dialogo entre os que chegaram depois-brasil-india-china-africa do sul

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Brasil, MØxico, `frica do Sul, ˝ndia e China diÆlogo entre os que chegaram depois Arquivo Upado por MuriloBauer - FileWarez

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Palestras realizadas na cidade de Sao Paulo que,visam compreender o tema dos paises "emergentes".

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Brasil, México, África do Sul,Índia e China

diálogo entre os que chegaram depois

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FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP

Presidente do Conselho CuradorJosé Carlos Souza Trindade

Diretor-PresidenteJosé Castilho Marques Neto

Editor ExecutivoJézio Hernani Bomfim Gutierre

Conselho Editorial AcadêmicoAlberto IkedaAntonio Carlos Carrera de SouzaAntonio de Pádua Pithon CyrinoBenedito AntunesIsabel Maria F. R. LoureiroLígia M. Vettorato TrevisanLourdes A. M. dos Santos PintoRaul Borges GuimarãesRuben AldrovandiTania Regina de Luca

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ReitorJacques Marcovitch

Vice-ReitorAdolpho José Melfi

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

PresidentePlinio Martins Filho (Pro-tempore)

Comissão EditorialPlinio Martins Filho (Presidente)José MindlinLaura de Mello e SouzaMurillo MarxOswaldo Paulo Forattini

Diretora EditorialSilvana Biral

Diretora ComercialEliana Urabayashi

Diretor AdministrativoRenato Calbucci

Editor-assistenteJoão Bandeira

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Brasil, México, África do Sul,Índia e China:

diálogo entre os que chegaram depois

Organizadores

Glauco ArbixAlvaro Comin

Mauro ZilboviciusRicardo Abramovay

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© 2002 Editora UNESP

Direitos de publicação reservados à:Fundação Editora da UNESP (FEU)Praça da Sé, 108 � 01001-900 � São Paulo � SPTel.: (0xx11) 3242-7171Fax: (0xx11) 3242-7172Home page: www.editora.unesp.brE-mail: [email protected]

Editora da Universidade de São Paulo (Edusp)Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 3746º andar � Ed. da Antiga Reitoria � Cidade Universitária05508-900 � São Paulo � SP � BrasilTel.: (0xx11) 3091-4008/3091-4150Fax: (0xx11) 3091-4151Home page: www.usp.br/eduspE-mail: [email protected]

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Brasil, México, África do Sul, Índia e China: diálogo entre os que chegaramdepois / organizadores Glauco Arbix... [et al]. � São Paulo: EditoraUNESP: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.

Outros organizadores: Alvaro Comin, Mauro Zilbovicius, RicardoAbramovay

Vários autores.ISBN 85-7139-435-0 (Editora UNESP)

1. Desenvolvimento econômico 2. Países em desenvolvimento �Condições econômicas 3. Países em desenvolvimento � Políticaeconômica I. Arbix, Glauco. II. Comin, Alvaro. III. Zilbovicius, Mauro.IV. Abramovay, Ricardo.

02-6103 CDD-330.91724

Índice para catálogo sistemático:1. Países em desenvolvimento : Condições econômicas 330.91724

Editora afiliada:

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Agradecimentos

Para a realização do II Seminário Internacional “Brasil, México, Áfricado Sul, Índia e China: Estratégias de Integração e Desenvolvimento”, nosdias 27 e 28 de agosto de 2001, que deu origem a esta publicação, conta-mos com a valiosa ajuda da Reitoria da USP, por intermédio do magníficoreitor Jacques Marcovitch; da Fundação Memorial da América Latina, daFundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) e da Fundação CarlosAlberto Vanzolini; da FFLCH, FEA e da Escola Politécnica; do Sindicatodos Metalúrgicos do ABC; da Edusp e da Editora UNESP; da Toni CotrimComunicação; e da competente dedicação da Comissão de Eventos daEscola Politécnica/USP.

Gostaríamos de destacar o apoio recebido dos professores: LísiasNogueira Negrão (chefe do departamento de Sociologia, da FFLCH/USP),Antonio Massola (diretor da Escola Politécnica/USP), Eliseu Martins(diretor da FEA/USP).

De modo especial, queremos agradecer à Fundação Memorial daAmérica Latina, por intermédio de seu diretor-presidente, Fábio Maga-lhães, e de Isaura Botelho, o valioso auxílio material e estratégico. ÀComissão de Eventos da Escola Politécnica, nossa gratidão pelo suporteorganizacional e provimento de toda infra-estrutura necessária. Aos con-vidados estrangeiros e pesquisadores brasileiros, nossa profunda grati-dão. Ao público que nos honrou mais uma vez, em especial aos nossosalunos e alunas, nosso profundo agradecimento.

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Sumário

Sobre os autores 9

IntroduçãoDiálogo entre os que chegaram depois 13

Parte IDesenvolvimento, liberalização e globalização

1 Diversidade e desenvolvimento 25

Rubens Ricupero

2 Estratégias de desenvolvimento para o novo século 43

Dani Rodrik

3 Estagnação, liberalização e investimentoexterno na América Latina 79

Glauco Arbix, Mariano Laplane

4 Rompendo o modelo. Uma economia políticainstitucionalista alternativa à teoria neoliberaldo mercado e do Estado 99

Ha-Joon Chang

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

Parte IIAgricultura e agroindústria

5 A dialética do progresso social: a luta contínuapela igualdade na Índia rural 137

Jan Breman

6 Velhos e novos mitos do rural brasileiro: implicaçõespara as políticas públicas 151

José Graziano da Silva

7 A agricultura indiana na era da liberalização 175

John Harriss

8 Um novo dilema para os países em desenvolvimento.O comércio internacional de organismos geneticamentemodificados e as negociações multilaterais 185

Simonetta Zarrilli

Parte IIIEstado, integração regional e desenvolvimento

9 O papel do Estado na economia: um exameteórico sobre o caso chinês 251

Zhiyuan Cui

10 A estratégia econômica global da África do Sul 275

Faizal Ismail, Peter Draper, Xavier Carim

11 Periferias regionais e globalização:o caminho para os Balcãs 293

Francisco de Oliveira

12 As políticas macroeconômicas e o entornojurídico-institucional na indústria maquiladorade exportações do México e da América Central 301

Jorge Máttar, René A. Hernández

13 Transferência de tecnologia e a integraçãopositiva na economia global 329

Assad Omer

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Sobre os autores

Alvaro Comin. Professor do Departamento de Sociologia da USP. Mestre emSociologia pela USP. Atualmente desenvolve pesquisa sobre a Mobilidade So-cial no Brasil dos Anos 90. É autor, entre outras publicações, do livro Os cava-leiros do antiapocalipse, com Francisco de Oliveira (1999).

Assad Omer. Doutor em Direito pela Universidade de Genebra (Suíça), é dire-tor do Departamento Internacional de Políticas de Investimento e Capacitação(Divisão de Investimento, Tecnologia e Desenvolvimento Empresarial) daUnctad. Especialista em Investimentos Diretos Externos (IEDs) e em proces-sos de transferência e tecnologia. Professor de universidades francesas, é au-tor de artigos sobre tecnologia e os países em desenvolvimento e comérciointernacional.

Dani Rodrik. Professor de Economia Política Internacional da Escola de Gover-no John F. Kennedy, da Universidade de Harvard (EUA) e ex-professor da Uni-versidade de Columbia. Publicou intensamente na área de economia interna-cional e desenvolvimento. É pesquisador do National Bureau of EconomicResearch, do Centre for Economic Policy Research (Londres), do OverseasDevelopment Council, Institute for International Economics, and Council onForeign Relations. Publicou, entre outros: The New Global Economy and DevelopingCountries: Making Openness Work (1999); Has Globalization Gone too Far (1997);Emerging Agenda for Global Trade: High Stakes for Developing Countries (1996).

Francisco de Oliveira. Professor titular do Departamento de Sociologia da USP.Foi superintendente-substituto da Sudene, na gestão de Celso Furtado (1959-1964). Foi economista da ONU (1965-1966) e professor do CEMLA-México e

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

da Pós-Graduação da PUC-SP. Foi pesquisador do CNRS, da OCDE e da ORSTOM

(na França). Pesquisador do Cebrap, foi seu presidente entre 1993-1995. Foimembro fundador do Partido dos Trabalhadores. Na USP, fundou e coorde-nou o Núcleo de Estudos dos Direitos da Cidadania (Nedic). Livros publica-dos: A economia brasileira: crítica à razão dualista; Elegia para uma re(li)gião; A eco-nomia da dependência imperfeita; O elo perdido; Celso Furtado: antologia e introdução;Collor, a falsificação da ira; Os cavaleiros do antiapocalipse (com Alvaro Comin);Os direitos do antivalor; Os sentidos da democracia (com Maria Célia Paoli).

Glauco Arbix. Professor Doutor do Departamento de Sociologia da USP. Publi-cou: Uma aposta no futuro. Os primeiros anos da câmara setorial da indústria auto-mobilística (1996) e De JK a FHC: a reinvenção dos carros (com M. Zilbovicius, 1997);Razões e ficções do desenvolvimento (com R. Abramovay e M. Zilbovicius, 2001).Pesquisador da Fapesp, do CNPq, com pós-doutorado na London School ofEconomics and Political Science (Inglaterra), Sloan School of Managementdo Massachusetts Institute of Technology (EUA) e na School of Industrial andLabor Relations da Cornell University (EUA).

Ha-Joon Chang. Economista formado em Seul, na Coréia do Sul, é professor daFaculdade de Economia da Universidade de Cambridge (Inglaterra) e diretorde seu Centro de Estudos de Desenvolvimento. Consultor da Unctad, UNDP,Unido, Wider, do governo britânico e da África do Sul, especializou-se noestudo de políticas de industrialização, das corporações transnacionais e naglobalização. É autor de: The Political Economy of Industrial Policy (1994); El Pa-pel del Estado en el Cambio Económico (1996). Estão no prelo: Kicking Away theLadder – Development Strategy in Historical Perspective (2002); Restructuring KoreaInc. – Financial Crisis, Corporate Reform, and Institutional Transition (com Jang-Sup Shin, 2002).

Jan Breman. Professor de Sociologia Comparada da Universidade de Amsterdãe do Institute of Social Studies, em Haia. Foi diretor da School for Social ScienceResearch (Amsterdã), professor do Institute of Economic Growth, em NovaDelhi (Índia) e da Agricultural University (Indonésia). Consultor da OIT,UNRISD, ESCAP, Asian Development Bank e do Dutch Ministry of Developmentand Cooperation. Publicou: Of Patronage and Exploitation (1974); Of Peasants,Migrants and Workers (1985), Taming the Coolie Beast (1989); Labour Migrationand Rural Transformation in Colonial India (1990); Beyond Patronage and Exploitation(1993); Wage Hunters and Gatherers (1994); The Village in Asia Revisited, com J.Parry e K. Kapadia (1997); The Worlds of Indian Industrial Labour, com A. Das eR. Agarwal (1999); Labouring under Global Capitalism (2000). Em 1998, rece-beu o Edgar Graham Book Prize por seu livro Footloose Labour: Working in India’sInformal Economy (1996).

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Sobre os autores

John Harriss. Diretor do Development Studies Institute da London School ofEconomics (Inglaterra) e editor do Journal of Development Studies (Inglaterra).É especialista em análise comparada de desenvolvimento regional. Vempesquisando as políticas de desenvolvimento na Índia desde os anos 60, de-bruçando-se especialmente sobre a política agrícola e o desenvolvimento so-cial. Entre seus livros mais recentes encontram-se: New Institutional Economicsand 3rd World Development (1997) e Reinventing India: Liberalization, HinduNationalism and Popular Democracy, com Stuart Corbridge (2000).

Jorge Máttar. Economista, diretor de pesquisas da Cepal (México). Foi asses-sor regional de Desenvolvimento Econômico da Cepal, professor do Centrode Investigación y Docencia Económicas en México (1982-1987), consultorda ONU-DI (1984-1989) e Diretor de Estudos Setoriais do Grupo FinanceiroSerfin (1994). Foi também professor de Economia Aplicada e OrganizaçãoIndustrial e do programa de doutorado da Universidad Nacional Autónomado México.

José Graziano da Silva. Professor titular de Economia Agrícola do Instituto deEconomia da Unicamp, com pós-doutorado no Institute of Latin AmericanStudies da University College of London (Inglaterra). Coordenador do proje-to temático “O Novo Rural Brasileiro” (Projeto Reurbano) e do projeto “Agri-cultura no Brasil” do Programa de Núcleos de Excelência (Pronex) da Finep/CNPq. Autor de onze livros, recebeu do Instituto de Economia da Unicamp oprêmio de Reconhecimento Acadêmico Zeferino Vaz, em 2000.

Mariano Laplane. Professor e pesquisador do Instituto de Economia da Unicamp,publicou extensamente sobre os processos de industrialização latino-ameri-canos, em especial sobre os impactos da integração promovida pelo Mercosul.Neste livro apresenta resultados de suas pesquisas, em artigo conjunto comGlauco Arbix (USP), intitulado “Estagnação, liberalização e investimento ex-terno na América Latina”, que revela as relações dos investimentos diretosexternos no continente e as estratégias voltadas para os mercados domésti-cos que pautam a atuação das grandes corporações.

Mauro Zilbovicius. Engenheiro de Produção, doutor e mestre em Engenhariapela Escola Politécnica da USP. Professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção da Escola Politécnica da USP. Autor deModelos para a produção, produção de modelos: gênese, lógica e difusão do modelo japonêsde gestão da produção (1999); De JK a FHC: a Reinvenção dos carros (com G. Arbix, 1997);Razões e ficções do desenvolvimento (com G. Arbix e R. Abramovay, 2001). Ad-ministrador público na Secretaria de Serviços e Obras e na Companhia de En-genharia de Tráfego CET, ambas da Prefeitura do Município de São Paulo (1989/1992). Pesquisador do CNPq, consultor ad hoc da Capes e da Fapesp, consul-tor da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

Peter Richard Draper. Diretor de Pesquisas e Análises Econômicas do Minis-tério de Indústria e Comércio (MIC) da África do Sul. Ex-chefe do Departa-mento de Economia e de História Econômica da Universidade de Durban-Westville. Autor de inúmeros artigos sobre os Investimentos Diretos Externos,a indústria de computação e a pequena e média empresas do setor químicona África do Sul. No MIC foi responsável pela definição das estratégias comer-ciais da África do Sul em relação ao Japão, Cingapura, Tailândia, Coréia doSul e Brasil; atualmente coordena as pesquisas sobre as relações comerciaiscom o Mercosul, Índia e Estados Unidos, assim como a agenda da África doSul para a OMC.

Ricardo Abramovay. Professor titular do Departamento de Economia da FEA/USP e presidente do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental daUSP. Fez pós-doutorado na Fondation Nationale des Sciences Politiques emParis e trabalha sobre desenvolvimento rural e meio ambiente. Publicou:Paradigmas do capitalismo agrário em questão (Hucitec) e Razões e ficções do desen-volvimento (com G. Arbix e M. Zilbovicius, 2001).

Rubens Ricupero. Secretário-geral da United Nations Conference on Trade andDevelopment (Unctad) desde setembro de 1995. Lecionou Relações Interna-cionais na Universidade de Brasília e foi professor do Instituto Rio Branco.Presidiu o Grupo de Países em Desenvolvimento e o Comitê de Comércio eDesenvolvimento no GATT. Foi ministro do Meio Ambiente e Ministro daFazenda (governo Itamar Franco). Foi representante do Brasil na ONU e em-baixador nos EUA e na Itália. Escreveu inúmeros livros sobre relações inter-nacionais e os problemas econômicos do desenvolvimento.

Simonetta Zarrilli. Membro integrante da Divisão de Comércio Internacionaldo secretariado da Unctad, vem participando de vários estudos sobre paísesemergentes, em torno de questões do desenvolvimento e do comércio inter-nacional desde 1988. Formada em Bruges, na Bélgica, e com graduação emDireito em Siena, Itália, é autora de vários artigos e livros, assim como coor-denadora de pesquisas oficiais da Unctad.

Zhiyuan Cui. Professor do Departamento de Ciência Política do MassachusettsInstitute of Technology (MIT, Estados Unidos). Especialista em economiapolítica da China e Ásia em geral. É co-autor (com Adam Przeworski) deSustainable Democracy (Cambridge University Press, 1993). Escreveu váriostrabalhos sobre as transformações econômicas e sociais dos ex-países socia-listas na Europa do Leste. Seu último livro, Wrestling with the Invisible Hand,pela Harvard University Press, está no prelo.

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IntroduçãoDiálogo entre os que chegaram depois

Glauco ArbixAlvaro Comin

Mauro ZilboviciusRicardo Abramovay

O II Seminário Internacional da USP realizou-se em agosto de 2001,pouco antes da ferida exposta pela falência argentina, que continua san-grando o país e sacudindo todo o continente latino-americano. O defaultde US$ 132 bilhões de sua dívida pública veio à tona como uma crônicaanunciada. Ao estabelecer como cláusula pétrea a relação de equivalên-cia entre o peso e o dólar, o regime de câmbio construído pelo ex-minis-tro Domingos Cavallo pavimentou o caminho para o terremoto que fratu-rou toda a sociedade. Claro que não faltaram analistas capazes de camuflaro regime de câmbio fixo para apontar a fragilidade político-estrutural dospaíses periféricos em manter-se na rota dos eternos ajustes fiscais. Mini-mizava-se, uma vez mais, os efeitos da corrosão que o currency board ha-via provocado na capacidade exportadora da indústria, ou os limites reaisque impediam o pagamento de seus compromissos cortando o saláriodos trabalhadores, as pensões, gastos públicos e outras medidas simila-res. Até mesmo o FMI tentou balbuciar um mea culpa, como se a sua atua-ção no episódio pudesse ser corrigida apenas com uma maior agilidadeno seu acompanhamento e decisões.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

As explicações para a implosão argentina, porém, ainda estão longede tocar as raízes de sua crise, cujos sinais latentes nunca deixaram deameaçar a maior parte dos países periféricos, desde que se dispuseram aseguir as orientações do ajuste econômico regido pelos órgãos que co-mandam as finanças internacionais. Como se sabe, os êxitos econômi-cos alcançados no meio da década de 1990 foram cantados em verso eprosa como exemplo a ser seguido por todo o mundo que procurava odesenvolvimento. Afinal, a Argentina havia alcançado êxito após ter li-beralizado sua economia, reformado seu sistema tributário, privatizadoe modernizado seu sistema financeiro em níveis mais avançados do queos demais países latino-americanos. Apesar da perda de competitividadeda economia argentina provocada pela sobrevalorização do peso, as su-gestões mais usuais procuravam fugir da desvalorização da moeda, poisa profunda integração com o resto do mundo certamente causaria umareação em cadeia com efeitos devastadores em todo o sistema financei-ro. Exatamente por isso, a questão de fundo para as agências internacio-nais nunca foi de alteração de rota. Pelo contrário.

Rudiger Dornbusch, analista do circuito financeiro internacional,ainda em 1999, afirmava que os argentinos tinham sido “um caso co-nhecido de total falta de governo e que agora são respeitados porque fi-zeram escolhas difíceis que tiveram resultados muito bons”. O proble-ma da Argentina, disparou, estava em seus vizinhos: “Eu não entendopor que vocês brasileiros sempre querem o jeitinho, a flexibilidade. Fa-çam alguma coisa a sério!”1 . Dornbusch apenas reproduzia com ironiaas orientações matriciais do Banco Mundial, do FMI e do Tesouro ameri-cano, para os quais as reformas realizadas estavam mais do que certas.

Para iniciar a análise, é bom que se diga que a estratégia argentinase baseou na alienação de sua soberania ao atrelar o controle de sua moedaàs principais decisões sobre o dólar que, como se sabe, são tomadas bemlonge do Cone Sul. Em segundo lugar, essa escolha foi sustentada pelacrença de que a economia argentina alcançaria os mesmos padrões dedesempenho exibidos pelos países avançados se conseguisse basear seudesenvolvimento praticamente apenas em capitais externos com liber-dade de movimentação. Parte significativa das elites dirigentes na Argen-

1 IstoÉ Dinheiro, n.94, p.37, fevereiro 1999.

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Introdução

tina passou a compartilhar essa visão com os agentes credores externos,diferenciando-se, ocasionalmente, diante do excesso de zelo que marcavao comportamento dos credores, que exigiam todas as garantias possí-veis para que todos os compromissos financeiros fossem plenamenteobservados.

A manutenção dessa rota, cujo alto custo era previsível, não ame-drontou os supostos timoneiros argentinos, convictos de que a flexibili-dade e os erros do passado – vale dizer, da proteção e estímulo à econo-mia doméstica – não poderiam voltar a se repetir. Na mecânica do novoexperimento, era pétrea a idéia de que esse fundamentalismo radical seriarecompensado pela sistemática e maciça entrada de capitais e pelo rápi-do crescimento da economia.

No início, o aumento do fluxo de capitais e a expansão rápida daeconomia alargaram o prazo de validade da nova política econômica.Porém, a ilusão não tardaria a se desfazer. O impacto da crise no Méxicoem 1994, na Ásia em 1997 e 1998 seria somado à desvalorização do realem janeiro de 1999, derrubando o entusiasmo argentino, agora sem con-dições de competir até mesmo no Mercosul. Nesse mesmo ano de 1999, ocrescimento de seu PIB foi negativo e os índices de risco que orientavamos investidores voltaram a crescer de tal modo que nem mesmo o retornodo ex-ministro Cavallo ao comando da economia foi capaz de reverter.

No entanto, não foram os desencontros e desencantos com a con-dução da economia que espantaram os credores internacionais, mas adisposição da população argentina de não aceitar mais o jogo da austeri-dade, dos cortes fiscais, dos gastos públicos, dos salários dos servidores,das pensões e, principalmente, do aumento do desemprego, utilizadoscomo meio de servir as pesadas dívidas de um país artificialmentedolarizado.

Após uma sucessão de planos e propostas de salvação, a indignaçãopopular tomaria conta do país, levando de roldão o presidente e seusministros, conduzindo a Argentina à sua mais profunda e trágica crise.

Mesmo assim, ainda abundam economistas que se recusam a pen-sar no que a Argentina fez de errado, detendo-se nos pressupostos de suaqueda. Pelo contrário, muitos continuam insistindo monocordicamenteque faltou força e decisão – dos nativos, claro – para que a política implan-tada desse certo.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

À sua maneira, Dornbusch, mais uma vez, atualizou o dilema quetoca no sistema nervoso de todos os países que tentam se desenvolver,quando olhados pelo retrovisor dos países avançados: o da soberania edo controle democrático de suas economias. A proposta que o analistaacabou de divulgar indica que a “sociedade argentina deve abrir mão tem-porariamente da sua soberania em todas as questões financeiras”, pois o“mundo só deve prestar assistência econômica mediante a aceitação dereformas radicais, além do controle e supervisão estrangeira dos gastospúblicos, emissão de moeda e administração de impostos”.2

O destino dos países atrasados estaria selado pela sua incapacidadede exercer a arte do bom manejo de suas economias. Os sem-moeda deontem deveriam tornar-se os sem-dirigentes de hoje, cedendo seu lugaraos técnicos das agências internacionais. A solução apontada seria qua-se final para o pouco que resta da já combalida soberania argentina, re-duzindo ainda mais o espaço para a condução interna de sua política eco-nômica. Exatamente o contrário do que as experiências históricasrecomendam para os momentos de reconstrução e reconfiguraçãoinstitucional!

Aquilo de que a Argentina mais precisa toca direta ou indiretamentena agenda de todos os países em desenvolvimento: a construção de umnovo compromisso pela produção e desenvolvimento. Após o excessode vento liberal dos anos 90, uma brisa de sensatez está sugerindo quenão há solução milagrosa capaz de substituir a superação dos problemasde governance desses países, cuja natureza é essencialmente política. Ne-nhum atalho poderá ignorar o árduo caminho do debate e definição deuma estratégia de desenvolvimento, capaz de integrar o reequacionamentoda dívida externa e interna, o esforço exportador, a regulação e controledo capital externo, o aprendizado tecnológico e os necessários incenti-vos à produção sem os vícios do passado, de modo a reorganizar as socie-dades em torno da geração de empregos de qualidade e da melhoria devida das pessoas. Ou seja, para recuperar suas energias e orientar-se paraa vida da população, exige que as elites econômicas dirigentes olhemmenos para Washington, Wall Street ou para a City de Londres. Semnenhuma ingenuidade, a consciência é plena de que o estabelecimento

2 IstoÉ Dinheiro , n.237, março 2002. “Rendição sem guerra”.

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Introdução

de uma estratégia de desenvolvimento requer a retomada de políticasque, esquecidas em alguma gaveta do tempo, só adquirem sentido quandointegradas a um feixe de longo prazo, sustentado por compromissosduradouros e por coalizões políticas substantivas. Esse é o grande desa-fio que deveria marcar todas as disputas democráticas nos dias de hoje.

Debaixo das sombrias nuvens argentinas, o II Seminário Internacio-nal da USP sobre “Novos Paradigmas de Desenvolvimento”, cujo debateforneceu as bases para este livro, foi realizado em agosto de 2001. Con-tando com pesquisadores nacionais e internacionais, o Seminário pro-curou analisar cinco grandes economias – Brasil, México, África do Sul,Índia e China –, suas trajetórias e escolhas distintas, como forma derevitalizar a pesquisa e o debate sobre o desenvolvimento em meio àglobalização e liberalização das economias.

As razões desse recorte foram simples. Primeiro, a diversidade dasescolhas estratégicas desses cinco países é reconhecidamente grande.Optaram por caminhos distintos e colheram diferentes frutos. O maisimportante, porém, é que as experiências mais exitosas desmistificam aidéia de que haveria um caminho único e seguro para o desenvolvimen-to – que poderia ser resumido na rápida liberalização econômica, numrígido ajuste fiscal e na desregulamentação –, como o seguido pratica-mente pela maior parte dos países latino-americanos, e do qual a Argen-tina foi o mais fiel seguidor. Segundo, porque a idéia de afirmação nacio-nal que presidiu às reformas políticas e econômicas em algumas dessasexperiências, em especial na China e na Índia, tem muito a ensinar a to-dos os povos e países, em especial à Argentina, ao Brasil e ao México.Terceiro, porque a articulação interna diferenciada que pode ser encon-trada nas economias chinesa e indiana, assim como o comportamentodos policy makers e a condução intensiva e extensiva dos governos na de-finição das políticas públicas, ajuda-nos a reatualizar o debate sobre oslimites e atribuições do Estado nacional em meio à globalização. Moveu-nos a idéia de que o enfraquecimento dos Estados nacionais, real no quese refere a alguns aspectos da nova economia mundial, permanece muitomais ligado aos domínios da ideologia e das opções políticas de governodo que se pode imaginar. Ou seja, na determinação de suas estratégiasinternas de crescimento, os Estados nacionais estão sendo vistos, enten-didos e enfraquecidos mais pela ação política do que por constrangimen-tos estruturais.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

Todas as discussões desenvolvidas ao longo do Seminário adquiremmaior gravidade e sentido após a débâcle argentina e a formulação dasalternativas para sua recuperação.

Num momento-chave do debate, durante a homenagem prestadapela USP ao embaixador Rubens Ricupero, secretário-geral da Unctad –que recebeu das mãos do reitor, Jacques Marcovitch, a Medalha de Honraao Mérito –, enfatizaram-se o rol de escolhas e a cristalina multiplicidadede caminhos que podem levar ao desenvolvimento, sugerindo fortementeque cabe aos próprios países, às suas sociedades, a discussão e a articu-lação de suas estratégias e a construção dos instrumentos adequados paratanto. Ou seja, os erros dos países em desenvolvimento não serão supe-rados com a tutela de suas economias e a transformação de suas socie-dades em entrepostos “compradores”, como os do Oriente do século XIX.

Jogar luz sobre esse debate, de modo a recuperar as virtudes da pro-dução – olhando menos para os mercados – significa desenvolver umesforço de comprometimento dos agentes econômicos nacionais com otraçado de uma linha de futuro para esses países, hoje desamparados peloesgotamento do nacional-desenvolvimentismo, mas ainda órfãos do fu-turo, pois nenhuma outra estratégia ocupou o seu lugar, a não ser o si-mulacro liberal.

Países atrasados, como o Brasil, em que pesem suas diferenças, pre-cisam urgentemente liberar todo o seu potencial produtivo e criativopara sair desse lugar-algum dos dias de hoje, situado entre o passado eo futuro.

Não há precedentes na história moderna a indicar que os países po-dem se desenvolver sem o comando interno de suas economias e a cons-trução de instituições ancoradas em sua história, política e cultura. Exa-tamente o que a simples adoção de receituários externos e a conseqüentecorrosão da autonomia nacional estão conseguindo obstruir. As trajetó-rias da China e da Índia corroboram essa afirmação, principalmente porrelevarem o exercício do poder estruturante do Estado, o que pode ex-plicar os altos e constantes índices de crescimento alcançados.

Em contraste com esses dois países, permanece a América Latina,envolvida pela maré liberalizante dos anos 90, e que possibilitou a co-lheita de pífios resultados no seu crescimento. Em 2000, somente trêspaíses haviam exibido um desempenho mais eficiente do que o vivido

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Introdução

nos áureos tempos do desenvolvimentismo: o Chile, o Uruguai e a Ar-gentina. Desses, o Uruguai possui modestos indicadores e a Argentinaentrou em colapso. Somente o Chile continua a mostrar maior exube-rância, menos por ter se tornado uma espécie de vitrine liberal e muitomais pela atitude de cautela que adotou em relação aos fluxos de capitalestrangeiro. Diga-se de passagem, cuidados que o México não vem de-monstrando com sua integração ao Nafta, e que vem sendo responsávelpelo crescimento da desigualdade entre regiões e salários em todo o país.

A nova agenda que começou a ser desenhada para os países em de-senvolvimento nos debates da USP não tem elementos fáceis nem peque-nos: 1. reconstrução de economias baseadas nas necessidades domésticase no conhecimento local, integradas ao sistema produtivo internacionalde modo a reduzir as desigualdades internas; 2. pautar a ação governa-mental e os esforços da sociedade no sentido de diminuir a miséria e bus-car a renda e o emprego; 3. reordenar o sistema financeiro e o endivida-mento externo e interno de modo a dar prioridade ao atendimento dasnecessidades nacionais; 4. aumentar a competitividade sem retomar ociclo inflacionário; 5. aprofundar a diversificação das economias; 6. re-pensar os mecanismos de proteção social de modo a equacionar a cres-cente insegurança na renda, no trabalho, na aposentadoria; 7. desenvol-ver intensamente políticas industriais e de estímulo à produção de modoa capacitar o país para as exportações; 8. impulsionar os sistemas educa-cionais e de inovação, qualificando-os para o aprendizado tecnológico eo controle sobre o conhecimento.

A intenção é ajudar a responder por que os países da América Lati-na, que tentaram adotar nos útlimos anos políticas de consenso com asagências internacionais, vêm demonstrando resultados de crescimentotão pobres e desanimadores? Será que nada têm a aprender com a Coréiado Sul e Taiwan – desde o início dos anos 60 – e a China e a Índia, desdea década de 1970, que aplicaram dispositivos nada ortodoxos e desres-peitaram as recomendações do mainstream econômico?

Todos esses países enfatizaram as exportações e desenvolveram es-tratégias bastante diferentes das aplicadas na América Latina. Coréia eTaiwan protegeram sua economia e usaram e abusaram das políticas in-dustriais. A China, por suas características próprias, ignorou os direi-tos de propriedade para alcançar e sustentar seu crescimento. A Índia

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

evitou reformar o seu pesado regime industrial e comercial até que suaeconomia começou a deslanchar nos anos 80. Mesmo assim, a economiaindiana continua sendo uma das mais protegidas do mundo. A polêmicasobre essas políticas foi intensa, como era de se esperar, uma vez que,flagrantemente, desafiam vários mandamentos da chamada modernaeconomia da globalização.

Talvez um olhar sem preconceito para a América Latina produza re-sultados distintos e melhores do que os que estamos colhendo e, de modoinstigante, resultados mais próximos dos que frutificaram no imediato pós-guerra, baseados na hoje malvista política de substituição de importações.

Na verdade, muito da história econômica recente está pedindo ques-tionamentos e correções, como a condenação in limine das políticas desubstituição de importações (muitas vezes injustamente apontadas comousinas de ineficiências, o que tem mais a ver com o marco das instiuiçõespolíticas em que foram implementadas e muito menos com os resulta-dos sociais e econômicos alcançados, já que, se há, ainda, uma indústriacompetente no Basil, ela é fruto dessas políticas) e do comportamentoproativo do Estado na articulação da economia e da sociedade. De umponto de vista histórico, a idéia do não-reconhecimento das desigualda-des e clivagens sociais como ponto de partida e de chegada das estraté-gias de desenvolvimento, aliada a um endêmico desamparo institucional,insiste em colocar-se como hipótese de trabalho e pesquisa. Nesse sen-tido, uma releitura da trajetória da América Latina dos anos 30 até o fi-nal dos anos 70 ajudaria a reequacionar o fim do ciclo virtuoso de cresci-mento e a estagnação subseqüente, à luz do êxito relativo dos paísesasiáticos dos anos 90.

Na expectativa de novos estudos, não nos contentamos com as fra-ses feitas e explicações ligeiras. Se é certo que os países em desenvolvi-mento precisam reformar e construir novas instituições aptas a gover-nar suas economias e sociedades, também é verdade que precisam detempo para isso. Tempo para que a discussão democrática se faça e osagentes econômicos e sociais estejam persuadidos da necessidade de selarum novo compromisso por seus países. Para tanto, ênfases precisam sermudadas. A integração na economia mundial deve ser vista como ferra-menta para o desenvolvimento, não como um fim. A intensificação docomércio e do fluxo de capitais também é meio, não objetivo. Se o capi-

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Introdução

tal externo pode ajudar os países a crescer – pois “nenhuma economiaem desenvolvimento pode se desenvolver fechada em si mesma”,3 é pre-ciso lembrar que nos últimos cinqüenta anos não há exemplo de país quetenha crescido sem que o comércio internacional, o endividamento pú-blico e o investimento estrangeiro tivessem contribuído para o estabele-cimento de bases produtivas locais competentes e para o desenvolvimentode um mercado consumidor interno que pudesse ter acesso aos novosbens e serviços produzidos local e globalmente. A arte exigida no caso dizrespeito à combinação das oportunidades oferecidas pelo mercado mun-dial – basicamente em capital e tecnologia – com estratégias nacionaisde investimentos capazes de reanimar e rearticular politicamente as so-ciedades latino-americanas.

Se o Seminário Internacional da USP sobre “Novos Paradigmas doDesenvolvimento” puder oferecer uma pequena contribuição nesse sen-tido, em especial estimulando novas linhas de pesquisa na universidadebrasileira, teremos atingido plenamente nossos objetivos.

Abril de 2002

3 Yamazawa, I. Regional Cooperation in a Changing Global Environment: Success and Failureof East Asia. Unctad, fevereiro de 2000, p.2.

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Parte IDesenvolvimento, liberalização

e globalização

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1Diversidade e desenvolvimento

Rubens Ricupero1

Agradeço muito essa homenagem,2 absolutamente sem mérito deminha parte, e que tentei desestimular desde a primeira vez em que soubeque ocorreria. Acredito que no seminário passado era necessário expressarnosso apreço pelo Celso Furtado, que fazia oitenta anos e que ocupa umlugar maior no pensamento brasileiro. A minha contribuição, tenho cons-ciência, é secundária, pois sou sobretudo um divulgador.

Vou desenvolver minha exposição a partir de três grandes temas. Noprimeiro, busco detectar as forças internacionais e nacionais que atuampara o sucesso ou o fracasso da escolha dos caminhos do desenvolvimen-to. No segundo, gostaria de abordar a imensa diversidade que há nessecampo, extraordinariamente rico em experiências diferentes. Espero, pelomenos, mostrar que a diversidade aqui é regra e não tanto a uniformidade

1 Secretário-geral da Unctad.2 O Prof. Rubens Ricupero recebeu, da USP, medalha de Honra ao Mérito durante o II Semi-

nário Internacional sobre “Novos Paradigmas de Desenvolvimento”, em agosto de 2002.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

que se tentou impingir como uma espécie de abordagem única. Finalmente,no terceiro, gostaria de extrair algumas lições das experiências de maiorêxito no mundo contemporâneo.

O desenvolvimento é, na verdade, um meio, pois pertence ao domí-nio das coisas instrumentais. Não queremos nos desenvolver simplesmentepara ter uma sociedade de consumo de massa, em que agravemos aindamais certos problemas básicos do homem de hoje, até mesmo nas socie-dades que já resolveram os problemas essenciais da sua sobrevivência.

Se nós queremos desenvolvimento é, em primeiro lugar, no caso bra-sileiro, para corrigir em tempo essa sociedade monstruosa que estamoscriando e que, pelo menos em parte, é fruto de um desenvolvimentodesequilibrado. Portanto, é preciso não perder de vista que, embora te-nhamos que ter o rigor de soluções técnicas e econômicas viáveis, quesejam amparadas em realidades concretas, não podemos nos deixar apai-xonar pela técnica em si mesma ou pelo resultado material do esforço. Épreciso ver que atrás disso há um problema maior, um problema de dis-tribuição, um problema de igualdade, um problema de resgate da misé-ria, um problema de solidariedade, de fraternidade. E é isso que torna odesenvolvimento um verdadeiro desenvolvimento, um processo integral.Gosto sempre de citar o filósofo francês Jacques Maritain quando dissealgo como: “o desenvolvimento é a promoção de todos os homens e dohomem como um todo, portanto, sem exclusões; e do homem em toda asua potencialidade, inclusive no terreno do valor dos símbolos, da cultura,do relacionamento interpessoal”.

O debate proposto por este Seminário é extremamente oportuno.Acabamos de celebrar o centenário de Raul Prebisch e de perceber, nasemana passada, que o governo brasileiro está procurando refazer suareflexão para retificar certos rumos em matéria de expansão das expor-tações. Este Seminário se realiza no momento de uma grande crise dasexperiências da América Latina, numa grave crise da economia mundiale de uma crise mais estrutural daquilo que se chama de globalização. Hávários fatores, portanto, que tornam o momento particularmente propí-cio para a presente reflexão. Começando por Prebisch, gostaria de dizerque parto hoje mesmo para o Chile, onde a Cepal realiza uma homena-gem a esse pensador que foi, seguramente, no século XX, o latino-ameri-cano que deu a contribuição mais original à teoria do desenvolvimento,pensada a partir da realidade latino-americana. Celso Furtado também

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participa dessa homenagem, inaugurando uma cátedra que a Cepal crioucom o nome do Prebisch, e a Unctad já há vários anos promove uma sé-rie de conferências com o mesmo título.

Prebisch foi um latino-americano que pensou o continente a partirdo continente. Ele enfatizava que não era o caso de ignorar ou hostilizaras idéias que se criam no mundo a respeito do desenvolvimento econô-mico. O problema era não aceitá-las com uma submissão servil. Era pre-ciso ver em que medida essas idéias se aplicavam à nossa experiência.Daí o nome do método criado por ele, o “método histórico-estrutural”,que realçava a experiência histórica da América Latina e de sua estruturaeconômica, política e social, para ele, distinta de outras regiões.

Essa lição de Prebisch permanece absolutamente atual. Basta pen-sar no seu país de origem, a Argentina. Em 1931, apesar de ter sido trei-nado como um economista neoclássico, ao assumir a presidência do BancoCentral da Argentina, Prebisch se deu conta que suas teorias não erameficazes contra a grande depressão que se aprofundava desde 1929. Foiaí que a evolução do seu pensamento realmente começou. Seria interes-sante indagar o que Prebisch diria se fosse vivo hoje (ele faleceu em 1986).Seria difícil afirmar, à luz do que ocorre hoje na Argentina e na AméricaLatina, que sua herança foi superada e que se tornou desnecessário pen-sar o desenvolvimento da América Latina.

É falsa a idéia de um mundo sem alternativas

Há alguns dias, estive presente à posse do embaixador Sérgio Amaralno Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio em Brasília.Ele trabalhou comigo em quatro postos diferentes, em Genebra, Washing-ton, no Ministério do Meio Ambiente e no Ministério da Fazenda, e, porisso, o conheço muito bem. Tanto o discurso dele como o do presidenteFernando Henrique Cardoso foram muito interessantes. O presidentechegou a utilizar uma expressão dramática – “exportar ou morrer” –, dei-xando claro que o modelo que se vinha seguindo até hoje, baseado numaintegração financeira acentuada e um pouco na crença de que a compe-titividade do país com o tempo e de uma forma mais ou menos espontâ-nea precisa ser retificado. Num certo momento, Sérgio Amaral disse quenós precisamos de uma política industrial para o século XXI, surpreen-

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dendo analistas mais ortodoxos. Mas ele lembrou que esse é o título deum artigo assinado por Tony Blair, a quem ninguém acusaria de ser umadversário do pensamento predominante na economia mundial, erelembrou uma série de exemplos concretos de como a Inglaterra, berçodo liberalismo, vem praticando uma política industrial extremamenteativa, servindo-se de subsídios de todo tipo.

Há um debate em curso no Brasil sobre a existência ou não de alter-nativas para a política econômica e social que vem sendo aplicada aqui eem outros países da América Latina; alternativas capazes de preservar aestabilidade e que, ao mesmo tempo, melhorem o crescimento e a dis-tribuição da renda.

Seria real essa busca de outros caminhos? No fundo, o objetivo desteseminário é explorar essa questão.

Está claro, hoje em dia, algo que a Unctad vinha anunciando há vá-rios anos. A economia mundial enfrenta uma crise em que as três gran-des economias industriais estão, ao mesmo tempo, desacelerando ou en-trando em recessão. É uma situação extremamente preocupante, porquese dá num momento em que a economia americana, que durante anosfoi a única grande fonte de demanda de importações, começa a perdervelocidade, sem que haja no horizonte nenhum indício claro de quantovai durar essa crise, quando começará a recuperação e como e com quevelocidade essa recuperação se fará. Não vou aqui perder tempo com esseassunto – pois nem o Alan Greenspan conhece a resposta. Gostaria ape-nas de dizer que esse problema não é apenas conjuntural.

O processo da globalização, que começou com ímpeto nos anos 90,procurou justificar a idéia de um mundo sem alternativas, em que o de-senvolvimento dos países se resumia a uma integração rápida e a maisradical possível a esse processo, o mesmo processo que prenunciava cri-ses econômicas, financeiras e monetárias, como a crise mexicana de de-zembro de 1994. A partir da freqüência dessas crises, o processo deglobalização se descobre vulnerável. Não que esteja em estado terminal,pois responde a forças muito profundas. Algumas, de natureza tecnoló-gica. Outras, de natureza econômica, envolvendo a expansão das empre-sas transnacionais e a transnacionalização da produção e da distribuição.O que indica que essas forças vão permanecer.

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Diversidade e desenvolvimento

Mas, a partir das crises, o processo já não se desenvolve com o mes-mo triunfalismo avassalador dos primeiros quatro ou cinco anos da dé-cada de 1990. Acredito que a globalização se descobriu vulnerável damesma forma que a civilização européia se descobriu mortal com a Pri-meira Guerra Mundial. É uma famosa frase do poeta Paul Valéry: nós,civilizações, sabemos que somos mortais a partir da Primeira Guerra.

Quem assistiu pela televisão às manifestações em Gênova, comodisse o presidente Chirac, não consegue imaginar que duzentas mil pes-soas desçam às ruas, muitas das quais vindas de países diferentes, en-frentem a polícia, corram altos riscos apenas pelo capricho de querer jo-gar uma pedra numa vidraça.

Esse é um componente importante da análise que fazemos aqui. Nãohá dúvida de que vivemos o momento certo para a retomada da reflexãosobre algumas certezas dos anos 90, recentemente abaladas por umasucessão de acontecimentos que poderíamos chamar de o último ciclode ilusões pelo qual passou a América Latina.

A América Latina teve vários momentos em que parecia crescer deuma maneira irreversível, como no final dos anos 50 e começo dos 60, aépoca do Brasil de Juscelino, da Argentina de Frondizi, do primeiro Freino Chile. Parecia haver um ciclo virtuoso, de presidentes democratas,progressistas, com consciência social e com aceleração econômica. Tudoisso acabou nos anos 60 e 70, com os regimes militares e mais tarde coma crise da dívida.

A partir da crise da dívida, o continente parecia se mexer novamente.Muitos escreveram que uma macroeconomia mais sólida estava gerandouma espécie de hegemonia política perdurável na América Latina. Gover-nos foram reeleitos porque haviam dominado a inflação na Argentina,no Brasil, no Peru e em outros lugares. Mas tudo isso está outra vez emquestionamento. Basta olhar do norte ao sul para ver o que acontece. OMéxico que cresceu, em 2000, 7%, graças ao mercado americano, mal cres-cerá 1% em 2001. E na América do Sul, da Venezuela para baixo, há umaonda de crise realçada pela inquietude dos indicadores sociais e políticos.

As considerações apontadas me permitem passar à segunda parteda minha exposição, para a questão da diversidade.

Durante a fase de triunfalismo do mercado, o que se afirmava eraque, no fundo, o debate sobre desenvolvimento tinha acabado. Tinha termi-

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nado porque não havia mais o que debater, em razão da emergência de umconsenso. Um consenso que, algumas vezes, foi chamado de Washing-ton e que, supostamente, eliminava a possibilidade de alternativas reaisa uma liberalização acentuada e radical. Liberalização do comércio, li-beralização para os investimentos, mas, sobretudo, liberalização financei-ra – abertura aos capitais, não só aos financiamentos de curto prazo, masde todo gênero, aplicações nas bolsas e outros.

Mitos e confusões

Nesse período, confundiram-se fenômenos e níveis diferentes. Aprimeira confusão se deu na identificação da globalização à liberalização,que são, na verdade, conceitos diferentes. A globalização se serve,freqüentemente, da liberalização como um instrumento, como uma po-lítica, mas nem sempre. Por exemplo, a globalização atual serve-se, semdúvida, da liberalização econômica e comercial – a abertura dos merca-dos, as importações já não têm mais barreiras etc. Mas a globalizaçãonão se serve da mesma liberalização no terreno da mobilidade da mão-de-obra. Houve períodos similares ao atual, em que aumentou muito ograu de interdependência das economias, como no período de 1870-1914,que foram períodos em que todos os fatores de produção tiveram campolivre, não só os investimentos, mas também o trabalho, os bens e os finan-ciamentos. Foi o período em que cinqüenta milhões de indivíduos dei-xaram a Europa para imigrar. Hoje não há nada de similar em matéria deliberalização da mão-de-obra. Tampouco existe liberalização em maté-ria de tecnologia. Houve períodos em que o Japão pôde fazer grandesavanços tecnológicos com os chamados processos de engenharia reversa.Havia uma certa facilidade de copiar. Hoje em dia, no Brasil, para com-bater a Aids, estamos envolvidos em enormes conflitos sobre as paten-tes dos medicamentos. Portanto, não é certo que globalização e libera-lização sejam sinônimos e que um possa ser usado pelo outro. Mesmoem comércio, a globalização usa a liberalização de maneira seletiva. Porexemplo, tem se propugnado pela abertura total dos mercados a produ-tos industriais. Os americanos, por exemplo, estão propondo agora, para

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a próxima rodada de negociações, que algo entre dez a doze setores deprodutos industriais, que vão de brinquedos a produtos químicos, tenhamo que eles chamam de zero tariff, ou seja, tarifa zero, válido para todos osprodutos incluídos nesses setores. Mas, se nós pedirmos ao governoamericano que faça o mesmo em calçados, em tecidos, em suco de laran-ja, em tabaco, em açúcar, em etanol, em aço, a resposta será negativa. Eupoderia dar a vocês inúmeros exemplos para mostrar que a liberalizaçãocomercial, mesmo na voz dos que se apresentam como campeões do li-vre mercado, é extremamente seletiva, que é uma liberalização radical etotal apenas nas áreas em que os países mais ricos desfrutam de comple-ta superioridade competitiva. Em outras palavras, a liberalização é par-cial, gradual e relutante nas áreas em que estes enfrentam dificuldades.Portanto, é preciso não confundir globalização com liberalização.

Uma segunda confusão diz respeito à aproximação entre liberalizaçãocomercial, liberalização de investimentos e liberalização financeira emgeral. São também conceitos diferentes. São realidades diferentes queexigem requisitos diferentes. Infelizmente, análises superficiais, ao enten-derem esses termos como equivalentes, empurram a América Latina aembarcar numa liberalização financeira e comercial extremamente acen-tuada, sem que tenhamos os requisitos mínimos para suportar as pres-sões, os perigos e os desafios dessa liberalização. A liberalização finan-ceira é extremamente perigosa em qualquer condição. Tanto é que ospaíses mais avançados conservaram controles de capitais até muito re-centemente. Mesmo os Estados Unidos controlaram os capitais. A In-glaterra conservou esses controles até há pouco mais de vinte anos. AItália e a França removeram os últimos controles no início dos anos 90.E estou falando de economias que são incomparavelmente mais sólidasdo que as nossas e que têm um acesso ao mercado financeiro muito maiscompleto do que nós podemos aspirar nas próximas gerações. Os peri-gos são inúmeros, e isso tem se agravado ainda mais num mundo emque, desde o fim do sistema de Bretton Woods, no começo dos anos 70,já não há mais um mínimo de estabilidade na relação de valor entre asmoedas. Há uma oscilação enorme, mesmo das moedas das economiasavançadas – às vezes, cerca de 20% em menos de um mês, entre o dólare o iene –, e essa oscilação contamina todos os setores da economia.

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Um dos mecanismos mais perigosos pelos quais vem agindo aliberalização financeira – e que atingiu o Brasil no início do Plano Real –diz respeito à abertura do país ao financiamento de curto prazo. Essesrecursos, atraídos pelo diferencial de juros, acorrem em grande volume,tornando a moeda muito valorizada no curto prazo, mas provocando umaperda de competitividade nas exportações. Isso significa que, embora aliberalização seja desejável em princípio – porque um país em desenvolvi-mento não pode prescindir de algum grau de aporte de poupança externa –,precisa ser equacionada de maneira gradual, cautelosa, com instituiçõesadequadas, um sistema bancário e financeiro sólido, com boa supervisão,com boa regulação. Isso que estou a dizer é o mesmo que diz o FundoMonetário Internacional. O FMI é o primeiro a afirmar que esses ins-trumentos e essa cautela são necessários, ainda que há alguns anos o Fun-do exibiu um entusiasmo acrítico no que se refere à liberalização.

Não há, porém, quem não reconheça hoje em dia que a liberalizaçãofinanceira é um processo que só se pode enfrentar com extrema cautela.Tanto isso é verdade que, dos grandes países em desenvolvimento, os demaior sucesso como a China e a Índia – a China crescendo a 10%, a taxasconstantes já há vinte anos, e a Índia crescendo entre 6% e 7% ao ano –têm revelado, nessa matéria, uma extrema cautela.

O principal problema é que, diante do agravamento da dependênciade recursos de curto prazo, as saídas tornam-se cada vez mais difíceis edolorosas. Por isso, a melhor saída dessa armadilha é evitar a entrada.Porque sair da liberalização, da dependência de recursos de curto prazo,é como mandar uma carta pedindo demissão da máfia que, como se sabe,não está acostumada a conceder desligamentos voluntários e/ou tem-porários. Uma vez dentro desse processo, a saída é difícil, penosa, pro-longada e demanda sempre um esforço enorme para o aumento das expor-tações. Ou seja, não há saídas mágicas. As moratórias ou desligamentosdo sistema internacional geralmente tendem a piorar a situação dos paí-ses endividados.

No Brasil, nós só vamos sair desse momento agudo de dependênciapor meio de um esforço que pode durar anos. Estamos numa fase extre-mamente acentuada de dependência neste momento, dispostos a gastarquase 10% do PIB só para pagar custos financeiros, juros, o que é umaproporção altíssima.

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Opções e variações

Mas, como venho insistindo, há uma diversidade enorme de cami-nhos trilhados por distintos países para tratar dessas questões. Citei aChina, a Índia e o Sudeste da Ásia. Por quê? Para mostrar que esses paí-ses seguiram rotas diferentes. Claro que esses países estão se integran-do à globalização. Quem vai negar que a China está crescendo há 21 anos?Que se revelou capaz de exportar crescentemente aos Estados Unidos eao Japão? Apenas com o Japão, que sempre foi um país relativamentefechado, a China tem, nesse momento, um saldo bilateral de 22 bilhõesde dólares. Com os Estados Unidos, tem um saldo entre 30 e 40 bilhõesde dólares. Portanto, ninguém pode negar que a China está aproveitan-do as oportunidades do mercado global para se desenvolver. Mas estáfazendo essa integração de um modo diferente da América Latina. Jogoua cartada da competitividade em matéria de exportações, gerando gran-des saldos no comércio com outras nações. As três Chinas, se se puderchamar assim – isto é, a China propriamente dita (mainland China), HongKong e Taiwan –, detêm, juntas, reservas de 410 bilhões de dólares nes-te momento. Isto é, as reservas do “planeta China” são de 410 bilhõesde dólares. Portanto, os chineses jamais aceitaram a idéia de que para sedesenvolver precisavam exibir déficits em sua conta corrente, uma idéiaque teve longa vigência na América Latina, pois as autoridades monetá-rias estavam convencidas de que a liquidez do mercado financeiro per-mitiria que recebêssemos recursos até a melhoria da nossa competi-tividade.

Modelos diferentes existem e estão aí, à vista. A afirmação de quenão existem, na experiência concreta do mundo, outros países em de-senvolvimento com políticas alternativas diferentes e melhores do queas nossas é objetivamente falsa. Existem. E muitos! E estão aí para se-rem estudados e conhecidos. Mostraram-se melhores na competitividadecomercial, na tecnologia, na distribuição de renda, na preocupação coma pobreza.

O fenômeno que vivemos aqui é caracteristicamente latino-ameri-cano. É claro que o problema da África é ainda pior. O embaixador doBrasil em Genebra, Celso Amorim, homem de inteligência aguda e comuma grande capacidade de criar fórmulas, disse, com muita felicidade, o

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seguinte: “a diferença entre o modelo asiático, se se pode chamar assim,e o modelo latino-americano, é que o modelo asiático é construído so-bre poupança interna e mercado externo, enquanto o modelo latino-americano é construído sobre poupança externa e mercado interno”.Reproduzo aqui seu pensamento apenas para mostrar que são dois mo-delos completamente diferentes. Por isso, dizer que não há modelos,tentar fazer as pessoas crerem que todo o mundo segue o mesmo mode-lo que nós é alguma coisa que clama aos céus em matéria de falsidade.

Países e monstros

Quando se lança o olhar ao mundo, o que chama a atenção é quepraticamente cada caso é um caso. A realidade da qual nós temos quepartir é de que existem no mundo hoje praticamente 200 Estados, 200entidades dotadas de centros decisórios com maior ou menor autono-mia. É interessante também refletir que, dos 200 Estados atuais, 150foram criados no século XX. Também é importante lembrar o que diz EricHobsbawm, o grande historiador inglês: “é preciso não se iludir com ofato de que há tantos Estados, porque, na verdade, três de cada quatropessoas no mundo vivem apenas em 25 desses países, que são os maio-res. São 25 que têm 50 milhões de habitantes ou mais”. Portanto, esse éo primeiro dado da diversidade. Duzentos Estados que vão, num extre-mo, da China, que tem 1,3 bilhão de habitantes; da Índia, que tem 1 bi-lhão e que vai passar a China dentro de alguns anos; da Federação Rus-sa, que tem mais de 15 milhões de quilômetros quadrados, a países quesão da jurisdição da Unctad, ilhas como Tuvalu, como Vanuatu, que poucagente sabe que existem. Alguns desses países vivem da emissão de selos,outros vivem de alugar o nome na internet, como é o caso de Tuvalu. Outros,finalmente, sobrevivem como paraísos fiscais, como as ilhas Jersey. Ou seja,há países gigantescos, países médios, países pequenos, minipaíses.

Dessa realidade podemos extrair duas conclusões. De um lado, queas condições, as perspectivas e as possibilidades variam. É claro que aspossibilidades da China ou dos Estados Unidos não são as mesmas deTuvalu. Essa é a primeira conclusão. A segunda conclusão: não se ilu-dam, porque mesmo que a autonomia seja diferente, não quer dizer que

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Diversidade e desenvolvimento

não exista. A prova é que a OCDE, a organização dos países ricos, está hátempos tentando impor aos paraísos fiscais certas disciplinas e não con-segue. É claro que atrás dos paraísos há protetores maiores. Mas a idéiade que o micro-Estado não tem força alguma e tem que aceitar o que sediz não é certa.

Isso diz respeito a um segundo mito que se propagou falsamente, odo fim da soberania nacional. Na verdade, aquilo a que estamos assistin-do é o desmesurado fortalecimento de algumas soberanias em detrimentode outras. O país mais poderoso da Terra, os Estados Unidos, não fazparte de uma lista imensa de tratados que são assinados por todos osoutros, invocando justamente a sua soberania. A posição deles, e eu nãodigo isso para criticá-los, é simplesmente de que não atendem aos inte-resses dos Estados Unidos e por isso não são assinados. Portanto, é pre-ciso distinguir a imensa diversidade de situações existentes atualmente.

Um dos principais teóricos norte-americanos da guerra fria classifi-cou alguns países como monster countries (países-monstros), países quepossuem um território continental e uma população de mais de 200 mi-lhões de habitantes. Os dois elementos são importantes, porque alguns,como o Canadá e a Austrália, têm a terra, mas não têm o homem; outrostêm gente, mas não a terra. Os dois elementos são importantes, porqueé essa interação entre muita gente e muita distância que cria a complexi-dade, matriz da heterogeneidade. Foram detectados cinco países dessetipo. Os Estados Unidos, a Rússia, a China, a Índia e o Brasil. A rigor,talvez, com um pouco de boa vontade, se poderia incluir a União Euro-péia, após a integração comercial, e a Indonésia, por sua população e asmilhares de ilhas em seu território. Esses países têm uma natureza pró-pria, porque, para um país continental, a natureza do problema de inser-ção na globalização é diferente da natureza de inserção de Cingapura ouda Bélgica. Para estes, o comércio exterior representa mais de 150% deseu PIB, porque são países de intermediação. Por isso, sua inserção sur-ge naturalmente. Agora, a inserção da Rússia é um grande problema. Osprojetos mais ambiciosos de ampliação da União Européia nunca contem-plam a Rússia. Por quê? Porque haveria risco de indigestão. Como a UniãoEuropéia conseguiria engolir 15 milhões de km2, com aquela complexi-dade, com mais de cem línguas?

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Exatamente por suas dimensões, a inserção da Índia, da China, doBrasil coloca outro tipo de problema. É claro que não podemos nos com-parar aos Estados Unidos ou à União Européia, porque estes inventa-ram e plasmaram a globalização, além de terem alcançado um nível muitomais avançado de transnacionalização de suas economias. Temos de noscomparar justamente aos grandes países continentais em desenvolvimen-to e ver como estão resolvendo seus problemas da inserção.

Experiências que estimulam nossa reflexão

Passo à parte final da minha exposição. Um caso muito interessantepara a nossa discussão está registrado em um relatório do World EconomicSurvey das Nações Unidas, de 1987, publicação dirigida na época pelomeu amigo Pedro Malan. Nesse estudo, Malan e seus colegas procura-ram detectar quais eram os países em desenvolvimento que tiveram umcrescimento rápido ao longo da década de 1970. Crescimento rápido paraos autores significava uma média anual de 4,5% de crescimento do PIB

ao ano. Em termos de renda per capita, a referência era a de um cresci-mento em torno de 2% ou mais, mas ao longo de dez anos. O resultadofoi muito interessante. Na década de 1970, cerca de trinta países se qua-lificavam nessa categoria, muitos latino-americanos, inclusive o Brasil.Na década de 1980 (o estudo foi até 1987), esse número tinha caído ver-tiginosamente, de trinta para catorze. Todos os países latino-americanoshaviam saído da lista em razão da crise da dívida que havia começadoem 1982. Mais interessante ainda foi um terceiro exercício realizado peloestudo, que reunia o exame da década de 1970 com a de 1980. Após iden-tificar os países que haviam mantido o crescimento ao longo de duasdécadas, somente oito ou nove resistiram, todos, sem exceção, asiáti-cos, dos quais a maioria era importadora de petróleo. Havia um ou doisque era exportador líquido de energia, os demais eram importadores.Nesse ponto, o estudo tentava extrair o que havia de comum nessas ex-periências, mas com muita dificuldade. Isso porque os setores-chave nãocoincidiam. Por exemplo, quando a pesquisa se detinha na agricultura,saltava aos olhos que alguns desses países nem agricultura possuíam,

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como era o caso de Cingapura e Hong Kong. Quando se concentrava noinvestimento estrangeiro direto, não dos financiamentos, mas do inves-timento produtivo, o estudo revelava que em alguns países o investimentoestrangeiro havia sido decisivo, como em Cingapura. Já em outros paí-ses, sua importância havia sido moderada, como no caso de Taiwan ouda Tailândia. Em outros ainda, o investimento externo desempenhoupapel mínimo, como na Coréia do Sul, que se desenvolveu praticamentefechada ao investimento estrangeiro direto. Quando se olhava para osgraus de abertura comercial, o resultado era variável. Havia uma certasemelhança em alguns pontos, como o fato de serem países com baixainflação, reduzido endividamento externo e outros pontos dessa natureza.

Procurei extrair algumas lições para além do esforço desse relató-rio. As conclusões a que cheguei indicam que todos os que haviam man-tido seu crescimento nas décadas de 1970 e 1980 possuíam quatro tra-ços em comum. O primeiro é que todos eram países dotados de um Estadoeficiente. Não necessariamente de um Estado produtor, de um Estadoque produz aço, como nós tivemos na América Latina. Mas todos erampaíses com uma burocracia estatal competente, com alto grau de pro-fissionalismo, de tecnicalidade, capaz de orientar o processo de desen-volvimento. O caso mais interessante era o de Cingapura, um país queaplicou políticas de grande liberalização, mas com grande nível dedirigismo estatal. E até hoje mantém essa prática. Há detalhes interes-santes sobre como o governo em Cingapura convidava anualmente exe-cutivos internacionais para saber quais os produtos que iriam dominar omercado nos cinco anos seguintes, de modo a abrir uma discussão sobrequais desses produtos poderiam ser fabricados internamente no país. Issosignificava que o Estado, apesar de dirigista, procurava agir a favor e nãocontra o mercado. Comparando, o primeiro traço comum era a existên-cia de um aparato estatal competente – e não de um processo de des-mantelamento do Estado, como ao que assistimos na América Latina.

O segundo traço que se verificava era que todos tinham uma visãoestratégica clara do desenvolvimento. O que não significava a idéia ingê-nua de um plano qüinqüenal com metas quantitativas. Não se tratavadisso, mas de uma visão de até onde eles queriam ir e quais eram as vanta-gens comparativas de que dispunham. Como se sabe, para Cingapura,

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por exemplo, a grande vantagem é a localização geográfica, pela qual sedomina a entrada do Mar da China meridional. Nesse sentido, o portofoi sua grande alavanca. Um porto de alta eficiência, com grande quali-dade de provimento de serviços. Há variações, mas todos os países ti-nham uma visão estratégica clara de aonde queriam chegar. Nenhumdesses países acreditou que apenas os bons fundamentos econômicosseriam suficientes para incrementar espontaneamente sua competitivida-de. Ao contrário, desenvolveram sempre uma política ativa de promo-ção de sua competitividade.

Um terceiro traço, também ausente na América Latina, é que todosesses exemplos de maior êxito tiveram sempre, desde a origem, um for-te componente social de distribuição de renda. Os casos mais impressio-nantes de desenvolvimento sustentável ao longo de três décadas, compouca desigualdade, foram os países que começaram com uma reformaagrária radical, que distribuiu não só renda, mas também o acesso aosbens de produção. Foi o caso de Taiwan, da Coréia do Sul e do Japão. Oscasos de Taiwan e do Japão foram frutos das grandes reformas do pós-Segunda Guerra Mundial. No caso do Japão, muitas dessas reformas fo-ram patrocinadas pelas autoridades de ocupação americanas. No caso daCoréia, houve uma extensa destruição das relações de propriedade du-rante a Segunda Guerra Mundial e, depois, na Guerra da Coréia. Em to-dos esses casos, a reforma agrária foi radical. Radical pelo universo depropriedades atingidas e pelos limites impostos ao tamanho das proprie-dades. Nesse sentido, é muito interessante ver como esses países até hojegozam dos menores índices de desigualdade. Mesmo que a desigualdadetenha crescido, agravou-se muito menos do que em outros países. Noinício de seu projeto, encontramos um esforço de redistribuição de ren-da, a começar com um compromisso claro de redução da pobreza abso-luta. Essa redução nos países asiáticos foi impressionante. Em média, ototal da população que vivia abaixo da linha de pobreza absoluta passou,nesses países, de 65% a 70% a algo como 10% a 12%. Na Malásia o núme-ro é ainda menor, de 8% hoje em dia. Isso ocorreu em uma geração, emmenos de trinta anos. Em grande parte foi essa redistribuição da rendaque tornou o modelo auto-sustentável, que criou um mercado internopujante e que permitiu o quarto traço comum a que eu vou me referirem seguida.

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Diversidade e desenvolvimento

Todos esses países investiram pesadamente em recursos humanos,educação, ciência, tecnologia. Porque as duas coisas vão de par em par,pois não se pode investir em recursos humanos e em educação sem criaroutros desequilíbrios, se ao mesmo tempo não houver um esforço deredistribuição. Portanto, acredito que as lições estão claras. Embora ne-nhum de nós tenha a pretensão de dar uma receita ao Brasil ou à Améri-ca Latina, é óbvio que a solução na busca de um modelo alternativo pas-sa por um aparato estatal competente, por uma visão estratégica dodesenvolvimento, que vai variar segundo os países, por um esforço deredistribuição sério, a partir de agora e não depois do crescimento, e tam-bém por uma ênfase central na formação de recursos humanos.

O combate à pobreza como prioridade

Esses quatro traços estão presentes em todas as experiências de êxito.Até me atrevo a dizer que, sem a dimensão social e humana, o desenvol-vimento mesmo materialmente acabaria frustrado. A experiência histó-rica mostra isso. Ainda que não fôssemos movidos por sentimentos desolidariedade ou por sentimentos de fraternidade, ainda que a nossa pre-ocupação fosse única e exclusivamente a eficácia, mesmo desse pontode vista, sem um esforço fundamental de redistribuição e de formaçãode seres humanos, o desenvolvimento não será alcançado.

Devo reconhecer que essa foi a grande contribuição tanto de Prebischquanto de Celso Furtado. A este, sobretudo, é que se deve a introduçãono ideário da Cepal de duas grandes dimensões, posteriormente incor-poradas por Prebisch. A primeira foi a fundamentação teórica que Furta-do deu para mostrar como um desenvolvimento desequilibrado, baseadona imitação do padrão de consumo das sociedades industriais avançadas,acabava provocando certos desequilíbrios que geravam estrangulamentosestruturais no processo de desenvolvimento da América Latina. Prebisch,no final da vida, se preocupou muito com isso e se deu conta de que essaera uma das grandes falhas de seu modelo. Tanto assim que hoje em dia,na América Latina, quando pensamos em fazer um balanço dos 55 anosde experiência desenvolvimentista, não podemos negar que do lado po-

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sitivo há muita coisa lograda em termos de criação de uma base indus-trial, de alguma diversificação, de alguma melhoria em termos de presençacomercial, de um crescimento que foi muito grande até os anos 80. Oproblema é que as condições sociais criadas foram entristecedoras.

Pelo Panorama social da América Latina, publicado pela Cepal, passa-dos vinte anos, a América Latina ainda não havia conseguido voltar aosníveis sociais que tinha antes do início da crise da dívida externa. Tantoo nível de pobreza como o nível de indigência continuam a ser maioresdo que eram em 1981. Claro que esses indicadores variam de país parapaís. Alguns, como o Chile, por exemplo, superaram essa situação. Masa média do continente continua desalentadora. Ou seja, se já estávamosmal naquela época, hoje estamos ainda pior.

Essa minha apresentação teve as características de uma conversa,em que procurei suscitar alguns temas de um modo incompleto e frag-mentário. Mesmo assim, gostaria de concluir minha reflexão afirmandoque não podemos perder de vista o compromisso ético do desenvolvi-mento, o compromisso com o ser humano, pois do ponto de vista mate-rial freqüentemente o Brasil nos surpreende.

Fiquei muito impressionado ao ler uma revista da Fundação Getú-lio Vargas dedicada ao agribusiness, na qual há uma matéria sobre o êxitode Mato Grosso. É uma leitura que alegra qualquer brasileiro, porquenenhum de nós pode ficar indiferente ao êxito desse Estado com o algo-dão, já que o Brasil estava quase desaparecendo das estatísticas de suaprodução, e o Mato Grosso está conseguindo produzir algodão de exce-lente qualidade com um dos preços mais baixos do mundo. Há tambémuma revolução na soja e nas hidrovias, abertas para escoar esses produ-tos. Esse é o lado que o Brasil tem de mais parecido com os EstadosUnidos, esse lado pioneiro, do arrojo, dos realizadores individuais. O quesó pode nos dar confiança. Mas, ao mesmo tempo, é triste, porque a lei-tura da mesma revista não nos fornece elementos para saber se esse sal-to melhorou de alguma maneira o salário do trabalhador rural em MatoGrosso. Desconfio que não deve ter melhorado muito. O problema é queé um tema que não está muito presente, apesar de sua importância, poissem essa discussão todas essas mudanças podem produzir ainda maisconcentração de riqueza e grupos ainda mais poderosos. Mas a pergunta

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Diversidade e desenvolvimento

sobre os caminhos para tirar as pessoas da miséria continua ausente, oque só aumenta a nossa angústia.

Moro há seis anos fora do Brasil. Cheguei dias atrás e vi como algu-mas pessoas moram em fortalezas medievais, cercadas por muros dequatro metros de altura, com um exército de segurança, com um extra-ordinário desplante de consumismo em meio a uma miséria atroz. Litambém sobre episódios que estão escrevendo um novo capítulo da his-tória da monstruosidade humana, como as histórias dos justiceiros doABC, que têm prontuário e são contratados com tabela para eliminarpessoas. É bom lembrar que essa realidade também é, em parte, resulta-do do processo de desenvolvimento brasileiro.

De certa forma, alguns dos êxitos materiais estão na raiz dessa con-figuração, porque foram êxitos, mas, ao mesmo tempo, parte de um pro-cesso desprovido de consciência. Se nós queremos ter um desempenhomelhor não é para reproduzir de novo o que tivemos nos anos 70, quan-do se dizia no regime militar que a economia ia bem, mas o povo ia mal.Hoje, nem a economia nem o povo vão bem. E nós não queremos, eviden-temente, que a economia volte a exibir um bom desempenho com o povopassando mal.

Por isso, acredito que nessa reflexão sobre o desenvolvimento nãose pode perder a dimensão da promoção do povo brasileiro. O desenvol-vimento só terá sentido se conseguir de fato realizar esse objetivo, por-que esse é o nosso problema. Outros podem ter outros problemas. Maspara um país que tem cinqüenta milhões de pobres e miseráveis, a priori-dade evidentemente tem de ser essa.

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2Estratégias de desenvolvimento

para o novo século1

Dani Rodrik2

1 Introdução

É bem possível que a idéia de economia mista seja o mais preciosolegado que o século XX deixa para o XXI no terreno da política econômica.O século XIX descobriu o capitalismo. O XX aprendeu a domesticá-lo ea torná-lo mais produtivo, fornecendo os ingredientes institucionais deuma economia de mercado auto-sustentável: bancos centrais, políticafiscal estabilizadora, legislação antitruste e regulamentações, previdênciasocial, democracia política. Foi durante o século XX que esses elemen-tos de economia mista lançaram raízes nos países industrializados avança-dos. A mera idéia de que os mercados e o Estado são complementares –

1 Este trabalho foi preparado para ser apresentado na conferência “Developing Economiesin the 21st Century” [Economias em desenvolvimento no século XXI], Institute for DevelopingEconomies, Japan External Trade Organization, 26-27 de janeiro de 2000, em Chiba, Japão.

2 Havard University.

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reconhecida na prática, ainda que nem sempre em princípio – possibilitoua prosperidade sem precedentes vivida pelos Estados Unidos, a EuropaOcidental e partes do Extremo Oriente na segunda metade do século XX.

O truísmo de que tanto a iniciativa privada quanto a ação coletivasão necessárias ao sucesso econômico chegou um tanto tarde aos paísesem desenvolvimento. À medida que a maioria deles ia se tornando inde-pendente, nas décadas de 1950 e 1960, o exemplo aparentemente bem-sucedido da União Soviética e a ideologia antimercado das elites políti-cas nacionais resultaram em estratégias de desenvolvimento fortementeestatizantes. Na América Latina, onde os países são independentes hámuito mais tempo, a visão “estruturalista” predominante era a de queos incentivos ao mercado não conseguiriam eliciar uma resposta mui-to flexível. Em todo o mundo em desenvolvimento, o setor privado eraencarado com ceticismo, e a iniciativa particular ficava rigorosamentecircunscrita.

Essas visões sofreram uma transformação radical, nos anos 80, soba influência conjunta de uma prolongada crise de endividamento e dadoutrina das instituições de Bretton Woods. Os formuladores da políti-ca da América Latina e da Europa Oriental pós-socialista adotaram comentusiasmo o “consenso de Washington”, que enfatizava a privatização,a desregulamentação e a liberalização do comércio. A recepção foi maisprecatada e cautelosa na África e na Ásia, mas também nesses continen-tes as políticas se voltaram decididamente para os mercados. De início,tais reformas orientadas para o mercado deram pouquíssima atenção àsinstituições e à complementaridade entre as esferas pública e privada daeconomia. O papel atribuído ao governo não ia além de manter a estabi-lidade macroeconômica e fornecer a educação. A prioridade era enxugaro Estado, não torná-lo mais eficaz.

Uma visão mais equilibrada começou a surgir nos últimos anos doséculo XX, quando o consenso de Washington se mostrou incapaz decumprir suas promessas. A conversa, em Washington, voltou-se para a“segunda geração de reformas”, a “governança” e o “revigoramento dacapacidade do Estado”.3 Três desenvolvimentos alimentaram a insatis-fação com a ortodoxia. O primeiro deles foi o desastroso fracasso da re-

3 A última expressão é do World Development Report sobre o Estado (World Bank, 1997, p.27).

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Estratégias de desenvolvimento para o novo século

forma de preços e da privatização na Rússia, na ausência de um aparatolegal, regulamentário e político que lhes desse apoio. O segundo foi ogeneralizado descontentamento com as reformas orientadas para o mer-cado, na América Latina, e a percepção cada vez mais nítida de que essasreformas pouca atenção davam aos mecanismos de seguridade social eàs redes de segurança. O terceiro e mais recente foi a crise financeira asiá-tica, que expôs os perigos de permitir que a liberalização financeira ca-minhasse à frente da regulamentação adequada.

Assim, entramos no século XXI com uma compreensão melhor dacomplementaridade entre os mercados e o Estado – um conceito maiselevado das virtudes da economia mista. Essa é a boa notícia. A ruim éque não estão claras as implicações operacionais disso no design da es-tratégia de desenvolvimento. Continua havendo muitas oportunidadesde renovados danos na frente política. Como vou expor mais adiante, oEstado e o mercado podem combinar-se de diversos modos. Há muitose diferentes modelos de economia mista. O grande desafio apresentadoàs nações em desenvolvimento nas primeiras décadas do próximo séculoé conceber formas próprias de economia mista.

A seguir, examino alguns princípios que devem orientar esta inda-gação. Inicio com uma condensação muito breve da história do desem-penho em crescimento dos países subdesenvolvidos no pós-guerra. Comoos motivos do decepcionante desempenho em crescimento a partir dofim da década de 1970 estão intimamente ligados às atuais prescriçõespolíticas; apresento minha própria interpretação do que deu errado. Essainterpretação sublinha a importância das instituições internas e tira aênfase do papel dos fatores microeconômicos (inclusive da política co-mercial) no colapso do crescimento a partir de 1980.

A seção 3 faz uma análise mais detalhada das instituições de apoioao mercado. Discuto cinco funções que as instituições públicas devematender para que os mercados operem adequadamente: a proteção aodireito de propriedade, a regulamentação do mercado, a estabilizaçãomacroeconômica, a previdência social e a administração de conflito. Nãoobstante, esta seção e a próxima sublinham que, em princípio, há umagrande variedade de arranjos institucionais capazes de exercer essas fun-ções. Convém encarar com ceticismo a noção de que uma instituiçãoespecífica observada num país (por exemplo, nos Estados Unidos) é o

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tipo mais compatível com uma economia de mercado em bom funcio-namento. Argumento, na seção 5, que as reformas parciais e graduais ge-ralmente surtiram mais efeito porque os programas de reforma sensíveisàs precondições institucionais têm mais probabilidade de êxito que osque pretendem erigir instituições totalmente novas da noite para o dia.

A seção 6 trata de algumas implicações na governança internacio-nal. Uma conclusão-chave é que as normas internacionais e a condiciona-lidade das Instituições Financeiras Internacionais (IFI) devem dar espaçoa políticas de desenvolvimento que divergem das ortodoxias atualmen-te dominantes. A seção 7 avalia a prioridade que se deve dar à aberturapara o comércio e para os fluxos de capital no design das estratégias dedesenvolvimento. Argumento que o comércio e os fluxos de capital sãoimportantes à medida que dão acesso, aos países em desenvolvimento,a bens de capital mais baratos. Porém, os vínculos entre a abertura parao comércio e os fluxos de capital e o crescimento subseqüente são fra-cos, incertos e mediados pelas instituições internas. A seção 8 oferecealgumas idéias conclusivas.

2 Algumas Lições da História Econômica Recente4

Muitos países em desenvolvimento tiveram taxas de crescimentoeconômico sem precedentes no período entre o pós-guerra e o fim dadécada de 1970. Mais de quarenta deles cresceram a índices anuais su-periores a 2,5% per capita até serem afetados pela primeira crise do pe-tróleo. Com semelhante taxa de crescimento, a renda dobraria a cada 28anos ou menos – ou seja, a cada geração. A lista de países com esse re-corde invejável vai muito além do habitual punhado de suspeitos doExtremo Oriente e se estende a todas as partes do mundo: inclui dozepaíses sul-americanos, seis do Oriente Próximo e do Norte da África eaté quinze da África Subsaariana (Rodrik, 1999a, Quadro 4.1). Sem dú-vida, o crescimento econômico levou a uma melhora substancial dascondições de vida da vasta maioria das famílias desses países.

4 Esta seção baseia-se em Rodrik (1999a, cap.4).

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Estratégias de desenvolvimento para o novo século

O papel da política de substituição de importações

A maioria das nações que se saíram bem nesse período aplicou polí-ticas de substituição de importações (Estratégia de Industrialização pelaSubstituição de Importações – ISI). Elas estimularam o crescimento ecriaram mercados internos protegidos e, por conseguinte, lucrativos parao investimento do empresariado nacional. Contrariando a convicção con-vencional, o crescimento impulsionado pela ISI não produziu ineficiên-cias tremendas em escala econômica. Aliás, o desempenho em produtivi-dade de muitas nações da América Latina e do Oriente Próximo foicomparativamente exemplar (ibidem, Quadro 4.2). No período de 1960a 1973, países como o Brasil, a República Dominicana e o Equador, naAmérica Latina; o Irã, o Marrocos e a Tunísia, no Oriente Próximo; e aCosta do Marfim e o Quênia, na África, tiveram crescimento do Fator deProdutividade Total (FPT) mais rápido que o de qualquer país do Extre-mo Oriente (com a possível exceção de Hong Kong, de que não há dadoscomparáveis disponíveis). O México, a Bolívia, o Panamá, o Egito, a Ar-gélia, a Tanzânia e o Zaire tiveram um crescimento do FPT mais elevadoque o de todos eles, com exceção de Taiwan. As estimativas do cresci-mento da produtividade desse tipo não estão isentas de problemas sérios,e é possível manipular as metodologias empregadas. No entanto, não hápor que acreditar que as estimativas de Collins & Bosworth (1996), dasquais retiramos esses números, sejam seriamente tendenciosas no modocomo classificam as diferentes regiões.

Portanto, como estratégia de industrialização destinada a aumentaro investimento interno e a produtividade, a substituição de importaçõesaparentemente funcionou muito bem num amplo número de países atépelo menos a metade da década de 1970. Apesar dos problemas, a ISI

conseguiu um recorde mais que respeitável. Se o mundo tivesse acaba-do em 1973, a ISI não teria adquirido a reputação negativa que adquiriu,nem se falaria em “milagre” no Leste da Ásia.

O colapso do crescimento

Sem embargo, as coisas começaram a ficar muito diferentes com acrise energética de 1973. A taxa média de crescimento dos países subde-

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senvolvidos caiu de 2,6%, no período de 1960 a 1973, para 0,9% no pe-ríodo de 1973 a 1984. A dispersão do desempenho em todos os paísesem desenvolvimento aumentou bruscamente, e o coeficiente de variaçãodas taxas nacionais de crescimento triplicou a partir de 1973 (Rodrik,1999a, Quadro 4.3). O Oriente Próximo e a América Latina, que até 1973vinham liderando o mundo em desenvolvimento em termos de cresci-mento da FPT, não só ficaram para trás, como, na verdade, passaram a terum crescimento médio negativo da FPT. Na África Subsaariana, onde o au-mento da produtividade, embora medíocre, havia sido positivo, o cres-cimento da FPT tornou-se igualmente negativo. Só o Extremo Orientemanteve os índices de crescimento da FPT, ao passo que o Sul da Ásiamelhorou o desempenho.

Terá sido o resultado da “exaustão” da política de substituição deimportações, independentemente do que o termo possa significar? Pelocontrário, o timing comum pressupõe a turbulência vivida pela econo-mia mundial a partir de 1973 – o abandono do sistema de taxas de câm-bio fixas de Bretton Woods, duas grandes crises do petróleo, vários ou-tros ciclos de oscilação de commodity, mais o choque da taxa de juros deVolckler no início dos anos 80. O fato de alguns dos mais ardorosos adep-tos da política da ISI do Sul da Ásia (particularmente a Índia e o Paquistão)terem conseguido manter a taxa de crescimento depois de 1973 (o Pa-quistão) ou aumentá-la (a Índia) também sugere que a ISI não era a úni-ca envolvida.

A história real é muito clara. A causa imediata do colapso econômi-co foi a incapacidade de ajustar adequadamente a política macroeco-nômica à onda de choques externos. O desajuste macroeconômico deuorigem a uma série de síndromes associadas à instabilidade macroeconô-mica – inflação alta ou reprimida, escassez de divisas e elevados ágios nomercado negro, desequilíbrios nos pagamentos externos e crises deendividamento – que muito ampliaram o verdadeiro custo dos choques.De fato, verificou-se uma forte associação da inflação e dos ágios nomercado negro com a magnitude do colapso econômico sofrido por diver-sos países. Os mais sacrificados foram os que enfrentaram mais inflaçãoe aumentos mais acentuados do ágio no mercado negro de divisas(ibidem, Quadro 4.1). Culpados foram as precárias políticas monetáriae fiscal e os ajustes inadequados nas políticas cambiais, às vezes agrava-

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Estratégias de desenvolvimento para o novo século

das pelas políticas míopes dos credores e das instituições de BrettonWoods. As políticas comercial e industrial pouco tiveram a ver com ascausas da crise.

