança, os estabelecimentos captam a clientela sensível a esse chamado, nela criando a expectativa corres-pondente. Se essa expectativa é frustrada com o furto do veículo, quebra-se o dever de boa-fé, quebra-se o pacto de lealdade aos interesses do cliente e, daí, surge o dever de indenizar.

Para a jurisprudência que segue esse entendimento, antes mesmo de ence-tar o eventual negócio (compra e venda, prestação de serviços, hospedagem) com o cliente, fi ca o estabelecimento vinculado à expectativa nutrida por aquele em razão da situação fática (decorrente da oferta de facilidade) na qual vislumbrou a “idéia de segurança” (Min. Ruy Rosado, RESP nº 107211/SP).

O STJ consolidou o reconhecimento da responsabilidade dos estaciona-mentos na Súmula 130: A empresa responde, perante o cliente, pela reparação de dano ou furto de veículo ocorridos em seu estacionamento.

Mesmo o empregado do estabelecimento, em face da fundamentação na cláusula geral de boa-fé, tem assegurada a reparação por furto no estaciona-mento (RESP nº 195.664, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira)

No caso de estabelecimentos bancários, também o roubo no estaciona-mento tem ensejado a responsabilidade civil. Entende-se que, nesse caso, a natureza do serviço prestado determina que haja segurança armada, pronta para rechaçar a atividade criminosa do roubo. Um bom exemplo é o AGA nº 356.934/SP, cujo relator foi o Min. Carlos Alberto Menezes Direito. Outro, o AGAG 47.901.

Essa solução é uma conquista da jurisprudência atenta às transformações sociais de que se falou e ciente da construção doutrinária nacional e estran-geira que, mesmo diante da ausência de disposição normativa expressa, re-conheceu a vigência e aplicou a cláusula-geral de boa-fé, contribuindo para o infl uxo de noções capazes de aliviar a pressão do sistema, permitindo sua supervivência.

O Código Civil de 1916 desprezou a cláusula de boa-fé e atrasou seu fl o-rescimento entre nós.

Já o novo Código Civil traz disposição expressa (artigos 113 e 422) e per-mitirá a plena integração de tal solução ao novo sistema.

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Mas desde 1991 o Código de Defesa do Consumidor já a positivara. Todo o micro-sistema das relações de consumo é nela amparado. Do artigo 4º, III, espraia-se por todos os demais dispositivos, protegendo e garantindo a realização das expectativas dos consumidores que, criadas pela atuação dos fornecedores, são socialmente legitimadas.

Daí a especial preocupação do legislador com a disciplina da fase pré--negocial, com os atos existenciais, garantindo a proteção contra o descum-primento da oferta (art. 30); contra sua obscuridade (art. 36); contra a pro-paganda enganosa (art. 37); contra a falta ou defi ciência de informações (arts. 31 e 46), expressões de um atuar descuidado com as expectativas que possa despertar nos consumidores, potencializando sua frustração.

O mesmo se diz da proteção contra as práticas e cláusulas abusivas, bem como quanto aos defeitos e vícios dos produtos e serviços, sempre que ilidam a realização das expectativas socialmente legitimadas.

Mas podem os estacionamentos, quando gratuitos, ser considerados como serviços, de modo a serem disciplinados por essas regras?

Claudia Lima Marques demonstra sua insegurança quanto a essa conclu-são, dizendo que “de regra, os contratos gratuitos estão excluídos do campo de aplicação do CDC, mas, tendo em vista estas últimas manifestações da jurispru-dência (que reconheciam o contrato de depósito mesmo se o estacionamento em si não fosse pago, por ser o serviço ‘prestado no próprio incremento do comércio’), a sua inclusão como “contrato de consumo sui generis” ou pré--contrato de consumo parece de todo possível”.

A insegurança é descabida, não havendo necessidade de criar fi guras sui generis. Reconhecendo-se que o estacionamento está incluído no serviço pres-tado pelo estabelecimento (seja ele qual for, mesmo havendo mero comércio de produtos), aplica-se o disposto no artigo 17 do Código de Defesa do Con-sumidor se não houve vínculo contratual.

Depósito e Alienação Fiduciária em Garantia

O caso da alienação fi duciária em garantia é representativo da intenção de equiparação ao contrato de depósito, de modo a valer-se das regras específi cas de responsabilidade quanto à coisa transferida.

O Decreto-Lei 611/69 que alterou o artigo 66 da Lei 4.728/65, fi xando a natureza do contrato de alienação fi duciária em garantia, equiparando a condição do devedor àquela do “possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal” estabeleceu regime de proteção ao crédito que autorizou a busca e apreensão do bem dado em garantia de fi nanciamento.

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Estipulou que, caso o bem não fosse encontrado ou não se achasse na posse do devedor, poderia o credor “requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II, Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil” (art. 4º, segundo altera-ção feita para adaptar-se ao código de 1973), o que quer dizer que pode haver pedido de decretação da prisão civil do devedor-depositário.

Esse dispositivo tem sido alvo de ataques constantes de parte da jurispru-dência, agora reforçada pelo STJ (v. Embargos de Divergência nº 149.518, Min. Ruy Rosado de Aguiar, que consolidou o entendimento da corte es-pecial), que entende ser a medida contrária aos princípios constitucionais e garantias fundamentais que asseguram a dignidade da pessoa humana, tendo nascido em regime ditatorial.

Os argumentos do STJ são:(i) o credor fi duciário não é proprietário, já que não pode integrar o bem

alienado em seu patrimônio, fi cando obrigado a vendê-la a terceiros e não sofre os riscos pela perda ou deterioração fortuitas da coisa, tratando-se, em verdade, de um penhor;

(ii) não há obrigação de restituir, já que o pagamento do débito é com ela incompatível (se o devedor paga, fi ca defi nitivamente com o bem);

Estes dois primeiros visam a descaracterização do contrato de depósito.(iii) o Pacto de São José da Costa Rica, em seu artigo 7º, item 7, promul-

gado pela República do Brasil (que tem ‘status’ de lei ordinária), estabeleceu que ninguém será preso por dívidas, com exceção do devedor de dívida ali-mentícia, o que teria revogado a norma do Código Civil quanto à prisão do depositário infi el.

Como visto, o STF afasta a aplicabilidade da norma do tratado sob o argu-mento de que este (sendo legislação infraconstitucional) não poderia derro-gar a norma constitucional do artigo 5º, LXVII que permite a prisão civil do depositário infi el. Além disso, o Decreto-Lei 911 traz norma específi ca que prevaleceria sobre a norma genérica do pacto.

O STJ retruca. Diz que o Decreto-Lei 911 não traz norma especial quanto à prisão civil pois não foi ele que criou tal prisão, limitando-se a fazer remis-são às regras nesse sentido, estabelecendo que a responsabilidade do devedor fi duciário é a mesma do depósitário. Por isso, após o Pacto de São José, que derrogou a norma autorizadora da prisão do depositário infi el, não há mais espaço para a prisão civil do devedor-fi duciário (e, por essas razões, nem mes-mo do depositário). O argumento do STF com relação ao artigo 5º, LXVII seria inválido já que tal dispositivo não obriga a prisão do depositário, apenas a autoriza e, como não há mais norma autorizadora, aquela não poderia mais ser decretada.

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De qualquer forma, enquanto prevalecer, no STF, o entendimento acima descrito, será possível a prisão civil, tanto do depositário infi el quanto do devedor-fi duciário.

Depósito Judicial

O curioso é que esses argumentos não valem para aquele que fi cou como depositário de bens constritos no processo de execução, como se vê dos acór-dãos nos HC-21.747, Min. Nancy Andrighi; RHC-12.604 e HC-15.998, ambos do Min. Pádua Ribeiro.

Nesse tema, o STJ tem seguido a orientação do STF, que lavrou a Súmula 619: A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constitui o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito.

Depósito Bancário:

Destacam-se as modalidades de depósito de dinheiro (vulgarmente conta--corrente) e de objetos de valor.

Neste último caso, há verdadeiro depósito regular, a ser regulado pelas regras do contrato.

No primeiro, verifi ca-se a natureza fungível do objeto e a aplicação do artigo 1.280 que remete ao mútuo.

Mas de mútuo não se cuida. Há realmente depósito já que é feito no in-teresse do depositante.

E a obrigação de pagar juros aos valores depositados? Decorre não do mútuo, mas das normas do contrato de depósito, especialmente aquela do artigo 1.266 (restituir com todos os frutos e acrescidos), já que o dinheiro depositado é usado pelo banco e rende.

MANDATO

Conceito

“É o contrato pelo qual uma pessoa (mandatário), recebe poderes de outra (mandante) para, em seu nome, praticar atos jurídicos ou administrar interesses” (Caio Mario, p.275).

O conceito dado pela doutrina não destoa da defi nição legal:Art.1.288: Opera-se o mandato, quando alguém recebe de outrem pode-

res, para, em seu nome, praticar atos, ou administrar interesses.

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Mas o mandato não é fi gura autônoma; está ligado ao instituto da repre-sentação, embora com ele não se confunda, no todo ou em parte.

Mandato e Representação

‘Representação’ vem de ‘representatio’, que quer dizer: apresentar-se em lugar de outrem, fazer as vezes de outrem, “agindo e fazendo com que os efeitos jurídicos e econômicos do negócio celebrado por seu intermédio recaiam direta-mente na esfera jurídica do substituído” (Mairan Gonçalves Maia Junior, p.22).

Há três espécies de representação: legal, geralmente para suprir uma inca-pacidade; judicial, determinada em juízo; e voluntária. É desta que se apro-xima o mandato.

No direito romano não se encontrava a fi gura do contrato de mandato tal qual a conhecemos. O direito estrito, face ao seu exacerbado rigorismo quan-to à forma, era incompatível com a realização e celebração de atos jurídicos por outrem (tanto que se dizia ‘alteri stipulare non potest’; os contratos eram sempre ‘res inter alios acta’).

Mesmo com a amenização do rigor formal, patrocinado pelo desenvol-vimento comercial, tal negócio não se autonomizou. Em algumas hipóteses passou a ser admitida a atuação de um intermediário. É claro que havia o chamado mandato, um ‘pacta’, mas, como informa a doutrina, não havia nele a idéia de atuação em nome alheio (Mairan Gonçalves Maia Junior, p.24; Silvio Rodrigues, p.274).

A doutrina nacional, com algumas exceções, tem considerado que no con-trato de mandato está ínsita a idéia de representação, não havendo mandato sem ela:

“O que caracteriza, portanto, o mandato, é a idéia de representação, suprema, básica, fundamental, não fi gura em outros contratos” (Washington de Barros Monteiro, p.254)

Nesse sentido, considera também que o mandato encerra a única forma de representação voluntária (talvez segundo a orientação do legislador pátrio que não diferencia os dois institutos). É o mesmo posicionamento adotado pelo sistema francês: “représentation volontaire ou conventionalle: le mandat est le contrat par lequel le représenté (mandant) donne a une personne (mandataire) pouvoir de la représenter” (Mazeaud, p.__). O já citado Washington de Barros o confi rma: “convencionais são os representantes com mandato, expresso ou táci-to, para a prática de certo ato; são os representantes por vontade do representado” (op.cit.p.284).

Mas essa equiparação recebe críticas nos demais sistemas estrangeiros (como o italiano, o alemão e o português), já que, de um lado, o mandato não é necessariamente vinculado a uma representação (podendo haver man-

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FGV DIREITO RIO 197

7 “se il mandato è senza rappresentanza

si stabiliscono rapporti diretti tra il man-

datario e il terzo, e non tra il mandante

e il terzo. Il mandante è in rapporto

com il mandatario; il mandatario, nel

confronti del terzo contraenti, assume in

próprio gli obblighi e acquista in próprio

i diritti Che derivano dall´aff are trattato

per conto del mandante” (Trabbuchi, p.

774). Seria o caso, reportado por Carva-

lho Santos, em que uma pessoa, noto-

riamente de posses, resolve pedir que

um amigo negocie o bem que pretende

adquirir para que o preço não seja fi xa-

do em função de suas possibilidades.

8 ‘Mandato’ (poder dado) vem do latim

‘mandatum’, infl exão de ‘manum da-

tum’ que signifi caria dar poder (literal-

mente, dar a mão), sendo curioso notar

que o efeito deu nome ao ato-causa,

ensejando a equiparação.

9 Não tendo o Código Civil brasileiro

dedicado uma seção especial à repre-

sentação sistematicamente ordenada

em outros códigos, leve ao equívoco de

aliar sempre aquela idéia à de manda-

to, o que não é exato de vez que este é

apenas uma das formas daquela (Caio

Mario, v.3, p.275). Ver também Mairan

Gonçalves Maia Junior, A Representa-

ção no Negócio Jurídico, São Paulo: RT,

2001.

dato sem ela, em que o mandatário não está apto a realizar negócio em nome do mandante)7; e, de outro, não é a única forma de estabelecer uma repre-sentação convencional — os sistemas estrangeiros diferenciam a procuração (para os italianos, “procura”, negócio jurídico unilateral em que se outorga o poder de representação), esta, sim, base da representação voluntária, que vin-cula o representado e o terceiro; do mandato, negócio bilateral, que vincula o mandante (quando representante) e o mandatário (quando representado).

A confusão entre os institutos tem origem histórica. Talvez se deva à evo-lução paralela8 e aos fatos de que (i) ambos se referem (ou podem referir) à prática de atos jurídicos e (ii) na maior parte das vezes o mandatário é tam-bém representante. Embora já tenha sido identifi cada entre nós9 ainda não foi corrigida pelo legislador. O Novo Código Civil, embora trate generica-mente da representação, como pretendia Caio Mario, reporta ao mandato o caso de representação voluntária (artigo 120).

Essa confusão acaba provocando distorções: quando a nossa lei erige a procuração como o “instrumento do mandato” (artigos 1.288, Código Civil e 653, Novo Código Civil), gera perplexidade àqueles que estão afetos à con-fi guração tradicional desse documento. É que a fórmula usual não comporta a aceitação, necessária para a formação do contrato de mandato, negócio jurídico bilateral que é. Ao contrário, adequa-se mais a um instrumento da proposta, a um ato/negócio unilateral (isso se encaixaria na concepção que a coloca como o instrumento da representação voluntária).

Os partidários da concepção de mandato como expressão necessária da representação voluntária (posição adotada pelo legislador pátrio), amparam-se na existência dessa representação para distingui-lo de outros contratos, em es-pecial da prestação de serviços, onde não haveria atuação em lugar de outrem.

Não podendo, por óbvio, valer-se disso para essa diferenciação, aqueles que diferenciam o mandato e a representação voluntária dizem que a verda-deira característica do mandato é o objeto, que envolve atos jurídicos (isso não impede, porém, a existência de prestação de serviço em que esteja embu-tida a realização de atos jurídicos, com é o caso do contrato com advogado (ver Alberto Trabbuchi, p.774)).

Causa

Através da redação do texto do artigo 1.288, é possível vislumbrar a causa do contrato, que é exatamente a prática de atos jurídicos e a administração de interesses em nome de outrem ou a critério de outrem.

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Caracteres

Dessa causa, por sua vez, extrai-se que o contrato de mandato é, em sua essência, celebrado no interesse exclusivo do mandante (foi assim que foi concebido historicamente), sendo originalmente gratuito e bastando para sua confi guração a criação de obrigações para apenas uma das partes (o mandatá-rio), o que lhe confere, em regra, a qualidade de contrato unilateral.

Hoje em dia essa confi guração vem sendo desvirtuada com a grande inci-dência de mandatos remunerados que, por conta do dever de remunerar se tornam ao mesmo tempo onerosos e bilaterais.

Quanto à bilateralidade, mesmo em se tratando de mandato não remu-nerado, alguns autores entendem que o mandato é um contrato bilateral imperfeito, por estabelecer, nas condições dos artigos 1.309 e 1.312.

Destaca-se o elemento confi ança, sendo um dos contratos fi duciários e, por isso, diz a doutrina ser essencialmente ‘intuitu personae’ (o curioso é que, em regra, sempre se admite o substabelecimento no silêncio do contrato quanto à proibição).

Diferencia-se da representação (mesmo voluntária); é um negócio jurí-dico bilateral que depende do acordo de vontades de parte a parte. E basta tal acordo para que o contrato se aperfeiçoe: é consensual, independendo de qualquer entrega ou ritualismo.

Pode-se dizer que seja um negócio causal, já que sempre está vinculado a uma causa específi ca, um negócio específi co. Em verdade, é sempre prepara-tório; não é um fi m em si mesmo; ninguém contrata um mandato por con-tratar. Há sempre um outro contrato ou negócio em vista, daí a vinculação a alguns requisitos desse negócio (legitimidade e forma, por exemplo).

Elementos

Capacidade das Partes:Só podem ser mandantes as pessoas maiores ou emancipadas:Art. 1.289: Todas as pessoas maiores ou emancipadas, no gozo dos direi-

tos civis, são aptas para dar procuração mediante instrumento particular, que valerá desde que tenha a assinatura do outorgante.

Excepcionalmente a lei autoriza que menores entre 16 e 21 anos sejam mandatários:

Art. 1.298: O maior de 16 (dezesseis) e menor de 21 (vinte e um) anos não emancipado (art. 9º, I), pode ser mandatário, mas o mandante não tem ação contra ele senão de conformidade com as regras gerais, aplicáveis às obrigações contraídas por menores.

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A explicação é que o menor não está agindo em seu nome e, sim, em nome do mandante, como se ele fosse. E, como a lei, que institui a menoridade exatamente em proteção ao próprio incapaz, afasta a possibilidade de sua responsabilização, protegendo-o, não há prejuízo.

Art. 1.299: Mulher casada — revogado.Legitimidade: não há regra especialObjeto:Nosso Código se fi liou a uma corrente que entendia que todos os atos que

o mandante pode praticar por si podem ser objeto de mandato e não só os de natureza patrimonial, como entendia a outra corrente. Isso se vê do art. 1.288.

Em regra, então, todo ato pode ser objeto do mandato, exceto alguns que, em razão de sua natureza devam ser personalizados.

O casamento pode ser realizado por representante.Já o testamento não pode ser realizado por representante.Nem uma prova de concurso, por exemplo, nem as funções públicas.O mandato pode ser Geral ou Especial:É Geral quando o mandante confere poderes para que o mandatário pra-

tique todos os seus atos (e aí se incluiria o casamento).Mas o próprio legislador restringe a interpretação de uma tal clásula, para

que seja entendida como concedendo poderes gerais apenas de administra-ção. Não de alienação, por exemplo.

Art. 1.295: O mandato em termos gerais só confere poderes de adminis-tração.

§ 1º: Para alienar, hipotecar, transigir ou praticar outros quaisquer atos que exorbitem da administração ordinária, depende a procuração de poderes especiais e expressos.

= Mesmo assim pode haver dúvida pois alguns poderes pressupõem natu-ralmente outros, como o de receber presume o de dar quitação.

= Mas o poder de vender, por exemplo, não signifi ca que tenha sido dado o poder de hipotecar.

§ 2º: O poder de transigir (arts. 1.025 a 1.036) não importa o de fi rmar compromisso.

É Especial, quando relativo a atos específi cos.Forma:O mandato não pede forma especial:Art. 1.290: O mandato pode ser expresso ou tácito, verbal ou escrito.Embora o mandato possa ser verbal, geralmente é escrito e, por isso a lei

erige a procuração no instrumento do mandato.Art. 1.288: Opera-se o mandato, quando alguém recebe de outrem pode-

res, para, em seu nome, praticar atos, ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do mandato.

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Como destacado, essa posição é curiosa e decorre da confusão entre man-dato e representação voluntária por nosso legislador. A procuração se adequa-ria mais ao instrumento da proposta do mandato já que, em geral, não traz a aceitação, necessária para a formação do contrato.

De qualquer forma, é ela que prova o mandato escrito.Até mesmo porque, se alguém apresenta uma procuração, para realizar

determinado ato, é porque aceitou os poderes ali conferidos.

Forma da Procuração

E em alguns casos o legislador acaba exigindo a procuração ao proibir o mandato verbal:

Art. 1.291: Para os atos que exigem instrumento público ou particular, não se admite mandato verbal.

Alguns mandatos exigem procuração pública, como noticia Caio Mario, como aqueles em que são mandantes os cegos, ou aqueles conferidos pelos incapazes através de seus representantes legais.

Art. 1.289: Todas as pessoas maiores ou emancipadas, no gozo dos direi-tos civis, são aptas para dar procuração mediante instrumento particular, que valerá desde que tenha a assinatura do outorgante.

A “contrario sensu”, a procuração conferida por menores ou incapazes, deve ser por instrumento público.

= Arnaldo Rizzardo anota que no caso dos mandatos judiciais, porém, a jurisprudência vem dispensando o rigor, servindo o instrumento particular. Essa amenização vale tanto para o menor relativamente incapaz quanto para o menor absolutamente incapaz. A conclusão é a de que a restrição do dispo-sitivo estaria limitada à procuração “ad negotia”.

Por conta da redação do parágrafo segundo do art. 1.289 do Código Civil de 1916, alguns entenderam que a procuração deveria seguir a forma do ato para o qual conferida. Assim, se o ato em que interviria o mandatário tivesse que ser celebrado sob a forma de escritura pública, a procuração que para isso lhe conferisse poderes também deveria observar essa forma:

Art. 1.289, parágrafo segundo: Para o ato que não exigir instrumento público, o mandato, ainda quando por instrumento público seja outorgado, pode substabelecer-se por instrumento particular.

A maior parte da doutrina, contudo, criticava essa posição.Como diz Silvio Rodrigues, a redação foi defeituosa pois, se quisesse so-

mente dizer que a procuração por instrumento público poderia ser substa-belecida por instrumento particular (interpretação que esse autor defende), poderia ter usado só a última parte: ainda quando o mandato for outorgado por instrumento público...

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Mas o que o legislador quis foi enfatizar a regra do art. 1.291 que estabe-lece que os atos que exigem forma especial devem ser praticados por manda-tário munido de procuração escrita, pública ou particular.

E isso fi ca claro se considerarmos que o ato a ser realizado e o mandato não se confundem. Se a lei exige forma especial para um, não quer dizer que exija para o outro. O mandato é contrato preparatório apenas. Esse é o entendi-mento de Caio Mario: “são dois contratos diversos: um meramente preparatório, que não tem efeito translatício da propriedade, nem constitutivo de direito real; habilita somente o representante para o ato defi nitivo, e para ele a lei não exige o requisito formal. O outro deve revestir a forma pública, porque tem por objeto transferir o domínio” (vol.III, p.279).

Essa posição era aquela de João Luis Alves e Clóvis Bevilaqua.Com o novo Código Civil, todavia, a polêmica ameaça recrudescer. O

artigo 657 estabelece: “a outorga do mandato está sujeita à forma exigida por lei para o ato a ser praticado. Não se admite mandato verbal quando o ato deva ser celebrado por escrito”.

O mandato judicial é, em regra, escrito, podendo ser verbal no caso do art. 9º, §3º da Lei 9.099/95, caso em que, contudo, limitar-se-á aos poderes regulares para atuação em juízo.

Aceitação:

Sendo o mandato um contrato, depende do consenso.Este se dá com a aceitação dos poderes conferidos, seja verbalmente, seja

através da procuração.A aceitação pode ser expressa, tácita ou ainda presumida:Art. 1.292: A aceitação do mandato pode ser tácita e resulta do começo

da execução.Art. 1.293: O mandato presume-se aceito entre ausentes, quando o negó-

cio para que foi dado é da profi ssão do mandatário, diz respeito à sua quali-dade ofi cial, ou foi oferecido mediante publicidade, e o mandatário não fez constar imediatamente a sua recusa.

Mandato Tácito

Ao contrário de outras espécies contratuais, a confi guração tácita do man-dato não diz respeito apenas à aceitação. Já se viu que esta é, geralmente, táci-ta, dado o caráter essencialmente unilateral da procuração.Quando se diz que um determinado mandato é tácito, refere-se, em regra, à outorga dos poderes ou, poder-se-ia dizer, à oferta/policitação.

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10 Artigos 247, II e III; 260, II; 240; e 792,

III, do Código Civil.

A manifestação de vontade tácita é aquela que, segundo Vicente Ráo, re-sulta “de certos atos, atitudes ou comportamentos incompatíveis (ou compatíveis), segundo os casos, com certa concordância ou discordância” (Ato Jurídico, p.121, inseriu-se). É um comportamento, um atuar que se traduz como a exteriori-zação de uma vontade.

No caso do mandato, diz-se que é tácito quando o mandante não tornou expressa a cessão dos poderes ao mandatário, seja oralmente, seja por escrito. Este, ao agir por conta do mandante sem que aquele lhe tenha expressamente conferido poderes, denota e faz supor que tal conferência existiu. Sua atuação se enquadra em situações socialmente vistas como encerradoras de um man-dato. Tais situações socialmente vistas como encerradoras de um mandato são previstas em lei10 (o que as aproxima das presunções) ou decorrem de uma prática habitual que, em sua origem, era acompanhada de uma ratifi cação.

Carvalho Santos, preocupado em distinguir o mandato tácito da gestão de negócios, diz que a questão “assim pode ser resolvida: verifi ca-se o mandato tá-cito sempre que uma pessoa por determinação de outra, ou da lei tem atribuições defi nidas para cujo desempenho necessita praticar atos, que, por isso mesmo, são havidos como tacitamente autorizados” (vol.XVIII, p.132).

Obrigações do Mandatário:

(i) Agir com Diligência na realização dos Negócios do Mandante:É um dever normal, dentro dos padrões do homem médio, de diligência.Vê-se logo que o dever do mandatário quanto ao objeto do negócio é rela-

tivo a uma obrigação de meio, não de resultado.E se verifi ca com mais intensidade no mandato remunerado.Se agir com negligência, o que caracteriza a culpa, responde por perdas e

danos:Art. 1.300: O mandatário é obrigado a aplicar toda a sua diligência ha-

bitual na execução do mandato, e a indenizar qualquer prejuízo causado por culpa sua ou daquele a quem substabelecer, sem autorização, poderes que devia exercer pessoalmente.

(ii) Deve Agir dentro dos Limites do Mandato:Se age fora dos poderes conferidos, não está, em princípio, agindo em

nome do mandante, mas dele próprio, equiparando-se a um gestor de negó-cios:

Art. 1.297: O mandatário que exceder os poderes do mandato, ou proce-der contra eles, reputar-se-á mero gestor de negócios, enquanto o mandante não lhe ratifi car os atos.

Por isso, quando negocia com terceiros, deve apresentar o instrumento do mandato.

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É direito das pessoas com quem negocia, exigir a apresentação.Se não o fi zer, pode vir a responder perante elas pelos atos em excesso:Art. 1.305: O mandatário é obrigado a apresentar o instrumento do man-

dato às pessoas, com quem tratar em nome do mandante, sob pena de res-ponder a elas por qualquer ato, que lhe exceda os poderes.

Nesse caso, o mandante não responde. Afi nal, os terceiros tinham a opor-tunidade de exigir a apresentação do instrumento de outorga dos poderes. Se não o exigiram, negligenciando em sua diligência, nada poderão reclamar em face do mandante.

Se o terceiro, mesmo confrontado com os poderes do mandatário, resol-ve celebrar negócio que ultrapasse tais poderes nem em face do mandatário poderá reclamar. Nesse caso, assume claramente o risco de não ver o negócio ratifi cado pelo mandante.

Em seus comentários, Carvalho Santos transcreve exemplo formulado por Mourlon: “Eu compro para Paulo um determinado objeto pelo preço, suponhamos, de Cr$5.000,00, porém aviso desde logo ao vendedor que só tenho mandato para realizar a compra até a quantia de R$4.000,00, esperando, entretanto, que a com-pra possa ser facilitada à vista do justo e real valor do objeto. Se o vendedor aceitar a referida condição suspensiva da ratifi cação, é claro que tacitamente aquiesce nos riscos resultantes da operação assim efetuada, e nada pode reclamar, nem do man-dante e nem do mandatário, em caso de recusa por parte daquele. Ao contrário, o mandatário não se poderá furtar à responsabilidade quando, porventura, tivesse garantido que a venda seria ratifi cada pelo mandante, e o inverso sucedesse” (Répé-titions écrites sur le Code Civil, volume 3, n.1.001, bis) (vol. XVIII, p.268).

É esse o espírito do artigo 1.306:Art. 1.306: Se o terceiro que, depois de conhecer os pdoeres do mandatá-

rio, fi zer com ele contrato exorbitante do mandato, não tem ação nem con-tra o mandatário, salvo se este lhe prometeu ratifi cação do mandante, ou se responsabilizou pessoalmente pelo contrato, nem contra o mandante, senão quando este houver ratifi cado o excesso do procurador.

Não se pode confundir o excesso do procurador com a atuação contra as instruções do mandante. Esta não confi gura excesso de poderes apenas desobediência aos comandos e recomendações do mandante, reservadas e especiais. Por isso mesmo, não o desvincula:

Art. 1.313: Ainda que o mandatário contrarie as instruções do mandante, se não excedeu os limites do mandato, fi cará o mandante obrigado para com aqueles, com quem seu procurador contratou; mas terá contra este ação pelas perdas e danos resultantes da inobservância das instruções.

Vale dizer que, além disso, o mandatário pode agir mesmo em seu próprio nome, intencionalmente. Nesse caso, não pode o mandante acionar os ter-ceiros que com o mandatário contrataram, mas, também, estes não poderão acionar o mandante:

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Art. 1.307: Se o mandatário obrar em seu próprio nome, não terá o man-dante ação contra os que com ele contrataram, nem estes contra o mandante.

Em tal caso, o mandatário fi cará diretamente obrigado, como se seu fora o negócio, para com a pessoa, com quem contratou.

Este é o caso indicado pela doutrina de mandato sem representação.Por fi m, vale dizer que o mandante pode ratifi car os atos praticados pelo

mandatário, fora dos poderes.Art. 1.296: Pode o mandante ratifi car ou impugnar os atos praticados em

seu nome sem poderes sufi cientes.(iii) Deve Prestar Contas(iv) Deve Transferir as Vantagens que Recebeu em Nome do Mandante.Art. 1.301: O mandatário é obrigado a dar contas de sua gerência ao man-

dante, transferindo-lhe as vantagens provenientes do mandato, por qualquer título que seja.

