depressão ao longo da história

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1 Depressão ao longo da história Thaís Rabanea de Souza Acioly Luiz Tavares de Lacerda INTRODUÇÃO O termo depressão é relativamente novo na história, tendo sido usado pela primei- ra vez em 1680, para designar um esta- do de desânimo ou perda de interesse. Em 1750, Samuel Johnson incorporou o ter- mo ao dicionário. O desenvolvimento do conceito de depressão emergiu com o de- clínio das crenças mágicas e supersticio- sas que fundamentavam o entendimento dos transtornos mentais até então. Desse modo, a história do conceito de depressão tal como o concebemos na atualidade tem seu início no século XVII. Entretanto, sua origem pode ser inferida a partir das men- ções de alterações de humor ao longo da história, sobretudo nas referências ao es- tado conhecido como melancolia. 1 As primeiras descrições de estados de alteração do humor podem ser encon- tradas nas escrituras bíblicas e na mito- logia. A visão pré-socrática do homem, compartilhada de modo geral por gre- gos, hebreus, egípcios, babilônios e per- sas, compreendia o adoecimento físico e mental a partir de uma narrativa mítica e religiosa, atribuindo a uma entidade di- vina a etiologia de todos os males. A pas- sagem da narrativa mítica ao discurso ra- cional, consolidada com as contribuições de Sócrates (Atenas, 469 a.C.-399 a.C.), viabilizou a transferência do entendimen- to da doença do âmbito divino para a na- tureza, inaugurando, assim, o modo cien- tífico de pensar. ANTIGUIDADE E IDADE MÉDIA Atribui-se a Hipócrates (Cós, 460 a.C.-370 a.C.) e seus seguidores a diferenciação en- tre medicina e filosofia, bem como a tran- sição da explicação da doença centra- da em termos sobrenaturais para termos científicos e, ainda, a superação da teo- ria cardiocêntrica de Aristóteles (Estagira, 384 a.C.-Atenas, 322 a.C.), a qual consi- derava o coração como o centro das emo- ções humanas, descrevendo o cérebro co- mo o “centro” das funções mentais e, por- tanto, de suas patologias. Com base no conceito dos quatro fluidos – bile, fleug- ma, sangue e bile negra –, Hipócrates de- senvolveu seu entendimento das doenças como manifestação de um desequilíbrio entre esses fluidos e também seu mode- lo dos quatro humores – colérico, fleug- mático, sanguíneo e melancólico –, que, segundo ele, explicariam a regulação das

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1Depresso aolongo da histriaThas Rabanea de Souza Acioly Luiz Tavares de LacerdaINTRODUOOtermodepressorelativamentenovo na histria, tendo sido usado pela primei-ravezem1680,paradesignarumesta-do de desnimo ou perda de interesse. Em 1750,SamuelJohnsonincorporouoter-moaodicionrio.Odesenvolvimentodo conceito de depresso emergiu com o de-clniodascrenasmgicasesupersticio-sasquefundamentavamoentendimento dos transtornos mentais at ento. Desse modo, a histria do conceito de depresso tal como o concebemos na atualidade tem seu incio no sculo XVII. Entretanto, sua origem pode ser inferida a partir das men-es de alteraes de humor ao longo da histria, sobretudo nas referncias ao es-tado conhecido como melancolia.1Asprimeirasdescriesdeestados de alterao do humor podem ser encon-tradasnasescriturasbblicasenamito-logia.Avisopr-socrticadohomem, compartilhadademodogeralporgre-gos,hebreus,egpcios,babilnioseper-sas,compreendiaoadoecimentofsicoe mentalapartirdeumanarrativamtica e religiosa, atribuindo a uma entidade di-vina a etiologia de todos os males. A pas-sagem da narrativa mtica ao discurso ra-cional,consolidadacomascontribuies deScrates(Atenas,469a.C.-399a.C.), viabilizou a transferncia do entendimen-to da doena do mbito divino para a na-tureza, inaugurando, assim, o modo cien-tfico de pensar.ANTIGUIDADE E IDADE MDIAAtribui-se a Hipcrates (Cs, 460 a.C.-370 a.C.) e seus seguidores a diferenciao en-tre medicina e filosofia, bem como a tran-siodaexplicaodadoenacentra-daemtermossobrenaturaisparatermos cientficose,ainda,asuperaodateo-ria cardiocntrica de Aristteles (Estagira, 384a.C.-Atenas,322a.C.),aqualconsi-derava o corao como o centro das emo-eshumanas,descrevendoocrebroco-mo o centro das funes mentais e, por-tanto,desuaspatologias.Combaseno conceitodosquatrofluidosbile,fleug-ma, sangue e bile negra , Hipcrates de-senvolveu seu entendimento das doenas comomanifestaodeumdesequilbrio entreessesfluidosetambmseumode-lodosquatrohumorescolrico,fleug-mtico,sanguneoemelanclico,que, segundo ele, explicariam a regulao das Quevedo.indd 17 24/9/2012 14:08:51Quevedo & Silva (orgs.) 18emoes e a formao do carter dos in-divduos.Fundamentadonessemodelo, Hipcratesformulouaprimeiraclassifi-cao nosolgica dos transtornos mentais registradanahistria:descreveueno-meou a melancolia, a mania e a paranoia. Aetimologiadotermomelancoliame-lan