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TECNOALIMENTAR N.º27 2 AGROALIMENTAR Dinâmica Temporal de Sensações na análise sensorial de cervejas artesanais Júlio C. Machado Jr. Zita E. Martins Miguel A. Faria Isabel M.P.L.V.O. Ferreira LAQV/REQUIMTE, Departamento de Ciências Químicas, Laboratório de Bromatologia e Hidrologia, Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto (FFUP) RESUMO As cervejas artesanais com adição de frutas apresentam uma grande diversidade sen- sorial e diferente aceitação pelo consumi- dor. Avaliar a dinâmica temporal de sen- sações durante o consumo de cerveja de forma a associar dados temporais descriti- vos a dados temporais hedónicos, em vez da avaliação sensorial tradicional, foi uma nova abordagem utilizada neste trabalho. Deste modo, foi testada a utilização das metodologias: DTS (Dominância Tem- poral de Sensações), GTP (Guias Tempo- rais da Preferência) e PED (Preferência En- quanto Dominante) na análise sensorial de cervejas artesanais contendo frutas. O es- tudo foi realizado com trinta consumido- res regulares de cerveja que realizaram a prova de dois estilos diferentes (Blonde Ale e Catharina Sour) de cervejas artesanais com frutos vermelhos. Deste modo, foi possível caracterizar em pleno a riqueza e evolução das sensações no consumo de cada estilo de cerveja, fazer uma comparação temporal das sensações das duas cervejas, incluindo dados temporais descritivos e hedónicos. Palavras-chave: Dominância Tempo- ral de Sensações, Guias Temporais da Preferência, Preferência Enquanto Domi- nante, Frutos vermelhos, Consumidores. INTRODUÇÃO A cerveja é a bebida alcoólica mais con- sumida no mundo, com produção mun- dial superior a 1,9 biliões de hectolitros por ano desde 2011 (Statista, 2020). De- vido à diversidade das suas matérias-pri- mas e alternativas do processo de produ- ção, existem mais de 150 tipos de cervejas (BJCP, 2015; Brewers Association, 2020). Todavia, o mercado global é amplamente dominado por apenas dois tipos com uma quota superior a 83%, incluídos nas classi- ficações Standard e Premium lager (Marketli- ne, 2014). Estas são, na quase totalidade, cervejas de baixo custo, produzidas em grandes volumes em empresas multina- cionais, que tendem a ter um caráter sen- sorial bastante uniforme entre elas: refres- cantes, de sabores muito suaves e pouco complexos (BJCP, 2015). Por outro lado, o mercado de cervejas de- nominadas artesanais, impulsionado prin- cipalmente pelas microcervejeiras, tem procurado constantemente a diversidade de sabores para os seus produtos. As cer- vejas artesanais caracterizam-se por serem produzidas em pequena escala, através de um processo menos industrializado, focado na diferenciação do produto final e na se- leção dos ingredientes, resultando em dife- rentes tipos de cervejas com aromas e sabo- res peculiares (CraftBeer.com, 2017). Esta diversidade sensorial tem atraído, cada vez mais, a atenção do público consumidor de cervejas, fazendo-se notar não apenas pelo exponencial aumento de microcervejarias (The Brewers of Europe, 2019), mas tam- bém pelo atual interesse das grandes cer- vejeiras em produzir cervejas artesanais, além dos seus tradicionais estilos. Tradicionalmente, a cerveja é fei- ta com quatro ingredientes: água, mal- te, lúpulo e leveduras. A possibilidade de adição de outros ingredientes é determi- nada legalmente por cada país produtor. Em Portugal, de acordo com a Portaria nº 1/96 de 3 de janeiro, além dos quatro in- gredientes principais, é permitida a adição de frutos, produtos hortícolas, plantas aro- máticas, e auxiliares tecnológicos (clarifi- cadores, estabilizadores coloidais e corre- tores do teor enzimático dos maltes). «Tradicionalmente, a cerveja é feita com quatro ingredientes: água, malte, lúpulo e leveduras. A possibilidade de adição de outros ingredientes é determinada legalmente por cada país produtor» A adição de frutos é uma estratégia tradicio- nal para aumentar a intensidade e diversi- dade sensorial das cervejas. As cervejas Bel- gas do estilo Fruit Lambic , que normalmente contêm cerejas, framboesas, pêssegos, uva moscatel e groselhas pretas (BJCP, 2015), es- tão entre os exemplos centenários da utili- zação de frutas na cerveja e que perduram com sucesso e crescente valorização até aos nossos dias. Consequentemente, os cervejei- ros procuram, cada vez mais, acrescentar os