Art. 1.303: Pelas somas que devia entregar ao mandante, ou recebeu para despesas, mas empregou em proveito seu, pagará o mandatário, juros, desde o momento em que abusou.

E na hora de entregar ao mandante aquilo que lhe era de direito, não pode o mandatário querer compensar os prejuízos que causou com as vantagens que obteve para o mandante.

É que estas últimas eram normais, esperadas, naturalmente decorrentes do contrato.

Art. 1.302: O mandatário não pode compensar os prejuízos a que deu causa com os proveitos que, por outro lado, tenha granjeado ao seu consti-tuinte.

Além destas há outras obrigações menores, mas não menos importantes:Art. 1.308: Embora ciente da morte, interdição ou mudança do estado do

mandante, deveo o mandatário concluir o negócio já começado, se houver perigo na demora.

Essas hipóteses mencionadas no artigo são hipóteses de extinção do mandato.A lei, então, impõe ao mandatário que ultime o negócio se a demora até a

regularização da situação do mandante puder trazer prejuízos a ele ou a seus herdeiros.

Obrigações do Mandante:

(i) Satisfazer as Obrigações Assumidas pelo Mandatário:Ainda que o mandante não se obrigue por atos ultra-mandato, como vi-

mos, os atos que forem praticados pelo mandatário dentro de seus pode-res vinculam e obrigam plenamente o mandante que não pode se recusar a cumpri-los.

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Art. 1.309: O mandante é obrigado a satisfazer todas as obrigações con-traídas pelo mandatário, na conformidade do mandato conferido, e adiantar a importância das despesas necessárias à execução dele, quando o mandatário lho pedir.

A princípio poder-se-ia pensar que esta não é uma obrigação do mandante face ao mandatário, mas face a terceiros.

E de fato é, Mas o bom nome do mandatário também encontra-se em jogo, sendo do seu interesse que seu representado honre sua representação.

Essa responsabilidade do mandante se faz presente mesmo quando o man-datário cumpra instruções suas reservadas ou especiais mas, com esse des-cumprimento não tenha escapado dos limites do mandato. É a isso que se refere o art. 1.313 do Código.

(ii) Tem que Adiantar as Despesas Para a Execução do Mandato:Art. 1.309: O mandante é obrigado a satisfazer todas as obrigações con-

traídas pelo mandatário, na conformidade do mandato conferido, e adiantar a importância das despesas necessárias à execução dele, quando o mandatário lho pedir.

Correspectivamente à sanção do mandatário que atrasa a entrega do que é de direito do mandante, este também paga juros pelo adiantamento feito pelo mandatário:

Art. 1.311: As somas adiantadas pelo mandatário, para a execução do mandato, vencem juros, desde a data do desembolso.

(iii) Tem que Ressarcir o Mandatário por Aquilo que Perdeu no Exercício:Art. 1.312: É igualmente obrigado o mandante a ressarcir o mandatário

as perdas que sofrer com a execução do mandato, sempre que não resultem de culpa sua, ou excesso de poderes.

Quanto a essas duas últimas obrigações, há importante regra no Código. O mandatário pode exercer direito de retenção até ser reembolsado do que despendeu no exercício do mandato:

Art. 1.315: O mandatário tem sobre o objeto do mandato direito de re-tenção, até se reembolsar do que no desempenho do mandato despendeu.

Esse direito não se estende à remuneração.(iv) Pagar a Remuneração no Mandato Oneroso:Art. 1.310: É obrigado o mandante a pagar ao mandatário a remuneração

ajustada e as despesas de execução do mandato, ainda que o negócio não surta o esperado efeito, salvo tendo o mandatário culpa.

Substabelecimento:

O mandato é um negócio intuitu personae.É baseado na confi ança que o mandante deposita no mandatário.

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Assim, nada mais lógico do que obrigar pessoalmente o mandatário a de-sincumbir-se de suas obrigações.

Mas a lei permite que o mandatário transfi ra os poderes recebidos do mandante para uma outra pessoa, se autorizado a tanto pelo mandante.

Seria uma exceção ao caráter personalíssimo do mandato.O modo de fazê-lo é através do substabelecimento.O substabelecimento pode ser com ou sem reservas:Com reservas: o mandatário retém os poderes também.Sem reservas: o mandatário não conserva poderes.Como o substabelecimento deve ser feito com autorização do mandante,

a lei se preocupa com os casos em que tal autorização não tenha sido dada ou tenha sido proibida:

(i) Se a autorização não foi dada (ainda que não proibido expressamente o substabelecimento) e, mesmo assim, substabelece o mandatário o poder re-cebido, age contrariamente à natureza do contrato e, por isso responde pelos prejuízos causados pelo sub-procurador:

Art. 1.300: O mandatário é obrigado a aplicar toda a sua diligência ha-bitual na execução do mandato, e a indenizar qualquer prejuízo causado por culpa sua ou daquele a quem substabelecer, sem autorização, poderes que devia exercer pessoalmente.

(ii) Se o substabelecimento foi proibido, a responsabilidade é logicamente maior: o mandatário responde inclusive pelos fortuitos:

Art. 1.300, §1º: Se, não obstante proibição do mandante, o mandatário se fi zer substituir na execução do mandato, responderá a seu constituinte pelos prejuízos ocorridos sob a gerência do substituto, embora provenientes de caso fortuito, salvo provando que o caso teria sobrevindo, ainda que não tivesse havido substabelecimento.

Já se houve autorização, o mandatário só pode ser responsabilizado se o substabelecido for notoriamente incapaz ou insolvente:

Art. 1.300, §2º: Havendo poderes de substabelecer, só serão imputáveis ao mandatário os danos causados pelo substabelecido, se for notoriamente incapaz, ou insolvente.

Classificação:

(i) Unilateral, tanto quanto o depósitoAlguns também chamam de bilateral imperfeito.Mas pode ser bilateral, quando remunerado.(ii) Consensual(iii) Gratuito, em regra, podendo ser oneroso:

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Art. 1.290, Parágrafo Único: Presume-se gratuito, quando não se estipu-lou retribuição, exceto se o objeto do mandato for daqueles que o mandatário trata por ofício ou profi ssão lucrativa.

(iv) Comutativo, quando oneroso(v) Não-Solene, como vimos (art. 1.290)

Mandato e Contrato Consigo Mesmo

O estudo do contrato de mandato (até o advento do Novo Código Civil a maior expressão positiva da representação) sempre se prestou ao exame do ‘auto-contrato’ ou, mais comumente, ‘contrato consigo mesmo’ posto que está, como se verá, intimamente relacionado com a representação (embo-ra, como ressaltado, não possa com ela ser confundido). Pode-se dizer que a grande parte das perplexidades despertadas por conta desse instituto tem origem no caso do mandato.

As denominações ‘auto-contrato’ e ‘contrato consigo mesmo’ podem es-conder sua verdadeira natureza e desviar a atenção do operador da verdadeira problemática que nele se insere. Afi nal, não se cuida, nessa espécie, de uma contratação ou acordo celebrado na mesma pessoa.

Cabe distinguir, a exemplo de José de Oliveira Ascensão, ‘parte’ e ‘agente’. Por ‘parte’ se denotaria o pólo de interesse no negócio. Em se tratando de negócio bilateral, duas ‘partes’ estariam obrigatoriamente presentes; as duas fontes de vontade exigidas para a composição do negócio.

Considerando que o contrato é sempre um negócio jurídico bilateral, não há que se falar em contrato no qual esteja atuando apenas uma ‘parte’.

Já por ‘agente’, se denotaria aquele que efetivamente conduz o negócio, que o celebra, seja por si, seja em lugar e em nome de outrem. Geralmente, o negócio bilateral é celebrado por dois agentes, cada um a serviço de uma parte. Mas pode acontecer que seja realizado e formalizado por um só agente, desde que as duas partes o tenham elegido para atuar em seu nome ou, ainda, que apenas uma delas o tenha feito e seja o próprio agente a outra parte. Esta é a hipótese em que se verifi ca a fi gura.

O fato de assim suceder a celebração de um contrato não é visto, por si só, como qualquer irregularidade. É, muitas vezes, fator de celeridade e eco-nomia na prática do comércio jurídico. Tanto que a doutrina e as legislações nunca o vedaram por completo.

Originou-se, conforme a lição de Mairan Gonçalves Maia Junior (p.174), nas cidades medievais da Itália e Alemanha, da prática de banqueiros e co-missionistas que adquiriam produtos com preço fi xado em bolsa em nome de seus clientes.

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A aceitação da fi gura em nosso direito (não há disposição expressa do Código Civil de 1916 que o regulasse) refl ete-se nos textos de Pontes de Mi-randa, que não enxergava contra-indicações à sua existência, bem como no acórdão relatado pelo eminente Ministro Otavio Gallotti no RE 104.307/RS, que exigia a demonstração de um prejuízo do representado para a anula-ção de tal negócio.

Esse entendimento não prevaleceu diante da regra moral que hoje tende a promover o exame da verdadeira comutatividade nos contratos. Em verdade, o contrato consigo mesmo ensejava o abuso por parte do agente único. Este, conhecendo das instruções do mandante quanto ao objeto do negócio e até mesmo suas expectativas quanto à acomodação das pretensões (v.g. margem de preço, condições de pagamento, prazos de cumprimento), poderia delas se valer para efetuar um negócio extremamente vantajoso para si.

A descoberta de tal perspectiva gerou tamanha desconfi ança em relação ao instituto que acabou impondo limites à sua aceitação. Nesse sentido, os códigos alemão, italiano e português, por exemplo, que o tomam por anulá-vel, a não ser que o representado tenha especifi cado o conteúdo do contrato, autorizando sua celebração, ou que esteja excluída qualquer possibilidade de haver confl ito de interesses entre representante e representado (§181, Códi-go Civil alemão; artigo 1.395, Código Civil italiano; e 261 do Código Civil português).

Esse confl ito de interesses é a chave para a disciplina desse tipo de negócio e outros assemelhados. Afi nal, nunca se admitiu que o representante possa usar de sua qualidade para trair o interesse e as expectativas do representado quanto ao negócio.

O Novo Código Civil, no âmbito das regras acerca da representação, tra-tou da fi gura e estabeleceu disposição semelhante àquelas dos estatutos es-trangeiros:

Art. 117: Salvo se o permitir a lei ou o representado, é anulável o negócio jurídico que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem, cele-brar consigo mesmo.

Como se vê, nosso legislador foi mais rigoroso: somente admite tal contra-to se autorizado pela lei ou pelo representado. A redação não ressalva o caso em que seja impossível o confl ito de interesses.

Procuração em Causa Própria

Relacionada ao tema do contrato consigo mesmo, está a fi gura da procu-ração em causa própria (in rem suam), essa, sim, já prevista no Código Civil de 1916 embora, como realça Arnaldo Rizzardo, de forma bastante avara.

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Tem sido aceita em nossas doutrina e jurisprudência, que se preocupam em distingui-la do repudiado negócio consigo mesmo, não se vendo, na con-fi guração dela exigida, a possibilidade do confl ito de interesses. É possível di-zer que recairia em uma das hipóteses autorizadoras do negócio consigo mes-mo, pois ali estariam previstos todos os elementos do negócio a ser celebrado em nome do representante, bem como sua autorização para a celebração. A rigor, não haveria operação de interesse exclusivo do representante, posto que algum interesse do representado subjaz ao ato.

É utilizada, geralmente, para os casos de ultimação do negócio, em que o representado não querendo ou não podendo participar dos compromissos formais e registrais, deixa-os a cargo da outra parte, elegendo-a como sua representante. Contém, em regra, os poderes para a formalização do contrato (notadamente para a solenidade da escrituração pública e para o registro) e para a transferência da coisa. Não se deixa espaço para o abuso ou para o con-fl ito de interesses, já que não envolve o conteúdo obrigacional do ato (este já foi esgotado e determinado pelas partes autonomamente).

Por conta dos efeitos práticos dessa procuração, a doutrina tem admitido que opere como verdadeiro negócio translatício, já atribuindo ao represen-tante-procurador a qualidade de dono da coisa.

E por conta de sua função auxiliar na conclusão de um negócio específi co (já objeto da manifestação volitiva livre e autônoma do representado-outor-gante), é que não admite a revogação. Esta atingiria o princípio da obrigato-riedade dos contratos e autorizaria um verdadeiro desfazimento unilateral do negócio subjacente (artigo 1.317, Código Civil).

Negócio Celebrado pelo Representante em Conflito de Interesse com o Representado

Figura próxima à do contrato consigo mesmo é a do negócio celebrado pelo representante em confl ito de interesse com o representado. Neste caso, não há participação do representante como parte, o que o diferencia do con-trato consigo mesmo. De todo modo, nele também se faz presente o perigo do confl ito de interesses causado pela atuação do representante. E a mera existência desse perigo basta para viciar o negócio e a representação, não sen-do necessária para tanto a efetiva confi guração do confl ito.

Tem sido observado esse tipo de representação nas locações, promessas de compra e venda e nos contratos bancários, principalmente aqueles de em-préstimo e fi nanciamento, quando se faz inserir cláusula permitindo que o credor, em nome do devedor, renegocie a dívida segundo seu interesse e en-tendimento; fi xe o valor a ser cobrado; ou, mas comumente, que emita título cambial consolidando o débito segundo seus exclusivos critérios.

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Já há algum tempo, tem sido alvo da jurisprudência mais sensibilizada com os abusos que por seu meio são perpetrados. E mais de um argumento é utilizado para atacá-la.

Em primeiro lugar, exatamente porque desvirtua a fi gura do mandato (ou representação) que não pode, salvo as exceções já analisadas, ser operado no interesse único do representante, através da confi ança: “a utilização normal do mandato concedido eventualmente ao credor deveria se dirigir unicamente à celebração do ato, ao estabelecimento do vínculo ou à execução das prestações acertadas, não á execução extrajudicial (que seria o que os alemães denominam sekundäranspuch, pretensão a perdas e danos, ao substitutivo de prestação volun-tária), muito menos à determinação do conteúdo obrigacional (seja do valor da dívida, seja uma eventual mudança, re-ratifi cação, ou como queiram chamar as modifi cações do conteúdo contratual, sem o verdadeiro consenso)” (Claudia Lima Marques, Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 4ª Ed., pág. 895).

Em segundo lugar, porque a comutatividade e o equilíbrio do negócio são postas em risco, haja vista que, ao encerrar permissão para que sejam estabe-lecidos o montante da dívida ou os juros aplicados de forma unilateral, sem a participação do devedor, tal fi gura deixa os efeitos do negócio ao exclusivo ar-bítrio de uma das partes. Trata-se de uma contradição em si, verdadeira con-dição potestativa pura, já vedada pelo artigo 115 do Código Civil de 1916.

Em terceiro lugar, a autorização dada por uma das partes para a emissão de um título de crédito seria, nas palavras do Ministro Eduardo Ribeiro, do STJ, no REsp nº13996/RS, um “artifício para possibilitar a constituição de título executivo” cujo elenco é estabelecido taxativamente pelo legislador.

Por fi m, ensejaria verdadeiro abuso do poder de fato de uma das partes (na hipótese dos autos, do banco) existente em algumas relações jurídicas, o que também tem sido reconhecido pela jurisprudência. Por todas essas razões, o STJ consolidou o seu repúdio a tais cláusulas através da Súmula 60: “É nula a obri-gação cambial assumida por procurador do mandatário no exclusivo interesse deste”.

Embora a súmula se aplique especifi camente ao caso de emissão de título cambial, todo o entendimento que a fundamenta serve para afastar a prática da representação no exclusivo interesse do representante, o que é o caso dos autos.

Foi por isso também que o legislador da Lei 8078/90, atentando à vulne-rabilidade do consumidor, estabeleceu especifi camente a abusividade de uma tal cláusula, encerrando-a no rol das cláusulas abusivas do artigo 51: inciso VIII: São nulas de pleno direito as cláusulas que “imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor”.

Note-se que a mera existência do risco de confl ito já enseja o ataque tanto num caso como no outro, não sendo necessária para a nulidade o efetivo prejuízo causado ao representado. Jurisprudência representativa do tema en-contra-se no Resp nº 1552/CE, relatado pelo Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira.

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FGV DIREITO RIO 211

É o que, de uma maneira ou de outra, ocorre no caso em que uma ad-ministradora de cartões de crédito fi ca autorizada a fazer debitar na conta corrente do consumidor, aberta em instituição do mesmo grupo econômico, a quantia relativa a uma fatura não paga.

Através da fi gura do contrato de adesão, que lhe permite estabelecer as cláusulas que bem entender, o fornecedor (no caso, a organização que con-tém o banco e a administradora do cartão de crédito) dá a si mesmo o poder de retirar da conta do consumidor a quantia que, segundo diz, seria devida a título de débito do cartão de crédito.

O procedimento ainda viola expressamente o disposto no §1º, II, do ar-tigo 51, ao restringir o direito fundamental inerente à natureza do contrato, qual seja, o direito ao representante isento de seus próprios interesses.

Ainda permite, mesmo que em tese, a variação unilateral do preço do serviço. Afi nal, indaga-se: quem pode garantir que o banco, pleno de poderes para retirar quantias da conta corrente do consumidor, restringe-se a dali ex-trair qualquer outro valor que não aquele efetivamente devido?

É por isso que viola o disposto no inciso X do artigo 51 do Código de De-fesa do Consumidor. Note-se que a nulidade decorre não da efetiva verifi ca-ção do prejuízo ao consumidor, mas da mera possibilidade de que tal ocorra.

Além disso, ressalte-se que o procedimento em análise é abusivo mesmo segundo as regras, muitas vezes vetustas, do Código Civil de 1916.

Em verdade, o procedimento permite que o banco haja unilateralmente para compensar o débito que, segundo diz, teria o usuário do cartão de cré-dito. Ora, a compensação depende, conforme disposto no artigo 1010 do Código Civil, que as dívidas a serem compensadas sejam líquidas, vencidas e de coisas fungíveis. A dívida que geralmente se imputa ao consumidor não é, ainda, líquida e, portanto, não pode ser compensada.

O novo Código Civil considera que um tal negócio não é nulo, mas ape-nas anulável, havendo um prazo de 180 dias da conclusão para que se pleiteie a anulação (artigo 119). Indaga-se se, por conta disso, fi cará prejudicado o entendimento da jurisprudência acerca do tema, que considera a nulidade. Deve se concluir pela negativa. O que estabeleceu o novo Código Civil foi a anulabilidade do negócio como um todo efetivamente concluído em confl ito de interesses. De outro lado, o entendimento do STJ, assim como o da Lei 8078/90, se dirige contra a cláusula, atacando-a quando de sua formação. Como se viu, não é necessário que tenha efetivamente ocorrido o confl ito. Basta a existência de perigo desse confl ito, segundo o STJ e o Código de Defesa do Consumidor, para que se justifi que o expurgo da cláusula. Nesse ponto, a jurisprudência está à frente de legislador.

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DIREITO DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 212

Extinção do Mandato:

(i) RevogaçãoSe o contrato tem intuitu personae, nada mais lógico que o mandante,

perdendo a confi ança no mandatário, revogue os poderes a ele conferidos.Pode ser a revogação expressa ou tácita (comportamento como assumir a

direção dos negócios por si).Tem que ser notifi cada, tanto ao mandatário quanto aos terceiros com

quem negociava através deste:Art. 1.318: A revogação do mandato, notifi cada somente ao mandatário,

não se pode opor aos terceiros, que, ignorando-a, de boa-fé com ele tratara; mas fi cam salvas ao constituinte as ações que, no caso lhe possam caber, con-tra o procurador.

Há casos em que, contudo, veda a lei a revogação:Art. 1.317: É irrevogável o mandato:I. — quando se tiver convencionado que o mandante não possa revogá-lo,

ou for em causa própria a procuração;II. — nos casos, em geral, em que for condição de um negócio bilateral,

ou meio de cumprir uma obrigação contratada, com é, nas letras e ordens, o mandato de pagá-las;

III. — quando conferir ao sócio, como administrador ou liquidante da sociedade, por disposição do contrato social, salvo se diversamente de dispu-ser nos estatutos, ou em texto especial de lei.

Segundo a lição de Silvio Rodrigues, apenas a primeira hipótese é relevan-te, porque “a última pertence antes à teoria da sociedade (cf. BEVILAQUA, Có-digo Civil, obs. 1 ao art. 1.317), e a segunda, no mais das vezes, fi ca abrangida pela constante do inciso inicial” (vol.3, p.286).

Os casos em que se convenciona que o mandante não pode revogar a procuração geralmente estão ligados aos casos em que o mandato é condição de um contrato bilateral. Neles, há, conforme a lição de Clóvis, um desvirtu-amento do mandato, que passa a ser celebrado no interesse do mandatário. Por isso, requerem um cuidado especial na interpretação, podendo recair nas fi guras do contrato consigo mesmo e do negócio realizado em confl ito de interesses com o representante.

O exemplo mais comum, como ensina Silvio Rodrigues, é o do mandato conferido pelo promitente vendedor, em compromisso quitado, a terceiro indicado pelo compromissário comprador, evitando-se que este fi que à mercê do primeiro na transferência do direito real de propriedade do imóvel.

(ii) Renúncia:Se de um lado o mandante pode revogar os poderes, nada mais justo que

dar faculdade equivalente ao mandatário, que pode desobrigar-se do mandato.A faculdade mostra-se mais justa no mandato gratuito; não tanto no oneroso.

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FGV DIREITO RIO 213

Mas, de qualquer forma, o mandatário responde pela inconveniência da renúncia (inoportunidade):

Art. 1.320: A renúncia do mandato será comunicada ao mandante, que, se for prejudicado pela sua inoportunidade, ou pela falta de tempo, a fi m de prover a substituição do procurador, será indenizado pelo mandatário, salvo se este provar que não podia continuar no mandato sem prejuízo considerá-vel.

Deve ser sempre expressa (Caio Mario, pág. 288).(iii) Morte:Tanto do Mandante quanto do Mandatário.Os atos praticados pelo mandatário antes de saber da morte são válidos

(art. 1.321).De outro lado, se o mandatário morrer, os herdeiros deste têm que co-

municar o mandante e ultimar as providências urgentes em nome deste (art. 1.322 e 1.323).

(iv) Mudança de Estado (não tem mais importância, pois era destinada especifi camente para a mulher que se casasse, já que a casada precisava de autorização do marido — acabou com o estatuto da mulher casada).

(v) Interdição — é uma mudança de estado.(vi) O término do prazo ou a conclusão do negócio.

FIANÇA

Conceito:

A Fiança é uma das espécies de caução, de garantia.“Caução” vem do latim ‘cautio’, que signifi cava cautela, precaução.Está a caução sempre relacionada ao cumprimento de uma prestação, de

modo a reforçar a expectativa de satisfação do crédito com: (i) a agregação de um patrimônio alheio àquele do devedor ou (ii) através a atribuição específi ca da responsabilidade a um elemento determinado do patrimônio do devedor.

Neste último caso inserem-se as cauções ou garantias reais: penhor, hi-poteca, anticrese e alienação fi duciária em garantia. No primeiro, a caução ou garantia pessoal/fi dejussória (‘fi des’ = confi ança), que se dá exatamente através da fi ança.

É através dela que o credor, que originalmente teria como garantia de satisfação de seu crédito o patrimônio do devedor, pode implementar essa garantia, agregando o patrimônio do fi ador à responsabilidade pelo cumpri-mento da obrigação.

É o contrato através do qual uma pessoa se compromete a cumprir uma obrigação caso o devedor não a cumpra.

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Daí se vê que o fi ador se vincula pessoalmente à satisfação do crédito, comprometendo-se, junto ao devedor, em face do credor. O fi ador chancela a boa solução da obrigação, mostrando ao credor que crê no pagamento pelo devedor, que nele se fi a.

Art. 1.481: Dá-se o contrato de fi ança, quando uma pessoa se obriga por outra, para com seu credor, a satisfazer a obrigação, caso o devedor não a cumpra.

E aí a origem do termo. Há um forte elemento de pessoalidade no contra-to. Por isso seu caráter ‘intuitu personae’.

Da redação do artigo 1.481 se extrai a causa do contrato: o reforço da garantia com a agragação do patrimônio do fi ador à responsabilidade. Causa esta que é sempre no interesse do credor (ainda que haja um interesse secun-dário do devedor para que possa obter o crédito) e nunca no interesse do fi ador, fazendo-o um contrato exclusivamente gratuito.

Mesmo envolvendo sempre três fi guras (credor, devedor e fi ador), é sem-pre um contrato entre duas partes (credor e fi ador). O devedor não intervem no contrato, podendo mesmo ser dispensada sua autorização:

Art. 1.484: Pode-se estipular a fi ança, ainda sem o consentimento do de-vedor.

Por isso, mesmo quando remunerado, não poderá tornar-se oneroso. Pelas mesmas razões será sempre unilateral, não havendo, em nenhuma hipótese, obrigações por parte do credor.

Alguns entendem que se incluiria na categoria dos contratos unilaterais imperfeitos em razão da sub-rogação nos direitos do credor, podendo o fi ador exigir do devedor-afi ançado o montante da dívida paga.

Nada mais absurdo, conforme Orlando Gomes: “essa opinião se assenta no falso pressuposto de que o contrato se realiza entre o fi ador e o devedor. Insusten-tável demais disso, porque, cumprida a obrigação do fi ador, se extingue o contrato de fi ança” (Obrigações, p.436).

Conteúdo da Obrigação do Fiador

Débito, não Responsabilidade

A redação ainda dá uma pista quanto ao conteúdo da obrigação do fi ador. Embora possa parecer que se estabelece automaticamente a responsabilidade do fi ador, não é bem assim. Em verdade, como o texto do dispositivo indica, nasce, para o fi ador, o dever de prestar em lugar do devedor. Não cumprido esse dever, aí, sim, surge a responsabilidade.

Essa garantia do fi ador nem mesmo fi ca afastada se o único bem de que dispõe é bem de impenhorável na forma da Lei 8.009/90 (art. 3º, VII).

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Subsidiariedade

Essa obrigação é, então, segundo a regra legal, subsidiária: somente se tor-na exigível se o devedor não cumprir.

E se o credor perseguir os bens do fi ador sem antes ter tentado a execução do devedor, o garantidor pode valer-se do benefício de ordem, que lhe asse-gura exatamente a prioridade da execução (apreensão e alienação judiciais) aos bens do devedor:

Art. 1.491: O fi ador, demandado pelo pagamento da dívida tem direito a exigir, até a contestação da lide, que sejam primeiro excutidos os bens do devedor.

Mas, para isso, deve atender a dois requisitos:(i) o temporal, devendo fazê-lo até a contestação ou defesa da lide, sob

pena de preclusão, a ser vista como renúncia tácita; e(ii) o material, devendo indicar os bens do devedor que, localizados no

mesmo município e livres e desembaraçados, possam bastar para solver o débito:

Art. 1.491, Parágrafo Único: O fi ador, que alegar o benefício de ordem a que se refere este artigo, deve nomear bens do devedor, sitos no mesmo município, livres e desembargados, quantos bastem para solver o débito (art. 1.504).

Afastamento da Subsidiariedade

Mas esse caráter subsidiário pode ser afastado:(a) por convenção das partes (se o fi ador renunciar a essa subsidiariedade

ou se obrigar como devedor principal ou solidário); e(b) pela lei (se o devedor for insolvente ou falido):Art. 1.492: Não aproveita este benefício ao fi ador:I. — se ele o renunciou expressamente;II. — se se obrigou como principal pagador, ou devedor solidário;III. — se o devedor for insolvente, ou falido.

Acessoriedade/Limitação

Mas seja ou não subsidiária, a obrigação será sempre acessória, por pressu-por sempre uma obrigação principal. Como tal obrigação é o cerne de todo o contrato, a fi ança é sempre um contrato acessório, dependente do principal que fez surgir a obrigação garantida.

Esse vínculo faz como que a obrigação do fi ador siga o destino da principal:

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Art. 1.488: As obrigações nulas não são suscetíveis de fi ança, exceto se a nulidade resultar apenas de incapacidade pessoal do devedor.

E esse vínculo com a obrigação principal limita a obrigação do fi ador que nunca poderá ultrapassá-la ou ser-lhe mais onerosa:

Art. 1.487: A fi ança pode ser de valor inferior ao da obrigação principal e contraída em condições menos onerosas.

Quando exceder o valor da dívida, ou for mais onerosa que ela, não valerá até o limite da obrigação afi ançada.

Carvalho Santos esclarece a hipótese: “de forma que não pode o fi ador pro-meter pagar a dívida em S. Paulo, se o devedor se obrigar a pagá-la no Rio ou vice-versa; obrigar-se a pagar importância maior do que a da obrigação princi-pal; convencionar o pagamento de juros capitalizados, quando o devedor princi-pal os tenha de pagar simples, ou o pagamento de juros a taxas mais altas que as estabelecidas para o devedor principal” (vol. XIX, p.448).

Isso não impede que, quando não limitada, compreenda todos os acessó-rios da dívida principal, inclusive as despesas judiciais:

Art. 1.486: Não sendo limitada a fi ança, compreenderá todos os aces-sórios da dívida principal, inclusive as despesas judiciais, desde a citação do devedor.

A cobrança destas, contudo, fi ca condicionada à citação do fi ador, sem a qual não se lhe teria dado chance de purgar a mora e evitar os acréscimos.

Fiança Conjunta, Solidária e Parcial

Essa obrigação pode ser estabelecida conjuntamente, caso em que os fi a-dores serão tomados serão tomados, em regra, por solidários:

Art. 1.493: A fi ança conjuntamente prestada a um só débito por mais de uma pessoa importa o compromisso de solidariedade entre elas, se declarada-mente não se reservaram o benefício da divisão.

Podem, ainda, estipular que cada um deles fi cará garantindo uma parte do débito (art. 1.494).

Re-Fiança

Essa obrigação pode, por sua vez, também ser objeto de garantia, o que a lei chama abono:

Art. 1.482: Se o fi ador tiver quem lhe abone a solvência, ao abonador se aplicará o disposto neste Capítulo sobre fi ança.