Por que alguns países ajustaram suas políticas macroeconômicas maisrapidamente que outros? Os determinantes mais profundos do desem-penho em crescimento posterior ao decênio de 1970 têm raízes na capa-cidade das instituições internas de administrar os conflitos distribucionaisprovocados pelos choques externos do período.

Pensemos uma economia repentina e inesperadamente confrontadacom a queda do preço de seu principal produto de exportação (ou comuma súbita reversão dos fluxos de capital). A prescrição de cartilha paraela é uma combinação de políticas de alteração e redução das despesas –isto é, de desvalorização e contenção fiscal. Porém, o modo preciso peloqual se administram essas alterações de políticas pode ter significativasimplicações distribucionais. A desvalorização deve vir acompanhada decontroles salariais? Convém elevar as tarifas de importação? Deve-seproceder à contenção fiscal mediante o corte de despesas ou o aumentodos impostos? Se se trata de cortar despesas, que tipo de gastos há de supor-tar o maior fardo? Devem-se elevar as taxas de juros a fim de refrear tam-bém as despesas privadas?

Em geral, a teoria macroeconômica não tem uma preferência clarapelas opções disponíveis. Mas, como cada uma delas gera conseqüênciasdistribucionais previsíveis, na prática, muitos fatores dependem da gra-vidade dos conflitos sociais latentes. Sendo possível empreender os ajus-tes apropriados sem a irrupção de conflito distribucional ou a perturbaçãodas barganhas sociais prevalecentes, é possível administrar o choque comalguns efeitos a longo prazo sobre a economia. Do contrário, esta arriscapassar anos paralisada enquanto o ajuste inadequado condena o país aoafunilamento do comércio internacional, à compressão das importações,a crises de endividamento e a surtos de inflação alta. Ademais, as divisõessociais profundas incentivam os governos a adiar os ajustes necessários ea assumir patamares excessivos de dívida externa, na expectativa de queoutros segmentos sociais sejam levados a arcar com os eventuais custos.

Em resumo, os conflitos sociais e sua administração têm um papelimportantíssimo na transmissão dos efeitos dos choques externos parao desempenho econômico. As sociedades com divisões sociais profundas

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

e precárias instituições de administração de conflito tendem a lidar malcom os choques. Nelas, o custo econômico dos choques exógenos – comoa deterioração em termos comerciais – é ampliado pelos conflitosdistribucionais desencadeados. Estes diminuem de diversas maneiras aprodutividade com a qual se utilizam os recursos: adiando os necessá-rios ajustes nas políticas fiscais e nos preços-chave relativos (como a taxade câmbio real ou os salários reais) e desviando as atividades das esferasprodutiva e empresarial. A evidência de várias nações corrobora este argu-mento: o desequilíbrio macroeconômico e o colapso do crescimento erammais prováveis nos países com alto grau de desigualdade de renda e comfragmentação etnolingüística, e menos nos que contavam com instituiçõesdemocráticas ou instituições públicas de alta qualidade (ibidem, 1999b).

Lições da crise financeira asiática

A mesma lógica se fez presente na recente crise financeira asiática.Uma lição que esta nos legou foi a de que os mercados de capital interna-cionais são praticamente incapazes de distinguir os bons riscos dos maus.É difícil acreditar que tenha havido muita racionalidade coletiva no com-portamento do investidor durante a crise e antes dela: os mercados fi-nanceiros cometeram um grave erro ou em 1996, quando derramaramdinheiro na região, ou em 1997, quando se retiraram em massa. A im-plicação é que depender excessivamente de capital líquido a curto prazo(como fizeram os três países mais gravemente afetados) é uma estraté-gia temerária.

Em segundo lugar, a crise demonstrou que a orientação comercial,em si, pouco tem a ver com a propensão a enfrentar sérios problemas deliquidez. As economias asiáticas mais afetadas pelos refluxos do capitalfiguravam entre as mais orientadas para o exterior no mundo, rotineira-mente apontadas como exemplos a serem seguidos pelos demais países.Os determinantes da crise – assim como da crise de endividamento de 1982e a do peso mexicano de 1994 – eram financeiros e macroeconômicos.As políticas comercial e industrial foram, quando muito, secundárias.5

5 Esse ponto é muito debatido e se opõe à visão oficial do FMI (Fischer, 1998). O argumentosegundo o qual os aspectos “estruturais” do modelo do Leste da Ásia não estavam na raizda crise é muito bem colocado por Stiglitz (1998) e Radelet & Sachs (1998). Isso não quer

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Estratégias de desenvolvimento para o novo século

Uma terceira lição da crise é que as instituições internas de admi-nistração de conflito são decisivas na contenção das conseqüências eco-nômicas adversas do choque inicial. No começo da crise, chegou a pare-cer que governos autoritários teriam mais possibilidade de evitar asexplosões sociais potenciais, ao passo que as “caóticas” democracias so-freriam. Aliás, muitos críticos da democracia liberal de estilo ocidentalviram nas perturbações tailandesas e coreanas, nos primeiros estágiosda crise, assim como na aparente solução indonésia, uma ilustração dasuperioridade econômica dos governos fundamentados nos ditos “Valo-res Asiáticos”. O resultado foi bem oposto. A Indonésia, uma sociedadeetnicamente dividida e governada por uma autocracia, acabou mergulhadano caos. As instituições democráticas da Coréia do Sul e da Tailândia,bem como suas práticas de consulta e cooperação entre os parceiros so-ciais, mostraram-se muito mais capazes de gerar a requerida política deajustes. Essa experiência recente demonstrou uma vez mais a importân-cia das instituições, particularmente das democráticas, para lidar comos choques externos.

Embora sejam relativamente recentes na Tailândia e na Coréia, asinstituições democráticas ajudaram esses dois países a se ajustar de diver-sos modos à crise. Primeiro, facilitaram uma suave transferência do po-der de um desacreditado conjunto de políticos para um grupo novo delideranças governamentais. Em segundo lugar, a democracia impôs me-canismos de participação, consulta e negociação que possibilitaramaos autores da política formar o consenso indispensável para que se em-preendesse decididamente a necessária política de ajustes. Terceiro, comoa democracia oferece mecanismos institucionalizados de “voz”, as insti-tuições coreanas e tailandesas anteciparam e evitaram a necessidade desublevações, manifestações e outros tipos de ações perturbadoras porparte dos grupos afetados, assim como reduziu o apoio dos outros seg-mentos da sociedade a tal comportamento.

dizer que tais economias não tivessem debilidades estruturais, particularmente uma depen-dência excessiva do controle governamental da economia que, provavelmente, sobreviveua sua utilidade. Porém, como observa Stiglitz, as crises financeiras irrompem com certaregularidade em economias que vão das escandinavas à dos Estados Unidos, todas com tiposmuito diferentes de gestão econômica e padrões de transparência.

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Algumas conclusões

Muitas das lições que a comunidade em desenvolvimento assimilouda história econômica recente carecem de revisão. No meu ponto de vis-ta, a interpretação correta é mais ou menos a seguinte.

Primeiro, a ISI funcionou bem num período de cerca de dois decê-nios. Conduziu ao aumento das taxas de investimento e levou os paísesda América Latina, do Oriente Próximo, da África do Norte e até algunsda África Subsaariana a um crescimento econômico sem precedentes. Se-gundo, quando as economias dessas mesmas nações começaram a sedesagregar na segunda metade da década de 1970, os motivos tiverampouquíssimo a ver com as políticas de ISI em si ou com a extensão dointervencionismo estatal. Os países que sobreviveram à tormenta foramaqueles cujos governos puseram em execução, rápida e decididamente,os ajustes macroeconômicos adequados (nas áreas de política fiscal, mo-netária e cambial). Terceiro – e mais fundamental –, o sucesso na adoçãodesses ajustes macroeconômicos ligou-se a determinantes sociais maisprofundos. Foi a capacidade de administrar os conflitos sociais internosprovocados pela turbulência da economia mundial, nos anos 70, que fez adiferença entre o crescimento contínuo e o colapso econômico. Os paísescom divisões sociais mais profundas e instituições mais fracas (parti-cularmente as de administração de conflito) enfrentaram maior deterio-ração econômica em conseqüência dos choques externos da década.

Tomados em conjunto, esses pontos fornecem uma interpretação dahistória econômica recente que difere muito do pensamento corrente.Ao relevar a importância dos conflitos e das instituições sociais – emdetrimento da estratégia comercial e das políticas industriais –, eles tam-bém propõem uma perspectiva bem diferente de política de desenvolvi-mento. Se eu tiver razão, a principal diferença entre a América Latina e,digamos, o Leste da Ásia não foi que aquela permaneceu fechada e isola-da enquanto este se integrava à economia mundial. A principal diferen-ça foi que a primeira foi muito mais incapaz de lidar com a turbulênciaengendrada pela economia mundial. Os países que tiveram dificuldadesforam aqueles que não conseguiram administrar a abertura, e não os queestavam insuficientemente abertos.

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3 Uma Taxinomia das InstituiçõesPúblicas de Apoio ao Mercado6

As instituições não têm grande importância na formação dos eco-nomistas. O modelo padrão Arrow-Debreu, com um conjunto completoe contingente de mercados a se estenderem indefinidamente no futuro,parece não demandar o apoio de instituições que não as do mercado. Masé claro que isso desnorteia mesmo no contexto do próprio modelo pa-drão. Este pressupõe um conjunto bem definido de direitos de proprie-dade. Também pressupõe que os contratos sejam assinados sem receiode que venham ser revogados quando for conveniente a uma das partes.Assim, na base, existem instituições que estabelecem e protegem os di-reitos de propriedade e dão vigência aos contratos. É necessário o concur-so de todo um sistema legal e jurídico para fazer que até mesmo os merca-dos “perfeitos” funcionem.

A legislação, por sua vez, precisa ser escrita e deve contar com o apoiodo emprego da força sancionada. Isso pressupõe um legislador e uma forçapolicial. A autoridade daquele pode derivar da religião, dos laços fami-liares ou do acesso à violência superior, mas, em todos os casos, precisater condições de oferecer aos súditos a mistura certa de “ideologia” (umsistema de crenças) com a ameaça da violência para coibir a rebelião vin-da de baixo. Ou então a autoridade pode emanar da legitimidade geradapelo apoio popular; nesse caso, ela deve corresponder às necessidadesdo “eleitorado”. Seja como for, estamos diante dos primórdios de umaestrutura governamental que vai muito além das estreitas necessidadesdo mercado.

Uma implicação de tudo isso é que a economia de mercado se “in-crusta” necessariamente num conjunto de instituições extramercado.Outra é que nem todas essas instituições existem primeiramente e aci-ma de tudo para suprir as necessidades da economia de mercado, pormais que a lógica interna da propriedade privada e da vigência dos con-tratos exija a sua presença. O fato de uma estrutura de governança sernecessária para garantir que os mercados funcionem não implica que ela

6 Esta seção se apóia muito em Rodrik (1999c).

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vise unicamente a esse fim. As instituições extramercado, às vezes, ge-ram resultados socialmente indesejáveis, como o uso do cargo públicopara o ganho privado. Também podem produzir conseqüências que res-tringem o jogo livre das forças de mercado na busca de um objetivo maior,como a estabilidade e a coesão sociais.

O resto desta seção discute cinco tipos de instituições de apoio aomercado: os direitos de propriedade, as instituições regulatórias, as deestabilização macroeconômica, as de previdência social e as de adminis-tração de conflito.

Os direitos de propriedade

É possível conceber uma florescente economia socialista de merca-do, como estabeleceram os famosos debates da década de 1920. Porém,todas as prósperas economias de hoje foram erigidas com base na proprie-dade privada. Como argumentaram North & Thomas (1973) e North &Weingast (1989), entre muitos outros, a celebração de direitos de pro-priedade seguros e estáveis foi um elemento-chave da ascensão do Oci-dente e do início do crescimento econômico moderno. O empresário sóé incentivado a acumular e inovar se tiver o controle adequado do retornodos ativos produzidos ou aprimorados.

Note-se que a palavra-chave aqui é “controle”, não “propriedade”.Os direitos formais de propriedade pouco hão de significar se não confe-rirem os de controle. Por isso, um direito de controle suficientementeforte é capaz de funcionar de modo apropriado mesmo na ausência dedireitos formais de propriedade. A Rússia atual representa um caso emque os acionistas, embora tenham o direito de propriedade, geralmentecarecem do controle efetivo das empresas. As empresas dos vilarejos ealdeias (EVA) da China são um exemplo em que o direito de controleimpulsionou a atividade empresarial apesar da ausência de direitos depropriedade definidos. Como ilustram esses exemplos, o estabelecimentodo “direito de propriedade” raramente é questão de aprovar uma legis-lação. Esta, em si, não é necessária nem suficiente para assegurar o di-reito de controle. Na prática, tal direito é garantido por uma combina-ção de legislação, coação privada e costumes e tradição. Pode ser

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distribuído mais escassa ou mais difusamente que o de propriedade. Osoutros interessados ou afetados podem ter a mesma importância que osacionistas.

Ademais, o direito de propriedade raras vezes é absoluto, mesmoque formalmente estabelecido por lei. O direito de impedir o vizinho deinvadir o meu pomar dificilmente se estende ao de matá-lo a tiros casoele de fato o invada. Outras leis e normas – como as que proíbem o homi-cídio – podem anular as que protegem o direito de propriedade. Cadasociedade decide por si a abrangência do direito de propriedade permissí-vel e as restrições aceitáveis ao seu exercício. O direito de patente e depropriedade intelectual são assiduamente protegidos nos Estados Unidose na maioria das sociedades avançadas, mas não em muitos países emdesenvolvimento. Por outro lado, a legislação ambiental e de zoneamentorestringe a possibilidade de os domicílios e as empresas dos países ricosfazerem o que bem entenderem com sua “propriedade” numa extensãomuito maior do que no caso dos países subdesenvolvidos. Todas as socie-dades reconhecem que o direito de propriedade privada está sujeito arestrições em nome de um objetivo público mais importante. O que variaé a definição do que constitui esse “objetivo público mais importante”.

Instituições regulatórias

Os mercados malogram quando os participantes adotam atitudesfraudulentas ou anticompetitivas. Falham quando o custo das transaçõesimpede a interiorização de externalidades tecnológicas ou não-pecuniá-rias. E fracassam quando a informação incompleta resulta em risco mo-ral e seleção adversa. Os economistas reconhecem essas deficiências etêm desenvolvido os necessários instrumentos analíticos para pensarsistematicamente as conseqüências e os possíveis remédios. Teorias do“second best”, da concorrência imperfeita, da agência, do desenho de meca-nismo e tantas outras oferecem uma escolha quase constrangedora deinstrumentos regulatórios para corrigir as falhas do mercado. As teoriasde economia política e opção pública oferecem salvaguardas contra adependência desqualificada desses instrumentos

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Na prática, toda economia de mercado bem-sucedida é supervisio-nada por uma panóplia de instituições regulatórias que regulam a con-duta com os bens, os serviços, o trabalho, os ativos e os mercados finan-ceiros. Algumas siglas dos Estados Unidos hão de bastar para dar umanoção do raio de ação das instituições envolvidas: FTC, FDIC, FCC, FAA,OSHA, SEC, EPA e assim por diante. Aliás, quanto mais livres são osmercados, maior é o fardo das instituições regulatórias. Não é por coin-cidência que os Estados Unidos têm os mercados mais livres do mundoe, ao mesmo tempo, a mais rigorosa legislação antitruste. É difícil conce-ber em qualquer outro país uma empresa de alta tecnologia enormemen-te bem-sucedida como a Microsoft sendo levada aos tribunais acusada depráticas anticompetitivas. A lição segundo a qual a liberdade de mercadoexige vigilância regulatória se confirmou recentemente com a experiênciado Leste da Ásia. Na Coréia do Sul, na Tailândia e em muitos outros paí-ses em desenvolvimento, a liberalização financeira e a abertura da contade capital levaram à crise financeira justamente por causa da regulamen-tação e da supervisão prudenciais inadequadas.7

É importante reconhecer que as instituições regulatórias podemprecisar se estender além da lista padrão, cobrindo a legislação antitruste,a supervisão financeira, a regulamentação da seguridade e alguns outros.Isso vale especialmente para os países em desenvolvimento, nos quaisas falhas do mercado podem ser mais difundidas, e as necessárias regu-lamentações, mais extensivas. Os modelos recentes de falhas de coorde-nação e imperfeições do mercado de capital8 deixam claro que as inter-venções governamentais estratégicas são muitas vezes necessárias paraescapar às armadilhas de baixo nível e eliciar reações desejáveis no in-vestimento privado. Pode-se interpretar, a essa luz, a experiência da Coréiado Sul e de Taiwan nas décadas de 1960 e 1970. Nessas duas economias,os subsídios e a coordenação governamental extensivos do investimen-to privado tiveram um papel decisivo para montar o cenário do cresci-mento auto-sustentável (Rodrik, 1995). Claro está que muitos outros

7 Ver também o recente trabalho de Johnson & Shleifer (1999), que atribui o desenvolvi-mento mais impressionante dos mercados de equity da Polônia, em comparação com os daRepública Tcheca, às regulamentações mais fortes, no primeiro país, visando proteger osdireitos dos acionistas minoritários e impedir a fraude.

8 Ver em Hoff & Stiglitz (1999) uma análise e discussão úteis.

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países tentaram replicar tais arranjos institucionais e fracassaram. E atéa Coréia do Sul pode ter levado longe demais uma coisa boa ao conservaros cômodos laços institucionais entre governo e chaebols até bem entra-dos os anos 90, ponto em que aqueles devem ter se mostrado disfun-cionais. Repetindo: a lição é que os arranjos institucionais desejáveisvariam não só de país para país, como no interior de cada um deles aolongo do tempo.

Instituições de estabilização macroeconômica

Desde Keynes, nós chegamos a uma melhor compreensão da reali-dade de que as economias capitalistas não são necessariamente auto-estabilizantes. Keynes e seus seguidores preocupavam-se com os cho-ques na demanda agregada e o resultante desemprego. Visões maisrecentes da instabilidade macroeconômica realçam a instabilidade ine-rente dos mercados financeiros e sua transmissão para a economia real.Todas as economias avançadas acabaram criando instituições fiscais e mo-netárias que exercem funções estabilizadoras, e aprenderam do modomais difícil quais são as conseqüências de não tê-las. Dessas instituições,a provavelmente mais importante é um emprestador de última instância –tipicamente o banco central –, que protege contra as crises bancárias auto-realizáveis.

Há uma forte corrente, no pensamento macroeconômico, cuja ver-são teórica mais sofisticada é representada pela abordagem real businesscycles (RBC) [ciclos de negócios reais] – que disputa a possibilidade ou aeficácia de estabilizar a macroeconomia por meio de políticas monetá-rias e fiscais. Também há uma noção, nos círculos políticos, particular-mente nos da América Latina, de que as instituições fiscais e monetárias –tal como estão configuradas atualmente – aumentaram a instabilidademacroeconômica em vez de reduzi-la, adotando políticas procíclicas e nãoanticíclicas (Hausmann & Gavin, 1996). Esses desenvolvimentos instiga-ram a tendência à independência do banco central e ajudaram a inaugu-rar um novo debate sobre a criação de instituições fiscais mais robustas.

Alguns países (a Argentina é o exemplo mais significativo) abrirammão totalmente de um emprestador de última instância, substituindo-o

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pelo currency board. Segundo o cálculo argentino, não vale a pena ter umbanco central capaz de estabilizar ocasionalmente a economia, correndo orisco de geralmente desestabilizá-la. A história do país dá muitos motivospara pensar que essa não é uma aposta ruim. Mas será que isso tambémvale para o México ou o Brasil ou ainda para a Turquia ou a Indonésia?Uma substancial desvalorização real da rupia, operada via desvaloriza-ções nominais, foi um ingrediente-chave do desempenho econômicosuperlativo da Índia nos anos 90. O que talvez funcione na Argentinapode não funcionar nos outros países. A polêmica sobre currency boards edolarização ilustra o fato óbvio, mas ocasionalmente negligenciado, deque as instituições necessárias a um país não são independentes da his-tória desse país.

Instituições de previdência social

Na moderna economia de mercado, a mudança é constante e os ris-cos idiossincráticos (isto é, especificamente individuais) das rendas e doemprego são generalizados. O moderno crescimento econômico impõea transição de uma economia estática para uma dinâmica, na qual as ta-refas executadas pelos trabalhadores estão em evolução constante, sen-do freqüente o movimento ascendente e descendente na escala da renda.Um dos efeitos libertadores da economia de mercado dinâmica é livraros indivíduos dos vínculos tradicionais – o grupo familiar, a Igreja, a hie-rarquia aldeã. O outro lado da moeda é que ela também os aparta dossistemas tradicionais de apoio e das instituições que compartilham o ris-co. A troca de presentes, as festividades, os laços familiares – para citarapenas alguns arranjos sociais destinados a igualizar a distribuição derecursos nas sociedades tradicionais – perdem boa parte de suas funçõesde seguridade social. E, à medida que o mercado se expande, os riscoscontra os quais é preciso estar protegido tornam-se muito menos ad-ministráveis à maneira tradicional.

A enorme expansão dos programas públicos de previdência social,durante o século XX, é uma das características mais notáveis da evolu-ção das economias de mercado avançadas. Nos Estados Unidos, foi o trau-ma da Grande Depressão que pavimentou o caminho de importantesinovações institucionais nessa área: seguridade social, seguro-desempre-

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go, obras públicas, propriedade pública, seguro de depósito e legislaçãofavorável aos sindicados (Bordo et al., 1988, p.6). Como observa Jacoby(1998), antes da Grande Depressão, as classes médias geralmente eramcapazes de se auto-assegurar ou de comprar seguro de intermediáriosparticulares. Quando essas formas privadas de seguro entraram em co-lapso, elas se serviram do seu considerável peso político para reivindicara extensão da previdência social e a criação do que mais tarde seria de-nominado welfare state ou Estado assistencial. Na Europa, as raízes dowelfare state remontam, em certos casos, ao final do século XIX. Mas agrande expansão dos programas de seguridade social, particularmentenas economias menores mais abertas ao comércio exterior, foi um fenô-meno posterior à Segunda Guerra Mundial (Rodrik, 1998a). Malgradouma considerável reação política contra o welfare state na década de 1980,nem os Estados Unidos nem a Europa reduziram significativamente es-ses programas.

A seguridade social nem sempre precisa tomar a forma de progra-mas de transferência financiados com recursos fiscais. No modelo doExtremo Oriente, representado pelo caso japonês, a previdência é ofere-cida por meio de combinações de práticas empresariais (como o empre-go vitalício e os benefícios sociais fornecidos pela empresa) com setoresprotegidos e regulamentados (o pequeno comércio) e uma abordagemincremental da liberalização e da abertura para o exterior. Certos aspec-tos da sociedade japonesa que parecem ineficientes para os observado-res externos – como a preferência por pequenas lojas varejistas ou a re-gulamentação excessiva dos mercados de produto – podem ser encaradoscomo substitutos dos programas de transferência que, na ausência de-les, teriam de ser fornecidos (como na maioria das nações européias) pelowelfare state. Tais complementaridades entre distintos arranjos institu-cionais em uma sociedade têm a importante implicação de que é dificíli-mo alterar gradualmente os sistemas nacionais. Não se pode (ou não sedeve) pedir ao japonês que se livre de suas práticas de emprego vitalícioou dos ineficientes arranjos varejistas sem garantir que existam redes deseguridade alternativas. Outra implicação é que as alterações institucio-nais substanciais só ocorrem em conseqüência de grandes deslocamen-tos, como os criados pela Grande Depressão ou pela Segunda GuerraMundial.

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A seguridade social legitima a economia de mercado porque a compa-tibiliza com a estabilidade e a coesão sociais. Ao mesmo tempo, os welfarestates existentes na Europa Ocidental e na América do Norte engendramdiversos custos econômicos e sociais – despesas fiscais crescentes, umacultura de “direito adquirido”, o desemprego a longo prazo – que vêm setornando cada vez mais visíveis. Em parte por causa disso, os países emdesenvolvimento, como os latino-americanos que adotaram o modelovoltado para o mercado após a crise de endividamento dos anos 80, nãoderam atenção suficiente à criação de instituições de seguridade social.O resultado final foi a insegurança econômica e uma reação contrária àsreformas. Como esses países hão de manter a coesão social em face degrandes desigualdades e conseqüências voláteis, as quais têm se agrava-do com o aumento da dependência das forças do mercado, é uma per-gunta sem resposta óbvia no momento. Todavia, se a América Latina eas outras regiões em desenvolvimento quiserem abrir um caminho dife-rente do seguido pela Europa e os Estados Unidos rumo à seguridadesocial, terão de desenvolver uma visão própria – e inovações institucionaispróprias – para aliviar a tensão entre as forças de mercado e a aspiração àsegurança econômica.

Instituições de administração de conflito

As sociedades diferem em suas clivagens. Algumas são constituídasde população étnica e lingüisticamente homogênea e marcadas por umadistribuição de certo modo igualitária dos recursos (a Finlândia?). Outrascaracterizam-se pelos contrastes profundos nos aspectos étnicos ou derenda (a Nigéria?). Tais divisões obstruem a cooperação social e impe-dem a realização de projetos mutuamente benéficos. O conflito social énocivo tanto porque desvia recursos das atividades economicamente pro-dutivas quanto porque desestimula tais atividades em razão da incertezaque gera. Os economistas costumam utilizar modelos de conflito socialpara esclarecer questões como as que se seguem. Por que os governosadiam as estabilizações se o adiamento impõe custos a todos os grupos(Alesina & Drazen, 1991)? Por que os países ricos em recursos naturais

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geralmente se saem pior do que os pobres nesses recursos (Tornell &Lane, 1999)? Por que os choques externos muitas vezes levam a prolon-gadas crises econômicas desproporcionais ao custo direto dos próprioschoques (Rodrik, 1999b)?

É possível ver nisso tudo exemplos de falha de coordenação queimpedem as facções sociais de coordenar resultados que seriam de be-nefício mútuo. As sociedades saudáveis contam com uma série de ins-tituições que tornam menos prováveis essas falhas colossais de coorde-nação. O império da lei, um judiciário de alta qualidade, as instituiçõespolíticas representativas, as eleições livres, os sindicatos independentes,as parcerias sociais, a representação institucionalizada dos grupos mino-ritários e a previdência social são exemplos de tais instituições. O quefaz que esses arranjos funcionem como instituições de administração deconflito é o fato de impor uma dupla “tecnologia de compromisso”: avi-sam os “vencedores” potenciais do conflito social que seus ganhos serãolimitados, e garantem aos “perdedores” que estes não serão expropria-dos. Tendem a aumentar os incentivos dos grupos a cooperar, reduzindoa vantagem das estratégias socialmente não-cooperativas.

4 Qual é o Papel da Diversidade Institucional?

Como se demonstrou na seção anterior, a economia de mercadodepende de uma ampla ordem de instituições extramercado que desempe-nham funções regulatórias, estabilizadoras e legitimadoras. Uma vez queessas instituições são aceitas como parte e parcela de uma economia ba-seada no mercado, as dicotomias tradicionais entre mercado e Estadoou laisser-faire e intervenção passam a ter menos sentido. Esses não sãomodos rivais de organizar as questões econômicas de uma sociedade; sãoelementos complementares que tornam o sistema sustentável. Toda eco-nomia de mercado em bom funcionamento é uma mescla de Estado emercado, de laisser-faire e intervenção.

Outra implicação da discussão da seção precedente é que a base ins-titucional de uma economia de mercado não é determinada por um sófator. Formalmente, não há um mapeamento único entre o mercado e o

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conjunto de instituições extramercado necessárias para sustentá-lo. Estetem reflexo numa ampla variedade de instituições regulatórias, estabiliza-doras e legitimadoras que observamos nas sociedades industriais avan-çadas da atualidade. O estilo norte-americano de capitalismo é muitodiferente do japonês. E ambos diferem do europeu. E, mesmo na Euro-pa, há grandes diferenças entre os arranjos institucionais, por exemplo,da Suécia e da Alemanha.

É um erro jornalístico comum supor que um conjunto de arranjosinstitucionais deve dominar os outros em termos de desempenho geral.Daí as coqueluches da década: com os baixos índices de desemprego, aselevadas taxas de crescimento e o florescimento cultural, a Europa foi ocontinente a ser imitado durante boa parte da década de 1970; nos anos80, de consciência comercial, o Japão passou a ser o exemplo escolhido;e o decênio de 1990 foi o do modelo norte-americano de capitalismo li-vre e solto. Trata-se de adivinhar que grupo de países conquistará a ima-ginação caso uma correção substancial venha atingir o mercado acionárioamericano.9

A questão da diversidade institucional tem, na verdade, uma impli-cação mais fundamental. Os acertos institucionais hoje vigentes, porvariados que sejam, constituem, eles próprios, um subgrupo da série com-pleta de possibilidades institucionais potenciais. Esse é um ponto quefoi veemente e utilmente defendido por R. Unger (1998). Não há porque supor que as sociedades modernas já lograram exaurir todas as varia-ções institucionais úteis, capazes de substanciar economias sadias e vi-brantes. Ainda que aceitemos que as economias de mercado requeremcertos tipos de instituições como as arroladas na seção anterior,

tais imperativos não são selecionados numa lista fechada de possibilidadesinstitucionais. Estas não vêm na forma de sistemas indivisíveis, juntasvigorando ou juntas esmorecendo. Sempre há conjuntos alternativos de arran-jos capazes de passar pelos mesmos testes práticos. (Ibidem, p.24-5)

É preciso conservar um ceticismo sadio ante a idéia de que um tipoespecífico de instituição – por exemplo, um modo particular de gover-

9 Talvez a Europa volte a entrar na moda. Recentemente, o The New York Times publicou umimportante artigo com o título “A Suécia, Welfare State, goza de uma nova prosperidade” (8de outubro de 1999).

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nança corporativa, de sistema de seguridade social ou de legislação domercado de trabalho – é o único tipo compatível com uma economia demercado em bom funcionamento.

5 Incentivos e Instituições de Mercado

Afinal, o que conta para todo progresso econômico é a iniciativa in-dividual. O sistema de mercado não tem rival, em termos de eficácia, emorientar o esforço individual para a meta de avanço material da socieda-de. O pensamento inicial acerca da política de desenvolvimento, tal comose mencionou na introdução, não levou isso muito em conta. Os estru-turalistas desprezavam os incentivos de mercado por considerá-los ine-ficazes em vista do abastecimento geral e de outras imposições “estru-turais”. Os socialistas os desprezavam por considerá-los incompatíveiscom a meta da igualdade e outros objetivos sociais.

Ambos os temores se revelaram infundados. Os agricultores, em-presários e investidores de todo o mundo, independentemente do graude instrução, mostraram-se bastante sensíveis aos incentivos de preço.Na Coréia do Sul e em Taiwan, a forte reação do setor privado aos incen-tivos fiscais e de crédito, criados no início da década de 1960, foi um es-timulante decisivo para o milagre de crescimento desses países (Rodrik,1995). Na China, o sistema de vias duplas, que permitiu aos agriculto-res vender suas safras no mercado livre (uma vez cumpridas as obriga-ções de cota), resultou num pronunciado crescimento da produção agrí-cola e ativou o elevado crescimento que continua até hoje. Tendoreformado seu pesado sistema de licenciamento industrial, reduzido ocusto dos bens de capital importados e alterado os preços relativos emfavor dos tradables no princípio do decênio de 1990, a Índia foi recom-pensada com um acentuado aumento do investimento, das exportaçõese do crescimento. Conquanto a desigualdade tenha se aprofundado emalguns desses casos, os níveis de pobreza se reduziram em todos eles.

Portanto, os incentivos de mercado funcionam. Se esta fosse toda ahistória, a conclusão, em termos de política, seria igualmente clara e dire-ta: liberalizar a totalidade dos mercados o mais depressa possível. Aliás,não foi outra a mensagem interiorizada pelos advogados do consenso deWashington e pelos formuladores da política que lhes deram ouvidos.

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Acontece, porém, que a experiência de desenvolvimento dos últimoscinqüenta anos revela outro fato impressionante: os países de melhordesempenho são os que se liberalizaram parcial e gradualmente. É claroque a China se destaca nesse aspecto à medida que seu sucesso, desde1978, se deve a uma estratégia baseada nas vias duplas, no gradualismoe no experimento. Com exceção de Hong Kong, que sempre foi um paraísodo laisser-faire, todos os outros casos de sucesso, no Extremo Oriente,trilharam caminhos de reformas gradualistas. A Índia, que foi muito bemnos anos 90, também liberalizou só parcialmente. Todos esses paísessoltaram a energia dos setores privados, mas o fizeram de modo caute-loso e controlado.

Um importante motivo pelo qual as estratégias gradualistas deramcerto nos casos mencionados é que elas se ajustavam melhor às institui-ções preexistentes nos respectivos países. Por conseguinte, estes econo-mizaram na construção de instituições.10 A Coréia do Sul utilizou um sis-tema financeiro represado, fortemente controlado, para canalizar o créditopara empresas industriais dispostas a investir. O manual alternativo deliberalização financeira associada a créditos de taxa de investimento po-dia ser mais eficaz no papel, porém dificilmente teria funcionado tão bemna Coréia dos anos 60 e 70, nem gerado retornos tão rápidos. Em vez dedepender do estabelecimento de preços via dupla, a China podia ter li-berado completamente os preços agrícolas e, depois, compensado osconsumidores urbanos e o tesouro mediante reformas fiscais, mas tar-daria anos, se não décadas, para erigir instituições novas.

Comparemos esses exemplos com as reformas cabais operadas naAmérica Latina e nos antigos países socialistas. Como estes últimos fo-ram tão radicais e tomaram empréstimos maciços de outros países, seusucesso dependia da rápida criação de instituições novas, de amplo al-cance, apressadas e sumárias. Era um trabalho hercúleo. Talvez não sur-preenda que a transição tenha se mostrado mais difícil do que previrammuitos economistas. De fato, os casos mais bem-sucedidos foram osdaqueles em que as instituições capitalistas não tinham sido inteiramentedestruídas ou eram de memória recente (como na Polônia).

10 Ver Qian (1999), um bom relato da experiência chinesa nesses aspectos.

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Portanto, as estratégias de reformas orientadas para o mercado de-vem reconhecer não só que as instituições são importantes, mas que épreciso tempo e esforço para alterar as instituições existentes. Esse últi-mo fato apresenta tanto uma coerção quanto uma oportunidade. Umacoerção porque implica que as melhores reformas de preço podem serinviáveis. Uma oportunidade porque permite aos formuladores de polí-tica imaginativos experimentar alternativas lucrativas (como no caso dasvias duplas ou das EVAs da China).

6 Implicações na Governança ena Condicionalidade Internacionais

Até aqui, minha argumentação pode se resumir nas quatro proposi-ções abaixo:

1 os incentivos de mercado são decisivos para o desenvolvimentoeconômico;

2 os incentivos de mercado precisam do apoio de fortes instituiçõespúblicas;

3 as economias de mercado são compatíveis com uma série de di-versificados arranjos institucionais;

4 quanto maior for a adequação das reformas orientadas para o mer-cado às capacidades institucionais preexistentes, maior a proba-bilidade de sucesso.

Atualmente, as duas primeiras proposições são amplamente aceitase formam o fundamento de um Consenso de Washington ampliado. Se-gundo o Consenso revisto, a liberalização, a privatização e a integraçãoglobal não são menos importantes, mas precisam ser suplementadas eapoiadas por reformas na área da governança. Mas a importância do ter-ceiro e do quarto pontos não é adequadamente reconhecida.

Vemos o novo Consenso em funcionamento em várias áreas distin-tas. Por exemplo, logo depois da crise asiática, os programas do FMI naregião vetaram uma longa lista de reformas estruturais em áreas comoas relações empresa-governo, a banca, a governança corporativa, as leisde falência, as instituições do mercado de trabalho e a política industrial.

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Um componente-chave da nova Arquitetura Financeira Internacional éum conjunto de códigos e padrões – sobre transparência fiscal, políticamonetária e financeira, supervisão bancária, disseminação de dados,governança e estrutura corporativas, padrões de contabilidade – concebi-dos para ser aplicados em todos os países, mas principalmente nos subde-senvolvidos. E, desde a Rodada do Uruguai, as negociações de comércioglobal resultaram em vários acordos – sobre direito de propriedade inte-lectual, subsídios e medidas relativas a investimento – que harmonizamas práticas dos países em desenvolvimento com as dos mais avançados.

Por esse motivo, à medida que vem sendo operacionalizada, a novavisão do desenvolvimento resulta num aumento gradual da condiciona-lidade e no estreitamento do espaço no qual se pode conduzir a política.Em geral, isso é indesejável por diversos motivos. Primeiro, é irônico quetal fato aconteça precisamente no momento em que a nossa compreen-são de como funciona a economia global e do que os países pequenosprecisam fazer para nela prosperar revelou-se muito insuficiente. Não faztanto tempo assim que se supôs que a orientação para a exportação e aselevadas taxas de investimento do Leste da Ásia dariam proteção contra otipo de crise externa que abala periodicamente a América Latina. Um exer-cício comum, depois da crise da tequila de 1995, era comparar as duas re-giões em termos de déficit em conta corrente, taxas de câmbio reais, ra-zão PIB-exportação e taxas de investimento a fim de mostrar que o Lesteda Ásia, em sua maior parte, parecia bem “melhor”. Naturalmente, nãofaltavam críticos ao Leste da Ásia, mas o que eles tinham em mente erauma diminuição gradual da pressão, não o derretimento que transpirou.11

Segundo, como já enfatizei (na proposição 3), o capitalismo de mer-cado é compatível com uma variedade de arranjos institucionais. O novoConsenso rejeita essa visão (a da “convergência” extrema) ou subestimaseu significado na prática. O novo conjunto de disciplinas internacionaisvem ombro a ombro com um modelo particular de desenvolvimento econô-mico que, na verdade, não foi testado sequer na experiência histórica dospaíses avançados da atualidade. Essas disciplinas excluem algumas es-

11 “Eu aprendi mais sobre o funcionamento do sistema financeiro internacional nos últimosdoze meses do que nos vinte anos anteriores”, reconheceu recentemente Allan Greenspan(apud Friedman, 1999, p.71).

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Estratégias de desenvolvimento para o novo século

tratégias de desenvolvimento que deram certo no passado e outras quepodem dar certo no futuro. O estreitamento da autonomia nacional naformulação da estratégia de desenvolvimento é um preço pelo qual os paí-ses em desenvolvimento dificilmente receberão um retorno adequado.

Terceiro, as dificuldades práticas para implementar muitas das refor-mas institucionais discutidas estão sendo seriamente subestimadas. Osatuais países desenvolvidos não criaram suas instituições regulatórias ejurídicas da noite para o dia. Seria bom se os países do Terceiro Mundoadquirissem de algum modo as instituições do Primeiro Mundo, porémo mais seguro é apostar que isso só acontecerá quando eles já não forempaíses do Terceiro Mundo. Uma estratégia que adapte as reformas basea-das no mercado às capacidades institucionais existentes tem mais proba-bilidade de frutificar a curto prazo (proposição 4).

Nada disso pretende sugerir que as reformas institucionais especí-ficas que dominaram as agendas das instituições de Bretton Woods ca-recem de mérito. Ninguém pode se opor seriamente à introdução de pa-drões adequados de contabilidade ou contra a supervisão prudencialaprimorada dos intermediários financeiros. Embora na prática alguns pa-drões provavelmente acabem saindo como um tiro pela culatra, as preo-cupações mais sérias são duplas. Primeiro, esses padrões são a cunha comque se transmite um conjunto mais amplo de preferências políticas einstitucionais aos países recipientes – em favor das contas abertas decapital, dos mercados de trabalho desregulamentados, das finançasfavorecidas, da governança corporativa de estilo norte-americano e hos-til às políticas industriais. Segundo, a agenda se concentra excessivamentenas reformas institucionais exigidas para tornar o mundo seguro para osfluxos de capital e, portanto, afasta necessariamente o capital político ea atenção das reformas institucionais em outras áreas. O risco é de quetal abordagem venha privilegiar a liberdade do comércio internacional eda mobilidade do capital, em nome da política econômica “sadia”, em detri-mento de outras metas da política de desenvolvimento potencialmentecapazes de colidir com ela.

Por conseguinte, seja qual for a forma que tomar a arquitetura da eco-nomia internacional em evolução, um objetivo importante deve ser dei-xar espaço para que os países em desenvolvimento experimentem suaspróprias estratégias.

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7 Qual é a Importância da IntegraçãoEconômica Internacional?

Como se observou na seção anterior, a exigência de integração econô-mica global veio projetar uma longa sombra no design das políticas dedesenvolvimento. Os países subdesenvolvidos recebem incessantemen-te aulas sobre a longa lista de exigências que devem cumprir a fim de seintegrar à economia mundial. O problema do atual discurso acerca daglobalização é que ele confunde fins com meios. Uma estratégia verda-deiramente orientada para o desenvolvimento requer uma mudança deênfase. A integração à economia mundial deve ser encarada como uminstrumento para alcançar o crescimento econômico e o desenvolvimento,não como um objetivo supremo. Maximizar o comércio e os fluxos decapital não é e não deve ser a meta da política de desenvolvimento.

Nenhum país se desenvolveu com sucesso dando as costas para ocomércio internacional e para os fluxos de capital a longo prazo. Pouquís-simos cresceram durante longos períodos sem experimentar uma parti-cipação cada vez maior do comércio exterior no produto nacional. Comoobserva Yamazawa (2000, p.82), “nenhuma economia em desenvolvimen-to pode se desenvolver atrás de um muro protetor”. Na prática, o maispoderoso mecanismo que liga o comércio ao crescimento, nos países sub-desenvolvidos, é a probabilidade de os bens de capital importados se-rem significativamente mais baratos que os fabricados internamente. Aspolíticas que restringem as importações de equipamento de capital – ele-vam os preços dos bens de capital internos e, assim, reduzem os níveisreais de investimento – devem ser consideradas indesejáveis à primeiravista. As exportações, por sua vez, são importantes, pois é com elas quese adquire o equipamento de capital importado.

Mas é igualmente verdadeiro que nenhum país se desenvolveu sim-plesmente abrindo-se para o comércio e o investimento estrangeiros. Otruque, nos casos bem-sucedidos, foi combinar as oportunidades ofere-cidas pelos mercados mundiais com uma estratégia de investimento in-terno de estimular o espírito animal dos empresários nacionais. Comose mencionou anteriormente, quase todos os casos relevantes envolvemuma abertura parcial e gradual para as importações e o investimento es-

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Estratégias de desenvolvimento para o novo século

trangeiro. Simplesmente não há prova de que a adoção da liberalizaçãodo comércio está sistematicamente associada a taxas de crescimento maiselevadas. As instituições multilaterais como o Banco Mundial, o FMI e aOCDE promulgam regularmente conselhos fundados na convicção de quea abertura gera conseqüências previsíveis e positivas sobre o crescimen-to. A verdade é que a evidência disponível quanto a isso está longe deser tão forte quanto se pretende.

A evidência da liberalização do comércio

Recentemente, Francisco Rodríguez e eu (Rodrik, 1999) repassamosa extensa literatura empírica acerca da relação entre política comercial ecrescimento. Chegamos à conclusão de que há um fosso considerável en-tre a mensagem derivada pelos consumidores dessa literatura e os “fatos”que ela realmente demonstra. Diversos fatores aprofundam o fosso. Emmuitos casos, os indicadores de “abertura” utilizados pelos pesquisado-res são problemáticos como avaliação das barreiras comerciais ou são al-tamente correlatos com outras fontes de fraco desempenho econômico.Em outros casos, as estratégias empíricas a que se recorreu para afirmaro vínculo entre política comercial e crescimento apresentam defeitos cujaremoção resulta em constatações significativamente mais débeis.12

Portanto, a natureza da relação entre política comercial e crescimentoeconômico continua sendo uma questão em aberto. E está longe de tersido estabelecida no terreno empírico. Na verdade, há dois motivos paraduvidar da existência de uma relação geral e não ambígua entre aberturacomercial e crescimento que aguarda ser descoberta. O mais provável éque se trate de uma relação contingente, dependente de muitas caracte-rísticas internas e externas. O fato de praticamente todos os países avan-çados de hoje terem promovido o crescimento por trás de barreirastarifárias, e só posteriormente as reduziram, decerto oferece uma pista.Note-se também que a teoria moderna do crescimento endógeno oferece

12 Nossa análise detalhada cobre os quatro trabalhos provavelmente mais conhecidos na área:Dollar (1992), Sachs & Warner (1995), Ben-David (1993) e Edwards (1998).

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uma resposta ambígua quando se pergunta se a liberalização do comércioestimula o crescimento. A resposta varia, dependendo de se as forças devantagem comparativa direcionam os recursos da economia para ativi-dades que geram crescimento a longo prazo (via externalidades em pes-quisa e desenvolvimento, expansão da variedade do produto, aprimora-mento da qualidade do produto, e assim por diante) ou os desviam detais atividades.

De fato, a complementaridade entre incentivos de mercado e insti-tuições públicas, que enfatizo reiteradamente, não tem sido menos im-portante na área do desempenho comercial. No Extremo Oriente, já seestudou e documentou exaustivamente o papel dos governos no aumentodas exportações durante os primeiros estágios de crescimento (Amsden,1989; Wade, 1990). Mesmo no Chile, o paradigma da orientação para omercado, o sucesso nas exportações a partir de 1985 dependeu de umaampla série de políticas governamentais, inclusive subsídios, isençõesfiscais, esquemas de desconto de direitos aduaneiros, pesquisa de mer-cado oferecida pelo poder público e iniciativas públicas de fomento àexpertise científica. Tendo arrolado algumas políticas públicas anteriorese posteriores a 1973 de promoção dos setores frutífero, pesqueiro e flo-restal do Chile, Maloney (1997, p.59-60) conclui: “É justo indagar se,sem o apoio governamental anterior e atual, esses três setores extrema-mente dinâmicos de exportação teriam reagido do modo como reagiramao jogo das forças do mercado”.

A conclusão apropriada a se tirar de tudo isso não é que, via de re-gra, o protecionismo seja preferível à liberalização do comércio. Nãohá evidência fidedigna, nos últimos cinqüenta anos, de que a proteçãoao comércio esteja sistematicamente associada ao maior crescimento.Trata-se apenas de não exacerbar os benefícios da abertura comercial.Quando outros objetivos políticos válidos disputam recursos admi-nistrativos e capital político escassos, a profunda liberalização do co-mércio poucas vezes merece a alta prioridade que tipicamente recebenas estratégias de desenvolvimento. Essa é uma lição de particularimportância para os países (como os africanos) que se acham em está-gios iniciais de reforma.

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Estratégias de desenvolvimento para o novo século

A evidência da liberalização da conta de capital

A evidência dos benefícios da liberalização da conta de capital é ain-da mais fraca.13 No papel, a atração da mobilidade do capital é óbvia. Naausência de imperfeições do mercado, a liberdade comercial aumenta aeficiência, e isso vale tanto para o comércio de ativos em papel quanto debônus. Mas os mercados financeiros sofrem várias síndromes – assime-trias de informação, problemas de agência, expectativas auto-realizáveis,bolhas (racionais ou de outra sorte) e miopia –, numa extensão que tornaa sua análise econômica inerentemente questionável. Nenhum remen-do institucional altera de modo significativo esse fato básico da vida.

Em última instância, a questão de levar ou não as nações em desen-volvimento a abrir sua conta de capital (de maneira “ordenada e progres-siva” como atualmente recomenda o FMI) só pode ser resolvida com basena evidência empírica. Embora não faltem evidências do choque finan-ceiro que geralmente acompanha a liberalização financeira (ver o examede Williamson & Mahar, 1998), são poucas as que sugerem que as taxasmais elevadas de crescimento econômico acompanham a liberalizaçãoda conta de capital. Quinn (1997) detecta uma associação positiva entrea liberalização da conta de capital e o crescimento a longo prazo, ao pas-so que Grilli & Miles-Ferretti (1995), Rodrik (1998a) e Kraay (1998) –este último utiliza o próprio indicador de restrições de conta de capitalde Quinn – não vêem relação nenhuma. Klein & Olivei (1999) falamnuma relação positiva, mas em grande parte orientada pela experiên-cia dos países desenvolvidos de sua amostra. Esse é um terreno de inda-gação que continua na infância, e é óbvio que ainda falta aprender muito.O mínimo que se pode dizer, no presente, é que ainda não se produziuuma evidência convincente dos benefícios da liberalização da conta decapital.

Entre os argumentos favoráveis à mobilidade internacional do capi-tal, talvez o mais sedutor seja o que afirma que ela exerce uma útil fun-ção disciplinadora da política governamental. Os governos que precisamser sensíveis aos investidores não podem esbanjar tão facilmente os

13 Essa discussão sobre a conversibilidade da conta de capital baseia-se em Rodrik (2000).

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recursos da sociedade. Como afirma Larry Summers (1998): “a discipli-na do mercado é o melhor meio que o mundo encontrou de assegurarque o capital seja bem empregado”.

A idéia atrai, porém, uma vez mais, deve-se questionar sua relevân-cia empírica. Quando os credores estrangeiros sofrem as síndromes jáapontadas, um governo que gasta de forma irresponsável e considera maisfácil financiar as despesas se puder tomar emprestado no exterior. Ade-mais, para esse governo, até mesmo o empréstimo interno torna-se po-liticamente menos custoso porque, num mundo de livre mobilidade docapital, não há como pressionar os investidores privados (já que elespodem obter empréstimo no estrangeiro). Em ambos os exemplos, osmercados financeiros internacionais permitem despesas temerárias quenão ocorreriam na sua ausência. Inversamente, a disciplina que os mer-cados impõem após as crises pode ser excessiva e arbitrária, como sediscutiu anteriormente. Como observa Willett (1998), a caracterizaçãoadequada da disciplina do mercado é que ela chega tarde demais e, quandochega, é tipicamente desmedida.

Um trabalho recente de Mukand (1998) desenvolve muito bem aanálise de tal situação. Consideremos o seguinte cenário estilizado pro-posto pelo arcabouço de Mukand. Suponhamos dois agentes, um gover-no (G) e um investidor estrangeiro (I), que tenham de decidir que açõesempreender num momento em que a situação básica do mundo não éobservável. Essa situação pode estar “arrumada” ou “confusa”. G recebeum sinal privado sobre a situação e então escolhe uma política (a qual éobservada por I). Pode ser uma política “ortodoxa” ou “heterodoxa”. Su-ponhamos que a política ortodoxa (heterodoxa) produza um excedentemaior em agregado se a situação mundial estiver arrumada (confusa). Oinvestidor estrangeiro I só se dispõe a investir se houver coincidência entrea política e a situação esperada (ortodoxa/arrumada ou heterodoxa/con-fusa). Além disso, I acredita (talvez equivocadamente) que a produtivi-dade do investimento será maior na combinação ortodoxa/arrumada quena heterodoxa/confusa e investirá mais se tiver expectativa de que seapresente o primeiro cenário.

Mukand (1998) demonstra que o governo pode ter dois motivos paraadotar a política ortodoxa em tais circunstâncias, mesmo que receba osinal de que a situação básica é confusa (e, portanto, a política heterodoxa

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Estratégias de desenvolvimento para o novo século

é mais apropriada). Ele dá às tendências resultantes os nomes de “ten-dência ao conformismo” e “tendência ao otimismo”. Isso pode ser expli-cado da seguinte maneira:

1 Tendência ao conformismo: digamos que I tem um forte e inabalávelprior de que a situação está arrumada. Mesmo que o posterior de G seja su-ficientemente forte de que a situação está “confusa”, pode ser que mesmoassim ele opte por adotar a política ortodoxa porque não tem como influen-ciar a convicção de I (posterior) e acha melhor contar com o investimento eadotar a política errada que ficar sem o investimento e adotar a certa (istoé, a de maximizar o excedente agregado).

2 Tendência ao otimismo: se for possível afetar o posterior de I com aescolha da política de G, este pode optar por adotar a política ortodoxa parasinalizar uma situação arrumada e levar a expectativa de I a “arrumada”,pois o investimento será maior se ele contar com esta situação, não com aconfusa (supondo, em ambos os casos, que haja coincidência entre a situa-ção esperada e a política).

Note-se que, para que o segundo cenário se materialize, não é ne-cessário que, na situação ortodoxa/arrumada, a produtividade do inves-timento seja deveras superior à da situação heterodoxa/confusa. Bastaque o investidor estrangeiro acredite nisso. Em qualquer caso, o gover-no se vê impelido pelo “sentimento do mercado” a adotar políticas ina-dequadas e não chegar ao ótimo.

É óbvio que os governos precisam de disciplina. Contudo, nas so-ciedades modernas, essa disciplina é fornecida pelas instituições demo-cráticas – eleições, partidos de oposição, judiciário independente, deba-te parlamentar, imprensa livre e outras liberdades civis. Os governos quedesarrumam a economia são punidos nas urnas. A ampla evidência devários países sugere que as nações democráticas tendem a ter muito su-cesso na manutenção de políticas fiscais e monetárias responsáveis. Oscasos mais significativos de profligação fiscal se verificam nos regimesautoritários, não nos democráticos. Foram as ditaduras militares quelevaram a América Latina à crise de endividamento, e as democraciaspuseram ordem na casa. Na Ásia, os países democráticos como a Índia eSri-Lanka têm recordes macroeconômicos exemplares em comparaçãocom os padrões latino-americanos. As duas únicas democracias antigas

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da África (Maurício e Botsuana) fizeram um excelente trabalho ao admi-nistrar as altas e as quedas dos preços de seus principais produtos deexportação (o açúcar e o diamante). Entre as economias em transição,as estabilizações mais bem-sucedidas ocorreram nos países mais demo-cráticos. Numa amostra de mais de cem países, encontra-se uma forteassociação negativa entre o índice de democracia e a taxa média de infla-ção da Freedom House com base na renda per capita. A visão da mobilida-de internacional do capital como disciplina incorpora uma posição políti-ca, na melhor das hipóteses, parcial e, na pior, nociva à democracia.

Por fim, como já ficou indicado, a insistência na agenda de liberalizaçãoda contabilidade do capital tem o efeito de pressionar a agenda dosformuladores da política e desviar sua energia do esforço pelo desenvol-vimento nacional. Um ministro da Fazenda que passa o tempo todo tra-tando de abrandar o sentimento do investidor e de fazer o marketing daeconomia para os banqueiros estrangeiros não há de ter tempo para aspreocupações tradicionais com o desenvolvimento: reduzir a pobreza,mobilizar recursos e estabelecer as prioridades de investimento. No fim,são os mercados globais que acabam ditando a política, não as priorida-des internas.

8 Observações Conclusivas

A lição do século XX é que o desenvolvimento bem-sucedido requermercados apoiados por sólidas instituições públicas. O atual avanço dospaíses industrializados – os Estados Unidos, as nações da Europa Oci-dental, o Japão – deve seu êxito ao fato de eles terem elaborado modelospróprios, específicos e viáveis de economia mista. Conquanto essas so-ciedades sejam parecidas na ênfase que dão à propriedade privada, àmoeda sadia e ao império da lei, são dissimilares em muitas outras áreas:suas práticas nas áreas de relações de mercado de trabalho, de seguridadesocial, de governança corporativa, de regulamentação do mercado de pro-duto e de tributação diferem substancialmente.

Todos esses modelos estão em evolução constante e a nenhum de-les faltam problemas. O capitalismo do welfare state de estilo europeu mos-trou-se especialmente atraente na década de 1970. O Japão tornou-se o

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Estratégias de desenvolvimento para o novo século

modelo a ser emulado nos anos 80. E 1990 foi claramente a década docapitalismo livre e solto de estilo norte-americano. Adequadamente ava-liados na perspectiva histórica, todos esses modelos foram igualmentebem-sucedidos. A evidência da segunda metade do século XX é a de quenenhum desses modelos domina claramente os outros. Seria um erro alçaro capitalismo de estilo norte-americano como modelo para o qual o res-to do mundo deve convergir.

Naturalmente, todas as sociedades bem-sucedidas estão abertas paraaprender, principalmente com os precedentes úteis das demais. O Japãoé um bom exemplo nesse aspecto. Quando se reformou e codificou o sis-tema jurídico japonês durante a restauração Meiji, foram os códigos ci-vil e comercial alemães que lhe serviram de modelo principal. Portanto,minha ênfase sobre a diversidade institucional não deve ser encaradacomo a rejeição da inovação via imitação. O importante é que a “cópiaazul” importada seja filtrada pelas práticas e pelas necessidades locais.O Japão dá o exemplo uma vez mais. Como discutem Berkowitz et al.(1999, p.11), a opção pelo sistema jurídico alemão foi uma escolha, nãouma imposição de fora: “exaustivos debates sobre a adoção do direitoinglês ou francês e diversos esboços baseados no modelo francês prece-deram a promulgação dos códigos amplamente baseados no modelo ale-mão”. Em outras palavras, os reformadores japoneses escolheram cons-cientemente, entre os códigos disponíveis, aquele que lhes pareceu maisadequado às suas circunstâncias.

O que vale para os países avançados de hoje também vale para ossubdesenvolvidos. Enfim, o desenvolvimento econômico deriva de umaestratégia criada em casa, não do mercado mundial. Os formuladores dapolítica dos países em desenvolvimento devem evitar os modismos, co-locar a globalização em perspectiva e empenhar-se na construção de ins-tituições internas. Devem ter mais confiança em si e na construção deinstituições internas, e menos na economia global e nas cópias azuis quedela provêm.

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3Estagnação, liberalização e

investimento externo na América Latina

Glauco Arbix1

Mariano Laplane2

Nos últimos vinte anos, os países em desenvolvimento vêm procuran-do a todo o custo atrair capitais externos e empresas multinacionais, vis-tos como instrumento e meio de participação na nova economia global.Esse tipo de atuação governamental, que marcou especialmente os paí-ses da América Latina, expressa uma alteração profunda na opinião do-minante entre os formuladores de políticas públicas a respeito dos inves-timentos estrangeiros.

Basicamente, desde os anos 40 a atitude oficial dos governos latino-americanos em relação ao investimento direto externo (IDE) era de caute-la quando não de restrição, seja nos termos que definiam sua entradanos territórios nacionais, seja no impedimento de sua atividade nas áreasde recursos naturais, serviços e operações internas. Diferentemente dessa

1 Professor do Departamento de Sociologia da FFLCH da USP. E-mail: [email protected] Professor do Instituto de Economia da Unicamp.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

posição predominante, a esmagadora maioria dos países da AméricaLatina vem buscando, desde o final dos anos 80, ampliar a participaçãodos IDEs nas economias nacionais, facilitando, promovendo e oferecen-do garantias às suas operações.

As razões para essa mudança podem ser encontradas tanto numareleitura de longo prazo sobre as experiências de inspiração nacional-desenvolvimentista, patrocinadas principalmente pela Cepal, como nasavaliações predominantes sobre os anos 80, conhecida como a décadaperdida para a América Latina.3

Creditando e vinculando a estagnação dessa década às políticas pro-tecionistas configuradas desde o pós-guerra no continente, os novos go-vernantes dos anos 90 foram abandonando as políticas desenvolvi-mentistas e de substituição de importações, tentando se livrar da state-led traditionque marcou o continente por décadas. Um novo paradigma de políticaeconômica começou a ser implementado e construído, com forte tendên-cia privatizante e orientado para o mercado, tanto no nível interno quantono externo.

O impacto dessa nova política foi praticamente mundial, atingindoa maioria dos países periféricos, que tentaram, através de décadas, al-cançar seu desenvolvimento por meio de um Estado produtor, interventore protecionista, principal sustentáculo das políticas de substituição deimportações. Desde 1986, mais de oitenta países em todo o mundo libe-ralizaram suas políticas em relação aos investimentos estrangeiros. Se-gundo a Unctad, desde 1998, 103 países ofereceram condições especiaispara atrair corporações estrangeiras, passando a incluir em seu repertó-rio generosas isenções fiscais, quebra de barreiras alfandegárias, dimi-nuição de taxas e impostos de importação, empréstimos subsidiados, do-ações de terra e outros benefícios indiretos.

Na América Latina, mudanças fundamentais ocorreram nos siste-mas político-ideológicos e no modus operandi das economias, com impac-

3 Em 1989, o PIB/habitante latino-americano foi inferior em 8% ao de 1980. De 1981 a 1989,a análise do PIB/habitante registrou crescimento em apenas cinco países – Cuba, Colôm-bia, Chile, Barbados e República Dominicana – e nenhum no Paraguai, que ficou no índicezero. O Brasil decresceu 0,9%, enquanto o Uruguai ficou com -7,2%, o México -9,2%, aArgentina -23,5%, o Peru -24,7%, a Venezuela -24,9% e a Bolívia com -26,6%.

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Estagnação, liberalização e investimento externo na América Latina

to profundo na maneira como os países buscam atingir seus objetivos edefender seus interesses.

Essa mudança eminentemente política provocaria impactos signifi-cativos ao longo dos anos 90, em especial no que se refere à recente ex-pansão dos investimentos externos, que passaram a ocupar o lugar maisimportante já visto na história das economias latino-americanas.

Fluxo de IDE em países da América Latina – 1990-2000(Milhões de dólares)

1990- 1994* 1995 1996 1997 1998 1999 2000**

Argentina 2.982 5.315 6.522 8.755 6.670 23.579 11.957

Bolívia 85 393 474 731 957 1.016 695

Brasil 1.703 4.859 11.200 19.650 31.913 32.659 30.250

Chile 1.207 2.957 4.634 5.219 4.638 9.221 3.676

Colômbia 818 968 3.113 5.638 2.961 1.140 1.340

Equador 293 470 491 625 814 690 740

Paraguai 99 103 136 233 196 95 100

Peru 796 2.056 3.225 1.781 1.905 1.969 1.193

Uruguai … 157 137 126 164 229 180

Venezuela 836 985 2.183 5.536 4.495 3.187 4.110

México 5.430 9.526 9.186 12.831 11.312 11.786 12.950

Total 14.249 27.789 41.301 61.125 66.025 85.571 67.191

Fonte: Cepal.*Média anual. **Estimativa.

Especialmente a partir da segunda metade da década de 1990, aAmérica Latina alcançou grande sucesso na atração de novos investimen-tos. Apenas no biênio 1997-1998, a média anual de entrada foi de cercade US$ 70 bilhões, enquanto a média anual anterior à década de 1990nunca havia ultrapassado US$ 10 bilhões. O IDE saltou de 1% para 4%do PIB entre 1980 e 1998 (Mortimore, 2000).

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

Alguns pressupostos da teoria econômica dominante, particularmen-te a de extração neoclássica, sugerem que a integração crescente das eco-nomias em desenvolvimento na economia mundial é fonte de vantagens –mais do que desvantagens – para os países receptores. Considera-se queas variações positivas no fluxo de investimentos externos são capazes dedeflagrar processos de reestruturação competitiva com forte incidênciana produtividade geral e na produtividade do trabalho nos países hospe-deiros. Conseqüentemente, as economias mais abertas são vistas e en-tendidas como mais capazes de crescer do que as economias fechadas,assim como estariam mais habilitadas a se beneficiar de spillovers tec-nológicos (Edwards,1998; Frankel & Romer, 1999).

Essa visão dominante foi verificada empiricamente por Sachs &Warner, em famoso ensaio de 1995. Esses autores estabeleceram umarelação direta positiva entre os índices de crescimento dos paísespesquisados (mais de sessenta) e o grau de abertura de suas economiase, ao mesmo tempo, a falta de convergência das economias fechadas:“Economias abertas podem produzir um movimento de convergência derenda mais rapidamente do que as economias fechadas, uma vez que omovimento internacional de capital e tecnologia é capaz de acelerar a tran-sição para uma renda mais estável”. Suas conclusões estimularam a for-mulação de políticas públicas baseadas na rápida desregulamentação eabertura das economias na segunda metade dos anos 90, com impactonas orientações das agências internacionais e no comportamento dosgovernos sendo responsável por uma nova inflexão de conjunto da Amé-rica Latina.

A mecânica desse novo movimento residiu na busca da recuperaçãoda eficiência econômica e do crescimento sustentado – supostamenteperdidos com o envelhecimento e esgotamento das políticas protecio-nistas –, baseando-se primordialmente na atividade dos mercados, en-tendidos como mais capazes do que os governos de definir a melhoralocação de recursos. Sem os constrangimentos estatais do passado, aeficiência desse processo de investimento estaria garantida pela decisãoautônoma dos agentes econômicos individuais, sendo reservada ao setorpúblico a salvaguarda das regras do novo jogo, ou seja, o controle sobrea moeda e a manutenção da estabilidade macroeconômica.

No entanto, o desempenho dos países latino-americanos tratou delevantar dúvidas sobre essas orientações e alguns de seus pressupostos.

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Estagnação, liberalização e investimento externo na América Latina

América Latina – Indicadores macroeconômicos

1985/ 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 19981990

PIB 1,6 - 0,2 3,9 3,2 4,1 5,6 0,4 3,5 5,3 2,3

Exportações 5,2 6,0 3,6 7,1 11,7 10,7 10,4 11,3 13,2 7,8

Formação 17,2* 18,2 n.a. 19,1 19,4 20,5 19,1 19,3 21,2 n . a .

de Capital

Inflação 686,5 1188,8 199,3 426,7 890,2 337,6 25,8 18,5 10,6 10,2

Fonte: Cepal, Statistical Yearbook for Latin America and the Caribbean, 1999. *Investment at constant1980 prices.

Alguns resultados mostraram-se positivos, como: 1. a drástica redu-ção da inflação, que caiu de três dígitos no final dos anos 80 para algo emtorno de 10% em 1997; 2. o crescimento, ainda que moderado, do volumede exportações; 3. a explosão do fluxo de capital externo (tanto em portfólioquanto em IDE), cujos efeitos ainda estão em desenvolvimento.

Ao mesmo tempo, nesse período, foram registrados alguns resulta-dos profundamente frustrantes. Fundamentalmente, um pífio crescimen-to do PIB e do emprego, baixo aumento da produtividade, uma tímidarecuperação da relação PIB/investimento produtivo e a persistência deum dos piores indicadores de distribuição de renda do mundo, tanto in-dividual quanto regional. E do ponto de vista macroeconômico, terrenopor excelência de responsabilidade do novo Estado, a vulnerabilidade daseconomias tornou-se quase um pesadelo, ilustrado pelas sucessivas cri-ses que envolveram México, Brasil e Argentina.

Se aprofundarmos a análise sobre o boom de investimentos diretos,encontramos outras realidades para além dos macroindicadores. Pesquisarecente conduzida por Mortimore (2000, p.23) mostra que a AméricaLatina está atraindo basicamente “um investimento externo reativo, desegundo ou terceiro nível, a partir das transnacionais que buscam au-mentar a eficiência de seus sistemas de produção integradas, e não o in-vestimento externo de primeira linha, que visa os mercados internacio-nais mais sofisticados”.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

Seu estudo foi baseado em Dunning (1993), que desenvolveu dis-positivos de análise capazes de capturar os benefícios advindos da rela-ção entre investimentos e novas tecnologias, implementados em paísescom estruturas econômicas heterogêneas. Dessa forma, esse autor clas-sificou os investimentos em cinco grupos: “1. Foco nos recursos natu-rais: 2. Foco no mercado interno (manufatura); 3. Foco no mercado inter-no (serviços); 4. Foco na eficiência; e 5. Foco nos ativos estratégicos.

O cruzamento dos dados de Mortimore com as estruturas classifica-tórias de Dunning indica que os países latino-americanos, com exceçãodo México, estão recebendo apenas gotas dos investimentos produtivosrealmente capazes de alterar e dinamizar tanto o acesso aos mercadosinternacionais quanto ao controle e geração de tecnologias de ponta, basepara uma plataforma exportadora.

Investimentos estrangeiros na América Latina – década de 1990

Setor Primário Indústria Serviços

Petróleo, Gás:Venezuela,Colômbia, Argentina;Minerais: Chile,Argentina, Peru

Foco nosmercadosdomésticos(indústria)

Automotivo:Mercosul;Químico:Brasil;Agro-indústria:Brasil, México,Argentina

Foco nosmercadosdomésticos(serviços)

Finanças: Brasil,México, Chile,Argentina;Telecomunicações:Brasil, Argentina,Chile; PeruEnergia elétrica:Colômbia, Brasil,Argentina, AméricaCentral; Gás(Distribuição):Argentina, Brasil,Chile, Colômbia

Foco nosrecursosnaturais

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Estagnação, liberalização e investimento externo na América Latina

Continuação

Setor Primário Indústria Serviços

Foco naeficiência

Autoveículos:México;Eletrônico:México, Caribe;Vestuário:Caribe,México

Foco emvantagensestratégicas –especialmentenova tecnologia

– – –

Para a tipologia, ver Dunning (1993). Para a sua aplicação, Mortimore (2000).

O estudo de Mortimore mostra que os investimentos estrangeirosque aportaram nos países da América Latina na década de 1990 poucocontribuíram para melhorar de forma sustentável a balança comercialdesses países. A grande maioria dos investidores estrangeiros se estabe-leceu em atividades voltadas para o mercado interno, principalmente nosetor de serviços. Aqueles investimentos voltados para o mercado exter-no adotaram duas formas predominantes: a exploração de recursos natu-rais (reforçando forma tradicional de inserção das economias da regiãono comércio mundial) ou maquilas, com baixo valor agregado localmente.

Os investimentos do primeiro tipo geraram exportações vulneráveisaos ciclos de preços das commodities no mercado mundial, e nos anos 90esses preços foram decrescentes. Os investimentos do segundo tipo au-mentaram as exportações para o mercado norte-americano, mas deman-daram grande quantidade de importações, de modo que sua contribui-ção para o saldo comercial foi limitada.

O fato de a grande maioria dos investimentos ter se voltado para aexploração do mercado interno dos países latino-americanos explica porque não geraram divisas com exportações e por que contribuíram paraos déficits comerciais. Mesmo assim, esse fato não justifica o baixo cres-cimento observado no continente. Uma explicação para essa questão podeser encontrada analisando mais detalhadamente o caso do Brasil, semdúvida o país latino-americano mais bem-sucedido na atração de inves-timentos diretos do exterior.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

A partir de 1994, a economia brasileira voltou a receber volumesexpressivos de IDE, depois de esses recursos permanecerem em níveismuito baixos durante toda a década de 1980 e início dos anos 90. O ritmode crescimento observado nos fluxos de IDE para o Brasil nesse períodofoi bastante superior ao crescimento do fluxo mundial de IDE e do fluxopara a América Latina, e a participação brasileira nos investimentos mun-diais aumentou de forma significativa. A participação média do períodode 1987 a 1994 (0,6% a 1%) foi multiplicada quatro vezes (4,5%, em 1998).A participação brasileira no comércio mundial era bem inferior, não ultra-passando 1%. Já no PIB mundial, em 1997, o Brasil participava com 2,8%.

Nossa hipótese é que o sucesso brasileiro na atração de investimen-tos estrangeiros não se traduziu em crescimento porque a maior partedesses investimentos não foi destinada à construção de nova capacidadeprodutiva (investimento macroeconômico), mas sim à aquisição de ati-vos já existentes (transferência de propriedade). A relação entre o volu-me das transações em fusões e aquisições e o valor dos fluxos de investi-mento direto estrangeiro no Brasil foi elevada, comparável, inclusive, àverificada nos países desenvolvidos e superior à constatada na AméricaLatina e no conjunto de países em desenvolvimento (conforme mostra atabela a seguir).

Relação entre investimentos em aquisição e fusão e IDEpor país ou região receptor 1993-1998 (em %)

Países / Período 1993 1994 1995 1996 1997 1998 Acumulado1993-1998

Mundo 74 77,5 72,1 76,5 73,6 84,5 77,4

Países desenvolvidos 73,1 88,2 80,8 88,3 85,5 101,6 89,5

Países em desenvolvimento 61,8 60,3 49,7 61,6 55,4 40,8 53,8

América Latina 68,3 47,2 34,5 48,2 64,2 55,6 53,9

Brasil 94,7 52,2 46,7 44,5 67 85,7 69,8

Fonte: World Investment Report (1999). Elaboração NEIT/IE/Unicamp.

Grande parte das aquisições de ativos existentes esteve vinculadaao processo de privatização de empresas industriais e, principalmente,

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Estagnação, liberalização e investimento externo na América Latina

de setores de serviços públicos como energia elétrica e telecomunicações.Outra parte foi vinculada à crise do sistema bancário e à desnacionalizaçãode bancos públicos e privados. A venda de empresas de serviços públi-cos para empresas estrangeiras é um dos fatores que explicam a partici-pação crescente dos serviços na composição setorial dos investimentosestrangeiros no Brasil.

Brasil: IDE e privatização 1990-1999*(em US$ milhões)

IDE 1990-1994 1995 1996 1997 1998 1999**

IDE Ingresso na Privatização – – 2.645 5.246 6.121 8.766

(%) no IDE Ingresso – – 25,2 28 21,2 28

(%) no IDE Líquido – – 26,5 30,7 23,4 29,3

Fonte: Banco Central.(*) Inclui operações em moeda nacional, mercadorias, conversões e reinvestimentos.(**) Acumulado de janeiro a setembro.

Até 1995 a indústria era o principal pólo de atração de investimentosestrangeiros no Brasil (ver tabela a seguir). Nos anos seguintes, predo-minaram os serviços, com grande participação dos setores de eletricida-de, gás e água, correio e telecomunicações, intermediação financeira ecomércio atacadista e varejista. No interior da indústria, os principaispólos de atração foram os setores automobilístico, químico, alimentos ebebidas, material elétrico e de comunicações, máquinas de escritório einformática e minerais não-metálicos.

Nos serviços e também em alguns setores da indústria (autopeças,eletrodomésticos e alimentos processados), os investimentos represen-taram mudanças de propriedade, no lugar de construção de ampliação/renovação de capacidade de produção. Em muitas empresas desnaciona-lizadas, os novos proprietários executaram processos de racionalizaçãoda capacidade de produção, com redução dos postos de trabalho. Não ésurpreendente que esse tipo de investimento não tenha impulsionado ocrescimento.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

Brasil: Estoque e fluxo de IDE por setor de atividade

SETORES Estoque Fluxo SETORES Estoque FluxoAté 1995 (*) Acumulado Até 1995 Acumulado

1995-1999 1995-1999

Em % Em % Em % Em %

Agricultura e1,6 1,5

I. Extrativa

Indústria 55 18,4 Indústria (continuação)

Alimentos e bebidas 5,5 2,5 Mat. elet. eqs. comunic. 1,4 1,4

Fumo 1,7 0,6 Eqs. Méd. ót., autom. 0,4 0,1

Têxteis 1,2 0,3 Automobilística 6,7 4,6

Vestuário e acessórios 0,2 – Outros eqs. transp. 0,5 0,2

Art. de Couro1 –

Mobiliário 0,7 0,2 e calçados Reciclagem – –Madeira 0,1 0,1

Papel e celulose 3,3 –

Edição e impressão 0,3 0,1 Serviços 43,4 80,1

Petroquímica e álcool – – Eletricid., gás e água – 14

Produtos químicos 11,2 3 Construção 0,5 0,7

Borracha e plástico 3,1 0,7 Comércio atacadista 5 4,8

Prod. Min.1,9 1,1

Comércio varejista 1,6 3,7Não-metálicos Correio e telecomunic. 0,5 16

Metalurgia básica 6 0,4 Intermed. financeira 3 13,7Produtos de metal 1,4 0,2 Seguros e prev. priv. 0,4 0,6

Máqs. e equipamentos 4,9 0,9 Atividades imobiliárias 2,5 0,3

Máqs. esc. eqs. inf. 1 1 Serv. prest. empresas 26,9 22,9

Máqs. eqs. apars. elét. 2,6 0,8

TOTAL 100 100

42.530 73.812

Fonte: FIRCE e Censo de Capitais Estrangeiros. (*) Acumulado até 1995.Obs.: Para cálculo do fluxo de IDE para 1996/1997/1998/1999 consideraram-se apenas as empre-

sas com investimentos acima de US$ 10 milhões. A amostra representa 73,6%, 81,6%, 88,4%e 89,7%, respectivamente, do valor total do investimento direto estrangeiro nesses anos.

Quais foram os fatores que atraíram volume tão importante de in-vestimentos estrangeiros para o Brasil?

A estabilidade econômica e a conseqüente expansão do mercadodoméstico no período de 1994 a 1997 foram os fatores decisivos. As mu-danças estruturais (desregulamentação, abertura e privatizações) tam-bém tiveram um papel importante, principalmente no setor de serviços.

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Estagnação, liberalização e investimento externo na América Latina

Mas, embora essas mudanças tenham removido obstáculos à entrada doIDE, e, nesse sentido, possam ter sido condição necessária, o mercadointerno foi o principal fator de atração. O IDE, nesse período, pode sercaracterizado, dessa forma, como predominantemente market seeking. Poresse motivo não gerou aumento significativo de exportações.

Vantagens de localização no Brasil determinaram que o mercadointerno atraísse investimentos e não apenas importações, a despeito daabertura comercial implementada concomitantemente. Nas atividadesde serviços, o IDE é a única forma viável de acesso ao mercado doméstico.

Trabalhos recentes (Chudnovsky, 2001) mostraram que as expecta-tivas otimistas acerca da contribuição das empresas industriais estran-geiras para aumentar significativamente as exportações de manufaturadosbaseavam-se em hipóteses muito genéricas sobre a atuação internacionaldas matrizes e desconsideravam as particularidades das atividades de suasfiliais no Brasil.

Para avaliar corretamente o potencial de geração de divisas das em-presas estrangeiras, deve-se, em primeiro lugar, reconhecer que suas fi-liais não constituem um conjunto homogêneo no que diz respeito aosobjetivos de sua presença local. Os trabalhos citados identificaram qua-tro grupos diferenciados de filiais estrangeiras, conforme as estratégiasreveladas pelo seu comércio exterior.

Nos termos da já mencionada classificação de Dunning, é possívelidentificar um pequeno subconjunto de filiais cujas atividades são prio-ritariamente resource seeking, e que atuam na extração de recursos primá-rios e nas indústrias intensivas em recursos naturais (agroalimentares eminerais). O comércio dessas filiais é estruturalmente superavitário. Deoutro lado, as filiais que atuam nas indústrias intensivas em escala (bensduráveis de consumo), de fornecedores especializados (bens de capital)e intensivas em P&D (farmacêutica, por exemplo), são majoritariamen-te market seeking. Esse grupo de empresas opera com elevadas importa-ções e orienta suas exportações principalmente para os países vizinhos.

A atuação das empresas estrangeiras, num regime de economia aber-ta e de câmbio valorizado (em razão dos juros elevados e dos fluxos fi-nanceiros de capital estrangeiro) provoca aumento das importações quan-do o mercado doméstico cresce, sem que as exportações aumentem namesma proporção. Dessa forma, o movimento de expansão da econo-

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

mia encontra um freio no surgimento de desequilíbrios comerciais po-tencialmente crescentes.

Durante os anos 90, a resposta recorrente das autoridades econô-micas a essa ameaça foi abortar a expansão do mercado interno, aplican-do violentos choques na taxa de juros. Embora esses choques tenhamsido atribuídos à ocorrência de crises externas inesperadas (México, Ásia,Rússia, Brasil e Argentina), sua inevitabilidade decorre do próprio fun-cionamento do modelo de abertura da economia. A frustração da pro-messa de retomada do crescimento que o modelo apregoava não se deve,portanto, a obstáculos exógenos que impediram o seu funcionamento,mas às tensões no setor externo geradas pelo próprio modelo.

Surpresas e balanços

Ainda que os diversos países tenham exibido performances diferencia-das, os defensores desse novo paradigma, que envolveu amplamente aAmérica Latina, reconhecem que os resultados não foram tão positivosquanto o esperado, ou o anunciado. Procuram, nesse sentido, apresen-tar e discutir várias explicações ao tímido desempenho da realidade, quepoderiam ser agrupadas da seguinte forma: 1. enfatizam a variável tem-po, ou seja, ainda é cedo para um diagnóstico definitivo, pois mudançasprofundas no continente ainda estão ocorrendo e deverão mostrar bonsresultados brevemente; 2. os dados agregados podem não estar alcan-çando as mudanças reais que ocorreram no nível micro, ou seja, a reali-dade seria melhor do que os indicadores; 3. os países latino-americanosnão teriam realizado ou completado as reformas necessárias.

O Banco Mundial, um dos maiores entusiastas desse novo modeloao longo dos anos 90, tem orientado suas análises ora para detectar im-perfeições na execução das reformas, ora para descobrir e engrossar alista das reformas que seriam necessárias. Num primeiro momento, noinício da década de 1990, à ênfase na liberalização da economia foi sen-do gradativamente adicionada uma lista de mudanças institucionais. E,assim que os indicadores do frágil desempenho começaram a aflorar,novas e cada vez mais amplas reformas seriam sugeridas.

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Estagnação, liberalização e investimento externo na América Latina

anos 1990: Recomendações do Banco Mundial

1 Liberalização comercial

2 Abertura aos investimentos externos

3 Disciplina fiscal

4 Reorientação dos gastos públicos

5 Privatização

6 Taxa de câmbio única

7 Liberalização financeira

8 Reforma fiscal

9 Desregulamentação

10 Assegurar direitos de propriedade

Lista em expansão

11 Instituições regulatórias

12 Reforma política

13 Corrupção

14 Redes de proteção social

15 Flexibilização do mercado de trabalho

16 Acordos da OMC

17 Padronização financeira

18 Redução de pobreza

19 Abertura nas contas de capital

20 Regime cambial único

A lista, como se pode ver, não parou de crescer. É certo que o desta-que dado ao necessário aprimoramento institucional dos países latino-americanos tem especial importância. No entanto, essa recomendaçãoteria sido mais eficiente se formulada no início do processo de reformas,quando, de fato, foi ofuscada pelas políticas de abertura da economia, deestabilização da moeda e pelas privatizações.

A questão da oportunidade e do timing dessas reformas é de enormesignificado. Tempo é básico para efetivar reformas que tinham a inten-ção de desmontar estruturas vigentes há décadas – no caso do Brasil,pretendia-se a liquidação da herança varguista. No entanto, além dasdificuldades “naturais” e previsíveis dessa empreitada, os países latino-

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

americanos foram tomados por forte tensão originada do despreparo dassociedades – com destaque para os governos, condutores desse proces-so – para a negociação e criação de novas instituições, mais flexíveis eadequadas para enfrentar as bruscas alterações do novo ambiente libe-ralizado de suas economias.

Governantes açodados pela febre modernizante aumentaram aindamais as pressões originadas por esse novo ambiente sobre os agentes eco-nômicos, negando às sociedades o tempo necessário para a visualizaçãoe reconhecimento social das reformas, tempo para a persuasão de grupossociais, para a diminuição dos conflitos e equacionamento dos interes-ses diversos. Em outras palavras, com a precipitação (sentida na liberaliza-ção a toque de caixa do início da década de 1990), desencontros e poste-rior desencanto com a prometida – mas não atingida – modernidade, àAmérica Latina só restou o gesto fútil do relojoeiro cego diante do se-qüestro do tempo.