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TECNOALIMENTAR N.º 272

AGROALIMENTAR

Dinâmica Temporal de Sensações na análise sensorial de cervejas artesanais

Júlio C. Machado Jr.Zita E. MartinsMiguel A. Faria

Isabel M.P.L.V.O. Ferreira

LAQV/REQUIMTE, Departamento

de Ciências Químicas, Laboratório de

Bromatologia e Hidrologia, Faculdade de

Farmácia da Universidade do Porto (FFUP)

RESUMO As cervejas artesanais com adição de frutas apresentam uma grande diversidade sen-sorial e diferente aceitação pelo consumi-dor. Avaliar a dinâmica temporal de sen-sações durante o consumo de cerveja de forma a associar dados temporais descriti-vos a dados temporais hedónicos, em vez da avaliação sensorial tradicional, foi uma nova abordagem utilizada neste trabalho. Deste modo, foi testada a utilização das metodologias: DTS (Dominância Tem-poral de Sensações), GTP (Guias Tempo-rais da Preferência) e PED (Preferência En-quanto Dominante) na análise sensorial de cervejas artesanais contendo frutas. O es-tudo foi realizado com trinta consumido-res regulares de cerveja que realizaram a prova de dois estilos diferentes (Blonde Ale e Catharina Sour) de cervejas artesanais com frutos vermelhos. Deste modo, foi possível caracterizar em pleno a riqueza e evolução das sensações no consumo de cada estilo de cerveja, fazer uma comparação temporal das sensações das duas cervejas, incluindo dados temporais descritivos e hedónicos.

Palavras-chave: Dominância Tempo-ral de Sensações, Guias Temporais da Preferência, Preferência Enquanto Domi-nante, Frutos vermelhos, Consumidores.

INTRODUÇÃOA cerveja é a bebida alcoólica mais con-sumida no mundo, com produção mun-dial superior a 1,9 biliões de hectolitros por ano desde 2011 (Statista, 2020). De-vido à diversidade das suas matérias-pri-mas e alternativas do processo de produ-ção, existem mais de 150 tipos de cervejas (BJCP, 2015; Brewers Association, 2020). Todavia, o mercado global é amplamente dominado por apenas dois tipos com uma quota superior a 83%, incluídos nas classi-ficações Standard e Premium lager (Marketli-ne, 2014). Estas são, na quase totalidade, cervejas de baixo custo, produzidas em grandes volumes em empresas multina-cionais, que tendem a ter um caráter sen-sorial bastante uniforme entre elas: refres-cantes, de sabores muito suaves e pouco complexos (BJCP, 2015).

Por outro lado, o mercado de cervejas de-nominadas artesanais, impulsionado prin-cipalmente pelas microcervejeiras, tem procurado constantemente a diversidade de sabores para os seus produtos. As cer-vejas artesanais caracterizam-se por serem produzidas em pequena escala, através de um processo menos industrializado, focado na diferenciação do produto final e na se-leção dos ingredientes, resultando em dife-rentes tipos de cervejas com aromas e sabo-res peculiares (CraftBeer.com, 2017). Esta diversidade sensorial tem atraído, cada vez mais, a atenção do público consumidor de cervejas, fazendo-se notar não apenas pelo exponencial aumento de microcervejarias (The Brewers of Europe, 2019), mas tam-bém pelo atual interesse das grandes cer-vejeiras em produzir cervejas artesanais, além dos seus tradicionais estilos.