Essa obrigação pode envolver uma dívida futura, caso em que fi ca condi-cionada à sua formação (artigo 1.485).

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Essa obrigação pode envolver uma prestação de dar ou de fazer (quando não personalíssima), nuca uma de não fazer pois se o devedor não cumpre, fazendo o que não devia fazer, o inadimplemento é irreversível (o mesmo se pode dizer das obrigações que têm prazo essencial).

Sub-Rogação

Pagando o fi ador a dívida afi ançada, sub-roga-se na na posição do credor. É um dos casos de sub-rogação legal (art. 1.495).

Classificação:

De tudo, podemos chegar a uma classifi cação do contrato de Fiança:(i) Unilateral(ii) Consensual(iii) Gratuito, às vezes podendo ser oneroso.(iv) Aleatório? Não, não há sentido, já que é unilateral.(v) Formal:Art. 1.483: A fi ança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação ex-

tensiva.(vi) Execução Imediata Diferida(vii) É sempre acessório.

Elementos:

Capacidade:No que se refere à capacidade das partes, nada há de peculiar. As partes no

contrato de fi ança devem ser ambas capazes. Não há exceção à regra geral que exige a capacidade que admita a fi guração de parte absolutamente incapaz.

Legitimidade/Vênia Conjugal:Quanto à legitimidade, todavia, há ponto peculiar: a pessoa casada não

pode prestar fi ança sem a autorização do cônjuge:Art. 235, III: O marido não pode, sem consentimento da mulher, qual-

quer que seja o regime de bens: prestar fi ança (arts. 178, § 9º, I, b, e 263, X).A tal autorização chamava-se ‘outorga uxória’.Com o regime de igualdade entre os cônjuges, aplica-se também à mulher.No Novo Código Civil o legislador adequou o estatuto (artigo 1.647, III).Mais correto que se chame ‘vênia conjugal’.Conseqüências da Falta de Vênia:

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Nulidade x Anulabilidade

A conseqüência da violação da disposição sempre foi alvo de muitas dis-cussões. Uma corrente se inclinava pela nulidade (com a adesão de Pontes de Miranda) e outra pela mera anulabilidade.

Por esta última dizia-se que o próprio legislador indicava essa solução. Afi nal, seria isso que estabeleceriam os artigos 239 (“a anulação dos atos do marido praticados sem a outorga da mulher, ou sem suprimento do juiz, só poderá ser demandada por ela, ou seus herdeiros”) e 248, III (“a mulher casada pode livremente anular as fi anças ou doações feitas pelo marido...”).

O ataque a esse negócio ainda estava sujeito à prescrição (artigo 178, §9º, I).

É essa a corrente adotada pelo STJ, conforme se vê do Resp nº 113.317/MS:

Daí decorre que só o cônjuge prejudicado e herdeiros podem pleitear a anulação. O cônjuge que prestou fi ança sem a autorização não é legitimado para propor ação, embora a ilicitude possa ser levantada em execução.

O Novo Código Civil traz redação diversa e fala em rescisão:Art. 1.642, IV: demandar a rescisão dos contratos de fi ança e doação, ou

a invalidação do aval, realizados pelo outro cônjuge com infração do disposto nos incisos III e IV do art. 1.647.

Art. 1.649: A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessá-ria (art. 1.647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até 2 (dois) anos depois de terminada a sociedade conjugal.

Art. 1.650: A decretação de invalidade dos atos praticados sem outorga, sem consentimento ou sem suprimento do juiz só poderá ser demandada pelo cônjuge a quem cabia concedê-la, ou por seus herdeiros.

Invalidade Total x Invalidade Parcial

Paralelamente a tal discussão, indagava-se sobre a extensão da anulação: (i) se alcançava todo o ato; ou (ii) somente a parte relativa à meação do cônjuge prejudicado.

A jurisprudência tem entendido que a anulação atinge toda a fi ança, con-forme se vê do acórdão já citado.

Mas diversa é a situação em que o cônjuge prejudicado não pleiteia a anulação no prazo legal. Aí, sim, a fi ança vai se convalidar, mas somente em relação à meação do cônjuge-fi ador.

A fi ança também só vai valer em face da meação do cônjuge-fi ador em caso de outorga ou de vênia. A doutrina ensina que não é pelo fato de ter

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DIREITO DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 219

sido concedida a autorização que a fi ança possa abarcar a meação do cônjuge--outorgante. Isso só ocorrerá se o cônjuge se obrigar conjuntamente: a res-ponsabilidade será do casal.

Objeto: Quanto a isso, tudo já foi dito.Forma:A fi ança é um contrato formal.Deve sempre ser celebrada na forma escrita:Art. 1.483: A fi ança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação ex-

tensiva.Consenso:Sendo a fi ança um contrato, que depende do consenso, não pode o fi ador

ser imposto. O credor pode escolhê-lo:Art. 1.489: Quando alguém houver de dar fi ador, o credor não pode ser

obrigado a aceitá-lo, se não for pessoa idônea, domiciliada no município, onde tenha de prestar a fi ança, e não possua bens sufi cientes para desempe-nhar a obrigação.

Mas se escolheu, só pode substitui-lo se for insolvente ou incapaz (art. 1.490)

Exoneração:

É, aparentemente, um dos temas mais confusos do contrato de fi ança, especialmente em razão do texto do artigo 1.499: “o fi ador, ainda antes de ha-ver pago, pode exigir que o devedor satisfaça a obrigação, ou o exonere da fi ança, desde que a dívida se torne exigível, ou tenha decorrido o prazo dentro no qual o devedor se obrigou a desonerá-lo”.

Os comentadores esclarecem que a situação não pode ser confundida com a extinção da fi ança, o que certamente se concluiria por conta de uma aplica-ção literal do dispositivo.

Afi nal, nenhum ato unilateral do devedor poderia prejudicar o credor, retirando-lhe a garantia.

A razão do dispositivo legal é fornecer ao fi ador uma ação em face do de-vedor, de modo a evitar que a dívida aumente e que incidam juros, fazendo com que este pague ou fazendo com que consiga, junto ao credor, sua exone-ração (É ao que se refere a primeira parte do dispositivo).

O mesmo se dá quando existe uma convenção entre o fi ador e o devedor que tenha estabelecido um prazo para a desoneração (segunda parte).

Nesse caso, o devedor tinha, em relação ao fi ador, uma prestação de fazer e este tem o direito de exigi-la.

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DIREITO DOS CONTRATOS

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Da mesma forma que pode iniciar a execução do devedor por causa da inércia deste em pagar ou do credor em cobrar, pode o fi ador promover o andamento da execução abandonada pelo credor:

Art. 1.498: Quando o credor, sem justa causa, demorar a execução inicia-da contra o devedor, poderá o fi ador, ou o abonador (art. 1.482), promover--lhe o andamento.

É válida a lição de Clóvis Beviláqua: “o fi m da lei, pois, é dar ao fi ador um remédio contra a inércia do credor que lhe possa carrear algum dano, porém sem causar prejuízo também ao benefi ciado pela fi ança. Assim é direito do fi ador antecipar-se ao credor para executar a dívida logo que ela se torne exigível, uma vez que condenado o devedor no pedido de exoneração, como também lhe faculta a lei continuar na execução iniciada pelo credor, quando este lhe não imprime regular andamento (C.C. artigo 1.498). São os dois meios que a lei lhe confere para corrigir a inação ou indolência do credor”.

Quando a fi ança é concedida por prazo indeterminado, é diversa a solu-ção. Nesse caso, o fi ador pode, a qualquer momento, exonerar-se e a ação é dirigida em face do credor:

Art. 1.500: O fi ador poderá exonerar-se da fi ança que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, fi cando, porém, obrigado por todos os efeitos da fi ança, anteriores ao ato amigável, ou à sentença que o exonerar.

Geralmente, a fi ança por prazo indeterminado se dá quando se refere a uma prestação continuada.

Outro caso de exoneração do fi ador pela inércia do credor se dá quando este, após a nomeação de bens do devedor para a apuração do benefício de ordem (art. 1.491), nada faz para executá-los, permitindo que o devedor ve-nha a cair na insolvência.

A exoneração se justifi ca: se o devedor está insolvente, fosse o fi ador obri-gado a pagar, já não teria como regredir. A exoneração depende da prova de que os bens indicados bastariam para o pagamento da dívida:

Art. 1.504: Se, feita a nomeação nas condições do art. 1.491, parágrafo único, o devedor, retardando-se a execução, cair em insolvência, fi cará exo-nerado o fi ador, provando que os bens por ele indicados eram, ao tempo da penhora, sufi cientes para a solução da dívida afi ançada.

Extinção:

Os casos são aqueles do artigo 1.503:I. — se, sem consentimento seu, o credor conceder moratória ao devedor;II. — se, por fato do credor, for impossível a sub-rogação nos seus direitos

e preferências;

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DIREITO DOS CONTRATOS

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Mas para que haja extinção total, a impossibilidade deve ser total. Se for apenas parcial, a extinção também será parcial.

É o sentido do Resp nº 101.212/RJ.III. — se o credor, em pagamento da dívida, aceitar amigavelmente do

devedor objeto diverso do que este era obrigado a lhe dar, ainda que depois venha a perdê-lo por evicção.

Além deles, muitos outros:novação;confusão;remissão;compensação;morte do fi ador: a morte do afi ançado, conforme a jurisprudência do STJ

não extingue a fi ança, já que é negócio entre o fi ador e o credor.

Efeitos:

Se dividem nas relações entre:(i) o fi ador e o credor;benefício de ordem;limitação da fi ança;benefício de divisão (art. 1.493, parágrafo único);medidas contra a demora da execução (art. 1.498)oponibilidade de exceções pessoais e gerais (art. 1.502)exoneração na fi ança indeterminada (art. 1.500);exoneração na insolvência (art. 1.504);extinção (art. 1.503);e (ii) o fi ador e o devedor:sub-rogação (art. 1.495);responsabilidade por perdas e danos (art. 1.496);responsabilidade por juros (art. 1.497);execução (art. 1.499)

COMPRA E VENDA

A partir de agora passamos a estudar os contratos nominados ou típicos que, segundo a classifi cação que estudamos são os contratos que já têm sua disciplina prevista na legislação — e vamos estudar mais especifi camente os contratos regulados no Código Civil. O primeiro deles é o contrato de com-pra e venda.

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A redução dos contratos a um “tipo” previsto na legislação é a conseqüên-cia óbvia do reconhecimento da importância desses negócios no trato social.

Constatando sua aplicação recorrente, o legislador preferiu estabelecer suas principais regras, de modo a padronizar o tratamento dado às partes.

Se lembram que estudamos a causa dos contratos — e que para algumas legislações a causa se erige em mais um elemento do contrato, sem o qual ele não estaria completo? Vimos que, em nosso sistema, não se dá muita impor-tância para a causa. Apenas em raras situações. Mas isso não quer dizer que a causa para nós não exista ou de nada sirva. Sua análise é necessária, às vezes, para a verifi cação da licitude do contrato. Bom, mas por quê estou falando sobre a causa?

Se lembram que eu disse que a causa em um negócio jurídico — e o con-trato é um negócio jurídico — é vista não como aquilo que o faz acontecer (causa efi ciente), mas como aquilo que o faz nascer (causa fi nal), o motivo, a fi nalidade? Nesse sentido, a causa do negócio jurídico encontra-se na sua origem, se dá antes de sua formação. Nada me parece, então, mais adequado, para encontrar a conceituação do contrato, que buscar a sua causa.

Qual seria a causa em um contrato de compra e venda? Como já falei, a causa — esse motivo que gera o contrato — não pode ser, nos contratos já tipicizados, entendida de modo subjetivo, particular. Tratando-se de um con-trato utilizado objetivamente, de modo a servir a todos da mesma forma, deve também ser considerada de modo objetivo. A causa é o motivo “oggetivato” como diz Trabucchi. Dentro dessa idéia, a causa do contrato de compra e ven-da não deve ser procurada no motivo particular (compra do imóvel para con-valescença, ou para veraneio, ou para especulação), mas no motivo comum a todos que negociam através desse contrato. E qual seria, então, esse motivo?

É a aquisição/alienação do domínio em troca de um preço. E é com isso que se defi ne o contrato de compra e venda. Vejam que, ao analisar a causa, obtivemos os elementos para a conceituação do negócio E é isso que dispõe o art. 1.122: “Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro” (art. 481 do texto consolidado).

Vejam com atenção: “um dos contratantes se obriga a transferir o domínio”. Embora a causa do contrato seja a alienação/aquisição do domínio (proprie-dade) em troca do preço, o contrato de compra e venda, por si só, não é o meio sufi ciente para a transferência da propriedade. E essa é uma das coisas que mais costumam chocar os leigos. Eles não entendem como que uma pes-soa que celebrou um contrato de compra e venda e inclusive já pagou o preço ainda não é a proprietária da coisa.

Mas a transferência da propriedade em nosso sistema depende da tradição ou do registro, havendo clara distinção entre o ato do contrato e o ato da transmissão da propriedade.

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Essa distinção ainda é um resquício dos costumes romanos que, como já falei, não admitiam que o contrato (consenso) apenas, produzisse efeitos. Eles precisavam de uma solenidade (v. mancipatio) para que aquele acordo de vontades pudesse interferir no mundo material, econômico, cotidiano. Eles precisavam “ver” o acordo; precisavam de algo palpável para admitir os feitos. Daí os rituais da “mancipatio” (pesar na balança — libriprens) e depois da “traditio”. Com a evolução do conceito de contrato, como disse, passou-se a admitir que o acordo de vontades, por si só, produzisse efeitos, isto é, gerasse obrigações para as partes. Mas também só isso, ainda não se admitindo que pudesse gerar a transferência da propriedade.

Até que alguns passaram a defender a idéia e o Código francês de 1804, sob a infl uência direta de Napoleão e dos costumes do norte da França, con-solidou esse novo entendimento. Na França, portanto (e depois na Itália e em Portugal), o contrato de compra e venda não tem somente efeitos obri-gacionais, mas efeitos reais. Nosso sistema, assim como o alemão, manteve a tradição romana e, por isso, manteve a tradição (traditio) como ato necessário para a aquisição da propriedade após o título do contrato.

Vejam só os arts. 530 (aquisição da propriedade imóvel: (i) transcrição do título; (ii) acessão; (iii) usucapião; (iv) direito hereditário: art. 1.572 — ain-da teríamos de incluir o casamento: art. 262); e 592 e seguintes do Código Civil (propriedade imóvel: (i) ocupação; (ii) especifi cação; (iii) confusão; (iv) comistão; (v) adjunção; (vi) usucapião; (vi) tradição — ainda teríamos de incluir o direito hereditário e o casamento).

Em nenhum deles se encontra o contrato de compra e venda ou a vontade das partes ou o negócio jurídico.

Para nós, o contrato de c&v tem apenas efeito obrigacional. Gera para o devedor a obrigação de transferir a coisa, de fazer a tradição e o registro.

Os arts. 675 e 676 do Código Civil são esclarecedores.Esses dispositivos que citamos trazem as formas, as maneiras de aquisição

da propriedade em nosso direito. São os chamados “modos de aquisição”. O contrato de c&v não é um deles; é título aquisitivo. A diferença é que um é a causa efi ciente da transferência e o outro é a causa-origem, o título (isso no caso da tradição e do registro porque os outros modos também podem servir como causa).

Existiria alguma explicação racional para esse sistema que distingue o ato do contrato e o ato da transferência que os romanos inauguraram e que nós conservamos? Podemos dizer que sim. A tradição é uma solenidade. Toda solenidade tem uma função de segurança das relações jurídicas e de certo modo, se considerarmos que a propriedade é um direito real e como tal se caracteriza por ser oponível a todos e a uma pessoa em particular (sujeito passivo universal), não é razoável que um mero contrato, celebrado apenas entre as partes e, portanto, na maioria das vezes, conhecido apenas por elas,

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não possa ser sufi ciente para transmitir um direito que vai gerar obrigações para todo mundo?

Por tudo isso que dissemos, temos que saber que o contrato de compra e venda, embora tenha como causa, como fi nalidade, a alienação/aquisição da propriedade em troca de um preço, não transfere por si só a propriedade, não sendo sufi ciente para tanto. Ele é apenas o título, a causa da transferência: esta somente se dá ou pela tradição ou pelo registro.

A obrigação do vendedor no contrato de c&v não é apenas de entregar a coisa, transferindo a posse. É dar (v. diferença entre obrigação de dar e obrigação de entregar — ambas espécies da obrigação de dar em sentido lato), fazendo a tradição ou o registro. E enquanto isso, a propriedade não se transfere. Lembrem-se de que o contrato é fonte de obrigações, dele nascem obrigações. E é exatamente através das obrigações nascidas do contrato que poderemos defi ni-lo e analisá-lo, inclusive determinando suas características, classifi cando-o. Então, quais as obrigações (principais) que nascem de um contrato de c&v?

Fácil. O próprio art. 1.122 dá a cola: a obrigação de dar — que é a de transferir o domínio da coisa e a obrigação de dar — que é de pagar o preço.

Definição

“Compra e venda é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a transferir a propriedade de uma coisa à outra, recebendo em contraprestação determinada soma de dinheiro ou valor fi duciário equivalente” (Orlando Gomes).

Classificação

A partir dessas obrigações, como dissemos, podemos situar o contrato de c&v nas classifi cações que já vimos:

- Bilateral ou unilateral? Bilateral- Consensual ou real? Consensual- Oneroso ou Gratuito? Oneroso- Comutativo ou Aleatório? Comutativo- Sinalagmático (genético e funcional)- Formal ou não? Não pede forma específi ca- Principal ou acessório? Depende- Execução instantânea ou continuada?- Típico? Sim.

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Elementos

A doutrina sempre cuida dessa matéria apontando como elementos do contrato de compra e venda a coisa, o preço e o consenso. Fazem isso em se-qüência à tradição romana que ensinava sobre o tripé em que estaria apoiado o contrato: “res, pretium et consensus”.

Contudo, não há porque deixar de tratar os contratos de modo diverso dos negócios jurídicos, já que aqueles se inserem nesse conceito.

Para evitar que se perca essa noção, prefi ro tratar dos elementos dos con-tratos da mesma forma que faria com qualquer outro negócio jurídico pois é o que ele é.

Quais são os elementos essenciais e não essenciais a um contrato de com-pra e venda? Vimos que os elementos dos contratos são: capacidade e legiti-midade das partes; objeto lícito e possível; forma prescrita ou não defesa em lei; vontade não viciada; além dos modos.

No que toca ao contrato de c&v há alguma particularidade quanto a esses elementos? Vamos pela ordem:

Quanto à capacidade há alguma peculiaridade? Quem pode celebrar con-trato de compra e venda? Em princípio, apenas aqueles detenham capacida-de, não havendo diferença no que se refere a outros atos jurídicos em geral. Só é bom registrar que, em razão da própria importância e essencialidade des-se contrato em nossa vida moderna, alguns menores absolutamente incapazes realizam contratos de c&v de balas, doces, “sandwiches”, revistas, ingressos, roupas etc., sem que esses contratos sejam considerados inválidos.

E no que respeita à legitimidade? Lembram-se do que é a ilegitimidade? É a incapacidade para o caso concreto. Não se refere à generalidade dos atos da vida civil como a incapacidade, mas sim a um impedimento para determina-dos atos, sem que se possa retirar a capacidade para os demais. Quanto a isso, a lei já restringe a celebração do contrato de c&v, isto é, a lei impede que de-terminadas pessoas possam celebrar esse contrato, pessoas que se encontram em determinadas situações. Não se confundam: a ilegitimidade diz respeito às partes e, portanto, ao sujeitos do contrato, não ao objeto.

a) A primeira dessas restrições é a do art. 1.132 que diz que os ascendentes não podem vender aos descendentes sem autorização dos demais. Visa a pro-teger a legítima. Qual é a conseqüência de uma tal venda? Torna o ato nulo ou anulável?

A legitimidade é um requisito de validade do ato jurídico e do contrato. Como a legitimidade é um requisito de validade adicionado ao elenco legal pela doutrina e pela jurisprudência (não está prevista nos arts. 145 e 147), não dá para saber se gera a nulidade ou anulabilidade.

Bom, em geral, a ilegitimidade gera a nulidade do negócio. É assim que a doutrina tem entendido na generalidade dos casos. Há, contudo, a súmula

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nº 494 do STF, segunda a qual a ação para anular a venda de ascendente para descendente prescreveria em 20 anos. Ora, se a ação prescreve, é porque o tempo tem o poder de convalidar a venda assim feita, correto? O que vocês me dizem? Esse assunto é um dos mais controvertidos ainda no campo dos contratos. Silvio Rodrigues traça com acuidade o histórico da evolução juris-prudencial (especialmente do STF) sobre o tema, culminando na menção à súmula 494 e afi rmando que o acórdão que deu origem a ela dita ser o negó-cio nulo e não anulável e ao mesmo tempo a ação prescritível — e concluindo que o ato é nulo por fraude à lei, não simulação (que geraria a anulabilidade) e mesmo assim a ação seria prescritível. Mencionar a súmula anterior que dizia que o prazo era de 4 anos, contado a partir da morte do ascendente, por se tratar de simulação (art. 178, § 9o, V, b).

b) A segunda restrição é a do art. 1.133 e a intenção do legislador foi evi-tar o abuso por parte das pessoas que estivessem encarregadas de zelar pelo interesse do vendedor — evitar também confl ito de interesses ou que, por sua posição, pudessem infl uenciar na determinação da venda ou do preço.

c) Em terceiro lugar, há a restrição à venda de quota-parte por condômino de coisa indivisível, sem que tenha sido oferecida anteriormente aos demais condôminos.

O novo Código Civil trata a venda de ascendente a descendente como anulável (prazo prescricional genérico de 10 anos — art. 205) e os demais casos do atual art. 1.133 como de nulidade (art. 497 do texto consolidado).

Quanto ao objeto: Lembram-se de que estudamos o objeto dos contatos em geral e chegamos à conclusão, concordando com a lição de Trabucchi e passando pelas contradições que aparentemente se apresentam em Orlando Gomes, que o objeto do contrato não é a soma dos objetos das obrigações dele oriundas, mas, sim, em uma análise mais mediatista, dos objetos das prestações dessas obrigações?

Qual o objeto das principais obrigações no contrato de c&v? Pagamento do preço e entrega da coisa (pelo vendedor) e dar o preço (comprador).

E quais os objetos desses objetos (objeto da obrigação = prestação; objeto do objeto da obrigação = objeto da prestação)? De uma lado, a coisa e, de outro, o preço a ser pago.

Pois são esses os objetos do contrato de compra e venda: a coisa e o preço.Falemos deles, então:Coisa: Aqui precisaremos indagar quais seriam as coisas, os bens que po-

dem ser comprados e vendidos. E como podemos sabe-lo? Ora, o art. 1.122 determina que pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes é obri-gado a transferir o domínio de certa coisa. É desta coisa que agora falamos.

Bom, domínio é propriedade, é o direito de propriedade. Se a coisa de que falamos é aquela que terá seu domínio transferido, deve ser uma coisa que es-teja sob o domínio de alguém, que seja o objeto do direito de propriedade de

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alguém. É exatamente esse direito de propriedade que o contrato de c&v visa a transferir. Podemos, portanto, concluir, que as coisas que podem ser objeto de contrato de compra e venda são exatamente aquelas coisas que possam ser objeto do direito de propriedade. E quais são essas coisas?

A doutrina até hoje ainda discute quais seriam os bens que podem ser ob-jeto de direito real e, por conseguinte, de propriedade. Inicialmente, se limi-tavam aos bens corpóreos, isto é, as coisas (na classifi cação que as tem como bens materiais). Posteriormente, passou-se a admitir que coisas chamadas pe-los romanos de incorpóreas também pudessem ser objeto de propriedade e assim os gases e a energia elétrica, por exemplo. Essas coisas, que inicialmente não entravam no conceito de tangíveis agora já o integram, já que podem ser apropriadas materialmente, embora não se corporifi quem.

Já uma doutrina mais moderna vem admitindo que até mesmo direitos possam ser objeto de propriedade. Silvio Rodrigues vem ensinando que todas as coisas que estão no comércio, isto é, que podem ser apropriadas, podem ser objeto de compra e venda. Caio Mario, após reportar que Martin-Wolff restringe às coisas corpóreas a aptidão para serem objeto de domínio (pág. 75, vol. IV), diz que entre nós não haveria lugar para a restrição, pois que a ques-tão se reduziria tão somente à adoção da terminologia (dizendo, embora, que, “a rigor, a propriedade compreende apenas as coisas corpóreas”, estendendo-se, “entretanto o conceito dominial aos direitos” (v. pág. 76, último parágrafo do item 299)). Já Orlando Gomes explica que “o fenômeno da propriedade incor-pórea explica-se como refl exo do valor psicológico da idéia de propriedade”. Quer o mestre dizer que, como parecia reconhecer Caio Mario, na vulgarização dos conceitos, acaba-se por confundir aqueles de propriedade e titularidade. Quem é proprietário é titular de um direito e não se fala em propriedade de propriedade. Quem é usufrutuário é titular de usufruto e às vezes se aceita que se diga que é proprietário do direito de usufruto, assim como se dá com a “propriedade” dos direitos de crédito. Mas a propriedade, não podemos esquecer, é um direito com conteúdo próprio, qual seja, que permite o uso, a fruição e a disposição do objeto da propriedade. Ora, se eu admitir que, por exemplo, o direito de uso é o objeto do direito de propriedade, eu poderia concluir que essa propriedade me dá a faculdade de usar, fruir e dispor desse direito. E, de fato, posso de certa forma me utilizar do direito de uso e dele dispor, mas como vou gozar de seus frutos se da coisa sobre a qual ele incide não me é permitido colher frutos? Não há técnica em admitir a propriedade de direitos, a não ser que, com isso, queiramos nos referir a “titularidade”, sujeição ativa. Portanto, concordo com Orlando Gomes quando este conclui: “subsiste a doutrina de que o objeto do direito de propriedade não pode ser senão bens corpóreos” (pág. 99, Direitos Reais).

Concluindo, poderíamos dizer que apenas as coisas, isto é, os bens cor-póreos podem ser objeto de um contrato de compra e venda (a idéia de

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que a posse possa incidir sobre direitos não é prejudicial à essa conclusão se entendermos que esta é não a visibilidade do domínio, mas a visibilidade da titularidade, do poder concedido pela Ordem Jurídica sobre alguém, algo ou alguma relação).

Esta seria, a meu ver, a técnica aplicável ao objeto do contrato de compra e venda. Mas temos que admitir, com Caio Mario, que ainda que à alienação de direitos (= coisas incorpóreas) se dê o nome de cessão, “a esta se aplicam os princípios da compra e venda” (pág. 118, vol. III).

Art. 1089: Pacta Corvina: proibido (art. 426 do texto consolidado).Venda de coisa futura: admissível exatamente em razão da natureza do

contrato que faz nascer tão somente a obrigação de dar a coisa, que pode ser diferida, sendo acordado que a entrega seja feita depois, após a disponibiliza-ção da coisa (ex. frutos).

Venda de coisa de terceiros (coisa alheia): Absurdo? Não, pelos mesmos motivos. No nosso sistema a venda é válida, embora inefi caz em face do ver-dadeiro proprietário. O caso há de ser resolvido como inadimplemento:

“Uma vez, porém, que, pelo contrato, o vendedor se obriga, tão só, a transferir a propriedade da coisa, nada obsta que efetue a venda do bem que ainda não lhe pertence; se consegue adquiri-lo para fazer a entrega prometida, cumprirá espe-cialmente a obrigação; caso contrário, a venda resolver-se-á em perdas e danos. A venda da coisa não é nula nem anulável, mas simplesmente inefi caz” (Orlando Gomes).

Preço: O outro objeto do contrato de compra e venda é o preço. E junta-mente com a coisa e o consenso, forma o chamado tripé romano do contrato (res, pretium et consensus), o que embasa e identifi ca o contrato perante os demais. Vejam que o consentimento é que liga o preço à coisa, unindo-os, e foi por isso que eu comecei a aula sobre contrato de compra e venda falando da causa, pois as vontades das partes que se dirigiram mutuamente até en-contrar-se no mesmo lugar (consenso = “contractus est duorum vel plurium in idem placitum consensus”) se dirigiram à aquisição da coisa mediante o paga-mento do preço e são esses três elementos, então, que identifi cam o contrato.

E esta idéia romana está de certa forma prestigiada e confi rmada pela regra do art. 1.126: “A compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes acordarem no objeto e no preço” (acordo, objeto e preço).

O preço é elemento essencial do contrato de compra e venda. Sem ele o contrato não é válido e não passa nem mesmo a ser contrato de compra e venda (“sine pretio, nula venditio est”).

Quais as suas características?a) Deve ser sério, real (“verum”), não simulado ou ridículo, irrisório, vil.

Não pode ser fi ctício, sob pena de se caracterizar a simulação através de um outro negócio. Mas a equivalência das prestações, como alerta Orlando Go-

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mes, não precisa mais ser apreciado objetivamente, como justo para todos, só não pode ser totalmente insignifi cante:

Aqui entra em questão a possibilidade de lesão;No CDC, a situação é particular.b) deve ser certo (“certum”) quanto à sua existência e forma de determina-

ção (por isso é elemento essencial, embora não precise ser determinado desde logo); mas

c) deve ser ao menos determinável. Então, pode ser deixado ao arbítrio de terceiro (art. 1.123); ou conforme a variação do mercado. Mas não pode ser deixado ao exclusivo arbítrio de uma das partes, pois aí se erigiria em condi-ção meramente potestativa (art. 115): art. 1.125: “nulo é o contrato de compra e venda que deixa ao arbítrio exclusivo de uma das partes a taxação do preço” (ver art. 51 do Código de Defesa do Consumidor).

d) Deve ser fi xado em dinheiro, em moeda, se não, não será considerado preço. Mas nada impede que seja combinado o pagamento em títulos da dívida pública ou em títulos de crédito. Isso não desvirtua o preço. Mas não pode ser fi xado o preço em uma prestação de serviços, p.ex., pois aí ter-se-ia um contrato inominado. Clóvis Beviláqua conta em seu “Direito das Obri-gações” que quando se dava como pagamento parte em dinheiro e parte em uma coisa, o critério para determinar se o contrato era de compra e venda era verifi car qual a maior contribuição. Se a parte maior era dada em dinheiro, o contrato era de c&v; se a parte maior era da coisa, era um contrato de troca. Orlando Gomes diz que ainda é assim. De todo modo, não há muita diferen-ça, já que a troca segue as disposições da c&v. A única diferença é com relação às despesas do contrato.