Aprender a aprender

A discussão que precisa ser aprofundada diz respeito ao modo comoo novo modelo econômico que impregnou a América Latina nos últimosanos negligenciou as dimensões da política, a produção e o lugar do Esta-do no desenvolvimento. A crítica rasa do nacional-desenvolvimentismofoi acompanhada da contração e drenagem do poder estruturante do Es-tado, sua capacidade de dialogar, negociar e se articular com a sociedade.Questões como a recapacitação tecnológica, a trajetória e operacionali-zação das empresas foram secundarizadas, minando os processos deaprendizado e de aquisição de novos conhecimentos e tecnologia, quepraticamente cederam lugar às preocupações com a macroeconomia. Oajuste fiscal e a flexibilização do comércio internacional foram transfor-mados em palavras quase-mágicas na boca dos governantes. E, mesmoassim, os mercados foram valorizados em sua relação com as trocas emenos com a produção (Rodrik, 1996).

O diagnóstico equivocado – o tamanho dos mercados seria o grandeobstáculo ao desenvolvimento – induziria ao desprezo das questões re-lacionadas aos poderes assimétricos que regem as nações, o comércio,

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Estagnação, liberalização e investimento externo na América Latina

os mercados, o acesso à tecnologia de ponta, as transnacionais, a com-petição oligopolística e, essencialmente, a natureza do aprendizado emtodo processo de renovação industrial e desenvolvimento.

O novo paradigma econômico implantado reduziu as reformas ne-cessárias à retomada do desenvolvimento dos países a um guia de con-dutas sobre como desregulamentar, como liberalizar e privatizar, banin-do ou pasteurizando o debate sobre um novo compromisso pela produção,capaz de ocupar o vácuo do desenvolvimentismo e a passividade de cor-te liberal dos anos 90.

Evidentemente, nenhum decreto poderia – nem poderá – substituira necessária negociação e construção de um novo compromisso nas so-ciedades latino-americanas. A sensível questão da tecnologia poderianortear uma boa discussão sobre esse compromisso. Embora os paíseslatino-americanos não tenham se destacado como inovadores, já demons-traram que podem caminhar nesse sentido, principalmente se souberemdriblar as armadilhas e aproveitar as não tão freqüentes oportunidadesdadas pela globalização. Nesse sentido, Storper (1999, p.161) indicouquatro atividades essenciais que se destacam na dinâmica do mundo glo-balizado: “a primeira diz respeito às especializações voltadas para o mer-cado mundial, com as habilidades necessárias para isso ... a segunda estádirigida para os mercados locais, com bens e serviços não exportáveis ...a terceira consiste na globalização com desterritorialização ou, como éconhecida, cadeias globais de ‘commodities’ ... finalmente, há as ativi-dades industriais e de serviços que disputam mercados crescentementecompetitivos”.

Qual e como seria o trânsito real entre esses níveis?

Vários estudos procuram mostrar como o desenvolvimento tecno-lógico não se identifica necessariamente com um movimento de inova-ção, pois, em seu início, pode significar a utilização de tecnologias im-portadas ou disponíveis. Mas, ao mesmo tempo, nenhuma tecnologia decomplexidade mínima é perfeitamente transferível como se fosse umacommodity (Lall, 1994). Para se efetivar e consolidar, solicita interaçõesinstitucionais, empresariais, com os sistemas educacionais, centros depesquisa ou, em outras palavras, precisa ser mergulhada em uma densa

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rede de cooperação. O amadurecimento de uma economia envolve umprocesso de aprendizagem que, pela natureza do conhecimento, é incer-to, instável e exige o controle de concepções, produtos, processos e ino-vações cada vez mais complexos.

Trabalhar essa miscigenação tecnológica é trabalhar com a produ-ção mesma de conhecimento. Porém, dada a imprevisibilidade dos paí-ses em desenvolvimento, sua exposição a uma competição plena – comoa patrocinada por uma generosa liberalização econômica – aumenta enor-memente o risco de interrupção e curto-circuito nos processos de apren-dizagem nas áreas tecnológicas mais difíceis de dominar. O dilema quese coloca então passa a ser: quem pode sustentar esse ambiente, possí-vel berço de inovações? Os mercados, que agem no sentido de protegeros territórios e a propriedade intelectual? As grandes transnacionais?Mesmo com sua insistência (e necessidade) em só decidir e operar es-trategicamente nos seus países de origem (Leamer & Storper, 2001)?

A capacitação tecnológica, exatamente por envolver cooperação delonga duração entre firmas e instituições, tende a ocorrer de forma maisfluente se sustentada por políticas industriais seletivas, promovidas pelogoverno federal e pelos Estados. Diferentemente dos anos 50, quando aindustrialização pesada predominou, as políticas industriais só terão efi-cácia se apoiadas por sistemas locais e regionais voltados para a inova-ção e o aprendizado, aptos a difundir as novas tecnologias e a promover,ao mesmo tempo, a especialização produtiva. As iniciativas regionais vol-tadas para facilitar o intercâmbio entre empresas e instituições, públicase privadas, só podem mostrar-se eficientes e integradas aos centros depesquisa e universidades por meio de políticas seletivas estimuladas pelogoverno central. É, para essa conformação e proteção ambiental, basea-da em recursos públicos, que se estimulam os processos de longa dura-ção, que caracterizam a produção de conhecimento novo e inovador.

O novo paradigma latino-americano foi desenvolvido na década de1990 sem respeitar a história dos países do continente, ou dando rele-vo a uma interpretação tendenciosa dos países em desenvolvimento,seja pela tábula rasa efetivada da experiência desenvolvimentista, sejapelo estranhamento em relação à evolução baseada no Estado dos paí-ses asiáticos.

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Estagnação, liberalização e investimento externo na América Latina

O problema que persiste, freqüentemente negligenciado, é que umconjunto de países em desenvolvimento – como o Brasil, a Argentina e oMéxico na América Latina, além da Indonésia, Tailândia e Turquia – cres-ceu mais rapidamente do que a Inglaterra, EUA, Alemanha, França eCanadá, após a Segunda Guerra Mundial. Sua participação na produçãode bens manufaturados cresceu mais de 10% ao ano, apesar de sua pe-quena plataforma produtiva nos anos 60, quando eram basicamente paí-ses agroindustriais e de uso intensivo do trabalho (Amsden, 2001).

Explicar por que alguns desses países se industrializaram mais rapi-damente do que outros e por que as taxas de crescimento divergiram notempo são questões extremamente atuais e desafiadoras. As respostasmais instigantes são as que procuram olhar as interações entre o univer-so das trocas e o mundo da produção, de modo a poder delinear os con-tornos dos novos sistemas de conhecimento e aprendizagem, capazes dereorientar e revitalizar os velhos sistemas nacionais de produção. De-senvolver essa abordagem significa elaborar e selecionar novas estraté-gias de desenvolvimento, de modo a responder às questões sobre o tipode tecnologia e de industrialização, assim como a qualidade das institui-ções de apoio, regulação e fomento de que os países realmente precisam.

Nesse sentido, as análises recentes de Rodriguez & Rodrik (2000),ao reconstituir as trajetórias dos cinco estudos mais importantes sobrecrescimento e abertura econômica (Sachs & Warner, 1995; Edwards,1998; Frankel & Romer, 1999), assumem relevância nesse debate, poisencontraram pouca consistência na afirmação de que as políticas deliberalização econômica, em si, estariam associadas de modo substanti-vo ao crescimento econômico. Rodriguez & Rodrik (2000) concluíramque esses autores utilizaram “indicadores inadequados de políticas co-merciais, selecionados de modo tendencioso para ‘mostrar’ relações es-tatísticas significativas entre liberalização comercial e crescimento”. Suaconclusão é que os estudos hoje disponíveis não revelam uma relaçãosistemática entre seu nível de restrição tarifário, subsídios e proteção eos índices de crescimento econômico. Sua conclusão é que a única rela-ção sistemática encontrada foi que os países abolem suas barreiras pro-tecionistas à medida que se tornam ricos.

Mudanças tarifárias e abertura comercial formam apenas uma pe-quena parte do processo. O maior desafio é a promoção de profundas

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transformações nos padrões de comportamento, na relação do governocom o setor privado, com a sociedade e com o restante do mundo.

Se olharmos para os Tigres Asiáticos, ou a China ou a Índia, vere-mos que esses países foram beneficiados por sua progressiva integraçãocom a economia mundial. Mas todos foram orientados por um conjuntode estratégias de desenvolvimento. Combinaram seu esforço exportadorcom políticas de proteção de sua economia (altas tarifas, exportaçõessubsidiadas, exigência de conteúdo nacional nos produtos das multinacio-nais, restrição ao fluxo de capitais), políticas hoje em sua grande maioriacondenadas pela OMC.

Em todos esses países, a liberalização da economia foi um processolento e gradual, desenvolvido ao longo do tempo. E uma abertura maisampla somente foi operacionalizada quando suas economias estavam nostrilhos, preparadas para crescer. Em outras palavras, abertura comercial,liberalização e desregulamentação não podem substituir as estratégiasde desenvolvimento, o mais efetivo meio de alcançar uma integração di-nâmica e virtuosa para o país com a economia mundial.

O novo modelo latino-americano pensou essa orientação pelo rever-so: os países liberalizaram seu comércio e desregulamentaram os fluxosde capital esperando alcançar automaticamente o crescimento. Percebe-ram – não sem pagar um alto preço – que é preciso muito mais do queisso, pois a integração dos países à economia mundial, diferentementeda regulação tarifária, não pode ser controlada diretamente pelos go-vernantes e autoridades econômicas. Pedir aos agentes econômicos queaumentem sua participação na economia mundial, sem que tenham con-dição para tanto, é um apelo no vazio. É preciso discutir e definir quaispolíticas, quais instituições e quais forças sociais podem sustentar suasestratégias de desenvolvimento.

Não se trata de afirmar que o protecionismo é melhor do que a aber-tura e desregulamentação, ou de enxergar virtudes que o desenvolvimen-tismo não tem. Trata-se, porém, de compreender que a liberalização emsi não é garantia de eficácia econômica, nem de sustentabilidade, apesarde ter sido, nos últimos anos, ostensivamente sobrevalorizada. Os paí-ses em desenvolvimento que alcançaram relativo sucesso em promoverum crescimento de longo prazo combinaram as oportunidades ofereci-das pelos mercados mundiais (basicamente por meio da tecnologia e de

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Estagnação, liberalização e investimento externo na América Latina

capitais) com estratégias que tornaram efetivas (seja criando, refazendoou adaptando) as instituições domésticas, que se debruçaram sobre osetor da produção e do trabalho.

Por isso, os países latino-americanos precisam, antes de mais nada,de articulações políticas capazes de configurar um novo compromissocom suas sociedades, de modo a trazer a produção, o trabalho e a boa polí-tica de volta para a construção de estratégias nacionais num mundoglobalizado.

Sociedades com profundas clivagens sociais e frágeis instituições sóconseguem estimular o conflito, além de rebaixar sua resistência aoschoques externos. Quais instituições? Qual sua prioridade? Esse é o de-bate de fundo, que exige democracia para se realizar, de modo a impedira cegueira voluntária da liberalização dos anos 90.

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4Rompendo o modelo

Uma economia política institucionalista alternativaà teoria neoliberal do mercado e do Estado

Ha-Joon Chang1

Introdução

Este trabalho é um exame crítico do discurso neoliberal que atual-mente domina o debate sobre o papel do Estado e propõe um arcabouçoteórico alternativo para superar suas limitações. Depois de traçar a evo-lução do debate acerca do papel do Estado, no período do pós-guerra,que levou ao atual predomínio do neoliberalismo (seção 1), questionoalgumas proposições fundamentais em que se esteia o discurso neoliberala respeito do papel do Estado e aponto os problemas teóricos e práticosoriundos de tais proposições (seção 2). Argumento que, se quisermos

1 Faculdade de Economia e Política da Universidade de Cambridge. Agradeço a Peter Evanse Bob Rowthorn as discussões que mantiveram comigo durante a redação deste trabalho.Também me beneficiaram os comentários sobre os primeiros esboços de Shailaja Fennell,Jayati Ghosh, Jonathan di John, Grazia Ietto-Gillies, Joseph Lim, James Putzes, Shara Razavie Alfredo Saad Filho.

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superar esses problemas, não basta um reparo marginal no arcabouçoneoliberal, é preciso desenvolver um quadro totalmente diferente, o qualproponho denominar economia política institucionalista. Na seção seguintedo trabalho (seção 3), delineio esse arcabouço alternativo e mostro comosua adoção nos possibilitará uma melhor compreensão do papel do Es-tado. Segue-se uma breve seção de observações conclusivas (seção 4).

1 A evolução do debate: da �economiada idade de ouro� ao neoliberalismo

O fim da Segunda Guerra Mundial presenciou a rejeição mundial dadoutrina do laisser-faire, que conheceu um fracasso espetacular no perío-do entreguerras. Nos 25 ou trinta anos seguintes, conhecidos como aIdade de Ouro do capitalismo, uma variedade de teorias econômicasintervencionistas, como a economia do bem-estar, o keynesianismo e oinício da “economia do desenvolvimento”, definiu a agenda do debatesobre o papel do Estado (Chang & Rowthorn, 1995a; ver também Deane,1989). Essas teorias intervencionistas, as quais denomino coletivamen-te Economia da Idade de Ouro (EIO), detectaram uma série de “falhasde mercado” e alegaram que, para corrigi-las, era necessário o envolvi-mento ativo do Estado. Conquanto os tipos e as formas exatas de políticasrecomendadas pelos vários ramos da EIO eram diferentes entre si, haviaum amplo consenso quanto à necessidade e à conveniência de um ououtro tipo de “economia mista”.

Sem embargo, a partir dos anos 70, em conseqüência das mudançaseconômicas e políticas geradas pela Idade de Ouro, tanto nacional quan-to internacionalmente, verificaram-se alterações marcantes nos termosdo debate a respeito do papel do Estado (quanto à ascensão e queda daIdade de Ouro, ver Marglin & Schor, 1990). Os novos termos do debateforam estabelecidos por economistas neoliberais, como Milton Friedman,Friedrich von Hayek, George Stigler, James Buchanan, Gordon Tullock,Anne Krueger, Ian Little e Alan Peacock (sobre análises críticas, ver Mueller,1979; Cullis & Jones, 1987; Chang, 1994; e Stretton & Orchard, 1994).

O neoliberalismo surgiu de uma “aliança espúria entre a economianeoclássica, que forneceu a maior parte dos instrumentos analíticos, e oque se pode chamar de tradição austro-libertária, que entrou com a filo-

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sofia política e moral.2 O ponto central de sua argumentação, no que serefere à intervenção estatal, é que não se pode admitir que o Estado sejaum guardião social imparcial e onipotente como afirmava a EIO. Alega-se, pelo contrário, que se deve encarar o Estado como uma organizaçãodirigida por políticos e burocratas que buscam o proveito próprio, nãosó limitados na capacidade de colher informação e executar políticas,como também sujeitos às pressões de grupos de interesses. Os econo-mistas neoliberais argumentam que essa natureza imperfeita do Estadoresulta em “falhas de governo” na forma de confisco regulatório, buscade vantagens, corrupção, e assim por diante. E dizem que o custo dessasfalhas de governo é tipicamente superior ao das falhas de mercado, demodo que em qual é melhor que o Estado não procure corrigir estas úl-timas, pois pode provocar um resultado ainda pior.

Esse ataque foi particularmente desleal, pois muitos adeptos da EIO

estavam longe de acreditar que o Estado, na vida real, fosse o equivalen-te moderno do Rei Filósofo de Platão, mas utilizavam-no apenas comouma “marca de nível” ideal (Toye, 1991). Não obstante, também é ver-dade que a maioria deles não tinha uma clara teoria do Estado e, por isso,faziam-se vulneráveis à acusação de que sua visão do Estado era “irrea-lista” e “ingênua”.3

Uma vez desencadeado esse ataque, revelou-se a fragilidade do queera considerado um robusto consenso teórico sobre a adequada linha dedemarcação entre mercado e Estado. Isso se deveu a que, ao contráriodo que muita gente acreditava, a economia do bem-estar, que fornecia amaior parte dos instrumentos utilizados para traçar tal limite na época, naverdade não tinha uma posição inevitável a esse respeito. Aliás, tudo quea economia do bem-estar tem a dizer é que os mercados podem falhar,

2 Digo “aliança espúria” porque não é pequeno o abismo que separa essas duas tradiçõesintelectuais, como sabem os que conhecem, por exemplo, a crítica mordaz de Hayek (1949)da economia neoclássica.

3 É interessante notar que, mais ou menos na mesma época, inúmeros marxistas fizeramuma crítica muito semelhante, sublinhando o “caráter de classe” do Estado. Eles argumen-tavam que, graças ao controle que tem sobre a renda do Estado, o financiamento político eo aparato ideológico, a classe economicamente dominante (os capitalistas numa sociedadecapitalista) pode definir as políticas estatais a seu favor, sujeitas à necessidade de mantercerto grau de legitimidade entre as classes dominadas (ver o exame das teorias marxistasda época em Jessop, 1982).

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mas se um determinado mercado do mundo concreto realmente há defalhar depende dos fatores tecnológicos, políticos e institucionais que odefinem (ver seção 2.2). Em outras palavras, conforme as diferentes hi-póteses que tem sobre a motivação e a psicologia humanas, a tecnologia,as instituições e a política, cada qual pode tirar a conclusão que bem enten-der sobre a fronteira adequada entre mercado e Estado. Aliás, a lógica dafalha de mercado foi usada para justificar tudo, desde o Estado mínimoaté a planificação socialista cabal (Pagano, 1985). Por conseguinte, umavez solapado o consenso político que amparava os diversos modelos deeconomia mista surgidos na Idade de Ouro, ficou impossível defendê-los recorrendo aos instrumentos da economia do bem-estar.

No entanto, a própria natureza “reservada” da economia do bem-estar com relação ao papel adequado do Estado significou, ironicamen-te, que, ao contrário do keynesianismo, ela podia ser absorvida peloneoliberalismo, mas com certa dificuldade (ver adiante). Dado que a tra-dição austro-libertária permaneceu à margem da respeitabilidade inte-lectual até a década de 1970, os neoliberais não podiam ficar sem a res-peitabilidade “científica” de que gozava a economia neoclássica, em trocada qual a tradição austro-libertária ofereceu o apelo popular com o quala economia neoclássica nem chegava a sonhar (afinal, quem se dispôs adar a vida pela Optimalidade de Pareto ou pelo Equilíbrio Geral?). Toda-via, aceitar os instrumentos analíticos da economia neoclássica signifi-cava que os neoliberais tinham de dar um jeito de domesticar a lógica dafalha de mercado que, àquela altura, tornara-se um elemento central daeconomia neoclássica, coisa que não tinha sido até a eclosão da guerra.Portanto, era preciso encontrar meios de assegurar que qualquer endos-so à intervenção estatal se mantivesse dentro de limites aceitáveis paraa agenda política neoliberal.

Um desses meios consiste em alegar que as falhas de mercado, em-bora logicamente possíveis em qualquer parte, na realidade existem ape-nas em algumas áreas limitadas – como a defesa, a lei e a ordem e a provi-são de uma ou outra infra-estrutura física de larga escala – e, portanto,não há necessidade senão de um “Estado mínimo”. O segundo meio érestringir a contaminação dos programas de ação pela lógica da falha demercado, separando o discurso acadêmico “sério” do da política “popu-lar”. Assim, por exemplo, os economistas neoclássicos podem estar fa-

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zendo pesquisas nas universidades que recomendem rigorosas medidasantitruste, mas nem por isso os agentes políticos deixarão de justificarsua frouxa postura antitruste nos termos de qualquer outra lógica quenão cabe na economia neoclássica – digamos, citando a necessidade de“não desestimular o espírito empreendedor”.4 O terceiro meio de aman-sar a lógica da falha de mercado consiste em aceitá-la plenamente e erigirmodelos capazes de chegar a conclusões de política fortemente interven-cionista, mas depois minimizar a relevância desses modelos, alegandoque, aos Estados da vida real, não se podem confiar tais projetos tecni-camente difíceis (em razão das demandas de informação) e politicamen-te perigosos (em virtude do abuso burocrático e/ou da influência dos gru-pos de interesses).5

Esses exemplos mostram que, apesar da pretensão de coerência in-telectual e de mensagens nítidas, o discurso neoliberal acerca do papeldo Estado contém algumas sérias tensões internas e, por esse motivo,só pode ser sustentado mediante a contorção intelectual e o compromissopolítico. Mas este, provavelmente, é o menor dos males. Como vou de-monstrar na próxima seção, os problemas mais graves do discursoneoliberal sobre o papel do Estado têm a ver, antes de mais nada, com a

4 Esse ponto também ficou acerbamente ilustrado pelas experiências dos primeiros dias de“reforma” nos antigos países comunistas. Na época, o que fascinou a imaginação das pes-soas foi a linguagem austro-libertária de liberdade e espírito empreendedor, não a árida lin-guagem neoclássica da Optimalidade de Pareto e do Equilíbrio Geral. No entanto, quandoos governos pós-comunistas desses países escolheram seus assessores econômicos estran-geiros, foi sobretudo com base na posição que eles ocupavam na hierarquia acadêmica oci-dental, a qual era determinada sobretudo pela capacidade que tinham de manejar os con-ceitos e instrumentos da economia neoclássica.

5 Os trabalhos do economista comercial norte-americano Paul Krugman oferecem alguns dosmelhores exemplos. Em muitos artigos, ele lavra certos parágrafos de análise de “econo-mia política pop”, aviltando a integridade e a capacidade do Estado, para desacreditar ospróprios e elaborados modelos da teoria estratégica do comércio que endossam a interven-ção estatal, os quais constituem o corpo do artigo. Um destacado economista neoliberal, RobertLucas (1990), resenhando o livro de Krugman e Helpmann, perguntou por que, afinal de con-tas, eles o haviam escrito, já que, no fim, iam dizer que as políticas intervencionistas oriun-das de seus modelos não são recomendáveis em razão dos perigos políticos que trazem con-sigo. Esse exemplo mostra que, nesta era neoliberal, um economista pode perfeitamenteconstruir modelos que recomendam a intervenção estatal, contanto que sejam “tecnica-mente competentes”, mas deve comprovar a sua credencial política jogando no lixo os seuspróprios modelos por motivos políticos se quiser continuar nadando a favor da correnteza.

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própria maneira como ele conceitua o mercado, o Estado e as instituiçõese, em segundo lugar, com o modo pelo qual teoriza as suas inter-relações.

2 Os Limites da Análise Neoliberal do Papel do Estado

Nesta seção, examino as limitações da análise neoliberal do papeldo Estado, questionando quatro aspectos da doutrina neoliberal consi-derados tão fundamentais que raramente são objeto de discussão. O exa-me mostra por que não é possível superar essas limitações com um con-serto marginal do arcabouço neoliberal e que é necessária uma abordagemque leve a sério o papel das instituições e das políticas, ou seja, o queproponho denominar “economia política institucionalista”.

2.1 Definir o Mercado Livre (e a Intervenção Estatal)

O discurso neoliberal sobre o papel do Estado e mesmo o da econo-mia do bem-estar, que ele veio destronar, indaga se a intervenção estatalpode melhorar o funcionamento do mercado livre. Inclusive muitos dosque discordam das conclusões tiradas por esse discurso parecem não verproblemas no modo do discurso. Como se depreende do entusiasmogerado pelas conclusões mais intervencionistas da nova teoria do cresci-mento ou da teoria do comércio estratégico entre alguns críticos do neo-liberalismo, estes acreditam que é possível superar as limitações do neoli-beralismo por meio da construção de mais modelos que justifiquem aintervenção estatal.

Não obstante, argumento que o próprio modo do discurso neoliberalé problemático, já que definir o mercado livre e, por conseguinte, o quese considera intervenção estatal é um exercício altamente complicado.Como ficará mais claro a seguir, uma mesma ação estatal pode ser – e é –considerada “intervenção” numa sociedade, mas não em outra (a qualpode ser a mesma sociedade em tempos diferentes). Por que isso ocorre?Respondamos à pergunta com alguns exemplos.

Em primeiro lugar, vejamos o caso do trabalho infantil. Nos atuaispaíses avançados, poucos são os que chegam a considerar a proibição dotrabalho infantil uma “intervenção” estatal que restringe artificialmente

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o acesso ao mercado de trabalho, enquanto muitos capitalistas do Ter-ceiro Mundo assim a consideram (como, aliás, faziam os das nações atual-mente avançadas até o começo do século XX). Isso sucede porque, nospaíses avançados, se julga que o direito das crianças de não trabalhar temprioridade sobre o direito dos produtores de empregar a mão-de-obraque lhes parecer mais lucrativa.6 Conseqüentemente, nesses países, aproibição do trabalho infantil já não é nem mesmo um tema legítimo dedebate político. No mundo subdesenvolvido (de hoje e de ontem), pelocontrário, esse direito não é totalmente aceito, de modo que a proibiçãoestatal do trabalho infantil é vista como uma “intervenção” e seu impactosobre a eficiência econômica continua sendo um tema legítimo de dis-cussão política. Pode-se aplicar o mesmo argumento ao caso do trabalhoescravo. Nas sociedades que não aceitam universalmente o direito de serdono de si (por exemplo, os Estados Unidos do século XIX), a tentativado Estado de abolir a escravatura pode ser contestada como uma inter-venção que reduz a eficiência; todavia, uma vez que ele passa a ser aceitocomo um dos direitos fundamentais de todos os membros da sociedade,a proibição deixa de ser considerada “intervenção”.

Outro exemplo são as muitas regulamentações ambientais ampla-mente criticadas como uma interferência inaceitável na liberdade empre-sarial e pessoal (por exemplo, o nível de poluição industrial, os padrõesde emissões dos veículos) quando, não faz muito tempo, foram introdu-zidas nos países avançados. Hoje em dia, porém, tais regulamentaçõesraramente são tidas como “intervenções” nesses mesmos países, já queos cidadãos consideram que o direito a um meio ambiente limpo temprioridade sobre o de escolher as tecnologias envolvidas na produção eno consumo (por exemplo, tecnologia de produção, tipos de automóveis).Por isso, pouca gente diria, por exemplo, que o mercado automobilísticode seu país não é “livre” simplesmente por causa dessas regulamentações.Em compensação, é possível que alguns exportadores do mundo subde-senvolvido, que não aceitam a legitimidade da hierarquia de direitos queserve de base a tais regulamentações, considerem-nas “barreiras invisí-veis ao comércio” que “distorcem” o funcionamento do mercado “livre”.

6 Isso também se manifesta na existência de muitas instituições que apóiam essa hierarquiaparticular de direitos (por exemplo, educação universal, benefícios para as crianças).

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Mais um exemplo: nos países avançados, muitos economistas neo-liberais, que criticam o salário mínimo e os “excessivamente” elevadospadrões de trabalho como intervenções inaceitáveis que erguem barrei-ras artificiais ao acesso ao mercado de trabalho, não encaram as restri-ções à imigração existentes nesses mesmos países como uma interven-ção estatal (e, na verdade, dispõem-se a apoiar o controle rigoroso daimigração). Sem embargo, tal controle estabelece uma barreira “artificial”à entrada no mercado de trabalho tanto quanto as outras “intervenções”que eles criticam. Tal atitude contraditória só é possível porque esseseconomistas (pelo menos implicitamente) aceitam o direito dos cidadãosexistentes num país de ditar os termos da participação dos não-cidadãosem “seu” mercado de trabalho, ao passo que rejeitam o direito dessesmesmos cidadãos de contestar os direitos dos empregadores de oferecersalários e condições de trabalho tal como lhes convém, independente-mente do que reza aquilo que esses próprios economistas encaram como“direitos humanos fundamentais”.

Não faltam exemplos, mas o importante é: dependendo de que di-reitos e obrigações são considerados legítimos e de que tipo de hierar-quia entre esses direitos e obrigações os membros da sociedade aceitam(explícita ou implicitamente), a mesma ação estatal pode ser considera-da “intervenção” numa sociedade e não em outra. E quando a ação esta-tal deixa de ser considerada “intervenção” numa determinada sociedadee numa determinada época (por exemplo, a proibição do trabalho infantilou da escravidão nos países avançados de hoje), debater a sua “eficiên-cia” torna-se politicamente inaceitável – muito embora não exista ummotivo divino que faça que assim seja.7 Isso se revela com muita clarezanas atuais polêmicas sobre as tentativas de incorporar padrões de traba-lho e meio ambiente à agenda de negociação da Organização Mundial doComércio (OMC), com uma parte (os países em desenvolvimento) a ale-gar que se trata de medidas protecionistas disfarçadas, contrárias ao pró-prio princípio de liberdade comercial representado pela OMC, e a outra a

7 De fato, no fim do século XX, quando a escravatura já se tornara uma lembrança remota e,portanto, menos sensível politicamente, alguns historiadores econômicos norte-america-nos iniciaram um debate sobre a “eficiência” do trabalho escravo, embora muita gente te-nha achado a iniciativa de mau gosto.

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afirmar que tais padrões são “universais” e perfeitamente compatíveiscom a liberdade comercial.

Por conseguinte, se quisermos decidir se um determinado mercadoé “livre” ou não, precisamos nos posicionar quanto à legitimidade daestrutura direitos-obrigações fundamental para os participantes no mer-cado relevante (e inclusive para certos não-participantes quando exis-tem externalidades). Assim, o exercício aparentemente simples de defi-nir mercado livre (e, portanto, intervenção estatal) mostra-se já não tãosimples – e isso antes mesmo de começarmos a discutir se alguns merca-dos têm “falhas” e se, por isso, a intervenção estatal pode torná-los “maiseficientes”.

Eu chegaria até a dizer que definir mercado livre é o nível mais bai-xo de um exercício inútil, pois, enfim, nenhum mercado é livre, todostêm regulamentações estatais definindo quem pode participar de quemercados e em que termos (ver as seções 2.4 e 3.1). É unicamente por-que certas regulamentações estatais (e os direitos e obrigações que elasapóiam ou até mesmo criam) são totalmente aceitas (pelos que fazem aobservação, assim como pelos que participam do mercado) que algunsmercados parecem não ter “intervenção” nenhuma e, portanto, ser “li-vres”.8 Enquanto não reconhecermos a determinação política supremada estrutura direitos-obrigações que serve de base às relações de merca-do, a discussão sobre o papel do Estado continuará orientada pela ilusãode que nossas opiniões se baseiam em análises “objetivas”, enquanto asdos adversários carecem delas e, portanto, são “politicamente motivadas”.

2.2 Definir Falha de Mercado

A expressão “falha de mercado” designa uma situação em que omercado não funciona como se espera que funcione o mercado ideal. Maso que é mercado ideal?

8 O mesmo raciocínio se aplica ao julgamento de quanto um determinado Estado é in-tervencionista. Por exemplo, é em virtude do consenso político, segundo o qual a defesa éuma das funções absolutamente necessárias do Estado, que muita gente subestima o in-tervencionismo do governo federal norte-americano, que influenciou muito a evoluçãoindustrial do país mediante programas de aquisição e contratos de pesquisa e desenvolvi-mento relacionados com a defesa – principalmente com indústrias como de computador,telecomunicações e aviação (Johnson, 1982).

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No arcabouço neoliberal, mercado ideal equivale ao “mercado per-feitamente competitivo” da economia neoclássica.9 Contudo, a teorianeoclássica do mercado é apenas uma das muitas que existem e está longede ser a melhor. Tomando emprestada a expressão de Hirschman (1982a),existem muitas “visões rivais da sociedade de mercado”. E, por conse-guinte, o mesmo mercado pode ser considerado falho por algumas pes-soas, ao passo que outras achariam que ele funciona normalmente: de-pende das respectivas teorias de mercado. Ilustremos esse ponto comalguns exemplos.

Muita gente pensa que uma das maiores “falhas” do mercado é a ten-dência a gerar um nível inaceitável de desigualdade de renda (sejam quaisforem os critérios de aceitabilidade). Não obstante, na economia neoclás-sica, isso não é considerado uma falha, pois o mercado ideal neoclássico(pelo menos na versão paretiana) simplesmente não tem a função de geraruma distribuição eqüitativa da renda. Com isto, não quero negar quemuitos economistas neoclássicos bem-intencionados detestem a distri-buição da renda existente, como no Brasil, por exemplo, e apóiem algu-mas transferências de renda ocasionais que não provoquem “distorções”.Todavia, mesmo esses economistas argumentariam que a distribuiçãoeqüitativa da renda não é o que se deve esperar do mercado ideal e quenesse sentido, portanto, não há falha de mercado no Brasil.

Outro exemplo: o mercado não competitivo é um dos exemplos maisóbvios de falha na economia neoclássica; no entanto, Marx e Schumpeterargumentariam que a existência de mercados não competitivos (no sen-tido neoclássico) é uma característica inevitável, conquanto secundária,10

de uma economia dinâmica impulsionada pela inovação tecnológica.Assim, do ponto de vista de Marx e Schumpeter, aquele que serve de para-digma de falha de mercado no arcabouço neoclássico, ou seja, o mercado

9 Dada a sua composição intelectual, a teoria austríaca do mercado, que nega a própria no-ção de concorrência perfeita, podia ter sido a teoria do mercado neoliberal. Mas isso nãoaconteceu, já que o verdadeiro sentido da aliança neoliberal era o de combinar os apelosmorais e políticos da tradição austro-libertária com a respeitabilidade “científica” da eco-nomia neoclássica (ver a seção 2). É ocioso dizer que ainda há muitos economistas austría-cos que rejeitam o modelo neoclássico de concorrência perfeita.

10 Recorde-se a famosa metáfora de Schumpeter (1987, p.84), segundo a qual a relação entreos ganhos de eficiência da concorrência por meio da inovação e a da competição (neoclássica)do preço era “como um bombardeio em comparação com o arrombamento de uma porta”.

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não competitivo, é considerado uma característica inevitável de uma eco-nomia dinâmica e bem-sucedida.11 Ou, expressando-o de outro modo,um mercado perfeito no sentido neoclássico (por exemplo, informaçãoperfeita, nenhum poder de mercado) pode parecer uma falha absoluta aSchumpeter, porque a informação perfeita, tão necessária para que existao mercado perfeitamente competitivo, levará à difusão instantânea danova tecnologia e, assim, a uma dissipação instantânea das rendas de mo-nopólio, o que significa que não haverá incentivo para que os empresáriosinovem e gerem novo conhecimento e nova riqueza.

O ponto que acabo de tentar ilustrar com os exemplos é o seguinte:quando se fala em falhas de mercado, é preciso deixar claro o que se es-pera do mercado ideal, só assim podem-se definir as falhas dos merca-dos existentes. Do contrário, o conceito de falha de mercado se esvazia àmedida que, no mesmo mercado em que uma pessoa vê perfeição, outranão enxerga senão uma falha deplorável e vice-versa (o exemplo do mer-cado não competitivo ilustra muito bem esse ponto). Só deixando bemclara a nossa própria teoria do mercado é que podemos esclarecer a nos-sa noção de falha de mercado.

Pois bem, que importância tem a falha de mercado, seja qual for adefinição que lhe dermos? A resposta rápida é que ela tem uma importân-cia enorme para os economistas neoclássicos e muito pequena para osoutros tipos de economistas, principalmente para os institucionalistas.A economia neoclássica é, essencialmente, uma economia do mercadoou, para ser mais preciso, do comércio de troca, na qual, recorrendo àanalogia de Coase (1992, p.718): “indivíduos isolados trocam nozes efrutas silvestres à margem da floresta”. Nesse mundo, até a empresa exis-te unicamente como função da produção, não como uma “instituição deprodução”. Outras instituições que constituem a economia capitalistamoderna (por exemplo, as associações formais de produtores, as redesempresariais informais, os sindicatos) figuram basicamente como “rigide-zes” que impedem o funcionamento adequado dos mercados (sobre umavisão das instituições extramercado como “rigidezes”, ver Chang, 1995).

Portanto, para os economistas neoclássicos, que vêem no mercadoa essência da economia, se aquele falhar, falha esta. Claro está que muitos

11 É desnecessário dizer que isso não exclui a possibilidade (freqüentemente realizada) deuma economia estar repleta de monopólios, mas sem ser dinâmica.

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economistas neoclássicos de inclinação neoliberal diriam que as falhasde mercado não se verificam com muita freqüência e que, dada a possi-bilidade de falhas de governo, geralmente vale mais a pena conviver commercados falhos que com a intervenção estatal (ver seção 1). Entretanto,à medida que reconhecem a existência de falhas de mercado, a única alter-nativa que eles contemplam (e no fim rejeitam) é a intervenção estatal,já que seu esquema não acolhe nenhuma instituição ou organização in-termediária.

Já para os economistas institucionalistas, que encaram o mercadocomo apenas uma das muitas instituições que compõem o sistema eco-nômico capitalista, as falhas de mercado não têm grande importância,pois eles sabem que há muitas outras instituições, além do mercado eda intervenção estatal, mediante as quais se podem organizar – e se or-ganizam – as atividades econômicas. Em outras palavras, se a maior partedas interações da economia capitalista moderna for realmente conduzidano interior das organizações – e não entre elas – por intermédio do mer-cado (Simon, 1991), o fato de alguns (ou até muitos) mercados “apre-sentarem falhas”, segundo um dos muitos critérios possíveis (isto é, oneoclássico), não faz muita diferença no desempenho da economia comoum todo.

Por exemplo, em muitas indústrias modernas em que é alta a inci-dência de monopólios e oligopólios, os mercados apresentam falhas otempo todo, conforme o critério neoclássico, porém essas indústriasgeralmente são muito bem-sucedidas, em termos do mais puro sensocomum, porque geram um alto crescimento da produtividade e, conse-qüentemente, um elevado padrão de vida. Tal resultado se deve ao êxitodas organizações empresariais modernas, que possibilitam coordenaruma divisão do trabalho mais complexa – de modo que ali onde os eco-nomistas neoclássicos enxergam uma “falha de mercado”, pode ser queos institucionalistas vejam um “sucesso organizacional” (Lazonick,1991). E se deveras for esse o caso, a intervenção estatal nesses merca-dos, especialmente a da variedade antitruste neoclássica, pode não sermuito necessária e, aliás, em determinadas circunstâncias, talvez atéprejudique.

O que quero demonstrar aqui não é que não existam falhas de mer-cado ou que elas não tenham importância – pelo contrário, o mundo real

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está cheio de falhas de mercado e elas são importantes. A verdadeiraquestão é que o mercado não passa de uma das muitas instituições queconstituem o que se denomina “economia de mercado” e que, na minhaopinião, convém chamar de capitalismo. O sistema capitalista consistenuma série de instituições, inclusive os mercados como instituições detroca, as empresas como instituições de produção e o Estado como cria-dor e regulador das instituições que regem as relações (sendo ao mesmotempo uma instituição política) e também outras instituições informaiscomo a convenção social. Desse modo, focalizar o mercado (e suas fa-lhas), como insiste em fazer a economia neoclássica, realmente nos dáuma perspectiva equivocada à medida que nos leva a perder de vista umagrande porção do sistema econômico para nos concentrarmos em umaúnica parte dele, ainda que importante. Isso sugere que precisamos muitode uma perspectiva explicitamente “institucionalista”, que incorpore asinstituições extramercado e não-estatais como elementos integrais, nãocomo meros apêndices.

2.3 A Hipótese da Primazia do Mercado

Uma suposição fundamental acerca da natureza do mercado e doEstado, na economia neoliberal, compartilhada até mesmo por econo-mistas neoclássicos sem tendência neoliberal, é o que designo por hipó-tese da primazia do mercado – ou a suposição de que “no princípio, ha-via os mercados” (Williamson, 1975, p.20).12

Segundo essa visão, o Estado, assim como as outras instituiçõesextramercado, é encarado como um sucedâneo criado pelo homem e sósurgiu quando as falhas de mercado se tornaram insuportáveis (Arrow,1974, é o exemplo mais sofisticado dessa visão).

O exemplo mais evidente da hipótese da primazia do mercado é aexplicação contratualista da origem do Estado, que a ala austro-libertáriado neoliberalismo utilizou com grandes conseqüências políticas. Segundo

12 Williamson defende a hipótese inicial com base na “conveniência expositiva”, argumen-tando que a lógica dessa análise seria a mesma ainda que a hipótese inicial fosse “no prin-cípio, havia o planejamento central” (ibidem, p.20-1). Contudo, ele não explica como nempor que uma hipótese torna uma exposição mais conveniente que outra.

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essa óptica, o Estado surgiu como uma solução “contratual” para o pro-blema da ação coletiva de fornecer os bens públicos da lei e da ordem,especialmente a segurança da propriedade privada, a qual é consideradanecessária (e muitas vezes suficiente) para que os mercados funcionem(Nozick, 1974; Buchanan, 1986). Desse modo, explica-se inclusive a exis-tência do próprio Estado como uma reação similar ao mercado (isto é,contratual) à falha de mercado. É claro que se sabe perfeitamente quetal explicação contraria a evidência histórica, como admitem até mesmovários de seus proponentes. No entanto, o fato de ela continuar sendolevada a sério pelos pensadores neoliberais é sintomático de sua adesãoà hipótese da primazia do mercado, para a qual o “estado natural” é o domercado “livre” em grau extremo (inclusive na provisão da lei e da ordem)e que a reação “natural” dos indivíduos a esse indesejável estado de coi-sas é adotar um comportamento como o do mercado, que consiste emcelebrar voluntariamente um “contrato” social a fim de erigir o Estadocomo provedor da lei e da ordem (ver uma crítica mais detalhada do ar-gumento contratualista em Chang, 1994a, cap.1).

Neste ponto, cabe enfatizar que o fato de uma pessoa atribuir pri-mazia institucional ao mercado não significa necessariamente que elaendosse a visão do Estado mínimo.

Muitos economistas iniciam suas análises (pelo menos implicitamen-te) tendo como ponto de partida a hipótese da supremacia do mercado,mas se dispõem a endossar uma ordem relativamente ampla de inter-venção estatal, assim como uma série de outras soluções “institucionais”(por exemplo, Arrow, 1974). Todavia, eles continuariam vendo a inter-venção estatal e as outras instituições extramercado e não-estatais (porexemplo, a empresa) como sucedâneos criados pelo homem da institui-ção “natural” chamada mercado.

A grande verdade é que, no princípio, não havia mercados. Os histo-riadores econômicos já nos mostraram reiteradamente que, a não ser nonível local (na satisfação das necessidades básicas) ou no nível interna-cional (no comércio de artigos de luxo), o mercado não era uma parteimportante – e muito menos a dominante – da vida econômica humanaantes da ascensão do capitalismo. Aliás, embora até mesmo Joseph Stiglitz(1992, p.75), um dos mais esclarecidos economistas neoclássicos da nossa

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geração, tenha argumentado uma vez que “os mercados se desenvolvemnaturalmente”,13 o surgimento dos mercados foi quase sempre articuladopelo Estado de forma deliberada, principalmente no estágio inicial do de-senvolvimento capitalista (Polanyi, 1957, é a obra clássica que o afirma;ver ainda Block, 1999).

Mesmo na Grã-Bretanha, onde se presume que o mercado emergiu“espontaneamente”, a intervenção estatal teve um papel decisivo nosurgimento dos mercados individuais e do sistema de mercado. Nas pa-lavras de Polanyi (1957, p.140), “(o) caminho para o mercado livre foiaberto e mantido aberto por um crescimento enorme do intervencionismo con-tínuo, centralmente organizado e controlado (grifo nosso). Compatibilizar a‘liberdade simples e natural’ de Adam Smith com as necessidades de umasociedade humana foi uma tarefa complicadíssima. Provam-no a com-plexidade das provisões de inumeráveis leis de enclosure; a quantidade decontrole burocrático envolvido na administração da New Poor Laws [No-vas leis dos pobres] que, pela primeira vez desde o reinado de Isabel,foram efetivamente supervisionadas pela autoridade central; ou o cres-cimento da administração governamental ligado à louvável tarefa da re-forma municipal ...”.14

Também no caso dos Estados Unidos, a intervenção estatal para es-tabelecer os direitos de propriedade, facilitar o fornecimento da decisivainfra-estrutura física (principalmente das ferrovias e da telegrafia), finan-ciar a pesquisa agrícola etc. foi um fator-chave do sucesso do começo daindustrialização (Kozul-Wright, 1995; até mesmo o Banco Mundial re-conhece isso atualmente – ver World Bank, 1997, p.21, boxe 1.2). O queé mais importante: os Estados Unidos foram o berço da idéia de prote-ção da indústria nascente (Freeman, 1989; Reinert, 1995) e, de fato, fo-

13 No entanto, mais recentemente, Stiglitz (1999) se afastou dessa visão e adotou uma posi-ção mais institucionalista (embora não completamente).

14 E Polanyi (1957, p.140) prossegue: “Os administradores tinham de manter uma vigilânciaconstante para garantir o funcionamento livre do sistema. Assim, mesmo aqueles que maisardentemente desejavam livrar o Estado de todas as funções desnecessárias e aqueles cujafilosofia exigia a restrição das atividades estatais não puderam senão dotar esse mesmoEstado dos novos poderes, órgãos e instrumentos necessários ao estabelecimento do laisser-faire” (sublinhado no original).

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ram a economia mais fortemente protegida do mundo durante cerca deum século, até a Segunda Guerra Mundial.15

Uma vez que se admite que a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, osdois supostos modelos de desenvolvimento com base no mercado, nãose desenvolveram por meio do surgimento espontâneo dos mercados,fica muito mais fácil ver que, virtualmente, não existe um único país (coma provável exceção de Hong Kong) que tenha chegado ao status de indus-trializado sem pelo menos alguns períodos de forte envolvimento esta-tal. O foco exato da intervenção certamente variou no tempo e no espaço,refletindo o que eu, em outro trabalho, denominei “diversidade institu-cional do capitalismo” (Chang 1997; ver também Albert, 1991, e Berger& Dore, 1996): o welfare state “preventivo” da Alemanha de Bismark; apolítica industrial francesa do pós-guerra; o precoce apoio estatal suecoà pesquisa e desenvolvimento; as transformações do pós-guerra no se-tor manufatureiro austríaco por intermédio de empresas públicas dinâ-micas; o bem conhecido desenvolvimento dos países do Extremo Orien-te. No entanto, persiste o fato de que todos os esforços bem-sucedidosde desenvolvimento envolveram substancial intervenção estatal.

O que acabamos de discutir não é apenas de interesse histórico. Mes-mo porque até nas economias capitalistas mais avançadas de hoje, quejá desenvolveram bem a totalidade dos sistemas de mercado, o Estadoestá, por um lado, constantemente envolvido na criação de novos mer-cados e, portanto, ocupado em estabelecer os novos direitos e obrigaçõesnecessários ao seu funcionamento e, por outro, empenhado em modifi-car a estrutura de direitos-obrigações existente a fim de acomodá-los.Os exemplos recentes mais importantes incluem a criação e a reestru-turação, pelo Estado, dos mercados de telecomunicação móvel, desoftware, de eletricidade e de provisão de serviço da internet.

15 Nesse período, poucos países tinham autonomia tarifária em razão ou do regime colonial,ou de tratados desiguais – por exemplo, o Japão só adquiriu autonomia tarifária em 1899,quando expiraram todos os tratados desiguais assinados a partir da abertura de 1853. Dentreos países com autonomia tarifária, os Estados Unidos tinham as mais elevadas taxastarifárias. A partir de 1820, elas nunca estiveram abaixo de 25% e, geralmente, aproxima-vam-se dos 40%, ao passo que nos outros países cujos dados estão disponíveis, como aÁustria, a Bélgica, a França, a Itália e a Suécia, raramente ultrapassavam os 20%. Para maisdetalhes, ver World Bank (1991, p.97, Tabela 5.2) e Kozul-Wright (1995, p.97, Tabela 4.8).

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Porém – o que talvez seja mais importante – atribuir ou não prima-zia institucional ao mercado faz uma diferença decisiva no modo de con-ceber políticas de desenvolvimento para as nações que ainda não estabe-leceram plenamente o sistema de mercado. Um exemplo expressivo sãoas graves crises econômicas que, nos últimos anos, atingiram muitos dosantigos países comunistas que optaram por uma reforma big bang, exem-plo que mostra que o estabelecimento de uma economia de mercado embom funcionamento é impossível sem um Estado em bom funcionamento(ver Chang & Nolan, 1995, e Stiglitz, 1999). Aliás, se os mercados evo-luíssem tão “naturalmente” quanto crêem os economistas neoliberais,esses países não estariam enfrentando tamanha dificuldade atualmente.Do mesmo modo, as crises de desenvolvimento pelas quais passarammuitas nações subdesenvolvidas nas últimas duas décadas mostram oquanto é perigoso supor a primazia do mercado e acreditar que ele sedesenvolverá naturalmente contanto que o Estado não interfira em suaevolução.

Portanto, levantar a questão da hipótese da primazia do mercado nateoria neoliberal não é uma simples pendenga teórica nem uma buscada “verdade” histórica. Tal pressuposto afeta profundamente o própriomodo como entendemos a natureza e o desenvolvimento do mercado,assim como sua inter-relação com o Estado e outras instituições. Enquan-to não abandonarmos essa suposição e não desenvolvermos uma teoriaque trate o mercado, o Estado e as demais instituições em pé de igualda-de, nossa compreensão do papel do Estado permanecerá gravementeincompleta e tendenciosa.

2.4 Mercado, Estado e Política

Como mencionamos anteriormente, o mundo neoliberal da políticaé povoado de burocratas ávidos por tirar proveito próprio e de políticosincapazes que atuam sob a influência de grupos de interesses. Segundoessa visão, a política abre a porta para que os interesses secionais “dis-torçam” a “racionalidade” do sistema de mercado. A solução neoliberalpara o problema consiste em “despolitizar” a economia. Trata-se de res-tringir a extensão do Estado (pela desregulamentação e pela privatização)

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e de estreitar o espaço das decisões políticas independentes nas poucasáreas em que lhe é permitido atuar, por exemplo, mediante o reforço dasregras da conduta burocrática ou a criação de órgãos “politicamente in-dependentes” e controlados por normas rígidas (por exemplo, bancocentral independente, órgãos regulatórios independentes).

São muitos os estudos que contestam a visão neoliberal da motiva-ção humana em que se ancora essa análise político-econômica (Cullis &Jones, 1987; Chang, 1994a; Stretton & Orchard, 1994). Eles argumen-tam que, contrariamente à suposição neoliberal, o proveito próprio nãoé a única motivação humana nem mesmo no âmbito “privado” do mer-cado, e que as pessoas não agem com o mesmo grau de egoísmo no do-mínio público e no privado. Uma vez refutada essa presunção de purointeresse mesquinho, as conclusões antiestatistas do neoliberalismo pre-cisam ser seriamente modificadas, já que as visões morais e as normassociais observadas pelos indivíduos podem restringir a extensão em queeles promovem os seus interesses descobrindo como “distorcer” os resul-tados do mercado por meios políticos – isto é, mesmo que todas as mo-dificações políticas dos direitos e obrigações existentes sejam interpre-tadas como “distorções” do mercado por meios políticos (na seção 2.1,demonstrei por que não é esse o caso).

Como tal ponto já é bem conhecido e como pretendo desenvolver otema mais adiante (seção 3.2), desejo criticar de outro ângulo a visãoneoliberal da política. A idéia aqui expressa é a de que o próprio merca-do não passa de um constructo político e, por conseguinte, a propostaneoliberal de despolitizá-lo é, na melhor das hipóteses, contraditória e,na pior, desonesta.16 Mas que significa exatamente dizer que os merca-dos são constructos políticos?

Para começar, o estabelecimento e a distribuição dos direitos de pro-priedade e outras habilitações que definem as “dotações” de que gozamos participantes do mercado, as quais os economistas neoliberais tomampor fixados, são um exercício altamente político. O exemplo mais extre-

16 Para outras críticas da economia política neoliberal, ver, em ordem cronológica, King (1987),Gamble (1988), Toye (1991), Stretton & Orchard (1994), Chang (1994a e 1994b), Weiss(1998) e Woo-Cumings (1999).

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mo seriam os diversos episódios da “acumulação primitiva”, nos quaisse redistribuíram os direitos de propriedade nas mais notórias formasde política, envolvendo a corrupção, o roubo e até a violência – tais comoo Great Plunder ou o enclosure no período inicial do capitalismo britânicoou as turvas negociações que dominam o processo de privatização emmuitos países subdesenvolvidos e ex-comunistas no período atual.

Mesmo o conhecimento elementar da história das nações avança-das nos últimos dois séculos revela que muitos desses direitos – hojeconsiderados tão “fundamentais” que poucos ou talvez nenhum cidadãoos questionará – eram perfeitamente contestáveis e muitas vezes foramencarniçadamente contestados no passado; entre os exemplos figuramo direito de ser dono de si (negado aos escravos), o de votar (e, dessemodo, influir na modificação política dos resultados do mercado), o dajornada de trabalho, o de se organizar e o de não sofrer constrangimentofísico no local de trabalho. As lutas mais recentes por direitos em áreascomo o meio ambiente, o tratamento igual dos sexos e das etnias e a pro-teção ao consumidor são lembretes de que nunca terão fim as lutas polí-ticas que cercam o estabelecimento, a manutenção e a modificação dasestruturas de direitos-obrigações que alicerçam o mercado.

Além disso, mesmo que aceitemos como incontestável a estruturade direitos-obrigações existente, não há praticamente nenhum preço narealidade que não esteja sujeito a influências “políticas”, inclusive os quenão são percebidos como tais nem mesmo por muitos neoliberais. Paracomeçar, dois preços críticos que afetam quase todos os setores, especi-ficamente, os salários e as taxas de juros, são politicamente determina-dos num grau muito elevado. Os salários são politicamente alterados nãosó pela legislação do salário mínimo, mas também por várias regulamen-tações que atingem as atividades sindicais, os padrões de trabalho, osdireitos previdenciários e, o que é mais importante, o controle da imi-gração. Também as taxas de juros são preços altamente políticos, mes-mo quando determinadas por um banco central “politicamente indepen-dente” (para outras discussões, ver Grabel, 2000). O recente debate, naEuropa, sobre a relação entre a soberania política e a autonomia em po-lítica monetária, suscitada pela União Monetária Européia, mostra-o cla-ramente. Se a isso acrescentarmos as numerosas regulamentações nos

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mercados de produto, que afetam a segurança, a poluição, as restriçõesà importação etc., não há virtualmente um só preço livre da política.17

Em outras palavras, a “racionalidade do mercado”, que os neoliberaisquerem resgatar das influências “corruptoras” da política, só pode serdefinida significativamente com referência à estrutura institucional exis-tente, que é, ela mesma, produto da política (ver em Vira, 1998, umaexposição mais ampla desse ponto). E, sendo esse o caso, o que os neo-liberais realmente fazem ao falar em despolitização do mercado é presu-mir que o limite particular entre mercado e Estado que eles desejam tra-çar é o “correto” e que qualquer tentativa de contestar essa demarcaçãotem “inclinação política”.

Sem embargo, como argumentamos na seção 2.1, não existe ummodo correto de delinear tal fronteira. Se, em certos exemplos, parecehaver uma sólida demarcação entre os dois, é unicamente porque os afe-tados nem mesmo se dão conta de que a estrutura de direitos-obriga-ções que serve de base a esse limite é potencialmente contestável. As-sim, se algumas pessoas sentem que os bancos centrais devem serpoliticamente independentes, é só porque elas negam ao povo o direito deinfluenciar a política monetária por intermédio de representantes elei-tos, não porque exista um motivo “racional” para que a política monetárianão seja politicamente influenciada.

Ademais, ao reivindicar a despolitização da economia, os neoliberaisnão só procuram travestir a sua própria visão política de “objetiva” e “aci-ma da política”, como também sabotam compulsivamente o princípiodo controle democrático. O apelo neoliberal à despolitização geralmentese justifica com uma retórica populista, como uma tentativa de defendera “maioria silenciosa” contra os políticos corruptos, os burocratas que criamfeudos e os poderosos grupos de interesses. Contudo, a diminuição dodomínio legítimo da política, que a proposta neoliberal de despolitização

17 Lembrou-nos claramente disso a crise britânica do carvão sob o governo conservador noinício da década de 1990, quando se exortaram os mineiros ingleses a aceitar a lógica do“mercado mundial” e a ver com bons olhos o fechamento das minas. No entanto, os preçosdo mercado mundial, que o governo britânico da época dizia estarem fora do alcance danegociação política, acabaram sendo determinados pelas decisões “políticas” do governoalemão de subsidiar o carvão, do governo francês de autorizar a exportação da energia nu-clear subsidiada e dos governos de muitos países em desenvolvimento de permitir, pelomenos de fato, o trabalho infantil nas minas de carvão.

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há de gerar, só serve para diminuir ainda mais a pouca influência dachamada “maioria silenciosa” na modificação dos resultados do mercado,os quais, repetimos, são fortemente influenciados por parâmetros institu-cionais politicamente determinados. Tal como os Velhos Liberais, os neo-liberais acreditam profundamente que outorgar poder político àqueles que“não têm participação” no sistema existente resultará inevitavelmente emmodificações “irracionais” do status quo (ver a exposição crítica dos VelhosLiberais nesta linha em Bobbio, 1990). Entretanto, ao contrário dos Ve-lhos Liberais, os neoliberais não podem se opor abertamente à democra-cia, por isso tentam fazê-lo desacreditando a política em geral e apresen-tando propostas que buscam ostensivamente reduzir a influência dospolíticos e burocratas “indignos de confiança”, mas, em última instân-cia, não fazem senão menosprezar o próprio controle democrático.18

Assim visto, o mercado é sobretudo um constructo político e, por-tanto, sua total despolitização é não só uma impossibilidade, como tam-bém tem perigosas conotações antidemocráticas. Note-se, porém, queao dizer tal coisa não estamos negando a possível necessidade de certograu de despolitização do processo de alocação de recursos. Mesmo por-que, se os membros da sociedade não aceitarem esse processo como atécerto ponto “objetivo”, a legitimidade política do próprio sistema eco-nômico pode ficar ameaçada. Além disso, incorrer-se-ia em altos custosde transação em atividades de busca e barganha se cada decisão de aloca-ção fosse considerada potencialmente contestável, como no caso dospaíses ex-comunistas. No entanto, isso nada tem a ver com a alegaçãodos neoliberais, segundo a qual nenhum mercado, em circunstância al-guma, deve se sujeitar a modificações políticas, pois, em última análise,nenhum mercado pode estar realmente livre da política.

3 O caminho a seguir: rumo a umaeconomia política institucionalista

Até aqui, minha discussão expôs algumas limitações importantes dodiscurso neoliberal atualmente dominante acerca do papel do Estado.

18 Cabe notar que as atividades políticas muitas vezes são fins em si e que as pessoas podemderivar valor das atividades per se tanto quanto dos produtos de tais atividades (ver Hirsch-man, 1982b, p.85-6).

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Nesta seção, argumento que esses problemas só podem ser superadospela adoção de uma abordagem alternativa que incorpore a política e asinstituições em seu núcleo analítico, o que proponho denominar econo-mia política institucionalista (EPI).19 Como o desenvolvimento plenodessa nova abordagem escapa ao âmbito do presente trabalho, no restoda seção vou tentar descrever as características teóricas centrais que adistinguem da visão neoliberal da análise do mercado, do Estado e dapolítica e sugerir como desenvolver tal análise.

Mas antes de prosseguir, uma coisa precisa ficar clara. Como o leitorjá deve ter notado, e isso se esclarecerá mais adiante, quando falo emabordagem “institucionalista”, não me refiro ao tipo Nova EconomiaInstitucionalista (NEI), e sim a um desenvolvimento da tradição encon-trada em autores clássicos como Karl Marx, Thorstein Veblen, JosephSchumpeter, Karl Polanyi, Andrew Shonfield e Herbert Simon (podem-seencontrar desenvolvimentos recentes dessa tradição em Hodgson, 1988,1993 e 2000; Lazonick, 1991; Evans, 1995; Block, 1999; Chang & Evans,2000; Burlamaqui et al., 2000). Essa tradição, às vezes chamada de “An-tiga Economia Institucional”, difere da NEI em vários aspectos relevantes(ver Rutherford, 1996; e Hodgson, 2000), porém o mais importante éque encara as instituições não como simples coerções ao comportamentode indivíduos pré-moldados e inalteráveis, como na NEI, mas consideraque elas próprias também moldam os indivíduos. Com isso em mente,passo a esboçar quais devem ser as características distintivas da EPI.

3.1 A Análise do Mercado

Como já argumentei no discurso neoliberal, o mercado é tido porum fenômeno econômico “natural” que procede espontaneamente dauniversal natureza humana de auferir ganhos no intercâmbio (ver a se-ção 2.3). Posto que, quando pressionados, a maioria dos economistasneoliberais admita que o próprio mercado é uma instituição econômicae posto que, dada a recente influência da NEI, muitos deles (embora nãotodos) cheguem até a falar em instituições extramercado (como a em-

19 Tentei desenvolver elementos dessa teoria em vários trabalhos anteriores. Ver Chang (1994b,1995, 1997) e Chang & Rowthorn (1995b).

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presa), sua análise do próprio mercado envolve apenas uma especificaçãoinstitucional mínima e, no mais das vezes, implícita. Geralmente, tudoque existe na análise neoliberal do mercado é uma ou outra noção simpli-ficada de direitos de propriedade privada, conquanto alguns também le-vem em consideração as instituições necessárias ao exercício efetivo e àmodificação dos direitos de propriedade (por exemplo, o sistema jurídi-co, a lei do contrato).

A EPI, pelo contrário, realça a complexidade institucional do merca-do. Argumenta que, para compreender o funcionamento deste último, épreciso compreender uma ampla ordem de instituições que o afetam epor ele são afetadas. É natural que tais instituições não sejam meramen-te formais como a regulamentação jurídica ou estatal. Entre elas figu-ram também as instituições auto-reguladoras do setor privado (por exem-plo, as associações profissionais, as de produtores) e as informais, comoas convenções sociais, se bem que muitas delas sejam apoiadas por ins-tituições formais (por exemplo, as decisões das associações profissionaisou das convenções sociais, quando em conflito, podem ser impostas pelosistema jurídico). Muitas dessas instituições que precisam ser incorpo-radas à análise do mercado geralmente são “invisíveis”, pois a estruturade direitos-obrigações que lhes serve de base é de tal modo tida comoponto pacífico que acaba sendo considerada um componente inalienáveldos mercados livres naturalmente ordenados (ver a seção 2.1). Todavia,nenhuma instituição, por mais que pareça, pode ser encarada como “na-tural”, e, embora em muitos casos seja possível optar por aceitar inúme-ras delas como fixadas, em última análise, devemos estar dispostos e sercapazes de submeter todas as instituições que sustentam os mercadosao escrutínio analítico e político.

Antes de mais nada, a totalidade dos mercados apóia-se em institui-ções que determinam quem tem direito de participar. Por exemplo, asleis podem estipular que certos tipos de indivíduos (por exemplo, osescravos, os estrangeiros) estão proibidos de ter propriedade. As leisbancárias ou de pensão podem limitar a quantidade de ativos possuídospelos bancos ou fundos de pensão e, assim, restringir a quantidade demercados de ativos em que eles estão autorizados a ingressar. Os quepuderem participar de um determinado mercado de trabalho são afeta-dos não só pelas regulamentações formais do Estado e pelos agentes do

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setor privado (por exemplo, as leis que regulam as qualificações profis-sionais, as normas dos sindicatos e das associações profissionais), comotambém pelas convenções sociais referentes à casta, ao gênero e à etnia.As leis da empresa e as regras de licenciamento industrial decidem quemparticipa do mercado de produto, ao passo que o mercado acionário, ar-rolando normas e regulamentações da corretagem, determina quem delepode participar.

Em segundo lugar, há instituições que determinam os objetos legí-timos do mercado de troca (e, por implicação, a sua propriedade). Namaioria dos países, existem leis que proíbem o comércio de coisas comodrogas que causam dependência, publicações “indecentes”, órgãos hu-manos ou armas de fogo (embora as diferentes sociedades tenham vi-sões também diferentes do que considerar drogas que causam depen-dência ou publicações indecentes). A legislação sobre a escravidão, otrabalho infantil e a imigração estipularão, respectivamente, que os se-res humanos, o trabalho das crianças e o dos imigrantes ilegais não po-dem ser objetos legítimos de troca.

Terceiro, mesmo tendo sido estipulados os participantes e os obje-tos legítimos da troca, são necessárias instituições que definam exata-mente quais são os direitos e as obrigações de cada agente e em que áreas.Assim, por exemplo, as leis de zoneamento, as regulamentaçõesambientais (por exemplo, relativas à poluição ou ao barulho), as de incên-dio etc. determinam como exercer os direitos de propriedade do solo (porexemplo, que tipo de prédio pode ser construído em que lugar). Outroexemplo são as leis tocantes à salubridade, à segurança e às condiçõesdo local de trabalho, que definem os direitos e as obrigações de empre-gados e empregadores.

Quarto, há numerosas instituições que regulam o próprio processode troca. Por exemplo, as normas relativas à fraude, à violação de contra-to, à negligência, à falência e a outras perturbações do processo de trocae que contam com o apoio da polícia, do sistema judiciário e de outrasinstituições jurídicas. As leis do consumidor e da responsabilidade sãooutro exemplo de regras que estipulam quando e como os compradoresde produtos insatisfatórios ou defeituosos podem anular o ato de aqui-sição e/ou exigir uma compensação dos vendedores. As convenções so-ciais (por exemplo, as referentes à lealdade e à probidade) ou os códigos

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de conduta elaborados pelas associações comerciais (por exemplo, asassociações de banqueiros) também podem influenciar o modo como osagentes se comportam nas transações econômicas.

Para sintetizar a discussão nesta seção, compreender o mercado re-quer que se leve em consideração uma série muito mais ampla de insti-tuições do que normalmente discutem os neoliberais. Ademais dos direi-tos de propriedade e da infra-estrutura jurídica que auxiliam o seu exercícioe a sua modificação, nos quais os neoliberais costumam se concentrar,também é necessário levar em conta todas as demais instituições formaise informais que definem quem pode ter que tipo de propriedade e parti-cipar de que tipo de intercâmbio, quais são os objetos legítimos de co-mércio, quais são as condutas aceitáveis no processo de troca e em quetermos os diferentes tipos de agentes podem participar de que merca-dos, e assim por diante. Em outras palavras, os mercados neoliberais sãodemasiado subespecificados institucionalmente, e nós precisamos de umaespecificação institucional mais completa deles se os quisermos compre-ender adequadamente.

Para enfatizar a natureza institucional do mercado do modo já dis-cutido, também é necessário incluir explicitamente a política na sua aná-lise (e não somente na do Estado) e deixar de pretender que ele deve epode ser “despolitizado”. Afinal de contas, os mercados são constructospolíticos no sentido de que são definidos por uma série de instituiçõesformais e informais que incorporam certos direitos e obrigações, cujalegitimidade (e, por conseguinte, cuja contestabilidade) é, enfim, deter-minada no reino da política. Conseqüentemente, a EPI adota uma abor-dagem “político-econômica” não só na análise do Estado, mas tambémna do mercado.

3.2 A Análise do Estado

A análise neoliberal do Estado começa por questionar a natureza“pública” das motivações dos agentes que o constituem, tal como os po-líticos e a burocracia. A teoria da motivação e do comportamento huma-nos que escora essa análise e, aliás, o neoliberalismo como um todo afir-mam que o interesse egoísta é a única motivação humana genuína, a não

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ser, talvez, em face dos membros da família (Williamson, 1993, é umadefesa recente e apaixonadíssima dessa visão).

Não obstante, como observaram muitos críticos da tradição insti-tucionalista, as motivações humanas são multifacetadas, e a verdade éque existem muitos comportamentos desprendidos impossíveis de ex-plicar sem que se admita uma série de motivações altruístas e sem quese presuma uma interação complexa entre elas (Simon, 1983; Basu, 1983;McPherson, 1984; Etzioni, 1988; Frey, 1997; Ellerman, 1999; ver aindaa seção 2.4). E essa crítica se aplica ainda mais à análise do Estado e aoutros aspectos da vida pública. Isso não ocorre unicamente porque, aoentrar na vida pública, os indivíduos geralmente se comprometem comcertos valores altruístas (por exemplo, a ética do serviço público, a re-forma social, o liberalismo, a lealdade partidária, o nacionalismo), mastambém porque, ao operar numa esfera explicitamente “pública”, elesacabam interiorizando muitos valores “publicamente orientados”.

Além de aceitar a variedade e a complexidade das motivações hu-manas, também é preciso reconhecer que os seres humanos são funda-mentalmente plasmados pelas instituições. Nas teorias neoliberais (in-clusive nos modelos da NEI), as motivações individuais (geralmentechamadas de “preferências”) são tratadas como as determinações supre-mas. Para elas, as instituições podem ser capazes de moldar os comporta-mentos individuais mediante a punição ou a recompensa a tipos particula-res de comportamento, mas não conseguem alterar a própria motivação(Ellerman, 1999; Hodgson, 2000). Já a EPI, pelo contrário, não vê essasmotivações como dadas, fixadas, mas como basicamente afeiçoadas pe-las instituições que cercam os indivíduos. É por essa razão que elas in-corporam certos “valores” (visões de mundo, códigos morais, normassociais ou qualquer outro nome que se dê), e, ao atuar nas instituições,os indivíduos interiorizam inevitavelmente alguns desses valores e, as-sim, ficam com o seu próprio eu alterado. Foi isso que, em outro trabalho,propus denominar “papel constitutivo das instituições” (Chang & Evans,2000) ou que Hodgson (2000) designa por “causação reconstituinte des-cendente das instituições para os indivíduos”; trata-se do marco centralde uma abordagem verdadeiramente “institucionalista”, bem diferentedo institucionalismo neoliberal da NEI.

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Claro está que a ênfase que a EPI dá à natureza constitutiva das ins-tituições não deve ser interpretada como a afirmação de que as motiva-ções são mais ou menos determinadas pela estrutura institucional. Paranão redundar num injustificável determinismo estrutural, é preciso acei-tar que os indivíduos também influenciam a formação e o funcionamentodas instituições, como fazem tipicamente os modelos da NEI. No entanto,a EPI se distingue desta à medida que postula uma causação recíprocaentre a motivação individual e as instituições sociais, não uma causaçãounilateral dos indivíduos para as instituições, muito embora concordeque, em última instância, uma análise verdadeiramente institucionalistadeve considerar as instituições pelo menos “temporalmente” anterioresaos indivíduos (Hodgson, 2000).

Tomemos agora alguns exemplos para ilustrar o modo pelo qual aanálise “institucionalista” da relação entre a motivação, o comportamentoe as instituições nos pode aprimorar o pensamento acerca do papel doEstado.

Por exemplo, nas sociedades em que há muito se estabeleceram pa-drões elevados de comportamento na vida pública, os funcionários dogoverno podem agir com mais probidade em comparação com seus equi-valentes nas sociedades que carecem de semelhantes normas, mesmo quetambém estejam sujeitas a instituições com sanções e recompensas in-dividuais do tipo recomendado pelos neoliberais (por exemplo, moni-toramento mais completo, salários relativos mais altos, punições maisseveras). Mesmo reconhecendo a utilidade dessas instituições diretamen-te voltadas para os comportamentos, a EPI argumentaria que também épossível aperfeiçoar os padrões comportamentais e, em certos casos,aperfeiçoá-los mais efetivamente alterando as motivações dos agentespúblicos. Isso, por sua vez, pode acontecer pela exortação ideológica di-reta (por exemplo, enfatizar a ética do serviço público no treinamentoburocrático), mas talvez mais indiretamente (dado o papel constitutivodas instituições) pela modificação das instituições que os cercam (porexemplo, conceber sistemas de incentivos que recompensem o trabalhode equipe na burocracia a fim de estimular o espírito de corpo).

Eu chegaria a avançar mais um passo e argumentar que algumas re-comendações neoliberais destinadas a aprimorar os padrões comporta-

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mentais dos agentes públicos chegam a ser absolutamente contraprodu-centes por solaparem as motivações altruístas que anteriormente osmoviam – isto é, por causarem o que Ellerman (1999) denomina a “atrofiada motivação intrínseca”. Portanto, pode ser que o aumento do moni-toramento dos agentes públicos faça que estes se comportem de maneiramais “moral” nas áreas em que o monitoramento for mais fácil (por exem-plo, na diligente prestação de contas das despesas de viagem de trabalho).Sem embargo, arrisca torná-los menos motivados a se comportarem demodo moral e a tomarem iniciativas nas áreas em que o monitoramentoé difícil (por exemplo, tomarem iniciativas intelectuais sem compensa-ções materiais): porque isso os levará a sentir que já não se confia nelescomo agentes “morais” e, portanto, que eles já não têm obrigação de secomportar moralmente, a não ser que sejam forçados.

Sintetizemos a argumentação desta seção. Para superar as limitaçõesda análise neoliberal do Estado, é preciso abandonar sua suposição maisdefensável, nomeadamente, a de que os indivíduos têm motivações (ou“preferências”, na linguagem neoliberal) prefixadas, que são egoístas, eadotar uma visão mais complexa da inter-relação entre motivação, com-portamento e instituições do que a manifesta no discurso neoliberal.

A EPI propõe que, já de início, devemos aceitar que as motivaçõeshumanas são variadas e interagem entre si de modo complexo. E argu-menta que as motivações individuais são basicamente formadas pelasinstituições que cercam os indivíduos. Assim, convém reconhecer quenão é necessário que as motivações egoístas nos dominem o comporta-mento na esfera pública do Estado, na qual se enfatizam institucional-mente os valores altruístas, muitos dos quais os agentes interiorizam.Além disso, vale sublinhar que, mesmo nas esferas privadas, a impor-tância da motivação egoísta é muito menor do que acreditam os neoli-berais. A EPI argumenta que é possível alterar os comportamentos nãosó modificando as instituições que definem os incentivos para os indiví-duos, mas também por mudanças ideológicas e institucionais que influen-ciem as próprias motivações individuais.

3.3 A Análise da Política

O neoliberalismo deu uma importante contribuição ao debate so-bre o papel do Estado ao devolver a política à análise da ação estatal. Como

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advogo uma “economia política” institucionalista, é natural que simpa-tize com a tentativa neoliberal de enfatizar o papel da política. No entan-to, os neoliberais afirmam que essa gera, inevitavelmente, ações estataiscontrárias à “racionalidade” do mercado. Com isso, fazem de modo efe-tivo duas afirmações, e ambas são altamente problemáticas.

Antes de mais nada, eles afirmam que os mercados devem e podemficar livres da política. Mas, como já argumentei, isso não passa de ummito. Aceito que esse mito pode ser útil ou até mesmo necessário paraconter as conseqüências altamente destrutivas de um grau muito elevadode contestação da estrutura de direitos-obrigações que alicerçam os mer-cados existentes. Contudo, por maior que seja a sua utilidade, isso nãodeixa de ser o que é: um mito. A EPI alega que os mercados são, funda-mentalmente, constructos políticos e, portanto, que é impossível e atémesmo indesejável tentar livrá-los totalmente da política como preten-dem os neoliberais (ver a seção 2.4).

Em segundo lugar, ao apresentar como “racional” o limite particu-lar do mercado que preconizam (dentro do qual, argumentam, não sedevem tolerar influências políticas), os neoliberais reclamam para si umaobjetividade a que nenhuma teoria pode aspirar. Entretanto, uma vezaceita a natureza política do mercado, vê-se que não há um meio “objeti-vo” de decidir qual é a fronteira “correta” entre mercado e Estado, já quea visão política de cada um influenciará profundamente se determinadadelimitação é considerada legítima (ou “racional”, na linguagem deles).Em contraste, a EPI argumenta que a política é um processo no qual ocorrea disputa entre pessoas com visões diferentes e igualmente legítimasacerca da contestabilidade da estrutura de direitos-obrigações existen-te, não que se trate de um processo no qual grupos de pressão procuramalterar a ordem “natural” dos “mercados livres” de acordo com seus in-teresses secionais.

Por conseguinte, a EPI trata a política não como algo estranho e nocivoao mercado, mas como uma parte integrante de sua construção, opera-ção e mudança, embora reconheça o mal que pode fazer a politizaçãoexcessiva. Também enfatiza que não existe uma visão política “correta”,de modo que ninguém pode declarar “correta” a fronteira entre mercadoe Estado na qual acredita.

Eu avançaria ainda mais na crítica da análise neoliberal da política,apontando a sua incapacidade de reconhecer até que ponto a própria

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política é um processo institucionalmente estruturado (ver Chang &Evans, 2000, e March & Olsen, 1989, que desenvolvem esta linha de ar-gumentação do ponto de visto da ciência política).

É claro que não pretendo asseverar que as instituições não têm umpapel relevante na análise neoliberal da política. Pelo contrário, esta pro-curou examinar, geralmente com sucesso, até que ponto as instituiçõesformais e informais que governam o modo pelo qual se organizam osinteresses e se exerce o poder afetam as ações políticas (por exemplo, asleis eleitorais, as normas que regulam o comportamento das figuras pú-blicas, as regras de formação de agenda e votação nas comissões parla-mentares). Sem embargo, tal como nas demais análises das instituições,os neoliberais não fizeram senão ver estas últimas como fatores “coerci-vos” do comportamento humano, deixando de notar que também são“constitutivas” e, especificamente, podem influenciar a política não sópor afetar as ações humanas, como também por influenciar as motiva-ções e visões de mundo individuais (Chang & Evans, 2000; ver ainda aseção 3.2). Cabe dizer que aqui estão envolvidos três mecanismos rela-cionados, mas diferentes.

Em primeiro lugar, as instituições influenciam a própria percepçãoque os indivíduos têm de seus interesses. Assim, por exemplo, nas socie-dades com partidos políticos providos de organizações com mais consciên-cia de classe (por exemplo, vínculo formal com sindicatos ou associa-ções patronais), muito mais eleitores votarão conforme as “linhas declasse” do que nas sociedades que carecem de semelhantes partidos.

Segundo, as instituições influenciam a visão das pessoas do tipo dequestão que é um alvo legítimo da ação política. Assim, por exemplo,nas sociedades em que o trabalho infantil deixou de ser uma questãopolítica legítima, nem mesmo aqueles que poderiam se beneficiar comessa prática fazem lobby para a sua reintrodução, não só por temeremuma sanção formal ou informal, mas, o que é importante, porque nemchegam a julgar a questão um item legítimo da agenda de ação políticade nenhum grupo (ver em Goodin, 1986, a discussão sobre o problemada “formação da agenda pública”).

Terceiro, as instituições influenciam o modo como os indivíduospercebem a legitimidade de tipos particulares de ação política. Assim,por exemplo, é provável que a busca de vantagens seja menos generali-

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zada nas sociedades em que a franca atividade lobista, mesmo sendolegal, for considerada de “mau gosto” do que nas sociedades em que nãofor, ainda que ambas ofereçam as mesmas oportunidades de busca devantagens.

Resumindo a argumentação desta seção: a afirmação neoliberal se-gundo a qual a política corrompe inevitavelmente o mercado é proble-mática não só porque os próprios mercados são constructos políticos,mas também porque a noção neoliberal de mercado “incorruptível” sebaseia num conjunto particular de convicções políticas que não podepretender superioridade sobre os outros. Além disso, os neoliberais nãoconseguem conceber a política como um processo institucionalmenteestruturado no sentido mais profundo. Vêem as instituições como atospolíticos coercivos, mas não atinam que elas também afetam as motiva-ções e percepções das pessoas.

A EPI argumenta que a política é um processo institucionalmenteestruturado, não só porque as instituições plasmam as ações políticasdas pessoas, dadas as suas motivações e percepções, como também por-que influenciam a percepção que elas têm de seus próprios interesses,dos limites legítimos da política e dos padrões comportamentais legíti-mos em política. Se não quebrarmos o molde neoliberal e não virmosque as instituições tanto restringem o comportamento das pessoas quantoconstituem suas motivações e percepções, nossa compreensão da políti-ca continuará sendo tendenciosa e incompleta.

4 Observações conclusivas

Neste trabalho, depois de mostrar as contradições internas da visãoneoliberal do papel do Estado, as quais derivam das tensões entre os com-ponentes neoclássico e austro-libertário, examinamos criticamente al-guns de seus conceitos e pressupostos básicos do ponto de vista institu-cionalista. Levantamos quatro pontos principais: a definição de mercadolivre, a definição e as implicações de falha de mercado, a hipótese da pri-mazia do mercado (especificamente a visão de que este é lógica e tem-poralmente anterior às outras instituições, inclusive ao Estado) e a aná-lise da política.

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A minha principal crítica à análise neoliberal do papel do Estado nãoé que suas recomendações sejam excessivamente antiintervencionistas,como alegam alguns críticos. A minha principal objeção é que o própriomodo pelo qual ela encara o mercado, o Estado, as instituições e a políti-ca, assim como suas relações mútuas, é altamente problemático. Portanto,sugeri que não se podem superar as limitações do discurso neoliberal arespeito do papel do Estado procurando modelos mais intervencionistasdentro do molde neoliberal, mas unicamente quebrando esse molde edesenvolvendo um arcabouço alternativo que tenha as instituições e apolítica em seu núcleo analítico. Depois de propor que se denomine essearcabouço economia política institucionalista (EPI), esbocei como a suaanálise do mercado, do Estado e da política difere da oferecida pelo dis-curso neoliberal.

A EPI é uma abordagem “político-econômica” porque, tal como aanálise neoliberal, enfatiza o papel dos fatores políticos na determina-ção da política estatal. No entanto, a economia política da EPI vai muitoalém de sua correspondente neoliberal à medida que sublinha a nature-za fundamentalmente política do mercado e aplica a lógica político-eco-nômica à análise do mercado, e não só à do Estado. Ao mesmo tempo, aEPI é uma abordagem “institucionalista” porque, tal como o ramo neo-institucionalista da economia neoliberal, realça o papel das instituiçõesque afetam as ações humanas, inclusive as que estão no interior ou ro-deiam o Estado. Sem embargo, o institucionalismo da EPI vai muito maisalém do da NEI, à medida que enfatiza a “anterioridade temporal” dasinstituições sobre os indivíduos (não a anterioridade temporal dos indi-víduos sobre as instituições, como faz a NEI) e que não vê as instituiçõescomo simplesmente “coercivas” do comportamento individual (como naNEI), mas também como “constitutivas” das motivações individuais.

Admito que este artigo é apenas o primeiro passo no caminho poten-cialmente longo e laborioso da economia política institucionalista ple-namente florescida, sobretudo porque ainda não se desenvolveu cabal-mente o amplo arcabouço institucionalista que apoiará tal abordagem.Contudo, espero que o artigo tenha o útil papel de propor uma nova agen-da de pesquisa que nos permita quebrar o molde do atual debate a res-peito do papel do Estado estabelecido pelo muito poderoso e informativo,mas fundamentalmente falho e desnorteante, discurso do neoliberalismo.

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Parte IIAgricultura e agroindústria

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5A dialética do progresso social:

a luta contínua pela igualdade na Índia rural

Jan Breman1

Introdução

Há algumas décadas, a reforma agrária era um dos temas mais assí-duos nas discussões sobre como promover o desenvolvimento. O inte-resse pelo que habitualmente se denominava “questão agrária” desapa-receu há um bom tempo; quando muito, ela é mencionada em publicaçõesque fazem um apanhado retrospectivo das grandes questões que domi-naram a agenda do desenvolvimento nas décadas de 1950 e 1960. O histo-riador anglo-australiano D. A. Low (1996) publicou um estudo históri-co desse tipo, examinando a natureza e as conseqüências da redistribuiçãoda propriedade agrária empreendida por muitos países asiáticos e afri-canos no terceiro quartel do século XX.

