o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

33
XXIV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - UFS HISTÓRIA DO DIREITO ANTONIO CARLOS WOLKMER GUSTAVO SILVEIRA SIQUEIRA

Upload: doanthu

Post on 09-Jan-2017

219 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

Page 1: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

XXIV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - UFS

HISTÓRIA DO DIREITO

ANTONIO CARLOS WOLKMER

GUSTAVO SILVEIRA SIQUEIRA

Page 2: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

Copyright © 2015 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito

Todos os direitos reservados e protegidos. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados sem prévia autorização dos editores.

Diretoria – Conpedi Presidente - Prof. Dr. Raymundo Juliano Feitosa – UFRN Vice-presidente Sul - Prof. Dr. José Alcebíades de Oliveira Junior - UFRGS Vice-presidente Sudeste - Prof. Dr. João Marcelo de Lima Assafim - UCAM Vice-presidente Nordeste - Profa. Dra. Gina Vidal Marcílio Pompeu - UNIFOR Vice-presidente Norte/Centro - Profa. Dra. Julia Maurmann Ximenes - IDP Secretário Executivo -Prof. Dr. Orides Mezzaroba - UFSC Secretário Adjunto - Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto – Mackenzie

Conselho Fiscal Prof. Dr. José Querino Tavares Neto - UFG /PUC PR Prof. Dr. Roberto Correia da Silva Gomes Caldas - PUC SP Profa. Dra. Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches - UNINOVE Prof. Dr. Lucas Gonçalves da Silva - UFS (suplente) Prof. Dr. Paulo Roberto Lyrio Pimenta - UFBA (suplente)

Representante Discente - Mestrando Caio Augusto Souza Lara - UFMG (titular)

Secretarias Diretor de Informática - Prof. Dr. Aires José Rover – UFSC Diretor de Relações com a Graduação - Prof. Dr. Alexandre Walmott Borgs – UFU Diretor de Relações Internacionais - Prof. Dr. Antonio Carlos Diniz Murta - FUMEC Diretora de Apoio Institucional - Profa. Dra. Clerilei Aparecida Bier - UDESC Diretor de Educação Jurídica - Prof. Dr. Eid Badr - UEA / ESBAM / OAB-AM Diretoras de Eventos - Profa. Dra. Valesca Raizer Borges Moschen – UFES e Profa. Dra. Viviane Coêlho de Séllos Knoerr - UNICURITIBA Diretor de Apoio Interinstitucional - Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira – UNINOVE

H673

História do direito [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/UFS;

Coordenadores: Gustavo Silveira Siqueira, Antonio Carlos Wolkmer, Zélia Luiza Pierdoná –

Florianópolis: CONPEDI, 2015.

Inclui bibliografia

ISBN: 978-85-5505-059-6

Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações

Tema: DIREITO, CONSTITUIÇÃO E CIDADANIA: contribuições para os objetivos de

desenvolvimento do Milênio

1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Brasil – Encontros. 2. História. I. Encontro

Nacional do CONPEDI/UFS (24. : 2015 : Aracaju, SE).

CDU: 34

Florianópolis – Santa Catarina – SC www.conpedi.org.br

Page 3: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

XXIV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - UFS

HISTÓRIA DO DIREITO

Apresentação

O interesse pela História do Direito tem crescido significativamente no Brasil nos últimos

anos. A inclusão da disciplina no conteúdo dos cursos de graduação, desde o início dos anos

2000, tem contribuído para o conhecimento e expansão da área. Sendo ainda uma área (ou

sub-área) nova, a História do Direito, ainda luta para sedimentar-se academicamente dentre

as disciplinas chamadas de zetéticas. Ao contrário da Filosofia do Direito e da Sociologia do

Direito, já consagradas em currículos, eventos e produções nacionais, a História do Direito

ainda carece, se comparada com as outras áreas, de um certo fortalecimento metodológico e

teórico.

Nesse sentido a existência de fóruns, como o GT de História do Direito no CONPEDI,

auxilia que trabalhos, já com preocupações metodológicas e teóricas de grande sofisticação,

convivam com os de pesquisadores iniciantes no tema. Mas, se por um lado, a referida

disciplina luta para consolidar sua especialidade em relação à Sociologia do Direito e à

Filosofia do Direito, ela é palco de internacionalização e de refinados trabalhos acadêmicos.

A ausência da disciplina no Brasil, durante alguns anos, fez com que o intercâmbio

internacional fosse uma necessidade, logo na formação da disciplina. O mencionado fato

levou diversos professores e pesquisadores a uma profunda inserção no meio acadêmico

internacional. Daí o contraste da História do Direito: uma disciplina jovem, pouco difundida

e sedimentada em muitos cursos jurídicos, mas que, por outro lado, tem dentre seus

pesquisadores mais inseridos, um elevado nível de pesquisa e internacionalização.

Neste contexto, os trabalhos apresentados no CONPEDI e publicados aqui, servem para

demonstrar uma área em transição e em processo de fortalecimento. Assim, eles contribuem

para problematização de métodos, metodologias e teorias que podem ser aplicadas à História

do Direito.