Tradicionalmente, a cerveja é fei-ta com quatro ingredientes: água, mal-te, lúpulo e leveduras. A possibilidade de adição de outros ingredientes é determi-nada legalmente por cada país produtor. Em Portugal, de acordo com a Portaria nº 1/96 de 3 de janeiro, além dos quatro in-gredientes principais, é permitida a adição de frutos, produtos hortícolas, plantas aro-máticas, e auxiliares tecnológicos (clarifi-cadores, estabilizadores coloidais e corre-tores do teor enzimático dos maltes).

«Tradicionalmente, a cerveja é feita com quatro ingredientes: água, malte, lúpulo e leveduras. A possibilidade de adição de outros ingredientes é determinada legalmente por cada país produtor»

A adição de frutos é uma estratégia tradicio-nal para aumentar a intensidade e diversi-dade sensorial das cervejas. As cervejas Bel-gas do estilo Fruit Lambic, que normalmente contêm cerejas, framboesas, pêssegos, uva moscatel e groselhas pretas (BJCP, 2015), es-tão entre os exemplos centenários da utili-zação de frutas na cerveja e que perduram com sucesso e crescente valorização até aos nossos dias. Consequentemente, os cervejei-ros procuram, cada vez mais, acrescentar os

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mais diversos frutos em diferentes estilos de cervejas. Entretanto, as possíveis combina-ções são infinitas e podem originar cerve-jas com características completamente dis-tintas das existentes, com maior ou menor aceitação por parte do consumidor. Neste contexto, a análise sensorial tem um papel muito relevante na decisão de lançamento de uma receita/produto que tenha uma boa aceitação por parte dos consumidores. Os métodos de análise sensorial usados para tal são, muito frequentemente, estáticos, isto é, são baseados numa prova única no tempo. Todavia, o consumo de alimentos/bebidas é um processo dinâmico, guiado por pro-cessos físicos e também fisiológicos, pelo que a sua plena avaliação requer uma aborda-gem que seja sensível ao desenrolar das per-ceções durante o consumo de um alimento (Thomas et al., 2017).

Avaliar a dinâmica temporal de sensa-ções durante o consumo da cerveja requer metodologias inovadoras, tais como DTS (Dominância Temporal de Sensações), GTP (Guias Temporais da Preferência) e PED (Preferência Enquanto Dominante), também conhecidas pelas siglas em inglês de TDS (Temporal Dominance of Sensations), TDL (Temporal Drivers of Liking) e LWD (Li-king While Dominant), respetivamente.

O método de DTS, proposto inicial-mente por Pineau et al. (2004), é uma aná-lise temporal multi-atributo que permite colher, numa única avaliação da bebida, dados temporais de vários atributos sen-soriais e traçar curvas de dominância de cada atributo ao longo do tempo (Pineau et al., 2004). É também possível repetir a avaliação de forma a obter avaliações DTS consecutivas referentes a cada gole ingeri-do (Pineau et al., 2009). Além disso, quan-do associada à metodologia GTP, permite estabelecer guias temporais da preferência, baseados nas alterações de preferência dos consumidores depois de realizarem a aná-lise DTS e seguir a evolução da preferência ao longo do tempo de ingestão do produ-to (Thomas et al., 2015). Deste modo, é pos-sível associar dados temporais hedónicos a dados temporais descritivos (perfis DTS), com o objetivo de identificar motivadores de preferência, ou seja, atributos que, quan-do citados como dominantes, levariam à diminuição ou ao aumento da preferência (Thomas et al., 2017; Thomas et al., 2016).

O objetivo deste estudo foi desenvolver e testar um método adequado para reali-zar uma avaliação dinâmica temporal de sensações de cervejas artesanais conten-

do frutos, recorrendo a DTS (Dominân-cia Temporal de Sensações), GTP (Guias Temporais da Preferência) e PED (Prefe-rência Enquanto Dominante).

MATERIAL E MÉTODOS

Seleção e aquisição das cervejasForam selecionados e adquiridos no merca-do dois tipos de cervejas artesanais adicio-nadas de frutos, Blonde Ale e Catharina Sour, tipos onde a adição de frutos vermelhos é frequente. As cervejas finais apresentavam as seguintes características físico-quími-cas: Blonde Ale: coloração de 30 EBC, 6,1% de álcool, e 15 unidades internacionais de amargor (IBU); Catharina Sour: cor de 20 EBC, 5,6% de volume alcoólico e 4 IBUs.