O surgimento de novas nações-Estado na era pós-colonial, que ga-nhou impulso depois da Segunda Guerra Mundial, veio acompanhado

1 Professor da Universidade de Amsterdã.

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de mudanças de longo alcance na ordem social existente. Talvez a maisimportante delas tenha sido o eclipse da classe dos grandes proprietáriosque, durante séculos, formara a base do regime político-econômico des-ses países. As elites nacionais consistiam, em grande extensão, numanobreza da terra que exercia uma influência fortemente feudal sobre aprodução agrária e o estilo de vida rural que a acompanhava. Isso afetounão só as partes do Sul e do Sudeste Asiáticos e da África Ocidental que,em períodos variados, tinham sido objeto da dominação colonial, mastambém países como a Pérsia, a Etiópia e a China, que permaneceramsemi-autônomos na época da expansão do Ocidente.

Qual foi o resultado da tentativa feita entre 1950 e 1980 de operaruma mudança radical na estrutura das relações de propriedade agrária?A primeira parte deste trabalho discute o tratamento dado por Low àquestão. Seu estudo comparativo é de ampla base, porém a visão geralque em tantos casos ele prefere adotar sacrifica a profundidade analítica.Sua principal conclusão é de que pouco se realizou da prometida igual-dade social que era a principal questão nas reformas agrárias dos conti-nentes africano e asiático. Os comentários críticos que faço mais adiantevoltam-se particularmente para essa conclusão e se concentram sobre-tudo na dinâmica rural da Índia do passado e do presente, a sociedade aque Low mais atenção dedica. Entre os outros países estudados figurama Tanzânia, o Quênia, a Uganda, a Etiópia e o Egito na África; e o Irã, aTailândia, a Malásia, o Vietnã, a China, a Indonésia e a Papua-Nova Guinéna Ásia. Todavia, a pressa com que Low os examina dá à narrativa umviés distintamente conjuntural que não faz justiça à necessidade de for-mar uma opinião que reconheça os antecedentes e as identidades extre-mamente variados de todos esses exemplos. Na segunda metade do pre-sente trabalho, substanciarei meus comentários críticos, enfocando ocurso e as conseqüências do processo de transformação rural que prosse-gue na Índia desde que o país se tornou independente há cinqüenta anos.

A abolição da aristocracia agrária

As lideranças políticas no poder no início da década de 1950 puse-ram termo à hegemonia que o reduzidíssimo estrato superior de aristo-

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cracia rural exercia sobre a maior parte dos recursos agrários. Uma gran-de pressão nesse sentido veio das lideranças dos movimentos naciona-listas, que não só se opunham ao domínio estrangeiro, como tambémexigiam que a terra passasse para as mãos do campesinato. A redistri-buição da terra foi particularmente dominada pela necessidade de au-mentar a produção e a produtividade agrárias. Já naquela época, as con-siderações sobre a eficiência econômica tinham muito mais relevânciaque quaisquer argumentos inspirados pelo desejo de justiça social.

Nem sempre tiveram sucesso as ações destinadas a remover a clas-se dos latifundiários. Por exemplo, nas Filipinas e no Paquistão, o seg-mento feudal dominante parece ter perdido pouco do seu poder. Mesmoali, onde isso chegou a ocorrer, não foi de um dia para outro. A Índiainiciou a reforma agrária imediatamente depois de conquistar a indepen-dência, mas, em Bihar, em 1977, precisei viajar várias horas de automó-vel para percorrer a terra ainda pertencente a um único proprietário.Como de costume, a enorme extensão da propriedade estava encobertapelo registro no nome de parentes reais ou fictícios. Contaram-me queesse zamindar exprimiu o desprezo que devotava à lei mandando inscre-ver, no registro de imóveis, o nome de seu cachorro como proprietáriode uma porção de terra, tarefa de que se incumbiu o contador da família.Não obstante, na maior parte da Índia, a oposição demonstrada por es-ses interesses cristalizados à transferência de seus domínios aos queverdadeiramente cultivavam o solo foi destruída efetiva e, em termoscomparativos, silenciosamente. Isso se deveu não só ao pagamento decompensação garantido pelo Estado aos antigos proprietários, como tam-bém à introdução do sufrágio universal. Na nova ordem social que as-sim surgiu, o poder político da antiga elite ficou seriamente reduzido,quando não totalmente extirpado. Então foi possível banir os patronoseconômicos e culturais de outrora como uma classe parasitária. Sua des-classificação pôs fim a um estilo de vida que se caracterizava pela osten-tação do ócio e do consumo.

Sem embargo, não houve nenhuma redistribuição radical dos recur-sos agrários. Grande parte dos pobres do campo, principalmente os cam-poneses sem-terra, continuou excluída de qualquer participação propor-cional no excedente apropriado pela ação estatal. Low inicia seu livro comuma citação de Asian Drama [O drama asiático], o estudo clássico de Gunar

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Myrdal sobre a continuada pobreza na área rural da Ásia, sobretudo naparte sul do continente. À observação de Myrdal de que uma forte classecamponesa se havia manifestado na Índia rural, seguia-se o aviso de queessa tendência ameaçava romper o equilíbrio do poder, tornando as bemmais numerosas classes agrárias subordinadas ainda mais vulneráveis doque antes.

O resultado mais evidente das políticas do pós-guerra talvez tenhasido o fortalecimento dos estratos superiores nos vilarejos e a correspon-dente piora da situação dos meeiros e trabalhadores sem-terra dos estra-tos inferiores da sociedade rural. Todas as medidas políticas significativasadotadas pelo governo para melhorar a agricultura – fossem tecnológicas,fossem institucionais – tenderam a alterar o equilíbrio do poder, na es-trutura rural, em favor das classes privilegiadas (Myrdal, 1968, p.1367).

Inclusão e exclusão

A elite local emergente rejeitou mudanças mais radicais na estruturadas relações de propriedade e, assim fazendo, encontrou um aliado nogoverno, que dependia do apoio dos poderosos locais. Durante algumtempo, essa aliança espúria impediu o progresso do processo de eman-cipação. No entanto, as relações de poder que incitavam a polarizaçãosocial também formaram o início de um avanço econômico. A forte clas-se camponesa tornou-se a base de uma estratégia capitalista que susci-tou o necessário crescimento da produção tanto de alimentos quanto deprodutos para a venda. Na opinião de Myrdal, amenizaram-se os efeitosindiscutivelmente injuriosos de tal desenvolvimento, dando à multidãode despossuídos acesso pelo menos às partes ainda não cultivadas dasterras da aldeia. Para ele, mesmo um pedaço de terra ruim bastava paraaliviar um pouco a pobreza daquela gente. Além disso, como pequenosproprietários, eles adquiririam uma nova dignidade essencial para quefossem resgatados daquela situação de intensa miséria (ibidem, p.1382).

No entanto, nem mesmo essa melhora marginal era vista com bonsolhos pelos políticos e pelos formuladores da política. Seu contra-argu-mento era que seria ainda mais difícil mobilizar os camponeses pobrescom alguma propriedade do que os trabalhadores sem-terra. A única

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possibilidade de aliviar a crescente pressão sobre a base de recurso ruralera estimular o deslocamento da mão-de-obra excedente do campo paraas cidades, onde se requeria com urgência a sua presença como força detrabalho industrial. Tal cenário não dava margem para a progressiva sub-divisão das escassas terras agricultáveis entre a população total da aldeia.Fazê-lo seria contraproducente em termos econômicos, mesmo do pon-to de vista do interesse próprio dos camponeses subalternos excluídosda redistribuição.

Verificou-se uma transformação bem mais radical nos países queadotaram a coletivização da propriedade da terra. Decidiu-se por esse tipode estrutura socialista na Tanzânia, na China e no Vietnã, por exemplo.Os vagos planos traçados pela Índia em tal direção jamais foramimplementados ou nem mesmo traduzidos num claro arcabouço políti-co. Quando muito, incentivou-se a formação de cooperativas agrícolasque só em casos excepcionais chegaram a ser gestão agrária. O forneci-mento de crédito e as vendas de fertilizantes passaram a ser os objetivosmais importantes, porém mesmo essas iniciativas de caráter semipúblicoacabaram tendo pouco êxito.

Tanto quanto ocorreu alguma redistribuição real do excedente deterra na Índia, muito menor no tamanho e na abrangência do que se pro-clamou, ela veio acompanhada ou foi precedida pela redução dos arran-jos de arrendamento e parceria. A característica mais substancial dessasrelações de dependência era o lavrador ser forçado a entregar uma parteda produção ao titular da propriedade, fosse in natura, fosse em dinhei-ro. A transferência de títulos de propriedade ao lavrador contribuiu como avanço de uma formação social camponesa forte e mais autônoma. Atéentão, a classe-casta ficara à sombra da aristocracia agrária que, em seumodus operandi, costumava transcender a economia do vilarejo. Tendo selivrado da sujeição a essa classe superior, a vanguarda camponesa emer-gente tratou de ocupar o espaço político e econômico vacante. Os queconseguiam galgar uma posição de domínio local geralmente eram mem-bros da mesma casta. Ao lançar a Revolução Verde, as autoridades depo-sitaram muita esperança nessa classe social equipada com uma quanti-dade de terra suficiente para produzir um excedente maior. Rotuladosde “agricultores progressistas”, coube-lhes a prioridade na alocação dediversos insumos, como o crédito, as sementes melhoradas, os fertili-

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zantes e os defensivos agrícolas. Também foi esse grupo-alvo quem maislucrou com a expansão da área irrigada e com os subsídios com que seestimulou a introdução de tratores, bombas motorizadas e outra maqui-naria nova.

Mesmo antes de Myrdal, Thomer e Wertheim estavam entre os quechamaram a atenção para a escolha, na Índia, de uma política agrária quefavorecia os que já eram mais prósperos, não a classe muito mais nume-rosa dos pequenos proprietários e trabalhadores sem-terra.2 Low repetea conclusão a que muitos chegaram antes dele, nomeadamente, de que aimplementação do programa de reforma agrária foi muito menos drásti-ca do que prometia o seu planejamento. A alteração de curso significouque a práxis agrária seguiu as linhas capitalistas, não as socialistas.

A ascensão de uma classe-casta dominante

Ao sintetizar alguns estudos da aldeia indiana publicados nos anos60 e 70, Low menciona a atenção dada pelos autores a uma categoria deproprietários rurais à qual pertencia uma reduzida minoria, mas que pos-suía a metade ou mais de toda a área cultivável. Em sua maior parte, tra-tava-se de membros da casta dominante na localidade, um nome genéricodado a essa influente classe social pelo antropólogo Srinivias.

Sua mobilidade ascendente se deveu ao desaparecimento da antigaaristocracia agrária? Sem dúvida, foi esse o caso em algumas partes dopaís, mas Low observa que, no sul da Índia, é possível rastrear até umpassado bem mais remoto a presença de castas dominantes no âmbitodo vilarejo. Portanto, não é em toda parte que só nas últimas décadaspassou a existir uma nova elite camponesa. Contudo, pode-se asseverarque, mesmo nos lugares em que ela apareceu muito mais cedo, sua pre-sença na paisagem rural era menos perceptível. Segue-se daí que o eclip-

2 Em aula dada em 1960, Thomer, um perspicaz observador da situação rural, afirmou que oEstado indiano parecia incentivar mais o crescimento do capitalismo que o do socialismo.Alguns anos depois, ele substanciou essa tese com um raciocínio convincente. Ver Thorner(1962, cap.1; 1980a e 1980b). O ensaio de Wertheim “Betting on the Strong” (1964, cap.12)discute a dinâmica da Ásia como um todo, mas, nesse amplo arcabouço, dá muita atençãoàs mudanças em curso na Índia.

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se da antiga notabilidade supralocal provocou o aumento tanto da visi-bilidade social quanto do alcance dos detentores do poder local. No fimdo período colonial, fracassaram as tentativas das autoridades britânicasde cooptar essa elite camponesa localizada e transformá-la na colunavertebral do Estado colonial. Low cita fontes para prová-lo, todas elasreferentes ao subcontinente sul-asiático. Uma tentativa semelhante, feitano começo do século XX nas Índias Orientais Holandesas, onde as auto-ridades de uma região de Java impuseram um piso agrário, privando oscamponeses pobres de suas propriedades e anexando-as às de seusconcidadãos já mais favorecidos, ficou igualmente frustrada.3

O aumento da prosperidade libertou os maiores proprietários ruraisda simplicidade, senão da frugalidade, da vida anterior e, o que é igual-mente importante, da necessidade de trabalhar a própria terra. Nas últi-mas décadas, seu estilo de vida tornou-se mais confortável e opulento, oque se expressa em melhores moradias e num nível de consumo muitomais alto. Esse novo estilo de vida se destaca pela tendência a rejeitartodo e qualquer esforço físico pesado. Sempre que possível, eles substi-tuem o próprio trabalho no campo, assim como o dos familiares, pelo deempregados contratados. A propriedade de mais capital agrário do que amassa de pequenos lavradores explica por que os membros da classe-casta dominante são caracteristicamente conservadores na atitude polí-tica. Eles aprenderam a eliminar de suas práticas religiosas todo e qual-quer aspecto que se afaste do código cultural prescrito. Dão muito apoioà purificação do hinduísmo numa direção que ultrapassa a ortodoxia. Aafirmação e a articulação do domínio local fortaleceram-lhes a auto-esti-ma, mas sem torná-los mais sofisticados no trato com as outras pessoas.Por maior que seja a sua autoconfiança, eles não têm tolerância para comas opiniões e os interesses dos demais. Por exemplo, não conseguemcompreender que se deva tributar a sua acrescida renda agrária.

Esse poder e essa estima recém-adquiridos são ostentados numa are-na que ultrapassa os limites do meio aldeão. Os figurões locais exibem

3 As fontes mencionadas por Low (1977) incluem um de seus próprios estudos históricos,no qual ele discute o apoio dado ao movimento de independência pelos proprietários ru-rais dominantes da Índia britânica. Sobre a ambição das autoridades das Índias OrientaisHolandesas de formarem uma classe média agrária e usá-la para reverter a crescente ondade nacionalismo, ver Breman (1983).

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sua mobilidade ascendente, iniciada já no fim da era colonial, mediantea generosa representação tanto na máquina política quanto no aparatogovernamental no âmbito regional (distrito e Estado) e no nacional. Nesseaspecto, Low chama a atenção para Charan Singh como expoente ecorporificação dessa dinâmica. Como político e formulador de políticas,esse homem coroou sua carreira com uma efêmera passagem pela chefiado governo indiano. Singh passou a vida servindo os interesses dos cam-poneses latifundiários, sempre descrevendo-os como pequenos proprie-tários rurais que precisavam de defesa contra um Estado que os queriaprivar da terra. É o que teria ocorrido se se houvessem implementado osprojetos de empresas agrícolas coletivas. Nesse caso, aos camponeses quese recusassem a abrir mão de sua liberdade não restaria senão a alterna-tiva de migrar para as favelas das grandes cidades. Juntamente com pes-soas de igual mentalidade no Partido do Congresso, Charan Singh (1986)conseguiu impedir a socialização dos meios de produção agrários. E ofez advogando uma reforma agrária que resultasse e ajudasse a criar umaclasse kulak. Ao mesmo tempo que afirmava o princípio da propriedadeprivada, essa classe de proprietários rurais autônomos recebeu a missãode salvaguardar a paz política no campo contra os proponentes da ideo-logia da luta de classes. Retrospectivamente, Singh (1986) afirmou a suasatisfação porque:

Com a multiplicação do número de proprietários independentes, sur-giu uma sociedade rural de “meio-termo”, estável, uma barreira contra oextremismo político. É justo concluir que a reforma agrária desinflou asvelas dos destruidores da paz, dos adversários da ordem e do progresso.4

Após a independência, a Indonésia não introduziu nenhuma altera-ção direta na distribuição dos recursos agrários. Não houve necessidadedisso na maioria das províncias em que a densidade da população erademasiado baixa para que houvesse uma grande pressão sobre a terraagricultável, ao passo que as levas cada vez maiores de colonos chegadosde outros lugares podiam receber terras devolutas e torná-las aptas para

4 Embora o livro tenha sido publicado em nome de Singh, é evidente que o texto é obra deum ghost-writer.

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o cultivo. Na densamente povoada Java, fazia tempo que se haviam es-gotado os recursos agrários. Com relação a essa ilha fértil, o período colo-nial desenvolvera a imagem de uma sociedade rural formada por umamassa quase homogênea de pequenos proprietários dedicados à agricul-tura intensiva, ajustando-se quase perfeitamente ao modelo de Chayanovda pequena produção de commodity. O que não se levou em conta, po-rém, foram as extensas áreas monopolizadas pela plantation administra-das por ocidentais e voltadas para a exportação, produzindo em rotaçãoanual (cana-de-açúcar) ou em cultivos semipermanentes (café e chá). Aterra que restava para a economia propriamente camponesa também eradistribuída muito mais desigualmente do que costumavam reconheceros relatórios dos governos colonial e pós-colonial. Isso só ficou patentequando o Partido Comunista da Indonésia (PCI) passou a pressionar paraque se fixasse uma área máxima de propriedade por família e se redistri-buísse o excedente que ficaria disponível aos pobres do campo e aos sem-terra. A implementação da Lei Agrária de Base, de 1960, foi ainda maismorosa que sua preparação iniciada nos anos anteriores. A fim de aceleraro processo de redistribuição, o PCI convocou a ação unilateral, o que resul-tou na ocupação das terras que os grandes proprietários se recusavam adividir. Essa campanha levou a uma polarização crescente no campo eacabou resultando num golpe de Estado. Pouco depois da tomada dopoder pelos militares, em 1965, seguiu-se a destruição do PCI e de suasorganizações de frente. A “operação limpeza” pelo regime da Nova Ordemcastigou não só os dirigentes e os militantes do PCI, como também seusadeptos marginais. Conta-se que mais de meio milhão de pessoas per-deram a vida; muito maior foi o número dos que passaram muitos anosna prisão, geralmente sem nenhuma forma de procedimento judicial.

�Eu é melhor que nós�

Nos países da África e da Ásia pós-coloniais em que o poder estatalse fundou no socialismo, a liderança política procedeu à coletivização dapropriedade da terra de um modo ou de outro. Isso se aplicou, por exem-plo, à China e ao Vietnã, na Ásia, e à Tanzânia e à Etiópia na África. En-tretanto, o que esse novo regime não conseguiu realizar foi o esperado

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aumento da produção agrícola. Tal como já havia acontecido na UniãoSoviética, a produção e a produtividade desse setor primário da econo-mia estagnaram-se a um nível bastante baixo. Na prática, a lenta e hesi-tante redistribuição da terra não melhorou a qualidade de vida de gran-des segmentos do campesinato, que permaneceram excluídos dessaoperação. Low atribui o impasse a que se chegou na África à resistênciaeficaz dos fortes proprietários rurais. Apesar da pressão que sofreram,eles conseguiram manter furtivamente o domínio. Em alguns casos comrelutância (Nyerere), em outros genuinamente convertidos ao conceitode mercado para liberar o empresariado (Mengistu), os dirigentes da ÁfricaOcidental abandonaram o projeto de desenvolver seu país e seu povo pelarota socialista.

Low, naturalmente, não deixa de observar que uma mudança seme-lhante está em curso na China e no Vietnã e prosseguirá no futuro. Tam-bém nessa parte da Ásia, tudo indica que a “descomunização” do uso daterra, na década de 1980, deteve a tentativa anterior de construção deuma sociedade socialista e passou a sinalizar o caminho do modo de pro-dução capitalista não só, mas também, no campo. Aparentemente, asconsideráveis diferenças em termos de prosperidade nada têm de incom-patível com a nova interpretação da doutrina socialista. O ganho pessoaljá não é considerado pernicioso, e sim louvável; e o enriquecimento doindivíduo é tido como muito positivo, inclusive porque também atendeaos interesses do Estado. Há alguns anos, ao defender tese em Amster-dã, um doutorando chinês reportou-se à pesquisa empírica que fez emseu vilarejo natal. Os antigos latifundiários não sobreviveram à revolu-ção ocorrida meio século antes, mas a punição que eles sofreram porexplorar e oprimir os camponeses não impediu seus filhos de assumir,recentemente, a administração da aldeia como magnatas locais.

Ansiosos, os pequenos proprietários lhe perguntaram se era de seprever que eles tornariam a perder sua terra para os atuais detentores dopoder na aldeia (Hongsheng, 1995).

Durante o terceiro quartel do século XX, os dirigentes políticos daÁfrica e da Ásia tentaram realizar reformas de longo alcance, na econo-mia rural, por meio da redistribuição da propriedade da terra. Conquan-to separados entre si por numerosas diferenças nos objetivos e na dire-ção, na teoria e na prática, sua ambição comum era erigir uma ordem

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social, para a massa da população do campo, que se baseasse essencial-mente na igualdade. Em alguns casos, a reforma agrária não foi além dopapel em que a escreveram ou acabou deixada de lado após uma negli-gente tentativa de implementação. Em outros, a terra acima do teto per-mitido foi efetivamente desapropriada, mas a mudança radical na proprie-dade não chegou a afetar a vida dos camponeses pobres e dos sem-terra,e, nesse sentido, também foi incapaz de realizar os objetivos propostos.Apesar das grandes diferenças nos caminhos tomados, há evidência deuma surpreendente semelhança no resultado, isto é, a não-materializaçãoda igualdade prometida. Como explicação para esse resultado frustran-te, Low cita um ditado popular etíope: “Eu é melhor que nós”. Bastouum esforço comparativamente modesto para eliminar a antiga elite desenhores da terra, mas a resistência mostrada pelos grandes proprietáriosrurais foi muito mais intensa e tenaz. A influência dessa poderosa classecamponesa, agora unida e operando numa esfera muito mais dilatada quea mera economia aldeã, bloqueou muitas reformas radicais do sistemarural ainda em estágio inicial ou interrompeu-lhes a implementação.

Vislumbre de uma miragem igualitária

O século XX se propôs a ser a era da emancipação do homem co-mum, do camponês trabalhador, mas precariamente equipado. Elevá-loa uma vida mais digna, mediante a igualdade, passou a ser a missão dosmovimentos nacionalistas, das organizações trabalhistas, dos sindicatosrurais e das associações de mulheres. Estas e outras formas de ação co-letiva pediam apoio maciço em termos de base na luta pela realização daigualdade social. Em todos os casos discutidos, partiu-se do princípio deque o Estado regulamentaria a redistribuição dos recursos agrários, cum-prindo a promessa de que os lavradores comuns teriam mais controlesobre os meios de produção. Porém raramente chegou-se a isso. Nospaíses africanos e asiáticos, a pressão exercida durante o terceiro quarteldo século XX para reduzir os contrastes na zona rural não resultou numadistribuição mais proporcional da terra no âmbito local e, aliás, acabouem um pouco mais que o “vislumbre de uma miragem igualitária”. É comessas palavras que Low arremata o seu livro. Embora ele próprio seja

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oriundo e ainda tenha vínculos com a elite fundiária do seu país de ori-gem, é evidente que teria gostado de chegar a uma conclusão mais espe-rançosa acerca do que os pobres do campo e o campesinato sem-terraganharam com a reforma do regime agrário.

Acaso os sistemas sociais baseados na igualdade são um apanágioexclusivo da civilização ocidental? Essa visão convencional, fortementeinspirada em noções orientalistas, voltou a ganhar predileção nos últi-mos anos. Huntington (1996), adotando uma abordagem geopolítica,prevê uma colisão entre diversas culturas mundiais, a maior parte delasasiáticas, e o Ocidente livre, essencialmente formado pelo alinhamentodos países do Atlântico Norte e seus rebentos de igual mentalidade emoutras partes do mundo. Na opinião desse cientista político, a liberda-de, a igualdade e a tolerância (que têm forma concreta nos direitos hu-manos, na democracia política e no espaço individual) não são valoresuniversais, e sim conquistas da comunidade dos povos euro-americanos.Tais características singulares se opõem fundamentalmente à herançahierárquico-autoritária de tendência fortemente comunitária que deter-mina a estrutura e a cultura das civilizações não-ocidentais. A alegaçãode Huntington, segundo a qual as relações internacionais estão demar-cadas pela fissura que divide o mundo em culturas de primeira e de se-gunda ordem, não deixa de ser uma convocação ao combate ao longodessas linhas. Os exames críticos chamaram a atenção para o pensamentohegemônico que serve de base a essas doutrinas e a sua inclinação etno-cêntrica inspirada pelo interesse próprio.

Pouca coisa, no livro de Low, confirma a hipótese de que todas astentativas das últimas décadas de realizar a igualdade nas áreas rurais daÁsia e da África encalharam em sua incompatibilidade com uma ordemsocial e uma ideologia que, em princípio, não toleram a divisão mais oumenos igualitária da propriedade, do poder e do prestígio. Mais que eminibições culturais, Low tende a procurar o motivo da rejeição da normada igualdade na resistência ativa dos interesses consolidados a uma dis-tribuição mais justa dos recursos. No entanto, a prioridade que essa aná-lise dá a fatores político-econômicos suscita outra pergunta. Por que aspressões de baixo contra o domínio e as políticas de exclusão não assu-miram proporções muito maiores?

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A dialética do progresso social...

Os resultados de minhas próprias pesquisas locais, na zona rural deGujarat do início da década de 1960, são vistos por Low como a confir-mação da sua a tese de que a erosão do clientelismo nas relações entreos camponeses dominantes e seus clientes sem-terra não levou a umacoesão maior em razão da súbita ascensão da solidariedade nas classessubalternas do campo. A transformação da dependência vertical de cas-ta não se materializou numa solidariedade de classe mais articulada. Asmassas pobres da Índia rural conservaram durante muito tempo a habi-tual confiança nas grandes promessas dos políticos “congressistas” deque sua privação e discriminação chegariam ao fim, mas essa confiançaacabou desaparecendo. A guinada para a direita do Partido do Congres-so, nos últimos anos, foi mais do que compensada pela perda do tentadoe testado eleitorado dos setores socialmente vulneráveis.

Ali onde os movimentos radicais tentaram melhorar o destino dospobres do campo e dos sem-terra promovendo a luta armada, em váriaspartes da Índia, os grupos-alvo ofereceram apenas um apoio recalcitran-te aos ativistas. Ademais, tais lutas foram e ainda são brutalmente su-primidas pelos grandes proprietários rurais, já com seus próprios ban-dos de mercenários, já em cumplicidade aberta ou velada com o braçoforte do Estado. Na área rural do sul da Ásia, sempre se desafiou o mo-nopólio da violência por parte do governo como uma precondição neces-sária à manutenção legal da paz e da ordem. Apesar dos sinais de resis-tência crescente das classes rurais oprimidas, discutidos em numerosaspublicações dos anos 70, a anunciada sublevação não ocorreu até agora.Isso indica a eficácia das muitas práticas de intimidação e terror? Assimsendo, acaso o fracasso da reconstrução da sociedade rural com base naigualdade pode ser encarado, como afirma Low, como uma confirmaçãodo postulado do homo hierarchicus?

À luz dessa doutrina antiigualitária que, segundo o antropólogoDumont (1970), é um princípio organizador da civilização hindu do pas-sado e do presente, não surpreende que não se tenha praticado umaredistribuição eqüitativa da propriedade da terra no sul da Ásia pós-colo-nial. Os adeptos da tese de Dumont tenderiam a achar o fracasso da re-forma agrária menos surpreendente do que a promessa de reforma cabalda ordem rural com a qual ela foi anunciada. Nesse caso, por que se fez

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semelhante promessa, afinal? Low só levanta essa questão-chave no fimdo livro, mas não logra explicar a discrepância entre política social e prá-tica social.5 Sua análise anterior está correta? Para mim, não inteiramente.A segunda parte deste trabalho é um comentário crítico sobre a plausi-bilidade dos argumentos apresentados por Low. Ao contestar sua teseprincipal sobre o novo desaparecimento da tendência inicial à igualdadena África e na Ásia na era pós-colonial, restrinjo-me à discussão da dinâ-mica social da Índia rural. Meu enfoque ainda mais específico é sobre asituação dos camponeses sem-terra, cuja existência e o trabalho pare-cem tão miseráveis como nos primeiros dias da independência, há meioséculo. Mas será que é assim?

Referências bibliográficas

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DUMMONT, L. Homo Hierarchicus: The Caste System and its implications.London, 1970. University of Chicago Press.

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LOW, D. A. (Ed.) Congress and the Raj: facets of the Indian Struggles 1917-1947.London: Heinemann, 1977.

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5 “Não está totalmente claro de onde vieram os primeiros e principais impulsos do ímpetoigualitário” (Low, 1996, p.123).

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6Velhos e novos mitos do rural brasileiro:

implicações para as políticas públicas

José Graziano da Silva1

O objetivo deste texto é apresentar propostas de políticas a partirdas principais conclusões obtidas pelo Projeto Rurbano2 que exploroubasicamente os tipos de ocupações das pessoas residentes nas áreas ru-rais; e as rendas das famílias agrícolas, pluriativas e não-agrícolas resi-dentes nas áreas rurais a partir dos dados das PNADs para o período 1992/1999.3 Estamos iniciando a fase III do projeto, que se prolongará até 2003,

1 Professor titular de Economia Agrícola do Instituto de Economia da Unicamp, bolsista doCNPq e consultor da Fundação Seade ([email protected]). Agradeço as contribui-ções da Profa. Maria José Carneiro e do Dr. Mauro Del Grossi à versão apresentada no II Semi-nário do Projeto Rurbano, IE/Unicamp, outubro/2001 que foi publicada na revista EstudosAvançados, n.43, p.37-50, set./dez. 2001.

2 É um projeto temático denominado “Caracterização do Novo Rural Brasileiro, 1981/1999”que conta com financiamento parcial da Fapesp e Pronex-CNPq, que pretende analisar asprincipais transformações ocorridas no meio rural em onze unidades da federação (PI, RN,AL, BA, MG, RJ, SP, PR, SC, RS e DF). Consulte nossa home page na internet http://www.eco.unicamp.br/projetos/rurbano.html.

3 As principais publicações estão disponíveis na nossa home page e em Campanhola & Grazianoda Silva (2000).

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em que daremos prioridade aos estudos de caso e à análise dos dados doCenso Demográfico de 2000.

De forma muito sintética, podemos dizer que nossas pesquisas têmcontribuído para derrubar alguns velhos mitos sobre o mundo rural brasi-leiro, mas que, infelizmente, podem estar servindo também para criaroutros novos.

Os velhos mitos

O rural é atrasado

Mostramos que o rural não se opõe ao urbano como símbolo damodernidade. Há no rural brasileiro ainda muito atraso e violência, porrazões, em parte históricas, relacionadas com a forma como foi feitaa nossa colonização, baseada em grandes propriedades com trabalhoescravo.

Mas há também a emergência de um novo rural, composto tanto peloagribusiness como por novos sujeitos sociais: centenas de neo-rurais, queexploram os nichos de mercados das novas atividades agrícolas (criaçãode escargot, plantas e animais exóticos etc.); milhares de moradores decondomínios rurais de alto padrão e de loteamentos clandestinos, mui-tos empregados domésticos e aposentados, que não conseguem sobre-viver na cidade com o salário mínimo que recebem; milhões de agricul-tores familiares e de famílias pluriativas e de conta-própria não-agrícolas,além dos milhões de trabalhadores rurais permanentes em atividadesagrícolas e não-agrícolas; e ainda milhões de sem-sem, excluídos e desor-ganizados, que além de não terem terra, também não têm emprego fixo,não têm casa decente para morar, não têm saúde, não têm educação enem mesmo pertencem a uma organização como o MST para poder ex-pressar suas reivindicações.

Infelizmente essa categoria dos “sem-sem” não vem se reduzindoapesar de se ter acelerado o assentamento das famílias sem-terra, especial-mente a partir da segunda metade dos anos 80. Isso se deve basicamenteà queda das rendas agrícolas especialmente após o Plano Real, pela faltade políticas de apoio mais efetivas aos agricultores familiares, à exceçãoda Política de Previdência Social Rural e mais recentemente do Pronaf.

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Os dados da PNAD de 1999 permitem uma aproximação desse con-tingente de pobres rurais: são quase três milhões de famílias (ou quinzemilhões de pessoas) sobrevivendo com uma renda disponível per capitade um dólar ou menos por dia (R$ 34,60 mensais ao câmbio de setem-bro/1999).4 Mais da metade dessas famílias de pobres rurais tem suasrendas provenientes exclusivamente de atividades agrícolas: são famíliaspor conta própria (30% do total) com áreas de terras insuficientes e/oucom condição de acesso à terra precária (parceiros, posseiros, cessio-nários) ou famílias de empregados agrícolas (25%), a grande maioria semcarteira assinada.

Um terço dessas famílias de pobres rurais mora em domicílios semluz elétrica, quase 90% não têm água canalizada, nem esgoto ou fossaséptica. E em quase metade dessas famílias mais pobres, o chefe ou pes-soa de referência nunca freqüentou a escola ou não completou a primei-ra série do ensino fundamental, podendo ser considerado analfabeto.

Mas, infelizmente, nada disso é “privilégio do velho rural atrasado”:dos 4,3 milhões de famílias pobres residentes em áreas urbanas nãometropolitanas (pequenas e médias cidades), 70% também não têm redecoletora de esgoto ou fossa séptica, quase 30% não têm água encanada,embora menos de 5% não tenham luz elétrica no domicílio. E em umterço delas, o chefe de família também pode ser considerado analfabeto.Fica patente apenas a diferença entre rural e urbano no que diz respeitoao acesso à energia elétrica, que é um dos serviços básicos fundamentaishoje sem o que fica difícil falar em modernidade. E não nos iludamos: omaior acesso das famílias urbanas pobres à energia elétrica deve-se aos“gatos” – ligações clandestinas às redes de energia elétrica secundária –, oque não é possível na zona rural onde as linhas primárias têm voltagemmuito superior.

A conclusão é uma só: a origem do atraso e mais especificamente daviolência é a pobreza, seja ela rural ou urbana, nova ou velha. E o comba-te à pobreza no Brasil, por sua dimensão e causas estruturais, não podeser enfrentado apenas com base em política sociais compensatórias do

4 Imputando-se o valor do autoconsumo agrícola e descontando-se os pagamentos de alu-guel e da prestação da casa própria quando fosse o caso, essa metodologia adotada peloBanco Mundial foi desenvolvida por Takagi et al. (2001).

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tipo Renda Mínima, ainda que estas sejam também fundamentais comomedidas paliativas para determinados grupos sociais e regiões mais ca-rentes em organização e infra-estrutura. É por isso que programas de com-bate à fome e à miséria, por exemplo, têm de ser desenhados em conjuntocom programas de acesso à terra e apoio à agricultura familiar, como indi-cado no Projeto Fome Zero.5 Caso contrário, corre-se o risco de arrancarcom uma mão o que se plantou com a outra, como é o caso da política deassentamentos rurais do governo FHC que não consegue nem mesmoreverter a tendência de redução dos agricultores familiares no país.

FIGURA 1 – O mundo rurbano.

O rural é sinônimo de agrícola

Apesar de o Dicionário Aurélio confirmar essa confusão entre um setorde atividades e um espaço geográfico, mostramos que está crescendo onúmero de pequenas glebas (em geral com menos de 2 ha, tamanho domenor módulo rural) que têm muito mais a função de residência rural

5 Disponível no site: www.icidadania.org.br.

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que de um estabelecimento agropecuário produtivo. Mostramos tambémque um número crescente de pessoas que residem em áreas rurais estãohoje ocupadas em atividades não-agrícolas. Os dados da PNAD de 1999(ver Tabela 1) mostram que dos quase 15 milhões de pessoas economi-camente ativas no meio rural brasileiro (exceto a região Norte), quaseum terço – ou seja, 4,6 milhões de trabalhadores – estava trabalhandoem ocupações rurais não-agrícolas (Orna) como serventes de pedreiro,motoristas, caseiros, empregadas domésticas etc. Mais importante queisso: as ocupações não-agrícolas cresceram na década de 1990 a uma taxade 3,7% ao ano – mais que o dobro da taxa de crescimento populacionaldo país.

Tabela 1 – Evolução da população do Brasil,(a) 1981-1999

Milhões de pessoas Taxa de crescimento (% ao ano)

1981 1992 1999 1981/1992 1992/1999

Urbano 85,2 113,4 127,8 2,6 *** 1,7 ***

Ocupados(b) 31,7 46,5 52,8 3,6 *** 1,8 ***

Agrícola 2,6 3,7 3,4 3,3 *** -1,6 ***

Não-agrícola 29,1 42,9 49,3 3,6 *** 2,0 ***

Rural 34,5 32,0 32,6 -0,7 *** 0,2 ***

Ocupados 13,8 14,7 14,9 0,6 *** -0,2 ***

Agrícola 10,7 11,2 10,2 0,4 *** -1,7 ***

Não-agrícola 3,1 3,5 4,6 1,2 *** 3,7 ***

Total 119,7 145,4 160,4 1,9 *** 1,4 ***

Fonte: Tabulações especiais das PNADs de 1981 e de 1992 a 1999, Projeto Rurbano, novembrode 2000.

(a) Não inclui as áreas rurais da região Norte, exceto o Estado do Tocantins;(b) PEA restrita, que exclui os não remunerados que trabalham menos de quinze horas na

semana e os que se dedicam exclusivamente ao autoconsumo.

Enquanto isso, o emprego agrícola, em razão da mecanização dasatividades de colheita dos nossos principais produtos, vem caindo cadavez mais rapidamente, apresentando no período 1992-1999 uma taxa de

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–1,7% ao ano. Nossas projeções indicam que, se continuar nesse ritmo,no ano 2014 a maioria dos residentes rurais do país estará ocupada nes-sas atividades não-agrícolas. Em alguns Estados, como São Paulo, issojá deve estar ocorrendo neste ano de 2002.

Outro dado que confirma a importância das atividades não-agríco-las: a soma dos rendimentos não-agrícolas das pessoas residentes nosespaços rurais supera em 1998 e 1999 os rendimentos provenientes ex-clusivamente das atividades agrícolas, segundo as PNADs. Ou seja, em-bora se saiba que as rendas agrícolas declaradas nas PNADs estão forte-mente subestimadas, os rendimentos não-agrícolas dos residentes emespaços rurais no Brasil superam os rendimentos agrícolas totais desde1998 (Ver Gráfico 1).

Mostramos também que nas áreas rurais podem ser encontrados osmesmos setores e ramos de atividades existentes nas áreas urbanas. Maisainda: a conformação produtiva das cidades em termos de ocupaçõesgeradas pelos diferentes ramos e setores de atividades econômicas não-agrícolas afeta as áreas rurais que lhe são contíguas. Ou seja, numa dadaregião a composição setorial do emprego rural não-agrícola não diferemuito do que existe no urbano. O que significa que tanto as indústriascomo os prestadores de serviços há muito não respeitam mais essa arbi-trária linha que delimita os perímetros urbanos.

Por que então manter ainda essa anacrônica separação entre urbanoe rural para efeito de delimitar setores de atividades econômicas? Antesa linha do perímetro urbano servia para impedir a circulação de determi-nados animais, como porcos, por questões de saúde pública. Hoje, mes-mo as áreas rurais têm restrições à criação de animais soltos ou mesmoestabulados. Por que então continuar separando espaços que o capital jáunificou como produtor de valores de troca, de mercadorias? Por queexistem valores de uso distintos? Por que a relação com a natureza não éa mesma existente nas cidades? Mas isso justifica que sejam submetidasa um ordenamento jurídico e institucional distinto?

O êxodo rural é inexorável

As estatísticas mais recentes do Brasil rural revelam um paradoxoque interessa a toda a sociedade: o emprego de natureza agrícola definha

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em praticamente todo o país, mas a população residente no campo vol-tou a crescer, ou pelo menos parou de cair. Esses sinais trocados suge-rem que a dinâmica agrícola, embora fundamental, já não determina so-zinha os rumos da demografia no campo. O que explica esse novo cenárioé o crescimento do emprego não-agrícola no campo, ao mesmo tempoque aumentou a massa de desempregados, inativos e aposentados quemantêm residência rural (ver Gráfico 2). E grande parte das famílias ru-rais com aposentados abriga também pessoas desempregadas em idadeativa, o que faz crer que a aposentadoria rural está servindo também comouma espécie de “colchão amortecedor” para o desemprego no país.6

Se é verdade que ainda persiste algum êxodo, especialmente na Re-gião Sul e entre os jovens e as famílias com filhos menores, o fluxo emdireção às cidades maiores já não tem força para condicionar esse novopadrão emergente de recuperação das áreas rurais da maioria das regiõesdo país. Os dados das PNADs mostram que a população rural chegou aofundo do poço em 1996 (ano de contagem populacional), com 31,6 mi-lhões de pessoas,7 mas a partir daí vem se recuperando, tendo atingido32,6 milhões em 1999, ou seja, quase um milhão de pessoas a mais. Issosignifica uma taxa de crescimento anual da população rural de 1,1% aoano, muito próximo do crescimento da população total de 1,3% a.a. nomesmo período. No Nordeste, as duas taxas se igualaram (1,1% a. a.),e, em São Paulo, o crescimento da população rural foi o dobro do total(3% a.a. contra 1,5% a.a.), indicando uma verdadeira “volta aos campos”que não se confunde com uma volta às atividades agrícolas, até porqueparte significativa dessa população passou a residir em áreas rurais pró-ximas às grandes cidades do interior e da capital do Estado.

Na Região Sul, no entanto, a população rural ainda mostra sinais dequeda, especialmente naquelas áreas em que denominamos de ruralagropecuário ou rural profundo. Como já dissemos anteriormente, isso

6 Ver a respeito o excelente trabalho de Delgado & Cardoso Júnior (2000).7 Infelizmente são cada vez maiores as indicações de que os dados da contagem populacional

estão fortemente subestimados. No caso das áreas rurais do interior de São Paulo, por exem-plo, a subestimação fica evidente ao se constatar uma elevação generalizada nas taxas decrescimento populacional entre 1996 e 2000 após terem mostrado fortes quedas entre 1991e 1996. Como a contagem de 1996 foi realizada em conjunto com o Censo Agropecuáriode 1995/1996 e há uma outra pesquisa para as áreas rurais paulistas nesta mesma data(Lupa), é possível evidenciar as regiões mais afetadas.

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atinge mais os jovens – especialmente as mulheres – e as famílias comfilhos pequenos demandando escola e atendimento de saúde. Em am-bos os casos, o que explica a persistência do êxodo rural é o que temosdenominado falta de urbanização das áreas rurais, ou seja, a falta de infra-estrutura (principalmente de transportes e luz elétrica) e de disponibili-dade de serviços públicos essenciais, entre os quais se destacam a saúdee a educação, mas não menos importantes os serviços privados de lazer.O que falta, como bem definiu um ex-sem-terra, é poder ser cidadão econtinuar residindo no meio rural, sem ter que mudar para a cidade.8

É perigoso, porém, alimentar ilusões de que “o mercado”, por si só,tenha implantado um novo dinamismo sustentável no campo brasileiro.Mostramos que o inevitável é o êxodo agrícola, que, todavia, pode ser,ao menos parcialmente, compensado com o crescimento do Orna. Se aisso juntarmos os inativos (principalmente aposentados) que buscam asáreas rurais como local de residência, pode ser factível uma política deconter o significativo êxodo rural ainda existente em determinadas re-giões do país, como o Sul. Mas sempre é bom recordar que os desempre-gados residentes em áreas rurais também vêm crescendo rapidamente,mais até que os demais grupos de aposentados e ocupados em ativida-des não-agrícolas. Informações adicionais nos permitem formular a hi-pótese de que grande parte dessas atividades não-agrícolas, que estão sedesenvolvendo nas áreas rurais, não passa de “ocupações de refúgio”contra o desemprego urbano, podendo o fluxo do êxodo rural reativar-se assim que houver algum sinal positivo de retomada do crescimentourbano industrial.

Em razão disso, creio que não é partilhar de nenhuma filosofia ludistapropor uma revisão nos incentivos à mecanização da colheita das gran-des culturas – especialmente café, cana-de-açúcar e alguns grãos, comoo milho. Hoje nem o miserável salário pago aos volantes e bóia-frias con-segue “competir” com os incentivos de programas como o Moderfrota,para não falar das restrições ambientais cada vez mais severas que impe-dem, por exemplo, a queima prévia da cana-de-açúcar no Estado de SãoPaulo, o que inviabiliza a sua colheita manual. E também não há política

8 Tenho insistido nesse significado de urbanizar como dar cidadania. Ver, a respeito, Grazianoda Silva (2001).

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de requalificação profissional que consiga transformar um ex-bóia-friaanalfabeto com mais de 45-50 anos num operário qualificado e muitomenos num “pequeno empreendedor por conta própria”, ainda que issoseja apenas um nome pomposo para um camelô de rua.

Creio que chegou a hora de a sociedade brasileira se definir primei-ro pela manutenção dos empregos agrícolas – ainda que os mais precá-rios – como uma medida transitória para enfrentar a atual crise socialexistente no país. Segundo, por uma política previdenciária rural ativaque não se resumisse à outorga de direitos arduamente conquistados nofinal de uma vida de trabalho. Mas que tornasse possível, por exemplo,uma aposentadoria precoce para os trabalhadores rurais de mais de 50-55 anos, de forma que estes pudessem continuar a produzir parte de suaprópria subsistência. Longe de produzir um apartheid civilizado, a com-binação da produção de subsistência das famílias rurais com o acesso aserviços públicos essenciais poderia ser uma forma de incluir parte des-ses sem-sem no rol dos cidadãos brasileiros.

O desenvolvimento agrícola leva ao desenvolvimento rural

Mostramos que as ocupações agrícolas são as que geram menor ren-da, e que o número de famílias agrícolas está diminuindo, pois elas nãoconseguem sobreviver só de rendas agrícolas. Nem mesmo o número dasfamílias pluriativas, em que os membros combinam atividades agrícolase não-agrícolas, vem aumentando. Dada a queda da renda provenientedas atividades agropecuárias, as famílias rurais brasileiras estão se tor-nando cada vez mais não-agrícolas, garantindo sua sobrevivência portransferências sociais (aposentadorias e pensões) e em ocupações não-agrícolas.

Infelizmente não se podem comparar os rendimentos do períodoanterior ao Plano Real em razão das distorções introduzidas pelas mu-danças monetárias ocorridas na primeira metade dos anos 90. Mas osdados de que dispomos para o período de 1995 a 1999, inteiramente sobvigência do Plano Real, mostram que para as famílias rurais por conta-própria agrícolas e pluriativas, a única parcela da renda familiar per capitaque cresceu significativamente no período foi aquela proveniente dastransferências sociais (+6,7% e +4,9% a.a., respectivamente). A fração

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da renda proveniente das atividades agrícolas (que representa 3/4 ou maisda renda total dessas famílias) caiu tanto para as famílias rurais por con-ta-própria agrícola (–4,2% a.a.) como para as pluriativas (–5,3% a.a.). E,para agravar ainda mais o quadro, as rendas não-agrícolas só crescerampara as famílias rurais por conta própria não-agrícolas, permanecendoestagnadas para as pluriativas (ver Tabela 2).

Tabela 2 – Composição e evolução da renda familiar das famílias porconta própria rurais, Brasil, 1995-99 (valores de set./1999)

Tipo de família Agrícola Não-agrícola Aposenta- Outras RendaAtividade dorias familiares familiar

1999 1995/ 1999 1995 1999 1995 1999 1995 1999 19951999 1999 1999 1999 1999

(R$) % a.a. (R$) % a.a. (R$) % a.a. (R$) % a.a. (R$) % a.a.

Conta própria 194,77 -5,4 *** 139,85 2,9* 72,41 5,4 ** 12,27 4,6 419,30 -1,0

Agrícola 228,56 -4,2 ** – 82,49 6,7 *** 10,10 4,6 321,16 -1,6

Pluriativa 240,49 -5,3 ** 160,97 0,4 60,48 4,9 * 11,41 2,3 473,35 -2,2

Não-agrícola – 563,08 -1,0 60,87 2,3 20,95 5,6 644,91 -0,6

Fonte: Tabulações Especiais do Projeto Rurbano, IE/Unicamp. Maio/2001.***,**,* indicam, respectivamente, 5%, 10% e 20% de confiança, estimado pelo coeficiente de

regressão log-linear contra o tempo.

Em resumo, as famílias agrícolas e pluriativas ficaram mais pobresna segunda metade dos anos 90. É por essa razão que as famílias ruraisestão se tornando crescentemente não-agrícolas. E a queda das suas ren-das per capita só não foi maior pela “compensação” crescente das trans-ferências sociais da aposentadoria e pensões.

Mostramos também que, no caso de países como o Brasil, as deman-das de geração de emprego e renda originadas dos aglomerados urba-nos, independentemente das atividades agrícolas locais, podem vir a teruma importância decisiva para o crescimento das Ornas. Isso porque opaís possui em praticamente todas as suas regiões grandes aglomeradosmetropolitanos que determinam o sentido dos fluxos dos produtos e daspessoas, seja no sentido metropolitano–não-metropolitano, seja no sen-tido urbano–rural. Assim, as atividades agrícolas de uma dada região

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podem ser redefinidas a partir da busca de áreas para lazer, turismo epreservação ambiental, pela população desses grandes centros urbanosque lhe são contíguas às suas áreas rurais. Gera-se assim uma outra di-nâmica de criação de Ornas baseada no que chamamos, em outra opor-tunidade, de “novas atividades agrícolas”,9 como é o caso exemplar dospesque-pagues, das fazendas de caça, da criação de plantas e animais parafins ornamentais etc.

Ou seja, no “novo rural” brasileiro podem-se encontrar também asmesmas “velhas” dinâmicas de geração de emprego e renda associadasaos complexos agroindustriais. Mas, elas não representam mais as úni-cas – e em muitos casos nem mesmo as principais – fontes geradoras deOrnas, especialmente naquelas regiões onde a população rural agrícolaé relativamente pequena, as cidades são muito grandes e uma parte sig-nificativa da população ocupada na agricultura há muito tem domicíliourbano, como ocorre no Centro–Sul do país. Mais importante que isso:nas regiões onde o processo de modernização agropecuária foi mais in-tenso (como é o caso do Estado de São Paulo e da Região Sul, por exem-plo), as atividades agropecuárias geram uma demanda por mão-de-obramuito pequena e quase sempre qualificada, que é atendida por empre-sas de prestação de serviços localizadas nas cidades próximas.

Assim, temos a demanda da população urbana de alta renda por áreasde lazer e/ou segunda residência (casas de campo e de veraneio, cháca-ras de recreio), bem como a prestação de serviços pessoais a elas relacio-nados (caseiros, jardineiros, empregados domésticos etc.); a demandada população urbana de baixa renda por terrenos para autoconstruçãode suas moradias em áreas rurais; e ainda a demanda por terras não-agrí-colas por parte de indústrias e empresas prestadoras de serviços quebuscam o meio rural como uma alternativa favorável de localização para

9 Essas “novas” atividades agrícolas são, no fundo, o resultado da agregação de serviços re-lativamente artesanais, mas de alta especialização e conteúdo tecnológico, a produtos ani-mais e vegetais não tradicionalmente destinados a alimentação e vestuário. Assim, apesarde serem também atividades agropecuárias em última instância, a forma da organização daprodução e, principalmente, o seu circuito de realização assentado em nichos específicosde mercados recomendam que essas “novas” atividades agrícolas sejam tratadas de formaseparada da dinâmica a que engloba a produção agropecuária strictu sensu. E que seja consi-derada também como uma demanda derivada do consumo final das populações urbanas.Ver, a respeito, Del Grossi & Graziano da Silva (2001).

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fugir das externalidades negativas dos grandes centros urbanos (condi-ções de tráfego, poluição etc.).

Essas três demandas expressam dinâmicas distintas – que podería-mos chamar de imobiliárias – e são muito importantes no caso brasileiro,especialmente nas regiões do Centro-Sul que concentram a grande maio-ria da população de rendas mais altas e também a agricultura mais mo-derna. Cada uma delas tem sua especificidade muito marcada e resultaem tipos muito distintos de Ornas gerados. Mas derivam todas de situa-ções em que o elemento fundamental que as impulsiona nada tem a vercom o desempenho das atividades agrícolas que porventura aí se locali-zem. Na verdade, são dinâmicas do Ornas de origem tipicamente urba-nas que são impulsionadas muito mais pelo crescimento das grandes emédias cidades da região onde se inserem que das próprias áreas ruraisonde ocorrem, e não de transformações ocorridas no interior do setoragropecuário. Nesse caso, o motor do crescimento do Ornas não são asmudanças internas do setor agrícola, mas as demandas urbanas por bense serviços não-agrícolas: é isso, em essência, o que há de novo no ruralbrasileiro e latino-americano.10 E reflete, no fundo, uma tentativa deampliar os mercados agrícolas, cada vez mais restritos pela incorpora-ção de novos mercados, na verdade, novas mercadorias que não têm ori-gem agropecuária no seu sentido estrito.

A gestão das pequenas e médiaspropriedades rurais é familiar

A gestão das pequenas e médias propriedades agropecuárias está seindividualizando, ficando apenas o pai e/ou um dos filhos encarregadodas atividades, enquanto os demais membros da família procuram outrasformas de inserção produtiva, em geral fora da propriedade. Também umaparte cada vez maior das atividades agropecuárias, antes realizadas nointerior das propriedades, está sendo hoje contratada externamente porserviços de terceiros, independentemente do tamanho das explorações.

10 Infelizmente esse ponto essencial à compreensão de por que chamamos de “novo rural”não nos parece suficientemente destacado na literatura disponível sobre geração de Ornasna América Latina. Ver, a respeito, o número especial de World Development (v.20, n.3, mar.2001) dedicado ao tema.

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Ou seja, em muitos casos, quem dirige efetivamente os estabelecimen-tos agropecuários hoje não é mais a família como um todo, e sim um (oualguns ) de seus membros. Isso que coloca por terra a idéia de uma divi-são social do trabalho assentada na disponibilidade de membros da fa-mília, distinta de uma divisão do trabalho capitalista, ainda que não in-valide o caráter familiar do empreendimento.

O fato de a mulher rural também sair para trabalhar fora, ainda quecomo doméstica, assim como parte crescente dos filhos (e especialmen-te das filhas), tenciona ainda mais a divisão do trabalho assentada nosatributos individuais dos membros da família, do tipo sexo e idade. Cadavez mais “o mercado” interfere nessa divisão de trabalho no interior dafamília rural, tendo como parâmetro não mais as capacidades (ou dispo-nibilidades) de seus membros, mas as suas necessidades individuais enão as do grupo familiar. Ou seja, multiplicam-se os “projetos pessoais”,e a família passa a ser mais uma das arenas onde esses conflitos sãohierarquizados e/ou compatibilizados (ou não).

O resultado final é que a família rural típica já não se identifica maiscom as atividades agrícolas, nem se reúne apenas em torno da explora-ção agropecuária. A casa dos pais virou uma espécie de base territorialque acolhe os parentes próximos nas ocasiões festivas; e que se trans-forma num ponto de refúgio nas épocas de crise, especialmente do de-semprego, para os que saíram, além de permanecer como alternativa deretorno para a velhice. Além disso, a família tem agora outros “negócios”– em geral não-agrícolas – como parte de sua estratégia de sobrevivência(maioria dos casos) ou mesmo de acumulação para aquelas que anteseram chamadas de camponeses ricos e que agora se intitulam agriculto-res familiares. O patrimônio familiar a ser preservado inclui mais coisasque “as terras”. Em outras palavras, o centro das atividades da famíliarural deixou de ser a agricultura porque a família deixou de ser exclusi-vamente agrícola e se tornou pluriativa ou não-agrícola, embora perma-neça residindo no campo.

Isso não significa em absoluto que “os negócios” deixaram de ter umabase familiar, mas apenas que não giram mais em torno da propalada“agricultura familiar”, o que tem profundas implicações para as atuaispolíticas de apoio à geração de ocupação e renda no meio rural. Por exem-plo: a extensão rural deveria ser menos agrícola – estilo Emateres – e mais

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“empreendedorista” – estilo Sebrae11 – para esse segmento de pequenase médias empresas “viáveis”, para utilizarmos a expressão oficial utili-zada para designar esse estrato superior que vem sendo chamado “agri-cultores familiares” e que por certo exclui a grande maioria dos parcei-ros e arrendatários pobres, especialmente da Região Nordeste.

Os novos mitos

Orna é a solução para o desemprego

Uma análise desagregada das principais ocupações exercidas pelaspessoas residentes em áreas rurais no período de 1992 a 1999 mostraque quase todas as ocupações agropecuárias apresentaram uma forte re-dução, especialmente aquelas mais genéricas como “trabalhador rural”e “empregado agrícola”, que agregam os trabalhadores com menor graude qualificação: cerca de um milhão de pessoas ocupadas a menos em1999 em comparação a 1992.

Ao contrário, quase todas as ocupações rurais não-agrícolas (Ornas)apresentaram um crescimento significativo no mesmo período, acumu-lando mais de 1,1 milhão de pessoas a mais em 1999, como que “com-pensando” a queda das ocupações agrícolas. Destacam-se aqui, também,aquelas atividades pouco diferenciadas, como os empregados em servi-ços domésticos, ajudantes de pedreiro e prestadores de serviços diver-sos, que somados perfazem um terço dos empregos rurais não-agrícolasgerados no período.

Nossos trabalhos têm mostrado que as atividades agrícolas conti-nuam sendo a única alternativa para uma parte significativa da populaçãorural, especialmente dos mais pobres. E que aquela parcela da força detrabalho agrícola que vai se tornando excedente pelo progresso tecno-lógico e pela reestruturação produtiva (substituição de cultivos, por exem-plo) não encontra automaticamente ocupações não-agrícolas onde seengajar. E isso se deve fundamentalmente à inadequação dos atributos

11 É interessante assinalar que o primeiro texto conhecido sobre a importância das ativida-des rurais não-agrícolas foi demandado por instituições envolvidas com o estímulo de pe-quenas e médias empresas urbanas. Ver, a respeito, Anderson & Leiserson (1978) e Chuta& Liedholm (1979).

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pessoais dos trabalhadores agrícolas que são dispensados (homens emulheres de meia-idade sem qualificação profissional e sem escolarida-de formal) para exercerem as Ornas disponíveis. Isso torna cada vez maisimportante as políticas de requalificação profissional e de alfabetizaçãode adulto. Aqui vale um alerta: não devemos nos iludir de que a grandemaioria dos atuais desempregados (ou subempregados) rurais possa vira ser beneficiada por essas políticas no curto prazo, o que não diminui asua importância para as próximas gerações que encontrarão ainda me-nos oportunidades de trabalho na agricultura.

Mostramos que a maior parte das ocupações rurais não-agrícolas noBrasil, embora propicie uma renda geralmente maior que as ocupaçõesagrícolas e não ofereça atividades tão penosas como estas, também ofe-rece trabalhos precários e de baixa qualificação. São basicamente servi-ços pessoais derivados da alta concentração de renda existente no Brasile não da modernização das atividades agrícolas, nem da prestação de ser-viços voltados ao lazer e preservação ambiental e muito menos de ativi-dades não-agrícolas produtivas do tipo agroindústrias e construção civil.

Não é à toa que encontramos em todas as regiões do país um fortecrescimento do emprego doméstico de pessoas residindo na zona rural.O emprego doméstico desempenha hoje para as mulheres o papel daconstrução civil nas décadas passadas para os homens: é a porta de en-trada na cidade, pois propicia, além de um rendimento fixo, também umlocal de moradia. Especialmente para as mulheres rurais mais jovens,esta parece ter sido uma das poucas formas de inserção no mercado detrabalho nos anos 90, dadas as restrições crescentes à sua inserção naforça de trabalho agrícola. Mais ainda: os dados disponíveis sugerem queas empregadas domésticas vêm se tornando um dos pilares de sustenta-ção da renda das famílias rurais naquelas regiões de agricultura tradicio-nal e que também não apresentam outras atividades não-agrícolas deabsorção da mão-de-obra excedente.

Ainda que o trabalho doméstico assalariado não seja produtivo doponto de vista social, ele é uma forma de transferência de renda e repre-senta hoje a única fonte de emprego para milhares de mulheres que hojenão teriam outra oportunidade de inserção no mercado de trabalho. Ouseja, nas atuais condições de crise social, o emprego doméstico deve servisto como uma das formas alternativas de emprego capaz de absorver

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parte da mão-de-obra excedente gerada pelo desenvolvimento capitalis-ta no campo. Urge, portanto, estender aos empregados domésticos osmesmos direitos já conquistados pelas demais categorias de trabalhadoresassalariados, especialmente o amparo do Fundo de Garantia e a obrigato-riedade da sindicalização.

Creio que, no mesmo sentido de regulamentar e estender os direitosjá conquistados por outras categorias profissionais de trabalhadores, deveser olhado o trabalho a domicílio e outros formas modernas de putting-out (caso típico das costureiras e rendeiras do Nordeste) que vêm seexpandindo rapidamente em áreas rurais do país com excedente popula-cional, criando as situações típicas de empleo de refúgio feminino não-agrí-cola, especialmente dos países andinos como Bolívia, Peru e Equador.

Orna pode ser o motordo desenvolvimento nas regiões atrasadas

Uma das mais importantes contribuições do Projeto Rurbano foimostrar que as atuais novas dinâmicas, em termos de geração de empre-go e renda no meio rural brasileiro, têm origem urbana, ou seja, são im-pulsionadas por demandas não-agrícolas das populações urbanas, comoé o caso das dinâmicas imobiliárias por residência no campo e dos servi-ços ligados ao lazer (turismo rural, preservação ambiental etc.).

Mostramos também que as Ornas têm maior dinamismo justamen-te naquelas áreas rurais que possuem uma agricultura desenvolvida e/ou estão mais próximas de grandes concentrações urbanas. Ou seja, nasregiões mais atrasadas, não há nem emprego agrícola e muito menosocupações não-agrícolas. Aí não há alternativa senão políticas compen-satórias, tais como a de renda mínima e de previdência social ativas, porexemplo. Além disso, há uma certa “reversão cíclica” à produção de sub-sistência nessas regiões mais atrasadas.12

É o que parece estar ocorrendo no Nordeste: as ocupações agrícolasque vinham caindo voltaram a crescer em 1999, em parte por causa do

12 Esse fato é importante e chama a atenção para uma função da agricultura que não a produçãode mercadorias quaisquer, mas de alimentos, que, além de exercer um papel fundamental,matar a fome das pessoas, também promove trocas e alimenta mercados locais (feiras locaise pequenos comércios dos distritos).

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fim da seca que assolou a região nos últimos anos. A PNAD registrou aímais 450 mil pessoas ocupadas nas áreas rurais em 1999 em relação aoano anterior, a grande maioria das quais em atividades agrícolas não re-muneradas; e uma pequena redução da Orna, situação similar ao que jáhavia acontecido entre 1993 e 1995. E essa “retomada da produção desubsistência” é financiada em grande parte pelas transferências sociaisde renda (sendo a principal delas as provenientes da aposentadoria rural)e pelo trabalho das mulheres dos pequenos produtores, as quais se tor-nam empregadas domésticas nas cidades da região e respondem por partesignificativa das rendas monetárias das famílias de empregados ruraisno Nordeste.

Em resumo, a falta de desenvolvimento rural na grande maioria dasregiões “atrasadas” do país se deve a essa combinação de falta de desen-volvimento agrícola e também não-agrícola. Ou seja, se uma determinadaregião tem cidades com dinâmicas geradoras de emprego e renda, essasmesmas dinâmicas tendem a se refletir no seu entorno rural. Daí a ne-cessidade de superarmos essa dicotomia do rural/urbano e do agrícola/não-agrícola e pensarmos no desenvolvimento do local, da região. E ascidades têm de fazer parte disso: daí o desenvolvimento não poder serpensado como apenas rural e muito menos como exclusivamente agrícola.

A reforma agrária não é mais viável

Mostramos que a agricultura não é mais a melhor forma de reinserçãoprodutiva das famílias rurais sem-terra, especialmente em razão do bai-xo nível de renda gerado pelas atividades tradicionais do setor. Peque-nas áreas destinadas a produzir apenas arroz e feijão, assim como outrosprodutos agrícolas tradicionais, especialmente grãos, realmente não sãomais viáveis. Mas, felizmente, as atividades agrícolas tradicionais tam-bém não são mais as únicas alternativas hoje disponíveis para gerar ocupa-ção e renda para as famílias rurais. Assim, é possível e é cada vez maisnecessária uma reforma agrária que crie novas formas de inserção pro-dutiva para as famílias rurais, seja nas “novas atividades agrícolas, sejanas Ornas. Por exemplo, na agroindústria doméstica, que lhes permitaagregar valor à sua produção agropecuária, como também nos nichos demercado propiciados pelas novas atividades agrícolas a que nos referimos

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anteriormente; ou na construção civil, ainda que seja de sua própria mo-radia; ou até mesmo na prestação de serviços pessoais ou auxiliares deprodução.

A Confederação Nacional da Agricultura – CNA –, órgão máximo darepresentação dos fazendeiros no Brasil, mandou realizar em 1996 umapesquisa sobre os assentamentos realizados pelo Incra, com o objetivode mostrar que a reforma agrária não funciona. Uma comparação comos dados da PNAD de 1995 aponta uma triste realidade do nosso Brasilagrário, muito similar ao dos assentamentos. Assim, por exemplo, a PNAD

de 1995 mostra que as 5,3 milhões de famílias rurais tinham uma rendamonetária inferior a três salários mínimos, o que dá uma renda médiamensal de apenas R$157,20, contra os R$132,14 encontrados pela pes-quisa da CNA entre as famílias de assentados beneficiários da reformaagrária. Ou seja, duas em cada três das famílias rurais brasileiras tinhamuma renda média muito próxima dos ex-sem-terra em 1995.

E é bom lembrar que essas pesquisas (tanto a da CNA como a daPNAD) não consideram os benefícios não-monetários recebidos pelosassentados (como o fato de ganharem também uma casa para morar e,portanto, não precisarem pagar aluguel), nem a produção doméstica queé autoconsumida. E, segundo os dados da pesquisa da CNA, “cerca de42% dos assentados produzem apenas para consumo próprio” e “as cul-turas predominantes nos assentamentos são as de milho, mandioca efeijão, seguidas pelo cultivo de arroz, frutas, legumes e verduras” (Folhade S.Paulo, 21.8.1996, p.1-9).

O fato de os assentados refletirem o mesmo quadro de miséria eabandono dos nossos pequenos e médios produtores rurais decorre, deum lado, da inexistência de uma política de apoio à agricultura familiarno Brasil, tal como a existente nos países desenvolvidos, e, de outro, daprópria política de assentamentos posta em prática no Brasil: os assenta-mentos não passam de intervenções pontuais, soluções tópicas de conflitosaqui e acolá. Constituem verdadeiras ilhas cercadas de problemas portodos os lados: falta infra-estrutura, crédito, assistência técnica; e sobramagiotas, atravessadores, latifundiários armados... Desde a ditadura militardos anos 70, os governos – inclusive o atual – se limitam a correr atrásdos conflitos que estouram aqui e acolá. Desde 1987, o país não tem umplano nacional de reforma agrária como exige o Estatuto da Terra.

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A própria pesquisa da CNA mostra que menos da metade dos colo-nos recebe assistência técnica, e 80% têm que financiar a produção comseus próprios recursos, pois não há uma política de crédito rural dife-renciada para os assentados, que estão recomeçando praticamente donada. Não é de estranhar que, depois de oito anos, muitos acabem porse assemelhar a seu entorno, nem que um terço dos assentados abando-ne a terra ou acabe vendendo o seu lote para terceiros...

Mas a pergunta que devemos fazer é: que outra política pública po-deria ter propiciado casa, comida e trabalho para essas quatrocentas milfamílias assentadas em todo o país – a maioria delas constituída de pes-soas analfabetas sem nenhuma qualificação que não a de lavrar a terracomo seus antepassados? Por acaso seriam absorvidas pelas novas fábri-cas que estão se implantando no país? Será que possuem o “conhecimen-to” necessário para serem vendedores ambulantes em alguma das me-trópoles do país?

E qual seria o custo alternativo de deixar esse pessoal continuar amigrar de um lado para outro como trabalhadores volantes? Hoje, a in-serção produtiva de migrantes rurais semi-analfabetos é quase impossí-vel: as oportunidades de trabalho são cada vez menores e mais exigentes,não atendendo nem mesmo à demanda daqueles que já estão enraizadosnos grandes centros urbanos. Os sem-terra sabem disso. E sabem tam-bém que, se não conseguirem um pedaço de terra, verão seus filhos setornarem trombadinhas, mendigos e prostitutas.

Um detento custa hoje de três a cinco salários mínimos por mês aoscofres públicos. Se não houvesse outras razões, seria preferível a pior dasreformas agrárias – que ao menos garante casa, comida e trabalho poruma geração e custa menos que um terço disso.

O novo rural não precisa de regulação pública

Mostramos que o novo rural não é composto somente de “amenida-des”, para usar uma expressão muito em moda nos países desenvolvidos.Como já dissemos, no Brasil, a maior parte das Ornas, por exemplo, nãopassa de trabalhos precários, também de baixa remuneração. Mostramostambém que o crescimento dos desempregados no meio rural superou ataxa dos 10% a.a. no período de 1992 a 1999, e que apenas uma parte

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disso se deve ao “retorno temporário” dos filhos que haviam migradoanteriormente para as cidades e voltam à casa dos pais até que encon-trem outro trabalho. E há, acima de tudo, milhões de sem-sem para en-grossar o êxodo rural assim que o crescimento industrial gerar novas opor-tunidades de trabalho nas cidades, porque não contam com condiçõesmínimas de educação, saúde, habitação etc.

O traço comum entre o novo e o velho rural é a sua heterogeneidade,o que impede a generalização de situações locais específicas. Há novasformas de poluição e destruição da natureza associadas tanto às novasatividades agrícolas como às não-agrícolas. Mesmo nos condomíniosrurais habitados por famílias de altas rendas, o tratamento do lixo e oesgotamento sanitário são muito precários na grande maioria dos casos.Da mesma maneira, embora até mesmo a empregada doméstica ganhemelhor que o bóia-fria, o maior nível de renda monetária propiciado pelasOrnas nem sempre significa uma melhoria nas condições de vida e tra-balho das famílias rurais pluriativas e mesmo das não-agrícolas, especial-mente quando isso implica a perda ao acesso à terra e à impossibilidadede combinar as rendas não-agrícolas com atividades de subsistência.

Temos também que considerar a poluição das novas atividades agrí-colas e das não-agrícolas. Tanto a criação de pequenos animais e o culti-vo intensivo como as próprias residências dos neo-rurais e as chácarasde recreio demandam maior uso das fontes de água e da rede de esgotosanitário (que quase nunca existem), além de aumentar a pressão sobreoutros recursos naturais existentes (lagos, rios, matas etc.). Essas ativi-dades, quando incipientes, eram reguladas a partir do mesmo aparatoutilizado pela regulação das atividades agrícolas (extensão rural oficial,Incra e Ibama) ou não eram reguladas, como atesta a fuga das “indústriaspoluidoras” para área rurais visando escapar da legislação ambiental vi-gente nas áreas urbanas.13

Hoje, praticamente a única regulação específica das áreas rurais exis-tente para as atividades não-agrícolas é o módulo rural que funciona comoo parâmetro da área mínima abaixo do qual o fracionamento não é per-

13 E não só as indústrias, mas também os serviços, como é o caso das “sedes de campo” declubes sociais e esportivos, boates etc., para evitar as restrições de poluição sonora das zonasurbanas.

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mitido. Mas a saída dos condomínios fictícios e do parcelamento pela“fração ideal” mostra que essa proibição tem sido absolutamente inó-cua, quando não prejudicial ao desenvolvimento das novas atividadesagrícolas e não-agrícolas. Creio que já passou da hora de estabelecermoscritérios de acesso aos serviços básicos essenciais (água potável, luz elé-trica, coleta de lixo, saneamento básico, correio etc.) como condição do“habite-se” das residências, bem como das atividades não-agrícolas quevenham a se implantar nas áreas rurais.

A emergência das novas funções (principalmente lazer e moradia)para o rural, somada à perda da regulação setorial (via políticas agrícolase agrárias) resultante do esvaziamento do Estado Nacional, deixou “es-paços vazios” que demandam novas formas de regulação públicas e pri-vadas. É o caso exemplar das prefeituras se batendo contra a prolifera-ção desordenada dos condomínios rurais que não passam, no fundo, denovas formas de loteamentos clandestinos, que, uma vez implantados,acabam demandando ampliação dos serviços como luz, água, coleta delixo etc.; ou dos pesque-pague, que têm de se submeter à fiscalização doServiço de Saúde, do Ibama e do Incra que possuem legislações contra-ditórias para enquadramentos de uma mesma atividade; ou então dasnovas reservas florestais fora da propriedade, que não são reconhecidaslegalmente, embora tenham muito maior valor ecológico do que a manu-tenção de pequenas áreas descontínuas no interior das pequenas e médiaspropriedades rurais. Esses são apenas alguns exemplos gritantes de queprecisamos de uma nova institucionalidade para o novo rural brasileiro, sem oque corremos o risco de vê-lo envelhecer prematuramente.

O desenvolvimento local levaautomaticamente ao desenvolvimento

O novo enfoque do desenvolvimento local sustentável tem o inegá-vel mérito de permitir a superação das já arcaicas dicotomias urbano/rural e agrícola/não-agrícola. Como sabemos hoje, o rural, longe de serapenas um espaço diferenciado pela relação com a terra – e mais ampla-mente com a natureza e o meio ambiente –, está profundamente relacio-nado ao urbano que lhe é contíguo. Também podemos dizer que as ati-vidades agrícolas são profundamente transformadas pelas atividades

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não-agrícolas, de modo que hoje não se pode falar em agricultura modernasem mencionar as máquinas, os fertilizantes, os defensivos e todas asdemais atividades não-agrícolas que lhe dão suporte.

Nossos trabalhos mostraram que a busca do desenvolvimento daagricultura por meio de uma abordagem eminentemente setorial não ésuficiente para levar ao desenvolvimento de uma região. Mostramos tam-bém que a falta de organização social – especialmente da sociedade civil –tem se constituído em uma barreira tão ou mais forte que a miséria daspopulações rurais, especialmente no momento em que a globalizaçãorevaloriza os espaços locais como arenas de participação política, econô-mica e social para os grupos organizados.

O enfoque do desenvolvimento local pressupõe que haja um míni-mo de organização social para que os diferentes sujeitos sociais possamser os reais protagonistas dos processos de transformação de seus luga-res. Mas essa organização nem sempre existe em nível local e, quandoexiste, está restrita àqueles “velhos” atores sociais responsáveis em últi-ma instância pelo próprio subdesenvolvimento do local.

Nesse sentido, podemos dizer que o desenvolvimento local susten-tável precisa ser também entendido como desenvolvimento político parapermitir uma melhor representação dos diversos atores, especialmentedaqueles segmentos majoritários e que quase sempre são excluídos doprocesso pelas elites locais.

No caso brasileiro, por exemplo, as ações voltadas exclusivamentepara o desenvolvimento agrícola, se bem lograram uma invejável moder-nização da base tecnoprodutiva em algumas regiões do Centro-Sul do país,não se fizeram acompanhar pelo tão esperado desenvolvimento rural.Uma das principais razões para isso foi a de privilegiar as dimensões tec-nológicas e econômicas do processo de desenvolvimento rural, relegan-do a segundo plano as mudanças sociais e políticas, como a organizaçãosindical dos trabalhadores rurais sem-terra e dos pequenos produtores.E com a globalização, as disparidades hoje existentes em nosso país, sejaem termos regionais, seja em relação à agricultura familiar vis-à-vis oagribusiness, tendem a se acentuar ainda mais.

É fundamental também que se diga que o escopo desses atores nãose restringe aos produtores agrícolas – familiares ou não – por maior queseja a diferenciação deles. Precisam ser considerados também os sujeitos

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urbanos que habitam o meio rural ou que simplesmente o têm como umareferência quase idílica de uma nova relação com a natureza. Isso por-que um outro componente, cada vez mais importante no fortalecimentodos espaços locais, têm sido as exigências e preocupações crescentes coma gestão e a conservação dos recursos naturais. Aqui também a organi-zação dos atores sociais pode impulsionar a participação e a implementa-ção de planos de desenvolvimento local voltados aos seus interesses,apesar de haver ainda muitas restrições quanto às formas de participa-ção e representação, não só em razão de sua pouca mobilização, comotambém da dificuldade de se ter todos os segmentos sociais devidamen-te representados, diante da presença de impedimentos e vieses operacio-nais vinculados às estruturas institucionais vigentes em nível local e àdominação das decisões pelos grupos mais fortes.

GRÁFICO 1 – Evolução das rendas do trabalho principal das pessoas ocupadas no meio ruralbrasileiro, segundo o ramo de atividade. Brasil, 1992-1999.

GRÁFICO 2 – Evolução das pessoas inativas e residentes no meio rural, segundo o ramo deatividade. Brasil, 1981-1999.

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Referências bibliográficas

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7A agricultura indiana na era da liberalização

John Harriss1

No dia 9 de agosto de 2001, a principal matéria do tradicional diárioThe Tribune, publicado no Estado de Punjab, no Noroeste indiano – o berçoda Revolução Verde da Índia –, intitulava-se “Suicídio de lavradores emPunjab”. “Houve uma época”, dizia o jornal, “em que os agricultores dePunjab” se orgulhavam muito de sua contribuição com a Revolução Verde(RV). Hoje são obrigados a se matar ... O levantamento (de uma ONG)colheu dados perturbadores. Em dezessete aldeias de apenas dois quar-teirões, no distrito de Sangrur, pelo menos 27 pessoas ‘muito endividadas’atentaram contra a própria vida nos últimos três meses. Os pequenosproprietários não foram as únicas vítimas da armadilha do endividamento.Uma mulher que herdou do pai cerca de dois alqueires de terra agricul-tável ainda está se recuperando do choque do suicídio do marido em maio.Outrora, dois alqueires eram considerados suficientes para que o pro-

1 London School of Economics.

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prietário levasse uma vida livre de necessidades ou até mesmo luxuosa.Já não é assim em razão do excedente de cereais no mercado e da conse-qüente queda dos preços e da demanda de novos estoques”.

Punjab não representa uma experiência única. Há alguns meses, arevista Frontline, publicada em Chennai (Madras), afirmou que a agricul-tura indiana está em crise. No Estado sulista de Karnataka, por exemplo,o suicídio de um produtor de batata levou o ministro-chefe a pedir uma“alteração de curso” no regime da OMC e a encomendar um estudo acer-ca do seu impacto sobre a agricultura do país. Ao mesmo tempo, o preçodo quintal de arroz em casca, em Karnataka, era de quatrocentas a qui-nhentas rupias, contra 730 a oitocentas no ano anterior; e, com a eleva-ção dos preços cobrados pelo diesel e a redução dos subsídios dos fertili-zantes, muitos plantadores de arroz ficariam satisfeitos não por lucrar,mas simplesmente por escapar ao prejuízo. Segundo opinou o proprie-tário de uma grande usina de beneficiamento: “A causa da queda do pre-ço do arroz é que os nossos preços do arroz em casca são internacional-mente demasiado altos. Ou seja, a Índia não exportou. Nós não podemosconcorrer com os preços internacionais”. É verdade que o governo esta-beleceu um preço mínimo de apoio (PMA) de 450 a 680 rupias por quin-tal, dependendo do grau, mas a transação era lenta, inclusive porque osarmazéns já estavam repletos. A mesma queda de preços, combinada coma alta dos custos, também afetou outros produtos agrícolas importan-tes, em muitos casos sem a possibilidade de certo alívio mediante umpreço mínimo administrado. Em Karnataka, como em outras partes, opreço das sementes oleaginosas sofreu acentuadas quedas em razão daimportação do óleo de coco, de algodão e de girassol. Graças ao esforçode negociação do governo nos anos 80, algumas regiões menos favore-cidas, semi-áridas, viveram a chamada “revolução amarela” com a expan-são da produção de sementes oleaginosas, e, no espaço de uma década, aÍndia se tornou auto-suficiente em óleos comestíveis. A situação se in-verteu, e o país passou a ser o maior importador do mundo desse produto.O bétele, amplamente cultivado nas regiões litorâneas de Karnataka,enfrentou uma queda vertiginosa dos preços (cerca de 50%) depois deser incluído na lista aberta das commodities.

As mesmas tendências se manifestaram em outras regiões. No Es-tado sulista de Andra Pradesh, também se registrou um grande número

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de suicídios entre os plantadores de algodão em 1997. Lá, muitos cam-poneses foram estimulados a cultivar o algodão híbrido. Embora a pro-dução tenha aumentado inicialmente, ao mesmo tempo que subia o custodos pesticidas e fertilizantes necessários ao crescimento da safra – como aumento extraordinário da demanda de defensivos agrícolas em razãoda crescente infestação de pragas –, o preço do algodão despencou nomercado. Muitos produtores se endividaram com agiotas que, geralmente,eram os próprios vendedores de sementes e agrotóxicos. As estimativasvariam, mas pelo menos duzentos agricultores se mataram. Foi nessecontexto que a Monsanto procurou introduzir suas variedades de algo-dão Bt geneticamente alterado, que produz uma toxina própria para re-sistir às pragas – muito embora, de acordo com o Banco Mundial, o maisprovável é que tal resistência seja efêmera. E mesmo os empregados daMonsanto admitiram, em particular, que a introdução dessas variedadestiraria o controle dos pequenos produtores.

O suicídio do homem do campo em escala tão notável é o reflexomais chocante do impacto da liberalização sobre a agricultura indiana.Sem dúvida, pode-se argumentar que a flutuação dos preços sempre foiuma característica da agricultura comercial e que os produtores acabamganhando num ano o que perderam no outro. A longo prazo, as flutuaçõesse compensam. Nesse caso, por que achar que nos últimos anos ocorreualgo especial na Índia?

Essa argumentação não leva em conta as circunstâncias da vastamaioria dos produtores agrícolas do país, que são lavradores marginais,muitos deles “parcialmente proletarizados”. À parte os casos excepcio-nais de Kerala e Bengala Ocidental, com governos de orientação marxis-ta, e o exemplo singular de Punjab-Haryana, onde se verificou a consoli-dação da terra após a Independência e a subseqüente divisão territorial,a Índia teve limitadíssimas reformas agrárias, e a distribuição da proprie-dade rural conservou-se altamente assimétrica. (Atualmente, em certosEstados, uma das reações à liberalização e à globalização tem sido o afrou-xamento da legislação referente aos tetos sobre a propriedade da terra, afim de estimular o investimento em agribusiness). Com o crescimento dapopulação e da partilha da terra pela herança, aumentou a participaçãoda pequena propriedade. Por exemplo, na UP Ocidental, em 1981, os pe-quenos agricultores, donos de menos de um hectare, detinham dois terços

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das propriedades, mas somente 20% da terra, ao passo que as proprie-dades de dois hectares ou mais constituíam menos de 20% do total, po-rém 60% da área rural. Contrariamente às pressuposições dos adeptosda visão leninista das conseqüências do desenvolvimento capitalista naagricultura (assim como de alguns críticos da RV na década de 1970), aÍndia não passou por nenhum processo de generalizada proletarizaçãodos camponeses pobres, e sim por uma “proletarização parcial”. Os pe-quenos proprietários conseguiram conservar suas terras apoiando-se emoutras fontes de renda, principalmente empregando-se como trabalha-dores agrícolas e (cada vez mais) fora da agricultura. Sabe-se que umadas situações mais decisivas que afetam o sustento da massa rural é anatureza e a extensão do desenvolvimento do emprego não-agrícola nocampo, o qual restringe os mercados de trabalho ainda que elevando ossalários. Diante disso, diz Abhijit Sen, professor de economia daJawarhalal Nehru University, “talvez a característica que mais pressãonegativa exerceu sobre o bem-estar rural, nos últimos anos, tenha sido ainversão do crescimento das oportunidades não-agrícolas na Índia rural.De acordo com a Pesquisa Nacional de Amostragem, o número que quasedobrou entre 1977 e 1989, passou a declinar a partir de então”.