Riscos

O Código traz algumas disposições sobre os riscos no contrato de c&v. Essas disposições dizem respeito à chamada teoria dos riscos, que é uma parte da doutrina que estuda as consequências decorrentes da perda e deterioração fortuitas de uma coisa, dizendo quem deve se conformar e suportar a dimi-nuição patrimonial delas resultante.

Vimos que as obrigações que surgem de um contrato de c&v são a de pa-gar o preço e entregar a coisa. O que acontece se a coisa se perde por fortuito, isto é, sem culpa do vendedor? Se pensarmos exclusivamente na obrigação de entregar a coisa, veremos que ela se resolve. Isso é fácil.

Agora, tratando-se de um contrato, temos de considerar essa obrigação em conjunto com a outra. É isso que importa à teoria dos riscos. O que aconte-ce com a outra obrigação? Se consideramo-la isoladamente, vemos que não haveria intereferencia da obrigação resolvida e teria então que ser cumprida,

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fazendo-se a entrega do preço. Por outro lado, temos que lembrar que esta-mos lidando com um contrato não só bilateral mas sinalagmático, em que há uma interdependência das prestações, de modo que a prestação de pagar o preço está ligada à prestação de entregar a coisa e não tem sentido sem ela. Mas também não podemos esquecer que a impossibilidade de cumprimento da entrega da coisa se deu por fortuito, sem culpa do vendedor.

A existência da prestação de pagar o preço está ligada à prestação de en-trega da coisa mas esta só se impossibilitou por motivos alheios à vontade do devedor-vendedor. Será, então, que ele não merece receber o preço? A teoria dos riscos sabe que alguém tem que sair perdendo. Os dois não podem fi car imunes ao mesmo tempo. Afi nal, houve uma diminuição patrimonial no âmbito do eixo comprador-vendedor. Um dos pólos tem que, como se diz na linguagem contábil, realizá-la. Os dois estão em igual situação: ambos iriam cumpri com sus prestações. Só que uma delas se impossibilitou por motivo alheio às suas vontade. Ninguém teve culpa.

A teoria dos riscos sabe também que o legislador tem que escolher quem vai sofrer a diminuição. Para qual dos pólos vai pender a balança. E o legisla-dor escolhe que é vendedor que vai sofrer a diminuição. O vendedor é o dono da coisa até a entrega. E a teoria dos riscos enuncia, verifi cando outros casos de impossibilidade da prestação que quem sofre a diminuição patrimonial nesses casos é, em geral, em regra, o dono da coisa. Essa regra foi tão precisa-mente verifi cada que até nas legislações em que o contrato de compra e venda tem efi cácia real, ou seja, desde já transfere a propriedade da coisa, quem sofre a diminuição patrimonial é o comprador, pois ele já é o dono da coisa.

O art. 1.127 trata dos riscos e diz que os riscos do preço correm por conta do comprador. Orlando Gomes faz forte crítica a essa disposição, dizendo que o preço consiste em coisa genérica e que portanto, non perit (genus non perit), não sendo possível falar-se em risco.

Mas o que o legislador quis dizer é que os riscos de variação do preço cor-rem por conta do comprador, mas não poderá mesmo nunca haver a perda ou deterioração do preço.

Não obstante eu tenha dito que as regras da teoria dos riscos (que é o dono que sofre a perda) é precisa, há exceções a ela de que os parágrafos do art. 1.127 tratam: (i) coisas postas à disposição do comprador que se recebem; (ii) coisas postas à disposição do comprador, que esteja em mora de as rece-ber — a mora é um importante instrumento de inversão do risco, pois nela há culpa ((i) e (ii) não são de fato exceções pois já havia,m recebido a coisa); (iii) se expedida para lugar diverso, quando entregue ao transportador, por ordem do comprador.

O consenso é um outro apoio do tripé romano para caracterizar o con-trato de c&v. Mas notem que o consenso não é um elemento do contrato pois não é um elemento do negócio jurídico. De certa forma ele é o próprio

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contrato, pois o negócio jurídico bilateral (que o contrato é) é a declaração de vontade em comum acordo, no mesmo lugar (in idem placitum consensus).

Quanto à forma do contrato, o que precisamos dizer? Que o contrato de c&v não reveste forma especial. Salvo o caso do art. 132 — c&v de imóveis de valor superior à taxa legal.

VENDA AD CORPUS/AD MENSURAM

VENDA SOB AMOSTRAS

PACTOS ADJETOS À COMPRA & VENDA

O Código Civil reconhece algumas cláusulas que pdoem ser inseridas em um contrato de compra e venda que modifi cam sua estrutura normal, em-bora ainda assim não o desvirtuem, transformando-o em um novo contrato:

1) RETROVENDA:

A retrovenda surgiu do Direito romano, onde se subdividia em pacto de retrovendendo e pacto de retroemendo. Destinava-se a favorecer o proprie-tário de um imóvel que se visse em difi culdades fi nanceiras momentâneas para que ao mesmo tempo conseguisse algum dinheiro com a venda de sua propriedade e garantisse que poderia reavê-la tão logo se recuperasse.

Funcionava através de cláusula que assegurava ao vendedor, durante deter-minado prazo, a faculdade de exigir a devolução do imóvel.

A essa faculdade, chama-se faculdade de retrato.Foi adotada em nosso Código, que exigiu para sua concretização que o

retrato se fi zesse mediante o pagamento das despesas havidas com a aquisição.Isso se erigiu em uma dos grandes empecilhos à vulgarização do negócio.É verdade que a retrovenda podia servir para disfarçar um contrato de

empréstimo usurário, o que realmente não se evitava. Talvez por isso tenha a lei limitado a possibilidade de aposição da claúsula aos contratos de compra e venda de coisas imóveis, nunca às móveis, para evitar que isso acontecesse com mais frequência.

Note-se que a retrovenda facilmente servia para driblar a vedação do pacto comissório nas garantias reais, pois permitia que o adquirente da propriedade retrovendível fi casse com a coisa em caso de falta de pagamento do empréstimo.

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Vale inserir que o pacto comissório refere-se sempre à resolução do contra-to por uma das partes, diante do inadimplemento da outra.

No caso da garantia real, dá-se uma coisa específi ca do patrimônio do devedor ou de outrem para servir como garantia da dívida, de modo que seja vendida e com o produto da venda pague-se o empréstimo.

O que o Direito considera imoral é que o credor fi que desde logo com a coi-sa, sem mandar vendê-la antes (e isso o é que é chamado de pacto comissório).

De qualquer modo, nosso legislador manteve o mecanismo tradicional da retrovenda:

Art. 1.140. O vendedor pode reservar-se o direito de recobrar, em certo prazo, o imóvel que vendeu, restituindo o preço, mais as despesas feitas pelo comprador.

Vendedor:Veja que fi ca a critério do vendedor se utilizar da opção. Nosso direito só

admitiu que o vendedor imponha a devolução do imóvel.Além disso, a lei só fala em vendedor. Então, só ele poderá exercer o direi-

to de retrato, nunca seus herdeiros ou sucessores, pois o direito é personalís-simo (só ele pode exercer).

Isso é o que diz Orlando Gomes, mas Caio Mario, Silvio Rodrigues e WBM dizem que passa aos herdeiros.

Prazo: A cláusula (os contratantes) pode prever qualquer prazo, desde que igual ou inferior a 3 anos (nunca superior a isso):

Art. 1.141. O prazo para o resgate, ou retrato, não passará de 3 (três) anos, sob pena de se reputar não escrito; presumindo-se estipulado o máximo do tempo, quando as partes não o determinarem.

Não há cláusula: não há retrovenda.Há cláusula e prazo determinado <= 3 anos:Vale pelo prazo determinadoHá cláusula e prazo determinado > 3 anos:Vale por 3 anos.Há cláusula e não há prazo:Vale por 3 anos.O prazo é decadencial:Parágrafo Único. O prazo do retrato, expresso, ou presumido, prevalece

ainda contra o incapaz. Vencido o prazo, extingue-se o direito ao retrato, e torna-se irretratável a venda.

Efi cácia: Erga omnes:Art. 1.142. Na retrovenda, o vendedor conserva a sua ação contra os ter-

ceiros adquirentes da coisa retrovendida, ainda que eles não conhecessem a cláusula de retrato.

Discute-se se a retrovenda dava direito real ao vendedor.

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Alguns acham que sim, exatamente em razão da possibilidade de sequela, mesmo sem o conhecimento do terceiro.

Caio Mario, Orlando Gomes, Silvio Rodrigues e Washington de Barros Monteiro entendem não haver direito real. O direito de recobrar do adqui-rente derivaria da natureza da propriedade, resolúvel (ninguém pode transfe-rir mais direito que tem).

A propriedade resolúvel é uma espécie de propriedade temporária em que na própria causa de aquisição encontra-se a previsão de sua limitação, de seu fi m, devendo o estado das coisas ser restituído.

Imóvel: Só se admite em compra e venda de imóveis.Falar sobre a inconveniência da venda a retro de móveis, onde não há

como saber (não há registro) se a venda está gravada como cláusula de retro-venda (ver Silvio Rodrigues, pág. 176).

Inconveniência também no que seria uma abertura maior à simulação (usura).

Contrapartida:Para exercer o direito de recobrar o imóvel, o vendedor tem que restituir o

preço mais as despesas feitas pelo comprador:Art. 1.141, parágrafo único. Além dessas, reembolsará também, nesse

caso, o vendedor ao comprador, as empregadas em melhoramentos do imó-vel, até ao valor por esses melhoramentos acrescentado à propriedade.

Ver que não há direito de retenção por isso.Essa contrapartida, segundo Orlando Gomes, transformam o contrato de

C&V com pacto de retrovenda em uma venda sob condição resolutiva po-testativa.

Primeiro, pode ser chamada de condição?Sim. Condição é o evento futuro e incerto que interfere na efi cácia do

contrato.Só que essa seria uma condição meramente potestativa ou potestativa

pura, que é vedada nos atos jurídicos?A diferença é que é uma condição meramente potestativa que, para ser

exercida, ainda depende de uma atitude (pagamento do preço) e não exclusi-vamente da vontade (por isso não seria uma condição meramente potestativa).

Mas o mais comum exemplo de uma condição meramente potestativa é aquele: Dar-te-ei a casa se levantar meu braço.

O próprio Orlando Gomes, ao falar sobre a venda a contento, diz que as condições meramente potestativas são uma contradição em si e, portanto, não podem ser aceitas.

Está mais para uma promessa de venda, ou uma opção de compra, a ser exercida mediante simples vontade do vendedor?

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Não, pois na retrovenda, como os autores bem reconhecem, não há um novo negócio de compra e venda, mas um desfazimento do original (v. Silvio Rodrigues).

Caio Mario diz que se fosse ajustada em ato apartado, seria promessa de venda.

Mas ele mesmo, mais adiante, diz que não há um novo contrato de venda, para dizer que não há necessidade de pagamento de imposto de transmissão.

Pensa nisso: na retrovenda, se o negócio é condicional, os efeitos é que cessam pela condição resolutiva. Mas o contrato de compra e venda não tem como efeito a transferência da propriedade e por isso esse efeito não poderia ser atingido. O efeito que é atingido é o efeito da tradição e esta não é ínsita ao contrato. Na verdade, a condição estará afetando os efeitos da tradição e não do negócio que modaliza. É uma condição mais potente.

2) VENDA A CONTENTO

Como o próprio nome diz, é a venda a gosto do comprador.Só se mantém, ou só se concretiza se o comprador gostar.Tanto que a cláusula se chama ad gustum.Eu disse só se mantém (o que pressupõe que se iniciou) ou só se concretiza

(ainda não) pois a venda a contento pode confi gurar resolutividade do negó-cio ou suspensividade do negócio.

Art. 1.144. A venda a contento reputar-se-á feita sob condição suspensi-va, se no contrato não se lhe tiver dado expressamente o caráter de condição resolutiva.

Em regra é suspensiva.Quais as diferenças?Em um, a compra e venda ainda não produziu seus efeitos. Portanto, o

preço ainda não precisa ser pago.Na resolutiva já produziu (embora possam ser cassados) e, a princípio, o

preço já estaria pago, a menos que se acordasse em diferir seu pagamento.A outra diferença é quanto ao risco.A teoria que estuda as hipóteses de risco, visando a sistematizar quem deve

sofrer a diminuição patrimonial pela perda ou deterioração da coisa formu-lou como regra geral que quem deve sofrer a perda ou deterioração é o dono da coisa (res perit domino).

Contudo, se a condição é suspensiva, o comprador ainda não é o dono da coisa e não pode sofrer a diminuição patrimonial pela perda. É o vendedor que vai sofrê-la.

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Coerentemente com a inefi cácia do negócio antes da verifi cação da condi-ção suspensiva, o legislador impõe que os deveres do comprador são aqueles de um mero comodatário:

Art. 1.145. As obrigações do comprador, que recebeu, sob condição sus-pensiva, a coisa comprada, são as de mero comodatário, enquanto não ma-nifeste aceitá-la.

Mas por outro lado, ele tem que cuidar da coisa com mais diligência do que fosse sua, de forma que a esfera de sua culpabilidade aumenta, diminuin-do na mesma proporção a esfera do fortuito.

Art. 1251: O comodatário é obrigado a conservar, como se sua própria fora, a coisa emprestada, não podendo usá-la senão de acordo com o contra-to, ou a natureza dela, sob pena de responder por perdas e danos.

Art. 1253: Se, correndo risco o objeto do comodato juntamente com outros do comodatário, antepuser este a salvação dos seus, abandonando o do comodante, responderá pelo dano ocorrido, ainda que se possa atribuir a caso fortuito ou força maior.

Questão da venda a contento como condição meramente potestativa.Orlando Gomes parece pensar assim, embora indique que Windscheid a

abominava, pois seria uma contradição em si, pois o negócio visa a obrigar e a condição meramente potestativa ou potestativa pura acaba por permitir que não se obrigue. Acaba dizendo que não seria uma condição puramente po-testativa pois dependeria de gostar ou não da coisa e não da simples vontade. Silvio Rodrigues segue o mesmo entendimento.

Caio Mario diz: “Muito se tem discutido, aliás, sobre a natureza dessa con-dição. A uns parece ser potestativa pura, no caso porém admitida sem o efeito anulatório do ato jurídico, por tê-la placitado excepcionalmente a lei. Não nos parece aceitável a explicação. O pacto ad gustum não é uma condição potesta-tiva pura (que só esta é interdita, como visto em o nº 98, supra vol. I); é uma condição simplesmente potestativa, perfeitamente lícita, já que se não apresenta o ato dependente do arbítrio exclusivo de comprador (si voluero), porém do fato de agradar-lhe a coisa, o que é bem diferente.”

Ora bolas!!!Se isso não é exclusivamente dependente da vontade, do arbítrio da parte,

como fala o Código Civil no art. 115, não sei o que seria.Silvio Rodrigues diz que haveria um fator externo: “para que o negócio se aper-

feiçoe é preciso que ele apraza ao comprador de modo que depende de fatores alheios a seu querer e que podem interferir para seu aprazimento ou não” (pag. 178).

Por outro lado, WBM e Luiz Roldão de Freitas Gomes dizem ser uma exceção à regra de nulidade da condição potestativa pura.

Ver considerações em fi ta.

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O direito decorrente da venda a contento é personalíssimo, não podendo ser cedido (art. 1.148), pois só o comprador é que poderá dizer se a coisa é ou não de seu gosto.

E o que acontece se o comprador morre antes de se manifestar?Cunha Gonçalves, segundo J.M. Carvalho Santos, fala nisso, dizendo que

se a coisa não for de uso pessoal do comprador, seus herdeiros teriam direito a escolher.

Acho que não. A faculdade de dizer se gosta é ou não é muito particular e só pode ser exercida pelo comprador em pessoa. Se ele falece antes e o con-trato está sob condição suspensiva, vai se aperfeiçoar, pois ele não só não se aperfeiçoa com o desgosto do comprador. Se este não o manifesta, não há desgosto.

De qualquer forma, não há na doutrina resposta específi ca para tanto.Prazo:Pode ou não haver prazo estipulado para a manifestação do comprador:Art. 1.146Art. 1.147Falar do Código de Defesa do Consumidor.

3) PREEMPÇÃO ou PREFERÊNCIA

É diferente da retrovenda:(i) Na retrovenda, há opção de compra por parte do vendedor, é ele quem

decide; já na preempção, ele só tem opção de compra se o comprador resolver vender.

(ii) Exercido o direito de retrato, a compra e venda se desfaz; na preemp-ção, exercido o direito de preferência, não há um simples desfazimento, há um novo negócio de compra e venda.

(iii) Para que a coisa retorne ao vendedor, na retrovenda, basta sua vontade e o depósito do preço; para que a coisa retorne ao vendedor na preempção, precisa concorrer a vontade do comprador.

(iv) A retrovenda só diz respeito a imóveis; a preferência se aplica aos mó-veis e imóveis.

(v) O direito à retrovenda passa aos herdeiros; o direito de preferência, não.Há duas formas de o comprador não atender à sua obrigação de oferta:(i) Não comunicando de que está prestes a vender para um terceiro:E aí o vendedor tem direito a intimar o comprador para exercer seu direito.É interessante mencionar a possibilidade de execução específi ca das obri-

gações de fazer.(ii) Vendendo efetivamente a terceiro:

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Nesse caso, não se tratando de direito real, o vendedor nada poderá fazer, a não ser pleitear perdas e danos.

O direito de preferência é personalíssimo (art. 1.157).

4) PACTO DE MELHOR COMPRADOR

Também só com imóveis (art 1.160).É cláusula resolutiva, salvo estipulação em contrário:Nisso tem presunção inversa em relação à venda a contento.O prazo limite é de 1 ano, embora as partes possam fi xar prazo menor.

5) PACTO COMISSÓRIO

O pacto comissório nada mais é que a cláusula resolutiva expressa.A cláusula resolutiva tácita já está ínsita em todos os contratos bilaterais

(art. 1092, parágrafo único).Não confundir com o pacto comissório do art. 745, vedado na hipoteca,

anticrese, penhor...

PROMESSA DE COMPRA E VENDA (COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA)

A matéria que passaremos a estudar a partir de agora envolve conhecimen-tos prévios sobre o Direito das Obrigações, especifi camente sobre as obriga-ções de fazer, e algo sobre o Direito das Coisas, especialmente quanto aos modos de aquisição da propriedade, o que os alunos deste período ainda não viram, mas que não impede uma breve lição.

Assim sendo, lembremos, inicialmente, a questão das obrigações de fazer.Sabemos que elas se dividem, fundamentalmente em duas espécies: obri-

gações de fazer fungíveis (que podem ser cumpridas por qualquer pessoa ou mais de uma pessoa) e obrigações de fazer infungíveis (que somente podem ser cumpridas pelo devedor).

São estas últimas que nos interessam diretamente.O Código Civil, em seu art. 880, determina:Art. 880: Incorre também na obrigação de pagar perdas e danos o devedor

que recusar a prestação a ele só imposta, ou só por ele exeqüível.Esse artigo é fruto do entendimento de que ninguém pode ser compelido

a fazer nada contra a sua vontade. Seria um atentado à liberdade e aos direi-tos fundamentais da pessoa forçá-la, obrigá-la mesmo (na base da força e da ameaça) a fazer o que não quisesse.

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Essa regra é refl etida no adágio latino “nemo praecise potest cogi ad factum” (ninguém pode ser coagido a prestar um fato determinado).

Assim, se alguém, por força de uma obrigação, tem que, por exemplo, pintar um quadro ou escrever um livro e resolve não cumprir tal prestação, qual seria a solução?

De acordo com o art. 880, apenas a reparação das perdas e danos.Pois bem. O contrato-promessa ou contrato preliminar, que é aquele con-

trato em que as partes se obrigam a celebrar um outro contrato, gera obri-gações dessa natureza, ou seja, obrigações de prestar declaração de vontade (para que se alcance o consentimento necessário para o contrato).

Por isso, se uma das partes resolve não cumprir com sua obrigação (que era exatamente no sentido de prestar sua vontade para o consentimento e, assim, formar o contrato — in idem placitum consensus) a princípio a outra não teria como obter o contrato esperado. Só caberia pleitear as perdas e danos.

PROMESSA DE COMPRA E VENDA

Sendo o contrato de promessa de compra e venda um contrato preliminar (em que o promitente-vendedor e o promitente-comprador se obrigam a celebrar um contrato de compra e venda em determinadas condições), com ele não era diferente. Se o vendedor desistisse da celebração do contrato de-fi nitivo, só restava ao comprador as perdas e danos e ele fi cava frustrado por não receber o imóvel almejado.

Era isso que ocorria com os contratos de promessa de compra e venda no início do século.

Nas primeiras décadas do séc. XX, com a alteração profunda no perfi l da população brasileira, que acompanhou a mudança da economia agrária para uma economia urbana, grandes massas migraram para as cidades, especial-mente no Rio e em São Paulo. Como sempre acontece nesses casos, houve escassez de imóveis e, conseqüentemente, grande valorização dos imóveis ur-banos. Com essa valorização, abriu-se espaço para a especulação e houve um verdadeiro “boom” de negociações com imóveis.

Agora entrando no segundo requisito da matéria, como vocês devem sa-ber, a propriedade imobiliária só se transfere com o registro no RGI (art. 530, I) e os contratos de compra e venda de imóveis com valor superior à taxa legal têm de ser celebrados sob a forma de escritura pública (art. 134, II). O registro pode ser feito por qualquer dos contratantes.

Há que se diferenciar, então, modo de aquisição (art. 530) e título de aquisição (a causa de aquisição da propriedade).

Como a maioria dos negócios com imóveis é sempre feita com o pagamento do preço em parcelas, geralmente não se dá a escritura pública até que o com-

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prador tenha pago o preço. Caso contrário, ele pode registrar a escritura e vir a ser dono antes da prestação integral do preço e, se acaso se torna inadimplente, o vendedor terá de intentar complicado procedimento para reaver o imóvel.

O contrato de promessa de compra e venda, que condiciona a celebração do contrato de compra e venda ao pagamento integral do preço, é uma das maneiras de resolver esse problema.

Por outro lado, o comprador precisava de um contrato para documentar o negócio e esse contrato era exatamente o contrato de promessa de compra e venda, no qual o vendedor se obrigava, quando pago integralmente o preço, é claro, a dar a escritura defi nitiva, que não exigia fosse por escritura pública.

Acontece que, como a valorização era grande, grande também passou a ser a tentação do vendedor, mesmo obrigado a celebrar o contrato defi nitivo, para des-cumprir o acordado e vender o imóvel para terceiro que lhe oferecesse muito mais.

Passou a ser vantajoso para o vendedor pagar as perdas e danos ao promi-tente-comprador (na idéia de que acima falamos — art. 888) e vender por melhor preço. Mesmo assim ele saía ganhando.

Esse procedimento estava amparado pelo art. 1.088 do Código Civil:Art. 1.088: Quando o instrumento público for exigido como prova do

contrato, qualquer das partes pode arrepender-se, antes de o assinar, ressar-cindo à outra as perdas e danos resultantes do arrependimento, sem prejuízo do estatuído nos arts. 1.095 a 1.097.

Veja-se que no contrato de compra e venda de imóvel a escritura pública não é forma necessária tão-só para a prova, mas para a existência do negócio.

Exatamente para evitar essa situação injusta e lesiva aos compradores, editou--se o Decreto-lei n. 58/37, que chamou a promessa de compra e venda de com-promisso de compra e venda. Assim rezam os considerandos do Decreto-lei:

“Considerando o crescente desenvolvimento da lotação de terrenos para venda mediante o pagamento do preço em prestações; considerando que as transações as-sim realizadas não transferem o domínio ao comprador, uma vez que o art. 1.088 do Código Civil permite a qualquer das partes arrepender-se antes de assinada a escritura de compra e venda; considerando que esse dispositivo deixa praticamente sem amparo numerosos compradores de lotes, que têm assim por exclusiva garan-tia a seriedade, aboa-fé e a solvabilidade das empresas vendedoras; considerando que, para segurança das transações realizadas mediante contrato de compromisso de compra e venda de lotes, cumpre acautelar o compromissário contra futuras alienações ou onerações dos lotes comprometidos...”

Compromisso de compra e venda

A confi guração atual do compromisso de compra e venda de imóveis no Direito brasileiro é fruto da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial

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a partir da promessa de compra e venda de imóveis, em função da necessi-dade de proteção aos promitentes compradores de terrenos urbanos contra a especulação.

Essa evolução foi inaugurada com o Decreto-Lei 58/37 que previu a possi-bilidade de adjudicação compulsória sobre o imóvel prometido à venda para aqueles que registrassem a promessa. Dizia respeito a imóveis loteados: “os compromissários têm o direito de, antecipando ou ultimando o pagamento inte-gral do preço, e estando quites com impostos e taxas, exigir a outorga da escritura de compra e venda” (art. 15).

Caso o promitente-vendedor a tanto se recusasse, poderia o compromis-sário propor ação de adjudicação compulsória (art. 16 com a redação da lei 6.014/73 que adaptou as disposições ao Código de Processo Civil de 1973).

A lei nº 6.766/79 substituiu o decreto-lei 58/37 quanto aos imóveis loteados:No art. 27, confi rmou o dever de outorga da escritura defi nitiva, estabe-

lecendo procedimento prévio à ação de adjudicação, que consistia em notifi -cação do promitente para outorga do contrato ou impugnação da pretensão junto ao Registro de Imóveis. Se o promitente não impugnar, registra-se a promessa e esta passa a reger as relações entre as partes, havendo a transferên-cia da propriedade com seu registro. Se houver impugnação, aí se dá a decisão judicial que pode importar na adjudicação.

É o que se chama de adjudicação compulsória.A sentença adjudica (atribui) o imóvel ao promitente-comprador e faz o

papel de título de aquisição.Além disso, nessa primeira fase, atribuiu-se direito “real” ao compromis-

sário do imóvel loteado:Art. 5º, DL58/37: A averbação atribui ao compromissário direito real

oponível a terceiro, quanto à alienação ou oneração posterior, e far-se-á à vis-ta do instrumento de compromisso de venda, em que o ofi cial lançará a nota indicativa do livro, página e data do assentamento.

A natureza desse direito é controvertida. Orlando Gomes, após tentar es-tabelecê-la, acaba por considerá-lo sui generis. Alguns nele vêem um direito real, outros não, já que não estaria enumerado— taxatividade.

Seria, a meu ver, um autêntico direito de exclusividade para a aquisição. Entendo ser possível dizer que, se se trata de um direito real, é um direito real sobre coisa alheia.

Efeitos:(i) Quando registrado o instrumento (o que lhe dá oponibilidade a tercei-

ros), impede a aquisição plena por terceiros (se fosse feita a cessão, ela estaria limitada pelo compromisso).

(ii) Permite que o compromissário o ceda a outrem.(iii) Se o compromissário, além de adquirir o direito real, ainda é investido

na posse do imóvel sobre o qual ele incide, acaba por adquirir todas as facul-

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dades do direito de propriedade do compromitente (usar, fruir e dispor — o que já podia através da cessão do direito real — mas até a conclusão da exe-cução do compromisso — pagamento integral do preço, por exemplo, seria, por óbvio, uma disposição limitada, ou seja, não da propriedade plena, que somente se adquiriria com a execução completa do compromisso).

Posteriormente, com a Lei 649/49 (que alterou o art. 22 do decreto-lei), tudo isso foi estendido aos imóveis não loteados (o art. 22 foi novamente modifi cado pela Lei 6.014/73 mas tão somente para adaptá-lo ao Código de Processo Civil de 1973).

O Código de Processo Civil previu a adjudicação:Art. 639: Se aquele que se comprometeu a concluir um contrato não

cumprir a obrigação, a outra parte, sendo isso possível e não excluído pelo título, poderá obter uma sentença que produza o mesmo efeito do contrato a ser fi rmado.

Art. 640: Tratando-se de contrato, que tenha por objeto a transferência da propriedade de coisa determinada, ou de outro direito, a ação não será aco-lhida se a parte, que a intentou, não cumprir a sua prestação, nem a oferecer, nos casos e formas legais, salvo se ainda não exigível.

A lei n. 6.766/79 substituiu, em grande parte o Decreto-lei nº 58/37, como vimos, com relação aos imóveis loteados, reforçando a proteção ao estabelecer a nulidade de qualquer estipulação incompatível com o compro-misso (art. 29).

No art. 25 considerou “irretratáveis os compromissos de compra e venda, cessões e promessas de cessão, os que atribuam direito a adjudicação compulsória e, estando registrados, confi ram direito real oponível a terceiros”.

Signifi ca que, para esses imóveis, a cláusula de arrependimento não tem qualquer efi cácia.

No que se refere aos imóveis não-loteados, continuou valendo o art. 22 do DL58/37, mas neles a cláusula de arrependimento surte efeito (geralmente se dá através das arras penitenciais).

Mas, mesmo neste caso, se o preço já estiver todo pago, perde-se o direito de arrependimento.

Requisitos para a adjudicação:

Nossa legislação atribuiu os efeitos acima descritos apenas aos compromissos que estivessem registrados. O STF chegou a confi rmar isso em decisões, somen-te admitindo a adjudicação compulsória com a inscrição do compromisso (ob-viamente, o direito real sempre dependeu da inscrição para que se adquirisse):

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Súmula 167, STF: Não se aplica o regime do Decreto-lei 58, de 10 de de-zembro de 1937, ao compromisso de compra e venda não inscrito no registro imobiliário, salvo se o promitente vendedor se obrigou a efetuar o registro.