Seleção do painel sensorialO tamanho do painel sensorial foi deter-minado de acordo com os cálculos pro-postos por Pineau et al. (2009), segundo o qual o número mínimo de observações para um teste TDS é calculado segundo a equação: n = número de produtos/(P0 * (1- P0)), sendo P0 = 1/p, e p o número de atri-butos. Os dados do presente estudo resul-tam na equação n = 2/(0,125 * (1 – 0,125)) = 19 pelo que, tendo em conta a não inclu-são de replicados, preconiza a necessidade de recorrer a pelo menos 19 participantes.

Trinta indivíduos saudáveis de na-cionalidade portuguesa com idades com-preendidas entre os 18 e os 65 anos (mulhe-res: n=17; homens: n=13) foram recrutados como voluntários. Todos os participantes eram consumidores habituais de cerveja com experiência reportada pelos próprios na descrição e avaliação críticas de aroma e paladar. Os participantes não receberam

qualquer tipo de incentivo monetário pela sua participação, tendo assinado um ter-mo de consentimento informado.

Procedimento geral das provasAs sessões de prova tiveram lugar em am-biente calmo e isento de odores fortes à temperatura ambiente tendo a duração aproximada de uma hora. Cada consumi-dor provou cerveja Blonde numa sessão e cerveja Sour numa outra sessão distinta. Os copos de cerveja fornecidos foram codifica-dos com 3 dígitos e provados à temperatu-ra de 10 ºC (10± 2 ºC). Metade dos consu-midores iniciou as suas provas com o estilo Blonde e a outra metade com o estilo Sour. As provas decorreram entre as 12 e as 13 horas tendo os consumidores sido instruí-dos para não ingerirem nada nas três horas antecedentes. Todos os consumidores rece-beram instruções detalhadas sobre o pro-cedimento geral e a instrução para lavar o palato com água previamente à prova. Os dados foram recolhidos usando um pro-grama informático desenvolvido pelo gru-po de investigação e que foi disponibilizado aos avaliadores num computador portátil.

Os consumidores realizaram a avaliação dos Guias Temporais da Preferência (GTP) para cada um dos dois produtos, sem qual-quer tipo de treino específico. O protocolo do GTP consistiu na avaliação da Dominân-cia Temporal das Sensações (DTS) durante cada gole, seguido da classificação numa es-cala de preferência apresentada no ecrã ime-diatamente após o final de cada avaliação DTS. Após este primeiro ciclo do procedi-mento, repetiu-se um novo ciclo. Na Figu-ra 1 apresenta-se a imagem representativa do protocolo de aquisição de dados mostran-do a avaliação DTS e a escala de preferência.

FIGURA 1. Figura representativa do protocolo de aquisição de dados mostrando a avaliação DTS e a escala para avaliação dinâmica da preferência.

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Avaliação da Dominância Temporal de Sensações (DTS)A lista DTS incluía oito atributos: doce, malte, frutos vermelhos, amargo, lúpulo, ácido, azedo e levedura (Figura 1). Esta lista foi previamente estabelecida com base em testes preliminares recorrendo a um painel interno ao qual foi solicitada a listagem de vocabulário representativo das sensações experimentadas ao ingerir as duas cervejas em estudo.

Durante o teste, os oito atributos se-lecionados foram apresentados num ecrã e apenas a dominância foi registada (sem anotação da intensidade). Para cada pro-duto em teste, e cada gole, os consumidores mantiveram o produto na boca enquanto pressionavam o botão “Na boca”. Depois, podiam escolher o atributo dominante em qualquer momento no período que manti-nham o gole na boca. O conceito de atri-buto dominante foi definido como “o atri-buto associado à sensação que se salientava num determinado momento” (Pineau et al., 2009). Durante a prova, cada atributo po-deria ser livremente selecionado várias ve-zes ou nunca ser selecionado.