Não só os agricultores marginais proletarizados são altamente de-pendentes dos adiantamentos de crédito para manter a produção. ComoKrishna Bharadwaj observa com tanta pertinência, muitos produtoresrurais se acham “compulsivamente envolvidos com o mercado”. Nãotendo nenhum excedente, são obrigados a comercializar sua produçãonas épocas de colheita, quando os preços estão baixos, a fim de pagar osempréstimos, os quais precisam ser renovados para atender às necessi-dades de consumo e cobrir o custo da nova produção. Obviamente, nocaso dos plantadores de produtos comerciais, tudo depende dos movi-mentos relativos dos preços que recebem e dos que são obrigados a pa-gar para comer. O grande problema é que os produtores dependem mui-to dos empréstimos e, assim, é provável que as quedas da produção e/ou dos preços tenham conseqüências cumulativas, empobrecendo-osgradualmente e enterrando-os ainda mais em dívidas. Também é prová-vel que o efeito mais importante da liberalização da agricultura indianatenha sido expô-los aos preços internacionais, que são muito mais volá-teis do que os obtidos quando o mercado indiano era bem mais isolado.

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A agricultura indiana na era da liberalização

E são as conseqüências gravíssimas dessa exposição, em termos de in-certeza de renda, que explicam o grande número de suicídios na popula-ção rural.

As conseqüências da incerteza de renda, por sua vez, têm se exacer-bado por causa de duas outras características da década das reformaseconômicas na Índia. Estas são a contração do sistema de crédito ruralinstitucional, que se havia expandido rapidamente, nas décadas de 1970e 1980, graças às reformas do setor financeiro, e que atualmentedesestimula o setor bancário a conceder crédito rural; soma-se a isso oefetivo desmantelamento das redes de seguridade social. As duas coisasresultam das pressões para que o governo reduzisse o déficit fiscal. Acontração do financiamento institucional nas áreas rurais ficou clara napesquisa realizada por V. K. Ramachandran em povoados de parte do Sulda Índia nos últimos 25 anos. Ele explica:

A participação do setor formal no principal dos empréstimos às famí-lias sem-terra subiu de 17%, na fase da “revolução verde” (isto é, quandocolhemos os dados de 1977), para 80% na “fase IRDP” (pesquisa de 1985[no auge do período, quando se exigiu que os bancos canalizassem 40%dos empréstimos para o chamado “setor prioritário”, que incluía os peque-nos proprietários, os marginais e os trabalhadores sem-terra]), e caiu para22% na fase de liberalização (pesquisa de 1999). A participação dos em-préstimos de produção e dos relacionados com negócios, conforme as fina-lidades imediatas da totalidade dos empréstimos tomados pelas famíliasde trabalhadores sem-terra, foi de 24% em 1977, subiu para 44% em 1985e precipitou-se para 23% em 1999. A pesquisa de 1999 mostrou novasformas de informalização do mercado de crédito, a proliferação da agiota-gem como ocupação em tempo integral ou parcial e novas tendências àpersonalização dos empréstimos individuais. A usura aumentou no perío-do de 22 anos coberto pela nossa pesquisa: em 1977, 32,3% do total doprincipal emprestado a famílias de trabalhadores sem-terra cobravam taxasde juros nominais de 36% ou mais; em 1985 e 1999, as cifras corresponden-tes foram de 50,3% e 64%. A pesquisa de 1985 revelou que 24% do principaldo total emprestado tiveram taxas de juros de 60% ou mais; a participaçãoelevou-se a 43% em 1999.

Essas tendências observadas por Ramachandran dizem respeito a ummovimento geral. Estatísticas bancárias mostram uma queda no siste-ma de crédito. A crescente necessidade de financiamento popular fez

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

aumentar a procura pelo crédito informal, com todas as suas conseqüên-cias trágicas, como as que se manifestaram no suicídio dos lavradores.Na verdade, as redes de proteção social entravam em processo de degra-dação. A taxa média de crescimento da produção de cereais declinou ver-ticalmente nos anos 90, quando chegou a 1,8% ao ano, em comparaçãocom os 3,54% da década de 1980. Isso se deveu à queda da taxa de cres-cimento da produção, ela mesma parcialmente responsável pelo aumen-to constante do custo por unidade de output, e refletiu a exaustão dosganhos em produtividade da Revolução Verde, assim como a acentuadaredução do investimento público na agricultura e na infra-estrutura ru-ral (pontos que ainda vou retomar). Agora, no entanto, o Estado vemacumulando estoques gigantescos de cereais – 45,4 milhões de tonela-das no começo deste ano. Isso excede em muito o necessário à seguran-ça alimentar; trata-se de uma enorme drenagem das finanças públicas,as quais terão de financiar os custos da Food Corporation of India [Socie-dade para a Alimentação da Índia]; o que é uma afronta moral num paísem que 500 milhões de pessoas são subnutridas (visto que os dados maisrecentes da pesquisa sobre a nutrição da National Family Health Survey[Levantamento Nacional da Saúde da Família] de 1998-1999 mostramque 50% da população são subnutridos e outros 20% acham-se sob orisco de desnutrição – de modo que, na verdade, 70% dos indianos pade-cem de insegurança alimentar). O estoque é suficiente para suprir cercada metade da necessidade individual anual de cereal de uma populaçãode mais de 600 milhões. Mas o imperativo desta época de liberalização, decorte do déficit orçamentário, levou o governo da Índia a enxugar efeti-vamente o Sistema de Distribuição Pública (SDP), que – por maiores quesejam os seus problemas de vazamento – contribuiu inquestionavelmentecom o aumento do nível de bem-estar no grande número de Estados emque foi extensivamente aplicado (particularmente em Kerala, Tamil Nadue Andhra). Isso se conseguiu com a introdução do direcionamento combase na renda – difícil de avaliar burocraticamente no campo – e com aelevação dos preços de escoamento da produção. Boa parte do SDP deixoude existir para um grande número de pessoas, e perdeu-se a oportuni-dade de os estoques de cereais existentes representarem tanto a reduçãoda subnutrição quanto a criação de uma infra-estrutura rural. Contudo, nostrinta anos entre 1966-1967 e 1996-1997, o subsídio orçamentário da ali-mentação permaneceu mais ou menos inalterado como parte do produto

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A agricultura indiana na era da liberalização

interno bruto (em média, 0,3% do PIB) e é muito reduzido com relação apaíses comparáveis (um quarto do de Sri Lanka, por exemplo).

O custo operacional do SDP deriva menos das transferências para osconsumidores que do pagamento de subsídios mediante preços mínimosde apoio aos produtores de trigo e arroz, num contexto em que a demandaé deficiente em razão da incapacidade da massa da população rural – osmarginais, os produtores semiproletarizados e o grande número de tra-balhadores agrícolas assalariados sem-terra, que constituem 25-30% dapopulação rural – de pagar os cereais. Há alguns anos, uma análiseabrangente de Ashok Gulati demonstrou: 1. que a propagação regionaldo subsídio ao input (pelo pagamento de fertilizantes subsidiados, a isen-ção de tarifas de fornecimento de energia elétrica e o baixo nível dospagamentos da irrigação) é altamente desigual e tende a favorecer as re-giões e plantações irrigadas; e 2. que há um nível mais elevado de incenti-vos efetivos nas regiões com excedente do que nos Estados com déficit.Ele se refere especificamente a Punjab-Haryana, e, como sugeriu AshokMitra anos atrás, isso reflete as vantagens dos agricultores dessas regiõesno que toca à organização da ação coletiva. Atualmente, as disparidadesentre as regiões de high farming dos principais cereais de alto valor e oresto estão se aprofundando ainda mais. Há uma espiral viciosa em fun-cionamento. Os preços pagos aos agricultores pelo trigo e pelo arroz sãomais fortemente apoiados pelo Estado do que os outros preços agríco-las. Aliás, o PMA do trigo e do arroz foi elevado para coincidir com ospreços internacionais e, posteriormente, quando estes caíram, foi nova-mente elevado. Os custos desses cereais para os consumidores, entre osquais naturalmente se incluem os trabalhadores agrícolas, também con-tribuem com as contas de salários pagas pelos demais produtores. Por-tanto, verifica-se uma tendência a abandonar as outras plantações emfavor do trigo e do arroz. Os agricultores com cultivos não-cereais, comoo de sementes oleaginosas, “têm enfrentado a dupla desvantagem depreços mais baixos e custos mais altos ... o que levou a outra anomalia,já que a região trocou as sementes oleaginosas pelos cereais (e), simul-taneamente, o país passou a importar grandes quantidades de óleos co-mestíveis enquanto os estoques de cereais atingiam patamares impossí-veis de administrar” (Amartya Sen).

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

As reformas econômicas dos anos 90 resultaram, pois, numa crisena economia rural indiana. No entanto, durante boa parte da década pas-sada, a economia agrícola pareceu ter um desempenho bastante adequa-do; e seu descuido com as políticas de reforma, perfeitamente benigno.Registrou-se até certo otimismo porque, graças à vantagem comparati-va da Índia em algumas áreas da produção agrícola, o país se beneficiariacom a liberalização. “‘Entenda bem os preços’ era o mantra oferecido con-tra o envolvimento estatal com o investimento, o suprimento de input ea compra do produto. Ao mesmo tempo, esperava-se (naturalmente!)que a maior dependência do mercado livre aumentasse a renda e a efi-ciência do setor agrícola, permitindo a redução dos subsídios” (AmartyaSen). A ênfase sobre os preços foi a característica definidora da aborda-gem da política agrícola no período da reforma.

A principal preocupação, aliás, foi a de cortar subsídios, especialmen-te aos fertilizantes, e a de levar os agricultares a pagar a energia elétricae a água a fim de reduzir o déficit orçamentário. De fato, um dos pontosprincipais do primeiro orçamento do ministro da Fazenda reformistaManmohan Singh, em 1991, foi restringir os subsídios ao fertilizante.Embora ele tenha sido obrigado a recuar rapidamente por causa da forteoposição à nova política, os subsídios foram sendo cortados gradualmentena década de 1990, e verificaram-se esforços para levar os agricultores apagar a eletricidade e para elevar as tarifas de irrigação. Recentemente, olíder de um dos partidos da coligação governante atacou duramente o pri-meiro-ministro e o ministro da Fazenda por causa da “inclinação” do go-verno “para a indústria” e do seu fracasso em atender às necessidadesdos agricultores. “Uma parte decisiva da estratégia das reformas foi (poroutro lado) aumentar os preços agrícolas ... seja permitindo um comér-cio mais livre, seja oferecendo preços de apoio mais elevados” (AmartyaSen). Foi justamente essa parte da “estratégia” implícita ou explícita quenão se realizou, uma vez que os preços das commodities agrícolas decli-nou nos últimos dois anos – levando aos problemas já delineados e à atualsensação de que há deveras uma crise no setor agrícola.

Uma reação política tem sido a de questionar o compromisso da Índiacom a OMC. Talvez esses temores tenham sido exagerados, pois a Índiacontinua tendo o poder de aumentar suas tarifas de importação. “Con-trariamente à percepção geral, a proteção efetiva dos produtos agrícolas

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A agricultura indiana na era da liberalização

é (de fato) muito maior atualmente do que antes, com mais importa-ções agrícolas atraindo taxas alfandegárias significativamente superio-res ao máximo de 35% que incide sobre os produtos industriais, em con-traste com o passado, quando se protegia muito mais a indústria que aagricultura” (Amartya Sen). Mas, apesar das elevadas tarifas, ainda épossível importar alguns produtos agrícolas por preços inferiores aosexigidos para que produtores internos consigam equilibrar custo e ren-da. Há uma crise, portanto, que se deve em parte às suposições excessi-vamente otimistas acerca dos efeitos benéficos da OMC, quando, na prá-tica, os acordos vigentes seguem preservando distorções favoráveis aospaíses desenvolvidos. Mas o reverso da medalha tem a ver com a falta deinvestimento público na agricultura e na infra-estrutura rural da Índia,que trouxe as já mencionadas conseqüências: a desaceleração do merca-do, a partir de 1990, em taxa de crescimento da produção por hectare damaioria das plantações. “Como o custo de produção por unidade de outputdo cultivo mostra uma relação fortemente inversa com as mudanças daprodução por hectare, esse resultado levou a um aumento do custo deprodução mais rápido do que antes, exigindo um crescimento maior dooutput para manter a rede de retornos da agricultura” (Amartya Sen). Aestabilização dos preços e das rendas, na economia rural indiana, requermais investimento público produtivo na agricultura e medidas capazesde aumentar a demanda efetiva das massas subnutridas.

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8Um novo dilema para os países

em desenvolvimentoO comércio internacional de organismos

geneticamente modificados e asnegociações multilaterais

Simonetta Zarrilli1

Biotecnologia: riscos e oportunidades

A biotecnologia é revolucionária.2 Trata-se de uma tecnologia queoferece à humanidade o poder de alterar as características dos organis-mos vivos pela transferência de informação genética de um para outro,

1 A autora é membro da equipe do Ramo de Negociações e Diplomacia Comerciais, Divisãode Comércio Internacional de Bens, Serviços e Produtos Básicos do secretariado da Unctad.Está particularmente agradecida a Gabrielle Moarceau e Matthew Stilwell pelos muitoscomentários, especialmente sobre os aspectos legais deste trabalho. Agradece igualmentea K. Bergholm, S. Briceño, A. Cosbey, M. Gibbs, B. Gosovic, R. Kaukab, C. Poierce, F. Pythoud,P. Roffe, R. Sánchez, H. Torres e J. VanGrasstek pelos comentários e as informações dadas.Quaisquer erros são exclusivamente da autora.

2 A Convenção sobre Diversidade Biológica define biotecnologia como “qualquer aplicaçãotécnica que utilize os sistemas biológicos, os organismos vivos e seus derivativos a fim defazer ou alterar produtos ou processos para uso específico”. A indústria da biotecnologiafornece produtos para o cuidado da saúde humana, para o processamento industrial, paraa biorremediação ambiental e para a alimentação e a agricultura.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

ultrapassando as fronteiras das espécies. Essa solução dá continuidade àsecular tradição de seleção e aperfeiçoamento das plantas cultivadas edos animais domésticos. No entanto, a biotecnologia identifica muitomais rapidamente as características desejáveis, permitindo-nos transfe-rências de genes impossíveis na criação e no cultivo tradicionais. Suaaplicação em setores como a agricultura e a medicina vem produzindouma quantidade cada vez maior de organismos geneticamente modifi-cados e de produtos deles derivados. A alteração das características dosorganismos pode trazer benefícios à sociedade, inclusive novas drogas emelhores variedades de plantas e alimentos. Contudo, a biotecnologianão está livre de riscos e incertezas. Suas conseqüências potenciais so-bre o meio ambiente, a saúde humana e a segurança alimentar têm sidovivamente debatidas no âmbito nacional e internacional. As posições dospaíses dependem de muitos fatores, como a consciência política, o nívelde risco que estão dispostos a aceitar, a capacidade de fazer avaliaçõesde risco no setor e implementar a legislação adequada, a percepção dosbenefícios que podem receber da biotecnologia e os investimentos quejá fizeram no setor.3 Mesmo assim, no presente há um forte contrasteentre a difundida aceitação dos benefícios da biotecnologia nos produ-tos farmacêuticos e industriais e as não menos difundidas preocupaçõescom os possíveis perigos na produção agrícola e alimentícia.

Atualmente, os benefícios detectados das plantas geneticamentecultivadas são o melhor controle de ervas daninhas e pragas, o cresci-mento da produtividade e a administração mais flexível das plantações.Tais vantagens favorecem principalmente os agricultores e o agribusiness,pois aumentam a produção e reduzem os custos. Todavia, os benefíciosmais amplos e a longo prazo seriam uma agricultura mais sustentável ea maior segurança alimentar que afetariam a todos, particularmente nospaíses em desenvolvimento. Por exemplo, a produção de plantas resis-tentes às secas seria um grande benefício para os cultivos tropicais que,com muita freqüência, estão sujeitos a duras condições ambientais e a

3 Enquanto o financiamento público da pesquisa agrícola estagnava ou declinava, a indús-tria da biotecnologia continuou investindo muito na pesquisa agrícola graças aos conside-ráveis avanços alcançados na área e ao reforço dos direitos de propriedade intelectual dematerial biológico.

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Um novo dilema para os países em desenvolvimento...

solos pobres. Aumentar a quantidade de alimento produzido por hecta-re seria um meio de alimentar a crescente população mundial sem des-viar a terra de outros propósitos, como o florestamento, as pastagens oua conservação. Recentemente, os cientistas criaram uma linhagem dearroz geneticamente alterado para combater a deficiência de vitamina A,a principal causa da cegueira no mundo, um mal que atinge nada menosque 250 milhões de crianças. Os expertos em desenvolvimento econômicoconsideram esse arroz vitaminado um grande avanço no esforço de me-lhorar a saúde de milhões de pobres, a maioria deles concentrados naÁsia.4 O impacto da biotecnologia sobre a produção de víveres, sobre asperdas posteriores à colheita e sobre o valor nutricional do alimento podemelhorar a vida de milhões de pessoas.

A indústria da biotecnologia informa que entre os produtos trans-gênicos disponíveis no mercado, nos quais já se incluíram benéficas ca-racterísticas de produto, figuram os seguintes: plantas Bt protegidas con-tra os danos causados pelos insetos e que permitem a redução do empregode agrotóxicos5 (já em uso o milho, o algodão e a batata e, futuramente,o girassol, a soja, a canola, o trigo e o tomate); plantas resistentes a herbi-cidas, que permitem ao agricultor aplicar um herbicida específico, paracontrolar as ervas daninhas, sem prejudicar a plantação (já em uso a soja,o algodão, o milho, a canola e o arroz e, futuramente, o trigo e a beterra-ba de açúcar); plantas resistentes a doenças, armadas contra enfermida-des virais, algo equivalente a uma vacina vegetal (a batata-doce, a mandioca,o arroz, o milho, a abóbora, o mamão e, no futuro, o tomate e a banana);óleos de cozinha de alto desempenho que criam produtos mais saudá-veis (de girassol, de amendoim e de soja); frutas e legumes de amadure-cimento retardado e com sabor, coloração e textura melhores, são maisfirmes para o transporte e permanecem mais tempo frescos (o tomate e,no futuro, a framboesa, o morango, a cereja, a banana e o abacaxi); ali-mentos nutricionalmente aprimorados que oferecem níveis superioresde nutrientes, vitaminas e outros fitoquímicos sadios (batata-doce e o

4 Ver Genetically altered rice: A tool against blindness. International Herald Tribune, 15-16 dejaneiro de 2000.

5 A modificação implica tirar os genes de uma bactéria do solo chamada Bacillus thringiensis etorná-los parte da própria planta. As plantas de variedade Bt são tóxicas apenas para pra-gas específicas.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

arroz mais protéicos, óleo de canola com alto teor de vitamina A, alémde frutas e legumes mais antioxidantes).6 Verifica-se um deslocamentodas características “agronômicas” da atual geração para as característicasde “qualidade” da próxima, que visam a produtos alimentícios e raçõesmelhorados e especializados.

No entanto, há alguns riscos associados à biotecnologia (Stiwell, 1999).

• Proteção da biodiversidade: as plantas geneticamente modificadas po-dem transferir material genético, assim como características a ele as-sociadas, às variedades convencionais, desenvolvendo ervas daninhasmais agressivas, ameaçando os ecossistemas e prejudicando a diver-sidade biológica. Também há o risco de perda da biodiversidade emconseqüência do deslocamento das cultivares convencionais para umreduzido número de cultivares geneticamente modificadas. Diversospaíses subdesenvolvidos podem ser particularmente afetados, uma vezque abrigam grande parte da biodiversidade do mundo.

• Segurança alimentar: as plantas geneticamente modificadas podem serincapazes de enfrentar as alterações inesperadas das condições climá-ticas. A biotecnologia modifica a natureza, a estrutura e a proprieda-de dos sistemas de produção de alimentos. Atualmente, os verdadeirosproblemas de segurança alimentar são provocados menos pela escas-sez que pela desigualdade, a pobreza e a concentração da produçãoalimentar. As “tecnologias Terminator”, que empregam o controle dagerminação como instrumento de proteção à propriedade intelectual,obrigando os agricultores a comprar novas sementes a cada estação,foram desenvolvidas principalmente para ajudar as empresas agroquí-micas transnacionais a aumentar o monopólio da produção de semen-tes e compensar o investimento em pesquisa e desenvolvimento.

• Restrições éticas e religiosas: a biotecnologia possibilita aos cientistas des-locar o material genético além das fronteiras das espécies e permite,por exemplo, que se transfiram genes animais para os vegetais. Issotende a suscitar restrições éticas e religiosas. O patenteamento de cer-tos aspectos da vida humana e a possibilidade de clonagem humanacausam muita preocupação.

6 Ver Biotechnology Industry Organization, “Transgenic products on the market”, Guide toBiotechnology. (Disponível em <http://www.bio.org/food&ag//transgenic_products.html>.)

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Um novo dilema para os países em desenvolvimento...

• Vida e saúde humanas e animais: a modificação genética pode alterar atoxicidade, a alergenicidade e o valor nutritivo do alimento e afetar aresistência antibiótica.

• Considerações econômicas: a pesquisa em biotecnologia agrícola do se-tor privado cresceu extraordinariamente, em parte estimulada pelapossibilidade de lucros apoiados no direito de propriedade intelectual.Ademais, o setor industrial privado ficou muito centralizado. O queoutrora era uma indústria em que os pequenos produtores de sementetinham um papel importante transformou-se, no presente, num oligo-pólio global dominado por cerca de cinco conglomerados transnacio-nais. É grande o número de patentes que se têm tirado no setor. Se osresultados das pesquisas vegetais continuarem a ser patenteados,corre-se o risco de que venham a ser demasiado caros para os agricul-tores pobres, sobretudo nos países em desenvolvimento. Além dis-so, o setor privado investe nas áreas em que há expectativa de retor-no financeiro; conseqüentemente, a ciência privada pode se concentrarem plantas e inovações do interesse dos mercados ricos e desdenharas do interesse dos países pobres.

• Considerações de eqüidade: as empresas e os institutos de pesquisa pri-vados têm a possibilidade de adquirir o controle não remunerado dosgenes das plantas nativas de vários países subdesenvolvidos, utilizan-do-os para produzir variedades superiores e, a seguir, vendê-las a altospreços a esses mesmos países. Embora figure na Convenção sobre Di-versidade Biológica, o conceito de “benefício compartilhado” não émencionado no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de PropriedadeIntelectual Relacionados com o Comércio (TRIPS, na sigla inglesa).

Para avaliar os riscos relacionados com a biotecnologia, convém suge-rir uma distinção entre riscos inerentes à tecnologia e riscos a ela trans-cendentes (Leisinger, 1999). Inerentes à tecnologia são os riscos associadosa ameaças à saúde humana e ao meio ambiente. É possível enfrentá-lose minimizá-los com a instituição de uma administração de risco em es-tado-da-arte que leve em conta as condições ecológicas locais. Deve-seproceder à adequada avaliação de risco. Isso permitirá que governos,comunidades e empresas tomem decisões informadas a respeito dos ris-cos e benefícios inerentes ao uso de determinada tecnologia na solução

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de um problema específico. É preciso desenvolver uma legislação quegaranta a produção, a transferência, o manuseio, o uso e o descarte segu-ros dos OGM e seus produtos.

Os riscos transcendentes à tecnologia provêm do contexto políticoe social no qual ela é aplicada. A economia global e as circunstâncias po-líticas e sociais específicas de cada país têm um papel decisivo para tor-nar a biotecnologia um risco (por exemplo, aumento da desigualdade nassociedades ou entre elas, perda da biodiversidade, impacto negativo so-bre os ecossistemas) ou um benefício para as populações locais (por exem-plo, mais segurança alimentar, redução da desnutrição).

Contudo, é possível que a classificação dos riscos já mencionadosnem sempre se mostre adequada para dividir exatamente os impactosfinais de complexos encadeamentos causais. Por exemplo, o impacto dosOGMs sobre a biodiversidade pode fazer parte tanto dos riscos inerentesquanto dos transcendentes à tecnologia. Os riscos à biodiversidade po-dem ser causados diretamente pelos organismos modificados (por exem-plo, pela transferência involuntária de material genético para as espéciesconvencionais) ou indiretamente (por exemplo, pela interação com ou-tros fatos, como as mudanças nas práticas agrícolas ou na estrutura demercado). Do mesmo modo, a segurança alimentar pode ficar ameaçadatanto pelos riscos “inerentes”, como a incapacidade das plantas modifi-cadas de enfrentar uma alteração inesperada nas condições climáticas,quanto pelos “transcendentes”, como o controle oligopólico do abaste-cimento de víveres por umas poucas empresas agroquímicas e de semen-tes. Os riscos “inerentes” e “transcendentes” permeiam todas as áreas.Por isso, parece difícil dividi-los claramente e usar a avaliação de riscopara aqueles e outras técnicas para estes.

Os mercados dos OGMs

A área plantada global de transgênicos era de 1,7 milhão de hecta-res em 1966, de 11 milhões de hectares em 1997 e de 27,8 milhões dehectares em 1998; chegou a 39,9 milhões de hectares em 1999, tendocrescido vinte vezes entre 1996 e 1999. Até aqui, as taxas de adoção de

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plantações transgênicas não têm precedentes e, pelos padrões da indús-tria agrícola, são mais elevadas que as de qualquer nova tecnologia.7

Em 1999, quase 99% da área plantada global de culturas geneticamentemodificadas confinavam-se em três países: Estados Unidos (28,7 milhõesde hectares, representando 72% da área global), Argentina (6,7 milhões dehectares, equivalentes a 17% da área global) e Canadá (4 milhões de hec-tares, correspondentes a 10% da área global). O 1% restante distribuía-se ente a China, a Austrália e a África do Sul. Iniciou-se a produção noMéxico, na Espanha, na França, em Portugal, na Romênia e na Ucrânia.O aumento da área de cultivo transgênico da China foi a maior mudançarelativa em 1999, tendo aumentado de menos de 0,1 milhão de hectaresde algodão resistente aos insetos, em 1988, para aproximadamente 0,3milhão de hectares em 1999, o equivalente a 1% da participação global.

Tal como em 1998, o maior crescimento de plantações transgênicasde 1999 ocorreu nos Estados Unidos, onde houve um aumento de 8,2milhões de hectares, seguidos pela Argentina, com um crescimento de2,4 milhões de hectares, e pelo Canadá, com um aumento de 1,2 milhãode hectares. Os sete produtos geneticamente modificados cultivados co-mercialmente em 1999 foram a soja (54% da área global de culturas trans-gênicas), o milho (28%), o algodão (9%), a canola/colza (9%), a batata,a abóbora e o mamão.

O mercado global de produtos transgênicos cresceu rapidamente noperíodo de 1995 a 1999. Em 1995, estimaram-se em 75 milhões de dó-lares as vendas globais de produtos transgênicos. Em 1999, elas chega-ram a possíveis 3,2 bilhões de dólares (um aumento de trinta vezes).Projeta-se que o mercado global de produtos transgênicos alcançará apro-ximadamente 3 bilhões de dólares em 2000, 8 bilhões em 2005 e 25 bi-lhões em 2010.

Não obstante, a proliferação das iniciativas, em âmbito nacional einternacional, visando proscrever ou impor um controle rigoroso sobre oplantio de OGMs e o comércio de OGMs e seus produtos, o aumento da

7 Esta seção se baseia em: James, C. “Preview. Global Review of Commercialized TransgenicCrops: 1999”, International Service for the Acquisition of Agri-biotech Applications, ISAAABriefs, n.12, 1999.

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resistência pública, a recusa de um número cada vez maior de fabrican-tes de produtos alimentícios e de redes de supermercado a usar e venderprodutos transgênicos,8 assim como o número crescente de questõessobre a responsabilidade, estão provocando uma inversão da tendênciaao crescimento da indústria em diversos países. Os preços das ações dasempresas de biotecnologia agrícola vêm caindo, e a exportação de pro-dutos transgênicos enfrenta dificuldades. As exportações norte-ameri-canas de soja para a União Européia (UE) declinaram de 11 milhões detoneladas em 1988 para 6 milhões em 1999, ao passo que o milho ame-ricano enviado à Europa passou de 2 milhões de toneladas em 1998 para137 mil em 1999, com uma perda combinada de quase 1 bilhão de dólaresnas vendas da agricultura dos Estados Unidos (Halweil, 2000). É possí-vel que as exportações norte-americanas para o Velho Continente sejamainda mais afetadas quando a União Européia aprovar a legislação refe-rente à rotulagem obrigatória da ração animal. O Instituto Worldwatche a Associação Americana de Plantadores de Milho estimam que o plan-tio de GM pode se reduzir em 25% em 2000, em comparação com os anosanteriores, uma vez que os agricultores têm sérias dúvidas quanto à pos-sibilidade de vender produtos geneticamente modificados. As empresasde sementes e a Associação Americana da Soja têm outra opinião e argu-mentam que o mais provável é que o plantio de 2000 seja comparável aode 1999. Posto que os dados confiáveis para avaliar essas previsões sóestarão disponíveis na metade do ano,9 há uma pequena mas significati-va quantidade de evidências de que a resistência pública ao uso de ali-

8 Um número cada vez maior de produtores e varejistas decidiu não produzir nem estocarprodutos contendo OGMs – ou que não tenham certificado de ausência de OGM –, reagin-do à preocupação crescente entre os consumidores. A Frito-Lay, a maior produtora de sal-gadinhos do mundo, anunciou recentemente que deixaria de comprar milho e soja geneti-camente modificados. Está seguindo os passos de diversas outras empresas de produtosalimentícios, inclusive a Gerber e a H. J. Heinz, de alimento para bebês, as cadeias inglesasIceland e Sainsbury, a Asahi Breweries do Japão, a rede de supermercados Tesco (ReinoUnido) e a Migros (Suíça). A Nestlé, a maior indústria de produtos alimentícios do mun-do, deixou de comprar qualquer cereal de semente geneticamente alterada para as opera-ções européias. As redes de lanchonetes como a McDonald’s e a Burger King declaram aintenção de abandonar os ingredientes GM. Ver “International: GMO politics”, OxfordAnalytica Brief, 13 de março de 2000: 3, e “Vade retro OGM”, L’Expansion, 2-15 de marçode 2000, n.616.

9 Ver Oxford Analytical Brief, nota 10.

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mentos manipulados pela engenharia genética está afetando as decisõesde plantio dos produtores norte-americanos. Segundo o relatório de abrilde 2000 do United States Agricultural Statistics Board, os agricultoresamericanos parecem estar reduzindo as plantações de milho modificado– de 33% em 1999 para 25% em 2000. Os dados sobre o algodão e a sojamodificados são menos impressionantes, mas, principalmente no casodesta última, há indícios de que a demanda de sementes modificadas,por parte dos produtores, pode ter se estagnado ou caído ligeiramente.10

Por outro lado, a China acaba de dar um grande impulso no sentido decomercializar produtos geneticamente modificados, esperando que, den-tro de cinco anos, a metade de seus campos esteja ocupada por plantaçõesde arroz, tomate, páprica doce, batata e algodão geneticamente modifi-cados. Os motivos dessa iniciativa são a redução do uso de pesticidas eherbicidas e o enorme rendimento das culturas GM. A metade das semen-tes geneticamente modificadas usadas na China foi desenvolvida por cien-tistas locais: em 2000, o país destinou mais de 350 milhões de dólares àpesquisa voltada para a aplicação da biotecnologia à agricultura.11

A atual estrutura regulatória:países selecionados

A Comunidade Européia

No início da década de 1990, a Comunidade Européia (CE) introdu-ziu um sistema de aprovação da liberação deliberada (não-acidental) deOGM (“OGMs vivos”) no meio ambiente, com fins experimentais ou comoprodutos comerciais, a fim de assegurar um nível elevado e uniforme deproteção à saúde e ao ambiente em toda a Comunidade, assim como ofuncionamento eficiente do mercado internacional.12 Essa legislação

10 Ver Washington Trade Reports, v.VIII, n.7, 11 de abril de 2000.11 Ver “China sow seeds of GM crop expansion”, Times, 29 de fevereiro de 2000; “Differences

widen on use of modified foods”, Financial Times, 29 de fevereiro de 2000; e “Geneticengineering: Modified crops take root in China”, BBC World Update, 7 de junho de 2000.

12 Council Directive 90/220/EEC, 23 de abril de 1990, OJ L 117, 8 de março de 1990, p.15 ss.

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“horizontal” baseia-se numa abordagem orientada para o processo e dáuma atenção especial à modificação genética.13

Qualquer pessoa que deseje empreender a liberação deliberada deum OGM para pesquisa e desenvolvimento é obrigada a notificar as au-toridades competentes do país em cujo território se dará a liberação. Anotificação deve incluir uma avaliação de risco completa e detalhes dasadequadas medidas de segurança e emergência previstas. O interessadosó pode proceder à liberação se tiver sido autorizado. Desde que a Diretivaentrou em vigor, receberam-se mais de 1.600 notificações referentes amais de sessenta espécies de plantas.14 No caso de aplicações para colo-cação no mercado de produtos que contenham ou consistam em OGMs,exigem-se dados adicionais, inclusive instruções e condições de uso. Aautorização é dada pelas autoridades competentes do país afetado, masem nome de todos os Estados-membro, com base num procedimentobastante demorado e complexo, e, na eventualidade de conflito entre osEstados-membro, a decisão final fica a cargo da Comissão.15 Até o presen-te, as seguintes variedades de OGM foram aprovadas para colocação nomercado com base na Diretiva 90/220/EEC: três tipos de milho resistentea insetos, uma variedade de milho tolerante a herbicida, uma rutabagaresistente a herbicida, um fumo resistente a herbicida, uma chicória to-lerante a herbicida; e doze variedades de flores (cravos). Entretanto, desde

13 A outra parte da legislação horizontal consiste numa Diretiva sobre o uso restrito de mi-crorganismos geneticamente modificados que enfoca o processo de fabricação de MGM(Council Directive 90/219/EEC, 23 de abril de 1990, OJ L 117, 8 de maio de 1990, p.1 ss.)

14 Para mais detalhes, consultar o site http://food.jrc.it/gmo, mantido pela Comissão Européia.15 Se o país afetado decidir autorizar uma proposta de liberação, a Comissão apresenta o dossiê

aos demais países. Estes podem opor objeções justificadas. Na ausência delas, a autorida-de competente do país onde se iniciou o procedimento de autorização dá o seu consenti-mento para que o produto seja colocado no mercado. Sendo apresentadas objeções, as au-toridades competentes dos Estados-membros devem procurar chegar a um acordo. Se nãoconseguirem num prazo de sessenta dias, a Comissão tem de submeter uma minuta dasmedidas propostas a um comitê composto de representantes dos Estados-membros. A Co-missão pode propor que o OGM seja autorizado ou não, mas, até agora, sempre se mostroufavorável a autorizar a liberação deliberada. Se o comitê não concordar com a minuta daComissão ou não emitir opinião, submetem-se as medidas propostas ao Conselho. As de-cisões deste podem ser tomadas com maioria qualificada, mas, se não se chegar a um con-senso dentro de três meses, compete à Comissão tomar a decisão final. Ver uma análise daDiretiva 90/220 em Douma & Matthee (1999).

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junho de 1999, ocorreu a suspensão de fato da aprovação de OGMs emrazão da onda de reivindicações em toda a Europa para que se proíba oupelo menos se imponham restrições ao plantio de produtos geneticamen-te modificados e à importação de commodities e alimentos GM. Com baseno Artigo 16 da Diretiva – que autoriza os Estados-membros a restringirou proibir provisoriamente o uso e a venda de um produto aprovado desdeque haja motivos justificados para considerá-lo um risco para a saúde ouo meio ambiente humanos –, Áustria, Luxemburgo, Alemanha, França eGrécia proibiram ou restringiram o uso de variedades de produtos GM.

No início, a Diretiva 90/220/EEC não apresentou virtualmente ne-nhuma estipulação referente à informação na embalagem. Contudo, deacordo com uma emenda de 1997,16 a Comissão da CE tornou-a obriga-tória quando um produto consiste ou contém OGMs. Nos produtos con-sistentes numa mistura de OGMs com organismos não modificados ge-neticamente, deve-se indicar a possível presença de OGMs.

Em fevereiro de 1998, a Comissão submeteu ao Conselho uma pro-posta de alteração da Diretiva 90/220/EEC. Depois de ouvir a opiniãodo Parlamento Europeu, a Comissão apresentou uma nova versão daproposta ao Conselho em março de 1999. Em dezembro daquele ano,este adotou uma posição comum acerca de uma Diretiva revista.17 Asprincipais inovações são a limitação da autorização para colocar OGMsno mercado a um período fixado (renovável) e a introdução de um siste-ma de monitoramento compulsório dos OGMs colocados no mercado afim de rastrear e identificar qualquer efeito direto ou indireto, imediato,retardado ou imprevisível sobre a saúde e o ambiente humanos. A Diretivafaz referência ao princípio da precaução e à necessidade de respeitar osprincípios éticos; inclui informação e consulta públicas. Fornece umametodologia para avaliar os riscos associados à liberação de OGMs e ummecanismo que permite que a liberação seja alterada, suspensa ou ex-tinta assim que estiverem disponíveis novas informações sobre os riscosde tal liberação. O novo texto deixa claro que os produtos que contêm

16 Comission Directive 97/35/EC, 18 de junho de 1997, OJ L 169, 27 de junho de 1997, p.73 ss.17 EC Council, Common Position (EC) n.12/2000, adotada pelo Conselho no dia 9 de de-

zembro de 1999, OJ C 64, 6 de março de 2000, p.1 ss.

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ou consistem em OGMs cobertos pela Diretiva não podem ser importa-dos na CE se não se ajustarem a suas determinações.

No dia 12 de abril de 2000, o Parlamento Europeu aprovou diversasemendas ao texto revisto da Diretiva. Solicita-se o reforço da avaliaçãode risco e que a Diretiva sofra novas emendas e seja esclarecida à luz doProtocolo sobre Biossegurança. Adotou-se também uma emenda queexigia a autorização prévia de terceiros países importadores de OGMs.Estabeleceu-se o ano de 2005 como data-limite para a suspensão do usode OGMs resistentes aos antibióticos. A Comissão Européia espera queesse novo instrumento legal aumente a confiança dos consumidores nosistema regulatório. Embora a Diretiva contenha normas rigorosas deaprovação e monitoramento dos OGMs, as empresas de biotecnologia aestão apoiando na expectativa de que ela ajude a pôr fim à suspensão defato no registro de novos produtos modificados na UE.

Ademais da legislação “horizontal”, a CE adotou várias diretivas eregulamentações “verticais”. Essa legislação “vertical” volta-se para o pro-duto e trata de aspectos específicos dos produtos resultantes da modifi-cação genética. A introdução da legislação vertical alterou a natureza dalegislação da CE sobre os OGMs, até aqui puramente orientada para oprocesso.

A legislação relacionada com novos alimentos e ingredientes alimen-tares faz parte da abordagem regulatória “vertical”.18 Determina que, afim de proteger a saúde pública, garantir o funcionamento adequado domercado interno e criar condições para uma concorrência leal, é precisoassegurar que, antes de serem colocados no mercado da UE, os novos19

alimentos e ingredientes alimentares passem por uma única avaliaçãode segurança mediante o procedimento da Comunidade. As empresasque desejarem comercializar um alimento novo na UE são obrigadas aapresentar uma solicitação à autoridade competente do Estado-membrona qual pretendem iniciar a comercialização do produto. Uma cópia dasolicitação é enviada à Comissão da CE. No caso de alimento ou ingredien-te alimentar que contenha OGMs, é obrigatória uma avaliação específica

18 Regulation (EC) n.258/97, 27 de janeiro de 1997, OH L 043, 14 de fevereiro de 1997, p.1 ss.19 Conforme a Regulamentação, novos são os alimentos e ingredientes alimentares ainda não

utilizados no consumo humano em grau significativo no interior da Comunidade, particu-larmente os que contêm ou derivam de OGMs.

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de risco ambiental. A autoridade competente conclui uma avaliação desegurança inicial e a entrega à Comissão. Esta envia, então, cópias daavaliação aos demais Estados-membros para comentários. Se a avalia-ção inicial for favorável e os Estados-membros a ela não opuserem obje-ção, o produto pode ser comercializado. Durante a avaliação, a autoridadecompetente pode solicitar mais dados ou pesquisa a qualquer momento.Também as autoridades competentes dos outros Estados-membros têmo direito de escolher opor objeções ou expor preocupações. Caso hajaobjeções ou se o Estado-membro inicial considerar necessária uma ava-liação adicional, solicita-se a autorização final do Comitê Permanente deProdutos Alimentícios da CE, sendo consultado o Comitê Científico deAlimentação, se necessário. Não se chegando a um acordo nesta instância,a matéria é submetida ao Conselho de Ministros. A regulamentação per-mite aos Estados-membros suspender ou restringir temporariamente ocomércio e o uso de novos alimentos e ingredientes alimentares em seusterritórios se um país, com base em informações novas ou numa rea-valiação da informação existente, tiver motivo para considerar que o novoproduto põe em risco a saúde humana ou o meio ambiente (Artigo 12).

A Nova Regulamentação do Alimento incorpora normas especí-ficas de informação na embalagem de produtos desenvolvidos pela bio-tecnologia. Torna-a obrigatória e exige que os consumidores sejaminformados das diferenças entre o novo produto e os equivalentesexistentes.20

Espera-se que se esclareça e se torne mais transparente o procedi-mento de autorização da colocação no mercado de novos alimentos eingredientes alimentares. É provável que, no fim de 2000, a ComissãoEuropéia adote uma regulamentação de implementação esclarecendo osprocedimentos estipulados pela Nova Regulamentação do Alimento. Ela

20 A embalagem deve informar o consumidor final sobre: (a) toda e qualquer característica depropriedade alimentar que faça que o novo alimento ou ingrediente não seja equivalente aum alimento ou ingrediente já existente; (b) a presença, no novo alimento ou ingrediente,de material que não esteja presente no produto alimentício similar existente e que possater implicações para a saúde de certos segmentos da população; (c) a presença, no novoalimento ou ingrediente, de material ausente num produto alimentício similar existente eque suscite restrições éticas; e (d) a presença de um organismo geneticamente modificadopor técnicas de modificação genética, cuja lista não exaustiva é fixada pela Diretiva 90/220EEC (Artigo 8).

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também apresentará uma proposta de aperfeiçoamento dessa Regulamen-tação conforme a Diretiva revista sobre a liberação deliberada de OGMsno meio ambiente. Ademais, serão complementadas e harmonizadas asdeterminações sobre a informação na embalagem.21

No dia 21 de outubro de 1999, chegou-se a um acordo sobre a legis-lação para reforçar a informação de embalagem do GM.22 As novas nor-mas,23 que entraram em vigor no dia 10 de abril de 2000, ampliaram asexigências quanto à informação na embalagem, passando a incluir os ali-mentos e ingredientes alimentares com aditivos e aromatizantes geneti-camente modificados ou produzidos a partir de organismos geneticamen-te modificados. A Regulamentação n.49/2000 define um patamar deminimis de informação na embalagem de 1% (de cada ingrediente consi-derado isoladamente) de conteúdo acidental de material geneticamentemodificado em produtos não GM. O objetivo desse patamar é resolver oproblema enfrentado pelos operadores que tentam evitar os OGMs, po-rém, por causa da contaminação acidental, seus produtos acabam apre-sentando uma baixa porcentagem de material modificado.

Concluindo, os produtos autorizados pela Nova Regulamentação doAlimento que contenham ou compreendam OGMs (por exemplo, umaplanta, parte de uma planta em que ainda se verifica a presença de mate-rial genético, como o milho que se pode comer diretamente ou um to-mate modificado) devem ser etiquetados. Os produtos derivados de OGMse autorizados pela Nova Regulamentação do Alimento devem trazer eti-queta ou informação na embalagem se já não equivalerem a um produtoou ingrediente alimentício existente (por exemplo, o óleo de milho GM

ou o extrato de tomate cujo processamento refina o produto de modoque o DNA já não esteja presente). Os alimentos não GM acidentalmen-te contaminados devem ser etiquetados quando a contaminação, em ter-mos do ingrediente, ultrapassar 1%.

21 Ver Communication by the European Communities, White Paper on Food Security, COM (1999)719 fim, 12 de janeiro de 2000.

22 Ver European Commission, Press Release, “Commission proposes de minimis thresholdand labelling rules for GMOs”, Bruxelas, 22 de outubro de 1999. Disponível em <http://europa.eu.int/commdg03/press/ 1999/IP99783.htm>.

23 Commission Regulation (EC) n.50/2000, 10 de janeiro de 2000, OJ L 006, 11 de janeiro de2000, p.15 ss. e Commission Regulation (EC) n.49/2000 de 10 de janeiro de 2000, OJ L006, 11 de janeiro de 2000, p.13 ss.

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Em janeiro de 2000, a Comissão apresentou uma proposta de Diretivaque incluirá a obrigatoriedade de informação na embalagem da ração ani-mal.24 A Diretiva emendará a legislação anterior sobre a comercializaçãode produto alimentício composto, visando, no que se refere à informa-ção da embalagem, garantir que os criadores de gado tenham conheci-mento da composição e do uso das rações. Após a crise de EEB (encefalo-patia espongiforme bovina) e os acontecimentos de 1999 relativos aosóleos e aditivos contaminados com dioxina, os Estados-membros da CEmanifestaram insatisfação com as normas de rotulagem existentes e su-blinharam a importância da informação qualitativa e quantitativa deta-lhada na embalagem das rações compostas. A proposta da Comissãoimpõe uma declaração obrigatória de todo o material alimentício, assimcomo da sua quantidade das rações compostas, arrolado numa etiquetaou no documento que o acompanha. Os Estados-membros também es-tão contemplando a necessidade de informar a presença ou a ausênciade derivados de material GM na ração animal.

Como atualmente não há nenhuma regulamentação específica na UE,referente à rotulagem “sem GM”, alguns Estados-membros, como o ReinoUnido, estão fazendo pressão para que se desenvolva uma disciplinaabrangente sobre o assunto no âmbito europeu.25

Os consumidores europeus vêm demonstrando um interesse cadavez maior por produtos “orgânicos” – cujo mercado está crescendoexponencialmente –, como uma reação aos múltiplos escândalos envol-vendo a segurança alimentar, mas também como um modo de protegero meio ambiente. Informou-se que, na União Européia, 100 mil agricul-tores e processadores de produtos alimentícios produzem alimento or-gânico. Há 2,5 milhões de hectares de cultivos orgânicos. Embora essaquantidade represente menos de 2% da área cultivada total, triplicou nosúltimos quatro anos.26

24 Commission of the European Communities, Proposal for a European Parliament and CouncilDirective amending Directive 79/373/EEC on the marketing of compound feeding stuffs,COM(1999) 744 fim, 2000/0015 (COD), 7 de janeiro de 2000.

25 Ver Genetic Modifications Issues (GM): GM Food Labelling (Site do United KingdomCabinet Office Genetic Modification (GM) Issues, http://www.gm-info.gov.uk/1999/gmfoodlabel.htm).

26 Ver “Europe sees potential in organic foods”, Reuters, 9 de março de 2000 e “L’euphorie del’agriculture verte”, Le Figaro, 2 de abril de 2000.

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O Japão

Acompanhando o comportamento europeu com relação aos OGMs,o governo japonês introduziu recentemente a obrigatoriedade da rotu-lagem dos produtos finais contendo OGMs em reação às preocupaçõesdos consumidores. Em 1997, criou-se uma comissão subordinada aoMinistério da Agricultura, Florestamento e Pesca (MAFP) e encarregadade desenvolver normas de rotulagem. O público foi estimulado a comen-tar o projeto de lei, e a comissão recebeu mais de 10 mil sugestões. Osistema de rotulagem será aplicado a uma variedade de produtos alimen-tícios, a maioria deles incluída na dieta tradicional japonesa, que conte-nham ingredientes geneticamente modificados, como o milho, a soja, abatata e o nabo. As normas de rotulagem foram publicadas em abril de2000 e é provável que se tornem obrigatórias em abril de 2001. O siste-ma deve dar ao consumidor informação que lhe permita fazer uma esco-lha informada.

A embalagem deve indicar mesmo os casos em que não for possívelcomprovar a presença de um componente geneticamente modificado, masos produtores não podem excluir a possibilidade de uso de algum mate-rial GM. Já se implementou um sistema opcional de rotulagem “sem GM”.

No outono de 1999, o MAFP passou a inspecionar produtos GM im-portados nos portos mais importantes do país. Atualmente, há 22 OGMsoficialmente reconhecidos como “comprovadamente seguros”. As ins-peções visam garantir a segurança dos GMs classificados como “compro-vadamente seguros” e separá-los dos reprovados. Pode-se proibir a en-trada dos produtos inspecionados, caso se constate que não constam nalista dos aprovados.

No dia 20 de janeiro de 2000, o MAFP divulgou a definição oficial deprodutos agrícolas e alimentos orgânicos processados a partir de produ-tos agrícolas a fim de deter a proliferação de embalagens “orgânicos”baseadas na definição do próprio produtor. Os produtos GM estão incluí-dos entre os que não podem ter o rótulo “orgânicos”. O novo sistemaentrará em vigor no dia 1º de outubro de 2000.27

27 Ver MAFF Update, n.345, 4 de fevereiro de 2000. (Disponível em <http://www.maff.go.jp/mud /345.html>.)

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Os Estados Unidos

Os produtos da biotecnologia são vendidos nos Estados Unidos desde1996 e as plantações já ocupam milhões de hectares. Correspondem apro-ximadamente à metade da produção de soja e algodão, a um terço da demilho e, em proporções menores, de canola, batata e abóbora. O gover-no aprovou cerca de cinqüenta variedades de produtos geneticamentemodificados. Encontram-se a soja e o milho modificados em centenasde alimentos processados.

No dia 3 de maio de 2000, visando reforçar a confiança do consumi-dor nos alimentos GM, o governo Clinton divulgou o plano de aumentara vigilância federal sobre os produtos alimentícios geneticamente modi-ficados e tornar os detalhes dessa vigilância mais acessíveis ao público.Em particular, a nova proposta resulta do empenho da Food and DrugAdministration (FDA),28 órgão subordinado ao Ministério da Saúde, afazer um levantamento da opinião pública acerca da política dos alimen-tos GM. Em outubro de 1999, a FDA havia colhido centenas de depoi-mentos e mais de trinta mil comentários escritos de indústrias farma-cêuticas e de biotecnologia, de empresas de sementes, de grupos agrícolas,de produtores e processadores de alimento, de marqueteiros, de gruposde consumidores, de ambientalistas e outros.29

De acordo com a proposta, as empresas de biotecnologia ficariamobrigadas a notificar a FDA, com quatro meses de antecedência, a co-mercialização de um novo produto alimentício geneticamente modifica-do, fornecendo ao órgão e ao público os resultados de pesquisa que lhegarantam a segurança. Até agora, o processo tem sido voluntário. Ade-mais, a FDA pretende criar um mecanismo regulatório que leve, inicial-mente, à rotulagem voluntária dos produtos alimentícios, tanto os ge-neticamente modificados quanto os sem ingredientes alterados.

28 Food and Drug Administration, órgão encarregado de controlar alimentos, cosméticos eprodutos farmacêuticos e biológicos. Corresponde à nossa Agência Nacional de VigilânciaSanitária. (N. T.)

29 Os parágrafos relacionados com a proposta de 30 de maio de 2000 baseiam-se em “U. S. toadd oversight on biotech food”, Washington Post on-line, 3 de maio de 2000, <washingtonpost.com/wp-dyn/articles/A56999-2000May2.html>, e em informações fornecidas pela equi-pe do Washington Trade Reports.

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Um desenvolvimento significativo da proposta é o maior envolvimen-to do Ministério da Agricultura (USDA) e da Agência de Proteção Am-biental (EPA) com o processo regulatório. O USDA ficaria diretamentecomprometido com a validação dos novos testes científicos destinados adetectar a presença de ingredientes geneticamente alterados. A EPA em-preenderia uma revisão de seis meses de suas regulamentações ambien-tais referentes ao teste, ao monitoramento e à aprovação do uso de pro-dutos agrícolas manipulados pela engenharia genética.

Tudo indica que a resistência cada vez maior do consumidor ao ali-mento GM modificou a visão que as indústrias alimentícia e agrícola ti-nham da regulamentação governamental. Conquanto anteriormente osgrupos industriais tenham se oposto às tentativas de introduzir novosprocedimentos regulatórios, eles agora parecem acreditar que uma abor-dagem mais enérgica e mais clara do governo dará ao consumidor a cer-teza de que os produtos são considerados seguros. A indústria da biotec-nologia, que no passado resistiu decididamente à rotulagem, alegandoque tal prática estigmatizaria os produtos manipulados pela engenhariagenética ou sugeriria a superioridade dos alimentos sem ingredientes GM,agora se mostra disposta a aceitá-la como um instrumento necessárioao combate ao ceticismo do consumidor. É possível que a indústria as-socie o apoio à rotulagem voluntária a um empenho maior em informaro público dos benefícios dos alimentos GM. A Biotechnology IndustryOrganization, por exemplo, lançou uma grande campanha publicitáriana mídia, exaltando os benefícios da biotecnologia na alimentação e namedicina.

No dia 2 de maio de 2000, os governadores de treze Estados30 anun-ciaram uma campanha para melhorar a imagem pública dos alimentosgeneticamente modificados, informando os consumidores sobre a ciên-cia desse tipo de gênero alimentício. Declararam que assim procederiamem razão dos desafios econômicos para os agricultores e da necessidadede aumentar o valor dos produtos agrícolas de modo que a atividade ren-desse bons lucros. Também enfatizaram que a iniciativa estava ligada a

30 Os Estados em questão são: Delaware, Idaho, Illinois, Indiana, Iowa, Michigan, Missouri,Nebraska, Nevada, Carolina do Norte, Dakota do Norte, Washington e Wisconsin.

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considerações ambientais sobre a qualidade da água e do ar resultanteda grande dependência de defensivos agrícolas e fertilizantes.31

Ao contrário da reação positiva da indústria alimentícia, a propostado governo Clinton não empolgou os grupos de consumidores, que ar-gumentaram que o plano não atendia às suas necessidades, sobretudono tocante à obrigatoriedade da rotulagem dos alimentos GM.

As partes interessadas terão oportunidade de comentar a propostapor escrito, e é provável que se ministrem palestras até o final de 2000.Em razão da complexidade das questões e do grande número de comen-tários esperados, o mais provável é que a FDA tenha de alterar a propos-ta antes de passar para o estágio final. Espera-se que o processo seja lon-go e prossiga mesmo depois de terminado o mandato de Clinton (em 20de janeiro de 2001).

Em novembro de 1999, apresentou-se no Congresso dos EstadosUnidos um projeto de lei impondo a rotulagem de todos os alimentosque contenham um elemento geneticamente modificado (Kucinich bill,H. R. 3377). Em 15 de abril de 2000, o projeto contava com o apoio de51 parlamentares. Sem embargo, são bem remotas as possibilidades deque avance antes do fim do 106º Congresso (aproximadamente em 8 deoutubro de 2000). Ainda que o total de 51 congressistas seja um númerorespeitável, nenhum deles representa a indústria agrícola norte-ameri-cana. Em segundo lugar, como todos os projetos de lei, o H. R. 3377 teráde passar por uma ou mais comissões de jurisdição. No caso, trata-se daComissão de Agricultura e da Comissão de Comércio, ambas da Câmarados Deputados. Atualmente, nenhuma delas tem intenção de se ocuparda questão dos OGMs em geral e muito menos do projeto Kucinich emparticular. Na visão das comissões, a questão é tão nova e está tão poucodesenvolvida que seria precipitado o Congresso legislar imediatamente.Em março de 2000, o sr. Kucinich apresentou um projeto adicional (H.R. 3883) que orientava a FDA a rever seus procedimentos para reavaliara segurança dos alimentos manipulados pela engenharia genética. No dia22 de fevereiro de 2000, a senadora Barbara Boxer (democrata da

31 Ver “13 governors will promote genetically altered foods”, St. Louis Post-Dispatch, 3 de maiode 2000.

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Califórnia) propôs, no Senado, mais um projeto de lei da rotulagem dosOGMs (S. 2080). Até agora, não recebeu apoio de nenhum colega. Pelosmesmos motivos que na Câmara dos Deputados, há muita relutância emlegislar sobre a questão dos OGMs no Senado.

Concluindo, nada indica que o Congresso esteja ávido por procederà legislação do OGM no ano de 2000. Sem dúvida, está interessado, masainda não conseguiu solucionar muitos problemas. Em tais circunstân-cias, reluta em agir, por mais que os agricultores reclamem uma orienta-ção definitiva do governo. Considera-se que a questão tem uma impor-tância enorme para os Estados Unidos.32

No dia 8 de março, a FDA divulgou sua proposta final de regulamen-tação dos alimentos “orgânicos”. Foi a segunda tentativa do governo dedefinir alimento “orgânico”, já que a primeira fracassou há dois anos, emmeio a controvérsias. Depois de meses examinando mais de 2 mil co-mentários recebidos em resposta à primeira proposta, a FDA parece es-tar adotando um critério bastante rigoroso. Todo alimento etiquetado“orgânico” deve ter sido produzido sem o uso de muitos tipos de fertilizan-tes, inclusive a adubagem com lodo de esgoto, não pode ser irradiadopara o controle das pragas e não pode se desenvolver usando qualquertipo de modificação genética. Presume-se cada vez mais, nos EstadosUnidos, que os produtos agrícolas orgânicos podem estar impondo pre-ços mais elevados que o dos bens produzidos convencionalmente. Já osprodutos manipulados pela engenharia genética, pelo contrário, tendema ser vendidos a bom preços, em comparação com os produtos agrícolasconvencionais, apesar dos custos possivelmente mais altos de separar,armazenar, transportar e rotular os produtos modificados.33

As iniciativas dos outros países

A Austrália-New Zealand Food Authority [Autoridade alimentar aus-traliana-neozelandesa] (ANZFA) desenvolveu normas para os alimen-tos geneticamente modificados que entraram em vigor no dia 13 de maiode 1999. Estas impõem uma avaliação de segurança, a cargo da ANZFA,

32 Informação fornecida pela equipe do Washington Trade Reports.33 Ver Washington Trade Reports, v.VIII, n.7, 11 April 2000.

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antes que os produtos sejam comercializados. Também tornam obriga-tória a rotulagem dos alimentos substancialmente diferentes dos equi-valentes convencionais. Há pouco tempo, os ministros da Saúde da Aus-trália e da Nova Zelândia convieram que tal obrigatoriedade deveestender-se a todos os alimentos GM para que o consumidor esteja in-formado. Submeteu-se ao comentário público um projeto de padrão eum esboço de protocolo destinado a orientar a implementação práticado novo sistema de rotulagem. Os ministros esperam concluir os deta-lhes da extensão do sistema em julho de 2000.34

Na Nova Zelândia, os testes de campo e liberação de OGMs reali-zam-se conforme a Lei de Substâncias Perigosas e Novos Organismos,de 1996. A Autoridade de Administração de Risco Ambiental controla odesenvolvimento, a produção, a importação e a liberação de OGMs nopaís. As decisões sobre a administração de risco são tomadas com baseem prova científica e levam em conta considerações ambientais, sanitá-rias e econômicas, assim como os compromissos multilaterais assumi-dos pelo país.35

No Canadá, o Conselho Canadense de Distribuidores de Secos eMolhados, que representa cerca de 80% dos varejistas da indústria alimen-tícia do país, concordou, em setembro de 1999, em desenvolver um re-gime de rotulagem voluntária de alimento GM em parceria com o Con-selho Canadense de Normas Gerais e com uma variedade de interessadosda indústria, dos grupos ambientalistas, dos consumidores e do mundoacadêmico. O rótulo indicará se um produto alimentício foi produzidomediante a alteração genética. A comissão formada com esse fim estádesenvolvendo princípios e modelos gerais de declarações voluntárias,de procedimentos requeridos para verificar a veracidade de tais declara-ções, de princípios de um mecanismo de certificação e de definições cla-ras e concisas. Espera-se que o primeiro esboço esteja concluído no fimde 2000. Tal iniciativa é sobretudo uma reação à exigência do consumi-dor de mais informação sobre os alimentos GM. O governo canadense

34 A OCDE e a Unido desenvolveram juntas um banco de dados sobre os desenvolvimentosregulatórios no campo da biotecnologia. Pode-se ter acesso à informação nos seguintes sites:<www.binas.unido.org/binas> (para os países-membros da Unido) e <www.oecd.org/ehs/country.htm> (para os países-membros da OCDE).

35 Informação fornecida pelo Ministério da Agricultura e Florestamento da Nova Zelândia.

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apóia essa postura e a considera compatível com suas obrigações comer-ciais internacionais.36

Na Suíça, a aprovação de um projeto de lei apresentado pelo Conse-lho Federal em janeiro de 2000, que autorizaria a liberação voluntária deOGMs no meio ambiente em determinadas condições, parece fadada aenfrentar obstáculos, já que uma ampla aliança que inclui a Associaçãode Agricultores, grupos ambientalistas e associações de consumidoresse opõe e está propondo suspender durante dez anos a liberação de OGMno meio ambiente. De acordo com a Associação de Agricultores, há doismotivos para não plantar sementes modificadas no país: os consumido-res são contra elas; e são as empresas transnacionais, não os agriculto-res, que atualmente se beneficiam da biotecnologia.37

Em 1994, ampliou-se a legislação tailandesa sobre a quarentena deplantas para abranger os OGMs. Desde então, a liberação no meio ambien-te e a importação de sementes e produtos agrícolas geneticamente mo-dificados passaram a depender de um rigoroso sistema de aprovação. Atéo presente, as autoridades do país só aprovaram a liberação de OGMs nomeio ambiente com fins experimentais. Contudo, a importação de sojae milho foi liberada e não precisa passar pelo processo de aprovação.Reagindo às restrições dos consumidores, a FDA tailandesa está pensan-do em impor, a partir de 2001, um sistema de rotulagem de todos osprodutos que utilizarem OGMs. Discute-se se o sistema deve ser obriga-tório ou voluntário e que quantidade de OGM num produto há de sujeitá-lo à rotulagem. Uma precondição da implementação do sistema derotulagem proposto será, obviamente, equipar as autoridades com atecnologia necessária ao teste dos produtos GM.38

A República da Coréia aprovou uma legislação, em março de 2000,concernente à rotulação obrigatória da soja, do milho e do broto de sojageneticamente modificados. Entrará em vigor em 2001.39

Em Sri Lanka, o Comitê Nacional Consultor sobre a Alimentaçãoestá estudando a possibilidade de proibir a importação de OGMs e de

36 Ver WTO, Communication from Canada. The Development of a Voluntary Standard forthe Labelling of Foods Derived from Biotechnology, G/TBT/W/134, 23 de maio de 2000.

37 Ver “Le projet du Conseil fédéral sur les OGM court à la défaite” e “S’adapter au marché? Lespaysans prennent au mot les partisans du génie génétique”, Les Temps, 28 de abril de 2000.

38 Informação fornecida pela Agência Nacional de Ciência e Tecnologia da Tailândia.39 WTO, G/TBT/Notif.004/49, 1º de fevereiro de 2000.

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alimento GM, já que faltam informações precisas sobre as conseqüênciasa longo prazo desses novos produtos. A lista de alimentos que podemser proibidos está sendo examinada; ao mesmo tempo, as autoridadescingalesas também estão avaliando outras opções menos restritivas aocomércio.40

Em março de 2000, o Senado mexicano aprovou unanimemente umareforma da Lei Geral da Saúde para que os alimentos transgênicos pro-duzidos tanto no México quanto no exterior tenham um rótulo que osidentifique como tais e especifique o tipo de modificação genética ocor-rido. A lei aguarda a aprovação da Câmara dos Deputados mexicana.41

As soluções multilaterais

Atualmente, o comércio internacional de OGMs deve realizar-se deacordo com as normas acordadas pelos membros da OMC no fim da Ro-dada do Uruguai, particularmente as definidas nos acordos SPS e TBT eno GATT em 1994. Não obstante, estão surgindo disciplinas referentesao comércio de OGM a partir de acordos multilaterais específicos nego-ciados fora do contexto exclusivo do comércio, como o recentemente fir-mado Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, ou pode ser produ-zida no futuro, por grupos ad hoc, como o proposto Grupo de Trabalhosobre Biotecnologia da OMC. Organizações intergovernamentais comexpertise específica no ramo estão executando um trabalho técnico emáreas-chave, como a análise de risco dos alimentos derivados da biotec-nologia ou a metodologia de identificação desses produtos. Outras or-ganizações estão oferecendo um foro de discussão para dar resposta aosinteresses e preocupações dos países membros. As normas incluídas emdiferentes instrumentos legais e as conclusões tiradas em foros distin-tos podem não ser totalmente coerentes entre si e talvez originem con-flitos entre os países exportadores de OGM e os importadores potenciais.

40 Ver “Sri Lanka: Government bans genetically engineered foods”, South-North DevelopmentMonitor, 14 de abril de 2000, e a informação fornecida pela Missão Permanente de Sri Lankaem Genebra.

41 Ver “Trade: Mexico Senate approves transgenic product labelling”, Suns, 4 de abril de 2000.

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O Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança

O Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança,42 negociado com opatrocínio da Convenção sobre Diversidade Biológica (Rio de Janeiro,1992), foi adotado no dia 29 de janeiro de 2000, depois de quatro anosde negociações. Entrará em vigor noventa dias depois de recebido o 50ºinstrumento de ratificação. O Protocolo foi aberto para assinatura noQuinto Encontro da Conferência das Partes da Convenção sobre Diver-sidade Biológica (Nairobi, 15-26 de maio de 2000), quando o assinaram64 países e a Comunidade Européia. A partir de 5 de junho de 2000, fi-cará um ano disponível para assinatura.

O Protocolo estabelece regras de transferência, manuseio, uso e des-carte seguros de “organismos vivos modificados” (OVMs). Seu objetivoé tratar das ameaças que os OVMs apresentam para a diversidade bioló-gica, levando também em conta os riscos para a saúde humana. Algu-mas delegações defenderam o emprego da expressão “organismos vivosmodificados”, em vez de “organismos geneticamente modificados”, porconsiderá-la uma definição mais precisa. Os Estados Unidos, por sua vez,apoiaram-no decididamente para enfatizar que o uso da engenharia ge-nética não resultou em produtos mais perigosos que os obtidos por ou-tros meios de alterar os seres vivos. O Protocolo define organismos vi-vos modificados como “qualquer organismo vivo que possua uma novacombinação de material genético obtida por meio da biotecnologia mo-derna” (Artigo 3(g)).

Na Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), a proposta de cláu-sulas que contemplassem a transferência, a gestão e o uso de OVMs par-tiu de um grupo de expertos formado durante as negociações da CDB.Contudo, não houve tempo nem disposição sincera para desenvolvê-lase incluí-las na Convenção, de modo que se decidiu negociar cláusulasespecíficas de biossegurança num estágio posterior e incluí-las no pro-tocolo. A Malásia e a Etiópia, em nome do Grupo Africano, foram os advo-gados mais expressivos da idéia de desenvolver um Protocolo sobre

42 Em geral, o termo “biossegurança” descreve um conjunto de medidas tomadas para avaliarqualquer risco associado aos OGMs.

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Biossegurança e contaram com o apoio da maioria dos países subdesen-volvidos, dos escandinavos e de grupos ambientalistas.43

Durante as prolongadas e complexas negociações do Protocolo, sur-giram cinco grupos principais. O Grupo do Consenso era composto pelagrande maioria dos países em desenvolvimento (com exceção dos quese integraram ao Grupo de Miami e ao do Compromisso). Eles enfatiza-ram o que a falta de capacidade de avaliar e gerir os perigos que os OGMspodem significar para a biodiversidade e a saúde humana. Deixaram claroque, dada a inexistência de um arcabouço regulatório para a biossegurançana maioria das nações subdesenvolvidas, estas arriscavam tornar-se ocampo de teste da liberação dos OGMs produzidos nos países desenvol-vidos. Por esse motivo, reivindicaram a imposição da obrigação interna-cional de compartilhar informação sobre todos os tipos de OVMs. O GrupoMesma Opinião apoiou uma ampla cobertura do Protocolo, a vigorosa for-mulação e implementação do princípio da precaução, a inclusão da exi-gência de que os exportadores de OVMs forneçam informação que dê aospaíses importadores a possibilidade do consentimento informado, a iden-tificação e a documentação abrangentes dos embarques de OVMs, assimcomo a possibilidade de levar em conta a saúde humana e consideraçõessocioeconômicas na tomada de decisão. O Grupo de Miami incluía os prin-cipais exportadores de sementes e produtos agrícolas geneticamentemodificados e os principais detentores da tecnologia relacionada: a Ar-gentina, a Austrália, o Canadá, o Chile, os Estados Unidos e o Uruguai.Embora fossem produtores e exportadores de sementes e produtos agrí-colas GM, a Argentina, o Chile e o Uruguai não tinham condições dedesenvolver novos OGMs. As principais metas do grupo eram reduzir aabrangência do Protocolo, excluindo dele os produtos básicos genetica-mente modificados; limitar a possibilidade de recorrer ao princípio daprecaução e a considerações socioeconômicas na tomada de decisão; eaplicar o rigoroso sistema do Acordo de Informação Prévia (AIA em in-glês) unicamente aos OVMs destinados à introdução no meio ambiente.

43 Os parágrafos acerca da história das negociações do Protocolo sobre Biossegurança ba-seiam-se em Grupta, A., “Framing ‘biosafety’ in an international context”, ENRP DiscussionPaper E-99-10, Kennedy School of Government, Harvard University, 1999; e Cosbey, A. eBurgiel, S., “The Cartagena Protocol on Biosafety: An analysis of results”, IISD Briefing Note,International Institute for Sustainable Development, 1999.

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Os negociadores da União Européia (UE), que enfrentavam escândalosde segurança alimentar em seus países e estavam sob a vigilância e a pres-são das organizações de consumidores e dos grupos ambientalistas se-riamente preocupados com a segurança dos OGMs, empenharam-se emaprovar um protocolo forte, que incluísse os riscos para a saúde, abran-gesse os produtos básicos geneticamente modificados, adotasse a podero-sa linguagem do princípio da precaução e fizesse referência ao princípiode não-discriminação entre itens produzidos internamente e importados.Ademais, a UE estava justamente desenvolvendo e implementando umalegislação nessa área e, portanto, interessava-lhe concluir um instrumentomultilateral que acomodasse a legislação existente. O Grupo do Compro-misso incluía Japão, México, República da Coréia, Cingapura, Suíça e NovaZelândia. Embora o grupo tivesse uma posição comum quanto à inclu-são do princípio da precaução à ampla abrangência do Protocolo, seuobjetivo central era conciliar as principais diferenças entre os demaisgrupos. Aliás, teve um papel importantíssimo na formação do consensofinal sobre o texto do Protocolo. O Bloco de países da Europa Central eOriental (ECO) adotou uma posição intermediária entre a UE e o GrupoMesma Opinião. Sua meta principal, nas negociações, era contribuir comum texto que fosse prático e aplicável. Duas coalizões não-estatais tive-ram uma importante presença nas negociações: a Coalizão Global daIndústria, constituída de mais de 2.200 empresas agrícolas, alimentíciase farmacêuticas, com posição quase idêntica à do Grupo de Miami; e umacoalizão internacional de segurança do consumidor e de gruposambientalistas, que apoiava o ponto de vista do Grupo Mesma Opinião.

Durante as negociações, um dos tópicos centrais de disputa foi se,na presença de significativa incerteza científica, a abordagem do princí-pio da precaução era uma base adequada sobre a qual tomar decisões. OGrupo de Miami e o da indústria pediu que todas as decisões sob a égidedo Protocolo fossem tomadas com base na ciência, pressupondo que osriscos potenciais apresentados pelos OVMs já eram bem conhecidos. Se-gundo eles, a ciência era a única base objetiva e padronizada no processode tomada de decisão referente à biossegurança. Depender do princípioda precaução, pelo contrário, deixaria o Protocolo à mercê de abusos edo protecionismo comercial. Além disso, o Grupo de Miami alegou que

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a abordagem precautória era incompatível com as normas da OMC, so-bretudo as definidas pelo Acordo SPS.

Por sua vez, a UE, o Grupo Mesma Opinião e os grupos de consumido-res e verdes argumentaram que, embora a contribuição científica fosseprimordial no campo da biossegurança, os riscos impostos pelos OVMsainda não tinham sido plenamente compreendidos e talvez fossem po-tencialmente irreversíveis. Por esse motivo, a possibilidade de adotar umaabordagem precautória era considerada crucial para o regime de tomadade decisão criado pelo Protocolo. Queriam flexibilidade na tomada dedecisão e a consideravam de suma importância para a previsibilidade re-sultante de uma abordagem baseada sobretudo na “ciência sadia”.

A redação final do Protocolo, que, obviamente, é um “texto de com-promisso”, inclui elementos dos diferentes grupos negociadores; mes-mo assim, parece aproximar-se mais das posições da UE e do Grupo Mes-ma Opinião. Reflete a complexidade dos temas discutidos e o empenhoem transformar as exigências ambientais e comerciais em obrigações deâmbito internacional.

Uma das principais características do Protocolo é o sistema de Acordode Informação Prévia. Ele abrange as sementes para o plantio, o peixevivo para liberação, os microrganismos para a biorremediação e outrosOVMs “introduzidos intencionalmente” no meio ambiente.44 Determinaque, antes do primeiro embarque, o exportador forneça informação de-talhada sobre o produto exportado por meio de notificação à autoridadecompetente do país importador. Tal informação deve incluir a modifica-ção introduzida, a técnica empregada e as características resultantes doOVM, o status regulatório do OVM no país exportador (por exemplo, seestá proibido, sujeito a outras restrições, ou se foi aprovado para libera-ção geral), assim como os detalhes do contrato entre importador e ex-portador. A notificação deve ser acompanhada de um informe de avalia-ção de risco. O país importador tem um prazo de noventa dias, a partirda notificação, para informar se o exportador terá de aguardar autoriza-ção escrita ou se pode proceder à exportação. O país importador que

44 Segundo o Artigo 7.2 do Protocolo, os OVMs para a introdução intencional no meio ambien-te são todos os OVMs não destinados para o uso direto como alimento ou ração, ou para oprocessamento.

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determinar que é preciso aguardar uma autorização escrita tem 270 dias,a partir da data da notificação, para decidir se aprova a importação (acres-centando as condições que forem consideradas pertinentes), proíbe-a,solicita informação adicional ou amplia o prazo de resposta. Essa decisãotambém deve ser notificada ao sistema de troca de informações denomi-nado Biosafety Clearing-House (com base na internet).45 O fato de o paísimportador deixar de comunicar sua decisão não pressupõe consentimen-to. Ele é obrigado a dar os motivos da decisão que tomar, a não ser emcaso de aprovação incondicional. As decisões devem se basear na evidên-cia científica disponível e na avaliação de risco; todavia, os países impor-tadores podem invocar as determinações do princípio da precaução. Ecabe ao exportador arcar com a responsabilidade financeira da avaliaçãode risco, caso a exija o país importador.

Os OVMs destinados à liberação no meio ambiente virão acompa-nhados de documentação que os identifique como OVMs, especifique suascaracterísticas relevantes, informe sobre o manuseio, o armazenamento,o transporte e o uso seguros, e dê o nome e o endereço do importador edo exportador. Também é necessária uma declaração de que o movimen-to está em conformidade com as exigências do Protocolo. No futuro, aConferência das Partes do Protocolo avaliará a necessidade e as modali-dades de desenvolvimento de padrões relativos aos procedimentos deidentificação, manuseio, embalagem e transporte.

Não obstante, o sistema AIA abrange apenas uma pequena porcen-tagem dos OVMs comercializados, já que os destinados ao uso direto naalimentação humana, na ração animal ou no processamento sujeitam-sea um procedimento de notificação diferente e menos rigoroso. Quatrotipos de OVMs ficam excluídos do sistema AIA: a maior parte dos produ-tos farmacêuticos de emprego humano, os OVMs em trânsito, os desti-nados a “uso restrito”46 e os que tenham sido declarados seguros numa

45 Será necessário encontrar meios alternativos para que os países ainda sem acesso pleno àinternet recebam a informação.

46 Conforme o Artigo 3(b) do Protocolo, “‘uso restrito’ significa qualquer operação empreen-dida no interior de um prédio, de instalações ou de qualquer estrutura física, que envolvaorganismos vivos modificados controlados por medidas específicas que lhe restrinjam efe-tivamente o contato ou o impacto sobre o ambiente exterior”.

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conferência das Partes do Protocolo sobre Biossegurança. Este não in-clui os produtos para o consumo de derivados de OVMs.

Tratando-se de OVMs de uso direto na alimentação humana, na ra-ção animal ou no processamento (isto é, produtos básicos identificadoscomo OVM-ARPs no Protocolo), as importações adotam o procedimentode informação prévia e se realizam conforme a legislação interna. Os im-portadores são obrigados a comunicar sua decisão sobre o uso internode OVM-ARPs à Biosafety Clearing-House. As decisões devem se basearnuma avaliação de risco. Compete aos países em desenvolvimento comeconomias em transição indicar sua necessidade de assistência financei-ra e técnica e sua capacidade de construção referente aos OVM-ARPs.Conquanto o protocolo discrimine dois procedimentos diferentes, de-pendendo do uso final dos OVMs (para introdução voluntária no meioambiente e para alimento, ração ou processamento), é difícil separá-losem duas categorias, considerando a possibilidade de os cereais importa-dos como alimento, ração ou para processamento serem usados comosementes, uma vez que são significativamente mais baratos que as pró-prias sementes.

Os embarques de produtos básicos para alimentação, ração ouprocessamento contendo OVMs serão acompanhados de documentaçãoque especifique a possível presença de OVMs e indique que eles não sedestinam à introdução intencional no meio ambiente. Ainda falta elabo-rar os detalhes de tal procedimento, que devem ser definidos dois anosapós a entrada em vigor do Protocolo. As normas “brandas” adotadascontaram com o aplauso do Grupo de Miami, que argumentou que a exi-gência rigorosa de documentação e identificação implicaria a segregaçãode produtos agrícolas e seria inviável. Por outro lado, o fato de alguns paí-ses haverem aprovado uma legislação que torna obrigatória a rotulagemdos OGMs e dos produtos GM já pressupõe segregação. A categoria OVM-ARPs inclui a vasta maioria dos OGMs comercializados, como o milho, asoja, o trigo, o nabo, o tomate e o algodão modificados.

O Protocolo permite aos países importadores adotar uma posturaprecautória; isso significa que a falta de certeza científica, em virtude deinformação insuficiente sobre os efeitos negativos potenciais dos OVMsna biodiversidade, inclusive com riscos para a saúde humana, não impe-

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de o país receptor de tomar decisões no tocante ao embarque dos OVMs.Esse princípio se aplica tanto aos OVMs destinados à introdução intencio-nal no meio ambiente quanto aos designados para o uso direto na ali-mentação, na ração animal e no processamento. A abordagem precautóriaé uma das principais características do Protocolo, e a ela faz referência aoArtigo 1 do Preâmbulo (“Objetivo”), assim como aos artigos 10 e 11. Pos-sibilita aos países importadores proibir as importações por falta de cer-teza científica. A proibição pode durar até que o país importador decidaque chegou à certeza científica no que tange às conseqüências dos pro-dutos sobre a biodiversidade e a saúde humana. No entanto, como estenão é obrigado a procurar a informação necessária para chegar à certezacientífica, a medida de restrição ao comércio pode vigorar indefinidamen-te. Já o Acordo SPS, pelo contrário, autoriza os países a adotar provisoria-mente medidas sanitárias ou fitossanitárias quando houver insuficiênciade evidência científica relevante, posto que os obrigue a buscar a infor-mação adicional necessária a uma avaliação de risco mais objetiva e a reveras medidas SPS num prazo razoável.

No que se refere aos OVMs para introdução intencional no meioambiente, o Protocolo permite que o país exportador exija que o impor-tador reveja uma decisão tomada se se verificar uma mudança de circuns-tâncias que influencie o resultado da avaliação de risco na qual se ba-seou a decisão ou se se tornar acessível uma informação científica outécnica adicional relevante. O país importador deve responder a tal soli-citação por escrito, num prazo de noventa dias, estabelecendo os moti-vos da decisão. Portanto, a disposição dá ao exportador o direito de re-querer que o importador reveja sua decisão à luz da informação nova;todavia, este mantém a flexibilidade de confirmar sua decisão anterior,conquanto tenha de justificar tal atitude. Essa disciplina reflete a neces-sidade de revisão contida no Acordo SPS quando se recorrer a medidasde precaução, embora haja algumas diferenças básicas: no caso do Acor-do SPS, o país que implementa a medida é obrigado a colher informaçãoadicional47 e rever a medida SPS dentro de um prazo razoável. Já no caso

47 É interessante notar que, conforme o Acordo SPS, um país pode fundamentar suas medi-das nas avaliações de risco feitas por outros países ou por organizações internacionais epode buscar informação adicional em outros países-membros ou na indústria.

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do Protocolo, o país que implementar uma medida restritiva só é obriga-do a levar em consideração a solicitação apresentada pelo exportador,analisar as novas circunstâncias ou a nova informação científica ou téc-nica submetida à sua atenção e dar uma resposta justificada dentro denoventa dias. Ademais, essa norma não se aplica aos OVMs destinadosao uso direto na alimentação, na ração animal ou no processamento.

Ao que tudo indica, já há interpretações bastante diferentes do Pro-tocolo. Segundo um press release dos Estados Unidos, o sr. Loy, secretáriode Estado para Assuntos Globais, disse que “o acordo enfatiza que asdecisões regulatórias devem se basear na ciência”. Segundo afirma umboletim informativo divulgado pelo Ministério das Relações Exterioresdos Estados Unidos em 16 de fevereiro de 2000, “A linguagem [acercada abordagem precautória] reconhece o papel que pode desempenhar aprecaução na tomada de decisão. No entanto, a linguagem não substituia tomada de decisão fundamentada na ciência nem autoriza decisõescontrárias às obrigações de um país com a OMC”.48 Em um encontro ocor-rido em março de 2000 em Genebra, logo depois da primeira reunião de2000 do Comitê sobre Comércio e Meio Ambiente da OMC (CCMA), osrepresentantes dos Estados Unidos declararam que, segundo a sua in-terpretação, o Protocolo está subordinado aos Acordos da OMC. Por outrolado, o sr. Wallstrom, comissário ambiental da UE, disse, à conclusão dasnegociações, que “o Protocolo em geral ... e a inclusão do princípio deprecaução em particular ... representam uma vitória dos consumidores”.