significa negro, e cholis, bile , revela a viso de Hipcrates: o quadro clnico da melancolia em que se observava averso comida, falta de nimo, inquietao, ir-ritabilidade, medo ou tristeza que perdu-ravam por longo perodo seria resultan-te de uma intoxicao do crebro pela bi-lenegra.Hipcratesdiferencia,ainda,a doena melancolia da personalidade me-lanclica.2Em sua obra Problemata, Aristteles corroboraomodelopropostoporHip-crates e acrescenta que, enquanto o exces-so de bile negra resulta em estados graves dedoenamental,umaquantidademe-nor ou um desequilbrio menos acentuado resultaemumtemperamentomelancli-co. Aristteles sustenta que existe uma re-lao da inspirao, do brilhantismo e da realizao com a melancolia.3O sculo II a.C. marca a ascenso do ImprioRomano.Adespeitodasubmis-so total das cidades gregas, as ideias hi-pocrticascontinuamorientandoafor-maoeaatuaodosmdicosnaAn-tiguidade.Nessemomentohistrico, destacam-seascontribuiesdeGale-no(Prgamo,128-Roma,201),querea-firma a teoria dos quatro humores postu-ladaporHipcrates,associandoosqua-tro elementos (ar, fogo, terra e gua) com fluidos(bileamarela,bilenegra,fleug-maesangue),qualidades(quente,mi-do, frio e seco) e humores (colrico, fleug-mtico, sanguneo e melanclico). Segun-do Galeno, citado por Cords2 e Radden,3 obalanoentreosfluidoseasqualida-desformariaostraosdotemperamento de um indivduo e as suas predisposies, enquantoumdesequilbriosignificati-voprovocariaasdoenas.Galenoprefe-ria utilizar o termo humor melanclico, ou sangue melanclico, a bile negra e susten-tava que o humor, ou o sangue melanc-lico, poderia ocorrer em diferentes partes do corpo e, portanto, no estaria restrito ao crebro, como postulado por Hipcra-tes.Galenoclassificouamelancoliaem trs tipos, com base na localizao do cor-po onde supostamente estaria concentra-do o desequilbrio: no crebro, na corren-tesanguneaounoestmago.Enfatiza-va,ainda,que,emboracadacasotenha assuasespecificidades,omedoeafalta de nimo eram os sintomas cardinais. Na poca,ostratamentosindicadoseramo usodeplantasmedicinaiscomohelbo-ro,meimendro,mandrgoraebeladona, edepurgantesparaaeliminaodabi-le negra.2,3NosculoV(476d.C.),ocorreua quedadoImprioRomanodoOcidente, marcandoofimdaAntiguidadeeoin-ciodaIdadeMdia.Opensamentogre-co-romano,incluindoassuascontribui-esparaacinciaeparaamedicina, abandonadoesubstitudoporumaviso religiosa edificada sobre a ubiquidade de uma entidade divina e um modelo mani-questa.Ostranstornosmentaispassam aserinseridosnademonologiadapo-ca.OmongeIonnesCassianusintroduz otermoacdia,palavradeorigemgrega quesignificaestadodedescuido,para designar estados variados de apatia, pre-guia, indolncia, negligncia e enfraque-cimento, de modo que essa palavra pode ser considerada um termo medieval para amelancolia.SoGregrioMagno(Ro-ma, 540-604) inclui a acdia entre os se-tepecadoscapitais,logo,sujeitopeni-tncia.SoTomsdeAquino(Roccasec-ca,1225-Fossanova,1274),apesarde seuprofundomoralismo,demonstrou-se mais benevolente com os melanclicos. Is-so porque a vitria sobre a acdia trazia o contentamento, a maior de todas as virtu-Quevedo.indd 18 24/9/2012 14:08:51Depresso 19des,queexpressavaauniomsticacom Deus, e, portanto, a penitncia para o pe-cado da acdia foi atenuada. Essa postura perdurouat1233,quandoteveincioo perododeInquisionaIgrejaCatlica, umapocaemquesecondenavamor-te tanto os mais proeminentes intelectuais que ousavam refutar os dogmas religiosos quanto os doentes mentais, seja por moti-vosherticos,sejapormotivosdemono-lgicos.EncurraladospelaIgrejaCatli-ca, muitos pensadores encontraram ref-gionomundorabe,ondeasprincipais obras cientficas e filosficas greco-roma-nas foram traduzidas e continuaram sen-do aprimoradas. A teoria galnica dos hu-mores continuou prevalecendo no mbito do entendimento da doena mental, sen-do a melancolia o transtorno psiquitrico maisfrequentementeidentificado.Nes-secontexto,destaca-seopensadorpersa Avicenna(980-1037),cujosescritosre-velam como a teoria humoral e as descri-es greco-romanas dos sintomas da me-lancolia viajaram da Europa Ocidental pa-ra o mundo rabe. Avicenna defende que apresenaanormaldebilenegrapro-vocadaporumprocessodesuperaqueci-mento e sedimentao e postula uma lis-ta de sinais e sintomas da melancolia que vodesdedesconfortosfsicosatdese-quilbriosmentais,comomedosirracio-nais, prejuzo no julgamento, falsas cren-asepercepesdistorcidasdarealida-de.Outraimportantecontribuionesse perodoaobradomdicorabeIshaq Ibn Imran, intitulada Melancholia, em que se encontra uma descrio dos principais sintomasdadoena,comoomutismo,a imobilidade, distrbios do sono, agitao, desnimo, choro e risco de suicdio. Ain-da na Idade Mdia, a freira alem Hilde-gard (1098-1179) foi pioneira ao apontar amelancoliaemseusestudossobrecau-sasecurasparaasdoenas,assimcomo