«O método de DTS, proposto inicialmente por Pineau et al. (2004), é uma análise temporal multi-atributo que permite colher, numa única avaliação da bebida, dados temporais de vários atributos sensoriais e traçar curvas de dominância de cada atributo ao longo do tempo»

Após o período de permanência do produ-to na boca, os consumidores deglutiam a cerveja e continuavam a avaliar e registar as sensações dominantes até não sentirem qualquer atributo. Neste momento pressio-navam o botão “STOP”. O funcionamen-to dos botões “Na boca” e “STOP” eram alvo de uma especial atenção aquando da explicação do procedimento de prova, dada a sua importância crucial no proces-so, através de uma demonstração detalha-da antes de cada sessão.

Para cada gole a ativação do botão “Na boca” iniciava um cronómetro que monitorizava o tempo durante o qual de-terminado atributo era considerado do-minante antes de ser substituído por um outro atributo que se tornava então domi-nante para o participante. Após ser acio-nado, cada atributo ficava salientado no ecrã até que outro fosse selecionado. Cada

gole poderia, assim, apresentar múltiplos atributos dominantes em sequência. A contagem do tempo seria terminada pela ação do botão “STOP”.

No final, a sequência dos atributos do-minantes foi registada juntamente com o tempo respetivo da sua duração para cada produto e consumidor. Para cada atribu-to, a duração da dominância foi calculada, correspondendo ao tempo decorrido entre a sua seleção e a mudança para outro atri-buto. Se um determinado atributo nunca fosse selecionado a duração da sua domi-nância seria nula.

Avaliação dinâmica da preferência No final de cada avaliação de dominância de sensações (DTS), os participantes, após acionarem o botão “STOP”, eram solici-tados a indicar a sua avaliação da prefe-rência do produto numa escala hedónica contínua de 9 pontos, variando entre os extremos “gosto pouco” e “gosto muito”.

Análise dos dadosTodas as análises estatísticas e gráficos fo-ram executadas utilizando o software livre R (R version 4.0.2, RStudio team, 2020).

Dominância Temporal de Sensações (DTS)Uma curva DTS representa a proporção dos consumidores que selecionaram de-terminado atributo como dominante du-rante certo período de tempo (Pineau et al., 2009). Os tempos foram padroniza-dos entre 0, aquando da primeira seleção do atributo, e 1 quando era pressionado “STOP”, para cada avaliação de um gole, por consumidor, de modo a alinhar as di-ferentes respostas (Lenfant et al., 2009). Posteriormente, as curvas resultantes fo-ram suavizadas e sobrepostas (por produ-to e período) resultando num perfil tem-poral para os dois produtos e dois ciclos.

Guias temporais de preferência (GTP)A metodologia seguida para o tratamen-to dos dados temporais de preferência é baseada no conceito de PED (Preferência Enquanto Dominante) descrito por Tho-mas et al., (2015). Os valores de PED cor-respondem à média das classificações de preferência atribuídos por um consumi-dor a um determinado produto enquanto o atributo for dominante. Este valor é re-gistado durante a dominância do atribu-to e ponderado para a sua duração.

Neste trabalho, que seguiu a metodologia GTP, a classificação de preferência foi apli-cada a todos os atributos dominantes referi-dos no gole correspondente para cada con-sumidor individual, de modo a se obter os valores de PED. Cada um dos valores in-dividuais de PED foi centrado em relação à média das classificações de preferência (ponderadas para a duração do gole) dadas pelo correspondente consumidor, obtendo--se os valores de PEDC (Preferência En-quanto Dominante Centrada). Estes valo-res PEDC são representados como médias dos valores atribuídos por todos os consu-midores, por atributo e produto.

A hipótese nula de cada um das médias de PEDC foi testada usando uma distribui-ção t com um número de graus de liberda-de igual ao de consumidores que citaram este atributo neste produto menos uma vez. Quando significativamente maior (menor) que 0 (p < 0,1), indica um guia de preferên-cia temporal positivo (negativo).