O Preâmbulo do Protocolo sobre Biossegurança afirma que ele nãodeve ser interpretado como uma mudança implícita nos direitos e obri-gações das partes nos acordos internacionais existentes e que essa afir-mação não pretende subordinar o Protocolo a outros acordos internacio-nais. Tais disposições podem não ser tão úteis assim em caso de conflitoentre dois países com diferentes interesses no campo da biotecnologia.Por exemplo, é possível que surjam controvérsias entre as partes, no Pro-tocolo – ou entre partes e não-partes –, sobre a interpretação do papelque a abordagem precautória há de ter na tomada de decisão.

48 Ver United States Department of State, Office of the Spokesman, Fact Sheet, “The CartagenaProtocol on Biosafety”, EUR312 16.2.2000.

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Geralmente, os países que compõem um acordo multilateral devemresolver seus eventuais conflitos no âmbito do acordo que firmaram eratificaram. No entanto, no caso do Protocolo sobre Biossegurança, seuma parte acreditar que, numa circunstância específica, seus interessessão mais bem protegidos pelas normas da OMC, ela pode invocá-las ar-gumentando que o Protocolo afirma explicitamente que não deve ser in-terpretado como uma mudança implícita nos direitos e obrigações daspartes nos acordos internacionais existentes. Portanto, um possível con-flito entre as partes pode ser solucionado por meio do mecanismo desolução de controvérsias da OMC. Depreende-se do Artigo 23 do Enten-dimento Relativo às Normas e Procedimentos de Solução de Controvér-sias que todo membro da OMC pode apresentar queixa se achar que seudireito de acesso ao mercado foi violado. Por exemplo, o Ministério daAgricultura dos Estados Unidos observou que: “O Protocolo preserva osdireitos dos países com base em outros acordos internacionais, inclusi-ve a OMC ... O Protocolo não extingue o direito de um país exportadorde questionar, conforme as disposições da OMC, a decisão injustificável,por parte de um país importador, de não aceitar um produto manipula-do pela engenharia genética”.49 Nesse caso, a questão é saber que viola-ção da OMC o país exportador pode alegar e que defesa é admissível. Sea justificativa da medida restritiva ao comércio não for a segurança, oAcordo SPS não é aplicável nem violado. Desse modo, o país exportadortem a possibilidade de invocar a violação do Artigo 11 do GATT e do Ar-tigo 2.2 do Acordo TBT, ao passo que o importador pode justificar a me-dida de restrição ao comércio recorrendo ao Artigo 11 do GATT, particular-mente aos parágrafos (b) e (g). Por outro lado, um país interessado emresolver a disputa de acordo com a disciplina estipulada pelo Protocolosobre Biossegurança tem a possibilidade de invocar o fato de este repre-sentar uma lex specialis, com prioridade sobre a lex generalis (os acordosda OMC). Também lhe é possível remeter-se ao princípio de que a lei maisrecente prevalece. Por fim, resta-lhe ainda solicitar que suas obrigaçõesna OMC sejam interpretadas à luz do Protocolo. Havendo uma disputa

49 Ver US Department of Agriculture, Foreign Agricultural Service Fact Sheet, “InternationalProtocol on Biosafety: What it Means for Agriculture”, fevereiro de 2000. (Disponível em<http://www.usia.gov/topical/global/biosafe/00021402.htm>.)

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entre uma parte do Protocolo e uma não-parte, o mais provável é que ocaso seja levado à atenção do Órgão de Solução de Disputas da OMC.Caberá ao panel, possivelmente ao Órgão de Apelação, decidir que pesolegal se dará às provisões do Protocolo. Ainda que o Órgão de Apelaçãotenha afirmado em duas controvérsias50 que o sistema jurídico da OMC

não atua em “isolamento clínico” das normas existentes do direito pú-blico internacional, é difícil prever que princípios e normas hão de seraplicados a uma disputa específica.

A questão da compatibilidade entre as normas comerciais incluídasnos acordos multilaterais e os direitos e obrigações da OMC, assim comoa da situação das não-partes de um determinado acordo multilateral, quepodem ser afetadas pelas regras comerciais acordadas pelas partes desseacordo, vem sendo discutida há muitos anos, em vários foros internacio-nais, sem um resultado conclusivo. Mesmo que as disposições comer-ciais de um acordo multilateral ainda não tenham sido contestadas di-ante de um panel de solução de controvérsias, pode-se alegar que oProtocolo sobre Biossegurança é diferente de outros acordos multilate-rais e que há um risco mais concreto de questionar a sua compatibilida-de com a OMC. Isso se deve a interesses envolvidos no comércio inter-nacional de OGMs que são enormes; à opinião pública que ainda estámuito dividida quanto aos riscos e oportunidades oferecidos pela biotec-nologia; e por um lado, ao agente principal, os Estado Unidos, que parti-cipou ativamente das negociações do Protocolo como membro do Grupo

50 No caso da Gasolina (Os padrões dos Estados Unidos para a Gasolina Reformulada e a Convencional,Decisão do Órgão de Apelação adotada em 20 de maio de 1996, WT/DS2/9), o Órgão deApelação citou o Artigo 3.2 do Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos de So-lução de Controvérsias, que exige que o panel e o Órgão de Apelação usem “as costumeirasregras de interpretação” para interpretar as determinações dos Acordos da OMC. O Órgãode Apelação vinculava o sistema jurídico da OMC ao resto da ordem jurídica internacionale impunha ao panel e aos Membros da OMC a obrigação de interpretar os Acordos da OMCconforme as costumeiras regras de interpretação do direito público internacional. No casodo Camarão (a Proibição dos Estados Unidos da Importação de Certos Camarões e Produtos Derivadosde Camarão, Decisão do Órgão de Apelação adotada em 12 de outubro de 1998, WT/DS58/AB/R), o Órgão de Apelação referiu-se a diversas convenções internacionais para interpre-tar a expressão “recursos naturais”. Portanto, os tratados, as práticas, os costumes e os prin-cípios gerais extra-OMC podem ser relevantes na interpretação das provisões da OMC epodem exercer muita influência sobre a definição dos parâmetros e do conteúdo das obriga-ções da OMC. Para uma discussão detalhada sobre esse tópico, ver Maceau (1999, p.87 ss).

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de Miami, mas, por outro, não é parte na Convenção CDB; e o Protocolojá está recebendo diferentes interpretações.

O representante comercial norte-americano aventou a possibilidadede seu país cogitar um possível caso de solução de controvérsia na OMC

contra a UE, que não aprovou certas variedades de milho da biotecnologia.Em um desenvolvimento relacionado, os Estados Unidos estão tentan-do desbloquear as exportações de milho para a UE, que ficaram paralisa-das por causa do adiamento da aprovação de novas variedades dabiotecnologia, com uma nova proposta segundo a qual se garantirá queos laboratórios dos Estados Unidos realizem certos testes. Isso assegu-raria que os embarques norte-americanos não contivessem nenhumavariedade não aprovada de milho geneticamente modificado. A propos-ta requer que os testes anteriores ao embarque, nos Estados Unidos, nãosejam duplicados por testes subseqüentes na UE, livrando, pois, os ex-portadores do risco de que sua mercadoria venha a ser bloqueada no portode entrada. Ao que parece, a proposta é encarada pelas autoridades eu-ropéias como um sinal positivo de cooperação numa questão contenciosa,se bem que ainda é muito cedo para que a UE aprove o plano. Por outrolado, fontes da indústria dos Estados Unidos dizem que a proposta,mesmo se aprovada pela UE, seria problemática em razão do grau emque imporia a segregação entre as variedades não aprovadas de milhoGM, as aprovadas e o milho convencional.51

Os acordos da OMC que têm implicaçõespara o comércio internacional de OGMs

Quatro acordos da OMC parecem ter uma relevância especial para ocomércio internacional de OGMs: o Acordo de Aplicação de Medidas Sa-nitárias e Fitossanitárias (SPS), o Acordo de Barreiras Técnicas ao Co-mércio (TBT), o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade In-telectual Relacionados com o Comércio (TRIPS) e o Acordo Geral deTarifas e Comércio de 1994 (GATT).

O principal objetivo do Acordo SPS é evitar que medidas sanitárias efitossanitárias internas venham a ter um efeito negativo desnecessário

51 Ver “Barshefsky hints at considering possible biotech case Against EU”, Inside US Trade,v.18, n.24, 16 de junho de 2000.

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no comércio internacional e que sejam usadas com fins protecionistas.O acordo abrange as medidas adotadas pelos países a fim de proteger avida humana ou animal contra riscos oriundos da alimentação; a vida hu-mana contra enfermidades transmitidas por animais ou vegetais; e a vidaanimal e a vegetal contra pragas e doenças. Portanto, o objetivo específicodas medidas SPS é garantir a segurança alimentar e prevenir a dissemi-nação de enfermidades em plantas e animais. Mesmo que até agora nãose haja solicitado ao Comitê SPS da OMC que se ocupasse de questõesrelacionadas com o comércio de OGMs, pode-se argumentar que é per-feitamente viável tomar medidas visando regulamentar esse comérciodentro da abrangência do acordo. Isso porque as medidas relativas aosOGMs não deixam de ter o objetivo de proteger “a vida humana ou animalcontra riscos oriundos da alimentação” ou o de proteger “a vida animal e avegetal contra pragas e doenças” (diante da falta de certeza científica arespeito do impacto dos OGMs sobre o meio ambiente, impedir a trans-ferência de material genético e das características associadas das varie-dades manipuladas pela engenharia genética para as variedades conven-cionais pode ser encarado como idêntico a proteger as plantas contrapragas e doenças). Em outras palavras, as medidas relativas aos OGMspodem corresponder ao espírito, quando não à letra, do Acordo SPS.Contudo, não há consenso quanto a essa hipótese.

O Artigo 2.2 do Acordo SPS determina que “Os membros assegura-rão que toda e qualquer medida sanitária ou fitossanitária seja aplicadaunicamente na medida do necessário para proteger a vida ou a saúdehumana, animal ou vegetal, baseie-se em princípios científicos e não sejamantida sem evidência científica suficiente, a não ser no disposto noparágrafo 7 do Artigo 5”. O Acordo permite a adoção provisória de me-didas SPS como um passo precautório nos casos em que há risco imedia-to de propagação de doença, mas em que a evidência científica for insu-ficiente. Entretanto, “Os membros procurarão obter a informaçãoadicional necessária a uma avaliação de risco mais objetiva e rever a me-dida sanitária ou fitossanitária num prazo razoável” (Artigo 5.7, segun-da sentença). Os países devem estabelecer as medida SPS com base numaavaliação adequada dos riscos reais envolvidos. Os procedimentos e de-cisões utilizados por um país na avaliação do risco para a segurança ali-mentar ou para a saúde animal ou vegetal devem ficar à disposição dosoutros em caso de solicitação.

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O acordo mantém, pois, o direito soberano de qualquer governo deoferecer o nível de proteção sanitária que lhe parecer apropriado, contudo,espera que os países, inter alia, fundamentem suas medidas SPS em evi-dência científica e numa avaliação de risco adequada.

No conhecido caso do hormônio,52 em razão de uma proibição impostapela CE à carne bovina e aos produtos derivados da carne de animais tra-tados com hormônio de crescimento, recorreu-se ao papel do princípioda precaução no âmbito do Acordo SPS.

A CE invocou o princípio de precaução53 em apoio a sua afirmaçãode que as medidas foram tomadas com base numa avaliação de risco. Suaalegação básica foi que o princípio de precaução era ou tinha se tornado“uma regra geral consuetudinária do direito internacional” ou pelo me-nos um “princípio geral do direito”. Referindo-se mais especificamenteaos artigos 5.1 e 5.2 do acordo SPS, pois aplicar o princípio de precauçãonão significava que era necessário que todos os cientistas do mundo es-tivessem de acordo quanto à possibilidade e à magnitude do risco, nemque todos ou a maioria dos membros da OMC percebessem e avaliassemo risco do mesmo modo a CE concluiu que suas medidas (uma impor-tante proibição) eram de natureza precautória e satisfaziam as determi-nações dos artigos 2.2 e 2.3 do acordo, assim como as dos parágrafos de1 a 6 do Artigo 5. Por outro lado, na opinião dos Estados Unidos, o prin-cípio de precaução não representava uma lei internacional consue-tudinária: era mais uma abordagem que um princípio. Para o Canadá, aabordagem ou conceito precautório era “um princípio jurídico emergen-te”, mas ainda não se havia incorporado ao direito público internacio-nal. O panel concluiu que o Acordo SPS não incluía o princípio de precau-ção como base sobre a qual justificar medidas SPS que, ademais, eramincompatíveis com as obrigações dos membros estipuladas por provisõesparticulares do acordo e que ele, por si só e sem uma clara diretiva textual

52 EC Measure Concerning Meat and Meat Products (Hormones), Complaint by the United States,WT/DS26/R, 18 de agosto de 1997; Complaint by Canada, WT/DS48/R, 18 de agosto de1997.

53 É a seguinte a formulação do princípio de precaução contida no Princípio 15 da Declaraçãodo Rio de 1992: “Havendo ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de plena certe-za científica não será usada como razão para adiar medidas eficazes para evitar a degrada-ção ambiental”.

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para esse efeito, não dispensava o panel do dever de aplicar os princípiosnormais (isto é, do direito internacional consuetudinário) de interpre-tação de tratados ao ler as determinações do Acordo SPS. O Órgão deApelação54 afirmou que era desnecessário e possivelmente imprudenteposicionar-se sobre a questão – importante mas abstrata – do status doprincípio de precaução no direito internacional. Sem embargo, pareceu-lhe relevante chamar a atenção para alguns aspectos da relação entre oprincípio de precaução e o Acordo SPS. O Órgão de Apelação apoiou asconclusões do panel, segundo as quais o princípio de precaução não sesobrepõe ao texto explícito dos artigos 5.1 e 5.2, e enfatizou que ele foiincorporado ao Artigo 5.7 do Acordo SPS, mas essa disposição não esgo-ta a importância do princípio de precaução para o SPS.

No caso do hormônio, o panel e o Órgão de Apelação não tiveram opor-tunidade de interpretar diretamente o Artigo 5.7 do Acordo SPS, porquea CE não o invocou para justificar as medidas em disputa. Em compen-sação, referiu-se explicitamente ao Artigo 5.7 desse Acordo no caso dasvariedades do Japão.55 Tratava-se de uma queixa dos Estados Unidos con-tra uma exigência do Japão de testar e confirmar a eficácia do tratamen-to de quarentena de cada variedade de certos produtos agrícolas. Paraapoiar a exigência de teste das variedades, o país invocou o Artigo 5.7.De acordo com o Órgão de Apelação, esse artigo estabelece quatro exigên-cias cumulativas que devem ser atendidas para a adoção e a manutençãode medidas provisórias de SPS. Um país pode adotar provisoriamente umamedida SPS se esta for: 1. imposta por uma situação em que há insufi-ciência de informação científica relevante; e 2. adotada com base na infor-mação pertinente disponível. Tal medida não pode ser mantida a menosque o país que a adotou: 1. procure obter a informação adicional necessá-ria para uma avaliação de risco mais objetiva; e 2. reveja a medida dentrode um prazo razoável.

Parece, pois, que a jurisprudência da OMC propõe uma interpretaçãomais estreita do Artigo 5.7 do Acordo SPS: enfatizando a necessidade deos países cumprirem quatro exigências específicas a fim de poder invocar

54 WT/DS26/AB/R, WT/DS48/AB/R, 16 de janeiro de 1998.55 Japan – Measures Affecting Agricultural Products, WT/DS76/R, 27 de outubro de 1998, e WT/

DS76/AB/R, 22 de fevereiro de 1999.

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o direito de adotar e manter medidas provisórias e afirmando que o prin-cípio de precaução não se sobrepõe à necessidade de os países funda-mentarem suas medidas SPS numa avaliação de risco – e, em geral, evitan-do manifestar qualquer visão acerca do status do princípio de precauçãono direito público internacional. Não obstante, o Órgão de Apelação tam-bém declarou que o Artigo 5.7 não esgotava o princípio de precaução paraSPS. Tudo indica que ficou reconfirmado o papel central da evidência cien-tífica e da avaliação de risco como bases necessárias para a adoção e amanutenção de medidas SPS. Embora se possa invocar o princípio deprecaução para justificar medidas limitadas no tempo, ele não representauma alternativa a longo prazo à avaliação de risco e à evidência científica.

A imposição de rotulagem ligada às regulações de produtos alimen-tícios, às exigências e às restrições nutricionais, à qualidade e à embala-gem, geralmente é submetida ao Acordo TBT. Enquanto as medidas SPS

podem ser impostas só na medida do necessário para proteger a saúdehumana ou animal contra riscos oriundos da alimentação ou contra pra-gas e doenças, os governos podem introduzir regulamentações TBT quan-do necessárias para atingir diversos objetivos legítimos, inclusive a pre-venção de práticas enganosas, a proteção da saúde ou da segurançahumana, da vida ou da saúde vegetal ou ainda do meio ambiente. Tantoo Acordo SPS quanto o TBT incentivam o uso de padrões internacionais.Todavia, segundo o Acordo SPS, os únicos motivos aceitos para não uti-lizar esses padrões de proteção da segurança alimentar e da saúde ani-mal/vegetal são os argumentos científicos resultantes de uma avaliaçãodos riscos potenciais para a saúde. Já o Acordo TBT, pelo contrário, dizque os governos podem decidir que os padrões internacionais não sãoadequados por outros motivos, inclusive problemas tecnológicos funda-mentais e fatores geográficos.56 Portanto, parece que o Acordo TBT dámenos ênfase que o Acordo SPS à necessidade de justificar medidas combase em considerações científicas. Sem embargo, as regulamentaçõestécnicas não devem ser mais restritivas ao comércio do que o necessáriopara atingir um objetivo legítimo, levando em conta os riscos que a não-

56 Ver WTO, “Understanding the WTO Agreement on Sanitary and Phytosanitary (SPS)Measures”, maio de 1998. (Disponível em <http://www.WTO.org/wto/goodbs/spsund.htm>.)

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realização desse objetivo pode criar. A exigência de que as medidas nãorestrinjam o comércio mais do que o necessário, assim como o “teste deproporcionalidade” a ela vinculado com relação ao impacto comercialrestritivo de uma medida e aos riscos criados pela não-realização dos ob-jetivos declarados, parece ser importante no âmbito do comércio in-ternacional de OGMs. Ao mesmo tempo, se o objetivo declarado de umamedida for a proteção da saúde ou da segurança humana, da vida ou dasaúde animal/vegetal ou do meio ambiente, a aplicação do teste deproporcionalidade pareceria particularmente problemática, consideran-do que, nos dias atuais, há visões muito diferentes da magnitude do ris-co apresentado pelos OGMs. Por outro lado, alguns argumentam que oAcordo TBT não incluiu nenhum teste de proporcionalidade e que a ques-tão é exclusivamente saber se a medida escolhida não restringe de mododesnecessário o comércio, levando em conta o nível de proteção escolhi-do por um país. Em tal caso, este pode implementar regulamentaçõesrigorosas no que tange aos OGMs, mesmo que tais regulamentações te-nham um considerável impacto restritivo sobre o comércio, contanto queelas não sejam mais restritivas do que o necessário.

Resta determinar se uma proibição de importação aplicada a OGMsou a produtos GM há de ser encarada como uma regulamentação técnicaregida pelo Acordo TBT. Do mesmo modo, não está claro se é possívelinvocar as exceções gerais do Artigo 20 do GATT para justificar medidasincompatíveis com o Acordo TBT.

Outro aspecto relevante desse acordo é o conceito de “produtos si-milares”. Se os OGMs e os produtos GM forem considerados “similares”aos convencionais, não há por que receberem um tratamento especial.

Ao que tudo indica, há duas importantes questões a considerar. Aprimeira é se os “produtos similares” são determinados por um teste de“equivalência substancial”. Submetido a esse teste, um alimento mani-pulado pela engenharia genética que, nas características externas, separeça o suficiente com um produto alimentício convencional seria subs-tancialmente equivalente a este último, e, portanto, os dois teriam deser considerados igualmente seguros e de receber o mesmo tratamento.A “equivalência substancial” vem sendo promovida, no âmbito das ati-vidades da Comissão do Código Alimentar, por um grupo de países ex-portadores de OGMs. Contudo, a UE e muitas nações em desenvolvimento

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recusam-se a apoiar o uso do teste de equivalência substancial por con-siderá-lo pouco científico e demasiado restrito. Adotam a posição segundoa qual os produtos GM e não GM são fisicamente distintos. Essa distin-ção física se deve a que, em conseqüência da modificação para desenvol-ver características diferentes, os produtos GM contêm DNA e/ou proteí-nas que faltam a seus equivalentes convencionais. Sendo esse o caso, nãose pode dizer que um esquema nacional de rotulagem impondo que ape-nas os produtos GM sejam rotulados transgride a exigência de não-dis-criminação do Acordo TBT, a qual proíbe os membros da OMC de dife-renciar produtos similares. Pode-se encarar a modificação genética comoum “processo relacionado com o produto e com os processos e métodosde produção” (PMPs relacionados com o produto). O Acordo TBT autorizaos países a distinguir os produtos, baseando-se no critério dos PMPs quese refletem nas características finais do produto. No entanto, essa inter-pretação das normas do Acordo TBT ficará ameaçada se a Comissão doCódigo Alimentar adotar o teste de equivalência substancial como pa-drão internacional. A segunda questão que talvez valha a pena mencio-nar é: se os “produtos similares” não forem determinados por um testede “equivalência substancial”, que outro critério deve ser utilizado? (Stiwell,1999, nota 7).

No âmbito do comércio internacional de OGMs, a questão dos “pro-dutos similares” já foi submetida à apreciação do Comitê do TBT. O pon-to de partida das discussões foram as queixas apresentadas por váriospaíses exportadores de OGMs contra a Regulamentação n.1139/98 daCE,57 que prescreve normas específicas de rotulagem de produtos e in-gredientes alimentícios produzidos a partir da soja ou do milho geneti-camente modificados. Na óptica da CE, os alimentos e os ingredientesalimentares com DNA ou proteínas resultantes da modificação genéticanão equivalem a seus correspondentes convencionais e, conseqüentemente,devem submeter-se a normas de rotulagem e, assim, fornecer informa-ção relevante aos consumidores. Do ponto de vista dos países exporta-dores, a regulamentação da CE afetaria negativamente o comércio e es-tabeleceria um exemplo infeliz para a futura regulamentação dos produtosalimentícios e agrícolas. A base de apoio dos países exportadores era que

57 Regulation (EC) n.1139/98, 26 de maio de 1998, OJ L 159, 3 de junho de 1998, p.4 ss.

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os alimentos ou ingredientes desenvolvidos pela engenharia ou a modi-ficação genéticas não se diferenciavam como uma classe – em termos decomposição, qualidade ou segurança – dos produtos oriundos de outrostipos de cultivo. Ademais, eles acreditavam que a rotulagem excessivatendia mais a confundir que a informar os consumidores.58

A questão de rotular os OGMs e os produtos agrícolas GM continuaem aberto na OMC. Uma vez que ela trata de conceitos complexos e con-troversos, como a definição de produtos “similares”, é pouco provávelque seja resolvida pelo Comitê do TBT. Acrescentaram-se ao Protocolosobre Biossegurança disposições acerca da informação a ser incluída nadocumentação que acompanha os OGMs e os produtos básicos genetica-mente modificados. Entretanto, não se discutiu o problema da compati-bilidade de tais disposições com as do Acordo TBT.

Com base nos acordos TBT e SPS, fizeram-se diversas notificaçõesreferentes a produtos agrícolas e alimentícios derivados da biotecnologiamoderna, utilizando as provisões de transparência incluídas em ambosos acordos. Entre 1º de janeiro de 1995 e 10 de junho de 2000, apresen-tou-se um total de 48 notificações (inclusive uma revisão e algumasmedidas idênticas notificadas por mais de um país e/ou em ambos osacordos). As notificações foram apresentadas por diversas nações desen-volvidas (os Estados Unidos, o Japão, o Canadá, a Nova Zelândia, a Aus-trália, a Suíça, a UE, a Noruega, a Alemanha e a Holanda), por algumasem desenvolvimento (o México, a Colômbia, a República da Coréia e aMalásia) e por uma em transição (a República Tcheca).59 Os membrosestão cada vez mais empenhados em implementar normas nacionais paraprodutos derivados da biotecnologia: já se apresentaram onze notificações

58 WTO, Committee on Technical Barriers to Trade, Communications from the EuropeanCommunity, Reply by the European Commission to the comments by the United Statesand Canada on Notification 97.766. G/TBT/W/78, 27 de agosto de 1998; e WTO,Committee on Technical Barriers to Trade, Communication from the United States,European Council Regulation n.1139/98 – Compulsory Indications of the Labelling ofCertain Foodstuffs from Genetically Modified Organisms, G/TBT/W/94, 16 de outubrode 1998. O Comitê do TBT discutiu esse tópico nas reuniões dos dias 15 de setembro de1998, 11 de junho de 1999 e 1º de outubro de 1999.

59 WTO, Committee on Sanitary and Phytosanitary Measures, Submission by the United States– National Regulatory Measure Related to Trade in Agricultural and Food Products Modifiedby Modern Biotechnology, G/SPS/GEN/186, 21 de junho de 2000.

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em 2000, e não passaram de quatro em 1995. É interessante observarque a UE notificou um projeto de regulamentação, com base no AcordoTBT, invocando questões relativas à rotulagem no tocante a seu objetivoe suas razões. Os Estados Unidos notificaram um projeto próprio de re-gulamentação conforme o Acordo SPS.

Se existem incertezas quanto à extensão da aplicação dos acordosSPS e TBT ao comércio internacional de OGMs, as regras multilaterais quea ele indubitavelmente se aplicam são os artigos 3, 11 e 20 do GATT.

O princípio do tratamento nacional, incorporado ao Artigo 3, impli-ca a não-discriminação entre bens internos e importados. Transferir esseprincípio para o contexto dos OGMs pressupõe que o país importadornão pode aplicar aos produtos estrangeiros medidas mais onerosas queas que incidem sobre os produtos internos. Do mesmo modo, no con-texto do Artigo 3, a determinação do que constitui “produtos similares”é uma questão crucial, uma vez que a obrigação de tratamento nacionalse aplica unicamente se dois produtos forem “similares”.

A eliminação geral de restrições quantitativas foi incorporada aoArtigo 11, que dispõe que não se instituirá nem se manterá proibição ourestrição ou quaisquer outros direitos, tarifas ou taxas alfandegárias so-bre a importação ou a exportação de nenhum produto.

As obrigações dos artigos 3 e 11 podem ser revogadas mediante ouso das exceções estipuladas pelo Artigo 20. Nele, são as seguintes asprovisões especialmente relevantes para o comércio de OGMs:

Ressaltando que não se apliquem as medidas abaixo enumeradas demodo a constituir um meio de discriminação arbitrária injustificável entrepaíses nos quais prevalecem as mesmas condições, ou una restrição enco-berta ao comércio internacional, nenhuma disposição do presente Acordoserá interpretada no sentido de impedir que qualquer parte contratanteadote ou aplique as medidas:

(b) necessárias à proteção da saúde e da vida das pessoas e dos animaisou à preservação dos vegetais;

(g) referentes à conservação dos recursos naturais esgotáveis, desdeque tais medidas sejam aplicadas em conjunto com restrições à produçãoou ao consumo nacionais;

O artigo 20 dá aos países os meios legais de equilibrar as obrigaçõescomerciais com importantes objetivos não-comerciais, como a proteção

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à saúde ou à preservação do meio ambiente, que são parte de suas polí-ticas nacionais gerais. No caso do camarão,60 o Órgão de Apelação, refe-rindo-se ao texto introdutório do Artigo 20, considerou que “ele incor-pora o reconhecimento, por parte dos membros da OMC, da necessidade,por um lado, de manter um equilíbrio de direitos e obrigações entre odireito de um membro de invocar uma ou outra exceção do Artigo 20,especificadas nos parágrafos (a) a (j) e, por outro, os direitos substanti-vos dos demais membros conforme o GATT de 1994 ... É preciso estabe-lecer um equilíbrio entre o direito de um membro de invocar uma exce-ção do Artigo 20 e o dever desse mesmo membro de respeitar os direitosque o tratado confere aos outros membros”.61 De acordo com o Órgãode Apelação, o objetivo do texto introdutório do Artigo 20 é “a preven-ção geral do abuso das exceções do Artigo 20.62

Ao proibir a importação de OGMs e de produtos GM, é possível queum país esteja infringindo suas obrigações comerciais; não obstante, eletem a possibilidade de invocar diversas provisões para justificar a medidarestritiva ao comércio. Pode invocar o Acordo SPS. Nesse caso, cabe-lheprovar que a media é necessária à proteção da vida ou da saúde humana,animal ou vegetal, que ela tem fundamento em princípios científicos eque não está sendo mantida sem suficiente evidência científica. Se amedida for aplicada provisoriamente, o país deve procurar obter a infor-mação adicional necessária a uma avaliação de risco mais objetiva esuspendê-la dentro de um prazo razoável. No presente, há certas difi-culdades para invocar o Acordo SPS a fim de justificar uma restrição aocomércio de OGMs. As medidas ligadas aos OGMs coincidem com o es-pírito, mas não com a letra do acordo. Não há evidência científica queidentifique claramente o nível de risco que os OGMs representam para avida ou a saúde humana, animal ou vegetal. Uma medida tomada combase no princípio de precaução tem de ser revogada dentro de um prazorazoável. A segunda opção é justificar uma medida restritiva ao comérciode GM com base no Acordo TBT. Também nesse caso surgem dificuldades.

60 Relatório do Órgão de Apelação sobre a Proibição dos Estados Unidos da Importação deCertos Camarões e Produtos de Camarão, adotada no dia 12 de outubro de 1998, WT/DS58/AB/R;

61 Shrimp, parág. 156.62 Shrimp, parág. 150

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Antes de mais nada, não está claro se uma proibição de importação deveser encarada como regulamentação técnica. Em segundo lugar, não estáclaro se os OGMs podem ser considerados diferentes dos produtos con-vencionais ou se se trata de “produtos similares”. Ainda que várias consi-derações levem à conclusão de que os produtos geneticamente modifi-cados e os convencionais são dissimilares, não se chegou a um consensosobre a questão. A terceira opção consiste em invocar o Artigo 20 do GATT.Nesse caso, o país que implementar a medida restritiva ao comércio éobrigado a provar que esta não só é compatível com a exceção específicainvocada (parágrafos (b) e (g)), como também que está em conformida-de com o texto introdutório do Artigo 20, isto é, que não constitui umadiscriminação injustificável ou arbitrária entre países nos quais prevale-cem as mesmas condições nem uma restrição dissimulada ao comérciointernacional.

O reforço da proteção do direito de propriedade intelectual podetornar mais lucrativo o investimento da indústria de biotecnologia,63 demodo que é possível argumentar que o Acordo TRIPS promove a adoçãodos OGMs no sistema alimentar. A questão da biotecnologia aplicada aosprodutos agrícolas e alimentícios relaciona-se com a de patentear vegetaisou animais vivos, inclusive as invenções e variedades vegetais biotec-nológicas. Tanto nos países desenvolvidos quanto nos subdesenvolvidos,manifesta-se a preocupação com o impacto econômico, social, ambientale ético da patenteação da vida. Ademais, muitos governos do TerceiroMundo receiam que o controle da natureza e da distribuição de novas for-mas de vida, por parte dos conglomerados transnacionais, venha a afetaras perspectivas de desenvolvimento e segurança alimentar de seus países.A patenteação da vida suscita cuidados com os direitos do consumidor,com a conservação da biodiversidade, com a proteção ambiental, com asustentabilidade da agricultura, com os direitos dos indígenas, com a li-berdade científica e acadêmica e, enfim, com o desenvolvimento econô-mico de muitas nações subdesenvolvidas dependentes de novastecnologias. Ademais, resta saber até que ponto os detentores de paten-tes e licenças assumirão a responsabilidade pelas eventuais conseqüênciasadversas da aplicação da biotecnologia no meio ambiente e no bem-es-tar humano.

63 A análise dos DPIs baseia-se em Tansey (1999).

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Atualmente, o Acordo TRIPS não exige que os países emitam paten-tes de vegetais e animais; contudo, eles são obrigados a prover a prote-ção das variedades vegetais por meio de patentes, de um sistema sui generisefetivo64 ou de uma mescla de ambos (Artigo 27.3(B)). A revisão desseartigo faz parte da “integrada” acordada na conclusão da Rodada do Uru-guai. Cumprindo-a, o Conselho da OMC para o Acordo TRIPS iniciou arevisão do Artigo 27.3(B) em 1999; no entanto, por causa da falta de con-senso entre os membros, a revisão ainda prossegue em 2000. Os paísesmais desenvolvidos consideram-na uma revisão da implementação, aopasso que a maioria dos subdesenvolvidos a encara como uma revisãodas próprias disposições passíveis de levar à revisão do texto.

Enquanto a maior parte dos países desenvolvidos acha que o modelooferecido pelo sistema UPOV65 de Direitos dos Cultivadores de Plantas éo sistema sui generis mais indicado para proteger as variedades vegetais,os subdesenvolvidos desejam conservar a flexibilidade na implementaçãoda legislação nesse campo. O sistema UPOV produz um regime bastanteforte de DPIs de variedades vegetais adaptados principalmente ao culti-vo industrial, que pode não servir a todos os países. Promove comercial-mente variedades de espécies para sistemas industriais e agrícolas queobrigam os agricultores a pagar royalties por essas sementes, de modoque o setor de sementes se torna uma oportunidade de investimento paraas indústrias química e de biotecnologia. A alternativa, sobretudo nospaíses caracterizados pela agricultura de subsistência, é desenvolver so-luções próprias com uma legislação especial, adequada a sua situação,que proteja as variedades vegetais. Por exemplo, as nações em desenvol-vimento podem estabelecer direitos não-monopolistas que possibilitema coexistência de diferentes direitos de propriedade, reconhecendo o fatode que diversos agentes participam da gestão da variedade vegetal e todospodem reclamar para si as mesmas inovações ou o mesmo conhecimento.

64 Um sistema sui generis de proteção é uma forma alternativa única de proteção da proprieda-de intelectual, destinada a ajustar-se ao contexto e às necessidades particulares de um país.No caso das variedades vegetais, significa que os países podem criar normas próprias deproteção às novas variedades vegetais com alguma forma de direito de propriedade inte-lectual (DPI), contanto que tal proteção seja eficaz. O acordo não define os elementos deum sistema eficaz.

65 Union Internationale pour la Protection des Obtentions Végétales (União Internacionalde Proteção das Novas Variedades Vegetais).

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Convém notar que, tradicionalmente, nunca houve proteção legal a va-riedades vegetais em âmbito nacional ou internacional. Os direitos depatente de cultivo foram sendo concedidos progressivamente a fim deincentivar o setor privado a ingressar na indústria da semente. No en-tanto, até recentemente, tais desenvolvimentos limitaram-se aos paísesdesenvolvidos. É pouco provável que, antes da implementação do Acor-do TRIPS, algum país em desenvolvimento tenha incluído em sua legis-lação a proteção às variedades vegetais.66

Considerando que a patenteação está ligada ao desenvolvimento e àintrodução de plantas GM, pode-se argumentar que um país precisa pri-meiramente estabelecer normas e sistemas de controle adequados debiossegurança antes de pensar na implementação de regimes de patentecapazes de estimular o desenvolvimento e a liberação dessas plantas.

A Terceira Conferência Ministerialda OMC e seu processo preparatório

A maioria dos países em desenvolvimento foi à Terceira ConferênciaMinisterial da Organização Mundial do Comércio (Seattle, 30 de novem-bro-3 de dezembro de 1999) convencida de que, no terreno da biotec-nologia, o mais provável era que a melhor opção fosse o status quo. Essespaíses opuseram-se à visão de que as considerações ambientais deviampermear todo o debate comercial e mostraram-se hostis à posição segundoa qual convinha dar maior peso às questões ambientais no âmbito daOMC.67 Também acharam que, excluindo das negociações o tema dos OGMse evitando o estabelecimento de novas regras multilaterais na área, teriamtempo de desenvolver estruturas regulatórias para tratar da questão.

66 Ver Cullet Ph., “Protecting rights in plant varieties”, Center for International Developmentat Harvard University, 1999. Disponível em <http://www.cid.harvard.edu/cidbiotech/comments/comments56.htm>.

67 Ver, por exemplo, WTO, Submission from India, General Council – Preparations for the1999 Ministerial Conference – Discussion on Paragraph 9a(iii) of the Geneva MinisterialDeclaration, WT/GC/W/151, 8 de março de 1999: “A questão da interface comércio e meioambiente é complexa e, na nossa avaliação, as provisões existentes na OMC são mais queadequadas para lidar com as preocupações ambientais genuínas e bona fide. A verdadeirasolução do problema, se houver, está nas instituições internacionais que tratam dos acor-dos ambientais multilaterais”.

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Já os países exportadores de OGMs esperavam a tomada de algumasdecisões que facilitassem suas exportações futuras de OGMs e produtosagrícolas GM. Em particular, pretendiam atacar o problema das aprova-ções nacionais de OGMs (tendo em mente o lento processo de aprovaçãoe a suspensão de fato da própria CE), reconfirmar que a evidência cientí-fica devia ser a base de toda e qualquer medida destinada a proteger avida ou a saúde humana ou animal e o meio ambiente, caracterizar osprodutos GM como “similares” aos convencionais e, enfim, lançar a idéiade que era preciso desenvolver um novo conjunto de normas referentesao comércio de OGMs.

Em particular, os diferentes países desejavam tratar de dois gruposde questões relacionadas com os OGMs. Os detentores da tecnologia deprodução de OGMs queriam que o sistema da OMC gerasse novas disci-plinas que limitassem a capacidade regulatória dos Estados nesse campo.Uma condição para atingir tal meta era garantir que se tomasse umadecisão, em âmbito multilateral, a favor de um sistema ágil e confiávelde aprovação de novos OGMs em todos os países. Já os produtores e ex-portadores de OGMs que não detinham uma tecnologia relevante mos-traram-se interessados sobretudo em salvaguardar as oportunidadesexistentes de acesso ao mercado. Enquanto o primeiro grupo preferiaincluir a questão do comércio internacional de OGMs nas negociaçõessobre a agricultura, o segundo se opunha a essa opção, alegando que eladesviaria o foco das negociações do acesso ao mercado de biotecnologia.Como solução de compromisso, alguns países apresentaram propostasreferentes à biotecnologia e ao comércio internacional durante o proces-so preparatório da Conferência de Seattle.

Os Estados Unidos solicitaram à OMC “o estabelecimento de disci-plinas que assegurem que o comércio de produtos da biotecnologia sebaseie em processos transparentes, previsíveis e oportunos”.68 Com essaproposta, tentava-se alcançar diversos objetivos: garantir a rápida expor-tação de produtos da biotecnologia, limitando o prazo para que os paísesimportadores tomassem uma decisão sobre as importações (processosoportunos); permitir que os países exportadores provessem inputs num

68 WTO, Communication from the United States – Preparations for the 1999 MinisterialConference – Negotiations on Agriculture – Measures Affecting Trade in AgriculturalBiotechnology Products, WT/GC/W288, 4 de agosto de 1999.

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estágio precoce do processo de tomada de decisão dos demais, influen-ciando, assim, o desenvolvimento político das outras nações, particular-mente das sem capacidade científica e técnica (processos transparentes);e considerar os produtos GM “similares” aos convencionais com base noteste de “equivalência substancial” (processos previsíveis).

O Canadá propôs a formação de “um Grupo de Trabalho sobre biotec-nologia com a missão de avaliar a adequação e a eficácia das normas exis-tentes, assim como a capacidade dos membros da OMC de implementaressas normas efetivamente. Um ano depois de criado, o GT dará contade suas constatações perante o Órgão Diretor (a ser estabelecido emSeattle), chegando às conclusões que considerar apropriadas”.69 Portanto,o Canadá desejava discutir a biotecnologia e o comércio internacionalnão só no contexto da agricultura. Além disso, queria manter flexibili-dade com relação ao uso das constatações do Grupo de Trabalho, ou seja,a criação de um Grupo de Trabalho não pressupunha automaticamenteque a biotecnologia seria incluída nas negociações sobre a agricultura.

O Japão sugeriu que a OMC “estabeleça um foro adequado para ana-lisar as novas questões, inclusive os OGMs. Tal foro manterá discussõesa partir de uma perspectiva ampla a fim de examinar a atual situação dosOGMs, examinar as questões que devem ser tratadas e a sua relação comos acordos da OMC já existentes”. Pode ser “o subgrupo de um grupoindependente de negociação sobre a agricultura para identificar os tópicosacerca da matéria dos OGMs relacionados com a alimentação”. O grupodeveria considerar, inter alia, se os acordos relevantes da OMC, como oSPS, o TBT e o TRIPS, tinham condições de atender às questões referentesaos OGMs; qual era a situação dos membros no tocante à sua avaliaçãoda segurança dos OGMs e da rotulagem dos produtos alimentícios con-tendo OGMs; e qual seria o meio apropriado de a OMC tratar os conteúdose os resultados das discussões em outros foros internacionais.70

Graças à pressão dos promotores e de outros países exportadoresde OGMs, essas propostas foram incorporadas a duas partes do Esboço

69 WTO, Communication from Canada – Preparations for the 1999 Ministerial Conference –Proposal for Establishment of a Working Party on Biotechnology in WTO, WT/GC/W/359,12 de outubro de 1999.

70 WTO, Communication from Japan – Preparations for the 1999 Ministerial Conference –Proposal of Japan on Genetically Modified Organisms (GMOs), WT/GC/W/365, 12 deoutubro de 1999.

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de Declaração Ministerial de 19 de outubro de 1999. O Parágrafo 71, como título “Outros elementos do programa de trabalho”, diz: “Nós concor-damos em estabelecer um Grupo de Trabalho sobre Biotecnologia. Estese incumbirá de avaliar a adequação e a eficácia das normas existentes,assim como a capacidade dos membros da OMC de implementá-las. Éconveniente que esse grupo delibere dentro de um prazo X”.

Com o título “Negociações definidas em Marrakesh. Agricultura”,o Parágrafo 29(vi) refere-se ao “Aperfeiçoamento das regras e disciplinasconforme o adequado, inclusive com respeito a ... disciplinas que asse-gurem que o comércio de produtos da biotecnologia agrícola se baseieem processos transparentes, previsíveis e oportunos”.

Em Seattle, houve uma discussão inicial dessas propostas. Os Esta-dos Unidos confirmaram que seu objetivo não era atribuir à OMC a fun-ção de avaliar a base científica das decisões dos membros de autorizarou não certos produtos em seus mercados, e sim dar-lhe um papel rela-tivo no processo de aprovação dos produtos agrícolas da engenharia ge-nética pelos países. A Comissão Européia tentou conciliar suas diferen-ças com os Estados Unidos nesse campo, endossando a criação de umgrupo de trabalho sobre biotecnologia com a condição de que esse gru-po tivesse competência para estudar, não para negociar, e fizesse partede um pacote abrangente sobre questões relativas ao meio ambiente.Também reconfirmou que não abriria mão do direito de proibir produtosagrícolas e alimentícios por razões de segurança. Entretanto, como aComissão não tinha competência para fazer essa concessão, os minis-tros do Meio Ambiente e do Comércio da UE alteraram sua posição e seopuseram à discussão sobre biotecnologia na OMC. São vários os possí-veis motivos: o receio de que a criação de um grupo de trabalho na OMC

ameaçasse o sucesso das negociações do Protocolo sobre Biossegurança;a convicção de que a OMC não era o foro mais adequado para desenvol-ver uma abordagem multilateral das questões de biotecnologia; e o te-mor de que, se se atribuísse à OMC uma competência específica, asconsiderações comerciais passariam a prevalecer sobre as preocupaçõesambientais. Com a oposição dos ministros da UE à posição inicial daComissão, esta declarou que só aceitaria um grupo de trabalho sobre bio-tecnologia se todos os países se comprometessem a trabalhar de boa-fé

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para concluir as conversações sobre a biotecnologia e concordassem comuma agenda ampla de negociação na OMC, a qual incluiria questõesambientais e do consumidor.

Em conseqüência do fracasso da Conferência de Seattle, não se es-clareceu o futuro status das propostas apresentadas no processo prepa-ratório. Todavia, seja qual for a decisão tomada sobre seu status legal, elasrefletem as preocupações dos países que não tiveram oportunidade dese manifestar na conferência ministerial, mas que continuam presentes.No campo específico dos OGMs, o lançamento de novas negociações so-bre a agricultura, em março de 2000, promoveu um foro de discussãosobre tais questões; alguns países produtores e exportadores de OGMsjá propuseram a inclusão do tema nas negociações. Contudo, é muitoduvidoso que esse foro seja o mais apropriado para a discussão de pro-blemas relativos à biotecnologia. Provavelmente, será dificílimo para ospaíses em desenvolvimento obter um resultado geral positivo das nego-ciações sobre a agricultura se o tópico da biotecnologia se prolongar de-mais e ocupar muito a atenção das delegações. O mais provável é que osucesso da conclusão do Protocolo sobre Biossegurança tenha um im-pacto sobre as posições que os países sustentaram no processo prepara-tório da própria Conferência.

As iniciativas da Comissão do Código Alimentare da Organização para Agricultura e Alimentação

Em junho de 1999, a Comissão do Código Alimentar estabeleceuuma Força-tarefa Intergovernamental Ad Hoc sobre Alimentos Derivadosda Biotecnologia a fim de desenvolver padrões, diretrizes ou recomen-dações, conforme a conveniência, relativos aos alimentos derivados dabiotecnologia ou de características introduzidas nos alimentos por mé-todos biotecnológicos. A expectativa da comunidade global é de que, numprazo de quatro anos, a força-tarefa chegue a um acordo sobre as moda-lidades de avaliação da segurança dos alimentos derivados da biotecno-logia. Ela teve a sua primeira seção entre 14 e 17 de março de 2000. Nesseencontro, muitas delegações e organizações observadoras identificaram

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a avaliação da segurança e do valor nutritivo dos alimentos derivados dabiotecnologia como a área de trabalho prioritária.71

A força-tarefa decidiu proceder à elaboração de dois textos princi-pais: 1. um conjunto amplo de princípios gerais de análise de risco dealimentos derivados da biotecnologia, inclusive a tomada de decisão comfundamento científico, a avaliação anterior à comercialização, o moni-toramento e a transparência posteriores à comercialização; e 2. orientaçõesespecíficas para a avaliação de risco de alimentos derivados da biotec-nologia, inclusive matérias como segurança e nutrição alimentares, equi-valência substancial, efeitos não intencionais e conseqüências potenciaisa longo prazo para a saúde. Um grupo de trabalho presidido pelo Japãoincumbiu-se da tarefa de elaborar os textos.

Ademais, a força-tarefa concordou com a necessidade de prepararuma lista de métodos analíticos disponíveis, inclusive de detectar e iden-tificar alimentos ou ingredientes alimentícios derivados da biotecnologia,encarregando-se de indicar o critério de desempenho de cada método eo status de sua validação. Um grupo de trabalho coordenado pela Alema-nha ficou encarregado de copilar a lista.

O Comitê de Rotulagem de Produtos Alimentícios do Código estáestudando a adoção de um padrão internacional de rotulagem de OGMs.

Em 1996, a Organização para Agricultura e Alimentação (FAO) e aOrganização Mundial da Saúde (OMS) promoveram uma Consulta deExpertos e recomendaram que os países em desenvolvimento recebessemassistência e educação acerca das abordagens da avaliação de segurançade alimentos e componentes alimentícios produzidos por modificaçãogenética. Na primeira reunião da força-tarefa, a FAO e a OMS reafirmaramseu apoio à assistência técnica aos países subdesenvolvidos.

A FAO divulgou uma declaração por ocasião do primeiro encontroda força-tarefa.72 Enfatizou que a engenharia genética fornece poderososinstrumentos para um desenvolvimento sustentável da agricultura, do

71 Joint FAO/WHO Food Standard Programme, Report of the First Session of the Codex Ad HocIntergovernmental Task Force on Foods Derived from Biotechnology, Chiba, Japão, 14-17 de marçode 2000, ALINOR 01/34. O relatório será examinado na 24ª Sessão da Comissão do CódigoAlimentar (Genebra, 2-7 de julho de 2001).

72 Ver “FAO stresses potential of biotechnology but calls for caution”, FAO Press Release 00/17.

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florestamento e da pesca e pode ser uma ajuda importante para a satisfa-ção das necessidade alimentares da população crescente e cada vez maisurbanizada. No caso dos OGMs, porém, recomendou uma avaliação combase científica que determine objetivamente os benefícios e os riscos decada OGM individual e trate das preocupações legítimas com a biossegu-rança de cada produto e processo antes de que seja liberado. A FAO obser-vou que o investimento em pesquisa biotecnológica tende a se concen-trar no setor privado e a orientar-se para a agricultura dos países de rendamais alta, onde há poder de compra para os seus produtos. Em vista dacontribuição potencial das biotecnologias para aumentar o abastecimentode alimentos e superar a insegurança e a vulnerabilidade alimentares, aFAO fez um apelo para que se envidem esforços para assegurar que ospaíses subdesenvolvidos, em geral, e os agricultores pobres em recursos,em particular, tenham acesso a uma diversidade de fontes de material ge-nético. E propôs que essa necessidade seja atendida mediante o aumentodo financiamento público e o diálogo entre os setores público e privado.

No dia 28 de junho de 2000, o diretor-geral da FAO reconheceu, numaentrevista, que as culturas convencionais podiam alimentar 800 milhõesde pessoas com fome no mundo se simplesmente fossem distribuídascom justiça nos países subdesenvolvidos. Mas previu que uma escassezde terra disponível para o cultivo tornaria impossível alimentação de umapopulação global que deve chegar a 9 bilhões sem recorrer a plantas eanimais manipulados pela engenharia genética. Além disso, sublinhou anecessidade de tomar todas as precauções necessárias para proteger asaúde humana e o meio ambiente. Disse acreditar que é possível chegara um consenso sobre os padrões de alimento GM, apesar da divisão daopinião. A FAO, acrescentou, está criando uma “comissão de ética” es-pecial, com a contribuição de filósofos e representantes religiosos, parainvestigar os fatores humanos relacionados com a agricultura GM.73

Em julho de 1999, a Comissão do Código Alimentar aprovou dire-trizes internacionais para a produção, o processamento, a rotulagem e acomercialização do alimento organicamente produzido. Tais diretrizesdefinem a natureza da produção de alimento orgânico e prevenirão afir-mações capazes de desnortear os consumidores sobre a qualidade de um

73 Ver “World needs GM crops, says UN food chief”, Financial Times, 28 de junho de 2000.

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produto ou sobre o modo como é produzido. O objetivo final é dar-lheuma opção e, ao mesmo tempo, garantir a observância dos padrões daagricultura orgânica.74

As iniciativas da OCDE

A biotecnologia, os produtos agrícolas geneticamente modificadose outros aspectos da segurança alimentar não tardaram a despertar muitointeresse nos países-membros da Organização para Cooperação e Desen-volvimento Econômico (OCDE). Esta tem diversos projetos relacionadoscom a biossegurança, como o Grupo de Trabalho para a Harmonizaçãoda Supervisão Regulatória da Biotecnologia, o Grupo de Trabalho sobreBiotecnologia e a Força-tarefa para a Segurança dos Novos Alimentos eRações. Atualmente, está preparando a resposta a uma solicitação apre-sentada pelos chefes de Estado e de governo do G8, em junho de 1999,para que se criasse um grupo de estudo sobre “as implicações da biotec-nologia e outros aspectos da segurança alimentar”.75 A OCDE planejoucinco elementos em resposta ao G8: um relatório sobre a avaliação desegurança dos novos alimentos; outro sobre as questões ambientais re-lacionadas; um compêndio descrevendo os sistemas nacionais e inter-nacionais de segurança alimentar; o resultado das consultas da OCDE comorganizações não-governamentais ocorridas em 20 de novembro de 1999;

74 Ver “The Codex Alimentarius Commission approves guidelines for organic food and setsup taskforces on standards for derived from biotechnology, animal feeding and fruit juices”,FAO Press Release, 99/41.

75 “A biotecnologia oferece grandes oportunidades, mas também representa desafios signifi-cativos e suscitou o debate público sobre suas implicações. Os ministros enfatizaram aimportância de salvaguardar a saúde humana e meio ambiente e, ao mesmo tempo, permi-tir que as pessoas desfrutem dos benefícios provindos dos avanços da biotecnologia. Apesquisa científica é essencial ao processo. A OCDE deve continuar examinando as váriasdimensões da questão, inclusive a discussão no próximo encontro ministerial do CPCT(Comitê de Política Científica e Tecnológica) e em outros foros” (Comunicado da reuniãodo Conselho da OCDE em âmbito ministerial, parágrafo 9, maio de 1999). “Como o co-mércio é cada vez mais global, é preciso lidar com as conseqüências dos desenvolvimentosda biotecnologia em nível nacional e internacional e em todos os foros adequados. Nósdependemos de uma abordagem com base científica e fundada em normas para tratar des-sas questões” (Comunicado dos Chefes de Estado e de Governo do G8, parágrafo 11, Colô-nia, junho de 1999).

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e o resultado da Conferência da OCDE sobre “GM e Segurança Alimen-tar: Fatos, Incertezas e Avaliação” (Edimburgo, 28 de fevereiro–1º demarço de 2000).76

O princípio de precaução

O princípio de precaução começou a figurar em acordos multilate-rais na metade da década de 1980. Houve referências a ele em 1985, naConvenção de Viena para a Proteção da Camada de Ozônio, e em 1987,no Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Deterioram a Camadade Ozônio. O texto da Convenção sobre o Comércio Internacional deEspécies Ameaçadas da Fauna e da Flora Silvestres (Cites, na sigla in-glesa) não o invocou explicitamente, mas a Conferência das Partes en-dossou-o explicitamente em 1994. A aplicação do princípio aumentou apartir da década de 1990, quando a Conferência das Nações Unidas so-bre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Unced) dilatou consideravel-mente o consenso sobre ele. Adotou-se o Princípio 15 da Declaração doRio.77 Ademais, os delegados da Unced o invocaram na Convenção Qua-dro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, na Convenção sobreDiversidade Biológica e na Agenda 21. Como já se mencionou, o princí-pio de precaução é um dos pontos centrais do Protocolo de Cartagena.78

Em 1990, mencionou-se o princípio de precaução também em de-clarações e tratados regionais. A Convenção de Bamako de 1990 sobre aProibição de Importar Detritos Perigosos na África e sobre o Controledos Movimentos Transfronteiriços e a Gestão dos Detritos Perigosos na

76 Ver Inter-Agency Network for Safety in Biotechnology (IANB), Safety in Biotechnology – IANBNewsletter, n.1, 19 de abril de 2000, e OECD Work on Biotechnology and Other Aspects of FoodSafety, nota do secretário-geral, C(99) 148/REV4, 15 de novembro de 1999.

77 Na formulação da Declaração do Rio, o princípio tem diversos elementos. O limite paradesencadear o princípio é a existência de ameaças identificáveis de dano sério e irreversível.Na existência de tais ameaças, os governos têm liberdade de tomar medidas custo-efetivaspreventivas. Também podem se recusar a tomar tais medidas, porém não alegando falta decerteza científica. Ademais da referência a essas medidas, o Princípio 15 não estabelececondições nem restrições para as medidas preventivas que o governo escolher.

78 Encontra-se uma análise recente do princípio de precaução em Ward, H., “Science andPrecaution in the Trading System”, Royal Institute of International Affairs e o InternationalInstitute for Sustainable Development, 1999.

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África solicita a implementação do princípio de precaução. Na Europa,ele foi incluído na Convenção de 1999 para a Proteção do AmbienteMarinho do Atlântico Nordeste, na Convenção de 1992 sobre a Proteçãoe o Uso de Cursos de Água Transfronteiriços e dos Lagos Inernacionais epela Convenção de 1992 sobre a Proteção do Ambiente Marinho da Re-gião do Mar Báltico. Também ficou inscrito no Tratado de Maastricht de1992 como base da ação ambiental da UE.

Desde 1992, o princípio de precaução tem se refletido também nalegislação interna e na jurisprudência de um número crescente de países.De acordo com a maioria dos comentaristas, ele se originou na políticaambiental municipal da República Federal da Alemanha, onde se mate-rializou nos conceitos de que os perigos ambientais devem ser evitadosantes que ocorram e de que as autoridades governamentais podem im-por medidas ou agir mesmo diante da incerteza. Na Colômbia, a Lei n.99(aprovada em 1993) incorpora o princípio de precaução, considerando-o fundamental para a política ambiental do país. Em 1988, a Costa Ricaaprovou a Lei n.7.788 para conservar a biodiversidade, fomentar o usosustentável dos recursos naturais e distribuir de modo eqüitativo os be-nefícios e custos derivados da biodiversidade. O critério precautório éum dos que implementam a lei. Na Austrália, o princípio de precauçãovem sendo incorporado a quase todas as recentes políticas e estratégiasfederais para o meio ambiente. Ademais, a Justiça do país reconheceu oprincípio em diversos casos ambientais. O Canadá adotou a abordagemprecautória na legislação e nos acordos intergovernamentais, e ela temaparecido na jurisprudência. Várias províncias canadenses adotaram oprincípio de precaução na legislação ambiental. A abordagem precautóriareflete-se, pelo menos implicitamente, em numerosas leis ambientaisinternas dos Estados Unidos, inclusive na Lei das Espécies Ameaçadas,na da Política Ambiental Nacional, na do Ar Limpo, na Lei Federal deAlimentação, Drogas e Cosméticos, na da Água Limpa e na da Poluiçãode Petróleo. No entanto, o país tem afirmado reiteradamente que a abor-dagem precautória não é uma regra de direito consuetudinário; assim,embora a adote em várias leis ambientais, não a reconhece como umaobrigação internacional.

No caso Velore Citizens Welfare Forum versus Union of India & ORS, a Su-prema Corte indiana adotou o princípio de precaução ao tratar da poluição

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causada pelos curtumes e concluiu que ele era um elemento essencialdo desenvolvimento sustentável. Também decidiu que o princípio deprecaução fazia parte da lei da Índia, pelo menos parcialmente, pois é dese supor que as regras da lei consuetudinária internacional e, presumivel-mente, inclusive o princípio de precaução devem ser incorporados à le-gislação interna se não a contrariarem. No caso Shehla Zia versus WAPDA,a Suprema Corte paquistanesa reexaminou a objeção de um grupo decidadãos à proposta de construção de uma estação de distribuição de ener-gia. Com base no princípio de precaução, tal como o expressa a lei inter-nacional e a Constituição do Paquistão, o tribunal proibiu a construçãoda estação até que novos estudos esclareçam o seu impacto potencial.79

Em 2 de fevereiro de 2000, a Comissão da CE adotou um comunica-do80 acerca da aplicação do princípio de precaução como um complementodo Protocolo sobre Biossegurança e do Relatório sobre Segurança Ali-mentar. Os objetivos declarados do comunicado são informar todas aspartes interessadas sobre como a Comissão pretende aplicar o princípio;estabelecer diretrizes para a sua aplicação; contribuir com o presentedebate sobre a questão tanto na UE quanto em âmbito internacional; erigiruma compreensão comum do modo de avaliar, apreciar, gerir e comuni-car os riscos que a ciência não é capaz de avaliar plenamente; e evitar orecurso ilegítimo ao princípio de precaução como forma dissimulada deprotecionismo.

Conforme o comunicado, a Comissão considera que o princípio deprecaução abrange muito mais do que o campo ambiental, incluindo tam-bém a proteção da saúde humana, animal e vegetal. Oferece uma basede ação quando a ciência é incapaz de dar uma resposta clara diante derazoáveis motivos de preocupação com perigos potenciais que possamafetar o meio ambiente ou a saúde humana, animal ou vegetal de modoincompatível com o alto nível de proteção escolhido pela UE. Os respon-sáveis pelas decisões devem ter conhecimento do grau de incerteza dosresultados da avaliação da informação científica disponível; não obstante,

79 A análise do princípio de precaução na legislação regional e nacional e na jurisprudênciabaseia-se em Stilwell, M. T., “The precautionary principle in international and domesticlaw”, 2000. (Mimeogr.)

80 Commission of the European Communities, Communication from the Commission on thePrecautionary Principle, Bruxelas, 2 de fevereiro de 2000, COM(200) 1 final.

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determinar o nível de risco aceitável é, na opinião da Comissão, uma res-ponsabilidade eminentemente política. As medidas fundamentadas noprincípio de precaução devem ser, inter alia, proporcionais ao nível deproteção escolhido; indiscriminatórias na sua aplicação; compatíveis commedidas similares já tomadas; baseadas no exame dos benefícios e cus-tos potenciais da ação ou da falta de ação; sujeitas a revisão à luz de no-vos dados científicos; e capazes de atribuir responsabilidade pela produ-ção da evidência científica necessária a uma avaliação de risco maisabrangente. A Comissão deixa claro que examinar os custos e benefíciosda ação ou da falta dela não é uma simples análise econômica de custo-benefício: inclui considerações não-econômicas, como a eficiência das pos-síveis opções e a sua aceitabilidade pelo público. Na condução de tal exa-me, a proteção à saúde tem prioridade sobre as considerações econômicas.

O comissário do Meio Ambiente, que apresentou o Relatório sobreSegurança Alimentar na sessão plenária do Parlamento Europeu, admi-tiu que o uso do princípio de precaução pela UE pode provocar atritoscomerciais com os Estados Unidos, mas disse que as disputas serãosolucionadas.81

Durante o processo preparatório de Seattle, a UE tratou a questãodo princípio de precaução e propôs que os membros da OMC se concen-trassem, inter alia, em “examinar se é necessário esclarecer a relação entreas normas comerciais internacionais e os princípios ambientais essen-ciais, notadamente o de precaução”. E acrescentou que “é necessário ga-rantir o equilíbrio correto entre a ação pronta e proporcional, quando jus-tificável, e a evitação da precaução injustificável, tendo em mente que oconceito básico do princípio de precaução já está presente em várias dis-posições-chave da OMC, como os acordos SPS e TBT”.82

A referência ao princípio de precaução em textos legais multilate-rais, regionais e nacionais não o torna menos controverso no contextodo comércio internacional: embora ele tenha sido incluído em diversos

81 Ver “EC’s precautionary principle seeks proportionate, unbiased risk analysis”, InternationalTrade Reporter, v.17, n.6, 2 Feb. 2000.

82 WTO, Communication from the European Communities, Preparations for de 1999 Minis-terial Conference – EC Approach to Trade and Environment in the New WTO Round, WT/GC/W194, 1º de junho de 1999.

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instrumentos legais decisivos no trato do meio ambiente, seu status, noquadro do sistema comercial internacional, continua sendo pouco claro.

O comitê do SPS da OMC discutiu o princípio de precaução em suaprimeira reunião de 2000 (15-16 de março), quando a UE apresentou ocomunicado sobre ele. Tanto os países desenvolvidos quanto os subde-senvolvidos que participaram do debate expressaram preocupação como comunicado e enfatizaram que o Acordo SPS já continha regras acercados casos em que se fizessem necessárias medidas de emergência, mas acorrespondente evidência científica não fosse cabalmente acessível. Afir-maram que uma aplicação ampla do princípio de precaução, no comér-cio internacional, levaria a uma situação de imprevisibilidade no que tangeao acesso aos mercados, o que poria em risco os resultados da Rodadado Uruguai. Além disso, a implementação de medidas precautórias semo estabelecimento de um prazo rigoroso estimularia a ineficácia e retarda-ria a pesquisa científica. Entre os países que, no SPS, se manifestaram con-trários a uma interpretação ampla do princípio de precaução incluem-seos que se apuseram a ele durante as negociações do Protocolo sobreBiossegurança, assim como alguns dos que foram favoráveis no âmbitodo Protocolo sobre Biossegurança.

Conclusões

Como exportadores, os países em desenvolvimento sempre recearamque os desenvolvidos usassem medidas de proteção à saúde, ao meioambiente ou ao consumidor como instrumentos de proteção de sua in-dústria nacional, ameaçando-lhes, conseqüentemente, as oportunidadesde acesso ao mercado.

Como importadores, esses mesmos países enfrentam um risco dife-rente no campo da biotecnologia: o de importar e utilizar produtos quese podem revelar nocivos à saúde humana ou ao meio ambiente. A capa-cidade limitada da maioria deles de examinar os produtos na fronteira eavaliar por si sós os riscos e benefícios envolvidos, assim como a falta delegislação interna nessa matéria, torna séria a sua preocupação.

Se, como exportadores, os países em desenvolvimento argumentamcontra qualquer modificação das regras comerciais multilaterais existentes

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que venha a dar mais flexibilidade ao uso de medidas restritivas ao co-mércio em nome da proteção da vida e da saúde humanas ou animais oudo meio ambiente, como importadores potenciais de OGMs, a maior partedeles solicitou a flexibilidade para decidir aceitar ou recusar produtoscujo efeito sobre a saúde e o meio ambiente ainda não são plenamenteconhecidos.

Em termos práticos, essas preocupações diferentes se refletiram nofato de os países em desenvolvimento haverem solicitado que as medi-das do TBT e do SPS se baseassem, tanto quanto possível, nos padrõesinternacionais e na evidência científica, de terem apoiado uma interpreta-ção restrita do princípio de precaução no âmbito dos acordos da OMC erejeitado as propostas dos países desenvolvidos no sentido de alterar oArtigo 20 do GATT. Por outro lado, a maioria das nações subdesenvolvi-das manifestou-se firmemente a favor da flexibilidade na tomada de de-cisão no quadro do Protocolo sobre Biossegurança e lutou para tornar aabordagem precautória um dos pontos mais importantes do Protocolo.

Essas posições conflitantes não são um sinal de falta de compreen-são dos problemas em questão, porém mostram o quanto é difícil paraos países – especialmente os que contam com escassos recursos finan-ceiros e técnicos e têm necessidades rivais – tomar uma posição inequí-voca no cenário cada vez mais complexo do comércio internacional.

A biotecnologia pode ser uma área em que os países em desenvolvi-mento não tenham particular interesse em continuar negociando, sobre-tudo no âmbito da OMC, uma vez que, em quaisquer negociações, é pro-vável que eles se vejam diante de vários riscos. A introdução dos OGMsna OMC arrisca criar conflito entre as comunidades comercial e ambientale permitir que os países exportadores de OGMs desenvolvam novas dis-ciplinas capazes de sabotar o Protocolo sobre Biossegurança. Por outrolado, pode permitir a alguns países desenvolver novas normas baseadasno princípio de precaução que abranjam muito mais que os produtos GM

que tanto preocupam os países subdesenvolvidos, solapando-lhes o aces-so ao mercado de produtos convencionais.

Há outros foros, à parte a OMC, nos quais já se trataram e ainda épossível tratar as questões relacionadas com o OGMs, como a CDB/Pro-tocolo sobre Biossegurança ou a FAO. Considerações científicas, jurídi-cas e táticas justificam a escolha dessas instâncias como foro de discussão

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sobre os OGMs. Nelas, os países são representados por delegados comexpertise específica no setor. O Protocolo sobre Biossegurança tem porobjeto os OGMs, ao passo que os acordos da OMC – como o TBT e o SPS –se aplicam além das fronteiras. Geralmente, os países em desenvolvimen-to conseguem se fazer ouvir mais no contexto da CDB e da FAO que naOMC. As discussões nesses foros têm a possibilidade de ser muito pro-dutivas, mas as conclusões a que se chegar podem ser questionadas combase na sua compatibilidade com a OMC.

Há ainda diversos foros, no âmbito da OMC, nos quais se podem tratarou já se trataram, direta ou indiretamente, questões relativas ao comér-cio de produtos da biotecnologia e, mais especificamente, de OGMs. Cadaum deles tem características próprias, de modo que as discussões po-dem ter resultados diferentes conforme o lugar em que ocorram. Os co-mitês do SPS e do TBT são técnicos, com função bem definida e relativa-mente pouco espaço para barganhas, muito embora, no presente, oAcordo TBT esteja passando por sua segunda revisão trienal. O Comitêde Comércio e Meio Ambiente é um foro em que as questões não-co-merciais recebem uma atenção especial. O Comitê de Agricultura, emque as negociações são contínuas, é o foro que atualmente oferece a maisampla margem de manobra e as melhores oportunidades de barganha.No entanto, também pode ser um foro arriscado para os países subde-senvolvidos. Os países produtores e exportadores de OGMs têm a possi-bilidade de trocar concessões no terreno da biotecnologia por conces-sões em outras áreas, como os subsídios à exportação, e isso é capaz delevar a uma situação contrária aos interesses dos países em desenvolvi-mento no setor. Ademais, a atenção excessiva à biotecnologia arriscadesviar a atenção de temas de enorme relevância para os países em de-senvolvimento, especificamente as reduções de tarifas e a suspensão dossubsídios, e ameaçar os resultados globais das negociações. Além disso,pode-se argumentar que o comércio de OGMs é uma questão horizon-tal com implicações que vão além da agricultura e que, portanto, o Comi-tê de Agricultura não é o foro mais adequado para discuti-la. Um gru-po de trabalho ad hoc no âmbito da OMC tem condições de contribuirpara melhorar a compreensão do problema, contudo os grupos de traba-lho geralmente são o primeiro passo rumo à negociação de novas regrascomerciais.

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Se se levar à OMC a questão do comércio internacional de OGMs eprodutos deles derivados, podem-se vislumbrar dois cenários possíveis.

Cenário 1

Como alguns parceiros comerciais poderosos apóiam decididamen-te alterações no sistema da OMC a fim de melhor acomodar seus interes-ses não-comerciais, e diante da pressão exercida sobre o sistema pelosmuito expressivos grupos de consumidores e ambientalistas, o sistemacomercial multilateral pode se tornar mais flexível, permitindo que ospaíses recorram a medidas restritivas ao comércio a fim de proteger seusmercados de produtos que possam prejudicar a vida e a saúde humanas,animais ou vegetais ou o meio ambiente. Por conseguinte, é possível quese iniciem negociações, na OMC, para modificar o Artigo 20 do GATT e,talvez, o Artigo 5.7 do Acordo SPS.

Uma alteração integral do Acordo SPS e do Artigo 20 do GATT, afe-tando não só o comércio de OGMs, como também o de produtos agríco-las e alimentícios não-GM, seria uma opção arriscada para os países sub-desenvolvidos, uma vez que pode ameaçar as oportunidades de mercadoexistentes. Por outro lado, seria desnecessário procurar proteger a saúdee a segurança internas, no campo dos OGMs, já que é possível usar o Proto-colo sobre Biossegurança com esse fim.

Sem embargo, se se alterarem as normas comerciais da maneira des-crita anteriormente, a atitude dos países em desenvolvimento pode sera de reivindicar assistência técnica e financeira que lhes possibilite cum-prir as novas e mais rigorosas exigências que, provavelmente, serãoimplementadas pelos países importadores. Deve-se incentivar a imple-mentação cabal, por parte dos países desenvolvidos, das disposições so-bre a cooperação técnica e sobre o tratamento especial e diferencial con-tidos nos Acordos SPS e TBT. Há que preservar as oportunidades de acessoao mercado dos países em desenvolvimento e não se deve modificar oequilíbrio de direitos e obrigações surgido na Rodada do Uruguai. Essaopção pode ser perigosa: embora arrisque implementar exigências maisrigorosas, é possível que não se verifique a cooperação técnica e finan-ceira, como mostra a experiência com cláusulas de melhor empenho.Todavia, os países subdesenvolvidos devem ter em mente que os varejistas

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e os consumidores podem recusar produtos que não observem padrõesrigorosos, portanto aumentar a capacidade de produzir qualidade e pro-dutos seguros é a alternativa mais promissora a longo prazo.

Esta opção implica criar conhecimento, aptidão e capacidade nospaíses em desenvolvimento. Reforçar as capacidades internas nesses ter-renos teria um positivo efeito expansível à medida que também ajudariaos países subdesenvolvidos, como importadores, a identificar confiavel-mente o tipo de produtos que desejam permitir em seus mercados. Emvez de se mostrarem relutantes em importar e usar produtos genetica-mente modificados em razão de sua incapacidade de avaliar os riscos ebenefícios potenciais com eles relacionados, é possível que, com base noaumento de sua capacidade científica e de avaliação própria dos riscos ebenefícios potenciais envolvidos, esses países passem a impedir a entradados produtos real ou potencialmente nocivos à saúde e à segurança in-ternas, levando em conta as condições locais, e a permitir a entrada dosque se mostrarem benéficos para a solução de graves problemas inter-nos, como a segurança alimentar, a saúde pública e a proteção do meioambiente. Em outras palavras, aumentar a capacidade dos países emdesenvolvimento de lidar com questões científicas no setor agrícola sig-nifica aumentar-lhes a capacidade tanto como exportadores quanto comoimportadores e, no futuro, como produtores. Tais países podem se beneficiarda biotecnologia se conseguirem lidar com ela e participar de seu desen-volvimento.

Cenário 2

A incerteza jurídica já está afetando os fluxos comerciais interna-cionais de OGMs e de produtos deles derivados, assim como os interes-ses econômicos dos países exportadores, principalmente dos EstadosUnidos e do Canadá. Os conglomerados transnacionais que fizeram inves-timentos significativos na biotecnologia já estão pressionando os gover-nos para que assegurem um sistema comercial multilateral que incluatão poucas limitações quanto possível no movimento transfronteiriço deprodutos da biotecnologia. Em conseqüência da pressão exercida porparceiros comerciais decisivos e por lobbies de fabricantes, os existentesacordos da Rodada do Uruguai permanecem inalterados.

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Um novo dilema para os países em desenvolvimento...

A atitude dos países em desenvolvimento pode ser a de que o atualcenário comercial lhes apresenta dificuldades, pois os obriga a lidar comfenômenos novos, como a biotecnologia, e eles carecem de expertise paratanto. Por isso, precisarão de cooperação técnica e financeira para elabo-rar a política e a capacidade técnica nos novos terrenos. Pode-se criar umfundo internacional, mantido por contribuições públicas e privadas eadministrado sob o auspício do secretariado da CDB, da FAO e da Co-missão do Código Alimentar, para financiar o treinamento técnico embiotecnologia aplicada à agricultura e possibilitar, aos países subdesen-volvidos, a avaliação dos riscos e benefícios dos produtos da biotecnologia.Com base em tal avaliação, eles decidiriam que produtos importar ouque sementes plantar e, por fim, que tecnologia desenvolver para resol-ver seus próprios problemas agrícolas e de segurança alimentar. Um pontode partida pode ser a oferta, por parte da FAO/OMS, de dar apoio aos paísesem desenvolvimento para avaliar a segurança dos alimentos e compo-nentes alimentícios produzidos pela modificação genética. Outra impor-tante contribuição para a criação de capacidade pode ser a cooperaçãotécnica oferecida pelos países subdesenvolvidos que já adquiriram algu-ma expertise no campo da biotecnologia aos que ainda se encontram noprocesso de familiarizar-se com o novo fenômeno.

A opção pelo status quo é menos arriscada do que a primeira do pon-to de vista comercial (para poder implementar medidas restritivas ao co-mércio compatíveis com a OMC a fim de realizar objetivos relacionadoscom a saúde ou o meio ambiente, os países terão de cumprir as rigoro-sas exigências do Artigo 20 do GATT e do Artigo 5.7 do Acordo SPS). Con-tudo, pode ser mais arriscado do ponto de vista da saúde e da proteçãoambiental internas se as organizações internacionais competentes e ospaíses desenvolvidos não oferecerem a necessária cooperação. No entan-to, o Protocolo sobre Biossegurança contém provisões específicas relati-vas à cooperação técnica, e estas também devem ser utilizadas.

Se prevalecer o status quo, são muitas as chances de que o sistema desolução de controvérsias da OMC tenha de examinar numerosas disputascomerciais. Isso porque ainda não se resolveu a questão da relação entreas regras comerciais incluídas em acordos multilaterais específicos comos direitos e obrigações da OMC. Os panels e o Órgão de Apelação da OMC

darão soluções caso a caso. Os países em desenvolvimento enfrentam

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algumas dificuldades nesse campo: ser parte de um litígio é demorado emuito custoso, principalmente se eles dependerem de advogados estran-geiros. Ademais, o fato de uma demanda específica ser solucionada dedeterminado modo não significa que um caso semelhante há de ser re-solvido exatamente nos mesmos termos. Por conseguinte, é necessáriauma vigilância constante sobre a evolução da jurisprudência da OMC. Sãoessas as considerações adicionais a serem levadas em conta.

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Parte IIIEstado, integração regional

e desenvolvimento

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9O papel do Estado na economia:

um exame teórico sobre o caso chinês

Zhiyuan Cui1

O Estado corretor das �falhas de mercado�

Falhas de mercado tradicionais

Na paisagem intelectual contemporânea, pode-se sintetizar a pers-pectiva do papel econômico do Estado da seguinte maneira: “o Estado deveser o corretor das falhas de mercado”. Estas, por sua vez, classificam-seem dois tipos principais: as “tradicionais” e as “novas” (Stiglitz, 1998).

Geralmente se identificam as falhas de mercado tradicionais com aajuda do Primeiro Teorema do Bem-estar. Ele estipula que um sistemade preços competitivos, observados certos pressupostos acerca da pre-ferência e da tecnologia (como a concorrência perfeita, a ausência de bempúblico, de retorno crescente à escala e de externalidade), pode levar a

1 Professor do Departamento de Ciência Política, MIT (EUA). Parcialmente publicado noPNUD China Human Development Report, 1999.

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alocação de recursos ao ótimo de Pareto para o conjunto da sociedade. A“falha de mercado” ocorre quando se violam os pressupostos do teoremaem razão da existência de bens públicos, de retorno crescente à escala oude externalidade. O papel do Estado consiste em corrigir essas falhas comos meios disponíveis, como garantir a ordem pública e os direitos de proprie-dade, fornecer bens públicos, tais como estradas e a defesa nacional, re-gulamentar as utilidades públicas que apresentarem retornos crescentesà escala na produção, aplicar a lei antitruste para preservar a concorrên-cia, recorrer à legislação ambiental a fim de reduzir a poluição etc.

A intuição por trás das “falhas tradicionais de mercado” é simples.O “bem público” e os bens com externalidades positivas serão mais es-cassos no mercado, ao passo que os bens com externalidades negativas(como a poluição) serão mais abundantes, já que, em ambos os casos, ocusto marginal social não será igual aos custo marginal privado. O boxeabaixo ilustra o papel do Estado na redução das externalidades negati-vas via regulamentação ambiental.

A Lei Ambiental da China para a Produção Limpa de Carvão

A Lei de Proteção Ambiental chinesa de 1982 e muitas leis e regulamen-tações subseqüentes indicam o sério compromisso do governo com a metado desenvolvimento sustentável. Por exemplo, a Lei de Conservação da Ener-gia da República Popular da China entrou em vigor no dia 1º de janeiro de1998. O Nono Plano Qüinqüenal (a partir de 1996) exige que todas as minasde carvão novas e muitas já existentes tenham instalações de preparo do car-vão. Em 2000, a meta é lavar 30% da produção total de carvão e 58% do pro-duzido pelas empresas estatais. E, recentemente, o Conselho de Estado criounovas regulamentações para a construção e a reconstrução de usinas terme-létricas a carvão. De acordo com a nova regulamentação, a construção de no-vas usinas termelétricas a carvão é proibida em cidades grandes ou médias ouem seus subúrbios, a não ser as usinas de aquecimento cuja energia é deter-minada pelo aquecimento. Devem-se erigir plantas de dessulfuração nas usi-nas em construção ou transformação cujo conteúdo de enxofre seja superiora 1% no carvão. No caso das usinas cujo conteúdo corrente de enxofre exce-der 1%, devem-se tomar medidas para reduzir a descarga de dióxido de enxo-fre no ano de 2000, e as plantas de dessulfuração devem ser construídas porestágios ou se tomarão medidas igualmente eficazes em 2010.

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O papel do Estado na economia...

As novas falhas de mercado

Nas últimas duas décadas, as novas teorias dos mercados incomple-tos e da informação imperfeita possibilitam-nos identificar “novas falhasde mercado”, além das tradicionais. Essencialmente, o teorema Green-wald-Stiglitz substituiu o Primeiro Teorema do Bem-estar como pa-radigma para situar o papel econômico do Estado.

Para provar o Primeiro Teorema do Bem-estar requer-se a suposiçãode conjuntos completos de mercados. Diz-se que existe um conjuntocompleto de mercado ali onde há tantos direitos dependentes do Estadoquanto estados de natureza. Em outras palavras, eles simplesmente forne-cem e recebem o quantum contratado de bens. O motivo pelo qual o Pri-meiro Teorema do Bem-estar exige o pressuposto dos mercados comple-tos é que, na alocação eficiente de Pareto, a taxa marginal de substituiçãode diferentes indivíduos entre diferentes estados de natureza deve serigual.2 Mas, quando não existe um conjunto completo de mercado, nin-guém é capaz de trocar todos os bens com todas as outras pessoas numperíodo determinado; não lhes resta senão “olhar para a distribuição dopreço e para sua própria taxa marginal de substituição, que pode diferirmarcadamente da dos outros” (Newbery & Stiglitz, 1981, p.209). Obvia-mente, não temos um conjunto completo de mercados em nenhuma eco-nomia real. Por exemplo, os mercados de futuro de bens agrícolas geral-mente se estendem apenas alguns meses no futuro e não se podemassegurar muitos riscos nos mercados de seguros.

O teorema de Greenwald-Stiglitz estabeleceu essencialmente quetoda vez que os mercados foram incompletos ou a informação imperfeita(sempre essencialmente), a economia não foi compelida ao ótimo dePareto. Em outras palavras, há intervenções governamentais capazes depromover o bem-estar sem ambigüidade. O insight essencial do teoremaGreenwald-Stiglitz é que as ações dos indivíduos têm, sobre os outros,muito mais efeitos semelhantes à externalidade (coisa que eles deixamde levar em conta) do que identificam as falhas de mercado tradicionais.

2 Um exemplo simples demonstra a validade dessa afirmação: suponhamos que duas pes-soas avaliem diferentemente uma unidade marginal de bem; a primeira a avalia em $5; asegunda, em $4. Ora, se a que dá o menor valor vender uma parte desse bem à outra porum preço qualquer entre $4 e $5, ambas se sairão bem. Assim, nenhuma alocação com ta-xas marginais de substituição diferentes pode ser eficiente em termos de Pareto.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

Por exemplo, conforme o Primeiro Teorema do Bem-estar, se a de-manda não for igual à oferta, haveria forças de mudança para lhes devol-ver o equilíbrio e tornar a igualá-las. No entanto, o teorema Greenwald-Stiglitz mostra que essa conclusão é incorreta; o equilíbrio do mercadocompetitivo pode se caracterizar pela demanda superior à oferta (comonos modelos Stiglitz-Weiss de 1981 de racionamento de crédito) ou pelaoferta superior à demanda (como no modelo Shapiro-Stiglitz de 1984do desemprego com salários de eficiência).