diferenasnamanifestaodestaentre homens e mulheres.3IDADE MODERNAO final da Idade Mdia inaugurou a Ida-de Moderna, consagrando o incio de um intensoesignificativomovimentosocial, culturaleintelectual:oRenascimento. No h consenso sobre a cronologia desse momento histrico; estima-se que abran-jaossculosXIV,XVeXVI.Avisoreli-giosa e maniquesta que marcou o pensa-mento medieval convertida em uma vi-so humanista, e a doena mental passa a ser compreendida prioritariamente a par-tir de uma perspectiva biolgica, filosfi-caepsicolgica.Naeramoderna,teste-munha-se o perodo de transio da per-cepo da melancolia baseada no modelo humoralgalnicoparaacinciamoder-na,naqualaalquimiasubstitudape-la qumica e os humores so substitudos por nervos. Dentre as principais contribui-es, sobressai-se a obra do italiano Mar-slioFicino(1433-1499),intituladaTrs livros da vida, na qual ele apresenta o seu aprendizadosobreascausasecurasdas doenas e oferece aconselhamentos sobre sade e bem-estar. Ficino elabora sua te-oriaacercadamelancoliacombaseem fundamentaesastrolgicas,sobretudo relacionando o quadro com o planeta Sa-turno, e ressalta o achado de Aristteles, estabelecendo uma relao entre geniali-dadeebrilhantismocommelancolia.In-fluenciadopelasideiasdeFicino,Robert Burton(1577-1640)elaboraumaobra clssica, intitulada A anatomia da melan-colia(1621),umdosprimeiroslivrosde psiquiatria escritos em ingls. Nessa obra, Burtonenfatizaqueoquadroclnicoda melancoliadeveserdiferenciadodalou-cura,qualhojeatribu mosonomede mania,eapontaparaofatodequeum paciente pode exibir um ou outro quadro em momentos diferentes, observao per-tinente que remete ao quadro que hoje denominadotranstornobipolar.Eledife-rencia tambm a melancolia positiva, co-Quevedo.indd 19 24/9/2012 14:08:51Quevedo & Silva (orgs.) 20mo fonte de sabedoria e inclinao poti-ca, religiosa e filosfica, do estado melan-clico, uma doena crnica, caracterizada por um estado de humor melanclico per-manente,caracterizadopelapresenade medo,sofrimentoeenfado,quedeixao indivduopesaroso,embotado,preguio-so, inquieto e inapto ao trabalho. Burton reconhece ainda a natureza clnica da do-ena e faz meno ao suicdio. As refern-cias etiologia da depresso so difusas e misturamaspectossobrenaturais,fatores hereditriosefatoresambientaisecom-portamentais,comoalimentao,absti-nnciasexualeignomnia.Porfim,Bur-tondefendeenfaticamentequenenhum homemestlivredamelancolia.Muitas das concepes teraputicas propostas no livrosoaindaconsideradasrelevantes, comoaspostulaessobreosconflitos mentais e os mecanismos de represso.3-5AindanaRenascena,merecemser mencionadasascontribuiesdeTeresa devila,ouSantaTeresa(1515-1582), porsuahabilidadenadistinoentrea melancoliaeosestadosmentaisrelacio-nados;eTimothieBright(1550-1615), que publicou, em 1568, o Tratado da me-lancolia,umadasprimeiraspublicaes sobre transtornos mentais fundamentada emconceitosmdicosconsistentes,que tambm inspirou a obra de Burton. O tra-balho de Bright descreveu a distino en-treosestadosdemelancoliacorpreose osestadosespirituaiscaracterizadospor umgrandesofrimentoassociadoasenti-mentos pecaminosos.3O sculo XVIII assinala a ascenso do racionalismo e o incio do Iluminismo. As abstraes dedutivas so substitudas pe-la fundamentao emprica. Trabalhos de grandes anatomistas, como o mdico ale-moHermannBoerhaave(1668-1738), promoveram a substituio da teoria dos humores por um modelo de funcionamen-to mecnico e hidrulico, oriundo da mi-graodafilosofiamecnicadeNewton para o campo da medicina. O mdico es-cocsWilliamCullen(1710-1790),pio-neiro no emprego do termo neurose, refu-ta essa viso mecnica do homem e funda-menta suas teorias sobre sade e doena mental por meio do sistema nervoso. Sua teoriadamelancoliacomoumdesequi-lbrioentrediferentespartesdocrebro, queresultarianocomprometimentode faculdades cognitivas como o julgamento e a articulao de ideias, suplantou a teo-riadoshumoresgalnicavigenteaten-to. O sistema de classificao nosolgica proposto por Cullen descrevia a melanco-lia como uma insanidade parcial, causada por um grau de torpor na atividade do sis-temanervosoqueafetavatantoasensa-oquantoavolio.Cullenfoiprofun-damenteinfluenciadopelofilsofoJohn Locke(1632-1704),quedefendiaasex-perinciascomofontedeconhecimento, sendo o crebro o rgo responsvel pela organizaoeintegraodasimpresses e ideias, de modo a transform-las em co-nhecimento,sendoaloucuraentendida como uma falha nesse processo.4Immanuel Kant (1724-1804), proemi-nentefilsofometafsico,tambmcontri-buiu com uma proposta de classificao dos transtornos mentais, separando-os do qua-droderetardomentaleidentificandotrs entidadesnosolgicasprincipais:melanco-lia, mania e insanidade. Ele descreve ainda a hipocondria, de modo semelhante a como descrita na atualidade, como uma forma de manifestao da