No entanto, com a evolução doutrinária a que já se aludiu, a jurisprudên-cia passou a considerar dispensável a exigência do registro para a adjudicação compulsória (embora, é claro, continuasse a exigi-lo para o direito real).

É que a adjudicação é direito pessoal, que independe de registro.Hoje, para que o compromisso de compra e venda possa alcançar o ob-

jetivo que a legislação começou a perseguir com o decreto-lei 58/37 através da adjudicação compulsória (garantir a transferência da propriedade para o comprador), basta que esse compromisso:

(i) esteja quitado; e(ii) inexista cláusula de arrependimento.Na falta de qualquer disposição, presume-se que o compromisso é irretra-

tável.Por fi m, com uma recente lei (lei n. 9.785/99), que se refere tão somente a

imóveis loteados, retirou-se a exigência da sentença adjudicatória para servir como título de propriedade a ser levado a registro (acrescentou o §6º ao art. 26 da Lei 6766/79).

Agora, pelo menos para os imóveis loteados, basta levar ao registro direta-mente a promessa.

A tendência da jurisprudência, que já vai se verifi cando, é estender a facul-dade aos demais imóveis.

Quanto à rescisão do compromisso pelo não pagamento do preço, com o Decreto-lei 745/69, mesmo que contenha cláusula resolutiva expressa, não mais vigora a regra “dies interpellat pro homine”. É obrigatória a interpelação judicial para a constituição do devedor em mora. E pelos mesmos motivos que estendeu a adjudicação compulsória aos compromissos por instrumento particular, o STJ também estendeu a eles a obrigatoriedade de interpelação para que fossem rescindidos.

Súmula 76, STJ: A falta de registro do compromisso de compra e venda de imóvel não dispensa a prévia interpelação para constituir em mora o devedor.

CONTRATO PRELIMINAR

Natureza Jurídica

Após a evolução do Direito no que concerne aos contratos preliminares, e, no Direito brasileiro, principalmente em virtude da importância reconhecida ao contrato preliminar de compra e venda, passaram a existir duas teorias acerca de sua natureza:

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1) É a concepção tradicional, segundo a qual o pré-contrato seria um pac-tum de contrahendo, por via do qual as partes de comprometeriam a celebrar um contrato.

Assim sendo, seu objeto se restringiria à obrigação de celebrar tal contrato.Uma tal obrigação, portanto, sendo mera obrigação de fazer, se submete-

ria ao princípio “nemo praecise cogi potest as factum”:Assim sendo, seu descumprimento geraria apenas a obrigação de pagar as

perdas e danos.2) Para a segunda concepção sobre a natureza do contrato preliminar (que

se coloca no compromisso de compra e venda), este deixa de ser um mero contrato em que se estabeleça a obrigação de contratar, para se transformar em verdadeira fase do contrato defi nitivo.

Seria já início de execução do contrato defi nitivoTeria, portanto, força obrigatória.Aqui não há necessidade de uma nova declaração de vontade.As partes não se obrigam a dar o consentimento para o contrato defi niti-

vo, pois este já teria sido dado. Obrigam-se apenas a repeti-lo.Aqui as partes podem exigir que o contrato se torne efi caz.Nesse caso, será determinada a execução específi ca do contrato, se a outra

parte se recusar a cumprí-lo.Essa possibilidade foi inserida na legislação brasileira desde o CPC de

1939 (possibilidade de execução específi ca das obrigações de emitir declara-ção de vontade) e mantida no CPC atual, mas só se aplicava aos contratos já celebrados:

Isso é confi rmado por Orlando Gomes: “a execução do contrato de pro-messa mediante tal sentença só é admissível se não se considera atividade negocial o chamado contrato defi nitivo...”.

Para o Des. Luiz Roldão, mesmo os contratos preliminares podem ser objeto de adjudicação compulsória se contiverem todos os elementos e con-dições do contrato defi nitivo.

Na execução o juiz não se substitui à vontade da parte na celebração do negócio; não declara o consentimento que fora negado. “Ao determinar a adjudicação compulsória, mais não faz a autoridade judiciária do que deter-minar a execução sob forma específi ca de uma obrigação contratual que não foi voluntariamente cumprida”.

O STJ parece ter acolhido essa interpretação, pois admite a adjudicação compulsória dos compromissos de compra e venda mesmo não registrados, pela auto-executoriedade dos contratos.

A adoção de uma ou de outra concepção traz consequências importantes quanto aos Pressupostos e Requisitos:

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(i) Para a primeira concepção, sendo o contrato preliminar mero pacto de celebrar outro contrato, é autônomo em relação a este, pelo que os pressupos-tos e requisitos para a celebração deste não precisam ser observados desde já.

(ii) Diversamente, como para essa teoria o pré-contrato já caracteriza iní-cio de execução do contrato defi nitivo, os pressupostos e requisitos têm de ser observados de pronto, exceto o de forma:

Assim, em um compromisso de compra e venda de um imóvel, que já se pode considerar uma fase do contrato de compra e venda (este é “simples sequência daquele”, como ensina Orlando Gomes), a capacidade das partes para o contrato defi nitivo há de ser aferida desde já. Se é pessoas casada, precisa, já para a celebração do compromisso, da vênia conjugal (ex.: art. 11, §2º, DL58/37).

O interessante, é que (e aí se vê a aplicação da lógica da tese) se o com-promitente vendedor não é casado na época da celebração do compromisso, mas vem a casar entre essa celebração e a do contrato defi nitivo, não precisa da outorga (embora, na prática da advocacia preventiva aconselhe-se a tanto, a fi m de evitar problemas).

O STF entende assim.Já no que diz respeito à forma, vêm-se entendendo (e aqui de encontro à

lógica da tese) que não é necessária a forma pública para os compromissos de compra e venda de imóvel de valor superior ao da taxa legal.

A segunda concepção de contrato preliminar é aquela na qual se encaixa, no Direito brasileiro, a promessa de compra e venda de imóveis, loteados ou não, registrados ou não, já quitada e sem cláusula de arrependimento, que se toma aqui, a exemplo de Orlando Gomes e graças ao Decreto-Lei 58/37, por Compromisso de Compra e Venda.

No Direito brasileiro, afora o compromisso de compra e venda (e, obvia-mente, o que seria o compromisso de venda unilateral), todas as demais pro-messas continuam a ser tratadas segundo a concepção tradicional de contrato preliminar. Por isso é possível que se faça a distinção entre compromisso e promessa.

Promessa de compra e venda

A promessa de compra e venda continua a ser um contrato preliminar segundo a concepção tradicional.

Seu descumprimento leva apenas ao pagamento de perdas e danos.Serve para móveis por exemplo.

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Opção (promessa de compra e promessa de venda)

Não obstante a opinião em contrário de Orlando Gomes (que parece con-fundir a opção com a preferência), opção é a promessa unilateral de compra ou a promessa unilateral de venda, que só gera obrigação para uma das partes.

A sua denominação pode ter gerado essa confusão. Na verdade, confere ao benefi ciário um opção de compra (se caracteriza promessa de venda) ou uma opção de venda (caso caracterize promessa de compra) pois dada a opção, o benefi ciário pode escolher entre compra e não comprar ou entre vender e não vender (tudo a seu exclusivo critério), enquanto aquele que a deu fi ca obrigado a vender ou comprar se o benefi ciário escolher exercer sua opção.

Caso caracterize promessa de venda, pode dar lugar à adjudicação com-pulsória.

Preferência

A preferência (que Orlando Gomes parece chamar de opção) se dá quando alguém acerta com outrem que, caso resolva vender (ou comprar) uma deter-minada coisa, venderá (ou comprará) obrigatoriamente para este (ou deste).

De início, ao contrário da Opção, não gera obrigação para nenhuma das partes. Mas se aquele que deu a preferência para outro comprar resolver ven-der, terá de vender para este.

Assim sendo, não dá desde sua celebração, direito potestativo a uma das partes, diferentemente do que ocorre na opção.

Pode-se dizer que se trata de um contrato condicional: a obrigação só nas-ce se o que deu preferência quiser vender (ou comprar).

Sua natureza seria a de um contrato de promessa unilateral condicionado.Mas não teria a natureza de um compromisso pois ainda não conteria

todas as condições e elementos do contrato defi nitivo.Assim sendo, o descumprimento dos contratos de preferência geram ape-

nas obrigação de pagar perdas e danos (assim decidiu o STF).Não obstante, a lei reconhece efi cácia real a determinados contratos de

preferência (ex.: locatário tem preferência para adquirir o imóvel)Não se trata de direito real, mas de uma efi cácia real, que permite a sub-

-rogação ex nunc do celebrante original por aquele que tinha a preferência. Seria uma substituição.

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DIREITO DOS CONTRATOS

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11 É curioso destacar que, como na

compra e venda (‘emptio venditio’), o

contrato de locação era designado pela

posição de ambas as partes (‘locatio

conductio’).

TROCA

LOCAÇÃO

Os romanos falavam de locação de coisas, de serviços e de obra (locatio conductio rerum, locatio conductio operarum e locatio condutio operis11). Tais espécies correspondiam ao que atualmente chamamos de contrato de locação de coisas, contrato de prestação de serviços e contrato de empreitada.

O conceito de Aubry et Rau abrange as três fi guras: “a locação é o contrato pelo qual uma das partes, mediante remuneração que a outra se obriga a pagar, se compromete a fornecer-lhe ou a procurar-lhe, durante certo tempo, o uso e gozo de uma coisa (locação de coisa), a prestação de um serviço (locação de serviço) ou a execução de um trabalho determinado (empreitada)” (in Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva. 1962).

Tal unidade de conceituação é, todavia, atacada pela doutrina moderna sob a principal alegação de que o conceito de locação se liga àquilo que pode ser devolvido no término do contrato, o que não ocorre com os serviços e a empreitada:

“A expressão locação de serviços já não mais pode ter aceitação no direito moderno. Era explicável, quando ainda preponderava a idéia romanista de se considerar o trabalho humano como coisa, e, deste modo, possibilitando torná--lo objeto de relações jurídicas só adequadas aos bens. Esta nova terminologia, refere CUNHA GONÇALVES, é criticada por alguns jurisconsultos, fi rmados no ponto de vista do trabalho fazer parte de outros contratos, como os de serviço doméstico, empreitadas e transporte; mas, na verdade, diz o citado autor, a desig-nação — locação de serviços — é manifestamente errônea, porque o característico da locação é o regresso da coisa locada ao seu dono; ao passo que o serviço prestado fi ca pertencendo a quem o pagou, e não é suscetível de restituição” (Serpa Lopes, p. 151-2).

Por isso, hoje, o termo ‘locação’ somente é utilizado para locação de coisas.Não obstante essa diversidade de tratamento, dada à origem comum, os

caracteres básicos de cada uma dessas espécies são os mesmos:bilateralconsensualcomutativosinalagmáticonão soleneprincipal/acessórioExecução instantânea ou continuada? Continuada.típico

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E é pela locação de coisas que se inicia, devendo ser lembrado que a lo-cação de prédios urbanos, comerciais ou residenciais se coloca sob legislação específi ca, de acordo com a necessidade de proteção da moradia.

LOCAÇÃO DE COISAS

Causa e Caracteres:

É sempre interessante iniciar o estudo do contrato pela causa. Como visto, é ela que serve, em muitas vezes, para a distinção de uma fi gura e outra. A causa do contrato de locação de coisa é a troca do uso e gozo temporários de uma coisa por uma remuneração proporcional ao período do uso e gozo.

Vê-se logo que é um contrato oneroso, posto que realizado no interesse de ambas as partes e bilateral, pois gera obrigações para ambas as partes que são correspectivas (sinalagma) e certas (comutatividade).

Da temporariedade do contrato, extrai-se o dever de restituir a coisa ao tér-mino do prazo concedido (esse prazo se dá tanto no interesse do locador quanto do locatário), o que torna a locação de coisas incompatível com a fungibilidade. As coisas a serem restituídas devem ser as mesmas que foram entregues. Não fosse assim, o contrato se confundiria com o mútuo oneroso, embora nasça para o locador o dever de entrega que não existe nesta modalidade de empréstimo.

A onerosidade o distingue do comodato.

Conceito:

“É o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante contraprestação em dinheiro, a conceder à outra, temporariamente, o uso e o gozo de coisa não fungível” (Orlando Gomes).

Para Caio Mario é: “o contrato pelo qual uma pessoa se obriga a ceder tempo-rariamente o uso e gozo de uma coisa não fungível,mediante certa remuneração”.

Eduardo Espínola diz que “é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a conceder à outra, por tempo determinado, ou não, o uso e gozo de uma coisa não fungível, mediante certa retribuição” (p.306).

Note-se que as defi nições são quase idênticas, assim como a do Código:Art. 1.188, Código Civil de 1916: Na locação de coisas, uma das partes

se obriga a ceder à outra, por tempo determinado, ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição.

Art. 565, Novo Código Civil: Na locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição.

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Elementos:

Capacidade das Partes;Legitimidade das Partes;Objeto:Em princípio todos os bens, até direitos podem ser locados.Podem patentes, marcas.Não podem os bens fungíveis ou consumíveis, pois não teriam como ser

devolvidos.A verifi cação do objeto do contrato de locação de coisas é muito impor-

tante. Conforme seja um ou outro, o contrato pode receber tratamento dife-renciado. Se a locação é de prédios, busca-se o tratamento em seção especial do Código Civil de 1916 (o Novo Código Civil não mais trará a distinção); se a alocação é de prédios urbanos, o tratamento será, em geral, aquele da Lei nº 8.245/91.

O Código Civil de 1916 teve a pretensão de dar tratamento uniforme a todo tipo de locação de coisas, qualquer que fosse seu objeto (embora tratas-se, sob seções distintas, a locação de prédios urbanos e rústicos). No entanto, logo se viu que a locação de determinadas coisas, melhor dizendo, de prédios, especialmente se destinados a residências, merecia tratamento diferenciado, dadas as peculiaridades do tema.

É o que se verá mais adiante.A locação de imóveis urbanos, residenciais ou comerciais, passou a regu-

lar-se pela Lei 8.245/91, fi cando afastadas as regras do Código Civil de 1916.Mas essa lei remete de volta ao código as locações de vagas de garagens ou

estacionamentos, de espaços destinados a publicidade, apart-hotéis, hotéis residência ou assimilados, ou arrendamento mercantil.

Restaram, portanto, sob a regulação do Código Civil, as locações de coi-sas que não são alvo de legislação específi ca. Mesmo os prédios rústicos que mereciam distinção especial no Código Civil de 1916, serão totalmente dei-xados às regras genéricas e às leis especiais (no caso, o Estatuto da Terra, Lei nº 4.504/64). Os artigos 565 a 578 do Novo Código Civil se restringem a estabe-lecer as regras gerais, aplicáveis sempre que não afastadas pela norma específi ca.

São essas regras gerais que se passa a analisar, começando pelas obrigações do locador e do locatário.

Obrigações do Locador (art. 1.189/566):

(i) entregar a coisa ao locatário em condições de servir ao uso a que se destina:Trata-se realmente de uma obrigação de entregar, conforme a técnica que

a distingue das obrigações de dar “strictu sensu” e restituir, as outras sub-

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-modalidades da obrigação de dar. Não há transferência de direito real de propriedade através da tradição.

Mas também não há cessão de direito real sobre a coisa do locador. Ensina Eduardo Espínola que o direito conferido pelo locador ao locatário é um direito pessoal, de natureza obrigacional (p.307), que teria por objeto o uso e gozo da coisa, sem que se transfi ra o direito real de uso ou gozo. Diz que a coisa não é o objeto imediato da obrigação, mas o direito patrimonial pessoal de uso e gozo.

De fato, é este que é considerado na análise da causa de todo o contrato. De todo modo, para que o interesse do locatário seja satisfeito, é necessária a entrega da coisa. Por isso, o objeto imediato da obrigação do locador (entre-gar a coisa) é o comportamento de transferir a coisa para a pessoa do locatário e o objeto mediato a própria coisa.

É uma prestação de execução imediata.A coisa tem que estar em condições de instrumentalizar o uso a que se

destina. Por isso, o descumprimento não se dá tão somente com a falta da entrega, mas com a impropriedade da coisa para os fi ns a que se destina.

As regras sobre os vícios redibitórios se aplicam ao caso integralmente.Será possível falar-se em cumprimento defeituoso? Acredita-se que não,

visto que a coisa está ou não está nas condições de uso e gozo.(ii) manter a coisa em estado de servir ao uso a que se destina:Trata-se, esta sim, de uma prestação continuada, que se estende a toda a

duração do contrato.Tanto que o legislador especifi ca a responsabilidade eventualmente decor-

rente da deterioração:Art. 1.190: Se, durante a locação, se deteriorar a coisa alugada, sem culpa

do locatário, a este caberá pedir redução proporcional do aluguer, ou rescin-dir o contrato, caso já não sirva a coisa para o fi m a que se destinava.

Art. 567: Se, durante a locação, se deteriorar a coisa alugada, sem culpa do locatário, a este caberá pedir redução proporcional do aluguel, ou resolver o contrato, caso já não sirva a coisa para o fi m a que se destinava.

Mas as pequenas reparações, de estragos não causados pelo uso normal da coisa, cabem ao locatário.

É o que se vê do art. 1.206, parágrafo único, e do próprio art. 1.192 (obri-gações do locatário — item IV). No Novo Código Civil, do artigo 569, IV: O locatário é obrigado a restituir a coisa, fi nda a locação, no estado em que a recebeu, salvas as deteriorações naturais ao uso regular.

(iii) garantir o uso pacífi co da coisa:Isto é, resguardar o locatário de turbações de fato e de direito.Essas turbações podem ser do próprio locador ou de terceiros.Podem ainda ser de fato ou de direito.

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No que se refere às turbações de fato, há que se notar que, sendo o locatá-rio possuidor, também ele pode agir de per si para defender-se das agressões, conforme determina a lei (artigo 502/1.210, §1º: desforço incontinente).

As turbações de direito podem decorrer, por exemplo, (a) de um ato de administração, que prive parcialmente o locador de uma das faculdades de seu direito, que repercuta nas prerrogativas do locatário, como a proibição de determinada atividade; (b) do exercício de direito real pelo terceiro, inter-ferindo no uso do bem objeto do contrato, como na construção que retire a iluminação do imóvel (exemplo em Carvalho Santos, v.XVII, p.42); ou, mais comumente, (c) da pretensão do terceiro em haver um direito sobre a coisa locada (o exemplo é a servidão de passagem sobre o imóvel).

Art. 1.191/568: O locador resguardará o locatário dos embaraços e turba-ções de terceiros, que tenham ou pretendam ter direito sobre a coisa alugada; e responderá pelos seus vícios ou defeitos anteriores à locação.

Aqui também se incluem os vícios redibitórios e a evicção.

Obrigações do Locatário:

(i) servir-se da coisa para o uso a que se convencionou ou que se presuma dada a natureza da coisa e as circunstâncias (principalmente os usos do lugar):

Não se espera que um locatário de um carro de passeio faça o mesmo uso de um locatário de uma moto trail ou de um kart.

Art. 1.193/570: Se o locatário empregar a coisa em uso diverso do ajus-tado, ou do a que se destina, ou se ela se danifi car por abuso do locatário, poderá o locador, além de rescindir o contrato, exigir perdas e danos.

(ii) zelar pela coisa como se sua fosse.(iii) pagar pontualmente o aluguel:Essa é uma prestação de duração, de execução sucessiva, intermitente.(iv) levar ao conhecimento do locador as turbações de terceiros em que se

pretendam fundadas em direito.Pode levar também ao conhecimento as turbações de fato.Todavia, ressalte-se, por mais uma vez, que o locador é possuidor, ainda

que não pleno, e pode defender por si só a posse da coisa.(v) restituir a coisa ao término da locação, no estado em que a receber

salvo, é claro, as deteriorações naturais:É a obrigação de restituir correspondente à obrigação de entregar do locador.E se não restituir?Se for com a concordância tácita do locador, prorroga-se indeterminada-

mente, com o mesmo aluguel (art. 1.195/574).

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Se o locador quiser de volta e o locatário não restituir, sua posse se trans-forma em posse precária, sem título, injusta, e poderá ser compelido a pagar o aluguel que o locador estipular durante o tempo em excesso:

Art. 1.196: Se, notifi cado, o locatário não restituir a coisa, pagará, en-quanto a tiver em seu poder, o aluguer que o locador arbitrar e responderá pelo dano, que ela venha a sofrer, embora proveniente de caso fortuito.

Eduardo Espínola ensina que na legislação comparada não há disposição como esta, permitindo o arbítrio do locador. Mas a doutrina e a jurisprudên-cia sempre o limitaram: “entendem que o arbítrio do locador na hipótese não é ilimitado, devendo o aluguel ser razoável, embora, tratando-se de penalidade por infração contratual, possa ser superior ao justo preço (artigo 1.196 do CC). Na dúvida, é possível que o locador opte entre a ação de reintegração de posse com cobrança de perdas e danos contra o locatário e a ação de arbitramento do novo aluguel” (Arnoldo Wald, p. 344).

O Novo Código Civil segue essa orientação. Ao artigo 575, que corres-ponde ao 1.196, acrescenta no parágrafo único que: “se o aluguel arbitrado for manifestamente excessivo, poderá o juiz reduzi-lo, mas tendo sempre em conta o seu caráter de penalidade”.

É claro que o locador terá direito a reaver a coisa forçadamente, através de ação judicial.

Além disso, sua mora gera a inversão dos riscos. Ele passa a responder pe-los danos da coisa, mesmo que por fortuito.

Ainda assim, aplicar-se-á a regra da causalidade virtual negativa ou rele-vância negativa da causa virtual (artigo 957/399)

Extinção

A locação por prazo determinado cessa com o término do prazo, indepen-dentemente de notifi cação ou interpelação, podendo o locador exigir a coisa imediatamente (art. 1.194/573).

Antes de terminado o prazo, contudo, não podem as partes pôr fi m ao contrato. O artigo 1.193, parágrafo único estabelece:

Art. 1.193, Parágrafo Único: Havendo prazo estipulado à duração do contrato, antes do vencimento não poderá o locador reaver a coisa alugada, senão ressarcindo ao locatário as perdas e danos resultantes, nem o locatário devolvê-la ao locador, senão pagando o aluguer pelo tempo que faltar.

Ao que parece, o dispositivo contradiz o princípio da obrigatoriedade dos contratos e a regra quanto ao prazo. Ao dizer que o locador não poderá reaver a coisa alugada, senão ressarcindo ao locatário as perdas e danos, está, em ver-dade, afi rmando que o locador pode reaver a coisa alugada a qualquer tem-po, desde que pague as perdas e danos. A faculdade faz tabula rasa do prazo

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fi xado, dando ao locador a prerrogativa de descumprir com sua obrigação de fazer, transformando-a em perdas e danos.

E foi essa mesmo a interpretação dada ao dispositivo. Carvalho Santos, embora tenha afi rmado, nos comentários ao artigo, que a disposição seria “conseqüência, como as demais disposições que importam em ônus para o locador, de uma daquelas garantias principais do art. 1.189” (o locador é obrigado a garantir ao locatário o uso pacífi co da coisa alugada) e que “se ele pudesse rea-vê-la, estaria exercendo turbação a esse exercício pacífi co do direito do locatário” (v. XVII, p.77), em seguida, após citar a lição de Beviláqua, conclui que: “do texto em apreço resulta, sem dúvida, que o locatário não tem direito de escolher entre a indenização e a continuação do contrato, desde que o locador queira res-cindir o contrato” (idem, p.78)

O Novo Código Civil manteve a disposição de forma idêntica, conceden-do, todavia, ao locatário, o direito de retenção da coisa até que a indenização seja paga, direito esse que não estava previsto no regime anterior:

Art. 571, parágrafo único: O locatário gozará do direito de retenção en-quanto não for ressarcido.

Ainda que se reconheça um pequeno progresso por conta dessa inovação (e se lembre que, na prática, a indenização seria necessariamente fi xada em juízo), o dispositivo, como um todo, está ultrapassado. Refl ete o ideal liberal que presidiu a elaboração de nosso primeiro Código Civil, dando prevalência ao interesse do proprietário (que o locador é em regra) e, ao mesmo tempo, da incolumidade da vontade do devedor de prestação de fazer.

É claro que a crítica perde intensidade diante da proteção específi ca do caso das locações de imóveis urbanos, especialmente para fi ns residenciais, presente no próprio Código Civil e nas leis do inquilinato.

Reconhecendo o novo código, como princípios, a função social do con-trato (art. 421) e a boa-fé (art. 422), esta mandando que sejam considerados os interesses mútuos, as expectativas legítimas dos contratantes e a confi ança gerada no contrato entre eles, sem falar na opção constitucional pela função social da propriedade (artigo 5º, XXIII), exsurge como uma pústula, um cor-po estranho, a concessão da faculdade ao locador.

Há que se lembrar, ainda, o esforço técnico jurídico para a garantia da efetividade e a conseqüente implementação da execução específi ca de certas prestações de fazer, com o repúdio à cômoda (para o devedor) resolução da obrigação em perdas e danos. Também contra essa tendência se coloca o dis-positivo.

O mesmo não se pode dizer da faculdade correspondente, dada ao loca-tário, de, a qualquer tempo, dar por fi ndo o contrato, desde que indenize o locador. Afi nal, resta assegurada, pela indenização equivalente ao tempo restante, a sua satisfação.

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O artigo 572 não deixa, contudo, que essa obrigação atinja dimensões desproporcionais, permitindo a revisão da indenização pelo juiz:

Art. 572: Se a obrigação de pagar o aluguel pelo tempo que faltar cons-tituir indenização excessiva, será facultado ao juiz fi xá-la em bases razoáveis.

A locação por prazo indeterminado, cessa quando qualquer das partes qui-ser dá-la como fi nda.

A locação se extingue também pelas demais formas de extinção dos con-tratos, inclusive pela rescisão em caso de inadimplemento.

A morte do locador ou do locatário não extingue o contrato, cujos direitos e obrigações passam aos herdeiros (art. 1.198/577).

E a venda da coisa?A locação assegura direito real ao locatário?Não, apenas direito pessoal, de modo que o adquirente só fi ca obrigado a

respeitar a locação se houver cláusula específi ca no contrato de locação e este estiver registrado no registro público (art. 1.197/576).

Direito de Retenção

Em caso de benfeitorias necessárias ou úteis, se feitas com o consentimen-to expresso do locador (art. 1.199/578).

LOCAÇÃO DE IMÓVEIS URBANOS (LEI 8245/91)

As regras do Código Civil, há muito foram afastadas por regras especiais no que diz respeito à locação de imóveis residenciais e comerciais, exatamente um dos objetos mais importantes do contrato de locação, um dos mais pre-sentes na vida do público em geral.

Já tivemos, desde o começo do século, 3 leis do inquilinato.A última é a lei 8.245/91 que regula não só as regras quanto às locações

residenciais, mas também quanto às locações comerciais, reunindo-as em um só diploma.

Já falamos (várias vezes até) que o Código Civil foi elaborado no auge do domínio das idéias liberais, em que se considerava a vontade dos contratan-tes soberana, até mesmo porque se os considerava iguais e livres na mesma medida. Mas os pressupostos para essa soberania da vontade, exatamente essa igualdade e liberdade na mesma medida acabaram se mostrando uma falácia, uma irrealidade.

As crises econômicas, a pobreza, a miséria, o domínio do capital e da informação por alguns poucos, mostraram que na verdade não há igualdade entre as pessoas e, portanto, se uma encontra-se em situação mais favorável

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FGV DIREITO RIO 254

que outra, acaba fi cando também em posição de impor-lhe sua vontade, dan-do possibilidade a que os contratos se transformem em instrumentos legais de chancela à injustiça, ao desequilíbrio.

Para evitar esse desequilíbrio, o Estado, derrubando um dos princípios contratuais mais caros aos liberais (a autonomia da vontade), acabou interfe-rindo na elaboração e nos termos dos contratos, para tentar restabelecer uma condição de igualdade entre as partes.

Um dos maiores exemplos dessa interferência, se deu no campo das loca-ções, exatamente em razão da essencialidade desses contratos na vida do povo em geral, eis que envolve a moradia, um item indispensável à dignidade de qualquer cidadão.

Assim, se no começo do século as regras liberais do Código Civil não aten-taram contra o equilíbrio entre as partes, já na década de vinte mostraram-se insufi cientes e causa de alguns abusos em razão de uma crise no mercado imobiliário, até mesmo agravada por contingentes de migrantes do campo para as cidades, que acabou aumentando em muito o valor dos imóveis dis-poníveis e permitindo a especulação por parte dos proprietários e locadores.

Desde essa época então, o Estado passou a interferir nas relações de loca-ção de imóveis residenciais com a primeira lei do inquilinato de 1921. Esta e as outras foram em 1928 revogadas, voltando-se às regras do Código. A partir de 1942, novas leis do inquilinato foram elaboradas continuamente, até a Lei de 1991.

Nessa última lei, já se nota um abrandamento das regras cogentes, voltan-do o legislador, em relação às demais, a dar uma maior liberdade às partes, mas ainda mantendo imposições sobre pontos que entende essenciais.

Lembrar que o objetivo da aula não é o estudo da Lei 8245, só fazer alguns paralelos entre ela e as regras do Código Civil.

Objeto:O objeto da lei são as locações urbanas, comerciais e residenciais.A lei remete expressamente ao Código Civil, as locações de imóveis da

União, vagas de garagem, apart-hotéis, etc. (art. 1º).Uma das principais preocupações de todo legislador inquilinário foi a es-

peculação quanto ao valor do aluguel que pode ser facilmente evitada com regras ditadas quanto à duração do contrato. É que a especulação se fazia com o uso da possibilidade de retomada do imóvel pelo locador, para passá-lo a um outro locatário que estivesse, premido pela crise de habitações, disposto a pagar bem mais. Note-se que, mesmo havendo multa pelo término ante-cipado do contrato ou perdas e danos, muitas vezes valia a pena pagá-la ou sofrer a ação.