Como observa Joseph Stiglitz (1992, p.38), “Se a literatura tradicionalcaracterizava as falhas de mercado como exceções à regra geral segundoa qual os mercados descentralizados levam à alocação eficiente, nesta novavisão, inverte-se o pressuposto. Só em circunstâncias excepcionais omercado é eficiente”. Fundamentalmente, o preço, num conjunto incom-pleto de mercados, já não é uma estatística sumária que leve automati-camente à coincidência do interesse privado com o bem-estar social.

O reconhecimento das “novas falhas de mercado” abre-nos os olhospara as importantes imperfeições nos mercados de trabalho, de commoditye de capital. Um exemplo paradigmático pode ser encontrado no merca-do de carros usados: como o vendedor conhece melhor a qualidade docarro usado, os compradores suspeitam que o preço lhe excede o valor,portanto pode ser que não o comprem. Argumentos semelhantes apli-cam-se aos mercados de trabalho e de capital “usados”. Portanto, é im-portante o papel do Estado de oferecer seguro-desemprego e seguridadesocial e regulamentar os mercados de capital.

Aliás, um exemplo instrutivo do papel do Estado na correção das“novas falhas de mercado” é a decisão das autoridades chinesas de emi-tir mais títulos do governo em 1998 a fim de estimular a procura internae dar mais liquidez aos mercados de capital. O próximo boxe explica porque o fornecimento de liquidez pelo governo é crucial em épocas de in-certeza agregada como a recessão.

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O papel do Estado na economia...

O modelo Holmström e Tirole de fornecimentogovernamental de liquidez

Os ativos privados oferecem liquidez suficiente para o funcionamentoeficiente do setor produtivo? Ou o Estado tem um papel na criação de liquideze na sua regulamentação mediante ajustes no estoque de securities do governoou por outros meios? No modelo de Holmström e Tirole, as empresas têmtrês modos de atender às necessidades futuras de liquidez: emitindo novasações, obtendo uma linha de crédito de um intermediário financeiro e retendoações de outras empresas. Não havendo incerteza agregada, mostramos queesses instrumentos são suficientes para implementar o contrato social ótimo(second best) entre investidores e empresas. Sem embargo, a implementaçãopode exigir um intermediário para coordenar o uso da liquidez escassa, e, nessecaso, os contratos com o intermediário impõem às empresas tanto uma razãomáxima de alavancagem quanto uma restrição à liquidez. Quando só há in-certeza agregada, o setor privado não consegue satisfazer suas próprias neces-sidades de liquidez. O governo pode melhorar o bem-estar emitindo títulos quecomprometem a renda futura do consumidor. Estes impõem um prêmio deliquidez sobre os direitos privados. O governo deve administrar o débito demodo a soltar essa liquidez (o valor dos títulos é alto) quando o choque deliquidez agregada for alto e a restringi-la quando o choque de liquidez for baixo.Esse modelo sugere, pois, um rationale tanto para a liquidez fornecida pelogoverno quanto para a sua gestão ativa (Holmström & Tirole, 1998, p.1-2).

O teorema do segundo melhor (second-best)

Até aqui, atribuímos papéis importantes ao Estado na correção tan-to das falhas de mercado “tradicionais” quanto das “novas”. Contudo,há uma visão contrária.

Essa visão sustenta que a “falha de governo” sempre é mais graveque as “falhas de mercado”, de modo que o governo deve se manter afas-tado mesmo em casos de externalidade, retorno crescente à escala e benspúblicos (Stigler, 1975). Gary Becker (1976, p.37-8) deixa isso bem cla-ro: “Eu me inclino a acreditar que o monopólio e as outras imperfeiçõessão pelo menos tão importantes e talvez substancialmente mais impor-tantes, nos setores políticos tanto quanto no mercado ... a existência deimperfeições de mercado justifica a intervenção governamental? A res-posta há de ser ‘não’ se as imperfeições do comportamento do governoforem maiores que as do mercado”.

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Referindo-se à externalidade, Ronald Coase argumenta que a bar-ganha privada é sempre mais eficiente que a correção governamental(1960). Richard Posner (1986, p.21) amplia essa visão para propor quea lei comum é sempre mais eficiente que a estatutária e a constitucional:“a lei comum é mais bem explicada como um sistema de maximização dariqueza da sociedade. É menos provável que a estatutária ou a constitucio-nal, sendo distintas dos campos da lei comum, promovam a eficiência”.

Essa visão que considera a “falha de governo” sempre maior que a“falha de mercado” não passa de um artigo de fé na “mão invisível”. Nósachamos melhor adotar uma abordagem pragmática das falhas de mer-cado e de governo, nomeadamente, fazendo um exame cauteloso, caso acaso, a fim de determinar a extensão e o método adequados de interven-ção governamental. Essa atitude pragmática, longe de ser uma fé teoló-gica na “mão invisível”, é justificada pelo Teorema do Segundo Melhorde Lipsey e Lancaster.

Já em 1956, Lipsey & Lancaster desenvolveram a “teoria geral dosegundo melhor”. Ela diz, basicamente: sempre que houver ineficiênci-as em vários mercados, eliminar uma delas não melhora necessariamen-te a eficiência. Uma boa ilustração dessa proposição é a recente crise dapoupança e empréstimos no setor financeiro norte-americano: adesregulamentação em uma dimensão sem regulamentação em outrapode levar ao desastre.3 Mais genericamente, para usar as palavras deLipsey & Lancaster (1956, p.11-2):

O teorema geral do segundo melhor assevera que, se se introduzirnum sistema de equilíbrio geral uma restrição que impeça que se atinjauma das condições paretianas, as demais condições paretianas, conquantoainda alcançáveis, em geral deixarão de ser desejáveis. Em outras palavras,não sendo possível realizar uma das condições do ótimo paretiano, só sepode atingir uma situação ótima afastando-se de todas as demais condiçõesparetianas. A situação ótima finalmente alcançada pode se denominar umsegundo melhor ótimo porque se realiza sujeita a uma restrição que, pordefinição, impede que se alcance o ótimo paretiano. Segue-se o importante

3 A atual crise da poupança e do crédito, nos Estados Unidos, é, em grande parte, causadapela desregulamentação malfeita: a administração não foi capaz de perceber que adesregulamentação de uma dimensão (como a da escolha de investimento da indústria empoupança e empréstimos) pode exigir uma regulamentação mais rigorosa de outra (comosupervisionar a “segurança e a saúde” da poupança e dos empréstimos).

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corolário negativo desse teorema, segundo o qual não há um modo a prioride julgar as diversas situações nas quais se realizam as condições paretianasótimas enquanto as outras não se realizam ... Em particular, não é verdadeque uma situação em que todas as saídas, a partir de condições ótimas,têm a mesma direção e a mesma magnitude é necessariamente superior auma em que os desvios variam de direção e magnitude.

Ademais, convém notar que o governo, sendo uma instituição espe-cial, tem a capacidade de tributar. Isso lhe dá vantagens, perante os agen-tes privados, na correção das falhas de mercado. Por exemplo, o “riscomoral” é um grave problema dos mercados de seguros. Uma pessoa as-segurada pode se tornar mais descuidada, por exemplo, passar a fumarna cama; o governo tem a possibilidade de agravar os cigarros com im-postos e, assim, desestimular o tabagismo em geral, o que, por sua vez,reduz o risco moral dos mercados de seguros.

O Estado como criador de instituições de mercado

Nós discutimos o papel do Estado na correção das falhas de mercadotradicionais e novas. Essa perspectiva, embora útil à análise da política,continua partindo do pressuposto de que o “mercado” é anterior ao Es-tado. Não obstante, como já demonstraram as pesquisas orientadas paraa evolução histórica e institucional da moderna economia “de mercado”,o Estado teve um papel decisivo na criação das próprias instituições demercado, como as corporações e os mercados financeiros (Polanyi, 1944).

As corporações

Contrariamente à noção convencional de que as corporações se desen-volveram autonomamente no Ocidente porque concorriam com maiseficiência no mercado, os governos as criaram para que fizessem coisasque “o empresário racional não faria porque eram demasiado arriscadas,excessivamente caras, pouco lucrativas ou exageradamente públicas, ouseja, para realizar tarefas que não seriam realizadas se dependessem dofuncionamento eficiente dos mercados. Desenvolveram-se corporaçõespara que empreendessem trabalhos que não eram racionais ou adequadosna perspectiva do empresário individual ... O Estado não se limitou a definiro que era uma corporação e quais eram os direitos, habilitações e respon-

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sabilidades particulares que os proprietários, os gerentes, os trabalhadores,os consumidores e os cidadãos podiam exercer legalmente com relação aela, o Estado as estabeleceu e capitalizou ativamente” (Roy, 1997, p.41).

Vê-se claramente o papel do Estado como criador da corporação na“Experiência das Cem Corporações Empresarias” da China. Segundo orelatório do World Bank (p.4), “um dos esforços atuais pela reestru-turação ativa das estatais é a experiência das cem novas corporações deempresas anunciada no início de 1994. Com esse programa, o governocentral apoiará a transformação de firmas-piloto em conglomerados, con-forme a Lei da Empresa, mediante a reforma dos direitos de propriedadee dos sistemas de governança corporativa; também apoiará a renovaçãotécnica e a reestruturação das firmas. O Conselho de Estado concluiuem meados de 1995 a seleção das cem indústrias estatais grandes e mé-dias que participarão do programa”.

Um dos meios principais pelo qual o Estado desempenha o seu papelno processo de criação de corporações na China é a “participação na pro-priedade das ações”. Examinemos mais detidamente a estrutura acioná-ria: há duas bolsas de valores na China atual, a de Xangai (inauguradano dia 19 de dezembro de 1990) e a de Xenzhen (inaugurada em julhode 1991). As corporações listadas nessas duas bolsas geralmente têm trêstipos de ações: as estatais, as de pessoas jurídicas e as de pessoas físicas.

• Ações estatais: Trata-se de ações do governo (tanto central quanto local)e de empresas de propriedade exclusivamente estatal.

• Ações de pessoas jurídicas: São as de propriedade de outras sociedadesde ação, de instituições financeiras não-bancárias e de outras insti-tuições sociais.

• Ações de pessoas físicas: São as possuídas e comercializadas pelos cida-dãos individuais. Denominam-se ações A comercializáveis, já que exis-tem as B, oferecidas exclusivamente aos investidores estrangeiros.

Uma típica corporação chinesa arrolada na bolsa de Xangai ou deXenzhen geralmente tem os três tipos de acionistas anteriormente men-cionados, ou seja, o Estado, a pessoa jurídica e o indivíduo. Cada qualfica com cerca de 30% do total das ações emitidas.4 No fim de julho de

4 A regulamentação do governo exige que as ações A comercializáveis não devem correspondera menos de 25% da oferta pública inicial da empresa.

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1997, havia 590 empresas listadas nas bolsas de Xangai e de Xenzhen.Todavia, só as ações individuais podem ser comercializadas nessas duasbolsas. As estatais e as de pessoas jurídicas não estão autorizadas.

Neste momento, debate-se acaloradamente se as ações estatais de-vem ser comercializadas na bolsa de valores. Os que se opõem à sua co-mercialização citam razões sobretudo ideológicas: para eles, comercializarações estatais redunda em “privatização”; já os favoráveis argumentamque as grandes proporções de ações estatais numa corporação levam osfuncionários do governo a intervir arbitrariamente nas decisões empre-sariais, uma vez que o Estado nomeia os que hão de participar dos con-selhos diretores. Ao que tudo indica, o consenso que emerge dessa polê-mica é que o Estado deve ser um acionista passivo, negociando com o péno mercado acionário, isto é, um “participante residual” sem o poder decontrolar as operações da corporação no dia-a-dia.

Propriedade Estatal Tumultuada e Corporação Mista

Pode-se pensar que o caso do Estado acionista é demasiado especial paraoferecer um insight teórico geral. No entanto, um dos mais importantes pen-sadores liberais dos Estados Unidos, Louis Harz (1948), escreveu uma histó-ria definitiva da “corporação mista” – “mista” no sentido de que o Estado éum acionista entre outros – na Pensilvânia entre 1776 e 1860. Pensando bem,não devia surpreender que os Estados norte-americanos tenham se servidodo mercado de ações para financiar as despesas e a política industrial: afinal,só em 1913 foi que a Sexta Emenda à Constituição dos Estados Unidos lega-lizou o imposto de renda (como não incompatível com a propriedade privada)(Stanley, 1993).

O exemplo das “corporações mistas”, na história dos Estados Unidos,lembra-nos de que o Estado acionista talvez não seja tão especial nemexcepcional assim. Aliás, em todo o mundo a história da propriedadeestatal oferece muitas lições esclarecedoras sobre a divergência entredireito residual e controle residual. Por exemplo, depois da SegundaGuerra Mundial, o Reino Unido nacionalizou as indústrias de aço, eletri-cidade, estrada de ferro e carvão, mas lá o Estado era apenas um con-trolador residual sem um participante residual, pois “não auferia lucrospara uso próprio e livre ..., já que estes eram compensados pelo paga-mento dos juros das dívidas nacionais contraídas para elevar o custo de

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compensação dos esquemas de nacionalização. Assim, o Estado tornou-se um proprietário-gerente, mas sem o benefício do aumento da renda”(Mead, 1993, p.95).

O Nobel de Economia James Meade propõe inverter o processo denacionalização do Reino Unido. O que ele chama de “nacionalizaçãodesordenada” é, essencialmente, dar o direito de participação residualao Estado acionista sem lhe garantir o de controle. Dois importantesbenefícios dessa “nacionalização desordenada” são, segundo Meade: 1.o governo poder usar procedimentos de acionista para financiar o “divi-dendo social”, que dará flexibilidade aos mercados de trabalho, garan-tindo a todos uma renda mínima; 2. o governo fica separado damicrogestão das decisões internas das empresas de que é dono parcial.

Não deixa de haver certas semelhanças entre a visão de James Meadee o emergente consenso político chinês acerca do Estado como acionistapassivo. Mesmo a idéia de “dividendo social” chega a ser vista na práticalocal: a cidade de Xunde, na província de Guangdong, procedeu à vendade ações do governo para financiar seu “fundo de seguridade social”. Poresse motivo, pode-se apelidar a perspectiva de participação passiva doEstado na China de “propriedade estatal desordenada”.

Dívida pública e mercado financeiro

O desenvolvimento histórico de Wall Street, nos Estados Unidos,ilustra vivamente que ela foi criada pelo Estado para servir sua dívidapública, como documenta o boxe seguinte:

Wall Street e os Títulos do Governo

Como “Wall Street” é comumente encarada como o bastião da empresaprivada, o centro conservador e antigovernamental dos sentimentos do laisser-faire, a relação entre ela e o governo se molda em termos de regulamentação,isto é, da extensão em que o governo exerce o poder de vigilância e de políciaa fim de evitar práticas econômicas perniciosas ... No entanto, a relação his-tórica entre o governo e as instituições do capitalismo corporativo tem sidomuito estreita. Wall Street foi criada essencialmente para manejar as securitiesdos governos e das corporações quase governamentais ...

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Antes de 1800, a idéia de comprar uma parcela de uma empresa fabrilcom o mero propósito de vendê-la com lucro era virtualmente desconhecida.Tal especulação de securities que existia estava principalmente nos títulos pú-blicos dos bancos. Em algumas grandes cidades, os indivíduos compravam evendiam securities com freqüência suficiente para constituir mercados infor-mais. Só no dia 17 de maio de 1792, 24 corretores e mercadores de Nova Yorkselaram um acordo, conhecido como o Acordo do Plátano, referência à árvoresob a qual eles costumavam se reunir, para que dessem preferência, entre si,na venda de securities públicas e para que vendessem em troca de uma comissãopercentual de não menos que um quarto.

“O ano em que se fundou a bolsa de valores de Nova York foi o mes-mo em que o Canal Erie5 lá desencadeou uma verdadeira “mania de ca-nal”, que levou o Estado e os governos locais a construírem canais, agressi-vamente, entre quase todos os cursos de água a distâncias impressionantes.Por exemplo, entre 1817 e 1825, Nova York emitiu 7 milhões de dólaresem que foram vendidos por agentes e comprados por indivíduos e cida-dezinhas próximas do canal, por bancos e investidores estrangeiros...”(Roy, 1997, p.122-3).

De modo semelhante, a partir de 1988, criaram-se mercados de dí-vida pública na China. Mais interessante ainda: o governo chinês vinculadeliberadamente a emissão de títulos públicos ao estabelecimento de“operações de mercado aberto” do banco central – o Banco Popular daChina. Trata-se de uma importante medida de reforma na gestãomacroeconômica do país. Em março de 1994, experimentou-se a primeira“operação de mercado aberto” com moeda estrangeira em Xangai. Emabril de 1996, o Banco Popular da China iniciou “operações de mercadoaberto” com títulos do governo a curto prazo. Entretanto, não foi gran-de a quantidade de “operações de mercado aberto”, sobretudo em virtudeda baixa quantidade de títulos do governo tidos como ativos nas insti-tuições financeiras chinesas. No começo de 1997, o Banco Popular daChina suspendeu temporariamente uma forma especial de “operação demercado aberto” – a repo (acordo de reaquisição, ou seja, o banco centralcompra securities com o acordo de que o vendedor as readquirirá numprazo breve, qualquer coisa entre um e cinco dias a partir da data original

5 Canal para passagem de balsas de carga. (N. T.)

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da compra). Recentemente, em 26 de maio de 1998, reintroduziu-se arepo como medida de política expansiva.

Como mostra o boxe a seguir, no princípio, o Fed [banco central]norte-americano não se deu conta de que a “operação de mercado aberto”é um instrumento poderoso para controlar a oferta de dinheiro. Isso ocor-reu gradualmente. A China, tendo introduzido tardiamente a gestão macro-econômica, pode aprender a operação de mercado aberto num instante.

Uma Breve História da “Operação de Mercado Aberto”

“O ímpeto inicial de aquisições pelos bancos de reserva no mercado abertofoi a necessidade de ganhos. Pretendia-se que as provisões que regem as opera-ções de mercado aberto fossem utilizadas para auxiliar o desenvolvimento deum mercado de aceitação e como meio de impor a taxa de desconto, e, emboraos ganhos tenham continuado a ser um fator nas aquisições e vendas até aaprovação da lei de 1935, o governador Strong foi instrumental para educaros funcionários do sistema de modo que encarassem as operações de mercadoaberto em seu contexto mais amplo” (D’Arista,1994, p.20). Já em 1915, elepropôs uma dimensão mais profunda na operação de mercado aberto comoum instrumento de controle da oferta de dinheiro.

O papel do Estado na distribuição da renda

A complementaridade eficiência-eqüidade

Tendo discutido o papel do Estado na correção das falhas e na cria-ção de instituições de mercado, voltemo-nos para o tema da discussãoda renda. Por causa da preocupação com o igualitarismo excessivo na erapré-reforma, os formuladores correntes da política adotaram a aborda-gem da distribuição da renda que punha a “eficiência” em primeiro lugar.Sem embargo, os recentes desenvolvimentos teóricos da economia en-fatizam mais a complementaridade que a compensação entre eficiênciae eqüidade.

Primeiramente, questionou-se a hipótese do U invertido de Kuznets:“Kuznets (1955) afirma que a desigualdade aumentará nos estágios ini-

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ciais do crescimento num país em desenvolvimento e, a partir de certoponto, começará a declinar; ou seja, a relação entre desigualdade (no eixovertical) e renda média (no horizontal) traçará um U invertido” (Brunoet al., 1998, p.119). Porém, as pesquisas empíricas examinadas por Bru-no et al. (1998, p.123) não apóiam a relação em forma de U invertidoentre crescimento e eqüidade: “Não há sinal, nesses dados, de que astaxas maiores de crescimento na Índia tenham exercido alguma pressãoascendente sobre a desigualdade geral”.

Em segundo lugar, está provado que o “desenvolvimento social” émais importante que o “desenvolvimento econômico” na redução da fer-tilidade. Como observa o Nobel de Economia de 1998 A. Sen (1997, p.47-8): “Quando se analisam as estatísticas comparativas dos diferentes dis-tritos da Índia, resulta que, entre os habituais candidatos à influênciacausal, os únicos que têm um efeito estatisticamente significativo na re-dução da fertilidade são a alfabetização da mulher e a participação femi-nina na força de trabalho ... Pode ser que o desenvolvimento econômicoesteja longe de ser o ‘melhor anticoncepcional’ como às vezes o descre-vem. Por outro lado, o desenvolvimento social – principalmente a educa-ção e o emprego das mulheres – pode ser muito eficiente. Muitos dosdistritos mais ricos da Índia, por exemplo Punjab ou Haryana, têm taxasde fertilidade muito mais elevadas que os distritos sulistas, que contamcom renda per capita bem mais baixa, mas também com taxas de alfabe-tização feminina mais elevadas e mais oportunidades de trabalho paraas mulheres”.

Terceiro, identificaram-se os mecanismos que levam da desigualda-de da riqueza para o baixo crescimento. Um deles são as restrições domercado de crédito: “O principal resultado é que ali onde as restriçõesdo mercado de crédito impedem o pobre de fazer investimentos pro-dutivos indivisíveis, a desigualdade na distribuição da riqueza pode tersignificativos impactos negativos sobre o crescimento” (Bruno et al.,1998, p.133).

É ocioso dizer que a complementaridade eficiência-eqüidade não foiencontrada unicamente nos países em desenvolvimento, isso vale tam-bém para os países industriais avançados. O próximo boxe explica porque é esse o caso.

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O Modelo de Alesino e Rodrik de Distribuiçãoda Renda e Crescimento

A principal característica do nosso modelo é que os indivíduos diferemem suas aptidões de fator relativo. Nós distinguimos dois tipos de fatores:um acumulado (chamado “capital”) e um não acumulado (chamado “traba-lho”). O crescimento é impulsionado pela expansão do estoque de capital que,por sua vez, é determinado pelas decisões individuais de poupança. O cresci-mento a longo prazo é endógeno, já que a função produção agregada é tidapor linearmente homogênea em capital e serviços públicos (produtivos) toma-dos em conjunto. O fornecimento de serviços públicos é financiado por umtributo sobre o capital.

Como os serviços públicos são produtivos, um “pequeno” tributo sobreo capital beneficia a todos. No entanto, a heterogeneidade da propriedade dosfatores implica que os indivíduos diferem em sua taxa de tributação ideal. Umavez que o tributo sobre o capital afeta a acumulação e o crescimento, essa di-ferença se transfere às preferências dos indivíduos quanto à taxa de cresci-mento ideal. Um indivíduo cuja renda deriva inteiramente do capital preferea taxa de tributação que maximize o índice de crescimento da economia. To-dos os demais hão de preferir uma tributação elevada, com o correspondenteíndice de crescimento mais baixo. Quanto mais baixa for a participação narenda de capital (relativa à sua renda de trabalho), tanto mais alta é a sua tri-butação ideal e tanto mais baixa a sua taxa de crescimento ideal.

Como as preferências individuais determinam a escolha real da política?O teorema do eleitor médio, segundo o qual a taxa de tributação selecionadapelo governo é a preferida pelo eleitor médio, oferece um parâmetro útil. Usandoesse teorema, nós chegamos ao nosso principal resultado sobre a relação entredistribuição de renda e crescimento. Quanto mais eqüitativa for a distribuiçãona economia, mais baixo será o nível de equilíbrio da tributação do capital emais elevado o crescimento da economia. (Alesino & Rodrik, 1994, p.465-6)

Reduzir a discrepância cidade-campoe ampliar a demanda interna

Reagindo à onda de crises financeiras asiáticas a partir de 1997, osautores da política chinesa se voltaram para a demanda interna. A com-plementaridade eficiência-eqüidade é fundamental no atual esforço paraestimulá-la.

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Desde 1994, a economia chinesa ingressou num novo estágio de“superprodução”. Nesse ano, os depósitos do setor bancário superaramos salários pela primeira vez desde a reforma econômica. Os bancos pre-feriam pôr seu dinheiro na especulação dos mercados de ações e de futu-ros a investir em empresas. Isso talvez explique o fato aparentementeintrigante de que, enquanto as empresas sofrem a falta de créditos, e oM26 do setor bancário chinês cresce ano a ano a elevadas taxas (24% em1993, 34,4% em 1994, 29,6% em 1995).

Até o presente, os dados mais abrangentes e autorizados da indús-tria chinesa são os do “Terceiro Levantamento da Indústria Nacional”de 1995. Não se trata de um levantamento de amostragem. Ele cobretoda e qualquer empresa industrial. A Tabela 1 mostra claramente que acapacidade produtiva de 35 importantes produtos tem sido subutilizada.

Tabela 1 – A taxa de utilização da capacidade de produtos importantes

Produtos (%) Taxa de utilização da capacidadeAlgodão estampado e tingido 23,6Ácido sulfúrico 84,7Ácido nítrico 69,6Tintas 48,7Corantes 88,3Plásticos 77,1Polímero sintético 77,9Detergentes 60,4Pneus 54,7Câmaras de ar 37,4Cimento 80Chapas de vidro 84,2Produtos de aço 60Caldeiras industriais 8,5Motores de combustão interna 43,9Turbinas a vapor 10Ferramentas industriais 45,8

6 Depósitos à vista mais fundos de investimento e títulos públicos. (N. T.)

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Produtos (%) Taxa de utilização da capacidadeMaquinaria de fundição e prensa 51,2Equipamento de refinação de petróleo 17,9Empilhadeiras 39,8Suspensões 34,7Veículos automotivos 44,2Automóveis 64,9Motocicletas 55,4Câmeras portáteis 13Microcomputadores 13,4Aparelhos de ar-condicionado 33,5Aparelhos de vídeo 40,3Lavadoras 43,4Televisores coloridos 46,1Refrigeradores 50,4Aparelhos telefônicos 51,4Bicicletas 54,5Câmeras 57,7Aspiradores de pó 62,8

Fonte: Hu Cunli, 1998, p.167.

Para utilizar plenamente essa capacidade produtiva ociosa, é essen-cial uma forte demanda interna. Não obstante, em razão do declínio dataxa de crescimento da renda rural, não se tem realizado o potencial gi-gantesco dos mercados internos rurais. A Tabela 2 ilustra o declínio docrescimento da taxa de renda rural e suas conseqüências na estagnaçãoda taxa de crescimento do varejo rural.

Tabela 2 – Taxa de crescimento da renda per capita do camponês

1985 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998

Taxa de crescimentoda renda 7,9 1,8 2,0 5,9 3,2 5,0 5,3 9,0 4,6 3,5

Taxa de crescimentodo varejo rural 25,9 -2,11 7,39 7,37 -14,35 4,07 6,12 12,1 9,7 –

Varejo rural/

varejo social total 58,47 55 53,6 51,9 44,6 43,9 43,1 43,5 43 40

Fonte: Liaoning Economic Internet Netwok.

Continuação

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O papel do Estado na economia...

Obviamente, reduzir a lacuna entre a renda rural e a urbana não só ébom para a eqüidade em si, como também favorece a crescente eficiên-cia do conjunto da economia chinesa com a ampliação das demandasinternas.

O papel do Estado no cenário internacional

A esterilização do influxo de capital

Desde a crise financeira asiática, o governo chinês tem sido elogia-do, na comunidade internacional, pela decisão de não desvalorizar oreminbi. Por mais que a China mereça o elogio, não devemos fechar osolhos para o fato de que sua autonomia em política monetária vem sen-do questionada desde 1994, quando o gigantesco influxo de capital es-trangeiro desestabilizou a gestão macroeconômica.

Segundo John Williamson (1997, p.338), isso pode acontecer “se seacreditar que os influxos são temporários, se o mal holandês [Dutchdesease] ameaçar as perspectivas de crescimento, se a dívida estiver au-mentando a ponto de ameaçar precipitar uma crise de endividamento,se os influxos ameaçarem expor um frágil sistema bancário a um esforçoexcessivo ou se a política antiinflacionária for solapada – quando é racionalresistir ao ajuste de conta corrente que acompanharia a transferência.Nesses casos, o primeiro recurso natural é intervir no mercado cambiala fim de evitar a valorização e esterilizar a intervenção mediante opera-ções de mercado aberto. A desvantagem da esterilização é ser cara. Par-ticularmente quando se mantiverem elevadas as taxas de juros internasa fim de restringir a demanda, a taxa de juros que o banco central terá depagar pelos títulos que emite pode ser muito mais elevada que a estran-geira que ele pagará pelas reservas que adquirir”.

Ocorre que o banco central chinês exerceu a esterilização a partir de1994, com um efeito recessivo sobre a economia interna.

O perigo do investimento estrangeiro direto

A crise financeira asiática deixou patente que o fluxo de capital a curtoprazo pode ser muito arriscado. Conforme o consenso emergente no FMI,

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no Banco Mundial e entre os acadêmicos, são necessários certos tipos deregulamentação do fluxo a curto prazo do capital internacional. Todavia,analisou-se muito pouco o risco que o investimento externo direto (IED)representa para o balanço de pagamentos do país anfitrião.

Diante da falta de uma análise crítica do impacto do IED sobre obalanço internacional de pagamentos, é útil recordar o estudo clássicode Kalecki & Sachs (1993, p.80-1) sobre o IED:

Às vezes se argumenta que o investimento estrangeiro direto é maisbarato do que qualquer crédito para o país receptor, porque não precisa seramortizado. Mesmo supondo que o capital estrangeiro não seja repatriadoimediatamente, o argumento se baseia num sofisma: é verdade que, na“conta de capital”, o influxo de investimento estrangeiro direto jamais serácompensado, com base nessa suposição, pelo refluxo do capital repatriado.Mas as remessas de lucros para o exterior podem exceder o custo do servi-ço de um empréstimo estrangeiro, ao passo que os lucros reinvestidosaumentam o valor contábil do investimento estrangeiro sem nenhum novofluxo de capital externo (na melhor das hipóteses, pode-se dizer que elesdiminuem a remessa de lucros). Pelo menos uma parte dos lucros oriun-dos desses lucros reinvestidos, auferidos pelos investidores estrangeiros,será igualmente transferida para o exterior. De modo que estamos na pre-sença de um infindável processo de bola de neve, em contraste com umempréstimo, que cria obrigações durante um número definido de anos.Pode-se demonstrar facilmente que, a longo prazo, o impacto do contínuoinvestimento estrangeiro direto sobre o balanço de pagamentos do paísreceptor deve ser negativo (não discutimos aqui as conseqüências indire-tas em forma de exportações adicionais ou de substituição de importações,que seriam as mesmas, fosse qual fosse a forma de financiamento da novafábrica), a não ser que o influxo de investimento estrangeiro cresça subs-tancialmente ano a ano.

Para ver como funciona a remessa de lucros, Kalecki deu o seguinteexemplo:“podemos imaginar que um país procure um novo influxo decem unidades de capital estrangeiro por ano. A partir do fim do ano doinfluxo, o capital passa a render lucros de 15% anuais, dos quais 10%são transferidos para o exterior; e 5%, reinvestidos. Verifiquemos qualseria o influxo de investimento estrangeiro”.

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O papel do Estado na economia...

Ele apresenta a tabela seguinte, que ilustra o resultado do exercíciofeito em seis anos.

Tabela 3 – Influxo bruto e líquido de IED quando se reinveste um ter-ço dos lucros anuais

Ano Influxo bruto Investimento Investimento Lucros Influxode capital estrangeiro estrangeiro transferidos líquido de

no começo no fim do ano para o capitaldo ano exterior

1 111,1 111,1 116,7 11,1 100

2 124,1 240,8 252,8 24,1 100

3 139,2 392,0 411,6 39,2 100

4 156,9 568,5 596,6 56,9 100

5 177,4 774,3 813,0 77,4 100

6 201,4 1014,4 1065,1 101,4 100

910,1 310,1 600

Vê-se claramente que, no sexto ano, em razão da remessa de lu-cro, o influxo bruto de IED precisa exceder em duas vezes o influxo lí-quido para preservar o fluxo líquido original. Do contrário, o IED piorao balanço de pagamentos do país receptor. Decerto, trata-se de umacondição extremamente exigente em qualquer época, sobretudo em faceda atual crise asiática, com perspectivas mínimas de aumento do IED

na China.

Aliás, se estudarmos cuidadosamente as contas internacionaischinesas (ver a Tabela 4), descobriremos que não é grande o excedenteem conta corrente, muito embora o excedente comercial seja bastantegrande desde 1994. O principal motivo é o aumento da remessa de lucroe de juros, que põe em risco o balanço de pagamentos chinês no futuropróximo.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

Tabela 4 – O balanço de pagamentos chinês

Ano Balança Balança de Balança de Reservacomercial conta corrente conta de capital estrangeira

1991 80,5 132,72 2,23 217,1

1992 43,5 64,02 -2,50 194,4

1993 -122,2 -119,01 234,72 212,0

1994 53,5 76,57 326,44 516,2

1995 167,0 16,18 386,74 736,0

1996 122,4 72,43 399,67 1050,5

1997 404,1 198,7 229,5 1399,0

Unidade: 100 milhões de dólares.Fonte: Annual Report of the State Administration of Foreign Exchange, 1996 e 1997.

O fortalecimento da capacidade do Estado

Tendo discutido os diversos papéis econômicos do Estado, é naturalfazer a pergunta da economia política: o Estado tem a necessária capaci-dade de desempenhar esses papéis?

A condição política

Segundo Roberto Unger (1987, p.80), a capacidade do Estado é de-finida pelo seu grau de “estatalidade”:

A estatalidade ou força dos Estados designa a capacidade dos detentoresde cargos no governo e de seus apoiadores de formular e implementarregras e políticas que não se limitem a meramente reproduzir as práticassociais correntes ou a confirmar a existente distribuição de vantagens entreos segmentos sociais.

Em outras palavras, para ser estatal, o Estado não pode estar nas mãosde grupos de interesses especiais. Além disso,

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271

O papel do Estado na economia...

A estatalidade dos Estados depende de dois conjuntos de condiçõesque têm uma relação tensa. Um Estado se torna estatal à proporção que aspessoas que formam sua equipe conseguem operar sua vontade, desdo-brando recursos e planejando de modo a desrespeitar e até desestabilizar ocostume e o privilégio. Um estado estatal chega a surpreender porque gozade liberdade de manobra. Quanto mais estatal se tornar, menor é a possibi-lidade de sucesso de quem interferir em suas ações prováveis a partir doestudo da distribuição de riqueza e de poder preexistente na sociedade queele governa.

A estatalidade depende, pois, de um segundo conjunto de condições,menos evidente na definição inicial do conceito. Um governo forte precisadirigir uma sociedade organizada. Aliás, exige uma sociedade cujas organi-zações especializadas sejam, numa extensão significativa, autoconstituídase não excessivamente dependentes das benesses dos governantes de tur-no. Os esforços governamentais avançarão pouco se acharem os vínculosentre as pessoas tão frágeis ou tão fortuitos que o governo não possa con-tar nem com lealdade e consentimento nem com crítica informada e resistên-cia dirigida. O Estado tampouco pode ser, ele próprio, o principal organi-zador. Uma estrutura abrangente de organização social, imposta coerciva esubitamente pelo governo central, não se firma facilmente. Esse assaltogovernamental à sociedade arrisca desorganizar as instituições existentessem permitir o surgimento de arranjos alternativos. À medida que essaguerra for bem-sucedida, não há de restar senão um Estado dilatado e vulne-rável à rancorosa hostilidade de uma população inconformada.

O problema central da estatalidade resulta do conflito entre essas con-dições. Até que ponto um governo pode contar com os interlocutores eparceiros de que precisa sem ser por eles imobilizado nem se tornar seurepresentante passivo? (Ibidem, 1987, p.81)

Pode-se dizer que a China atende relativamente bem à primeira con-dição da estatalidade de Unger: uma evidência que o confirma é a refor-ma fiscal de 1994 que, até certo ponto, desrespeitou e desestabilizou osinteresses cristalizados dos governos locais. Entretanto, o país ainda temum longo caminho a percorrer para atender à segunda condição daestatalidade: um Estado forte requer uma sociedade também forte. Atensão entre as duas condições da estatalidade de Unger será uma ques-tão crucial na reforma política da China.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

A condição fiscal

Intimamente relacionada com a condição política está a condição fis-cal da estatalidade. Em geral, contamos com três instrumentos políticosde finança pública: 1. renda de propriedade pública; 2. renda fiscal; 3.dívida pública. A mescla ótima dos três é essencial para que o Estadodesempenhe seus papéis econômicos.

Desde o início da reforma econômica, a renda de propriedade públi-ca tem decrescido como fonte do tesouro do Estado. O mesmo vale paraa renda fiscal. Não resta senão a dívida pública como nova fonte de ren-da estatal. A Tabela 5 dá a cifra da “taxa de dependência da dívida do go-verno central”, que é calculada como “dívida/despesa” para o mesmo ano.Note-se que, em 1997, essa razão se elevou a 57,77%. Já superou a ra-zão de dependência do débito dos governos centrais dos Estados Unidose do Japão.

Tabela 5 – Taxa de dependência da dívida do governo central

Ano Dívida púbica total Despesas do Taxa dagoverno central dependência

da dívida

1991 461,40 1.337,61 34,48

1992 669,68 1.609,01 41,47

1993 739,22 1.648,20 44,85

1994 1.175,50 2.253,79 52,41

1995 1.549,76 2.882,33 53,28

1996 1.924,30 3.460,28 55,61

1997 2.529,08 4.377,88 55,77

Unidade: 100 milhões de iuanes.

Sem embargo, em 1997, a dívida pública total da China, que chega-va a apenas 3,3% do PIB, era muito menor que a dos Estados Unidos(31,2% em 1990) e de muitos outros países. Esse fenômeno aparente-mente paradoxal, nomeadamente, a coexistência de uma alta dependência

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O papel do Estado na economia...

da dívida do governo central com uma baixa razão dívida pública/PIB,reflete o fato básico de que a renda fiscal governamental chinesa é de-masiado fraca.

Como indicaram muitos economistas chineses, a baixa relação dívi-da pública/PIB implica que o país ainda tem um grande potencial de con-trair dívidas para estimular as demandas internas, ao passo que a altarazão da dependência da dívida do governo central indica que gerar maisrendas fiscais é uma tarefa de suma importância para a China. Sem isso,ela não conseguirá desempenhar efetivamente nenhum dos papéis doEstado discutidos neste trabalho.

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10A estratégia econômica global

da África do Sul

Faizal Ismail,Peter Draper eXavier Carim1

Introdução

A estratégia econômica global da África do Sul precisa levar em contaas condições políticas e econômicas nacionais e os imperativos de desen-volvimento que o país enfrenta. Cabe-nos enfrentar os graves desafiosao desenvolvimento legados pela opressão racial e por três décadas dedeclínio econômico. Não se trata de uma simples obrigação moral coleti-va. Isso deriva da convicção de que somente corrigindo as desigualdadesdo passado é que será possível chegar à estabilidade social e política neces-sária à realização do crescimento econômico sustentável e de uma socie-dade genuinamente democrática e próspera.

A estratégia também precisa reagir à marginalização econômica a queestão sujeitos os nossos vizinhos do sul da África e do continente africano.

1 Divisão de Comércio Internacional e Desenvolvimento Econômico – Departamento deComércio e Indústria – África do Sul.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

Por isso, nossa estratégia deve atribuir um conteúdo econômico para o“Renascimento Africano”. Mais amplamente, trata-se de procurar promo-ver uma agenda de desenvolvimento, na qual a África do Sul busque paí-ses emergentes aliados em todo o mundo.

O processo de elaboração de políticas

O apoio à volta do crescimento, na África do Sul, requer um progra-ma de transformação que implica custos significativos de ajuste social eeconômico. Além da disposição constitucional de governança cooperativaentre todas as camadas do governo, a África do Sul é uma democracia.Para sustentar a liberalização e a reestruturação, os segmentos que supor-tam o fardo do ajuste devem participar ativamente do processo de cria-ção de políticas.

Os objetivos econômicos globais da África do Sul provêm do desen-volvimento nacional e das metas macroeconômicas e com eles contri-buem. Embora o Departamento de Comércio e Indústria (DCI) se ocupeprincipalmente da formulação e da implementação de políticas e estraté-gias relacionadas com a indústria e o comércio, estas devem ser compatí-veis com os objetivos de outros departamentos do governo. A estratégiaeconômica global do DCI deve informar as considerações mais amplasda política externa do país – e por elas estar informado. Uma políticaeconômica externa eficaz, abrangente e integrada também exige a coorde-nação e a parceria mais aprofundadas entre os níveis nacional e provin-cial do governo, assim como entre este último e a sociedade civil.

Conquanto o DCI venha tendo um papel central no reposicionamentoe na integração da África do Sul à economia global por meio de uma polí-tica comercial ativa, o desenvolvimento de uma estratégia econômicaglobal mais abrangente tem sido facilitado pela “abordagem agrupada”,no âmbito ministerial e da diretoria geral (DG). Nesse aspecto, o agrupa-mento da DG sobre Relações Internacionais, Paz e Segurança criou umsubcomitê de desenvolvimento econômico, presidido pelo DCI. Ele identi-ficou cinco programas que abrangem o investimento, as exportações, oturismo, as finanças e as relações econômicas globais. Na formulação deuma estratégia abrangente, deu-se especial atenção à África.

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277

A estratégia econômica global da África do Sul

Elementos-chave do arcabouço analítico

Para detalhar o arcabouço, convém identificar três áreas distintas deformulação de estratégia: a multilateral, a regional e a bilateral.

Os interesses da África do Sul e os dos demais países em desenvolvi-mento amalgamam-se em torno do acesso ao mercado e ao desenvol-vimento econômico. Nesse aspecto, nossas estratégias precisam enfren-tar uma série de desafios: desde a participação no sistema de comérciomultilateral até a seleção dos parceiros estratégicos como fontes de inves-timento e de acesso ao mercado. Sendo inerentemente limitada a capaci-dade do governo de participar da economia nacional, devem-se fazer esco-lhas em meio a uma série de parceiros e instrumentos possíveis. Asescolhas e as estratégias que as fundamentam devem levar em conta adistribuição assimétrica do poder econômico e político nas relações eco-nômicas internacionais.

A globalização

A integração cada vez mais profunda dos mercados globais financeiro,tecnológico, de serviços e de commodity (globalização) intensificou e alte-rou a natureza da concorrência internacional. Paradoxalmente, muitospaíses, particularmente os da África Subsaariana, estão ficando margina-lizados dos processos que integram a economia global. O destino da Áfricado Sul está profundamente ligado ao dos nossos vizinhos do sul da Áfricae da África. Conseqüentemente, no centro de nossas interações no conti-nente, está uma abordagem que busca fomentar o desenvolvimento e re-verter a marginalização.

Na economia mundial globalizante, os governos reconhecem a neces-sidade de reforçar e reformar os mecanismos de governança econômicaglobal por meio da implementação de políticas multilaterais. O multila-teralismo representa a resposta política institucional à globalização e àinterdependência, e o estabelecimento da Organização Mundial do Co-mércio (OMC), em 1995, significa um importante avanço no sistemaemergente de governança global. De fato, a natureza de obrigatoriedadelegal e coercível das normas e disciplinas multilaterais contidas nos acor-dos da OMC fortaleceu o sistema comercial com base em regras.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

Respostas regionais e bilaterais

Ao mesmo tempo, quase todos os países ingressaram em arranjosde comércio regional que podem ter um importante papel na promoçãodo desenvolvimento e da integração à economia global. Essa motivaçãoinformou a participação da África do Sul, por exemplo, na Comunidadede Desenvolvimento do Sul da África (CDSA) e no acordo de livre comér-cio (ALC) com a União Européia.

Os níveis regional e bilateral relacionam-se de um modo que os dis-tingue do nível multilateral. Por exemplo, enquanto concluímos as nego-ciações de um ALC com a União Européia, a fim de realizar o potencialinerente ao acordo, nós requeremos uma análise mais precisamente deta-lhada no âmbito bilateral. Isso envolve a escolha dos países com os quaisprecisamos nos comprometer mais intensamente a fim de garantir a rea-lização dos nossos objetivos na esfera regional da UE.

Metodologia

Ao desenvolver estratégias bilaterais, é importante considerar umametodologia de avaliação da natureza do nosso compromisso. Nós classi-ficaríamos, em ordem descendente de importância ou de intensidade deengajamento, parceiros estratégicos, países estratégicos e países priori-tários. Ademais, é provável que designemos menos países como “parcei-ros estratégicos” do que como “países prioritários”, já que aqueles signi-ficam alcançar uma convergência significativa de interesses.

Para atribuir a classificação e a categorização aos países, são relevan-tes os seguintes critérios:

• o potencial de exportação a longo prazo do país em questão;• a ordem e a natureza dos problemas de acesso ao mercado;• sua importância como fonte de investimento;• interesses e estratégias de desenvolvimento compartilhados;• estratégias multilaterais comuns; e• estratégias geopolíticas comuns.

Para que um país seja considerado um parceiro estratégico, deve haveruma nítida convergência de interesses. Nesse aspecto, seu potencial eco-nômico é uma condição necessária, mas não suficiente, para a designação.

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279

A estratégia econômica global da África do Sul

Se um país tiver importante significado na economia global, mas nãocompartilhar perspectivas semelhantes com relação ao sistema multilate-ral, à estratégia de desenvolvimento ou à geopolítica, ele será designado“país estratégico”. Os mercados prioritários se definem por uma conver-gência de interesses comerciais particulares que a África do Sul quer aten-der num mercado específico de exportação e em alvos de investimento emdiferentes setores. Por vezes, podem se formar alianças táticas em ques-tões multilaterais, plurilaterais ou regionais. Os critérios de parceirosprioritários e estratégicos são qualitativos e flexíveis. No caso da África,o conceito de Renascimento Africano determina que todos os países docontinente devem ser encarados como estratégicos. No entanto, algunsdeles são também prioritários ou críticos, já que assim foram identifica-dos pela Presidência da República por motivos políticos ou outros.

Essa metodologia deve ser vista mais como um guia do que comouma categorização rígida dos países importantes. Dependendo das cir-cunstâncias, pode variar o peso dos diferentes critérios.

A África

Nota-se claramente que a África recebe um tratamento diferencialem nossa abordagem. Cada país africano pode ser considerado estratégicoà medida que a África forma a peça central de nossa estratégia econômi-ca global, dentro da qual perseguimos uma agenda forte de desenvolvi-mento. Esta se vincula ao próprio ressurgimento econômico da Áfricado Sul, e a relação pode ser descrita como mutualmente benéfica, umavez que permite a afirmação dos interesses sul-africanos de modo a possi-bilitar o desenvolvimento simultâneo do continente.

Os componentes fundamentais da estratégiaeconômica global da África do Sul

A estratégia industrial

A construção de uma economia industrial competitiva e integrada,que leve ao crescimento sustentável, ao desenvolvimento e ao pleno

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

emprego, exige uma mudança da dependência da exportação de produtosprimários para a de produtos industrializados com valor agregado e glo-balmente competitivos. A África do Sul tem consideráveis vantagens emmatérias-primas, energia e infra-estrutura, que podem dar uma vanta-gem competitiva para a produção de mais elevado valor agregado. A estra-tégia industrial, mediante uma série de medidas do lado do fornecimen-to e outras, visa eliminar as inclinações e distorções internas, a fim deconsolidar e aumentar a competitividade das atividades industriais. Reco-nhece-se cada vez mais que a estratégia industrial também deve ser conce-bida para dar apoio às áreas mais dinâmicas da indústria, que são intensi-vas em conhecimento. Uma estratégia industrial integrada implica nãosó a provisão de insumos de matéria-prima para a produção, como tam-bém processos apensos que agregam valor à produção final, como o design,a inovação, o marketing, a distribuição etc.

A estratégia da política industrial no âmbito setorial formará padrõesde crescimento das exportações, assim como de investimento interno eavanço tecnológico. Assim, as políticas e estratégias setoriais informarãoo conteúdo da estratégia econômica global da África do Sul, inclusive osesforços pela promoção do comércio e do investimento e da negociação,tanto no nível bilateral quanto no multilateral.

A intensificação da concorrência pelos mercados de exportação, in-vestimento e tecnologia é a característica fundamental do atual ambien-te econômico global, e o acesso a esses mercados serve de medida dacompetitividade internacional. Destarte, uma estratégia econômica glo-bal eficaz há de procurar promover as exportações – e atrair investimentoe tecnologia – dos setores que impulsionarão o desenvolvimento indus-trial da África do Sul.

A política comercial caracteriza-se sobretudo pelo empenho em au-mentar a competitividade internacional, e a política tarifária tem sido umimportante instrumento da política industrial. A África do Sul empreen-deu a reforma da política comercial enraizada em suas obrigações com aOMC. Assim, em 2000, o país implementou acordos de livre comérciotanto com a UE (o nosso maior parceiro comercial) quando com a CDSA.O processo de liberalização do comércio prossegue, bem que num ritmomais lento, e em certos setores, como a agricultura, ocorreu uma libera-lização radical.

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A estratégia econômica global da África do Sul

A redução das tarifas e a eliminação gradual dos subsídios fizeram-seacompanhar de uma mudança, na política industrial, para medidas deapoio dirigidas pelo mercado no setor de abastecimento. Tomou-se umavasta série de providências dessa natureza, todas compatíveis com a OMC,a fim de promover a reestruturação industrial, a modernização tecnoló-gica, a promoção do investimento e da exportação, o desenvolvimentoda pequena, da média e da microempresa e o fortalecimento do empreen-dedorismo negro.

Forjar a parceria e intensificar a coordenação entre o governo e osexportadores é essencial para o sucesso de nossa estratégia global. Esterequer uma apreciação comum e detalhada das forças, das fraquezas eda dinâmica da indústria sul-africana e uma política industrial em nívelsetorial.

A promoção das exportações e do investimento

O sucesso das economias industrias de alto desempenho está ligadoà criação de parcerias setoriais mais estreitas entre o governo e as indús-trias e à integração das forças competitivas da indústria com seu poten-cial de exportação (e suas necessidades de investimento e tecnologia).Por isso, estabeleceram-se conselhos de exportação, combinando o setorprivado com o público a fim de determinar o potencial exportador dossetores competitivos, identificar nichos de mercado estrangeiro e conce-ber medidas adequadas para superar as barreiras ao crescimento de suasexportações. Os conselhos possibilitam a promoção da exportação demodo mais coordenado e dirigido. Esse caminho foi trilhado pelo DCI daÁfrica do Sul, com o Serviço Internacional para o Desenvolvimento dosNegócios (SIDN) encarregado de empreender campanhas focalizadas noacesso ao mercado. Esse serviço procurará assegurar que o acesso a no-vos mercados, por exemplo, mediante acordos negociados, se traduza emoportunidades concretas e negócio para as empresas sul-africanas. Me-diante um processo de estreita colaboração e compartilhamento de infor-mação entre o governo (com a liderança do DCI), os representantes dosconselhos setoriais de exportação, as paraestatais e a comunidade empre-sarial mais ampla, o SIDN procurará transpor as barreiras ao comércio eao investimento.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

Um componente crítico do esforço de exportação da África do Sul éo fornecimento de assistência financeira aos exportadores potenciais,particularmente às empresas pequenas, às médias, às microempresas eaos exportadores que tentam penetrar mercados estrangeiros comple-xos. Também se estão implementando mecanismos de apoio financeirocomo garantias de crédito a fim de estimular as exportações e apoiar aapresentação bem-sucedida de projetos, principalmente nos campos daconstrução e da engenharia. Inversamente, há uma política de incentivoao investimento interno e à transferência de tecnologia.

O DCI desenvolveu uma estratégia de investimento integrado para aÁfrica do Sul. Sua base são as Iniciativas de Desenvolvimento Espacial(IDEs), que identificam os projetos de infra-estrutura e produção adequa-dos e com base nas necessidades setoriais. Ainda que o DCI coordene osesforços de todos os departamentos do governo em torno do desenvol-vimento de uma estratégia única de investimento, ele estabeleceu o Áfricado Sul Comércio e Investimento (ASCI) para coordenar a promoção doinvestimento em colaboração com as províncias, agir como referênciaprimeira para os investidores potenciais e fazer o marketing de projetosde investimento para os investidores estrangeiros.

O sul da África

A base teórica e analítica

O sul da África é importante para a economia da África do Sul. Onosso crescente excedente comercial com a CDSA contribui para compen-sar o déficit com outras regiões. Os fluxos acrescidos de comércio e inves-timento entre países de diferentes níveis de desenvolvimento podem gerarum rápido crescimento regional, o qual reforçará os processos de indus-trialização de modo a tornar a região internacionalmente competitiva.

Sem embargo, o desequilíbrio estrutural entre a África do Sul e seusparceiros da CDSA é economicamente insustentável a longo prazo. Porisso, o país procura reestruturar os acordos regionais por meio de políti-cas que estimulem a industrialização na CDSA. Isso implica estimular asexportações regionais e promover o investimento externo na região. O DCI

está propondo um processo no qual plataformas industriais integradas

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283

A estratégia econômica global da África do Sul

sirvam de base a uma estratégia industrial regional. Isso resulta em usaro sul da África como parte integrante das cadeias de abastecimento dosprocessos de manufatura globalmente competitivos. Desse modo, pormeio de uma combinação da cooperação setorial, da coordenação políticae da integração comercial, a política regional da África do Sul visa à cons-trução de uma economia regional dinâmica, capaz de concorrer efetiva-mente na economia global. Os elementos dessa estratégia incluem:

• implementar o Acordo de Livre Comércio da CDSA a fim de criar orápido e significativo acesso ao mercado de exportações regionais e,ao mesmo tempo, assistir os setores regionais sensíveis mediante pro-tocolos específicos;

• vincular o desenvolvimento regional do comércio à reestruturação in-dustrial para refletir as atuais e dinâmicas vantagens comparativas emtoda a região;

• promover coordenadamente a infra-estrutura e o desenvolvimento in-dustrial com base em recursos por meio das IDEs;

• incentivar as empresas sul-africanas a investir regionalmente medi-ante o relaxamento dos controles cambiais sobre o capital destinadoà região; e

• facilitar o comércio regional, fortalecer o controle e a administraçãoaduaneiros e eliminar as barreiras não-tarifárias.

À medida que a integração regional se aprofundar, as políticas econô-micas regionais devem informar conjuntamente e cada vez mais a estraté-gia econômica global da África do Sul.

No contexto da União Aduaneira da África do Sul, as dificuldadesem torno de uma nova distribuição da renda têm sido resolvidas e se fezmuito progresso para estabelecer uma estrutura nova e inclusive democrá-tica de tomada de decisões. A estrutura emergente também terá um forteimpacto sobre a estratégia industrial do país e sobre suas negociaçõescomerciais com terceiros.

O conteúdo econômico do renascimento africano

Na África, as relações intergovernamentais são críticas para a Áfricado Sul no que toca a suas metas de desenvolvimento. Enquanto algumas

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

das interações envolvem o fomento das exportações, a maioria delas exigea promoção de investimento no exterior e a formulação de projetos. Nosúltimos anos, essa abordagem levou a uma clara mudança no conteúdode valor agregado nas exportações do país no continente, mas esse focoacrescido na exportação de bens de capital beneficiou profundamente odesenvolvimento dos países importadores, como Moçambique. Ademais,esse trabalho está cada vez mais integrado à visão do presidente da Repú-blica de um “Renascimento Africano” em geral.

Desafios ao desenvolvimento

São bem conhecidos os desafios ao desenvolvimento da África. Essascondições apresentam sérios desafios à África do Sul, cujo destino estáfortemente entrelaçado com o do continente. O crescimento econômico,na África, oferecerá mercados aos nossos produtos e impulsionará a cria-ção da economia industrial integrada que buscamos construir neste país.Inversamente, a deterioração econômica do continente limitará os nossosmercados e produzirá processos de interdependência “negativa” (amea-ças à segurança).

Converter os desafios em oportunidade

Como a África do Sul conta com consideráveis vantagens econômi-cas equivalentes às das economias mais desenvolvidas do continente,esses desafios podem se converter em oportunidades se a nossa estraté-gia for bem definida e implementada com eficácia. Os instrumentosrequeridos devem ser multifacetados, abrangendo o investimento ex-terno em infra-estrutura e atividades produtivas, os acordos de acessoao mercado e as finanças de desenvolvimento. Dada a ordem de desafiose os instrumentos, a promoção do desenvolvimento deve se basear emprojetos.

A África do Sul pode contribuir consideravelmente com o desenvolvi-mento africano nas áreas de beneficiamento e processamento mineral eagrícola, na reabilitação da infra-estrutura, das telecomunicações e nofornecimento de expertise técnica e de engenharia. Nós já concebemos e

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A estratégia econômica global da África do Sul

implementamos com sucesso projetos de energia elétrica, água, trans-porte, telecomunicações, beneficiamento de minerais e em outros seto-res. Ademais, no âmbito institucional, criaram-se equipes de projeto eforos empresariais para unir equipes multidisciplinares para apoiar essesprojetos.

A estratégia também precisa corresponder à “agenda continental”tal como a contida na OUA e no programa de ação da Comunidade Econô-mica Africana, assim como na Parceria do Milênio para o Programa deRecuperação Africana (PAM). Isso envolveria a necessidade de avaliar seconvém expandir o projeto de integração além da CDSA para incluir ou-tros parceiros bilaterais (por exemplo, a Nigéria, Uganda e o Quênia),outros agrupamentos regionais (Ecowas, Comesa),2 ou ingressar em ou-tras iniciativas transfronteiriças.

Uma consideração essencial para a elaboração da estratégia é quecada instrumento ou área de engajamento requer fortes interações gover-no a governo em nível bilateral. Para a África do Sul, o êxito da estratégiatambém exigirá uma abordagem coordenada entre os departamentos dogoverno, as paraestatais e o setor privado na elaboração dos projetos. ODCI chefiará esse esforço de coordenação pela Divisão de Comércio Inter-nacional e Desenvolvimento Econômico.

Países decisivos

Nós identificamos a Nigéria, a Argélia e o Egito como países-chavecom os quais devemos colaborar estreitamente no cumprimento de nossaagenda africana. Estamos trabalhando ativamente com todos eles emforos multilaterais (o G-Sul) e no Renascimento Africano (no âmbito dolobby no G-8). Também identificamos os seguintes países importantes: oZimbábue, a Tanzânia, o Quênia, Uganda, Gana, Moçambique, a Costado Marfim, Maurício e Angola. A África do Sul vem aprofundando e forta-lecendo relações bilaterais com cada um desses países. Ademais, nós man-temos uma presença forte em Gaborone e Adis Abeba, as sedes da CDSA

e da OUA, respectivamente.

2 Ecowas: Comunidades Econômicas dos Estados da África Ocidental. Comesa: MercadoComum dos Países do Leste e do Sul da África. (N. T.)

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

Estratégias regionais e bilaterais

Visão geral: bases analíticas dosparceiros/países estratégicos

Os Estados Unidos, a UE e o Japão constituem, coletivamente, ospólos principais do crescimento econômico e do tamanho do mercadoglobais e são fontes do fluxo de investimento e tecnologia. Portanto, oengajamento construtivo com essas economias é um ponto de partidaessencial na estruturação de uma estratégia de relações econômicas inter-nacionais.

A África do Sul, alinhada com a Butterfly Strategy, também está desen-volvendo relações comerciais bilaterais com os mercados da África, daAmérica Latina e da Ásia. Eles oferecem vastas oportunidades de exporta-ção para a África do Sul porque estão crescendo rapidamente e porque aestrutura do nosso comércio reflete uma elevada proporção de produtosde exportação de valor agregado. À luz das complementaridades que sur-gem dos níveis comparáveis de desenvolvimento industrial, essas econo-mias também oferecem oportunidades únicas em termos de investimen-to, joint ventures e transferência de tecnologia.

Além disso, nas últimas três décadas aproximadamente, as novas eco-nomias emergentes (NICs)3 adquiriram grande proeminência na econo-mia global. Algumas, como a China e a Índia, são grandes potências.Outras são importantes mercados em rápida expansão, além de fontesde investimento. Numa estratégia econômica global, esses países mere-cem atenção.

As relações com o �Norte�

Aprofundar as relações econômicas com os países-chave do Norte éimperativo para o fornecimento fixo de capital, tecnologia e recursos fi-nanceiros. Nesse contexto, a Europa é, historicamente, um parceiro co-mercial dominante. Embora se ache em declínio, a participação da UE

no nosso comércio ainda responde por cerca de 45% do total. Ademais,

3 NICs: Newly Industrialized Countries [Países recém-industrializados]. (N. T.)

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A estratégia econômica global da África do Sul

grande parte do IED da África do Sul vem da UE. Essas considerações eo protecionismo crescente na UE motivaram o nosso empenho em con-cluir o recentemente implementado Acordo Comercial UE/AS. Ele asse-gurará o aumento do acesso das exportações sul-africanas ao gigantescomercado europeu e, ao mesmo tempo, aumentará a previsibilidade efornecerá a alavancagem das exportações de fluxos de investimento e tec-nologia no país.

Na Europa, as nossas parcerias estratégicas mais importantes sãocom o Reino Unido, a Alemanha, a França e a Suécia. A Rússia é poten-cialmente um país estratégico, embora as nações escandinavas, a Itáliae a Espanha sejam prioritários. No futuro, dar-se-á mais atenção aospaíses da Europa Oriental que provavelmente ingressarão na UE na pró-xima onda de ampliação, assim como à Área Européia de Livre Comér-cio (ALCE).

Na Área Norte-americana de Livre Comércio (Nafta), a nossa rela-ção mais importante é com os Estados Unidos, que é um parceiro estraté-gico. Além disso, trata-se da superpotência mundial e exige um compro-misso abrangente em muitos níveis. Estes estão incluídos na ComissãoBinacional que temos com eles. No futuro imediato, buscaremos ativa-mente assegurar os benefícios prometidos da Lei de Crescimento e Opor-tunidades para a África (Agoa).

O Canadá pode ser caracterizado como país prioritário, embora sejasubstancial o seu fornecimento de assistência técnica.

Na Ásia, o Japão é o principal dos nossos quatro maiores parceiroscomerciais e uma fonte substancial de investimento. Sendo a segundamaior economia do mundo, lidera diversas indústrias, sobretudo a eletrô-nica. Contudo, como não temos as mesmas perspectivas na maioria dasquestões, caracterizaríamos o Japão como um país estratégico. Os paí-ses prioritários incluem a Austrália e os “Tigres Asiáticos”: Cingapura,Taiwan e a Coréia do Sul.

As relações com o �Sul�

No tocante às nações do Sul, a nossa estratégia toma a CDSA e a Áfricapor ponto de partida e incorpora países de lados opostos do mundo, da

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

América Latina e da Ásia. Esse conceito tem se desenvolvido ainda mais comas negociações FTA4 com a Nigéria e a Índia e com a formação do G-Sul.

O Mercosul é o alvo na América Latina. Nosso parceiro estratégicoprincipal na região é o Brasil, com o qual se iniciaram discussões sobrefuturos acordos comerciais. A Argentina e o Chile são mercados prioritários.

Na Ásia em desenvolvimento, a Índia é o nosso parceiro estratégicoprincipal. A China é um país estratégico na região, com o qual precisa-mos construir vínculos mais fortes para que essa relação evolua para aparceria estratégica. Também é possível que no futuro se iniciem discus-sões com a Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean), na quala Indonésia e a Tailândia são países prioritários. Dado o seu peso na Aseane as dimensões de seu mercado, a Indonésia pode vir a ser um país ouum parceiro estratégico no futuro.

No Oriente Próximo, a Arábia Saudita é um país estratégico capazde se tornar um parceiro estratégico; o Irã, um país prioritário.

Os instrumentos

Os instrumentos desenvolvidos para realizar a estratégia variam con-forme o país-alvo e o objetivo buscado. Todavia, podem-se discernir algu-mas características. Uma vez identificado um país como estratégico, oestágio seguinte consiste em desenvolver uma estratégia para ele. Issocompreende o conteúdo da relação econômica e identifica os mecanismosapropriados e as abordagens a serem usadas para aprofundar a relação.

Os mecanismos e abordagens são escolhidos a partir da seguintemescla: missões comerciais e de investimento desenvolvidas em conjun-ção com os conselhos de exportação e/ou os acordos bilaterais ou ASCT;acordos bilaterais (comerciais e/ou de investimento; MOUs [Memoran-dos de Entendimento] etc.); entendimentos comerciais como os ALCsou os acordos de facilitação e/ou harmonização do comércio etc. Nosúltimos anos, empregou-se uma série de instrumentos específicos a fimde aprofundar os compromissos bilaterais. Aí se incluem os ConselhosMinisteriais Conjuntos e as Comissões Binacionais.

4 FTA: Foreign Trade Alliance [Aliança de comércio exterior]. (N. T.)

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A estratégia econômica global da África do Sul

Em algumas relações (com a China, por exemplo), as interaçõesgoverno a governo são vitais, sem as quais pouco progresso se faria noaprofundamento das relações econômicas. Já no caso de outros países(o Irã, por exemplo), e em diferentes arcabouços (a Agoa, por exemplo),o desenvolvimento das atividades comerciais é mais adequado e requerum conjunto específico de aptidões.

Concluindo, é importante observar que só se identificaram os paísesclassificados de estratégicos ou prioritários para a África do Sul. Essa sele-ção omite as muitas nações com as quais interagem as diretorias de rela-ções exteriores e que têm importância própria. Na prática, emprega-semuito tempo e muita capacidade também para atender às relações não-estratégicas existentes.

A estratégia multilateral

O multilateralismo é a resposta intergovernamental, institucionale política à globalização e à crescente interdependência das economiasnacionais. O estabelecimento da OMC, apesar de seus desequilíbrios edeficiências, reduz a abrangência das medidas comerciais unilaterais evisa assegurar as interações econômicas, inclusive a resolução de con-trovérsias, que é regida por um sistema de normas e não só pelo podereconômico. Por esses motivos, os países em desenvolvimento têm umclaro interesse em reforçar o sistema de modo a promover o seu desen-volvimento.

A necessidade de alianças

As rodadas anteriores de negociações multilaterais demonstram aimportância da formação de alianças e coligações. Por esse motivo, a estra-tégia da África do Sul consiste em ingressar nas alianças adequadas parafortalecer a dimensão desenvolvimentista das relações comerciais mul-tilaterais. Nesse aspecto, a África do Sul busca fomentar abordagens co-muns com a CDSA e outros países em desenvolvimento de igual pontode vista. É cada vez mais importante forjar alianças em torno de ques-tões específicas em agrupamentos informais como o Grupo Cairns.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

A marginalização de muitos países, na economia global, e a questãoda coerência na formulação da política econômica global constituem osprincipais desafios que o sistema comercial multilateral enfrenta. No quese refere a este, a África o Sul apóia as tentativas de aumentar a coopera-ção, a coordenação e as complementaridades entre a Unctad, a OMC, oFMI e o Banco Mundial em termos de desenvolvimento de políticas eoperações. Sendo um ponto focal no trato do comércio e de questõesrelacionadas de desenvolvimento integrado e visando garantir a participa-ção dos países em desenvolvimento na economia mundial de modo maiseqüitativo, a Unctad é considerada um agente fundamental no sistemaemergente de governança econômica global e deve seguir desempenhandoum papel apoiador e desenvolvente na arena multilateral.

A abordagem estratégica

Uma das chaves do crescimento econômico sustentável é o desblo-queio do potencial de crescimento e desenvolvimento dos países subde-senvolvidos. Para chegar a tanto, eles precisam se industrializar proces-sando seus recursos naturais ali onde contam com vantagem comparativa.Não obstante, a realização do potencial cabal dessas vantagens tem sidofrustrada pelos interesses protecionistas do Norte, superpostos pelas dis-ciplinas multilateralmente negociadas na OMC.

Todas as economias requerem um ajuste estrutural, particularmentenos países desenvolvidos. Tal reestruturação implica uma melhora subs-tancial no acesso ao mercado dos países em desenvolvimento e a elimina-ção da série de medidas de proteção e apoio que encobrem as ineficientesgrandfather industries5 nas economias desenvolvidas. Nestas, o ajuste estru-tural permitiria o deslocamento da produção e do investimento para ospaíses em desenvolvimento, aumentando-lhes a renda.

Além de atacar de forma decisiva as questões de crescimento e desen-volvimento nos países subdesenvolvidos, isso criará uma base sustentá-

5 Grandfather industries [indústrias do vovô]: a expressão designa as indústrias antiquadas,ineficientes, que usam grandes proporções de recursos naturais, entre as quais se incluema de confecção, a têxtil, a de mineração e a do aço. (N. T.)

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A estratégia econômica global da África do Sul

vel para um novo período de crescimento econômico global, do qual sebeneficiarão todos os países. Esse entendimento informou a abordagemda África do Sul das negociações comerciais na OMC. Nós procuraremosassegurar que os acordos da OMC facilitem – e não frustrem – tais pro-cessos de ajuste estrutural no Norte.

Para os países em desenvolvimento que empreenderam o ajuste e areforma em suas economias e estão em condições de colher os benefíciosda competitividade aprimorada, a OMC continua sendo um importanteinstrumento de promoção do comércio pelo acesso mais amplo e maisprofundo ao mercado, particularmente ao das economias do Norte. Entre-tanto, o fracasso das negociações de Seattle e as dificuldades para revivero impulso para lançar negociações frustraram os objetivos dos países sub-desenvolvidos.

Mobilizando o apoio à abordagem estratégica

As lideranças consolidadas, no sistema, parecem incapazes de ofe-recer uma visão à OMC, em suas responsabilidades de governança glo-bal, de modo a promover o comércio e o desenvolvimento internacio-nais. Sem negociações que lhes dêem oportunidade de manifestar as suaspreocupações, os países em desenvolvimento permanecem presos a umstatus quo inaceitável.

É cada vez mais urgente que o Sul fortaleça a sua voz coletiva na OMC

a fim de oferecer uma liderança visionária e ultrapassar o atual impasse.À medida que aprofundarmos a cooperação e a integração econômicas,o peso combinado do Sul pode opor importantes alternativas às políti-cas prescritas pelo Norte.

Nesse aspecto, identificamos o Brasil, o Egito, a Índia e a Nigériacomo importantes agentes estratégicos em suas respectivas regiões e naarena multilateral. Dando continuidade à nossa participação ativa na Con-ferência de Seattle, estamos empenhados em estabelecer um foro “G-Sul”,que unirá esses países para forjar e promover uma agenda comum naOMC. A aliança procurará assegurar que a OMC assuma a responsabilidadede promover o crescimento econômico global, liberando o potencial do

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

mundo em desenvolvimento. O foro busca incluir os parceiros regionaiscomo uma base sobre a qual tomar decisões representativas dos paísessubdesenvolvidos.

O atual vazio de liderança no sistema multilateral oferece uma oportu-nidade para o G-Sul tomar a iniciativa. E a África do Sul – e, dentro dela,o DCI – tem um papel internacionalmente significativo a desempenhar.

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11Periferias regionais e globalização:

o caminho para os Balcãs

Francisco de Oliveira1

Na formação da sociedade brasileira, a constituição e definiçãomarcantes das regiões é um processo muito novo, que não data, possivel-mente, senão da segunda metade do século XIX. Em primeiro e óbviolugar, porque tal como elas se dão hoje, a partir de longos processos histó-ricos, só faz sentido falar em “regiões” brasileiras compreendidas no “con-junto Brasil”, o qual, tampouco é muito antigo.

Apesar das comemoraçõe dos quinhentos anos, os historiadores nãolevam a sério tais cinco séculos, até porque uma parte importantíssimado país, sua maior porção geográfica que compreende toda a Amazôniae o atual Estado do Maranhão, somente é “Brasil” a partir da indepen-dência em 1822, pois antes, como colônia, constituíam uma unidade di-retamente ligada à metrópole portuguesa, com o mesmo estatuto dacolônia “Brasil”, o famoso Estado do Grão-Pará e Maranhão.

1 Professor Titular de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas daUniversidade de São Paulo.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

É muito evidente, dispensando maiores considerações, que as atuaisregiões brasileiras carregam, para suas distinções, toda a carga da forma-ção como partes privilegiadas na relação com a metrópole portuguesa.Dizendo de outro modo, suas próprias distinções como “Brasil” são, emparte, heranças de suas formações enquanto partes da colônia. Basica-mente, nessas heranças o elemento da economia colonial formou o nú-cleo definidor do que viriam a ser as “regiões” brasileiras.

A única grande exceção é a hoje região mais desenvolvida da econo-mia brasileira, nucleada em São Paulo, que, aliás, não se reivindica como“região”. Durante os primeiros trezentos anos da colônia portuguesa, suaparte norte-oriental, derramando-se para o leste, do atual Estado do Cearáà Bahia, foi o epicentro da economia. No século XIX a centralidade colo-nial deslocou-se mais para leste, ainda, com a mudança da capital de Sal-vador para o Rio de Janeiro e a instalação da corte portuguesa durantecatorze anos. A Independência confirmou o Rio como sede do poder eprogressivamente o epicentro econômico foi se deslocando até que, coma irrupção vigorosa do café em São Paulo, este assume a liderança da eco-nomia brasileira para não mais ceder esse posto a nenhuma outra; a indus-trialização já encontrou uma renda e um mercado interno mais diferencia-dos na “região” de São Paulo e os efeitos cumulativos só fizeram aumentara diferença em relação às outras “regiões”.

Até muito avançado o século XIX, entretanto, as finanças do Impé-rio brasileiro eram sustentadas basicamente pelas províncias da Bahia ede Pernambuco, onde o açúcar se desenvolvera desde os dias iniciais dacolônia, e pelo tabaco sediado na Bahia. Na verdade, a “região” desenvol-vida era o que hoje conhecemos como Nordeste e a “região” subdesen-volvida era todo o Leste e o Sudeste. Uma medida da importância da Bahiarevela-se na maioria de gabinetes ministeriais do Segundo Império chefia-dos por políticos baianos.

No século XVIII, a “região” de Minas, precisamente pela exploraçãodas jazidas de ouro, despontou como o novo centro econômico da colô-nia, mas o rápido esgotamento dos jazimentos levou à regressão da econo-mia mineira para formas auto-sustentáveis da atividade agropecuária queresistiu até os anos 50 do século XX, havendo, entretanto, sido importantepara o deslocamento da centralidade demográfica do Norte agrário parao Leste-Sudeste, promovendo o povoamento da “região” comandada porSão Paulo.

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Periferias regionais e globalização: o caminho para os Balcãs

Muito à parte, desenvolveu-se desde o século XVII a província de SãoPedro do Rio Grande do Sul, mediante uma relação de abastecimento demuares com a região em desenvolvimento de São Paulo e posteriormentechegou a ser o principal abastecedor de carnes, sobretudo em forma dexarque, para a região açucareira da Bahia e Pernambuco e até para o Caribe.Mas o Rio Grande do Sul manteve, sempre, uma relativa autonomia emrelação ao resto da colônia e logo depois ao Império recém-estabelecido.

Desde a segunda metade do século XIX, tanto o desenvolvimento daeconomia brasileira quanto sua articulação/desarticulação regional fize-ram-se vis-à-vis a centralidade da região comandada primeiro pelo surtocafeeiro e posteriormente pela industrialização de São Paulo. Não é indi-ferente, mas um elemento estruturador central, que o centro políticotenha se trasladado também para São Paulo, ajudado inicialmente pelacapital no Rio – aliás, o primeiro grande plantador de café. O controle dasfinanças do Segundo Império e da Primeira República, vale dizer, o Mi-nistério da Fazenda, permaneceu, desde então, primeiro nas mãos da oli-garquia paulista do café e depois nas da burguesia industrial paulista.

A Primeira República era um pacto de oligarquias girando em tornodo chamado eixo “café-com-leite”, a rotação no poder entre São Paulo eMinas Gerais. Na Primeira República, que também chamamos RepúblicaVelha, não se nota nenhum presidente baiano nem pernambucano, en-quanto quatro foram paulistas (ou que faziam política em São Paulo, comoWashington Luís) e três mineiros. As exceções foram os três militares,dois deles fundadores da República, mas suas escolhas foram um assuntomilitar, um civil fluminense (Nilo Peçanha) vice de Rodrigues Alves, quemorreu antes de tomar posse em um segundo mandato, e o outro, civil,paraibano, Epitácio Pessoa, presidente do Supremo Tribunal Federal, comlarga militância nos meios do Rio e apoio, evidente, de sua própria provín-cia, que entretanto não foi decisiva para sua indicação, escolhido comosolução para o impasse entre Minas e São Paulo.

Essa breve digressão sobre a biografia política da República não égratuita. Ela indica que o desenvolvimento do café na liderança da econo-mia brasileira e, logo, da indústria sediada em São Paulo não é, apenas,um “fato” econômico, como freqüentemente para a própria historiografiaeconômica brasileira naturaliza a divisão regional do trabalho no Brasil,mesmo entre os autores clássicos, como Caio Prado Jr. e Celso Furta-do. Em outras palavras, e noutra abordagem, a dominação e o controle

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

político são eficazes economicamente. A rigor, a liderança da economia eo “atraso” das regiões, sobretudo a do Norte agrário, Nordeste a partir daindustrialização, foram definidas pelas soluções dadas à questão do tra-balho e à questão da terra, entravadas, ambas, pelo regime escravocrata.

Quando a Abolição chegou, ambas as questões haviam sido resolvi-das, a seu modo, pela poderosa irrupção do café que, em pouco tempo,elevou-se à condição de primeira mercadoria do comércio mundial. SãoPaulo bancou a vinda de imigrantes europeus, destravando o escravismopelo lado do “colonato”, um regime de semiparceria e semi-salariato, edeixando irresoluta a questão do trabalho nas “regiões” que se atra-sariam; e a questão da terra também sucumbiu ao poder avassalador docafé que, graças a uma valorização espetacular destravou, por sua vez, arenda da terra como obstáculo à constituição de um mercado de terras.

As feições das regiões, suas identidades, fizeram-se, pois, gravitandoem torno de duas questões irresolutas, que moldaram as relações entredominantes e dominados. Como insisti em meu Elegia para uma re(li)gião,uma região é uma soma dialética de geografia, língua, religião, cultura eforma da relação dominante/dominado; é um consenso formado por umahegemonia que se traduz num espaço histórico especial, em síntese. Sãoprocessos multisseculares, que nos casos exitosos terminaram na consti-tuição das nações modernas.

Definidas, portanto, a partir da relação com o centro dinâmico deSão Paulo e seu entorno, as “regiões” viram a desigualdade aumentar,com particular ênfase para a região Nordeste. Nem a expansão capitalistaé “econômica” em seus efeitos cumulativos nem sua reversão pode ser,senão, obra da política. O manejo da política cambial, de resto a únicapolítica econômica digna desse nome exercida pelo Estado brasileiro entreo Segundo Império e a República Velha, e assim mesmo fortemente deter-minada de fora pelas relações subordinadas no comércio internacional,pois Londres era a praça de determinação de preços da maior parte dascomodities periféricas, terminou por ser o elemento ao mesmo tempo im-pulsionador do café e abortivo das demais economias regionais. Até agrande crise dos anos 30, quando o esquema exportador brasileiro e damaior parte da periferia latino-americana foi posto em xeque, insustentávelpela crise externa e pela falência de seu esquema de financiamento. O va-lor total das exportações não conseguia pagar os serviços da dívida externa

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Periferias regionais e globalização: o caminho para os Balcãs

brasileira, com os empréstimos para valorizar o café. Hoje, voltamos àmesma situação: dados recentes apontam que os gastos com a dívida exter-na representam 101,7% do valor das exportações. Nada mais é preciso dizer.

A partir dos anos 50, a aceleração da industrialização em São Pauloexpôs, com toda a crueza, o aumento das desigualdades inter-regionaise a ameaça de fratura da federação. A Revolução de 1930 havia operadoa integração fiscal da federação, o que ampliou o espaço da circulação damercadoria, mas não o do capital. Essa integração revelou-se um dos trunfosda economia política da federação. São Paulo passou a dispor do amplomercado nacional, sem tarifas protecionistas manejadas anteriormentepelas demais unidades federativas, nem outras barreiras.

Como Celso Furtado demonstrou em seu famoso estudo que sentouas bases para a nova política de desenvolvimento regional, a região maispobre, o Nordeste, exportava capitais para a região mais rica, através douso dos recursos cambiais gerados pela região mais pobre. Posteriormen-te, a integração dos meios de transporte rodoviário agilizou esse mercado.Mas, se tratava, ainda, de mecanismos de reiteração das “desvantagenscumulativas” em desfavor das outras regiões. Foi preciso a conjunção doaumento das desigualdades regionais com crises sociais no Nordeste, coma emergência do campesinato como ator político, para reorientar a políticaregional no Brasil.

Desde então, processou-se a mais séria tentativa de aumentar aintegração nacional atenuando as desigualdades regionais, com a cria-ção de políticas de incentivos aos capitais que, então, passaram a migrarpara o Nordeste e posteriormente também para a Amazônia. O desenvol-vimento industrial por quase duas décadas estava logrando o que os me-canismos espontâneos do mercado – vale dizer, o que outra orientaçãopolítica, a do livre-cambismo – não haviam logrado. A economia regio-nal do Nordeste brasileiro chegou a apresentar taxas de crescimento maisaltas que a média nacional, em pleno período de intenso crescimento entreas décadas de 1960 e 1970. Mas, importa frisar, o referencial mais impor-tante para tanto era a própria expansão capitalista em curso no país. A eco-nomia política da federação mostrava seu lado positivo: o novo movimentodo capital não encontrava barreiras, nem econômicas nem políticas.

Esse processo “virtuoso” foi impactado pela própria deterioração dacapacidade de crescimento da economia brasileira, no novo contexto do

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

capitalismo global. Uma extraordinária sucção da poupança nacional, naforma do pagamento da dívida externa, puxou para baixo a taxa de inves-timento. Desde os anos 80, não há nenhum novo ciclo de crescimento,caracteristicamente definido, mas um processo de stop and go. Nos anos90, a ampla desregulamentação neoliberal acabou por sepultar qualquertentativa de autodirecionamento, e refez uma espécie de “cordão um-belical” financeiro entre os movimentos do capital à escala global e a eco-nomia brasileira. Referência feita anteriormente, que mostra que o ser-viço da dívida externa consome 101,7% das exportações brasileiras ésuficiente para definir a nova forma de subordinação, o estatuto “colonial”no novo Império. O investimento de capital orientado por opções internasde política torna-se quase impossível, pois o serviço da dívida externaque já é de 9,4% do PIB, é aproximadamente a metade da taxa de investi-mento! Nessas condições, o governo e o FMI autovalidam sua profecia:sem investimento externo não há crescimento! Sem investimento exter-no, e com pagamento do serviço da dívida, o coeficiente de inversão caipela metade; com investimento externo, a condicionalidade externa docrescimento interno se reitera. Esse é o dilema atual. Que quer dizer issoem termos regionais?

Há, agora, uma nova literatura à disposição, que canta loas à relaçãoentre o local e o regional com o global. Vejamos: a região, no caso brasilei-ro, como noutros, não dispõe de nenhuma autonomia, nem monetária,nem financeira, nem cambial. Vale dizer, não pode fazer nenhuma políti-ca econômica não apenas auto-sustentável, mas autodirecionada. O casobrasileiro serve apenas para dramatizar na ponta do espectro o que sepassará com suas regiões, que de fato já experimentam as condições desubmissão às formas da globalização do capital. Ela só pode praticar con-cessões. Como o caso da disputa entre Rio Grande do Sul e Bahia pelalocalização da nova planta da Ford já mostrou: guerra fiscal, tema, aliás,dos professores Glauco Arbix e Alvaro Comin.