melancolia.3NosculoXIX,otermomelanco-lia e as elucubraes relacionadas perde-ram sua valncia no panorama cientfico. O termo depresso, por sua vez, emergiu definitivamente e consolidou-se nas dca-dasseguintescomoentidadenosolgica independente.Desdeento,aedificao da teoria da depresso, fundamentada na investigaocientficaenaobservao clnica, que sustenta as prticas mdicas, tem evoludo.Quevedo.indd 20 24/9/2012 14:08:52Depresso 21Emummomentohistricomarca-do pelo fim da Revoluo Francesa e pelo augedaRevoluoIndustrial,observam--se importantes transformaes no campo da psiquiatria. Em 1827, quando Johann Christian August Heinroth (1773-1842) nomeadoprofessordemedicinapsqui-canaUniversidadedeLeipzig,surgea primeira disciplina de psiquiatria em uma universidade. Uma relevante contribuio de Heinroth foi sua viso holstica da in-terao entre mente e corpo, que o levou a cunhar o termo psicossomtica. Heinro-th descreveu o estado de melancolia pura comoumaparalisiadadisposioacom-panhadapordepresso.Apssuamorte, entretanto,muitosanossepassaramat queadisciplinafosseministradanova-mente.Osacadmicospareciamseopor veementemente a ela, pois se mostravam avessos noo de que a psiquiatria, vista comoumaglomeradodeideiaselusivas, pudesse se consolidar como uma especia-lidade mdica.2,4Na primeira metade do sculo XIX, a relevncia das contribuies da psiquiatria francesa notvel. Dentre as grandes per-sonalidades reveladas, destacam-se os no-mes de Philippe Pinel (1745-1826) e Jean--Etienne Dominique Esquirol (1772-1840). Ao defender a humanizao no tratamen-to,Pinelrevolucionouaabordagemda doena mental. Em 1801, publica o Trate Mdico-Philosophique sur Lalination Men-taleoulaManie,consideradoummarco na histria da psiquiatria. Pinel definiu a melancoliaou,comoelepostulou,del-rio sobre um assunto exclusivo, como uma formaparcialdeinsanidadecaracteriza-daporumnicoouumlimitadonme-ro de delrios. Ele descreveu como princi-pais sintomas da melancolia a taciturnida-de, um ar meditabundo, a desconfiana e a busca da solido. Identificou causas psi-cossociolgicas,umavariedadedeconfi-guraes nervosas individuais e experin-ciasdevida,bemcomopredisposies fsicas e psicolgicas. Defendia que a psi-quiatriadeveriaserbaseadaemdescri-es precisas das diferentes manifestaes clnicas,livredeteoriasideolgicas,fun-damentadaemumarigorosaobservao ecomplementadapelocriteriosoesforo dedelimitaodascaractersticastpicas e de sua respectiva classificao. Com es-sa postulao, revolucionou a abordagem metodolgicadesuapoca.Suainflun-ciaparaospesquisadoresetericosque osucederam,eparaapsiquiatriadeum modo geral, inegvel.3,4,6Esquirol,brilhantediscpulodePi-nel,sustentaqueapsiquiatriadeveser consolidada como uma medicina mental e que,portanto,acompreensodostrans-tornos psiquitricos deve ser baseada em pressupostosneurobiolgicos(anatomia cerebral).Em1838,publicaaobraDes Maladies Mentales, considerada o primei-romarcodivisorantesdeKraepelin.Es-quirolpropeumaalteraodoconceito de melancolia de Pinel, descrevendo-a co-moumaperturbaodasemoeseno dointelectoedividindo-aemlipemania emonomania,primeira aferioconheci-da na histria para a diviso entre trans-tornosdohumor(lipemania)etranstor-nos do juzo (monomania). O termo lipe-mania perdurou na Frana por um tempo, mas no se estendeu Inglaterra ou Ale-manha e, embora no tenha sobrevivido, configurou-se como um indicativo da mu-danadotermomelancoliaparadepres-so. Outra importante contribuio de Es-quirol foi a proposta de sistematizao do tratamentodamelancolia,abrangendoo treinamentoadequadodosmdicosque atuavam em hospitais psiquitricos.2,4Outroimportantenomequemerece ser citado o do psiquiatra norte-america-noBenjaminRush(1745-1813).Homem pragmticoecientistaemprico,Rushfoi consideradoopaidapsiquiatrianorte--americanaededicouseusestudosreti-rada do carter misterioso e supersticioso Quevedo.indd 21 24/9/2012 14:08:52Quevedo & Silva (orgs.) 22que revestia a doena mental at ento, es-forando-se para colocar as doenas men-tais no mesmo paradigma das doenas de outrasespecialidadesmdicas,atribuindo ao crebro o substrato biolgico dos trans-tornos mentais. O trabalho de Rush em re-lao melancolia influenciou estudiosos alm da fronteira de seu pas, como Esqui-rol, por exemplo. Considerando as ideias de Cullen e Kant, Rush descreve a melan-colia como uma insanidade parcial e, fun-damentado no princpio de que a razo central em todo transtorno mental, acres-centaque,emboraaconcepodoqua-dro seja de fato ampla, a melancolia est maisassociadacomapresenadefalsas crenas ou delrios do que com sentimen-tosouemoescomomedooutristeza. Rushintroduziuaindaotermotristema-nia,quesubstituiotermohipocondria, existenteatentoparadesignarformas de insanidade vinculadas a delrios sobre simesmo,coisasoucondies;esubsti-tuiu o termo melancolia por amenomania, referindo-se presena