Dinâmica da preferênciaPara cada consumidor, por produto e tem-po, foi calculada a preferência individual média, considerando as diferentes classi-ficações de preferência atribuídas durante os dois goles definindo um ciclo específico. Posteriormente, um modelo ANOVA mis-to foi usado para o tratamento dos dados onde “prod”, “per” e “cons” significam produto, ciclo e consumidor, respetiva-mente. As interações entre os consumido-res e todos os outros fatores foram consi-derados efeitos aleatórios. Por último, a média das preferências individuais foi cal-culada para cada produto por par de pe-ríodo temporal e estes foram comparados com o teste de Tukey para p < 0,05.

RESULTADOS

Dominância Temporal de Sensações Na Figura 2 apresentam-se as curvas de DTS para as duas cervejas e dois ciclos ao longo do tempo padronizado. Pode verificar-se que todos os atributos foram detetados acima dos níveis de significân-cia, em ambas cervejas, nos dois goles.

Para a Blonde Ale, no primeiro gole (ci-clo 1), a cerveja apresenta como caracterís-tica dominante o malte, percebendo-se se-guidamente frutos vermelhos e levedura. Os atributos doce, amargo e lúpulo fazem--se notar a partir de metade do período de tempo avaliado acabando por ser domi-

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nantes no final do gole. No que respeita o segundo ciclo, não há uma perceção signi-ficativa para todos os atributos durante o primeiro quadrante temporal do gole. A partir deste momento inicia-se o apareci-mento da acidez e frutos vermelhos, salien-tando-se o doce e levedura para o meio do gole. Os demais atributos, lúpulo, amargo, azedo e malte são percebidos a partir do meio do gole, que apresenta um final com dominância azeda.

«A comparação do perfil sensorial das duas cervejas artesanais apresentada nas curvas de diferença de DTS mostrou a diferença da taxa de dominância dos atributos. Avaliação que pode ser muito útil no desenvolvimento de produtos»

No caso da cerveja Catharina Sour, no pri-meiro ciclo há um hiato temporal entre o início do gole e as primeiras perceções significativas e duradouras quando se co-meça a notar o malte com baixa intensi-dade e, principalmente, doce a frutos ver-melhos com maior relevância. A meio do gole, sensivelmente, inicia-se a perceção dos demais atributos, levedura e acidez nos primeiros momentos, cuja intensidade vai decrescendo dando lugar ao aumento de intensidade do lúpulo e azedo na par-te final do gole. O segundo ciclo inicia-se com uma leve perceção de acidez e frutos vermelhos, que, seguidamente, passa a ser dominada por notas de levedura. No en-tanto, os frutos vermelhos parecem ser o atributo dominante na etapa intermediá-ria do gole. O final do gole caracterizou--se por ser bastante amargo, mas também azedo, com perceções adicionais de lúpu-lo, leveduras e malte.

A Figura 3 mostra as curvas de di-ferença de DTS entre as cervejas Blonde e Sour. As análises within cycle foram usa-das para focar na comparação direta das perceções sensoriais entre as duas cer-vejas. Os atributos sensoriais sobre a li-nha central indicam uma taxa de domi-nância significativamente maior (p <0,1) para a cerveja Blonde e aqueles abaixo da linha central indicam uma taxa de domi-nância significativamente maior (p <0,1) para a Sour ao longo do tempo padroniza-do, dentro de cada ciclo. A cerveja Blon-de teve pontuação significativamente mais

FIGURA 2. Curvas de Dominância Temporal de Sensações para as duas cervejas e dois ciclos ao longo do tempo padronizado (a área a cinza abaixo do nível de significância representa o ruído).

FIGURA 3. Curvas de diferença significativa da Dominância Temporal de Sensações entre as duas cerve-jas e dois ciclos ao longo do tempo padronizado.

TABELA 1. Guias Temporais de Preferência.

DescritoresBlonde Sour

n PEDC n PEDCDoce 7 0.00 2 -0.08

Lúpulo 3 0.00 1 0.00Malte 11 0.00 2 0.00Ácido 5 0.04 11 0.01

Frutos Vermelhos 16 -0.01 16 -0.02Azedo 3 0.00 6 -0.01

Amargo 4 0.00 2 0.08Levedura 1 0.00 0 —

n, número de indivíduos que citaram o descritor na cerveja; PEDC, Média da Preferência Enquanto Dominante individual centrada.Níveis de significância: *10%, **5%, ***1%.