Essa “guerra fiscal”, um leilão invertido em que o comprador – o in-vestidor – dá o preço ou o valor que investirá, e o vendedor, as regiões, osestados e até os municípios rebaixam seus impostos para “comprar” oinvestimento que, aliás, são eles mesmos que pagam. Como mostrou o in-vestimento da GM no Rio Grande do Sul: de 370 milhões de dólares para afábrica de Gravataí, o Estado do Rio Grande do Sul colocou 340 milhões!

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Periferias regionais e globalização: o caminho para os Balcãs

A balcanização torna-se o modelo da relação região-globalização.Trata-se de um permanente ajuste de contas, de permanentes recortes,de recorrentes ofertas e segmentações, num processo implacável de ten-tar capturar os recursos do exterior, que, na verdade, são produzidos inter-namente. À custa do social, da soberania e da federação. Perdem-se todasas vantagens federativas, na forma em que a última grande reorientaçãoda política brasileira a redefiniu no final dos anos 50. Perdem-se os forosfederais em que a política pode contrabalançar e orientar os movimen-tos da economia, em que a pressão social e política pode, em interlocuçãocom os demais atores nacionais, constituir pactos de jogos políticos an-tischmittianos, vale dizer, de soma positiva.

Em troca de quê? A política regional brasileira de hoje dá a resposta.Em troca de nada. Todo o sistema construído nos anos 50 e 60 soçobrou,e a única expectativa é a de atração dos recursos externos pelo “leilãoinvertido”. O governo federal destituiu as agências de desenvolvimento,Sudene e Sudam, com sua rica experiência, alegando corrupção.

Na verdade, obedeceu aos ditames do FMI e do Banco Mundial, quesempre chamaram pela financeirização do sistema de incentivos fiscais,que devem ser substituídos pelo financiamento bancário e do mercadode capitais. Novas agências foram criadas, numa espécie de troca de seispor meia dúzia.

Os resultados já se apresentam: redução do crescimento regional eguerra geral entre os estados. Os foros políticos inexistem, reduzindo-sea reunião de governadores, todos acabrestados pelas imensas e impagá-veis dívidas com o próprio governo federal.

A federação transformou-se em seu contrário: de um pacto de for-ças políticas livres, que escolhem se federar para atingir seus própriosobjetivos que se tornam, assim, objetivos também dos outros entes fe-derados, em um diktat da União, que abriga a forma política federativanão para viabilizar os estados, mas para autoviabilizar-se, acima e alémdas unidades federativas.

No passado, o Nordeste tentou a Confederação do Equador para su-perar o tratamento discriminatório que lhe dava o Império. Está na horade refazer a federação brasileira acima e além dos interesses da grandeburguesia financeira global. Do contrário, melhor seria, desde já, mudar-

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mos os nomes dos nossos estados – e não apenas os do Nordeste – paraEslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro, Sérvia, Kosovo, eoutros mais, e trocar qualquer um dos patibulares criminosos oligár-quicos por um bilhão de dólares para distribuir o pão de Santo Antônioàs terças-feiras.

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12As políticas macroeconômicas e o

entorno jurídico-institucional na indústriamaquiladora de exportações do México

e da América Central

Jorge MáttarRené A. Hernández1

Neste trabalho, faremos uma sinopse da incidência das políticasmacroeconômicas e do entorno jurídico-institucional nas empresas dosetor exportador de confecção. Iniciamos com uma síntese do panoramaeconômico do México e da América Central, diferenciando, quando pos-sível, as situações anteriores e posteriores ao Acordo de Livre Comércioda América do Norte (Nafta). Posteriormente, apresentaremos a evolu-ção das principais variáveis macro e concluiremos com uma síntese dasprincipais políticas de fomento das exportações, além de apresentar opapel exercido pelas instituições relevantes no processo.

1 Traços Gerais do Panorama Econômico Mexicano

Introdução

Depois de quase dez anos de virtual estagnação, o México iniciou adécada de 1990 com um renovado otimismo em matéria econômica.

1 Cepal, México.

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Estimava-se que as reformas econômicas iniciadas no meado dos anos80 começariam a render frutos no atual decênio; a isso se somavam asexpectativas positivas geradas pela negociação de um tratado de livrecomércio com os Estados Unidos.

Com efeito, a partir de 1986, o ingresso do país no GATT inaugurouuma estratégia de desenvolvimento mais aberta, que outorgou um pa-pel primordial ao mercado e ao setor privado, ao mesmo tempo que oEstado se retirava gradualmente da atividade produtiva. Assim, na se-gunda metade dos anos 80, o governo promoveu reformas econômicasde amplo alcance, como a liberação do comércio exterior, a desregula-mentação da economia, a privatização das empresas públicas e a abertu-ra para o capital estrangeiro.

As reformas econômicas se aprofundaram entre o final da década de1980 e o princípio da de 1990. Privatizaram-se grandes empresas públi-cas (entre outras, a Teléfonos de México, os bancos comerciais, as em-presas siderúrgicas e as indústrias de fertilizantes), empreendeu-se a aber-tura da conta de capital do balanço de pagamentos e se implementaramreformas de liberalização do sistema financeiro. A política econômicaacordada entre os setores governamental, empresarial e operário, postaem prática em 1988 a fim de estabilizar a economia, propiciou uma re-dução considerável dos níveis de inflação, e a estabilidade do peso deumaior confiança aos agentes financeiros.

A abertura da conta de capital do balanço de pagamentos, somadaàs expectativas favoráveis geradas pela negociação do Acordo de LivreComércio da América do Norte (Nafta), estimulou substancialmente oinfluxo de recursos financeiros externos, na maior parte de curto prazo,embora também tenha crescido o investimento direto. Conquanto a uti-lização da política cambial como âncora nominal para conter a inflaçãotenha cumprido o seu objetivo na primeira metade dos anos 90, a entra-da de capital financeiro provocou uma forte tendência à valorização dopeso em termos reais nesse período.

Assim, o déficit comercial foi se acentuando paulatinamente, poisboa parte dos influxos externos era canalizada para o financiamento dacrescente demanda de importações e para o consumo, o que deteriorousignificativamente o coeficiente de ajuste interno. As exportações, porsua vez, enfrentavam uma taxa de câmbio supervalorizada, não-compe-

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titiva, que impedia um dinamismo superior ao apresentado. A valoriza-ção cambial e o aumento do déficit em conta corrente alcançaram níveiselevadíssimos em 1994, ano particularmente complexo em razão da se-qüência de gravíssimos acontecimentos extra-econômicos.

O ano de 1994 iniciou-se com uma sublevação armada do ExércitoZapatista de Libertação Nacional, que se apoderou à força de várias ci-dades do Estado sulista de Chiapas. Tendo sido efêmeros os confrontoscom o exército, o governo decidiu negociar em meados de janeiro. Con-tudo, baldaram-se os esforços para solucionar o conflito e, nessa data, ogrupo armado continua entrincheirado nas montanhas de Chiapas semque se vislumbre uma pronta solução do conflito.

Em março, foi assassinado o candidato do PRI à presidência da Re-pública, evento que causou uma grande comoção nacional e considerá-veis impactos na economia, particularmente na conversão do fluxo decapitais de curto prazo. A partir de então, as reservas internacionais pas-saram a declinar; para isso também contribuíram outros fatos políticosque se deram no mesmo ano (a ameaça de renúncia do secretário deGoverno e o assassinato do secretário-geral do PRI).

A fuga de capitais acelerou-se a partir de 20 de dezembro de 1994,quando o novo governo tomou posse e se viu obrigado a anunciar o fim doregime de bandas na fixação da taxa de câmbio; a moeda se desvalorizouconsideravelmente, e o nível de reservas, que havia superado os 30 bilhõesde dólares em março, caiu para pouco mais de 6 bilhões no fim de de-zembro, desencadeando a mais aguda recessão do país em sessenta anos.

A crise de 1994-1995 e suas conseqüências

Os antecedentes da crise econômica iniciada no fim de 1994 e ex-pressa sobretudo em 1995 são o déficit sem precedentes em conta cor-rente do balanço de pagamentos (8% do PIB) e o grau de valorização realdo peso (entre 25% e 40%, dependendo dos indicadores de preços e dosperíodos de referência) que, ao longo de 1994, gerou expectativas dedesvalorização nos investidores. A sobrevalorização do peso desestimulouas exportações e intensificou as importações, contribuindo com a ten-dência da composição do emprego e do investimento contrária aos seto-res produtores de bens internacionalmente comerciáveis. A política fiscal,

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por sua vez, incentivou o gasto de consumo motivado pela expansão e pelaliberalização financeira a partir de 1991. Adicionalmente, a política finan-ceira de curto prazo promoveu, em 1994, a dolarização da dívida internapor meio da substituição dos Cetes por Tesobonos; em razão do elevadodiferencial entre as taxas de lucro internas e externas, o sistema bancáriose converteu em um devedor líquido de moeda estrangeira (Ros, 1995).

A excessiva liquidez foi outro elemento que aprofundou a crise dopaís. O crédito dos bancos comerciais, uma vez mais em mãos privadasdesde o início da década de 1990, expandiu-se rapidamente. Em um con-texto de liberalização financeira e frouxa supervisão bancária, as expec-tativas favoráveis de crescimento da economia, assim como as volumo-sas injeções de capitais do começo dos anos 90, trouxeram consigo umauge na demanda de crédito do setor privado, por mais que se mantives-sem elevadas as taxas reais de juros. Justamente o saldo de crédito ban-cário recebido pelas empresas e por particulares dobrou em termos reaisentre 1991 e 1994.2 O aumento do crédito veio acompanhado de incre-mentos significativos no montante da carteira vencida consignada pelosbancos, que passou de 2,3% do total da carteira de empréstimos, em 1990,para 9,5% no fim de 1994 (OCDE, 1995).

Em 1995, a economia mexicana viveu a mais grave crise da históriamoderna. O governo implementou um programa emergencial visando,acima de tudo, ajustar rápida e profundamente o setor externo a fim desuprir a brusca interrupção de influxos de capital estrangeiro. No marcoda grave crise do sistema bancário, de uma forte instabilidade cambial edo risco de descontrole inflacionário, a economia sofreu uma contraçãode 6,2%, em 1995, e a taxa de desemprego aberto elevou-se a 6,2% (3,7%em 1994). A inflação ultrapassou os 50% e a redução de inserção real deamplas camadas da população provocou uma forte queda da demandainterna (14%). A pronta reação das exportações (que aumentaram 30%)ao ajuste cambial (o peso teve uma desvalorização nominal de 47% e realde 31%), assim como o acesso preferencial ao mercado norte-america-no, graças ao Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta),concorreram para evitar uma deterioração ainda maior do nível de ativi-dade (Cepal, 1996).

2 Os incrementos anuais reais foram de 19% em 1991, 26% em 1992, 16% em 1993 e 36%em 1994.

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O programa de ajuste centrou-se em uma severa restrição fiscal3 eem uma política monetária muito restritiva, e contou com o respaldo deum pacote de crédito internacional de mais de 50 bilhões de dólares (cons-tituído principalmente de empréstimos extraordinários do Tesouro dosEstados Unidos e do Fundo Monetário Internacional), dos quais só seutilizaram 29 bilhões. Esses recursos externos foram decisivos paraviabilizar o programa de ajuste. Em particular, permitiram garantir aamortização de investimentos externos em títulos governamentais decurto prazo conversíveis em dólares (Tesobonos), por uma quantia pró-xima de 29 bilhões de dólares vencíveis durante 1995. A conseqüêncianatural desse resgate foi o aumento da dívida externa total em mais de24 bilhões de dólares, com o que o país acumulou um saldo total de 166bilhões no fim de 1995.

A carteira vencida dos bancos comerciais se incrementou vertigino-samente, a ponto de obrigar o governo a criar diversos mecanismos parasalvaguardar a economia popular, apoiar os devedores na reestruturaçãode seus créditos e facilitar o saneamento financeiro do sistema bancário.

Foi espetacular o ajuste do setor externo em 1995. A conta correntedo balanço de pagamentos passou de um déficit equivalente a cerca deoito pontos percentuais do PIB, em 1994, para um equilíbrio virtual em1995. Pela primeira vez em sete anos, e como resposta à interrupção dosfluxos de capital estrangeiro, obteve-se um superávit comercial deter-minado pelo grande dinamismo das exportações e pela redução das im-portações. O investimento estrangeiro no mercado monetário do paíssofreu uma contração maciça – em razão principalmente da amortizaçãodos Tesobonos –, o investimento direto caiu em 13% e o do mercadoacionário desabou, determinando um saldo negativo na conta de capi-tais depois de sete anos de superávit crescente.

O Acordo de Livre Comércio da América do Norte

Em 1994 entrou em vigor o Acordo de Livre Comércio da Américado Norte (Nafta) firmado entre o Canadá, o México e os Estados Unidos.

3 A fim de fortalecer a arrecadação em 1995 incrementou-se a taxa de imposto ao valor agre-gado (IVA) de 10% a 15%, nível em que permanecia em 1999.

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Embora a integração econômica do México com os Estados Unidos já seevidenciasse há décadas,4 até o final dos anos 80, o governo mexicanonão considerou oportuna a assinatura de um acordo de livre comérciocom esse país. Sem dúvida, a abertura comercial unilateral do México ea existência de barreiras tarifárias e não-tarifárias ao acesso de produtosmexicanos ao mercado estadunidense motivaram o México a propor acriação de uma zona de livre comércio.

O Nafta foi a culminação do processo de reforma das relações econô-micas do país com o exterior e afirmou a estratégia de políticas orientadaspara o mercado. O acordo inclui a eliminação de barreiras tarifárias e não-tarifárias entre os três países signatários e também compreende meca-nismos de salvaguarda, disposições sobre o comércio de serviços, prote-ção à propriedade intelectual, normas ambientais, trabalhistas e de di-reitos humanos.5

Além do Nafta, na primeira metade dos anos 90, o México ingres-sou na OCDE e na Organização Mundial do Comércio. Como parte daintensa atividade em matéria de negociações comerciais internacionais,o governo mexicano firmou acordos de livre comércio com o Chile (1991),a Costa Rica (1994), a Colômbia e a Venezuela (1994), a Bolívia (1994),e atualmente está negociando um acordo comercial com os países daUnião Européia.

Dada a enorme concentração do comércio mexicano com os EstadosUnidos, o Nafta implicou a liberalização da grande maioria das importa-ções, além de especificar calendários setoriais de redução tarifária e aeliminação de outras barreiras ao intercâmbio comercial inter-regional,estabelecendo uma série de regras e alinhamentos que passaram a defi-nir a política comercial mexicana atual, tanto intra-regional quanto ex-tra-regional.

O governo Zedillo ratificou o compromisso da política econômicacom a liberalização comercial. Convém observar que a crise do setor exter-no, em 1995, ao contrário das anteriores, não suscitou a imposição derestrições ao comércio inter-regional, embora se tenham elevado certastaxas alfandegárias sobre a importação de alguns produtos provenientes

4 Mais de 80% do comércio exterior do México se dá com os Estados Unidos.5 Para uma descrição detalhada do Acordo, ver Secofi (1993).

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de países com que o México não tem acordo de livre comércio ou que,presumivelmente, lançavam mão de práticas comerciais desleais. Podiater sido maior o declínio do PIB, em 1995 (ver a seção 3), não fosse oconsiderável aumento das exportações, a maioria das quais destinada aomercado do Nafta.

A partir da realização do Acordo, o comércio internacional do Méxicovem se acelerando, especialmente as exportações; é o resultado das con-dições favoráveis de acesso ao mercado dos Estados Unidos, embora nãose deva esquecer que a desvalorização real do peso, em 1995, impulsionouextraordinariamente as vendas externas do país, o que prossegue até opresente. Assim, o México tornou-se o segundo sócio comercial dos Es-tados Unidos, com um intercâmbio de cerca de 250 bilhões de dólaresem 1999; o acesso preferencial dos produtos mexicanos aos EstadosUnidos (a tarifa média a eles aplicada caiu de 3,3%, em 1993, para 1,1%em 1998) situa-o hoje como o terceiro fornecedor do mercado de impor-tações norte-americanas, com uma cota de 10%, ficando atrás somentedo Canadá e do Japão. O comércio com o Canadá também vem se forta-lecendo; o México é seu terceiro sócio comercial e o quarto fornecedorde bens; embora o nível de comércio seja muito inferior ao que se temcom os Estados Unidos.

A posição do México como plataforma de exportação para o mercadodos Estados Unidos e do Canadá – a partir de condições de acesso prefe-renciais com o TLC – tem atraído grandes volumes de investimento direto,não só desses países como também da Europa Ocidental e do Japão. Oinvestimento estrangeiro direto manteve-se próximo de 4 bilhões dedólares entre 1990 e 1993; evidentemente, a partir de 1994, os fluxos seelevaram para cerca de 10 bilhões anuais, inclusive no período de 1994 a1995, anos que se caracterizaram pela instabilidade econômica. Aproxi-madamente 60% do investimento estrangeiro direto provêm dos outrossignatários do Nafta. Em 1999, prevê-se que o fluxo se manterá em tor-no de 10 bilhões de dólares, o que tornará o México o principal receptorde investimentos diretos da América Latina na década de 1990.

Desde que o acordo entrou em vigor, o emprego cresceu 10,1% noCanadá, gerando 1,3 milhão de postos de trabalhos; no México, aumentou22%, com o que se geraram 2,2 milhões de vagas; e nos Estados Unidos

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o incremento foi de mais de 7%, resultando na criação de 12,8 milhõesde vagas, todas vinculadas ao setor exportador.6

Embora este último tenha apresentado um desempenho notável nadécada de 1990 e, em particular, a partir do Nafta, cabe assinalar que talsegmento da economia se concentra em um número reduzido de empre-sas tipicamente grandes, vinculadas a firmas estrangeiras, que buscamfinanciamento externo e, ademais, possuem escassos vínculos com o restodo aparato produtivo interno. Não só no caso da indústria maquiladora,que compreende 45% das exportações totais de bens, como também node muitas outras empresas que se abastecem primordialmente no exte-rior. A isso se associa a desarticulação e o rompimento de cadeias pro-dutivas ocorridos nos anos 90 no setor industrial. Assim, gerou-se umaestrutura dual, na qual prevalece um segmento internacionalmente com-petitivo, enquanto o restante da economia, em que abundam os peque-nos estabelecimentos, apresenta baixa competitividade de produto eenfrenta problemas no levantamento de recursos creditícios, seja nosbancos comerciais, seja nos de desenvolvimento.

O período de 1996 a 1999: ajuste,estabilização e recuperação produtiva

É notável a recuperação da atividade econômica a partir de 1996, paraa qual concorreram decisivamente dois fenômenos ausentes nos anterio-res períodos de pós-crise: o rápido retorno do país aos mercados volun-tários internacionais de dívida e o dinamismo das exportações não pe-trolíferas – em parte associado ao funcionamento do Nafta –, quepassaram a ocupar uma parte importante da demanda agregada. A infla-ção decresceu rapidamente, e continuaram se aplicando as restrições mo-netárias e fiscais fixadas pelo programa de ajuste auspiciado pelo FMI.

O produto aumentou 5,1% em 1996, e a tendência favorável se esten-deu ao período de 1997 a 1999, embora com uma trajetória declinanteda taxa de crescimento. O emprego se recuperou gradualmente e a taxade desemprego aberto caiu para 2,5% no final de 1999. A inflação tendeu

6 Secofi (1999). Obviamente não é possível identificar o efeito claro do acordo sobre o em-prego. Sem embargo, existe um consenso de que o impacto tenha sido positivo.

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à baixa, situando-se em 13% em 1999. Também prosseguiu a correçãodos desequilíbrios no setor externo, observando-se um crescimento de doisdígitos nas exportações, apesar da forte queda das injeções petrolíferas em1998. Assim, o déficit comercial se mantém em níveis razoáveis, o quepermite que o déficit em conta corrente não supere os 4% do produto.

A condução das políticas monetárias e fiscais conservou a austeri-dade e perdurou o regime de flutuação, com ligeiros ajustes implementa-dos em face de episódios especulativos causados principalmente pelavolatilidade financeira internacional que prevalece desde 1997. Assim,no último triênio, o déficit fiscal não ultrapassou os 3,5%. Mediante aalocação de títulos nos mercados internacionais, o governo seguiu umapolítica ativa de refinanciamento da dívida externa, o que permitiu ali-viar-lhe o peso. Hoje se observa um perfil relativamente favorável deamortizações e pagamento de juros.

A política monetária

No quadro do objetivo central de diminuir a inflação depois da crisecambial de 1994 a 1995, a política monetária nos últimos anos vem bus-cando: a) restaurar a estabilidade dos mercados financeiros; b) manter ocontrole rigoroso do crédito interno e c) aumentar a transparência dasoperações do banco central com o propósito de fomentar a confiança domercado.

Para cumprir tais metas, o banco central procedeu a ajustes na polí-tica monetária. Assim, para moderar as flutuações das taxas de juros ede câmbio, emprega o mecanismo de leilões de crédito entre as institui-ções financeiras, ampliando ou restringindo a quantidade de recursos àdisposição dos bancos; ademais, em alguns casos, exige posições de sal-do credor líquido com o instituto central. Por meio desse mecanismo,envia um sinal aos agentes, permitindo que as taxas de juros se elevemou que se interrompa a sua queda, recurso utilizado em diversas oca-siões em 1996 e 1997 (Banco do México, 1997; Cepal, 1997).

A volatilidade financeira internacional de 1998 e a queda do preçodo petróleo implicaram a retração do fluxo de divisas para o país, o queredundou em um déficit maior na balança comercial e em uma cotaçãomais alta do câmbio. Para corrigir essas flutuações nos mercados finan-

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ceiros, o Banco do México modificou sua postura, passando de uma po-lítica monetária neutra a uma restritiva.

Nos primeiros dias de 1999, surgiram focos de instabilidade nomercado brasileiro, quando se realizou um deslocamento do teto da bandacambial, o que levou a taxa de câmbio, no México, a uma rápida desvalo-rização. A fim de evitar maiores pressões, o Banco do México reforçou apolítica de restrição à liquidez, apoiando a recuperação do peso, que desdeentão vem mantendo uma ligeira tendência de valorização em termosreais. Contudo, a política de flutuação cambial parece ter sido muitoadequada nos últimos tempos, especialmente no biênio 1998-1999, quese caracterizou por flutuações violentas dos fluxos financeiros interna-cionais, diante das quais parece oportuna a prática de uma política deflexibilização do câmbio.

As finanças públicas

Desde o fim de 1997 e durante 1998, as seqüelas da crise financeirados países asiáticos fizeram-se sentir, sobretudo quando se registrou umaforte retração dos preços internacionais do petróleo. A fim de cumpriras metas estabelecidas no programa econômico de 1998 (déficit fiscalde 1,25% do PIB), operaram-se diversos ajustes no gasto público. A que-da dos preços do petróleo implicou o declínio das injeções petrolíferasde cerca de 1% do PIB. Tal fenômeno evidenciou a debilidade estruturaldas finanças públicas, pois as divisas petrolíferas representam cerca deum terço do total de entradas no setor público orçamentário.7

A redução dos gastos públicos comprometeu a paulatina recupera-ção que vinha sendo registrada em setores como o da construção, queestá intimamente relacionado aos projetos de investimento público, oque teve conseqüências em diversos ramos vinculados à construção.Outras áreas afetadas foram as de investimento no setor energético e ade comunicações e transporte.

Programas para restabelecer o crescimento sustentado

A fim de fazer frente aos problemas econômicos do país, assim comoà grave deterioração da oferta de trabalho para a população, o governo

7 Os cortes no gasto programável ascenderam a 0,79% do PIB.

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divulgou, em 1997, o Programa Nacional de Financiamento do Desen-volvimento 1997-2000 (Pronafide), propondo-se a promover um cresci-mento econômico de mais de 5% anuais, gerar mais de um milhão deempregos por ano, incrementar o nível real dos salários, fortalecer a ca-pacidade do Estado de atender às demandas sociais e evitar as crises re-correntes que vinham se apresentando nos últimos vinte anos. Esse pro-grama busca abater os desníveis sociais, sobretudo nas comunidades maiscarentes, promover a poupança privada, consolidar a pública, adequar osetor financeiro às atuais circunstâncias e aproveitar a poupança externacomo complemento da interna.

Adicionalmente, o governo tem impulsionado programas que pro-curam atenuar esses efeitos mediante ações de ampla cobertura destina-das à população em geral, a fim de garantir o acesso a serviços básicos,como a educação, a saúde, a previdência social, a capacitação para o tra-balho e a habitação, assim como de superar a pobreza extrema que afetaum segmento importante da população.

O resgate financeiro

Por causa dos problemas da conversibilidade dos passivos do Foba-proa, a dívida pública, em 1998, e a crescente carteira vencida que se vi-nha acumulando, o custo desses passivos continuou aumentando. De-pois de um amplo debate no Poder Legislativo, a dívida do Fobaproaconsolidou-se em dívida pública no fim de 1998; o Congresso tambémaprovou a criação do Instituto de Proteção à Poupança Bancária (IPAB),encarregado de administrar e vender a carteira herdada do Fobaproa. Alémdisso, em 1999, lançou-se o Programa “Ponto Final”, último de uma sé-rie de mecanismos de apoio ao cumprimento do pagamento dos deve-dores do sistema financeiro. Contempla descontos entre 45% e 60% paraos diversos tipos de crédito, como o hipotecário, o empresarial, o agrope-cuário e o pesqueiro.

As últimas estimativas oficiais calculam que o saldo dos passivos brutosdo Ipab, no fim de 1999, ascenderam a 844,2 bilhões de pesos (cerca de89 bilhões de dólares), cifra equivalente a aproximadamente 20% do PIB.

A blindagem financeira

A ocorrência de crises econômicas ao fim de cada sexênio das últi-mas décadas levou o atual governo a formular um programa de fortale-

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cimento financeiro, apoiado por diversas instituições financeiras inter-nacionais. Sua finalidade é proteger a economia e o sistema financeirocontra choques externos e internos, antecipando-se aos processos elei-torais do ano 2000 e à mudança de administração.

O Programa de Fortalecimento Financeiro 1999-2000 inclui recur-sos de 16,9 bilhões de dólares em forma de linhas de refinanciamento ecomércio exterior provenientes do FMI, do Banco Interamericano deDesenvolvimento (BID), do Banco Mundial e do Eximbank dos EstadosUnidos, assim como 6,8 bilhões de linhas contingentes ao amparo doAcordo Financeiro da América do Norte (Nafa), o que perfaz um totalde 23,7 bilhões de dólares.

O governo busca consolidar as reformas que vêm sendo implemen-tadas desde a década de 1980 – pouco se avançou na segunda metadedos anos 90 – e manter o desempenho macroeconômico posterior à crisede 1995. Ademais, demonstra que continuará aprofundando as reformasestruturais e a descentralização das empresas estatais. Reconhece que,para garantir o cumprimento dos objetivos, podem-se tomar medidasadicionais e de consulta ao FMI acerca dos possíveis ajustes que se de-vam fazer na política econômica.

Presume-se que a política econômica tenderá a consolidar a estabi-lidade macro, traçando-se as seguintes metas para 2000: crescimento doproduto de 4,5%, inflação de 10%, déficit em conta corrente de 3,2% doPIB, balanço fiscal de 1% do PIB e uma relação dívida pública-PIB de 27%.

2 Traços gerais do panoramaeconômico centro-americano

No período 1993-1998, a América Central registrou uma taxa médiade 4,1% de crescimento da atividade econômica, algo ligeiramente su-perior aos 3,8% observados no período de 1990 a 1992. O PIB per capitaregistrou um crescimento de 1,3%, nos anos estudados, e de 0,9% noperíodo de 1990 a 1992.

Foi diferenciado o desempenho em outras variáveis. Por exemplo, oinvestimento interno bruto cresceu a uma taxa média de 3,5%, experi-mentando taxas negativas em 1996 (-13,2%) e um índice muito baixo

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em 1995 (1,9%), sobretudo em virtude dos níveis menores de investi-mentos realizados na Costa Rica, em Salvador e na Guatemala.

A taxa de inflação de dezembro a dezembro manteve-se na médiaregional de 16%.8 O déficit fiscal do governo central registrou uma mé-dia de 4,2%, em grande parte por causa dos níveis de 5,5% e 8,9% alcan-çados respectivamente por Honduras e Nicarágua.

O ano de 1998 teve um desempenho econômico muito particularem comparação com os anteriores. Assim, o produto interno bruto regio-nal expandiu-se a uma taxa de 4,5% em face da de 4,3% do ano anterior,semelhante às médias de crescimento dos períodos de 1990 a 1992 e 1993a 1998. No fim do ano, o impacto provocado pelo furacão Mitch impediua maioria dos países da região de cumprir as metas originalmente progra-madas; não obstante, seu desempenho é muito favoravelmente compará-vel à substancial desaceleração detectada no conjunto da América Latina.

Em contraste com a situação anterior e com as conseqüências dacatástrofe natural, o desempenho centro-americano, em 1998, benefi-ciou-se com o influxo de investimento estrangeiro direto, com o com-portamento dinâmico das exportações não-tradicionais e com o esforçocontinuado demonstrado pela formação bruta de capital. Desfavoráveisforam a influência da redução dos preços internacionais dos principaisprodutos tradicionais de exportação, as condições climáticas adversas noprimeiro semestre, produzidas pelo fenômeno “El Niño” e a já mencio-nada presença, no último bimestre, do furacão Mitch, que devastou ex-tensas áreas da região, ocasionando grandes perdas na produção e gra-ves danos à infra-estrutura econômica, sobretudo em Honduras e naNicarágua (Cepal, 1999c, d, e, f, g, j).

De 1993 a 1997, o Mercado Comum Centro-americano (MCCA) rece-beu injeções líquidas, em termos de investimento estrangeiro direto, demais de 3 bilhões de dólares; se se incluir Belize, esse valor se eleva amais de 3,1 bilhões de dólares. Só em 1998, a região centro-americanarecebeu importantes influxos do exterior em termos de investimentoestrangeiro direto, alcançando um montante global superior a 2,5 bilhõesde dólares, em grande parte por causa da compra de empresas estatais

8 Não se inclui a Nicarágua por esta apresentar média de inflação de três dígitos nos primei-ros três anos da década.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

de telecomunicações e de eletricidade, que foram privatizadas. Essemontante quase equivale aos investimentos recebidos pela região noscinco anos anteriores. Ademais, com um peso sempre significativo, asremessas dos centro-americanos residentes nos Estados Unidos conti-nuaram crescendo, chegando a atingir 3,18 bilhões de dólares, impor-tância 17% maior que a do ano anterior.

O valor das exportações para o resto da América Central aumentou10,5% e, em contraste, o valor das importações diminuiu 5%. A relaçãoentre o valor do comércio intra-centro-americano e o do comércio totalde bens das exportações alcançou um nível de 18,1% no período 1990-1992, de 17,5% de 1993 a 1998 e um valor bastante semelhante na médiado total da década. No tocante às importações, essa mesma relação mante-ve-se em 11,5% durante toda a década e em todos os períodos analisados.

No desempenho do setor externo em geral, influiu de forma signifi-cativa o crescimento de 27,5% das vendas externas de bens da Costa Rica,atribuído em grande parte à empresa Intel, que ao iniciar suas operaçõesexportou 1 bilhão de dólares, soma equivalente a dois terços do incre-mento das vendas registradas na região. Do mesmo modo, o valor agre-gado da maquila centro-americana aumentou 14,8%, situando-se em 1,41milhão de dólares (Cepal, 1999c). A taxa de crescimento de valor agre-gado da maquila, em 1998, ficou muito aquém da média entre 20% e50% alcançada por cada país no período 1993-1998.

Parte do dinamismo das exportações se explica pela rápida expansãoda atividade maquiladora na região, especialmente em Honduras e Salva-dor, a contração de 1996 e a recuperação gradual de 1997 e 1998, a qualnão alcançou os níveis observados nos anos anteriores.

O déficit em conta corrente vinha diminuindo gradualmente de 8,7%,em 1993, para 4,9%, com relação ao PIB, perfazendo uma média de 5,7%no período estudado. Tal situação é particularmente interessante de seobservar em Honduras, que passou de 9,5% em 1993 para 2,9% em 1998,impulsionada pelo dinamismo das exportações desses anos.

Nesse contexto, pode-se destacar que em 1998, em conseqüênciado furacão Mitch, Honduras e Nicarágua reduziram sensivelmente suastaxas de crescimento (o primeiro, 2,1 pontos percentuais; o segundo, 1,1)em razão das perdas econômicas ocorridas no último bimestre do ano.

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As políticas macroeconômicas e o entorno jurídico-institucional...

No âmbito regional, tais perdas foram compensadas pela aceleração docrescimento muito além do previsto na Costa Rica. O principal impactodo furacão se observou na produção agropecuária regional. O produtointerno bruto do setor reduziu-se em 7% em Honduras e em 1,9% emSalvador, e contraiu de forma marcante o crescimento da Nicarágua de8,3%, em 1997, para 4,2% em 1998 (Cepal, 1999c).

Em matéria fiscal, a região continuou aplicando medidas de sanea-mento das finanças públicas mediante o aumento da arrecadação e con-trole dos gastos. Salienta-se a redução do déficit do governo central hon-durenho de 9,9%, em 1993, para 3,5% em 1998; assim como o daNicarágua, de 7,3% para 4,5%. A Costa Rica fez um esforço notável parareduzir seu déficit de 3,9%, em 1997, para 3,2% em 1998. Por outro lado,o mesmo indicador observou um refluxo em Salvador e na Guatemala(2% e 2,2%, respectivamente).

Todos os países expandiram o crédito interno, principalmente o diri-gido ao setor privado, e elevaram as despesas públicas em termos de pro-duto. Em particular, Costa Rica, Guatemala e Honduras adotaram umapolítica expansiva de crédito durante grande parte do ano, em um con-texto de queda das taxas de investimentos. Salvador fez o mesmo, a nãoser em 1998, ano em que o crédito interno caiu para 1,7% em comparaçãocom os 24,7% do ano anterior, e o crédito para o setor privado, que erade 13,2%, foi mais de catorze pontos percentuais menor que o de 1997.

Em 1998, a formação de capital em escala regional manteve o altoritmo de expansão (14,3% contra os 15,3% de 1997), em grande medidaimpulsionada pelos investimentos privados, mas também pelo incremen-to dos gastos públicos em obras de infra-estrutura produtiva e social, prin-cipalmente na Guatemala e em Salvador. O investimento se acelerou naCosta Rica e em Honduras (22,9% e 19,8%, respectivamente); cresceu11,8% na Guatemala, em parte graças ao aumento das despesas públicasdestinadas ao cumprimento dos Acordos de Paz, e diminuiu em Salvador(5,8%). Na Nicarágua registrou-se uma forte desaceleração (5,7% anteos 16,9% de 1997) motivada pela queda do investimento público e peloritmo menor do privado (ibidem).

Em 1998, o panorama ocupacional tendeu à melhora, na região, gra-ças ao incremento do nível de atividade econômica. Do mesmo modo,os salários reais apresentaram alta em quase todos os países (ibidem).

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

Sinopse da atividade industrial no período de 1993 a 1998

No período de 1990 a 1998, a taxa de crescimento do produto inter-no manufatureiro (PIM) dos cinco países-membros do MCCA foi de 3,9%,taxa praticamente idêntica à de crescimento do PIB nesses anos. De 1993a 1998, o PIM foi de 3,8%, semelhante à média de nove anos da década einferior ao decréscimo de 4,1% do PIB.

Em 1998, o crescimento do PIM foi de 6%, ligeiramente superior aoobservado em 1997. Pelo segundo ano consecutivo, o referido crescimen-to foi superior ao do produto interno bruto. Para esse desempenho in-dustrial, concorreram a expansão do comércio intra-regional e, particu-larmente, a expansão das exportações de manufaturados (12,8%) (Cepal,1999b).

A política de competitividade industrial da região se caracterizou porapoiar-se nos programas nacionais de desenvolvimento sob a chancelada crescente abertura comercial, da maior concorrência internacional, dadesregulamentação, da eliminação dos incentivos fiscais e financeiros,da privatização e da orientação para o mercado.

Segundo as pesquisas realizadas e as consultas feitas com as insti-tuições da região, detectou-se um claro interesse, por parte do setor pri-vado, em definir uma estratégia para o desenvolvimento produtivo e in-dustrial e contar sobretudo com um contexto macroeconômico favorável,com uma infra-estrutura física adequada, com uma força de trabalho alfa-betizada e qualificada e com uma conformação institucional que ofereçacondições mínimas de funcionamento ao sistema produtivo e financeiro.

No debate surgido entre os agentes e as autoridades econômicos,buscando a recuperação industrial e a elevação da competitividade, des-tacam-se os programas nacionais de competitividade de diferentes paí-ses, apoiados pelo Instituto para o Desenvolvimento Internacional deHavard e pelo Centro Latino-americano para a Competitividade e o De-senvolvimento Sustentável (CLACDS) do Instituto Centro-americano deAdministração de Empresas (Incae).9

9 Ver Incae/CLACDS; HIID, Centroamérica en el Siglo XXI: Una agenda para la competitividady el desarrollo sostenible; bases para la discusión sobre el futuro de la región, 1999.

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As políticas macroeconômicas e o entorno jurídico-institucional...

No desempenho por país, é notável que, no período de 1990 a 1992,a Costa Rica tenha crescido a índices superiores à média da indústriamanufatureira regional, já que no período de 1993 a 1998 seu desempe-nho no PIB manufatureiro e global foi menor que a média regional e seencerrou dentro da média na ponderação de toda a década. El Salvador,por sua vez, apresentou um desempenho superior à média regional emtodos os períodos considerados. Em 1998, por exemplo, superou, comoa Costa Rica, a taxa de crescimento do PIM anual do conjunto dos paísesdo MCCA (8% e 7,2%, respectivamente), graças à incorporação em seusregistros da produção decorrente de certas atividades da indústriamaquiladora, uma das mais dinâmicas na década de 1990.

A Nicarágua e a Guatemala registram taxas de crescimento do PIM

abaixo da média regional. O PIM de Honduras foi menor que a médiaregional nos primeiros anos da década, levemente superior no períodode 1993 a 1998 e, no final dos nove anos da década, teve taxa de cresci-mento idêntica à média regional (3,9%).

O coeficiente de industrialização da região (participação do PIM noPIB) foi de 16,9% no período de 1990 a 1998, muito semelhante ao cres-cimento do intervalo 1993-1998 (16,8%) e três décimos de pontospercentuais abaixo da média de 1990 a 1992 (17,1%). Em 1998 ocorreuma leve recuperação do grau de industrialização regional em relaçãoaos dois anos anteriores, sem, contudo, ter alcançado os níveis observa-dos no princípio da década. Em geral todos os países, com exceção daCosta Rica, mostram um descenso no coeficiente de industrialização apartir de 1993 e uma leve recuperação em 1998.

Estrutura da produção e emprego

Durante todos os anos da década de 1990, a estrutura do setor in-dustrial centro-americano e o coeficiente de industrialização não apre-sentaram alterações importantes. O segmento de produtos alimentícios,bebidas e tabaco concentra aproximadamente 50% do valor da produ-ção bruta, indicador significativamente superior à média dos países demaiores dimensões econômicas da América Latina, como o México, aArgentina e o Brasil, e mais de três vezes superior à média mundial (Uni-do, 1993).

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

O segundo segmento de maior peso foi o dos têxteis, vestuário eprodutos de couro, cuja média representou 11,6% do total do valor brutoda produção manufatureira, entre 1993 e 1998, mas que se considerasubestimado por problemas de registro estatístico ocorridos nos paísesda região.10 O valor da produção de produtos metálicos, máquinas e equi-pamento vem se mantendo ao redor de 9% da produção manufatureira.

Um aspecto a se destacar é a mudança da taxa de importação de bensde capital que se reduziu em mais de 50% no período de 1993 a 1998,em Salvador e na Guatemala, em comparação com as taxas de crescimentodo período de 1990 a 1992. Na Costa Rica, ela se manteve em níveis deaproximadamente 13%. As alterações mais notáveis foram as de Hon-duras e Nicarágua. Aquele país duplicou as importações de bens de capitalno período estudado, e este as quadruplicou. Grande parte dessa entradade capitais se deveu ao dinamismo mais recente da Indústria Maquiladorade Exportação (IME) nesses países. As importações de bens de capitaldo setor manufatureiro acercaram-se dos 15% em toda a região.

Na oferta total de empregos, a contribuição do setor manufatureirofoi, em média, de 15,5% em toda a região e se manteve inalterada ao longoda década. Não se observaram variações significativas. Em termos de país,destaca-se El Salvador, cujo setor manufatureiro participou com certa de25% da geração total de empregos do país, tendo se constituído no maisalto da região. Em menor proporção vêm Guatemala (16,9%), Nicarágua(13,8%), Costa Rica (13,2%) e Honduras (11,8%).

Por outro lado, os índices de crescimento do emprego total e do em-prego no setor manufatureiro da região foram, respectivamente, de 3,7%e de 3%. A Costa Rica registrou uma ocupação total semelhante à médiaregional e 0% de crescimento na ocupação do setor manufatureiro, o quevem a ser paradoxal, uma vez que se trata do país com segundo maiorcoeficiente de industrialização da região (19,6%). El Salvador manteve aocupação total e manufatureira acima da média regional em mais de umponto percentual para cada caso; a Guatemala registrou um crescimentode 1,7% na ocupação total e de apenas 0,6% na manufatureira, ambas as

10 Nos cinco países que compõem o MCCA, as cifras de produção e emprego, maquila ou em-prego da pequena e média empresas não se encontram adequadamente desagregadas e/ourefletidas nas estatísticas oficiais.

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taxas abaixo da média regional. Honduras e Nicarágua mostram um de-sempenho mais favorável, situando-se acima da média da região.

3 O contexto jurídico-institucionalda indústria maquiladora de exportação

As empresas maquiladoras vêm desempenhando um papel relevan-te na criação de empregos e como fonte de geração de divisas para o país;sem embargo, sua articulação e seus encadeamentos com o aparato pro-dutivo nacional têm sido muito escassos ou inexistentes. Na década de1990, seu fortalecimento foi extraordinário em razão do elevado grau deflexibilidade com que passaram a operar e ao dinamismo ininterruptoda demanda, que provinha fundamentalmente dos Estados Unidos.

O ciclo de expansão das empresas maquiladoras de exportação divi-de-se em dois períodos básicos; o primeiro vai de 1964 a 1973, momen-to em que se organiza como setor e cresce de forma irregular, exercendopeso pouco significativo na atividade industrial do país. O segundo, en-tre 1974 e o fim da década de 1990, quando aumenta a sua importâncianos fluxos comerciais, na oferta de empregos e no investimento. Casual-mente, esse período coincide com o ciclo de reformas econômicas em-preendidas a partir de 1982, no qual se observa uma fase de especializa-ção industrial regional acompanhada da diversificação tecnológica.

A indústria maquiladora especializou-se no início na montagem deprodutos tecnologicamente pouco sofisticados (têxtil, confecção), porémhoje opera em um grande número de ramos, sendo os principais oautomotivo, o eletroeletrônico, o têxtil, o de autopeças, o de couro e cal-çados, o de móveis, o de alimentos, o químico, o de ferramentas e equi-pamento e o de brinquedos e artigos esportivos.

O número de estabelecimentos e de empregos, assim como o inves-timento e o comércio exterior da maquila, cresceu significativamente nosúltimos quinze anos, e sua ubiqüidade tem se diversificado, atingindooutras regiões mais distantes da fronteira com os Estados Unidos. Defato, os programas de maquila viabilizaram projetos com investimentobasicamente estrangeiro, situação não factível fora desse programa, con-dição que explica em boa parte o crescimento da atividade maquiladora.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

Todavia, reconhece-se que, a partir da entrada em vigor do Nafta, muitasempresas ampliaram as operações de produção compartida no México (onúmero de maquiladoras subiu de 2.405, em 1993, para 4.470 em 1999).

A indústria maquiladora de exportação desempenhou o papel estra-tégico de amortizar a crise de 1995 e restabelecer o crescimento a partirde 1996. Considere-se, por exemplo, que no período de 1993 a 1998 oinvestimento bruto fixo de toda a economia cresceu a uma taxa real de3,6%; em compensação, o investimento fixo bruto realizado pelas em-presas maquiladoras de exportação aumentou, no mesmo período, a umamédia anual de 30,4%, acumulando 12 bilhões de dólares, ou seja, 11,1%do total nacional (Mendiola, 1998). A indústria maquiladora representauns 45% das exportações totais de bens e opera caracteristicamente comsaldos comerciais positivos. Na crise econômica de 1995, as exportaçõesmaquiladoras cresceram 31%, constituindo a válvula de escape de umacrise muito mais profunda.

A maquila do México emprega mais de 1,1 milhão de pessoas; é osetor mais dinâmico no que tange à geração de postos de trabalho, e seestima que o desenvolvimento da capacidade da mão-de-obra está avan-çando por ser preponderante a montagem de produtos com sofisticaçãotecnológica relativamente alta (televisores, computadores, circuitos im-pressos, autopeças, entre outros) (Buitelaar et al., 1999).

O desafio da indústria maquiladora do México consiste em irradiarseu dinamismo para outros setores da economia. Apesar dos esforçosdo governo para promover o encadeamento da maquila com as indústriaslocais, parcos têm sido os resultados. O coeficiente de insumos nacio-nais (diferentemente do de postos de trabalho) em relação ao total deinsumos não chega a 3%, o que torna necessário redobrar os esforçosnesse sentido. Atualmente, essa forma de produção constitui um receptá-culo importantíssimo de absorção de parte da crescente força de trabalhodo país e representa uma contribuição fundamental para a balança comer-cial, porém seus efeitos multiplicadores seriam muito maiores se se lo-grasse ampliar as conexões desse circuito com os fornecedores locais.

Na América Central, a indústria da maquila de exportação surgiu nomeado da década de 1980 em conseqüência da evolução de uma série defatores internos e externos.11 Internamente, teve papel crucial o estan-

11 Elaborado sobre a base de Buitelaar et al. (1999) e Gitli (1997).

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As políticas macroeconômicas e o entorno jurídico-institucional...

camento e esgotamento do modelo de industrialização com base na subs-tituição de importações (ISI); e no externo, a redefinição da divisão in-ternacional do trabalho.

A importância da maquila incrementou-se consideravelmente nosúltimos anos, tendo chegado a gerar algo próximo de 250 mil empregosdiretos, o que representa entre 25% e 30% dos empregos formais, 20%do valor agregado das exportações que excluem a maquila e cerca de 10%do PIB manufatureiro (Gitli, 1997).

O auge da atividade maquiladora foi impulsionado pela adoção deuma nova estratégia de industrialização com base na promoção das ex-portações de produtos não-tradicionais para terceiros mercados, com ofim de diminuir a tendência antiexportadora até então existente; pelaspolíticas de associação estimuladas pelo governo norte-americano; e alémdisso, pela reestruturação da indústria manufatureira norte-americana,em particular da de confecções, que se viu gravemente afetada pela altacompetitividade dos produtos asiáticos. Os produtores se viram na ne-cessidade de transferir os processos produtivos intensivos em mão-de-obra para os países vizinhos com abundante força de trabalho e baixossalários (ibidem).

A indústria maquiladora de exportação centro-americana se carac-teriza pela alta concentração no setor têxtil e de confecções, que chegoua representar 80% do total desta em 1995, e mais de 90% se destinavamà exportação para os Estados Unidos. Uma característica singular das ex-portações têxteis e de vestuário centro-americanas é seu alto componentede valor agregado norte-americano, o que se deve ao ajuste preferencialalfandegário que recebem, em conformidade com o esquema de iniciativada Conta do Caribe, desde que processadas com matéria-prima norte-americana. Isso explica o fato de os Estados Unidos serem o principalsócio comercial desses países.

Por outro lado, em conseqüência das condições de acesso preferen-cial, as exportações da IME apresentam alta competitividade e grandecapacidade de expansão, tendo em vista que, a partir de 1990, a exporta-ção de confecções centro-americana passou a desbancar a de origem asiá-tica (Cepal, 1997). Assim, no período de 1990 a 1995, a exportação devestuário aumentou em mais de 20% do total. Na Costa Rica, por exem-plo, a exportação de confecções representou aproximadamente 25% dasexportações totais para os Estados Unidos em 1995. No mesmo ano, esse

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coeficiente foi de 22,6% na Guatemala. Honduras é o principal exportadorde confecções centro-americanas destinadas aos Estados Unidos. Em1995, a referida exportação representou 62% do total de bens vendidos aesse país (ibidem). No período de 1991 a 1992, a taxa média de crescimentodas exportações de vestuário para os Estados Unidos teve um aumentode 46,1%; no período de 1991 a 1998, o crescimento foi de 28,4%. O queevidencia um ritmo menor de crescimento a partir de 1994; desde então,não se recuperaram os níveis registrados nos primeiros anos da década.

No plano institucional, a Guatemala criou o Centro Nacional de Pro-moção de Exportações (Guatexpro) no início da década de 1970; em 1973,abriu-se a primeira zona franca (ZF) como instituição estatal descentra-lizada. A ZF se orientava principalmente para atividades de armazena-mento e distribuição. O esquema não teve o êxito esperado, entre outrosmotivos pela falta de infra-estrutura e de telecomunicações.

Na Costa Rica, o IME surgiu em 1972 com a criação de um regimetarifário especial concedido a empresas dedicadas à montagem ou à ex-portação de produtos não-tradicionais. A lei de Promoção das Exporta-ções (1973) criou o Centro de Promoção de Exportações (Cenpro) e ode Regime de Admissão Temporária, entre outros incentivos. A modali-dade ZF foi instituída em 1981 com a promulgação da Lei de Zonas Fran-cas Processadoras e de Parques Industriais, cujos acionistas são exclusi-vamente as instituições estatais.

Em El Salvador, o esquema se iniciou com uma Lei de Promoção deExportações (1974) e com uma ZF de propriedade e de administraçãoestatal. A Zona Franca de San Bartolo acolheu catorze empresas em 1979,que, em conjunto, geraram quase 4.200 empregos diretos. Atualmenteestá se desenvolvendo a Zona Franca de Pedregal.

Por último, em Honduras criou-se o Regime de Zonas Livres (Zoli),em 1976, e se instalou a primeira ZF em Puerto Cortés, entidade estataladministrada pela Empresa Portuária. Em 1979, autorizou-se a instala-ção das Zolis em outras cidades do país, entretanto, a atividade não al-cançou o desenvolvimento e o dinamismo esperados.

No intuito de modernizar a regulamentação e elevar o dinamismoda atividade maquiladora na região e para que as exportações de manu-faturados se convertessem num dos eixos principais do desenvolvimento,a Costa Rica, por exemplo, modificou o esquema legal e institucional a

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As políticas macroeconômicas e o entorno jurídico-institucional...

partir de 1983. Nesse ano, criou-se o Programa de Exportações e Inves-timentos da Presidência da República. No setor privado, instituiu-se aCoalizão Costarriquenha de Iniciativas de Desenvolvimento (Cinde) como objetivo de atrair o investimento estrangeiro, principalmente median-te a modalidade da maquila.

Em 1996, foi criada a Promotoria do Comércio Exterior (Procomer),como uma nova instituição oficial para a promoção das exportações e deinvestimentos. A Procomer resultou da fusão do Cenpro, da CZF e doConselho Nacional de Investimentos, tradicionalmente vinculados aocomércio exterior (Buitelaar et al., 1999).

O modelo jurídico, em Honduras, foi igualmente modificado com aintrodução do Regime de Importação Temporário (RIT), em 1984, e, em1987, com o do Regime de Zonas Industriais de Processamento para aExportação (ZIP). A atração do investimento estrangeiro para as zonasfrancas tem sido impulsionada pela Fundação para o Investimento e oDesenvolvimento Econômico (Fide).

Já em El Salvador, a participação do capital privado nacional ou es-trangeiro, tanto em termos de propriedade quanto de administração daszonas francas, teve início em 1986. A partir de 1990, o funcionamentoda ZF e as atividades correlatas passaram a ser regulados pela Lei doRegime de Zonas Francas e Recintos Fiscais, com a qual se produziu umaexpansão acelerada da indústria maquiladora. A modalidade “recinto fis-cal” permite que qualquer empresa do setor da indústria manufatureiratradicional se converta em maquila e goze das isenções fiscais oferecidaspelo regime de ZF. As ZFs coexistem com os “recintos fiscais”, que seestendem por todo o território nacional (Gitli, 1997).

Em 1982, foi criada na Guatemala uma nova instituição privada depromoção das exportações (Gexpront), e, em 1984, conseguiu-se modi-ficar a legislação, tornando-a aplicável às atividades de maquila. Em 1989,chegou-se à definição de um regime jurídico mais completo, estabelece-ram-se os regimes de admissão temporária, de devolução de direitos, dereposição de direitos para exportadores indiretos e de reposição com fran-quia alfandegária.

Em síntese – e em contraste com a maquila do México –, o IME cen-tro-americano não conta com um programa específico de promoção, já que,naquele país, a legislação reconhece e aprova “o programa de maquila”.

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Brasil, México, África do Sul, Índia e China

A América Central experimentou diversos esquemas e modalidades; unsde estagnação, outros de lento crescimento, e, a partir dos anos 90, decrescimento acelerado. Do quadro a seguir, deduz-se que, na época emque surgiu a atividade da maquila, a estratégia centro-americana de pro-dução estava quase totalmente voltada para o mercado interno; isso expli-ca o pouco êxito da política de promoção de plataformas de exportação,que exigiu a disposição gradual de uma nova política econômica cada vezmais voltada para o mercado externo.

Em resumo, na América Central, distinguem-se atualmente três es-quemas legais, com diferentes combinações, que amparam a atividadede maquila: o regime de ZF, o regime de admissão temporária e o regimedevolutivo de direitos. Embora as definições legais difiram ligeiramentede um país para outro, os três esquemas apresentam traços muito seme-lhantes e podem fundir-se em duas modalidades: o regime de ZF ou dezonas de processamento para a exportação e o regime de admissão tem-porária. A principal diferença entre esses dois sistemas reside no fato deque a maquila alojada nas ZFs encontra-se em áreas extra-aduaneiras es-pecificamente delimitadas, ao passo que a segunda abre a possibilidadede transformar qualquer projeto produtivo com atividade de exportaçãoem ZF de fato (Buitelaar, 1999).

Conclusões e perspectivas

Em 1995, depois de sofrer a pior crise econômica em mais de ses-senta anos, a economia mexicana começou a se recuperar paulatinamente.Boa parte da rápida resposta do aparato produtivo se deve ao importantepeso que as exportações adquiriram no PIB e ao novo e pronto acesso daeconomia a recursos financeiros dos mercados internacionais de capital.

Estima-se que a produção crescerá mais de 3%, em 1999, e que ainflação seguirá em baixa (13%), o que há de garantir o cumprimento dameta oficial, como no caso do déficit público (1,25% do PIB). Antecipa-setambém uma diminuição dos déficits comercial e de conta corrente e secalcula que o ingresso de investimento estrangeiro direto girará em tornodos 10 bilhões de dólares.

Fatores extra-econômicos vinculados aos processos eleitorais de ju-lho de 2000 podem incidir sobre o panorama econômico. O desempenho

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As políticas macroeconômicas e o entorno jurídico-institucional...

satisfatório da economia nos próximos meses é crucial não só para redu-zir a probabilidade de um novo episódio especulativo de final de sexênio,mas também para assegurar a tranqüilidade política no ambiente eleito-ral. Contudo, as condições da economia hoje parecem estar corretamenteorganizadas para evitar um desaprumo em 2000.

Em primeiro lugar, as finanças públicas estão próximas do equilí-brio e, não obstante a proximidade das eleições, prevê-se que a disciplinafiscal será mantida. Em segundo, o esquema de flutuação do câmbio devepermitir, em princípio, contornar possíveis ataques especulativos con-tra o peso. Logo, o ritmo moderado de crescimento que se perscruta contri-buirá para aliviar as pressões sobre o déficit comercial e, portanto, sobrea paridade cambial. Terceiro, as reservas internacionais do país alcançamníveis de recorde histórico; e, quarto, os fluxos de investimento estran-geiro direto mantêm o dinamismo, o que reduz a vulnerabilidade do dé-ficit em conta corrente.

Em síntese, considerando as adversidades do contexto global, a eco-nomia mexicana obteve um desempenho satisfatório nos últimos anos.Todavia, subjazem empecilhos estruturais que podem se evidenciar naconjuntura a curto prazo, como a debilidade do sistema bancário, a hetero-geneidade da modernização do aparato industrial, a fragilidade das fi-nanças públicas (altamente dependente do petróleo e com uma baixacarga tributária) e a alta elasticidade resultante das importações. Ademais,continuam pendentes de resolução importantes desequilíbrios sociais quese refletem nos elevados níveis de subemprego e de pobreza.

A curto e médio prazos, a agenda de desenvolvimento deve se con-frontar com a solução de problemas vinculados entre si, tocantes ao forta-lecimento da capacidade do país de sustentar um alto crescimento; nes-se sentido, requer-se: o restabelecimento das funções de intermediaçãobancária, a recuperação da poupança interna, elemento essencial da es-tratégia de financiamento do desenvolvimento; o fortalecimento da ca-pacidade da economia de gerar empregos produtivos e bem remunera-dos; e a recuperação do poder de compra dos assalariados para reativar ademanda interna e propiciar a melhora dos setores de extrema pobreza.

Na década de 1990, a atividade de maquila de vestuário foi fundamen-tal para o maior desempenho exportador dos países centro-americanos,

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especialmente no mercado dos Estados Unidos. Nele, as exportaçõescentro-americanas de roupas superaram os 5 bilhões de dólares em 1998,representando cerca de 57% da estrutura das exportações, com quase22% de participação de mercado nas importações dos Estados Unidos.

O crescimento do setor exportador também se reflete em outrossetores como, por exemplo, o de componentes de maquinaria eletroele-trônica, e no caso do México, a indústria automotiva. Todos esses setoresaproveitam as condições preferenciais de acesso ao mercado norte-ame-ricano, assim como os estímulos criados pelas legislações nacionais con-cernentes à maquila. Por esse motivo, o avanço dos países estudados nosmercados internacionais associa-se em grande medida a esse fenômeno.

As atividades econômicas classificadas como de maquila têm comocaracterística o fato de serem etapas de um processo produtivo realiza-do em países com oferta de mão-de-obra barata. Por conseguinte, refe-rem-se a processos intensivos de mão-de-obra com baixa especialização.Nos países como os centro-americanos, continua-se aproveitando as fa-cilidades alfandegárias específicas do país emissor e os incentivos fiscaisdo país receptor.

Em geral, conclui-se que, para os países centro-americanos, existemdiferentes modos de alcançar um alto grau de exportação; é óbvio quenem todos contribuem igualmente com a estratégia de desenvolvimentosustentável e eqüitativo. A evidência empírica leva a afirmar que só quan-do compreende a incorporação da tecnologia e o aumento da produtivi-dade é que o dinamismo exportador se converte no eixo do desenvolvi-mento sustentável e da eqüidade. O ritmo de crescimento da maquila deexportação de vestuário mostra uma tendência de menor dinamismo nosúltimos anos em razão da maior concorrência internacional, tanto quepaíses como a Costa Rica vêm adotando opções alternativas, como a in-dústria de alta tecnologia, para compensar a perda de dinamismo. Semembargo, os problemas de encadeamento interior e de integração com aindústria local continuam sendo um desafio não só teórico, como tam-bém prático para a política econômica.

No plano institucional, verificaram-se diversos esquemas de apoioinstitucional e jurídico com êxitos relativos, mas sem políticas verdadei-ras e/ou programas de apoio específico tendentes a eliminar ou, pelomenos, a reduzir a tendência antiexportadora. Os programas nacionais

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de competitividade constituem esforços importantes, porém pouco ma-duros e insuficientes, integrados às políticas comerciais e de promoçãode exportações atualmente em voga na região.

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13Transferência de tecnologia e a

integração positiva na economia global

Assad Omer1

Introdução

No economia global de hoje, a capacidade de controlar a tecnologiana produção é um determinante vital para que um país concorra com êxitono mercado global. De fato, os avanços tecnológicos, sua rápida difusãoe a mudança que os acompanham rumo à concorrência global exigiramuma busca de estratégias alternativas, não só por parte das empresas,mas também dos formuladores da política, para reagir mais efetivamen-te às alterações impostas pela nova economia global (Omer, 2001). Nes-se contexto, minha apresentação examinará rapidamente essas altera-ções e sublinhará as tendências gerais nas políticas governamentais e nasestratégias empresariais que possibilitaram às empresas florescer, cres-cer e competir no mercado global.

1 Diretor do Departamento Internacional de Políticas de Investimento e Capacitação daUnctad (Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento).

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A cooperação entre as empresas

A importância da colaboração e dos arranjos cooperativos entre asempresas, na transferência de tecnologia e na criação de capacidadetecnológica, não cessa de aumentar há quase duas décadas. Essa tendênciasurgiu em virtude da necessidade de compartilhar riscos e recursos a fimde tirar vantagem das novas oportunidades no mercado global em per-manente expansão. É por isso que a produção de pesquisa e desenvolvi-mento, do marketing e da organização empresarial tem sido fortementeinfluenciada pelos avanços tecnológicos. As despesas em pesquisa e de-senvolvimento cresceram muito em razão da percepção cada vez maisnítida da importância da inovação para a competitividade. Embora asempresas empreendam mais pesquisa e desenvolvimento internamen-te, muito se tem feito mediante vínculos cooperativos com outras fir-mas. Também se desenvolvem liames com as universidade por causa dograu em que as novas tecnologias se tornaram dependentes da pesquisabásica e da extensiva fertilização cruzada das disciplinas científicas.

Ademais, considera-se que as fusões e as aquisições são meios deter acesso à tecnologia da empresa adquirida, de realizar economias deescala e de escopo, de criar a necessária base de renda da atividade depesquisa e desenvolvimento e de penetrar rapidamente mercados dis-tantes, melhorando tanto o acesso quanto a distribuição no mercado glo-bal. Essas tendências floresceram também por causa da abreviação dotempo de processamento e de ciclo de vida do produto, coisa que tornouo tempo um fator crítico a ser considerado na concorrência global.

A cooperação entre as empresas ofereceu atalhos para as que pro-curam melhorar sua eficiência de produção, qualidade e desempenho.Além disso, a convergência de tecnologias usadas em diferentes setores,em mercados outrora separados, tornaram ainda mais atraentes as venturesde colaboração. Todos esses fatores convergentes levaram as empresas aacreditar que compartilhar riscos e recursos é uma estratégia cada vezmais desejável.

Tais tendências afetaram significativamente o processo de transfe-rência de tecnologia. Tradicionalmente, esta foi concebida como um pro-cesso de capacitação para todos os países. Conquanto seja verdade que atransferência de tecnologia está na base do desenvolvimento econômico

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Transferência de tecnologia e a integração...

e pode ser fomentada pelo apoio público e mediante incentivos específi-cos, ela vem se tornando cada vez mais o resultado da concorrência nomercado global. Esse processo de transferência é determinado pelas es-tratégias de mercado adotadas pelos produtores e/ou proprietários dastecnologias. Nesse sentido, os direitos de propriedade intelectual sãoconsiderados um elemento-chave do pensamento estratégico das empre-sas como um importante meio por elas utilizado para salvaguardar seusativos tecnológicos.

Em face desse desenvolvimento, pode-se dizer que, em muitos casos,o processo de transferência de tecnologia baseia-se nas estratégias demercado das empresas e, nesse aspecto, o papel do governo se restringea criar condições de mercado capazes de atrair novas tecnologias.

Em tal contexto, as novas formas de colaboração diferem das antigasgerações, entre as empresas dos países desenvolvidos, e das novas for-mas de investimento estrangeiro que surgiram nos países em desenvolvi-mento nas décadas de 1960 e 1970 (por exemplo, os acordos de licencia-mento e know-how, os contratos turnkey, e as joint ventures). O que distingueos acordos de colaboração das formas tradicionais de transferência detecnologia é o fato de que os parceiros na cooperação são tanto recepto-res quanto fornecedores de tecnologia. Portanto, a permuta de informaçãoe conhecimento tecnológicos baseada na reciprocidade é institucionali-zada por contrato. A cooperação tecnológica vem ocorrendo principal-mente entre empresas com certo grau de capacidade tecnológica e, emparticular, nos setores de alta tecnologia. A onda de semelhante coope-ração, abrangendo a cooperação em pesquisa e desenvolvimento, não seestende significativamente às empresas dos países subdesenvolvidos.

Ainda que seja mais comum estes últimos se envolverem em jointventures ou colaborações tecnológicas (como os acordos de subcontra-tação), o número e a abrangência dessas composições continuam sendorelativamente limitados em comparação com os dos países desenvolvi-dos. Todavia, há exceções. Empresas de diversos países da Ásia, da Áfricae da América Latina estão envolvidas numa rede de acordos de risco e decolaboração tecnológica com firmas situadas nos países desenvolvidos,como confirmam as constatações preliminares dos estudos a que nosreferiremos mais adiante. Trata-se do resultado de um significativo pro-cesso de aprendizado ocorrido nos países em desenvolvimento. Muitas

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empresas adquiriram a capacidade de negociar os termos e as condiçõesdos contratos de transferência de tecnologia e de estabelecer convêniosde cooperação a longo prazo. As empresas converteram-se em compra-doras no mercado de tecnologia e também aprenderam a procurar fon-tes alternativas de tecnologia e a participar de ventures de cooperação. Háainda um grande número de pequenas e médias empresas (PMEs) quese tornaram compradoras no mercado internacional de tecnologia e sãocapazes de usar e aperfeiçoar a tecnologia assim adquirida. As firmasreceptoras também se tornaram mais sensíveis para a importância dotreinamento pessoal, inclusive no exterior, e geralmente encontram for-necedores dispostos a cooperar desse modo. Conseqüentemente, algu-mas delas, em vários países subdesenvolvidos, parecem estar transferindoseu objetivo comercial de mera aquisição de conhecimento técnico parao de aquisição de capacidade tecnológica.

Da mera aquisição de tecnologiapara a criação da capacidade

A capacidade de controlar a tecnologia na produção torna-se um de-terminante importantíssimo da capacidade de um país de concorrer nomercado global. Isso vale não só para as nações tecnologicamente maisavançadas, como também para as linhas tradicionais de produção. Empoucas palavras, a construção da capacidade nacional de gerar e gerir oconhecimento tecnológico é a própria essência do desenvolvimento sus-tentável numa economia mundial em rápida globalização. A questão éde que tipo de políticas e instituições os países em desenvolvimentonecessitam para aumentar a capacidade tecnológica e tirar vantagem dasoportunidades oferecidas pelo processo de globalização.

Para apresentar alguns elementos de resposta, nós nos propusemosa empreender estudos de caso de setores em que firmas selecionadas, nospaíses em desenvolvimento, se mostraram aptas a criar novas capacidadesprodutivas e concorrer com sucesso no mercado global. Cada setor repre-senta um exemplo de vantagem comparativa criada, isto é, em que as do-tações de fator de um país foram modificadas por meio do investimentoem capital físico, em recursos humanos e na construção da capacidadede desenvolver e usar novas tecnologias e integrar-se ao mercado global.

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Transferência de tecnologia e a integração...

Deu-se ênfase às empresas, pois elas são os principais investidorese agentes de mudança tecnológica. É sua capacidade de ter acesso aoconhecimento, de inovar produtos e aperfeiçoar o processo de produçãoque determina o crescimento das vendas e dos lucros. Decisiva para acompreensão do processo de atualização é a identificação dos fatores noâmbito da empresa, assim como as políticas e instituições governamentaisque lhes possibilitam florescer, crescer e concorrer no mercado global.

A pesquisa se concentrou em medidas específicas que as firmas ado-taram para aprimorar o dinamismo tecnológico como:

• investimento na capacidade das instalações e na aquisição de equi-pamento;

• desenvolvimento de aptidões e o treinamento do trabalhador;• pesquisa e desenvolvimento de novos mercados; e• cooperação com outras empresas, inclusive nas despesas em pesqui-

sa e desenvolvimento e em títulos de propriedade intelectual.

Como se indicou anteriormente, as políticas e as regulamentaçõesgovernamentais têm um papel no desenvolvimento, na transferência ena difusão de tecnologias. Por conseguinte, a investigação tambémenfocou as políticas e medidas estimuladoras do processo de construçãode capacidade das empresas que incluem:

• o estabelecimento de normas e padrões técnicos;• a criação de instituições encarregadas da promoção da cooperação

empresa-comunidade para a absorção de tecnologia, sem interferirdiretamente no processo de transferência e comercialização detecnologia; e

• a criação de esquemas de incentivo destinados a facilitar ou aceleraro desenvolvimento e a aplicação da tecnologia. Aqui se incluem osincentivos fiscais, os empréstimos preferenciais, as garantias finan-ceiras e medidas similares visando apoiar as empresas.

Reconhecendo que o investimento estrangeiro direto (IED) é umimportante veículo de transferência de tecnologia, voltou-se a atençãoinclusive para o IED em setores selecionados. Também aqui têm impor-tância as políticas governamentais, pois se trata do estabelecimento

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crescente de parâmetros de política nacional dentro dos quais o IED podese expandir, sabendo-se que, uma vez criado o parâmetro adequado,outros fatores hão de determinar os fluxos de IED. Aliás, as leis e as re-gulamentações de liberalização do investimento, criadas por muitos paí-ses, foram um fator que certamente contribuiu para a integração ao mer-cado global. Reconhece-se amplamente que a eliminação das barreirasnacionais ao comércio possibilitou interações mais íntimas além das fron-teiras nacionais não só pelo comércio, mas também pelo IED.

Compreendeu-se que todos os agentes encaram a transferência detecnologia como um processo dinâmico e em evolução que requer adap-tações constantes. Como processo, entende-se que a transferência detecnologia significa tanto o aprendizado bem-sucedido da informação deuma parte com a outra quanto a aplicação efetiva da informação na gera-ção de produtos e serviços comerciáveis. Tais transferências são custo-sas e exigem investimento de ambas as partes num processo com resul-tados incertos.2 Um processo efetivo de transferência de tecnologia temcaráter essencialmente inovador em rotinas de produto, processo, orga-nização e gestão para a firma que adota a nova tecnologia. Um corpo consi-derável de literatura acerca do processo de transferência mostra que eleé fundamentalmente interativo. As empresas são estimuladas a mudarpor meio da interação com outras – fornecedoras ou clientes –, com ins-tituições de pesquisa, associações empresariais e demais agentes. Podem-se incentivar o aperfeiçoamento do design e da qualidade do produto, asadaptações requeridas a fim de utilizar insumos locais e as alterações deprocesso que aumentam a eficiência e reduzem os custos, e, em algunscasos, é possível apoiá-los pela interação entre usuários e produtores ouentre produtores e outros agentes no meio ambiente – locais ou à longadistância. Portanto, um processo efetivo de transferência de tecnologiaexigirá a interação entre empresas usuárias e produtoras e/ou adaptadorasde tecnologia. Como já se observou, o ambiente político é decisivo nacriação de capacidade no âmbito da empresa.

Por outro lado, os governos estão conscientes dos acordos internacio-nais sobre transferência de tecnologia. Por exemplo, os países em desen-

2 Ver Unctad (2001), “Overview” in Compendium of International arrangements on transfer oftechnology (New York and Geneva), United Nations sale publications E.01.D.II.28, p.v.

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volvimento têm expressado, em diversos foros internacionais, o desejode ampliar o acesso a tecnologias estrangeiras e aprimorar sua capacidadetecnológica. Diante da importância atribuída ao acesso à tecnologia e à cons-trução de capacidade, nas últimas duas décadas vários instrumentos in-ternacionais incorporaram disposições específicas sobre a transferênciade tecnologia. Tais provisões têm diferentes objetivos e abrangência, as-sim como diferentes modos de implementação, inclusive o fornecimentode financiamento, e estão sujeitas a diferentes termos e condições. Namaioria dos casos, porém, tais disposições contêm apenas o compromissode “envidar esforços”, não são regras impositivas. A questão que surgeé: até que ponto os países subdesenvolvidos podem se beneficiar dessesinstrumentos. No contexto da transferência de tecnologia e da constru-ção de capacidade, podem-se distinguir nos instrumentos internacionaisduas categorias amplas, ainda que superpostas, de disposições referen-tes à tecnologia. A primeira delas trata do estabelecimento de padrõesde proteção à tecnologia patenteada. Falando em termos amplos, os ins-trumentos de “estabelecimento de critérios” procuram chegar a um equi-líbrio entre os direitos e as obrigações dos criadores e dos usuários po-tenciais da tecnologia.3 Por exemplo, os princípios básicos do AcordoTRIPS4 referem-se aos critérios e objetivos relativos à contribuição que aproteção e a imposição dos direitos de propriedade intelectual (DPIs)devem dar à “promoção da inovação tecnológica e à transferência e disse-minação da tecnologia” (Artigo 7). Esses instrumentos ocupam-se essen-cialmente da disponibilidade, do alcance e do uso dos DPIs. Embora serefira expressamente à transferência de tecnologia, o Acordo TRIPS já foicriticado pela falta de mecanismos que o operacionalizem, e apontou anecessidade de desenvolver mais esse conceito em negociações futuras.

A segunda categoria de instrumentos focaliza medidas mais diretasconcernentes à transferência de tecnologia e à construção de capacidadenos países em desenvolvimento, particularmente nos menos desenvol-

3 Nesse contexto, em razão do sistema de DPIs, as invenções e os trabalhos criativos trans-formam-se em commodities passíveis de ser transferidas mediante transações comerciais,por exemplo, a compra, o aluguel ou a venda, e, assim, têm sua utilização e difusão facilita-das pelo investimento, licenciamento ou por outros acordos de transferência.

4 TRIPS (na sigla inglesa): Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade IntelectualRelacionados com o Comércio. (N. T.)

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vidos. Tais instrumentos tratam mais da transferência de tecnologiasespecíficas, por exemplo, de proteção à saúde humana e ao meio ambien-te, de conservação da biodiversidade e de exploração e utilização dosrecursos marinhos. Enquanto a primeira categoria de instrumentos de-pende essencialmente de medidas nacionais para a sua implementação,particularmente nos países desenvolvidos, a segunda geralmente contacom mecanismos próprios, inclusive provisões para o financiamento. Porexemplo, no Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Deterioram aCamada de Ozônio (o Protocolo de Montreal), a capacidade das partesde cumprir a obrigação de acatar as medidas de controle por ele estabeleci-das depende da implementação efetiva da cooperação financeira e datransferência de tecnologia.5 As diferentes características das disposiçõesrelativas à tecnologia podem ser analisadas em níveis distintos, mas inter-relacionados: as categorias de destinatários, o tipo de tecnologia e osmétodos de implementação.

Algumas constatações práticas

Nos três casos estudados que mencionamos anteriormente,6 podem-se sumariar as constatações preliminares da seguinte maneira.

O primeiro estudo ocupa-se de uma empresa construtora de aviõesbrasileira: a Embraer tornou-se um agente de primeira grandeza no mer-cado internacional graças à bem-sucedida aquisição e adaptação de tec-nologia. No estágio inicial de desenvolvimento, a empresa estatal absor-veu totalmente a tecnologia de design de aeronaves desenvolvida peloInstituto de Pesquisa e Desenvolvimento. Isso deu à nova empresa capa-cidade na fase técnica e organizacional do projeto, permitindo-lhe assumirimediatamente uma posição de organização produtiva. Uma importanteestratégia foi aprender por meio do recrutamento de pessoal altamente

5 Todos os instrumentos mencionados tratam de questões de transferência de tecnologia,seja num nível político amplo, seja num nível setorial específico. Nas décadas de 1970 e1980, porém, houve um esforço para se chegar a um instrumento abrangente na forma do es-boço internacional do Código de Conduta em Transferência de Tecnologia. A proposta deadotar um código internacional de conduta em transferência de tecnologia ilustra clara-mente a preocupação. Vide Patel, Roffe e Yusuf (2000).

6 Esses estudos de caso serão publicados pela Unctad.

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qualificado, o que possibilitou a apropriação de conhecimento e aptidões.Esse aprendizado tornou-se viável graças à íntima colaboração de outrasempresas, inclusive estrangeiras. Desde o começo, a Embraer definiu umaestratégia de adquirir não só know-how, como também e especialmente oknow-why. As estratégias de reestruturação e modernização, juntamentecom a de colaboração com outras empresas, interagiram de modo posi-tivo e recíproco, gerando pontos de pressão e sinergias, criando uma novalógica corporativa e uma arquitetura empresarial dinâmica e competitiva,principalmente na área de redução do custo de produção. Por exemplo,o programa ERJ-145 da Embraer foi levado a cabo com a participação dire-ta de empresas estrangeiras a ela associadas na forma de parceria comcompartilhamento de risco. A coordenação e a administração dos con-tratos e da cadeia de abastecimento foi um importante processo de apren-dizado para ela.

Sua estratégia consiste em fortalecer a rede de abastecimento nointerior do núcleo de tecnologia aeronáutica de São José dos Campos afim de favorecer a motivação de enfoque global dos parceiros: erigir capa-cidade industrial no Brasil, diretamente ou em associação com empresaslocais; subcontratar partes de seus pacotes industriais com firmas locais,dando apoio às atuais fornecedoras da Embraer; e estimular a alavanca-gem da capacidade tecnológica normalmente indisponível no país.

O segundo estudo de caso trata do setor farmacêutico da Índia. Nasúltimas duas décadas, foi impressionante o desempenho exportador dessesetor, sobretudo como fornecedor de bulk drugs genéricas. Isso se devesobretudo ao fato de que as empresas do setor acumularam experiênciana absorção de engenharia de processo.

As principais políticas aplicadas desde os anos 70 conformaram-segradualmente com os novos padrões internacionais que passaram a vi-gorar no meado da década de 1990. A Índia preferiu optar pela introduçãode um regime de patenteação de produto farmacêutico só a partir de 2005.O Regime de Patente Indiano, adotado nos anos 70, era incompatível comas disposições do Acordo TRIPS da OMC. Este exige que as patentes fi-quem disponíveis não só para o processo, mas também para os produtos.Além disso, o termo de proteção disponível só expirará dentro de vinteanos, a partir da data da execução. Adicionalmente, o Acordo TRIPS deter-mina condições detalhadas de licenciamento compulsório ou do uso go-vernamental das patentes sem a autorização do titular.

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No desenvolvimento da indústria farmacêutica, o papel do governofoi decisivo ao fornecer incentivos a empresas comprometidas com ati-vidades de pesquisa e desenvolvimento e com o apoio às instituiçõespúblicas de pesquisa e desenvolvimento. Os incentivos tomaram a for-ma de concessões fiscais e de isenção das leis de controle de preços. Amescla geral de políticas resultou no desempenho relativo da indústriafarmacêutica, ultrapassando todos os setores industriais importantes daÍndia. No presente, graças às competentes instituições de pesquisa edesenvolvimento, o país é auto-suficiente em até 70% das bulk drugs eem quase todas as formulações.

A estratégia adotada pelas empresas líderes como, por exemplo, aRanbaxy Laboratories, assumiu uma presença crescente nos mercadosglobais. Isso foi possível porque ela se erigiu com base na força tecnológicae na cooperação com outras firmas. Essa cooperação iniciou-se como jointventures e evoluiu em alianças estratégicas com algumas das empresasmais importantes no mercado global. A empresa está entre as trinta maio-res do mundo. Já registrou quase trinta patentes em países estrangeiros.

O terceiro estudo de caso examina o desenvolvimento da indústriaautomotiva na África do Sul. Essa indústria altamente protegida e volta-da para o mercado interno transformou-se a ponto de concorrer efetiva-mente no mercado global. No âmbito político, o Programa de Desenvol-vimento da Indústria Automobilística (PDIA) foi um instrumento datransformação de um importante programa de substituição do início dadécada de 1960 em uma indústria orientada para a exportação. O apoioinstitucional contribuiu significativamente com a inovação e o desenvol-vimento tecnológico a fim de corresponder aos altos padrões técnicosnecessários para concorrer no mercado global. A cooperação extensivacom empresas estrangeiras, fabricantes tanto de veículos como de com-ponentes, facilitou a transferência de know-how e o desenvolvimento daorganização e deu acesso ao mercado internacional.

Sendo uma abordagem política específica, a indústria automobilís-tica está empenhada em desenvolver uma vantagem competitiva. Essaexperiência especificamente empresarial mostra que é possível erigir avantagem competitiva com base no desenvolvimento tecnológico (em ter-mos de produto ou de processo), na eficiência produtiva e organizacio-nal e nos padrões de qualidade. Os fatores fundamentais que contribuíram

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com a integração da indústria às redes globais foram a orientação do papelapoiador das instituições e o acesso aos mercados internacionais pelosvínculos com empresas estrangeiras (empresa-mãe).

A África do Sul vem ajustando gradualmente seus programas de apoioà indústria automobilística, que muito ajudaram a expansão das expor-tações, a fim de se adequar às normas da OMC. Por exemplo, o esquemade complementações importação-exportação dos programas de conteú-do local foi considerado incompatível com os acordos da OMC que en-traram em vigor em 1995. Os programas de conteúdo local estão parti-cularmente incluídos na lista ilustrativa do Acordo sobre Medidas deInvestimento Relacionadas com o Comércio (TRIMs) como medidas in-compatíveis com a obrigação de tratamento nacional determinadas peloparágrafo 4 do Artigo 3 do GATT de 1994. Por isso, as autoridades daÁfrica do Sul eliminaram as exigências de conteúdo local em 1965.

Vista no âmbito da empresa, a estratégia geral enfoca:

• orientação global (processos impelidos pelo conhecimento);• aumento da competitividade, tendo em mente o mercado global;• melhora dos vínculos de cooperação com outras empresas;• garantir a cadeia de abastecimento; e• formação do aprendizado e da capacitação.

A criação de capacidades tecnológicas levará à seguinte interaçãoentre políticas, instituições de apoio e acordos de cooperação, inclusivecom os fornecedores.

P Infra-estruturas de apoio e serviços

O ↓L → Capacidade tecnológica ↔ Fornecedores e subcontratantesÍT ↑IC Acordos de cooperaçãoAS

Nos três casos estudados, é evidente, nesse estágio preliminar de exe-cução, que as empresas que contam com um particular ambiente de apoio

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estenderam suas atividades além da mera fabricação. Levaram o marketingseriamente em conta, estabelecendo vínculos com outras empresas eaprofundando sua capacidade que foi instrumental na bem-sucedidaintegração ao mercado global.

Além da Fabricação

Marketing Empresas de ligação e Subsetores de capacitaçãoDesign instituições de quantidade e

Desenvolvimento pesquisa e qualidade do produto desenvolvimentoDistribuição

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SOBRE O LIVRO

Formato: 16 x 23 cmMancha: 27 x 45 paicasTipologia: Iowan Old Style 10,5/14Papel: Offset 75 g/m2 (miolo)Cartão Supremo 250 g/m2 (capa)1a edição: 2002

EQUIPE DE REALIZAÇÃO

Coordenação GeralSidnei Simonelli

Produção GráficaAnderson Nobara

Edição de TextoNelson Luís Barbosa (Assistente Editorial)Carlos Villarruel (Preparação de Original)Renato Potenza eAda Santos Seles (Revisão)

Editoração EletrônicaLourdes Guacira da Silva Simonelli (Supervisão)Plano Editoração (Diagramação)

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