de delrios acerca do resto do mundo que envolve o pacien-te. A influncia de Rush ultrapassou fron-teiras e sculos, porm os termos usados por ele no sobreviveram.3,7Os achados de um personagem cen-tralnocenriodapsiquiatriaalem,Wi-lhelmGriesinger(1817-1868),conside-radopormuitoscomoumdospaisda psiquiatriabiolgica,tambmmerecem destaque,especialmenteporsuagrande influncianaobradeKraepelin.AGrie-singer creditado o feito de colocar a psi-quiatriaalememumaposiodeproe-minncianasegundametadedosculo XIX,lugaranteriormenteocupadopela Frana. Tal feito pode ser atribudo su-peraodasideiasconflitantesquedivi-diam a psiquiatria alem do incio do s-culo XIX em duas vertentes: de um lado, aescolasomtica,querelacionavaos transtornosmentaisaprocessosorgni-cos, tendocomoum deseusmaiores ex-poentesKarlJacobi(1775-1858);e,de outro, a escola psiquista, que atribua s perturbaes emocionais o embasamento das perturbaes anmicas. Em 1845, pu-blicaoTratadosobrepatologiaeterapu-ticadasdoenasmentais,umverdadeiro marconahistriadapsiquiatria.Demo-do geral, ele defendia que o crebro era o rgoafetadonaloucuraequeasdoen-asmentaisseriam,pois,doenasdoc-rebro.AclassificaopropostaporJaco-bi resultava em basicamente trs estados que, em geral, sucediam um ao outro con-forme a progresso da doena: estado me-lanclico, que poderia ser seguido por es-tados de exaltao ou mania e, finalmen-te, pelo estado de demncia crnica. Sua proposta de classificao ficou conhecida comoateoriadapsicosenicae,segun-do essa concepo, a melancolia configu-rava-secomooestgioinicialdadoena mental.3,6AevoluodopensamentodeEmil KraepelineSigmundFreudconsolidou definitivamente a transio da psiquiatria vitoriana do sculo XIX para a psiquiatria moderna no incio do sculo XX. A influn-ciamarcantedessesdoisnomestambm inaugurouumadivisonasprticasem sade mental: de um lado, a psicanlise, aliceradaemfundamentospsicolgicos; e, de outro, a psiquiatria cientfica, funda-mentada em bases neurobiolgicas. A se-gundateveumimpactomuitomaissig-nificativonodesenvolvimentodaprtica em psiquiatria e uma influncia maior nas definiesdasndromedepressiva,utili-zadas tanto no Manual diagnstico e esta-tsticodetranstornosmentais8quantona Classificao internacional das doenas.9 O conceitodedepressodesenvolvidopela psicanlise, por sua vez, contribuiu para o desenvolvimento das psicoterapias e para as representaes da depresso encontra-das na arte e na literatura.4Profundamenteinfluenciadopelas ideiasdeGriesingerepelapsicologiaex-Quevedo.indd 22 24/9/2012 14:08:52Depresso 23perimental de Wilhelm Max Wundt (1832-1920), Emil Wilhelm Magnus Georg Krae-pelin (1856-1926) apresentou, em 1899, o mais forte conceito taxonmico vigente no panorama da psiquiatria mundial. Ele pos-tuloucategoriasdedoenasmentaisde acordo com o grupo de sintomas e a pro-gressodadoena.Suamaisimportante contribuio foi a diviso das psicoses en-trecondiescaracterizadasporaltera-esdepensamentoquepodemresultar emdeterioraoequerequeremtrata-mentocontnuo,quedenominoudemen-tia praecox (demncia precoce); e altera-esdohumornodeteriorantes,geral-mente episdicas e passveis de remisso, quedenominoudepsicosemanaco-de-pressiva.Otermodemnciaprecocere-feria-seaumquadropsicticoassociado aumprocessodedeterioraocognitiva progressiva(demncia)queocorriaem indivduosjovens(precoce),cujoprog-nsticotendiaaserpiorquandocompa-radoaodapsicosemanaco-depressiva. Suaconceituaodicotmicacontrapu-nha-se teoria da psicose nica de Grie-singer. A proposta de Kraepelin de dividir asdoenasmentaisemduasentidades, transtornos afetivos e psicoses esquizofr-nicas,formouasbasesdoentendimento da doena mental por mais de um sculo. Emboracomopassardosanosostrans-tornos psiquitricos tenham sido cada vez mais compreendidos como um continuum e no como entidades completamente se-paradas, a concepo de Kraepelin conti-nuafundamentandoosprincipaismanu-aisderefernciaparaaclassificaode transtornosmentaisatosdiasdehoje. A depresso era entendida, nesse contex-to, como parte do curso da psicose mana-co-depressiva. Kraepelin atribuiu a etiolo-gia da doena a fatores hereditrios, dan-domaiornfaseaosfatoresinternosdo que aos externos, e observou ainda que as mulheres eram mais suscetveis a eles do que os homens.4,10-12Nocontextodapsiquiatriacientfi-ca da primeira metade do sculo XX, des-tacam-se outros nomes que influenciaram ospsiquiatrasdesuagerao:opsiquia-tra britnico Aubrey Lewis, que defendeu umavisounidimensionaldadepresso, afirmandoqueadivisoentredepresso endgena e reativa ou neurtica e psic-tica era arbitrria, e que a depresso seria uma doena nica; Adolf Meyer, psiquia-trasuo,contemporneodeKraepelin, quecriticouapostulaodeste,susten-tando que havia muitas formas de depres-so que no se enquadravam na categoria nica da psicose manaco-depressiva pos-tulada por Kraepelin, e