Vejam que o Código Civil acabava permitindo a retomada:Art. 1.193, Parágrafo Único: Havendo prazo estipulado à duração do

contrato, antes do vencimento não poderá o locador reaver a coisa alugada,

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FGV DIREITO RIO 255

senão ressarcindo ao locatário as perdas e danos resultantes, nem o locatário devolvê-la ao locador, senão pagando o aluguer pelo tempo que faltar.

Assim, constaram sempre das leis do inquilinato regras quanto à duração do contrato e a retomada, valendo ressaltar que a última lei restitui ao locador a denúncia vazia, ou seja, a retomada sem necessidade de justifi cação nos con-tratos por prazo indeterminado com duração igual ou superior a trinta meses.

Dessa forma, com relação à duração dos contratos, o legislador determi-nou que os contratos de duração inferior a 2 anos e meio (30 meses), se inde-terminam e só podem ser denunciados de forma vazia pelo locador após um prazo de 5 anos (60 meses).

É uma forma de, sem limitar a autonomia das partes, evitar abusos do locador. Pois se o locador quiser impor um contrato de menor duração, o locatário já estará, se não concordar, automaticamente com seu direito a fi car no imóvel prorrogado e não até 30 meses, mas até 60 meses. É uma forma de “puxar a orelha” do locador que tenha imposto contrato de menor duração.

E isso porque, durante o período de vigência do contrato, o locador não pode reaver o imóvel:

Art. 4º: Durante o prazo estipulado para a duração do contrato, não po-derá o locador reaver o imóvel alugado. O locatário, todavia, poderá devolve--lo, pagando a multa pactuada, segundo a proporção prevista no art. 924 do Código Civil e, na sua falta, a que for judicialmente estipulada.

Só após os 60 meses é que pode haver a denúncia vazia.Art. 47: Quando ajustada verbalmente ou por escrito e com prazo inferior a

30 (trinta) meses, fi ndo o prazo estabelecido, a locação prorrogar-se-á automa-ticamente, por prazo indeterminado, somente podendo ser retomado o imóvel:

I. — nos casos do art. 9º;Art. 9º: A locação também poderá ser desfeita:I. — por mútuo acordo;II. — em decorrência da prática de infração legal ou contratual;III. — em decorrência da falta de pagamento do aluguel e demais encargos;IV. — para a realização de reparações urgentes determinadas pelo poder

público, que não possam ser normalmente executadas com a permanência do locatário no imóvel ou, podendo, ele se recuse a consenti-las.

II. — em decorrência de extinção do contrato de trabalho, se a ocupação do imóvel pelo locatário estiver relacionada com seu emprego;

III. — se for pedido para uso próprio, de seu cônjuge ou companheiro, ou para uso residencial de ascendente ou descendente que não disponha, assim como seu cônjuge ou companheiro, de imóvel residencial próprio;

IV. — se for pedido para demolição e edifi cação licenciada ou para a re-alização de obras aprovadas pelo Poder Público, que aumentem a área cons-truída em, no mínimo, 20% (vinte por cento) ou, se o imóvel for destinado à exploração de hotel ou pensão, em 50%.

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FGV DIREITO RIO 256

V. — se a vigência ininterrupta a locação ultrapassar 5 (cinco) anos.Se as partes obedecerem direitinho e estipularem o contrato por período

não inferior a 30 meses, o término do contrato se fará segundo a vontade delas, ou seja, no prazo estipulado e o imóvel poderá ser desde já retomado pelo locador.

Art. 46: Nas locações ajustadas por escrito e por prazo igual ou superior a trinta meses, a resolução do contrato ocorrerá fi ndo o prazo estipulado, independentemente de notifi cação ou aviso.

§ 1º: Findo o prazo ajustado, se o locatário continuar na posse do imóvel alugado por mais de trinta dias sem oposição do locador, presumir-se-á pror-rogada a locação por prazo indeterminado, mantidas as demais cláusulas e condições do contrato.

§ 2º: Ocorrendo a prorrogação, o locador poderá denunciar o contrato a qualquer tempo, concedido o prazo de trinta dias para desocupação.

E a lei não dá o mole do Código Civil:Art. 4º: Durante o prazo estipulado para a duração do contrato, não po-

derá o locador reaver o imóvel alugado. O locatário, todavia, poderá devolvê--lo, pagando a multa pactuada, segundo a proporção prevista no art. 924 do Código Civil e, na sua falta, a que for judicialmente estipulada.

Mas o prazo, pode ser qualquer um, sendo que se for superior a 10 anos, deverá contar a vênia conjugal (art. 3º).

Aluguel:É livre a fi xação (art. 17).Se é livre a fi xação, nada mais lógico que ser livre, também, a inserção ou

modifi cação de cláusula de reajuste (art. 18).Mas às vezes fi cam limitados por legislação específi ca, como a da Lei

8178/91 (reajustes não podem ser feitos em períodos inferiores a 6 meses — para os imóveis com habite-se antes de 1991 e alugados antes de 1996).

Não pode haver reajuste em razão de correção monetária durante 1 ano — plano real (Lei 9.069/95, art. 2º, § 1º).

Se não houve previsão de reajuste e durante três anos não se chegar a acor-do, isto é, após três anos do aluguel sem alteração, pode-se pedir a revisão judicial.

VendaNo caso de venda do imóvel a terceiro, o locatário tem os direitos de:(i) Preferência:Art. 27.Em igualdade de condições.Prazo de 30 dias para o exercício (art. 28).(ii) Permanência se a venda for efetivada a terceiro:Se a locação for por tempo determinadoSe o contrato estiver averbado no RGI.

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Principais Deveres:Do locador (art. 22)Do locatário (art. 23).Falar sobre locações comerciais:Direito de Renovação (visa à proteção do fundo de comércio):A lei é bem didática.Requisitos para a renovação (art. 51):(i) contrato com prazo determinado(ii) prazo => 5 anos (ainda que soma dos prazos anteriores)(iii) locatário esteja explorando mesmo ramo por pelo menos 3 anos.(iv) ajuizamento da ação no prazo de 6 meses antes do término.

PRESTAÇÃO DE SERVIÇO

Terminologia

Já se viu que o direito moderno não aceita a utilização do termo ‘locação’ se não há uma coisa a ser restituída. Por isso, preferiu-se o termo ‘prestação’ em seu lugar.

O Código Civil de 1916 ainda se referia ao fenômeno como ‘locação de serviços’, inserindo suas regras em seção do capítulo destinado à locação (ar-tigos 1.216 a 1.247).

Tentou dar, como dito, tratamento uniforme a todas as espécies de locação que regulava, no que foi suplantado pelo posterior desenvolvimento do Di-reito do Trabalho, que reduziu signifi cativamente sua aplicação nesse campo. O novo Código Civil já se utiliza do termo ‘prestação de serviços’ e ressalva expressamente a subsidiariedade às leis trabalhistas (artigos 593 a 609).

Prestação de Serviços & Contrato de Trabalho

Apenas nas situações excluídas do âmbito do Direito do Trabalho será possível enquadrar as regras do Código Civil.

Geralmente, o contrato de trabalho se caracteriza por um vínculo de subor-dinação, pela continuidade e pela presença de um empregador profi ssional.

Na lição de Orlando Gomes, o trabalho autônomo, portanto, não se in-clui como objeto de um contrato de trabalho.

Mas seria sempre prestação de serviços?Considerando que comumente envolve um resultado concreto, uma obra,

pode confi gurar o contrato de empreitada que, para grande parte da doutri-na, se distinguiria da prestação de serviços exatamente por conta desse resul-

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FGV DIREITO RIO 258

tado (a empreitada se caracterizaria pela existência de um resultado esperado, ou seja, a obra).

Prestação de Serviços & Empreitada

É o momento de fazer alusão a essa distinção. Na prestação de serviços, o tomador dos serviços tem interesse na atividade por si só. Na empreitada, o interesse recai na obra contratada, no resultado que, ainda assim, não precisa ser efi caz:

“No primeiro (locação de serviços), há prestação de força de trabalho, físico ou intelectual, enquanto no segundo (empreitada ou locação de obra) promete-se uma obra (werke), material ou imaterial, que é o resultado (erfolg) a obter, a causa do contrato. A empreitada não se confunde também com o contrato de oferecimento de serviço de terceiro. O resultado procurado na empreitada não precisa necessa-riamente ser efi caz; em certos casos a efi cácia não pode ser garantida. O critério do resultado é o preferido pela doutrina civilista” (Orlando Gomes, p.299).

Nessa idéia, um médico poderia ser tomado por empreiteiro ao se vincular a uma determinada cirurgia. O mesmo se diria do advogado que promete entregar um parecer.

No entanto, por razões nem sempre determinadas, talvez encontradas na tradição elitista, há uma certa resistência na caracterização de determinadas atividades intelectuais como empreitada, o que difi culta ainda mais a dife-renciação:

“Inspira-se a distinção possivelmente em resíduos persistentes da diferença en-tre trabalho manual e intelectual, ou, mais precisamente, no caso, entre obra material e a que se caracteriza pela predominância manifesta da atividade inte-lectual. No Direito Romano, a distinção se fazia com tal rigor que as artes liberais eram objetos do contrato de mandato, essencialmente gratuito. Embora esse con-trato tenha adquirido nova contextura no direito moderno, perdura ainda a idéia de que os serviços prestados por certos trabalhadores intelectuais, notadamente os que exercem profi ssão liberal, não devem ser equiparados aos dos trabalhadores braçais. Em vez de mandato, admite-se que a atividade profi ssional daqueles, exercida em determinadas circunstâncias, se realiza sob forma jurídica que se contém, como uma de suas modalidades, no conceito amplo da antiga locação de serviço, embora, em outras circunstâncias, possa ser objeto do próprio contrato de trabalho, ou do contrato de empreitada. Ter-se-á, então, o contrato de prestação de serviços” (idem, p.292).

Seriam essas atividades intelectuais (ou que se esgotam em si mesmas), o objeto comum do contrato de prestação de serviços.

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Prestação de Serviços & Mandato

Além do contrato de trabalho e do contrato de empreitada, é importante diferençar o contrato de prestação de serviços do contrato de mandato:

“Avizinham-se cada vez mais na vida moderna, sendo que, na sua última fi -nalidade econômica, têm por precípuo fundamento uma prestação, um trabalho, que tanto o mandatário como o locador de serviços realizam em favor do credor do trabalho” (Serpa Lopes, p.192).

No mais das vezes se distinguem pela representação. Esta é comum ao contrato de mandato. A prestação de serviços não a contém.

“O mandato e a gestão de negócios acusam a presença da representação, de-legada no primeiro e ofi ciosa no segundo, distinguindo-os de toda outra espécie contratual em que uma pessoa põe a sua atividade como prestação” (Caio Mario, p.260).

Contudo, foi visto que há casos de mandato sem representação, embora raros, para os quais não valeria a separação.

Poder-se-ia dizer que no mandato há o objetivo de realizar ato jurídico (caráter negocial) ou administrar patrimônio; na prestação de serviços, o ob-jeto são atos desvinculados de um negócio ou da administração do patrimô-nio do comitente. No mandato, quando não há representação, há interesse de transferir os benefícios da atuação do mandatário; na prestação de serviços essa transferência é desnecessária. A própria realização da atividade do presta-dor encerra o interesse do comitente.

Conceito:

Conforme Caio Mario, é o contrato em que “uma das partes se obriga para com a outra a fornecer-lhe a prestação de uma atividade, mediante remuneração” (p.262).

Orlando Gomes é mais detalhista: “o contrato mediante o qual uma pessoa se obriga a prestar um serviço a outra, eventualmente, em troca de uma remune-ração, executando-o com independência técnica e sem subordinação hierárquica” (p.292).

O Código Civil não o conceitua.Por detrás dessa conceituação, a causa do contrato: a troca de uma ativi-

dade por uma remuneração.E daí se vê que o contrato de prestação de serviços é aquele em que uma

obrigação de fazer se erige em prestação essencial, de modo que seu regra-mento sofre infl uência das peculiaridades desse tipo de obrigação: “a locação de serviços difere da locação de coisas principalmente nisto: em regra geral, o locador de coisas, se não cumpre sua obrigação de entregá-la ao locatário, pode

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DIREITO DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 260

12 “Vasto é o campo da contratação

de serviços através da empreitada,

tornando-se comum em construções e

demolições de edifícios e casas, abertura

de ruas e estradas, implantação de infra-

-estrutura de loteamentos, reformas e

pinturas de prédios, reparos em bens

móveis, plantações, ajardinamentos,

colocação de cercas em campos e pas-

tagens, fabricação de mobiliários, der-

rubada de matas, lavração de terrenos

para culturas agrícolas, drenagem e ter-

raplanagem, etc. Nos trabalhos intelec-

tuais, como o organização de uma ópera,

ou a elaboração de obras literárias e

técnicas mais propriamente se tipifi ca a

locação de serviços, mormente quando

se apresenta uma subordinação entre as

partes e a remuneração é estabelecida

segundo a qualidade do trabalho que

se desenvolverá. Mas, nada impede a

consideração da atividade como emprei-

tada, pois é comum se estipular a criação

de uma obra artística, ou a redação de

um livro dentro de especifi cações pro-

gramadas, e mediante o pagamento de

uma valor previamente estabelecido”

(Arnaldo Rizzardo, p.452).

ser forçado a fazê-lo, enquanto o locador de serviços não pode ser constrangido a prestá-los, porque ‘nemo potest cogi ad factum’, fi cando, ao revés, obrigado uni-camente a indenizar os danos sofridos pelo locatário. Como exceção, porém, se a locação versa sobre uma obra que possa ser executada por outrem, pode o locatário fazê-la executar à custa do locador” (Carvalho Santos, v.XVII, p.217).

Do conceito vislumbram-se seus caracteres: bilateralidade, onerosidade, comutatividade e consensualidade.

Há caráter intuitu personae: artigo 1.232 (605).

Elementos:

Partes capazes.Partes legitimadas.Objeto: qualquer serviço, material, imaterial, intelectual, braçal: artigo

1.219 (594).É nesse ponto, dada a identidade do objeto com a empreitada12, que cabe

apontar suas diferenças.(i) uma delas já foi considerada, sendo mesmo a mais signifi cativa. As ou-

tras, porém, não são destituídas de relevância. Servem, ainda que inaplicáveis à totalidade das circunstâncias, para auxiliar na distinção.

(ii) no contrato de prestação de serviços, o prestador fi ca sob as ordens do contratante, enquanto que na empreitada o a obra é dirigida pelo empreiteiro;

(iii) no contrato de prestação de serviços, os riscos da atividade estão por conta do contratante, enquanto que na empreitada estão por conta do em-preiteiro.

(iv) em geral, a remuneração na prestação de serviços se acerta pelo tempo de atividade, enquanto que na empreitada fi xa-se pela obra encomendada.

Na prestação de serviços, paga-se, em geral, após a prestação, mas nada impede que as partes convencionem diversamente:

Art. 1.219 (597): A retribuição pagar-se-á depois de prestado o serviço, se, por convenção, ou costume, não houver de ser adiantada, ou paga em prestações.

Se não houver fi xação, a remuneração poderá decorrer de arbitramento, conforme o artigo 1.218 (596).

Se o objeto não for defi nido, entender-se-á como abrangendo toda a ativi-dade comportável nas forças e na habilidade do prestador.

Forma: livre.Prazo:Indisponível que é a liberdade do homem, o legislador não poderia com-

pactuar com a vigência indeterminada do contrato. Assim, limita sua duração em 4 (quatro) anos (artigo 1.220 (598)):

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Art. 1.220 (598): A locação de serviços não se poderá convencionar por mais de 4 (quatro) anos, embora o contrato tenha por causa o pagamento de dívida do locador, ou se destine a execução de certa e determinada obra. Neste caso, decorridos 4 (quatro) anos, dar-se-á por fi ndo o contrato, ainda que não concluída a obra.

Se as partes não estipularem o prazo, qualquer delas pode por fi m ao con-trato, havendo necessidade de um aviso prévio:

Art. 1.221 (599): Não havendo prazo estipulado, nem se podendo inferir da natureza do contrato, ou do costume do lugar, qualquer das partes, a seu arbítrio, mediante aviso prévio, pode rescindir o contrato.

Mas a própria natureza da prestação devida pode servir na delimitação do prazo: se o prestador se vincular a uma obra determinada, o prazo do con-trato é aquele da duração da obra (mesmo assim, incide a restrição do artigo 1.220):

Art. 1.225 (602): O locador contratado por tempo certo, ou por obra determinada, não se pode ausentar, ou despedir, sem justa causa, antes de preenchido o tempo, ou concluída a obra.

Extinção (art. 1.222 (607)):

Morte de qualquer das partes.Decurso do prazo.Decurso de 4 anos (art. 1.220 (598).Conclusão da obra.Resilição com aviso prévio (art. 1.221 (599).Despedida com justa causa: do prestadorDespedida sem justa causa:do prestador (art. 1.225, parágrafo único (602):enseja indenização por perdas e danosmas o prestador tem direito à remuneração vencidado tomador (art. 1.228):enseja indenização equivalente à metade da vincendaInadimplemento (resolução por culpa).Impossibilidade (resolução sem culpa).

EMPREITADA (EMPREITEIRO E DONO DA OBRA)

Inserido pelo Código Civil de 1916 dentre o esquema da locação, por conta da similitude histórica (suas regras estão agrupadas em seção do capítu-lo sobre a locação), a empreitada na verdade ganhou confi guração ontológica

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própria, que se deu com a revisão do conceito de trabalho ou serviço humano, hoje não mais identifi cado como coisa. O Novo Código Civil, adequando-se a essa visão, destina espaço próprio para o contrato, desvinculado da ‘locatio’.

Aproxima-se de outros tipos contratuais, especialmente da prestação de serviços (cujas distinções já se fi zeram), do mandato e da compra e venda.

Com este assemelha-se na modalidade mista, onde há fornecimento de materiais pelo empreiteiro. Mas a simples verifi cação do conteúdo prepon-derante os afasta.

Na compra e venda, transparece como primordial o interesse do compra-dor na coisa. Nessa coisa, tal interesse se esgota.

Já na empreitada, o interesse do dono da obra não se dirige aos materiais em si, mas ao produto de sua transformação e integração (a obra).

O problema se resolve com a verifi cação da causa: “o importante da questão assenta na função da prestação preponderante; na empreitada, o ‘fare’; na compra e venda, o ‘dare’” (Serpa Lopes, p.226).

O mandato e a empreitada poderiam se confundir porque aquele também pode ter por objeto a realização de uma atividade com vistas a um resultado concreto. A distinção, aqui, é mais fácil que aquela entre mandato e prestação de serviços.

No mandato sempre haverá uma relação de subordinação entre o man-datário e o mandante. Na empreitada essa subordinação não se verifi ca. O empreiteiro age por si, sem que esteja sob as ordens do dono da obra.

Conceito:

“É o contrato através do qual uma das partes (empreiteiro) se obriga, sem subordinação ou dependência, a realizar certo trabalho para a outra (dono da obra), com material próprio ou por este fornecido, mediante remuneração global ou proporcional ao trabalho executado” (Caio Mario, p. 221).

Embora pareça completo, o conceito não é dos melhores, visto que se vale do termo ‘trabalho’ em lugar de ‘obra’, esta o resultado fi nal do trabalho que reside no interesse do comitente e que caracteriza a fi gura.

A defi nição de Clóvis, mais concisa, é, nesse ponto, mais precisa: “é a locação de serviço em que o locador se obriga a fazer ou mandar fazer certa obra mediante retribuição determinada ou proporcional ao trabalho executado”

A defi nição peca, todavia, por mencionar ‘locação de serviço’.A ‘obra”, conforme Orlando Gomes, é “todo resultado a se obter pela ativi-

dade ou pelo trabalho” (p.297).É o objeto do contrato na perspectiva do tomador, o que torna a princi-

pal obrigação do empreiteiro uma obrigação de resultado, o que por sua vez

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infl uencia o tratamento da espécie, já que está previsto no contrato como sua fi nalidade.

Essa fi nalidade é tão marcante que mantém a unidade da fi gura na moda-lidade de empreitada mista, onde há fornecimento de materiais. Tal forne-cimento fi ca subjacente à obrigação de fazer, que prepondera. Fica sujeito a uma relação de acessoriedade.

Mas o fazer não se prende à pessoa do empreiteiro. Este pode delegá-lo a terceiro, o que retira da empreitada qualquer caráter “intuitu personae”. É o sentido da expressão ‘fazer ou mandar fazer’ na defi nição de Beviláqua.

Elementos:

Partes Capazes.Partes Legitimadas.Objeto:

Obra

A empreitada, como se viu, sempre vai envolver uma atividade e a entre-ga de uma obra. Mas pode envolver também a entrega dos materiais pelo empreiteiro, caso em que reveste diferente modalidade, à qual se conectam algumas peculiaridades no tratamento.

Tem-se, pois, a empreitada de lavor e a empreitada mista ou de adminis-tração (arts. 1.237 (610)):

Art. 1.237: O empreiteiro de uma obra pode contribuir para ela ou só com seu trabalho, ou com ele e os materiais.

Os riscos variam conforme se trate de uma ou de outra.Se for de lavor, os riscos da obra correm por conta do dono da obra:Art. 1.239: Se o empreiteiro só forneceu a mão-de-obra, todos os riscos,

em que não tiver culpa, correrão por conta do dono.O empreiteiro só responde por culpa.Este artigo diz respeito aos riscos do perecimento ou deterioração da obra,

ainda que incompleta, entre a contratação e a entrega da obra.Mas este artigo tem que se complementar com o art. 1.240, pois este de-

termina que se a obra ainda inacabada, antes da entrega, se perder, o emprei-teiro perde o salário. Só não perde se provar que a perda decorreu de defeitos do material e que alertou o dono da obra:

Art. 1.240: Sendo a empreitada unicamente de lavor (art. 1.239), se a coisa perecer antes de entregue, sem mora do dono, nem culpa do emprei-teiro, este perderá também o salário, a não provar que a perda resultou de

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FGV DIREITO RIO 264

defeito dos materiais, e que em tempo reclamara contra a sua quantidade ou qualidade.

Isso acaba fazendo com que, na verdade, o dono da obra não assuma todos os riscos como consta do art. 1.239.

É que o empreiteiro, ao perder o salário mesmo sem culpa, está sofrendo o risco quanto a seu trabalho.

Mas nada mais justo, como demonstra Beviláqua (in Carvalho Santos, pág. 324). Se o empreiteiro contribui com seu trabalho e o dono da obra com os materiais e a obra é formada pela conjunção de ambos (trabalho + materiais), se a obra se perde, sem culpa de nenhum dos dois, cada um deve arcar com a perda de sua contribuição.

Veja que isso vai ao encontro da regra res perit domino, pois o empreiteiro é dono de seu trabalho e o dono da obra, dono dos materiais.

Podemos reconhecer, então que:(i) se a obra perece por fortuito, sem mora do dono, o empreiteiro perde

o valor de seu trabalho e o dono o valor dos materiais;(ii) se a obra perece por fortuito com mora do dono, este arcará com os

riscos e terá que pagar o salário do empreiteiro.(ii) se a obra perece em razão de defeito nos materiais, o empreiteiro rece-

be o salário mesmo assim, se avisou a tempo o dono(iii) se a obra perece por culpa do empreiteiro, este obviamente responde.Se for mista, o empreiteiro sempre suporta os riscos. Seu ônus só será ate-

nuado se o dono da obra estiver em mora de receber:Art. 1.238: Quando o empreiteiro fornece os materiais, correm por sua

conta os riscos até o momento da entrega da obra, a contento de quem a en-comendou, se este não estiver em mora de receber. Estando, correrão os riscos por igual entre as partes.

Aqui a solução da lei é totalmente injusta, ainda que se considere que está obrigando o dono da obra a ressarcir metade dos gastos, pois, a regra geral dos riscos é que em caso de mora, estes se invertem. Assim, deveria o dono da obra que estava em mora de receber a obra, produto do trabalho e dos materiais fornecidos pelo empreiteiro, suportar a diminuição patrimonial em lugar deste que cumpriu com todos os seus deveres.

O Novo Código Civil soluciona essa injustiça:Art. 611: Quando o empreiteiro fornece os materiais, correm por sua

conta os riscos até o momento da entrega da obra, a contento de quem a encomendou, se este não estiver em mora de receber. Mas se estiver, por sua conta correm os riscos.

A obra pode ser realizada em partes distintas ou por medida. Nesse caso, o pagamento poderá se fazer em parte ou proporcionalmente. A hipótese tem importância no que refere à prova de existência de eventuais defeitos ocultos:

Art. 614, §1º: Tudo o que se pagou presume-se verifi cado.

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Art. 614, §2º: O que se mediu presume-se verifi cado se, em 30 (trinta) dias, a contar da medição, não forme denunciados os vícios ou defeitos pelo dono da obra oupor quem estiver incumbido da sua fi scalização.

Preço

O outro objeto do contrato é o preço ou retribuição (na linguagem do Novo Código Civil).

Em regra, o empreiteiro suporta os riscos da variação do preço nos con-tratos de empreitada.

Não importa se a mão-de-obra aumentou ou o custo dos materiais.Ele terá de responder. Exatamente porque, segundo lembra Silvio Rodri-

gues, o contrato de empreitada é contratado precisamente para que o dono da obra não tenha que se preocupar com a administração dos serviços.

Art. 1.246: O arquiteto, ou construtor, que, por empreitada, se incumbir de executar uma obra segundo plano aceito por quem a encomenda, não terá direito a exigir acréscimo no preço, ainda que o dos salários, ou o do material, encareça, nem ainda que se altere ou aumente, em relação à planta, a obra ajustada, salvo se se aumentou, ou alterou, por instruções escritas do outro contratante e exibidas pelo empreiteiro.

É claro que nada impede que os contratos de empreitada contenham cláu-sula de reajuste na remuneração em caso de variação de preços, mas deve estar expressa.

Também nada impede a aplicação da teoria da imprevisão/onerosidade excessiva conforme entendimento prevalente na doutrina. Em verdade, o ar-tigo 625, II do Novo Código Civil refl ete uma hipótese em que poderia ser reconhecida:

Art. 625, II: Poderá o empreiteiro suspender a obra: quando, no decorrer dos serviços, se manifestarem difi culdades imprevisíveis de execução, resul-tantes de causas geológicas ou hídricas, ou outras semelhantes, de modo que torne a empreitada excessivamente onerosa, e o dono da obra se opuser ao reajuste do preço inerente ao projeto por ele elaborado, observados os preços.

Como estipula o dispositivo, a regra é inaplicável no caso de alteração ou aumento da obra:

“Se, de um lado, é indenegável direito do comitente introduzir nas obras as modifi cações que entender necessárias, por outro lado, tal direito não pode ir a ponto de mudar o objeto da empreitada ou agravar as obrigações do empreiteiro, mesmo no caso do contrato permitir ao comitente o direito de pedir mudanças ao projeto fi xado...” (Serpa Lopes, p. 236).

O artigo 620 trata da hipótese de diminuição no preço do material.Forma:

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FGV DIREITO RIO 266

Ainda que o dispositivo do artigo 619 fale em instruções escritas, estas já vinham sendo dispensadas pela jurisprudência nas situações em que era visí-vel ao comitente as alterações ou aumentos que se faziam. Por isso, à redação do artigo 1.246, o legislador do Novo Código Civil acrescentou um parágra-fo ao correspondente artigo 619:

Art. 619, parágrafo único: Ainda que não tenha havido autorização es-crita, o dono da obra é obrigado a pagar ao empreiteiro os aumentos e acrés-cimos, segundo o que for arbitrado, se, sempre presente à obra, por continu-adas visitas, não podia ignorar o que se estava passando, e nunca protestou.

Obrigações do Empreiteiro:

(i) execução da obra de acordo com a encomenda (planos):Art. 1.242 (615): Concluída a obra de acordo com o ajuste, ou o costume

do lugar, o dono é obrigado a recebê-la. Poderá, porém, enjeitá-la (rejeitá-la), se o empréstimo se afastou das instruções recebidas e dos planos dados, ou das regras técnicas em trabalhos de tal natureza.

Além disso, pode pedir abatimento do preço ou pleitear o reparo (princi-palmente em se tratando de relação de consumo).

Note-se que a execução não precisa ser feita necessariamente pelo emprei-teiro, mas pode ser feita por alguém a seu mando

(ii) entrega da obra em conformidade com o projeto:Há ainda algumas obrigações eventuais:(iii) pagar os materiais que receber se os inutilizou por negligência ou im-

perícia (artigo 1.243 (617));(iv) comunicar/notifi car o dono da obra acerca dos defeitos ou insufi ciên-

cias dos materiais (artigo 1.240 (613)); e(v) fornecer os materiais na empreitada de lavor.

Obrigações do Comitente:

(i) pagar a retribuição ajustada:Pode variar a forma dos pagamentos em função do tipo de empreitada

(artigo 614)A doutrina e jurisprudência têm reconhecido o direito de retenção por

parte do empreiteiro em caso de não pagamento (Eduardo Espínola, Serpa Lopes, Arnaldo Rizzardo).

(ii) receber a obra:Art. 1.242 (615): Concluída a obra de acordo com o ajuste, ou o costume

do lugar, o dono é obrigado a recebê-la. Poderá, porém, enjeitá-la, se o em-

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FGV DIREITO RIO 267

preiteiro se afastou das instruções recebidas e dos planos dados, ou das regras técnicas em trabalhos de tal natureza.

Se não receber, estará em mora e os riscos podem ser invertidos, como vimos (artigo 1.238 (611).

(iii) abster-se de alterar o projeto por ele aprovado:Art. 621: Sem anuência de seu autor, não pode o proprietário da obra

introduzir modifi cações no projeto por ele aprovado, ainda que a execução seja confi ada a terceiros, a não ser que, por motivos supervenientes ou razões de ordem técnica, fi que comprovada a inconveniência ou a excessiva onerosi-dade de execução do projeto em sua forma originária.

Obrigações eventuais:(iv) fornecer materiais adequados ou em quantidade sufi ciente (art. 613);(v) pagar aumentos e acréscimos dos quais estava ou poderia estar ciente

(artigo 619, parágrafo único);(vi) pagar as despesas do empreiteiro e os lucros que teria (artigo 623).