As apresentações tiveram temas genéricos e específicos, abarcando desde aspectos da

presença e influência do "common law no Brasil, passando pelo direito romano e temas

conexos. Também foram discutidos pensadores como Hobbes, Virilio, Habermas e Leon

Duguit, e temas como espaços femininos, ideias marxistas, movimentos sociais e a trajetória

do Direito no Brasil. Este foi o principal tema dos trabalhos que reuniu contribuições sobre o

Período Colonial, a escravidão, a educação e a cultura jurídica. Também foi problematizado

o Direito no Período do Império, as eleições de 1821, a obra de Diogo Feijó, a questão da

Page 4: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

legislação sobre a adoção e o Estado laico e confessional. Sobre o Período Republicano, os

trabalhos preocuparam-se com história do Direito Penal, crimes políticos, jurisprudência do

STF e Relatório Figueiredo.

Desejamos a todos uma excelente leitura!

Antonio Carlos Wolkmer (UFSC - UNILASALLE)

Gustavo Silveira Siqueira (UERJ)

Zélia Luiza Pierdoná (MACKENZIE)

Page 5: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

O PRINCÍPIO DA LIBERDADE RELIGIOSA AO LONGO DA HISTÓRIA JURÍDICA BRASILEIRA E O SEU PAPEL PARA O DESENVOLVIMENTO DO

ESTADO LAICO

THE PRINCIPLE OF RELIGIOUS FREEDOM ON THE BRAZILIAN LEGAL HISTORY AND ITS ROLE IN THE DEVELOPMENT OF THE SECULAR STATE

Rogério Magnus Varela Gonçalves

Resumo

Da mesma forma como foi tormentosa, no plano da história universal, a consolidação da

liberdade religiosa, assim também o foi na evolução histórico-constitucional dessa temática

no Brasil. Nessa marcha evolutiva, sempre houve uma ligação muito estreita entre a história

do tratamento jurídico dos sentimentos religiosos em Portugal e no Brasil. É que na vivência

do constitucionalismo em Portugal e no Brasil, verificaram-se três momentos nítidos e

distintos: um princípio comum, um afastamento relativo e um reatamento estreito. O texto

busca estudar a liberdade religiosa no que tange ao seu surgimento e a sua solidificação no

direito brasileiro, bem como a sua importância para o desenvolvimento do estado laico.

Palavras-chave: Liberdade religiosa, História do direito, Direito constitucional.

Abstract/Resumen/Résumé

The consolidation of the religious freedom was arduous in the evolution of this theme in

Brazil, just as it was in the universal context. During the process of advance, the relation

between State and Religion was quite identical in Brazil and Portugal. The history of the

Brazilian and Portuguese constitutionalism have the different phases: the same origin, a

separation due the Brazilian autonomy and a rapprochement. The main objective of the work

is to analyze the root and the consolidation of the religious freedom in the Brazilian state, as

well as its importance to the development of the secular state.

Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Religious freedom; legal history; constitutional law

460

Page 6: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

1. INTRODUÇÃO

O presente estudo analisa as principais pegadas históricas relativas ao surgimento e a

consolidação do primado da liberdade religiosa no Brasil. Muito em virtude da colonização

portuguesa e dos estreitos laços firmados (do descobrimento até a decretação da

independência, em 1822) entre Portugal e a religião católica apostólica romana, a observação

histórica revela que o Brasil tradicionalmente foi composto de uma sociedade de maioria

monoconfessional católica. Ferreira da Cunha (2007, 197) assinala que, desde longa data, a

história constitucional portuguesa imbrica-se na brasileira, até porque, em ambos os países, o

grande legislador constitucional foi D. Pedro. Portanto, a exemplo do que ocorrera em terras

lusitanas1, não existiram conflitos religiosos de maior relevância ao longo da história do

Brasil. Registre-se, a respeito, que uma das características marcantes da sociedade brasileira

foi o senso comum de tolerância e de respeito pelas escolhas religiosas das pessoas. A

harmonia religiosa prepondera e é vislumbrada no campo institucional-religioso, entre as

distintas confissões religiosas, bem como entre os adeptos, sendo também uma tônica no

relacionamento travado entre o poder político e o poder religioso.

Convém, todavia, relativizar essas assertivas, por serem muito amplas e genéricas.

Como estratégia para realizar essa tarefa, será feita uma pequena abordagem sobre alguns dos

principais fatos da história do Brasil que têm correlação com a temática religiosa. Nessa

caminhada, verificar-se-á que a regra (harmonia religiosa) foi permeada por períodos de

exceção (intolerância e perseguição religiosas). Isso aconteceu geralmente como reflexo de

alguns períodos lusitanos de maior inflexibilidade na imposição de uma religião oficial,

fazendo com que as minorias religiosas sofressem indisfarçáveis violências.

O estudo do percurso histórico que será iniciado nas linhas seguintes serve também

para demonstrar que a sedimentação da liberdade religiosa foi elemento de indisfarçável

importância para o desenvolvimento do ideário republicano em terras brasileiras, bem como

possui ligação inquebrantável com a defesa da natureza laica do Estado brasileiro.