sugeriu, em 1905, queseeliminasseotermomelancoliae seadotassedefinitivamenteotermode-presso,afimderessaltarospropsitos mdicos;UgoCerletti,psiquiatraeneu-rologistaitaliano,que,emparceriacom LcioBini,definiucomsucessoospar-metrosnecessriosparaaaplicaode eletricidade diretamente no couro cabelu-do e iniciou o uso de estmulo eltrico pa-ra a induo de convulso com fins tera-puticos, desenvolvendo, assim, a eletro-convulsoterapia(ECT),aqualsetornou a base das intervenes biolgicas indica-das para o tratamento dos transtornos psi-quitricosduranteasdcadasde1940e 1950. Inicialmente utilizada para o trata-mento da esquizofrenia, observou-se que a ECT tambm poderia ser eficaz no trata-mentodesintomasdepressivosemana-cos. A ECT continua sendo um tratamento biolgico de excelncia at os dias de ho-je,sendoaindaconsideradaotratamen-tomaiseficazparaepisdiosdedepres-so grave.4,13,14Em1917,SigmundFreud15(1856--1939)publicaoartigoLutoeMelanco-lia.Nele,emprimeirolugar,afirmaque ir esclarecer alguns tpicos sobre a natu-rezadamelancolia,alertandoparaasli-mitaesdesuasconcluses.Emsegun-do,pontuaqueamelancoliapodeassu-Quevedo.indd 23 24/9/2012 14:08:53Quevedo & Silva (orgs.) 24mir vrias formas clnicas e que algumas dessas formas podem ter afeces somti-cas e outras psicognicas, e que suas con-sideraes esto vinculadas observao de casos de natureza psicognica indiscu-tvel. Freud sugere a presena de uma dis-posiopatolgicaedistingueostraos mentais da melancolia, os quais incluam desnimo profundo, perda da capacidade de amar, inibio de toda e qualquer ativi-dade, diminuio da autoestima, autorre-criminaoeautoenvilecimentoeexpec-tativadelirantedepunio.Elepostula que,namelancolia,aconteceumempo-brecimentoeesvaziamentodoprprio ego, que resulta em um delrio de inferio-ridade, principalmente moral, que com-pletadoporinsniaepelarecusaemse alimentar. Sugere que a tendncia a adoe-cer de melancolia est vinculada predo-minncia do tipo narcisista de escolha ob-jetal.Eletambmapontaparaatendn-cia ao suicdio e, ainda, para a tendncia da melancolia em se transformar em ma-nia. O termo depresso propriamente di-toutilizadodemododescritivo,eno comoumquadroclnicoouumacatego-rianosolgica.Freudinauguraaprtica primordialmente teraputica baseada em fundamentospsicodinmicosquepredo-minou na psiquiatria moderna da primei-ra metade do sculo XX. Se, por um lado, a orientao psicanaltica enfraqueceu os laos da psiquiatria com a medicina expe-rimental e com as demais cincias biolgi-cas, por outro, fez importantes contribui-es, como o aumento do insight clnico, odesenvolvimentosistemticodedefini-esdocomportamentoedadoenaea diminuiodoestigmasocialassociado ao transtorno mental.11,12,15,16Ainflunciadaorientaopsica-nalticanapsiquiatriaocidentalatin-giuseupicenadcadade1960eper-durou at a dcada de 1970. Nesse pero-do, alguns nomes se destacaram: Sandor Rad(1890-1972),psicanalistahnga-ro, distinguiu a neurose depressiva for-ma menos grave, na qual o paciente tem conscincia de sua baixa autoestima da melancolia forma mais grave, com pre-sena de delrios de autoacusao, que se aproxima da depresso psictica. Otto Fe-nichel(1898-1946),psicanalistavienen-se,sobatuteladeRad,defendeuque adepressoseriaumaspectocomum maioriadasformasdeneuroseequea persistncia de um grau leve de depresso seria um prenncio de que uma depresso maisgravepoderiasedesenvolver,suge-rindo,portanto,umcontinuumdosesta-dos de depresso entre neurose e psicose. Outros nomes, como o de Karl Abraham, Ren Spitz e Melanie Klein, tambm me-recem destaque.2,4Apartirdadcadade1960,alm das psicoterapias psicodinmicas, as abor-dagens cognitivas e comportamentais des-pertaram o interesse e tambm passaram a exercer influncia sobre o entendimen-to e o tratamento do comportamento de-pressivo. Dentre elas, destaca-se a terapia cognitivo-comportamental(TCC),desen-volvidapelopsiclogonorte-americano Aaron Beck. A TCC sustenta que a origem e a manuteno dos sintomas depressivos esto associadas presena de pensamen-tosecrenasdisfuncionaisenodefor-as inconscientes, como defendia a tradi-ofreudiana.Inmerosensaiosclnicos controlados comprovam a eficcia da TCC no tratamento da depresso leve e mode-rada.17-19A influncia da primeira e, especial-mente, da segunda guerra mundial resul-tou na expanso da influncia e na popu-larizaodapsiquiatriaenaposterior expanso do diagnstico de depresso. O sucesso dos psiquiatras no tratamento de soldadosquedesenvolveramtranstornos mentais em decorrncia da guerra elevou ostatusdapsiquiatriaaumpatamarse-Quevedo.indd 24 24/9/2012 14:08:53Depresso 25melhante ao de outras especialidades m-dicas. A atuao dos psiquiatras deixou de estarrestritaaosasilosouhospitaispsi-quitricos. O adoecimento e o sofrimento mentais dos soldados, acrescidos dos bons resultados obtidos com a interveno psi-quitrica, favoreceram