FIGURA 4. Valores de preferência por cerveja e por ciclo. Os resultados obtidos foram avaliados es-tatisticamente por uma análise de variância de mo-delo misto e as médias comparadas pelo teste de Tukey. Letras diferentes mostram diferenças esta-tisticamente significativas (p < 0,05) entre médias.

alta para “levedura” no final do primeiro ciclo e no meio do segundo ciclo. Em con-traste, a cerveja Sour pontuou significati-vamente mais alto para “doce” no meio e “malte” no final do primeiro ciclo; e “fru-tos vermelhos” no meio e “doce” no final do segundo ciclo.

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Guias temporais de preferênciaNa Tabela 1 apresentam-se Guias Tem-porais de Preferência para os dois tipos de cerveja e oito atributos. Não se verificaram GTP negativos ou positivos em nenhuma das cervejas. Desta forma não foi identifi-cado nenhum atributo dominante que pu-desse ser associado a um aumento ou di-minuição significativos da preferência.

Dinâmica da preferênciaNa Figura 4 estão ilustrados os valores de preferência por cerveja e por ciclo. O mode-lo de análise de variância não demonstrou interações significativas entre a cerveja e o ciclo (F=1,89; p=0,1797), o que indica que a preferência evolui da mesma forma para as duas cervejas e para os dois ciclos. Não foi encontrado um efeito significativo para o ciclo (F=1,77; p=0,1941), mas foi encon-trado para a cerveja ((F=6,42; p=0,0169). De uma forma global, os valores de prefe-rência foram superiores para a Blonde, com-parativamente à Sour (5,7 vs 4,8).

DISCUSSÃONuma cerveja com frutos deve procurar--se um equilíbrio entre os componentes da cerveja base e as característica peculiares dos frutos, sem sugerir um produto artifi-cial (BJCP, 2015). No caso da cerveja Blon-de Ale estudada, pelas caraterística do seu estilo, Belgian-Style Fruit Beer, deve ser uma cerveja com aromas dos frutos adiciona-dos, com intensidade variada de subtil a intensa, e não dominados pelos aromas de lúpulo. Espera-se que seja uma cerve-ja com baixa perceção de malte, lúpulo e amargor; com maior presença das ca-racterísticas com origem no processo fer-mentativo como ésteres frutados e menor influência dos fenólicos (Brewers Associa-tion, 2020). Neste aspeto sensorial, a cer-veja Blonde Ale analisada demonstrou, du-rante a análise da dominância temporal, nem sempre estar de acordo com a defi-nição do estilo. As perceções de acidez, azedo, maltados, adocicados, lúpulos e amargor foram dominantes em relação aos frutos vermelhos em diversos momen-tos. Esta conclusão só é possível pela ava-liação da Dominância Temporal de Sen-sações, pois, como foi possível observar, a perceção sensorial foi variando ao longo dos dois ciclos de consumo.

O estilo Catharina Sour foi adiciona-do em junho de 2018 como estilo provisó-rio no guia do BJCP (Beer Judge Certification Program). A integração de um estilo na lis-

ta oficial da BJCP depende de alguns fa-tores (como quantidade e internacionaliza-ção de produtos, consistência da produção, padronização de parâmetros químicos e sensoriais) para se tornar uma categoria de cervejas independente e bem caracteri-zada. No caso da Catharina Sour trata-se de uma cerveja contendo trigo, leve e refres-cante, com percetível acidez lática (baixa a média-alta) que é equilibrada pela adição de fruta fresca, que deve ser dominante no sabor no produto final. O sabor do malte geralmente está ausente, mas pode forne-cer um sabor pouco granulado ou de pão. No entanto, o malte nunca deve compe-tir com a fruta ou com o azedo. Os sabo-res e amargor do lúpulo devem ser abai-xo do limite sensorial. O final deve ser seco com um retro-sabor ácido e frutado (BJCP, 2018). A análise desta cerveja pelo méto-do da DTS permitiu verificar que o produ-to, em boa parte da dinâmica dos dois go-les, apresentava características próprias do estilo, com proeminência da acidez/azedo e frutos vermelhos. No entanto, foi notado um final lupulado (aroma e amargor) atí-pico do estilo. Também na análise dos da-dos de DTS da cerveja Catharina Sour é no-tória a importância da dinâmica temporal das sensações como forma de caracterizar em pleno a riqueza e evolução das sensa-ções ao longo do consumo de um produto.