Responsabilidade:

Entende-se que a responsabilidade deva ser tratada em apartado da solu-ção dos riscos. Esta decorre de uma escolha do legislador acerca do patrimô-nio que sofrerá diminuição por conta de um evento inimputável a qualquer das partes. Aquela, de uma regra de equilíbrio e reparação.

A responsabilidade incide quando há um prejuízo atribuível à interven-ção, à atividade de uma das partes, ainda que não culposa.

No âmbito do contrato de empreitada, além da responsabilidade pelo inadimplemento das obrigações das partes, o legislador fi xou a responsabili-dade do empreiteiro pela solidez e segurança da obra:

Art. 1.245 (618): Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de 5 (cinco) anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo.

Atualmente, a exegese do dispositivo não se coaduna com a mera interpre-tação literal. Houve grande extensão da responsabilidade aparentemente fi xa-da pelo texto. Assim é que, embora esteja, à primeira vista, limitada aos con-tratos de empreitada, atinge todas as construções; embora pareça vinculada à existência de risco de desabamento (“pela solidez e segurança do trabalho”), a jurisprudência vem admitindo a aplicação a defeitos que comprometem a destinação normal do imóvel.

Alguns vícios no encanamento ou revestimento podem criar perigo aos usuários e terceiros, impedindo o uso em condições normais de habitabilida-de e salubridade.

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DIREITO DOS CONTRATOS

FGV DIREITO RIO 268

13 “Esse prazo, porém, é de simples

garantia; durante o qüinqüênio o cons-

trutor fi ca adstrito a assegurar a solidez

e segurança da construção; entretanto,

embora excedido o prazo, poderá o

proprietário demandar o construtor

pelos prejuízos que lhe advieram da

imperfeição da obra. Só ao cabo de vinte

anos prescreve a ação do primeiro contra

o segundo para a reposição da obra em

perfeito estado. A teoria da unidade do

prazo para a ação e para a garantia não

tem apoio sério em nosso sistema legal”

(op.cit., p.207).

É uma responsabilidade objetiva, independente de culpa.A natureza do prazo deve ser analisada.Não se trata de prazo de prescrição ou decadência, mas de um prazo de

garantia.Durante sua vigência, o empreiteiro ou construtor respondem por todos

os defeitos referidos, sem que possam invocar excludentes. Ou seja, cons-tatado o defeito nesse interregno, poderá o dono da obra ou da construção pleitear a indenização.

Poderá ainda pleitear a reparação ou a rejeição da obra, a exemplo do que ocorre no caso dos vícios redibitórios?

Considerando que o empreiteiro (ou o construtor) tem o dever de entre-gar a obra/construção pronta, acabada, perfeita, enfi m, hígida, enseja-se ao dono exigir o cumprimento dessas condições. Não há, portanto, qualquer problema em requerer os reparos (o STJ, no RESP 66.565/MG versou sobre tal hipótese).

A faculdade de rejeição da coisa dependeria de previsão expressa. Talvez em caso de caracterização de vício redibitório, dentro do respectivo prazo, fosse possível pleitear a solução. E por falar em vício redibitório, é importante ressaltar a diferença entre eles e os de que trata o artigo 1.245 (618).

É que estes são específi cos e por isso não se admite o entendimento de que seguem os prazos do artigo 178. Estes são realmente insufi cientes para o caso das construções, que são obras de vulto e cujos defeitos podem se fazer sentir somente após bom tempo da entrega.

Dessa forma o STJ vinha entendo que o prazo da ação para reclamar dos defeitos incluídos na garantia do artigo 1.245 (618) seria de 20 anos, por au-sência de previsão (artigo 177)13, vide Súmula 194. No Novo Código Civil, o legislador faz prever o prazo da ação: 180 dias.

No artigo 1.245 havia expressa ressalva da responsabilidade se o empreitei-ro, em não achando fi rme o solo, preveniu o dono e este insistiu na execução. Tal disposição não foi mantida no artigo 618.

Após o decurso do prazo de 5 anos, fi ca exonerado o empreiteiro construtor?Pela afi rmativa parece ser o entendimento do Ministro Waldemar Zveiter,

no RESP 161.351/SC. Ele diz que a lei não poderia “acobertar um estado permanente de insegurança para o empreiteiro”.

Todavia, a doutrina tem se posicionado no sentido de admitir a ação para haver indenização do empreiteiro/construtor por vícios decorrentes de culpa na construção, o que dependeria da prova da culpa em ação própria, tudo a ser regulado pelos prazos prescricionais (no novo Código Civil, dez anos(?)).

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Classificação:

bilateralconsensualcomutativosinalagmáticonão solene

SEGURO

Tradicionalmente, o contrato de seguro é defi nido como aquele em que uma parte (o segurador) se compromete, mediante remuneração, a pagar à outra parte (segurado) uma indenização na hipótese de verifi cação de um risco previsto.

Veja-se, por exemplo a defi nição de Caio Mario da Silva Pereira que, como Washington de Barros Monteiro (p.348), se baseia no conceito legal do Có-digo Civil de 1916:

“Seguro é o contrato por via do qual uma das partes (segurador) se obriga para com a outra (segurado), mediante o recebimento de um prêmio, a indenizá-la, ou a terceiros, de prejuízos resultantes de riscos futuros, previstos” (p.327).

Art. 1.432, Código Civil de 1916: Considera-se contrato de seguro aque-le pelo qual uma das partes se obriga para com a outra, mediante a paga de um prêmio, a indenizá-la do prejuízo resultante de riscos futuros, previstos no contrato.

Ocorre que o conceito da codifi cação de 1916 já era ultrapassado, antes mesmo da vigência do novo código. Invocava a visão do contrato segundo a Teoria da Indenização que enxergava na reparação de um dano a caracterís-tica essencial do seguro, limitando-se a “admitir tão-somente o caráter repa-ratório (isto é, a reconstituição do patrimônio ao status quo anterior ao evento danoso) do contrato de seguro” (João Marcos Brito Martins, Direito de Seguro. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2002. p.28).

Não se adequava ao seguro pessoal em que não existe, necessariamente, um dano ao segurado que seja base para a indenização.

Preferiu-se a visão da teoria da necessidade que, pode-se dizer, substitui a reparação pela garantia do interesse legítimo do segurado (nesse incluído o interesse concreto —seguro de dano— e abstrato — seguro de pessoa).

Foi com base nessa teoria que o legislador do Novo Código Civil elaborou a conceituação legal:

Art. 757: Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o paga-mento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou coisa, contra riscos predeterminados.

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De todo modo, é essencial ao contrato de seguro, seja na visão da teoria da indenização, seja na visão da teoria da necessidade, a noção de risco.

Alguns dizem que o contrato envolveria a transferência dos riscos cobertos.Entendo, contudo, que esta seria uma posição decorrente da limitada vi-

são indenizatória. No caso dos seguros de dano, o risco é da diminuição pa-trimonial e, esse sim, pode ser afastado com a contratação do seguro.

No caso de seguro de pessoas, o entendimento é incompatível, como aler-ta Arnaldo Rizzardo, com a prática do negócio.

Afi nal, diz, o contrato de seguro não tem o condão de isentar ou afastar todos os riscos cobertos da vida do segurado. Este continua exposto aos ris-cos, por exemplo, de contrair a moléstia, ou de sofrer o acidente, ou morrer.

Nesse sentido, é melhor dizer que o interesse recai não só na reposição pa-trimonial, mas também na amenização das conseqüências gravosas do sinistro.

O risco não pode ser visto como elemento, mas pressuposto do contrato de seguro.

O risco que está subjacente ao contrato de seguro não se confunde com o risco que fundamenta a chamada Teoria dos Riscos

São admissíveis, como riscos acobertáveis, tanto os fortuitos, como os atos em que um terceiro tenha concorrido com sua culpa. Até se admite que sejam objeto de cobertura, atos culposos do próprio segurado.

Mas em regra, os riscos devem se referir a eventos que não dependam da vontade do segurado.

Também não se confunde com o próprio sinistro, que é o advento do risco.O risco é sempre futuro; o sinistro é sempre passado.O sinistro é o risco que se concretiza.Mas é considerado pelo legislador como sendo o sinistro em expectativa,

não podendo ser tratado como a situação ou cadeia de acontecimentos que pode acarretar o sinistro.

Na defi nição do Dicionário de Seguros, editado pela FUNENSEG, 1996, é “o evento incerto ou de data incerta que independe da vontade das partes con-tratantes e contra o qual é feito o seguro. O risco é a expectativa de sinistro. Sem risco não pode haver contrato de seguro...”

Deve ser:(i) Futuro:Não pode ter passado;Deve ser um risco que, com relação ao momento da contratação, possa

vir a existir.(ii) Incerto:Note-se que a incerteza não precisa ser absoluta (evento “incertus an” e

“incertus quando”).Basta que haja uma incerteza quanto ao momento da verifi cação do sinis-

tro (“incertus quando”).

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(iii) Possível;(iv) Lícito:(v) Independente da vontade das partesArt. 1.436, Código Civil de 1916: Nulo será este contrato, quando o

risco, de que se ocupa, se fi liar a atos ilícitos do segurado, do benefi ciado pelo seguro, ou dos representantes e prepostos, quer de um, quer de outro.

Art. 762: Nulo será o contrato para garantia de risco proveniente de ato doloso do segurado, do benefi ciário, ou de representante de um ou de outro.

(iv) Gerador de Necessidade Econômica (João Marcos de Brito Martins).

Causa e Caracteres:

A causa do contrato é, então, a troca de uma remuneração pela garantia de um interesse legítimo, consubstanciado na possibilidade de, diante do sinistro, (i) ver reposto o patrimônio perdido (no caso dos seguros de danos), (ii) de receber uma compensação pecuniária (no caso de seguro de acidentes pessoais); ou de garantir a higidez patrimonial de outrem (seguro de vida para o caso de morte).

Aleatoriedade

Dessa análise decorre a aleatoriedade do seguro. A incerteza quanto ao advento do risco no período coberto faz com que a comutatividade seja afas-tada. Não há certeza quanto à exigibilidade e a troca das prestações funda-mentais das partes.

O segurador pode receber o prêmio integralmente e não ser chamado a pagar a indenização/compensação:

Art. 1.452, Código Civil de 1916: O fato de não se ter verifi cado o risco, em previsão do qual se fez o seguro, não exime o segurado de pagar o prêmio, que se estipulou, observadas as disposições especiais do direito marítimo so-bre o estorno.

Art. 764: Salvo disposição especial, o fato de se não ter verifi cado o risco, em previsão do qual se faz o seguro, não exime de pagar o prêmio.

Bilateralidade e Onerosidade

Embora seja aleatório, continua a ser bilateral, contendo um sinalagma entre as prestações do segurador (pagar a indenização/compensação na hipó-tese de advento do risco) e do segurado (pagamento do prêmio).

É oneroso porque refl ete o interesse de ambas as partes.

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FGV DIREITO RIO 272

Caracteres Econômicos:

Previdência (previsão de hipóteses de perda).Incerteza.Mutualismo.

Elementos:

Partes Capazes:Embora o benefi ciário não seja parte do contrato, é interessante registrar que

há certas restrições legais que impedem algumas pessoas de fi gurar como tal.Por exemplo, no contrato de seguro de vida, as pessoas proibidas de rece-

ber doações do estipulante.Partes Legitimadas:Somente podem fi gurar como seguradoras as pessoas jurídicas constituí-

das sob a forma de sociedade anônimaArt. 757, parágrafo único: Somente pode ser parte, no contrato de segu-

ro, como segurador, entidade para tal fi m legalmente autorizada.Objeto Lícito e Possível:O objeto dos contratos é a soma dos objetos das prestações das obrigações

dele nascidas.Assim, o objeto do seguro é, de um lado, o prêmio, e, de outro, a indeni-

zação/compensação em caso de sinistro (é sobre este objeto que recai a álea do contrato, isto é, este objeto pode não ser exigido):

(a) Indenização/compensação em caso de sinistro:É “a contraprestação do segurador ao segurado que, com a efetivação do risco

(ocorrência de evento previsto no contrato), venha a sofrer prejuízos de natureza econômica, fazendo jus à indenização pactuada” (Dicionário de Seguros).

Somente é devida, pois, com efetivação do evento previsto:Art. 1.461: Salvo expressa restrição na apólice, o risco do seguro com-

preenderá todos os prejuízos resultantes ou conseqüentes, como sejam os estragos ocasionados para evitar o sinistro, minorar o dano, ou salvar a coisa.

Art. 779: O risco do seguro compreenderá todos os prejuízos resultantes ou conseqüentes, como sejam os estragos ocasionados para evitar o sinistro, minorar o dano, ou salvar a coisa.

Está limitada aos prejuízos ou conseqüências do risco assumido:Art. 1.460: Quando a apólice limitar ou particularizar os riscos do seguro,

não responderá por outros o segurador.Não tem correspondente no Novo Código Civil.Caso se trate de um contrato de seguro de consumo, as restrições e cláu-

sulas particularizadoras dos riscos cobertos e excluídos devem ser redigidas

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de forma clara, precisa e ostensiva, na forma dos §§ 3º e 4º do artigo 54, da Lei 8.078/90.

Mas, ainda que passem nesse controle formal, algumas exclusões podem ser consideradas abusivas (controle material). Principalmente nos seguros--saúde:

(i) exclusão de determinadas doenças (doenças crônicas, infecto-contagio-soas e epidemias):

A exclusão pode ser abusiva quando, no caso concreto, envolva a limitação de direito inerente à própria natureza do contrato:

“Não infringe aos arts. 1.432 e 1.460 do Código Civil a interpretação de que a cláusula, excluindo ‘casos crônicos’, dentre os quais se situa a diabetes mellitius, não se aplica ao segurado em idade avançada. Interpreta-se o contrato de acordo com sua fi nalidade econômica e ninguém contrata tal tipo de seguro senão para ver cobertos, oportunamente, os achaques da idade” (Ap. Cível 596094482, TJRS, 5a Câmara Cível, Rel. Des. Araken de Assis).

(ii) Exclusão de doenças preexistentes:Tem sido considerada abusiva a cláusula que exclui, sem mais, as doenças

preexistentes.A jurisprudência tem enfatizado a necessidade de realização de um exame

prévio que pudesse constatar a doença. Repugna a prática da seguradora que, simplesmente, se recusa a cobrir as despesas ou autorizar o tratamento ale-gando a má-fé do segurado por não informar a existência da doença quando da contratação.

Entende-se que, se a seguradora alega a má-fé, deve provar o conhecimen-to da existência da doença pelo segurado:

“Aceitando a empresa de saúde, à época da contratação com o recorrido, pa-ciente de Aids, não falar em má-fé do associado ante a eventual omissão de ser portador do virus HIV positivo” (RESP 89.412/SP, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito);

“A empresa que explora plano de seguro-saúde e recebe contribuições de asso-ciado sem submetê-lo a exame, não pode escusar-se ao pagamento da sua contra-prestação, alegando omissão nas informações do segurado” (RESP 86.095/SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar);

“Omissa a seguradora tocante à sua obrigação de efetuar o prévio exame de admissão do segurado, cabe-lhe responder pela integralidade das despesas médico--hospitalares havidas com a internação do paciente, sendo inoperante a cláusula restritiva inserta no contrato de seguro-saúde” (RESP 234.219/SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar).

O dever de realizar o exame é decorrente do princípio da boa-fé objetiva que impõe a colaboração da seguradora com os interesses do consumidor, permitindo que conheça os riscos envolvidos e, eventualmente, a justifi cativa para a cobrança do prêmio.

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FGV DIREITO RIO 274

Deve ser lembrado o disposto no artigo 11 da Lei nº 9656/98: “É vedada a exclusão de cobertura às doenças e lesões preexistentes à data de contratação dos planos ou seguros de que trata esta Lei após vinte e quatro meses de vigência do aludido instrumento contratual, cabendo à respectiva operadora o ônus da prova e demonstração do conhecimento prévio do consumidor”.

(iii) Exclusão de tratamentos (vide exclusão de doenças):É caso recorrente a disputa judicial sobre a cobertura de próteses e órteses.Se esses equipamentos são inerentes ao tratamento, não podem ser ex-

cluídos da cobertura. Em caso contrário, o segurador estaria se exonerando de obrigação decorrente da própria natureza do contrato, pondo em risco o equilíbrio efetivo.

(iv) Exclusão de período de internação:A abusividade dessa cláusula chama a atenção.A limitação do período de internação permite a mitigação de um direito

fundamental inerente à natureza do contrato (art. 51, § 1º, II, CDC), sendo contrário à boa-fé e à proibição de cláusulas potestativas (artigo 115 do Có-digo Civil de 1916).

O segurador não se obriga a indenizar por vícios intrínsecos à coisa:Art. 1.459: Sempre se presumirá não se ter obrigado o segurador a inde-

nizar prejuízos resultantes de vício intrínseco à coisa segura.Art. 784: Não se inclui na garantia o sinistro provocado por vício intrín-

seco da coisa segurada, não declarado pelo segurado.Parágrafo Único: Entende-se por vício intrínseco o defeito próprio da

coisa, que se não encontra normalmente em outras da mesma espécie.Disposição semelhante encontra-se em quase todos os seguros-saúde e pla-

nos de saúde.A indenização (no seguro de dano) está limitada ao valor do interesse

segurado:A razão disso é que o contrato de seguro tem por fi nalidade a reposição

patrimonial da perda causada pelo sinistro, não mais que isso.O seguro não se presta ao enriquecimento do segurado, não é pecúlio ou

investimento.Sua causa é a indenização do risco. Assim, se o sinistro ocorre, deve ser

reposto o valor da coisa. Nada mais.Art. 1.437: Não se pode segurar uma coisa por mais que valha, nem pelo

seu todo mais de uma vez. É, todavia, lícito ao segurado acautelar, mediante novo seguro, o risco de falência ou insolvência do segurador (art. 1.439).

Art. 1.438: Se o valor do seguro exceder ao da coisa, o segurador poderá, ainda depois de entregue a apólice, exigir sua redução ao valor real, resti-tuindo ao segurado o excesso de prêmio; e, provando que o segurado obrou de má-fé, terá direito a anular o seguro, sem restituição do prêmio, nem o prejuízo da ação penal que no caso couber.

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Essa disposição ensejou o desenvolvimento da prática (nos seguros de veícu-los) de pagar a indenização pelo valor de mercado (e valor de mercado confor-me estipulado pela seguradora).

A alegação das seguradoras para pagar o valor de mercado era o princípio de que o seguro não se presta ao enriquecimento de uma pessoa; não é um pecúlio, um investimento. Sua função, como se viu, é a reposição do patri-mônio do segurado com o equivalente à perda patrimonial decorrente do risco. Assim, se o carro, no momento do sinistro valia R$5.000,00 a menos que quando segurado, impõe-se a restituição apenas desse valor.

No entanto, assim deveria ser se o prêmio fosse atualizado (leia-se reduzi-do) conforme se verifi casse a desvalorização do carro.

Mas isso não acontece, sabemos bem. Se as seguradoras não querem se dar ao trabalho de fazer atualização do valor do veículo a cada renovação, pelo menos, ou a cada ano, não podem querer pagar uma indenização restrita ao valor de mercado.

Dizem que o valor do prêmio já contém essa expectativa da desvaloriza-ção. Mas uma expectativa de quanto? Como podem adivinhar o montante da desvalorização? E não se diga que fazem cálculos atuariais para isso, pois os cálculos atuariais são, pela sua própria natureza, estimatórios, e no caso da indenização pela perda patrimonial, esta não pode ser feita por estimativa, mas deve corresponder efetivamente ao valor da perda.

E o valor da perda é, em princípio, o valor do veículo apontado na apólice.Além disso, ainda que se pudesse considerar correto o valor de mercado, o

procedimento adotado pelas seguradoras na hora do pagamento, simplesmen-te reduzindo a indenização até o valor de mercado, era incorreto e irregular.

A seguradora não agia em conformidade com o artigo 1.438, ou seja, não exigia a redução e nem devolvia ao segurado o excesso de prêmio. Simples-mente, recusava-se a pagar a indenização em valor maior que o “seu” valor de mercado.

A jurisprudência insurgiu-se contra essa prática, considerada abusiva nos seguros para o consumidor: “É abusiva a prática de incluir na apólice um valor, sobre o qual o segurado paga o prêmio, e pretender indenizá-lo por valor menor, correspondente ao preço de mercado, estipulado pela própria seguradora” (ERESP 176890/MG, Rel. Min. Waldemar Zveiter).

RESP 214237/RJ, Rel. Min. Nilson Naves.Trata-se de interpretação com base na boa-fé objetiva com vistas a, se-

gundo Claudia Lima Marques, examinar o contrato como um todo (p.760). Em verdade, a cláusula que o permitiria é expressamente tida por abusiva, na forma do inciso X do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor, por permitir, em tese, a variação unilateral indireta da remuneração do serviço.

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O mesmo se dá em caso de cláusula de depreciação do bem segurado em contrato de seguro de incêndio que atribui à própria seguradora a fi xação do índice de depreciação.

Para que pudesse invocar a redução da indenização, a seguradora deveria atender ao disposto no artigo 1.438, o que não se verifi ca na prática negocial.

O Novo Código Civil não reproduz a disposição. Apenas a limitação quanto ao valor do interesse segurado e a possibilidade de redução propor-cional da indenização. A redação dos dispositivos pode privilegiar a prática discricionária de reter a indenização até que seja decidida a redução:

Art. 778: Nos seguros de dano, a garantia prometida não pode ultrapassar o valor do interesse segurado no momento da conclusão do contrato, sob pena do disposto no art. 776, e, sem prejuízo da ação penal que no caso couber.

Art. 781: A indenização não pode ultrapassar o valor do interesse segu-rado no momento do sinistro e, em hipótese alguma, o limite máximo da garantia fi xado na apólice, salvo em caso de mora do segurador.

Disposição coerente com a identifi cação da indenização com o valor da coisa é a do artigo 783:

Art. 783: Salvo disposição em contrário, o seguro de um interesse por menos do que valha, acarreta a redução proporcional da indenização, no caso de sinistro parcial.

Ver sentença sobre diferença de seguro.Não se pode estipular dupla indenização, segurando uma coisa por mais

de uma vez (a não ser nos contratos de seguros pessoais):Art. 1.437: Não se pode segurar uma coisa por mais que valha, nem pelo

seu todo mais de uma vez. É, todavia, lícito ao segurado acautelar, mediante novo seguro, o risco de falência ou insolvência do segurador (art. 1.439).

É o chamado seguro simultâneo.Alguns chamam de resseguro (segurar de novo), mas o termo deve ser

reservado para o caso em que é uma seguradora faz seguro de seu risco as-sumido (no Brasil, só pode ser feito com o IRB (comentar sobre a ação de inconstitucionalidade da privatização do instituto)).

Também não se confunde com o co-seguro, em que duas ou mais segura-doras repartem os riscos.

Acarreta na nulidade do segundo seguro:Art. 1.439: Salvo o disposto no art. 1.437, o segundo seguro da coisa

já segura pelo mesmo risco e no seu valor integral pode ser anulado por qualquer das partes. O segundo segurador que ignorava o primeiro contrato pode, sem restituir o prêmio recebido, recusar o pagamento do objeto seguro, ou recobrar o que por ele pagou, na parte excedente ao seu valor real, ainda que não tenha reclamado contra o contrato antes do sinistro.

O Novo Código Civil não trouxe dispositivos específi cos como esses, mas a solução é a mesma, como se pode inferir do disposto nos artigos 766, 778 e 782:

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FGV DIREITO RIO 277

Art. 782: O segurado que, na vigência do contrato, pretender obter novo seguro sobre o mesmo interesse, e, contra o mesmo risco junto a outro se-gurador, deve previamente comunicar sua intenção por escrito ao primeiro, indicando a soma por que pretende segurar-se, a fi m de comprovar a obedi-ência ao disposto no art. 778.

Art. 778: Nos seguros de dano, a garantia prometida não pode ultrapassar o valor do interll esse segurado no momento da conclusão do contrato, sob pena do disposto no art. 776, e, sem prejuízo da ação penal que no caso couber.

Art. 766: Se o segurado, por si ou por seu representante, fi zer declarações inexatas ou omitir circunstâncias que possam infl uir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, perderá o direito à garantia, além de fi car obrigado ao prêmio vencido.

Parágrafo Único: Se a inexatidão ou omissão nas declarações não resultar de má-fé do segurado, o segurador terá direito a resolver o contrato, ou a cobrar, mesmo após o sinistro, a diferença do prêmio.

A indenização não pode ser estipulada para prejuízos decorrentes de ato ilícito:Art. 1.436: Nulo será este contrato, quando o risco, de que se ocupa, se

fi liar a atos ilícitos do segurado, do benefi ciado pelo seguro, ou dos represen-tantes e prepostos, quer de um, quer de outro.

Visa evitar que sejam segurados riscos de contrabando, jogo ilícito e outras atividades proibidas, pois ninguém pode se benefi ciar de tais atividades.

Admite-se, contudo, o seguro de responsabilidade civil, que pode envolver atos culposos e, portanto, ilícitos.

Esse seguro tem sido admitido, até mesmo porque não se deixa ao exclu-sivo arbítrio do segurado o evento.

O Novo Código Civil já fala apenas em atos dolosos:Art. 762: Nulo será o contrato para garantia de risco proveniente de ato

doloso do segurado, do benefi ciário, ou de representante de um ou de outro.O direito à indenização é, em regra, transmissível:Art. 1.463: O direito à indenização pode ser transmitido a terceiro como

acessório da propriedade, ou de direito real sobre a coisa segura.Art. 785: Salvo disposição em contrário, admite-se a transferência do con-

trato a terceiro com a alienação ou cessão do interesse segurado.Por isso, permite-se a oposição de exceções que se teria contra o titular

original em face do sucessor:Art. 1.464: No caso de sinistro, o segurador pode opor ao sucessor ou

representante do segurado todos os meios de defesa, que contra este lhe as-sistiriam.

O Novo Código Civil não repetiu a disposição. Fala apenas da oposição de defesas em caso de seguro por conta de outrem (art. 767).

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Quando o seguro é daqueles que se fazem em atenção às peculiaridades da pessoa do segurado, a apólice não permite a cessão sem a autorização da seguradora, com é o caso dos seguros de veículos e pessoais, por exemplo.

(b) Prêmio:“É a importância paga pelo segurado, ou estipulante, à seguradora em troca

da transferência do risco a que ele está exposto. Em princípio, o prêmio resulta da aplicação de uma percentagem (taxa) à importância segurada. O prêmio deve corresponder ao preço do risco transferido à seguradora” (Dicionário de Segu-ros): o verbete é impreciso ao referir ao prêmio como contrapartida da ‘trans-ferência de risco’ que, como se viu, não é o que sempre se verifi ca.

Em tese deveria se limitar ao valor exato para repor os prejuízos decorren-tes do sinistro (prime pure).

Mas nele se inclui a taxa de administração e o lucro da intermediação no caso de seguros não-mútuos (prime chargée).

Forma:A doutrina discute se o contrato de seguro dependeria ou não de forma

específi ca para sua validade.Para Silvio Rodrigues (também Arnaldo Rizzardo e Maria Helena Diniz), é

um contrato formal ou solene e a forma é da substância do contrato (ad solem-nitatem), pois a lei impõe a forma escrita (art. 1.433) que se materializa na apó-lice, para a validade do negócio. Sem a forma escrita, o contrato não se perfaz.

Art. 1.433: Este contrato não obriga antes de reduzido a escrito, e consi-dera-se perfeito desde que o segurador remete a apólice ao segurado, ou faz nos livros o lançamento usual da operação.

Para Orlando Gomes (também Washington de Barros Monteiro), a forma já não é ad substantiam/solemnitatem, mas meramente ad probationem., que seria necessária apenas para a prova da existência do contrato. Sem o escrito, o contrato não se prova.

Caio Mario parece considerá-lo não-formal, pois diz que se poderia provar o contrato pela perícia nos livros do segurador. Diz que essa é a tendência atual.

E, de fato, a tendência se verifi cou e foi consolidada pelo legislador do Novo Código Civil:

Art. 758: O contrato de seguro prova-se com a exibição da apólice ou do bilhete do seguro e, na falta deles, por documento comprobatório do paga-mento do prêmio.

Diante disso, é possível dizer que a forma escrita (apólice) nem mesmo é ad probationem, pois não é exclusiva para a prova do contrato.

De qualquer maneira, assim como o instrumento do mandato é a procura-ção, o instrumento, por excelência, do contrato de seguro é a apólice (embora esta possa ser substituída em alguns casos pelo bilhete de seguro (ex.: DPVAT)):

Conteúdo Mínimo (pode haver mais estipulações — arts. 1.434, 1.448 e 760):

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(i) Riscos Assumidos;(ii) Início e Fim da Validade (termos a quo e ad quem)(iii) Limite da garantia;(iv) Prêmio devido;(v) Nome do Segurado (quando cabível);(vi) Nome do Benefi ciário (quando cabível).Espécies:NominativaArt. 785, §1º: Se o instrumento contratual é nominativo, a transferência

só produz efeitos em relação ao segurador mediante aviso escrito assinado pelo cedente e pelo cessionário.

À ordem:Art. 785, §2º: A apólice ou o bilhete à ordem só se transfere por endosso

em preto, datado e assinado pelo endossante e pelo endossatário.Ao portador (exceção de seguro de vida/pessoais — art. 760, p. único).Art. 760, parágrafo único: No seguro de pessoas, a apólice ou o bilhete

não podem ser ao portador.

Espécies de Seguro:

Vigora em nosso direito o conceito unitário de seguro, embora sejam ad-mitidas várias espécies. Considera-se a existência de um único contrato, ao qual está sempre subjacente a idéia de ressarcimento ou compensação.

Nosso sistema jurídico não adotou a chamada “Teoria Dualista” que tem os seguros de pessoas e de danos como contratos distintos.

Embora o Novo Código Civil trate em separado dessas espécies, não são consideradas contratos distintos (ao que parece, na técnica atuarial é que precisam ser apartados).

A grande divisão é exatamente aquela que coloca de um lado os seguros de danos (ou coisas) e os seguros pessoais. Mas outras merecem exame.