a superao do es-tigmasocialassociadodoenamental. A popularizao do trabalho dos psiquia-tras, incentivada pelos meios de comuni-cao, aumentou o interesse, a procura e o consumo de produtos e servios de sa-de mental pela populao geral. Esse ce-nrio culminou com a exploso do merca-do de sade mental observada na segun-da metade do sculo XX.4Apesardoserendipismoquemar-cou o estabelecimento da psicofarmacolo-gia como estratgia de primeira linha no tratamento dos transtornos mentais, essa disciplinatrouxeimportantescontribui-es para o entendimento dos substratos neurobiolgicos de diferentes transtornos mentais, incluindo a depresso. Ainda na dcadade1950,opsiquiatrasuoRo-land Kuhn (1912-2005) descobriu aciden-talmente o efeito antidepressivo especfi-co da imipramina, molcula com proprie-dadesanti-histamnicas,anticolinrgicas esedativas,notratamentodasndrome depressiva.Kuhndescobriuautilidade clnica da administrao do antidepressi-votricclico.20Apartirdessadescoberta, outrosantidepressivostricclicos(ADTs) foramdesenvolvidos,comoaamitripti-lina,adesipraminaeanortriptilina,to-doscomdiferentespropriedadesfarma-colgicas. Entre elas, a inibio da recap-taodenoradrenalina(NA)pareciaser amaisimportante,reforandoahipte-se proposta por Joseph Jacob Schildkraut, em 1965, de que a depresso seria o resul-tado de um dficit central de NA. De acor-do com a teoria, a deficincia de NA resul-tariaemdepresso,enquantoseuexces-soresultariaemmania.Essateoriaficou conhecidacomohiptesenoradrenrgica (5HT).4,21Em 1951, Herbert Hyman Fox e Har-ry L. Yale comprovaram o efeito tubercu-lostticodaiproniazida,aqualpassoua ser largamente utilizada no tratamento da tuberculose, diminuindo de forma signifi-cativa a mortalidade nos Estados Unidos. Em 1952, Ernst Abert Zeller observou que aiproniazidaerauminibidordaenzima monoaminoxidase (MAO), e estudos sub-sequentes demonstraram a relao entre a administrao da iproniazida e o aumen-todosnveisdeserotoninanocrebroe namelhoradohumor.Em1957,Nathan S. Kline apresentou os resultados de suas pesquisas com a iproniazida, acumulando evidnciascientficassobreseusefeitos antidepressivos. Surgia, assim, o primeiro grupodemedicamentosantidepressivos, queficaramposteriormenteconhecidos comoinibidoresdaMAO(IMAO).Essa classedeantidepressivosfoirapidamen-teintroduzidanaprticaclnicaelarga-mente utilizada para o tratamento da de-presso. Todavia, sua ascenso foi to r-pida quanto seu declnio. A gravidade dos efeitos colaterais observados levou reti-rada da maior parte dos IMAOs do merca-do em nvel internacional e culminou com a ascenso dos ADTs.22Conformedescritopreviamente,na dcadade1950registrou-seumaverda-deira revoluo na psicofarmacologia e na psiquiatriacomaintroduo,naprtica clnica,dosprincipaisgruposdeagentes psicoativosutilizadosatosdiasdeho-je.Poressemotivo,adcadade1950 frequentemente considerada a dcada de ourodapsicofarmacologiamundial.No queconcerneaogrupodosantidepressi-vos, a descoberta dos efeitos antidepressi-vos da iproniazida e da imipramina mar-couumanovaeranotratamentodade-presso,eaECTdeixoudeseranica alternativa de tratamento biolgico eficaz Quevedo.indd 25 24/9/2012 14:08:53Quevedo & Silva (orgs.) 26disponvel. A viso psicanaltica predomi-nantenapsiquiatriadaprimeirametade dosculoXXcriticouveementementeos avanosdapsicofarmacologia,argumen-tando que o uso de psicofrmacos inviabi-lizaria a descoberta dos conflitos psicol-gicos subjacentes depresso. Porm, tais avanos possibilitaram a desejvel reapro-ximao da psiquiatria com a neurobiolo-gia e, assim, com as demais reas da me-dicina.16,22Entre 1969 e 1970, os farmacologistas russosIzyaslavP.LapineGregoryF. Oxenkrug postularam a hiptese serotonr-gica da depresso, em oposio hiptese noradrenrgica vigente at ento. A hipte-se serotonrgica sustentava que a presena de um dficit de serotonina na fenda sinp-ticaemcertasregiesdocrebroerauma dascausasbioqumicasdassndromesde-pressivas.23OsIMAOseosADTs,comodescrito anteriormente,foramdescobertosaciden-talmente, graas a minuciosas observaes de alguns pesquisadores. A demonstrao daeficciadasprimeirasclassesdeanti-depressivos constituiu-se em fonte de evi-dncia robusta acerca das alteraes neu-roqumicas na depresso, inaugurando um novo movimento na farmacologia e na psi-quiatria:odesenvolvimentointencional desubstnciascapazesdeagirnaneuro-transmisso. Em 1974, alicerado na hip-tese serotonrgica da depresso, um grupo de pesquisadores patrocinados pela inds-triafarmacuticadesenvolveuumamol-cula capaz de inibir de forma seletiva e po-tentearecaptaodaserotonina,afluo-xetina.Surgeoprimeiroinibidorseletivo darecaptaodeserotonina(ISRS),uma classe de antidepressivos que popularizou otratamentofarmacolgicodadepresso apartirdeumaconsidervelmelhorano perfildetolerabilidadequandocompara-da com os IMAOs e