«A abordagem proposta constitui uma ferramenta útil no lançamento de novas cervejas artesanais, pois permite obter curvas de dominância de cada atributo ao longo do tempo, em duas avaliações DTS consecutivas, referentes a cada gole ingerido, e caracterizar em pleno a riqueza e evolução das sensações no consumo de cada tipo de cerveja»

Variações no perfil sensorial das cervejas durante os diferentes goles ocorrem fre-quentemente e foram realçadas em estu-dos anteriores (Simioni et al., 2020). Simio-ni (2018) aplicou a metodologia DTS em quatro tipos de cervejas, incluindo cerve-jas do tipo Belga Witbier, que embora tenha em comum com a cerveja Catharina Sour ser uma cerveja de trigo, não possui a acidez láctica caraterística desta cerveja. Trata--se de uma cerveja fermentada com estir-pes de leveduras belgas, adicionada de fru-tos cítricos e de especiarias. Neste estudo

os autores demonstraram uma diminui-ção na perceção dos atributos que caracte-rizam o sabor do estilo (frutado, floral, cí-trico, doce e especiarias) e um aumento na perceção do amargor, concomitantemente, com a diminuição na aceitabilidade geral da cerveja ao longo do consumo repetido. Resultados semelhantes aos encontrados no presente trabalho, quando se compara a evolução do amargor e perceção do lúpulo com as características frutadas iniciais da Catharina Sour. Contudo, nesta, as particu-lares características de acidez permanece-ram em destaque, no fim de cada gole.

A comparação do perfil sensorial das duas cervejas artesanais apresentada nas curvas de diferença de DTS mostrou a di-ferença da taxa de dominância dos atribu-tos. Avaliação que pode ser muito útil no desenvolvimento de produtos, por exem-plo, na escolha de receitas ou estilos que permitam uma maior perceção de deter-minado atributo. Neste estudo foi possí-vel verificar que os frutos vermelhos apre-sentaram maior dominância na Catharina Sour, embora não tenha sido identificado nenhum atributo dominante que pudesse ser associado a um aumento ou diminui-ção significativos da preferência.

No que respeita à comparação da ava-liação entre os dois ciclos, não foram re-feridas diferenças significativas na dinâ-mica de preferência durante os goles, mas os valores de preferência foram superiores para a cerveja Blonde, comparativamen-te à Sour. Outros autores têm apresenta-do resultados que mostram diferenças sig-nificativas da evolução da preferência em cerca de 50% das cervejas avaliadas, to-davia não sendo notada diferença signifi-cativa entre dois goles em sequência (Cor-rêa Simioni et al., 2018; Wakihira et al., 2020). Estes resultados são concordantes com os obtidos no presente trabalho.

CONCLUSÃOA abordagem proposta constitui uma fer-ramenta útil no lançamento de novas cer-vejas artesanais, pois permite obter curvas de dominância de cada atributo ao longo do tempo, em duas avaliações DTS con-secutivas, referentes a cada gole ingerido, e caracterizar em pleno a riqueza e evo-lução das sensações no consumo de cada tipo de cerveja. Adicionalmente, as cur-vas de diferença de DTS entre as cervejas Blonde e Catharina Sour possibilitam uma comparação direta das perceções senso-riais entre as duas cervejas. É também

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AGROALIMENTAR

possível associar aos perfis de DTS dados temporais hedónicos, que neste caso indi-caram valores de preferência superiores para a cerveja Blonde, comparativamen-te à Sour, sem, no entanto, identificar ne-nhum atributo dominante que pudesse ser associado com diferenças da preferência.

AGRADECIMENTOSEste trabalho foi financiado pelo FEDER – Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional através do COMPETE 2020 – Programa operacional para a competitividade e internacionalização (POCI) e por fundos portugueses FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia através do projeto PTDC/SAU-NUT/30322/2017.

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