Seguros de Danos

“É aquele que tem como objeto os riscos que podem afetar o patrimônio do segurado, sendo sua fi nalidade indenizá-lo dos prejuízos patrimoniais causados pelo sinistro” (Dicionário de Seguros).

Tem a característica de ser indenitário, ou seja, visa reparar o prejuízo patrimonial.

Por isso não pode a indenização ultrapassar o valor do objeto segurado e o seguro não pode se fazer por mais que valha a coisa.

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DIREITO DOS CONTRATOS

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Divide-se em:(i) seguros de coisas próprias (contra incêndio, contra roubo, seguro de

transportes, contra danos a veículo automotor etc); e(ii) seguros de responsabilidade civil (contra indenizações que tenha que

pagar a terceiros pelos danos materiais ou pessoais causados)Note-se que o seguro de responsabilidade civil, embora possa se relacionar

aos danos pessoais causados ao terceiro, não deixa de ser um seguro de dano pois visa a cobrir o prejuízo patrimonial do segurado que adviria do paga-mento da indenização.

Art. 787: No seguro de responsabilidade civil, o segurador garante o pa-gamento de perdas e danos devidos pelo segurado a terceiro.

Como o segurado fi ca em posição confortável ao causar dano a terceiro, sabendo que não precisará sofrer perda patrimonial para repará-lo/compensá--lo, o legislador, temendo a falta de empenho na sua própria defesa, proíbe que reconheça a sua responsabilidade:

Art. 787, §2º: É defeso ao segurado reconhecer sua responsabilidade ou confessar a ação, bem como transigir com o terceiro prejudicado, ou indeni-zá-lo diretamente, sem anuência expressa do segurador.

Divisa-se, na jurisprudência de nossos tribunais, a tese que admite a ação direta da vítima contra a seguradora do causador do dano.

Até então não se aventava a possibilidade por conta da noção de que (i) o contrato de seguro de responsabilidade é celebrado entre o segurado-causa-dor-do-dano e a seguradora, sendo a vítima mero terceiro que (ii) não fi gura como benefi ciário do seguro, não podendo haver equiparação com a estipula-ção a favor de terceiro (em que este pode exigir a indenização). Ademais, (iii) o contrato não tem por fi nalidade benefi ciar a vítima, mas garantir o patri-mônio do segurado em caso de dano a terceiro, não se assemelhando aos se-guros obrigatórios, que visam a salvaguardar a vítima. Por fi m, considerando que a indenização somente é devida com o advento do risco (sinistro), (iv) a seguradora não pode ser chamada a pagá-la antes da condenação do segurado (o prejuízo da vítima não é, por si, fonte da obrigação da seguradora).

Mesmo diante desses poderosos argumentos técnico-jurídicos, os tribu-nais têm reconhecido a ação direta.

A jurisprudência tem adotado o princípio de que os danos injustamente sofridos não podem fi car sem reparação. Sustenta-se que a vítima poderia fi car sem o ressarcimento em caso de insolvência do causador do dano ou quando houvesse conluio entre ele e a seguradora, a quem, em última análise, competiria o desembolso.

Há um argumento de natureza prático-processual, de se evitar a interme-diação, garantindo a efetividade do processo.

É representativo o acórdão no RESP nº 228.840/RS (Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito), em especial o voto do Min. Eduardo Ribeiro.

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Seguros de Pessoas

Os seguros de pessoas “têm como base as pessoas, suas vidas e suas faculdades. Típicos são os seguros de vida, acidentes pessoais e saúde” (Dicionário de Seguros).

Este último, contudo, não difere, em sua essência, dos seguros de dano. Afi nal, serve para a cobertura das despesas médico-hospitalares do segurado, mantendo um caráter indenitário.

O Dicionário de Seguros assim o defi ne: “garante o pagamento em dinheiro ou o reembolso das despesas com a assistência médico-hospitalar”.

Como se vê, a indenização guarda relação direta com as despesas, não podendo ultrapassá-las.

Ao que parece, são classifi cados dentre os seguros de pessoas por terem como interesse último a garantia da saúde da pessoa humana, permitindo o atendimento em clínicas e através de médicos da rede privada, contra o em geral defi ciente serviço público.

No sistema do novo Código Civil, parecem ser apenas os seguros de vida, incapacidade e acidentes, que garantam a proteção de um peculiar interesse do segurado: a compensação patrimonial para si ou para os seus em razão da diminuição ou desaparecimento de sua capacidade econômica.

Essas coberturas estavam disciplinadas expressamente no Código Civil de 1916:

Art. 1.440: A vida e as faculdades humanas também se podem estimar como objeto segurável, e segurar, no valor ajustado, contra os riscos possí-veis, como o de morte involuntária, inabilitação para trabalhar, ou outros, semelhantes.

E de fato são apenas esses que se coadunam com a disciplina legal agora adotada.

Não apresentam caráter indenitário.Não se referem propriamente a um dano ao segurado como, por exemplo,

no caso do seguro de vida. Neste, “falecendo o segurado e deixando indenização para seus benefi ciários, também não há como inferir-se a respeito de dano ao mes-mo, na acepção plena do vocábulo, tal como a conhecemos” (João Marcos Brito Martins, p.28).

O risco não apresenta uma valoração pecuniária exata, pois suas conse-qüências não se restringem ao âmbito patrimonial. Atingem as expectativas e projetos da própria pessoa do segurado e de sua família.

Por essa razão, não havendo equivalência possível entre as conseqüências do risco e a indenização, esta pode ser estipulada livremente e por mais de uma vez, com mais de um segurador (ao contrário dos seguros de danos):

Art. 1.441: No caso de seguro sobre a vida, é livre às partes fi xar o valor respectivo e fazer mais de um seguro, no mesmo ou em diversos valores, sem prejuízo dos antecedentes.

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FGV DIREITO RIO 282

Art. 789: Nos seguros de pessoas, o capital segurado é livremente estipu-lado pelo proponente, que pode contratar mais de um seguro sobre o mesmo interesse, com o mesmo ou diversos seguradores.

Veja-se que o novo Código Civil não se restringiu aos seguros de vida.Em função desse caráter quase alimentar, o valor da indenização não é

considerado como parte da herança e não entra na liquidação das dívidas do segurado/falecido:

Art. 794: No seguro de vida ou de acidentes pessoais para o caso de morte, o capital estipulado não está sujeito às dívidas do segurado, nem se considera herança para todos os efeitos de direito.

Também por isso não se admite a sub-rogação nos direitos do segurado contra o eventual causador do sinistro:

Art. 800: Nos seguros de pessoas, o segurador não pode sub-rogar-se nos direitos e ações do segurado, ou do benefi ciário, contra o causador do sinistro.

Seguro de Vida Para o Caso de Morte

No seguro de vida propriamente dito, haverá, necessariamente, um bene-fi ciário.

Este pode ser determinado, ou seja, indicado pelo segurado, e poderá, em regra, ser substituído:

Art. 791: Se o segurado não renunciar à faculdade, ou se o seguro não tiver como causa declarada a garantia de alguma obrigação, é lícita a substi-tuição do benefi ciário, por ato entre vivos ou de última vontade.

Parágrafo Único: O segurador, que não for cientifi cado oportunamente da substituição, desobrigar-se-á pagando o capital segurado ao antigo bene-fi ciário.

Seria o caso de um pagamento a credor putativo (art. 935/309).Ou não. Nesse caso, o pagamento será feito na forma do artigo 792:Art. 792: Na falta de indicação da pessoa ou benefi ciário, ou se por qual-

quer motivo não prevalecer a que for feita, o capital segurado será pago por metade ao cônjuge não separado judicialmente, e o restante aos herdeiros do segurado, obedecida a ordem da vocação hereditária.

Parágrafo Único: Na falta das pessoas indicadas neste artigo, serão be-nefi ciários os que provarem que a morte do segurado os privou dos meios necessários à subsistência.

O benefi ciário pode ser o companheiro se o estipulante era separado judi-cialmente ou de fato na época da nomeação (artigo 795).

O seguro de vida pode ser estipulado por um terceiro (seguro sobre a vida de outro).

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Deve, contudo, ser declarado o interesse pela preservação da vida do segu-rado (artigo 790).

Esse interesse se presume se o terceiro é cônjuge, ascendente ou descen-dente do segurado.

É possível a fi xação de carência (art. 797).A indenização ou pagamento do capital segurado não se dá no caso de

suicídio:Era o que dispunha, expressamente, o Código Civil de 1916:Art. 1.440: A vida e as faculdades humanas também se podem estimar

como objeto segurável, e segurar, no valor ajustado, contra os riscos possí-veis, como o de morte involuntária, inabilitação para trabalhar, ou outros, semelhantes.

Parágrafo Único: Considera-se morte voluntária a recebida em duelo, bem como o suicídio premeditado por pessoa em seu juízo.

Note-se que o código falava em suicídio premeditado.Não era qualquer suicídio que podia ser tido como excludente de paga-

mento.Tanto que a jurisprudência consolidou essa orientação, primeiro através

do STF e, posteriormente com as decisões do STJ, afastando o argumento de que qualquer suicídio voluntário (ainda que não premeditado) afastaria o dever da seguradora:

Súmula 105, STF: Salvo se tiver havido premeditação, o suicídio do segu-rado no período contratual de carência não exime o segurador do pagamento do seguro.

Súmula 61, STJ: O seguro de vida cobre o suicídio não premeditado.É mesmo uma interpretação em consonância com o artigo 47 do Código

de Defesa do Consumidor.É nula a cláusula que exclui o pagamento em caso de suicídio. Seria con-

trária a direito fundamental, inerente à natureza do contrato (art. 115/122). No caso de relação de consumo, aplicar-se-ia o disposto no art. 51, IV e § 1º, II.

É assim considerada pelo Novo Código Civil:Art. 798, parágrafo único: Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é

nula a cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do segurado.

O problema é que o novo estatuto civil parece retirar o direito ao capital quando o suicídio ocorre nos primeiros dois anos de vigência do contrato:

Art. 798: O benefi ciário não tem direito ao capital estipulado quandoo se-gurado se suicida nos primeiros 2 (dois) anos de vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o disposto no parágrafo único do artigo antecedente (restituição do prêmio).

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FGV DIREITO RIO 284

A jurisprudência terá que se pronunciar, embora não se espere que altere seu posicionamento. O suicídio não premeditado continuará sendo associa-do às causas acidentais de morte.

Seguro de Vida em Grupo

O seguro de vida pode ser individual ou em grupo, hipótese em que será regido pelas regras do artigo 801 (responsabilidade do estipulante perante a seguradora — §1º; e modifi cação dependente da anuência de ¾ dos mem-bros do grupo — §2º)

Seguros Mútuos e a Prêmio Fixo

Os seguros podem ainda ser a prêmio fi xo ou variável (seguros mútuos).Nestes últimos, as várias pessoas que participam do grupo repartem o

ônus do sinistro.Essa modalidade ainda foi prevista no Código Civil de 1916 (artigo 1.466

e seguintes) mas afastada pelo legislador de 2002.Sua desvantagem, é a limitação quanto ao número de segurados que se

consegue agregar.

Seguros Legais ou Obrigatórios

Por fi m, é importante lembrar os seguros legais ou obrigatórios, dentre os quais se destacam os seguros contra acidentes de trabalho, de natureza previdenciária, e o Seguro Obrigatório de Danos Pessoais por Veículos Auto-motores de Via Terrestre — DPVAT.

Estes últimos eram regidos, até o advento da Lei nº 8.441/92, pela Lei nº 6.194/74, tendo sido garantidos pelo artigo 20 do decreto-Lei 73/66:

Art. 20: Sem prejuízo do disposto em leis especiais, são obrigatórios os seguros de:

1) Danos pessoais causados por veículos automotores de via terrestre, ou por sua carga, a pessoas transportadas ou não (redação do art. 2º da Lei 6.194/74).

a) danos pessoais a passageiros de aeronaves comerciais (redação do art. 1º da Lei 6.194/74);

b) responsabilidade civil dos proprietários de veículos automotores de vias fl uvial, lacustre, marítima, de aeronaves e dos transportadores em geral;

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FGV DIREITO RIO 285

c) responsabilidade civil do construtor de imóveis em zonas urbanas por danos a pessoas ou coisas;

d) bens dados em garantia de empréstimos ou fi nanciamentos de institui-ções fi nanceiras pública;

e) garantia do cumprimento das obrigações do incorporador e construtor de imóveis;

f ) garantia do pagamento a cargo de mutuário da construção civil, inclu-sive obrigação imobiliária;

g) edifícios divididos em unidades autônomas;h) incêndio e transporte de bens pertencentes a pessoas jurídicas, situados

no País ou nele transportados;i) crédito rural;j) crédito à exportação, quando concedido por instituições fi nanceiras pú-

blicas.

No sistema anterior, na literalidade dos dispositivos da Lei 6.194/74, a indenização era paga pela sociedade que recebeu o prêmio do seguro, exis-tindo uma responsabilidade do consórcio que reunia todas as seguradoras participantes apenas no caso de indenização por morte causada por veículo não identifi cado:

Art. 7º, Lei 6.194/74: A indenização, por pessoa vitimada, no caso de morte causada apenas por veículo não identifi cado, será paga por um Con-sórcio constituído, obrigatoriamente, por todas as Seguradoras que operarem no seguro objeto da presente lei.

Com a lei nova, as hipóteses de indenização foram ampliadas e um con-sórcio (“pool”) de seguradoras é chamado a pagar a indenização mesmo que não haja comprovação do pagamento do prêmio:

Art. 7º, Lei 6.194/74 (redação da Lei 8.441/92): A indenização, por pessoa vitimada por veículo não identifi cado, com seguradora não identifi ca-da, seguro não realizado ou vencido, será paga nos mesmos valores, condições e prazos dos demais casos por um consórcio constituído, obrigatoriamente, por todas as sociedades seguradoras que operem no seguro objeto desta lei.

Súmula 257, STJ: A falta de pagamento do prêmio do seguro obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT) não é motivo para a recusa do pagamento da indenização.

A primeira grande questão que surge perante os tribunais refere-se à possi-bilidade de pagamento da indenização por sinistro causado por veículo iden-tifi cado cujo seguro não tenha sido recolhido, anteriormente à vigência da Lei 8.441/92, publicada em 13.07.1992.

As seguradoras sustentam que, anteriormente às alterações da Lei 8.441/92, a indenização para o caso de veículo identifi cado deveria ser paga pela seguradora que recebeu o respectivo prêmio. Entendem que se o prêmio

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não foi pago, impedindo a identifi cação da seguradora responsável, a vítima não teria direito à indenização. E se valem da literalidade do dispositivo do artigo 7º antes da alteração que, como se viu, parece claro ao deixar para a responsabilidade do consórcio “apenas” no caso de morte causado por veí-culo não identifi cado.

A Ministra Nancy Andrighi do STJ adota a tese, como se pode ver do voto (vencido) proferido no julgamento do RESP nº 325.300/ES:

“Atendendo-se ao princípio da irretroatividade das leis, a norma aplicável ao caso sub judice há de ser aquela prevista na antiga redação do artigo, conside-rando-se que, não sendo pago o seguro obrigatório do veículo causador do dano, antes do início da vigência da Lei n. 8.441/92, responsável pela indenização era o proprietário do veículo causador do acidente e não o Consórcio de Seguradoras”.

Contrariamente a esse entendimento tem se posicionado a maioria nas Terceira e Quarta Turmas do STJ. O Ministro Carlos Alberto Menezes Direi-to, que integra a mesma Turma da Ministra Andrighi fez prevalecer sua tese no julgamento do RESP nº 325.300/ES:

“O recorrente tem razão, malferidas as regras indicadas da Lei nº 6.194/74. O sistema vigente à época do acidente, a Lei nº 6.194/74, dispunha claramente nos artigos 5º, 7º e 8º sobre a responsabilidade da seguradora integrante do rol do seguro obrigatório, sem fazer qualquer ressalva própria, mas, ao revés, determi-nando, mesmo, que com a comprovação do pagamento “a seguradora que houver pago a indenização poderá, mediante, ação própria, haver do responsável a im-portância efetivamente indenizada” (...) Por outro lado, a falta de pagamento do prêmio de seguro obrigatório, ainda que estando o veículo identifi cado, não autoriza a recusa da seguradora, dentro do sistema do seguro obrigatório, eis que entendimento diferente daria ensanchas a uma verdadeira burla, deixando na mão do causador do acidente a responsabilidade exclusiva pela exoneração do dever de indenizar, apesar da obrigatoriedade do seguro”.

A Quarta Turma vem julgando da mesma forma, como bem refl ete o voto do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira no RESP nº 337083/SP:

“Com efeito, o seguro obrigatório constitui uma proteção imposta pela lei, não podendo fi car ao arbítrio de inadimplentes o direito que pertence a tercei-ros — vítimas. Assim, mesmo quando não efetuado o pagamento do prêmio, de rigor a indenização. É de acrescentar-se que a modifi cação introduzida pela Lei nº 8.441/92 veio apenas ratifi car — explicitando — o que já estava implícito na lei. A partir de uma interpretação sistemática do conjunto de normas que regulam o seguro obrigatório, e não apenas literal de um dispositivo legal, a outra conclusão não se poderia chegar...”

Ao se exigir da vítima a comprovação do pagamento do prêmio, através da apresentação da documentação do veículo causador do dano, arrisca-se a desconsiderar todo o sistema protetivo do DPVAT. Por isso, a alusão à neces-sidade de uma interpretação sistemática da legislação.

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A solidariedade impõe-se sempre que não seja possível particularizar essa responsabilidade para uma das seguradoras participantes. O seguro é obriga-tório não só porque a estipulação é obrigatória, mas porque a garantia o é. Esta não pode fi car condicionada ao pagamento do prêmio, devendo ser asse-gurada pela imputação da solidariedade, na qual a exceção de não pagamento é inoponível ao benefi ciário.

O valor da indenização às vezes é objeto de discussão quando as segurado-ras aplicam tabela elaborada pela SUSEP para a indexação das indenizações. Tratando-se de indenização por morte, é inaplicável qualquer tabela. O valor da indenização é o equivalente a 40 (quarenta) salários mínimos:

Art. 3º, Lei nº 6.194/74: Os danos pessoais cobertos pelo seguro esta-belecido no artigo 2º compreendem as indenizações por morte, invalidez permanente e despesas de assistência médica e suplementares, nos valores que se seguem, por pessoa vitimada:

a) 40 (quarenta) vezes o valor do maior salário-mínimo vigente no País — no caso de morte...”

Vê-se que o valor era esse mesmo no período anterior à vigência da Lei 8.441/92 (que não modifi cou esse dispositivo).

E nenhuma resolução, circular ou outro conjunto de normas como elas elaboradas, ou seja, sem a chancela constitucional, poderá servir de parâme-tro ou impor limite à aplicação do aludido dispositivo. Tais regulamentos administrativos não podem fazer as vezes de intérpretes da legislação federal para limitar sua abrangência.

Por fi m, não há qualquer inconstitucionalidade ou irregularidade na fi -xação do valor da indenização com base no salário-mínimo, o que alguns alegam em virtude do inciso IV do artigo 7º da Constituição da República:

Art. 7º, IV, CR/88: salário mínimo, fi xado em lei, nacionalmente unifi ca-do, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aqui-sitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fi m.

O valor da indenização em equivalente a salário mínimo não importa em índice de reajuste, sendo mero parâmetro para a indenização. Lembre-se de que a Lei 9.099/95 fi xa a alçada da competência ‘ratione valoris’ dos Juizados Especiais Cíveis e nenhuma inconstitucionalidade foi jamais aventada.

Nesse sentido, o RESP nº 296675/SP, Rel.Min. Aldir Passarinho JuniorTêm chegado aos tribunais confl itos relativos ao pagamento de comple-

mentação do valor da indenização, após ter sido paga com base na mencio-nada tabela. Mesmo com a apresentação do recibo de quitação plena, o STJ vem reconhecendo o direito à integralização.

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Obrigações no Contrato de Seguro:

Antes de enumerar as obrigações do segurado e do segurador, é mister comentar sobre a regra da boa-fé que se insere, com especial destaque, no contrato de seguro. Afi nal, os principais elementos do seguro se baseiam nes-sa regra de conduta que inspira as partes, impondo-lhes um dever de lealda-de, retidão e colaboração mútua com os interesses da outra. Tanto o prêmio quanto a indenização são estipulados tendo em vista as informações prestadas pelo segurado e pelo segurador, com os esclarecimentos quanto ao alcance da cobertura (p.ex.: seguro de vida: informações quanto às doenças; incêndio, informações quanto ao tipo da construção etc).

Art. 1.443: O segurado e o segurador são obrigados a guardar no contrato a mais estrita boa-fé e veracidade, assim a respeito do objeto, como das cir-cunstâncias e declarações a ele concernentes.

Art. 765: O segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto, como das circunstâncias e declarações a ele concernentes.

Ainda que seja feito o seguro por procurador (art. 1.445/766)A conseqüência da violação desse dever é a perda do direito à indenização/

capital.Art. 766: Se o segurado, por si ou por seu representante, fi zer declarações

inexatas ou omitir circunstâncias que possam infl uir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, perderá o direito à garantia, além de fi car obrigado ao prêmio vencido.

Parágrafo Único: Se a inexatidão ou omissão nas declarações não resultar de má-fé do segurado, o segurador terá direito a resolver o contrato, ou a cobrar, mesmo após o sinistro, a diferença do prêmio.

Mas o segurador não pode abusar desse direito e considerar que todas as informações não prestadas tenham o condão de por fi m à relação.

O dever de boa-fé impõe que o segurador indague do segurado acerca dos fatos que podem interferir no cálculo do prêmio. A mera omissão de infor-mações, na absoluta maioria das vezes decorrente de ignorância do segurado quanto à sua relevância, não pode ser equiparada a uma informação inexata ou a uma atitude de má-fé (ver comentários sobre as limitações de coberturas).

Obrigações do Segurado:(i) A principal obrigação do segurado é o pagamento do prêmio, que é a

contribuição devida como remuneração pela garantia do interesse:É uma obrigação de execução certa. A álea envolve a obrigação do segu-

rador:Art. 1.452: O fato de não se ter verifi cado o risco, em previsão do qual

se fez o seguro, não exime o segurado de pagar o prêmio, que se estipulou, observadas as disposições especiais do direito marítimo sobre o estorno.

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Art. 764: Salvo disposição especial, o fato de se não ter verifi cado o risco, em previsão do qual se faz o seguro, não exime de pagar o prêmio.

É, não obstante a aleatoriedade da outra prestação, a ela equipolente, o que confere a seu inadimplemento, em tese, a condição de quebra do sina-lagma, justifi cando, em princípio, a cassação do direito à indenização. Daí a disposição legal:

Art. 1.451: Se o segurado vier a falir, ou for declarado interdito, estando em atraso nos prêmios, ou se atrasar após a interdição, ou a falência, fi cará o segurador isento da responsabilidade pelos riscos, se a massa, ou o represen-tante do interdito, não pagar antes do sinistro os prêmios atrasados.

Art. 763: Não terá direito à indenização o segurado que estiver em mora no pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes de sua purgação.

Ao que parece, o dispositivo do artigo 763 não pode ser interpretado como defl agrador de uma perda defi nitiva do direito à indenização.

O entendimento nesse sentido atentaria contra o equilíbrio contratual e permitiria a exclusão de um dever inerente à natureza do contrato mesmo quando a mora do segurado signifi casse um prejuízo de intensidade insigni-fi cante em relação ao benefício (para a seguradora) decorrente da isenção do pagamento da indenização.

Desconsidera o dever de conduta conforme a boa-fé objetiva ao permitir a adoção de procedimento que despreza os interesses legítimos do segurado (a manutenção do contrato e a proteção contra os riscos). Há uma despro-porção latente, em grande parte dos contratos, entre a mora do segurado e o benefício do segurador.

É contrário ao próprio tratamento reservado pelo código à mora que, sal-vo quando torne inútil a prestação, não impede a satisfação da prestação devida (art. 956/395, parágrafo único).

É prejudicial à política de preservação dos contratos que se vislumbra por detrás do princípio da função social dos contratos, adotada pelo sistema do Novo Código Civil (art. 421).

Por todas essas razões, a aplicação do dispositivo no sentido de por um fi m de-fi nitivo ao contrato e privar o segurado ou o benefi ciário do prêmio, deve ser pre-cedida de um exame acurado e sério sobre as conseqüências da mora. A princípio, tratando-se de mora e não inadimplemento absoluto, não pode obstar a execução do contrato. Deve ser observada a intensidade da mora. O inadimplemento pode ser ínfi mo em atenção ao grau de cumprimento (“substantial performance”).

O STJ assim o decidiu desde o RESP 76.362/MT, rel. min. Ruy Rosado de Aguiar.

Tratando-se de seguro de consumo, o dispositivo não tem aplicação. É substituído por aquele do artigo 54, §2º do Código de Defesa do Consu-midor, que manda dar ao consumidor a alternativa, à sua escolha, entre a purgação da mora e a resolução do contrato.

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O segurado não se desobriga do prêmio nem mesmo com a diminuição do risco, salvo quando for considerável:

Art. 770: Salvo disposição em contrário, a diminuição do risco no curso do contrato não acarreta a redução do prêmio estipulado;mas, se a redução do risco for considerável, o segurado poderá exigir a revisão do prêmio, ou a resolução do contrato.

(ii) É também obrigação do segurado não contribuir para agravar os riscos:Compatibiliza-se com a regra de boa-fé.Art. 1.454: Enquanto vigorar o contrato, o segurado abster-se-á de tudo

quanto possa aumentar os riscos, ou seja contrário aos termos do estipulado, sob pena de perder o direito ao seguro.

Ex.: Faz contrato de seguro contra incêndio e passa a estocar material in-fl amável. Começa a fazer “rally” com o carro de passeio.

Art. 171, § 2º, V, CP: Estelionato: Nas mesmas penas incorre quem: des-trói, total ou parcialmente, ou oculta coisa própria, ou lesa o próprio corpo ou a saúde, ou agrava as consequências da lesão ou doença, com o intuito de haver indenização ou valor de seguro.

A conseqüência pode ser a perda do direito à garantia:Art. 768: O segurado perderá o direito à garantia se agravar intencional-

mente o risco objeto do contrato.(iii) Deve comunicar o incidente que possa aumentar o risco (art.

1.455/769):A pena é a mesma do caso anterior, em caso de má-fé na omissão.Se, por exemplo, não avisa que uma fábrica se instalou ao lado do imóvel

segurado contra incêndio.Notar que essa pena, tanto nesse caso quanto na de não agravamento dos

riscos, o Juiz deve proceder com eqüidade. É uma regra de atuação judicial:Art. 1.456: No aplicar a pena do art. 1.454, procederá o juiz com equida-

de, atentando nas circunstâncias reais, e não em probabilidades infundadas, quanto à agravação dos riscos.

Embora não tenha sido repetida no novo código é integralmente compa-tível com seu sistema.

Dá direito ao segurador de resolver o contrato.(iv) Avisar da ocorrência do sinistro (art. 1.457/771)Obrigações do Segurador:(i) Pagar o prejuízo decorrente do risco assumido:Art. 1.458: O segurador é obrigado a pagar em dinheiro o prejuízo resul-

tante do risco assumido e, conforme as circunstâncias, o valor total da coisa segura.

Art. 1.462: Quando ao objeto do contrato se der valor determinado, e o seguro se fi zer por este valor, fi cará o segurador obrigado, no caso de perda

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total, a pagar pelo valor ajustado a importância da indenização, sem perder por isso o direito, que lhe asseguram os arts. 1.438 e 1.439.

Art. 776: O segurador é obrigado a pagar em dinheiro o prejuízo resultan-te do risco assumido, salvo se convencionado a reposição da coisa.

O prazo para reclamar a indenização é aquele previsto no artigo 178, § 6º, II (art. 206, §1º, II): 1 (um) ano.

Alguns passaram a entender que, após o advento do Código de Defesa do Consumidor, o prazo teria se ampliado para 5 (cinco) anos diante do art. 27 daquele estatuto.

Todavia, o prazo ali estipulado, se refere à ação para reclamar a reparação de danos decorrente de fato do produto ou serviço, nada tendo a ver com a ação para cobrança da indenização do seguro. Assim vem decidindo o STJ (RESP’s 276308/RJ e 207789/RJ, em que foram relatores, respectivamente, os eminentes Ministros Carlos Alberto Menezes Direito e Aldir Passarinho).

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III – BIBLIOGRAFIA BÁSICA E COMPLEMENTAR

ASSIS, Araken de. Resolução do Contrato por Inadimplemento. São Paulo: RT, 1999

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral dos contratos típicos e atípicos. 3ed. São Paulo: Atlas, 2009.

AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e efi cácia. São Paulo: Saraiva, 2000.

BETTI, Emilio. Teoria generale del negozio giuridico. Napoli: Ed. Scien-tifi che Italiane, 1994.

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo, RT, 2000.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996.

NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Ja-neiro: Renovar, 2002.

PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. v.3. 18ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

SILVA, Juliana Pedreira da. Contratos sem negócio jurídico. São Paulo: Atlas, 2011.

SIMÃO, José Fernando. Vícios do Produto e do Serviço no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2003.

WERNER, José Guilherme Vasi. A formação, o controle e extinção dos contratos de consumo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

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JOSÉ GUILHERME VASI WERNERMestrando em Sociologia no Iuperj. Juiz de Direito no Tribunal de Jus-tiça do Rio de Janeiro. Ex-Conselheiro no Conselho Nacional de Justiça.

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FICHA TÉCNICA

Fundação Getulio Vargas

Carlos Ivan Simonsen LealPRESIDENTE

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Joaquim FalcãoDIRETOR

Sérgio GuerraVICE-DIRETOR DE ENSINO, PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

Rodrigo ViannaVICE-DIRETOR ADMINISTRATIVO

Thiago Bottino do AmaralCOORDENADOR DA GRADUAÇÃO

André Pacheco Teixeira MendesCOORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA

Cristina Nacif AlvesCOORDENADORA DE ENSINO

Marília AraújoCOORDENADORA EXECUTIVA DA GRADUAÇÃO