ADTs. Rapidamente, a fluoxetina tornou-se o antidepressivo mais prescritonomundoecommaiornmero de publicaes cientficas.22Apartirdadcadade1980,teste-munhou-seumexpressivodesenvolvi-mentodasneurocincias,viabilizadope-lo rpido desenvolvimento de tecnologias que possibilitaram a avaliao estrutural, funcional e molecular do crebro in vivo. Tais avanos levaram elucidao de di-ferentesmecanismosneuraissubjacen-tes ao comportamento humano e amplia-ramsubstancialmenteaspossibilidades deinvestigaodassndromespsicopa-tolgicas.Assim,oprogressotecnolgi-coeodesenvolvimentodepsicofrma-cosaproximaramapsiquiatriadaneu-robiologiaeconsolidaramoprocessode elevaodapsiquiatriaaomesmopata-marqueasdemaisespecialidadesmdi-cas.Aexploraodabiologiadamente alteroufundamentalmenteaconceituali-zao de doen a mental, a prtica da psi-quiatria e o treinamento dos futuros pro-fissionais.7,24,25Estudosrecentestmsugeridoque a elevao dos nveis de monoaminas na fenda sinptica no parece ser o mecanis-mo farmacolgico que medeia a melhora clnica, ou pelo menos no o mecanismo final relacionado melhora clnica. A ele-vaodosnveisdemonoaminasnafen-dasinpticadesencadeariaumasriede alteraesneuroqumicasintracelulares capazesdeprovocarmodificaesnaex-presso gnica, o que se traduziria em um aumento da sntese de fatores neurotrfi-coseconsequentesefeitosnaneuroplas-ticidade (p. ex., aumento da neurognese no ncleo denteado, aumento da sobrevi-da e arborizao neuronal). Essas altera-es neurobiolgicas parecem ser crticas paraoefeitoteraputicodosantidepres-sivos.Emboraodesenvolvimentodeno-vasclassesdeantidepressivostenhatra-zidoindiscutveisavanosnatolerabili-dade desses frmacos, no houve avano Quevedo.indd 26 24/9/2012 14:08:53Depresso 27emtermosdeeficciaquandocompara-das com os chamados antidepressivos de primeiragerao,demodoqueofutu-ro da psicofarmacologia parece depender de uma migrao de mecanismos de ao mais superficiais, em nvel sinptico, pa-ramecanismosintracelulares.Emoutras palavras, da neurotransmisso para a ex-presso gnica.22Comaconsolidaodefinitivada psiquiatria como especialidade mdica no sculo XIX, imps-se o desafio de mudan-a do paradigma diagnstico dos transtor-nosmentais,exatamentecomoocorreu comoutrasespecialidadesmdicas.Os avanos nas neurocincias registrados nas ltimas dcadas tm se mostrado promis-sores, lanando bases para um paradigma fisiopatolgicododiagnsticopsiquitri-co. Nesse contexto, pesquisas envolvendo indivduoscomdepressotmapresen-tadoumpapeldedestaque.Baseadoem descriesdeGaupp(1905),ogrupoli-deradopelopesquisadorK.RangaRama Krishnan lanou o conceito de depresso vascular(inicialmentedescritacomode-pressoarteriosclertica)ou,maispreci-samente,depressoisqumicasubcorti-cal (DIS). Tal termo descreve um processo especfico, anlogo ao recentemente des-critoparaademnciavascularisqumi-ca, preenchendo requisitos para validade diagnstica. A DIS tem uma descrio cl-nica com critrios diagnsticos bem esta-belecidos: pode ser identificada por meio de exames laboratoriais (imagens de res-sonncia magntica); pode ser claramen-tediferenciadadeoutrostranstornos mentais;noassociadaafatoresfami-liares;eosachadosderessonnciamag-nticapodeminfluenciaroprognstico longitudinalmente.26OconceitodeDIScertamentere-presenta um marco na evoluo do con-ceito da depresso como entidade noso-lgica em particular e na prpria psiquia-triacomoespecialidademdica,visto que,pelaprimeiraveznahistriadessa especialidade, se discute um diagnstico comvalidadedeterminadaecommeca-nismos fisiopatolgicos e etiolgicos am-parados por evidncia cientfica robusta. Essanovaabordagembaseadaemuma perspectivaneurolgicaepsiquitrica permitirodesenvolvimentodeensaios clnicosempopulaesespecficaspara avaliar os padres de resposta a diferen-tes estratgias teraputicas. Abre-se tam-bmaperspectivadodesenvolvimento de abordagens preventivas e teraputicas centradas na correo de alteraes neu-robiolgicassubjacentes,ampliandode-finitivamente os horizontes do diagnsti-co e do tratamento psiquitricos.27REFERNCIAS1.RousseauG.Depressionsforgottengenealo-gy:notestowardsahistoryofdepression.Hist Psychiatry. 2000;11(41 Pt 1):71-106.2.CordsTA.Depresso:dabilenegraaosneu-rotransmissores,umaintroduohistrica.So Paulo: Lemos; 2002.3.Radden J. The nature of melancholy: from Aris-totletoKristeva.NewYork:OxfordUniversity; 2000.4.LawlorC.Frommelancholiatoprozac:ahis-toryofdepression.NewYork:OxfordUniversi-ty; 2012.5.NicolWD.RobertBurtonsanatomyofmelan-choly. Postgrad Med J. 1948;24(270):199-206.6.Pereira MEC. Griesinger e as bases da Primeira psiquiatriabiolgica.RevLatinoamPsicopatol Fundam. 2007;10(4):685-91.7.Cunningham MG, Goldstein M, Katz D, ONeil SQ, Joseph A, Price B. Coalescence of psychiatry, neu-rology, and neuropsychology: from theory to prac-tice. 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