2. O BRASIL-COLÔNIA E A QUESTÃO RELIGIOSA

Durante o período colonial brasileiro, preponderava o imperialismo lusitano, sendo

1 Acerca da ausência de atritos religiosos graves desde a fundação da nacionalidade portuguesa até o reinado de

D. Manuel, vide ADRAGÃO, 2002. p. 284. O autor lusitano chega mesmo a referir que a Igreja Católica teria

sido um componente decisivo, juntamente com a unidade linguística, para a formação da identidade nacional

portuguesa.

461

Page 7: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

inquestionável que os principais ecos ouvidos na parte mais tropical do Atlântico eram a

união entre o trono e o altar. Verificava-se também a conjugação de dois grandes interesses da

coroa portuguesa e da Igreja Católica: o econômico e o religioso.

As alegações acima expendidas são robustecidas com as lições de Riolando Azzi

(2001, pp. 46/74). Ele lembra que, à frente do projeto de expansão do império e do

cristianismo, estavam os monarcas portugueses, aos quais, desde meados do século XV, os

papas haviam concedido o direito do padroado. Em decorrência desse direito, a Santa Sé

delegava aos reis de Portugal a missão de evangelizar as novas terras, estabelecendo nelas a

instituição eclesiástica. Assim, sob o manto protetor do monarca, os colonizadores

portugueses julgavam-se imbuídos da missão de organizar a cristandade colonial, ou seja,

difundir e expandir a cristandade lusitana. O povo português daquela quadra histórica era

essencialmente desbravador e colonizador, sendo considerado também como possuidor de

muita fé. Contudo, a fé era bem peculiar, na medida em que era perpassada pelo espírito da

cruzada, segundo a qual a cruz e a espada deveriam caminhar juntas na expansão do reino de

Deus. Tal fato deixou a sua marca na história brasileira, porquanto vários nativos foram

mortos em decorrência de resistirem à conversão católica.

Para Gilberto Freyre (1999, p. 29), a manutenção da unidade religiosa era o principal

fator de preocupação do colonizador português. Tanto era assim que os benefícios da coroa

portuguesa, dentre os quais as doações de terras (por meio das cartas de sesmarias), apenas

poderiam ser concedidos aos católicos. Segundo afirma, na formação do Brasil, os

colonizadores estavam despreocupados com a unidade e a pureza racial, mas sensivelmente

voltados para uma homogeneidade do espírito. Com efeito, durante o século XVI, a Colônia

esteve aberta aos estrangeiros, apenas sendo exigido pelas autoridades coloniais que fossem

adeptos da fé católica. Tanto era assim que, durante largos períodos coloniais, havia a prática

de ir um frade a bordo de qualquer embarcação que aportasse no Brasil, com o desiderato de

examinar a consciência dos recém-chegados. A heterodoxia era fator de inibição do efetivo

ingresso no território brasileiro. A debilidade física, a saúde comprometida e a natureza até

mesmo contagiosa da enfermidade eram postas em plano secundário. O que importava, para a

aceitação dos estrangeiros, era sua saúde religiosa, então compreendida como sinônimo de se

professar a religião católica.

Na mesma linha de pensamento, Guedes Soriano (2002, p. 68) esclarece que o

português considerava seu igual apenas aquele que tinha a mesma religião. O aspecto central,

para o colonizador lusitano, era que o estrangeiro professasse a religião católica. Em

consequência, o não-católico era tido como um verdadeiro adversário político, temendo-se

462

Page 8: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

que o seu ingresso no país pudesse fragilizar a estrutura colonial desenvolvida em parceria

com a religião católica. Havia, pois, um forte liame entre a Igreja (católica) e o Estado (coroa

portuguesa). Durante toda a história colonial brasileira, esse enlace foi mantido, com o

objetivo de combater os calvinistas franceses, os reformadores holandeses e os protestantes

ingleses, além, evidentemente, dos ateus. Durante o período colonial brasileiro, o Estado

português controlou, com mão de ferro, o campo religioso, tendo perpetrado, dentre outras, as

seguintes medidas: estabeleceu o catolicismo como religião oficial; concedeu-lhe o

monopólio religioso; subvencionou suas atividades; reprimiu as crenças e as práticas

religiosas dos índios e dos negros escravos; impediu a entrada de religiões concorrentes,

sobretudo a protestante, proibindo seu livre exercício no país (2001, pp. 127/128).

É de se destacar também que a Igreja Católica, no período do Renascimento, por

ocasião das descobertas ultramarinas, estava assaz envolvida com as questões seculares. O

objetivo era obter uma expansão missionária da grandeza correspondente à que se exigia,

levando-se em consideração o vasto campo de ação aberto com os novos territórios e um

substancial número de indivíduos para serem transformados em novos cristãos. Como já foi

referido alhures, inicialmente se conferiu aos colonos a missão de conversão dos gentios.

Entretanto, com o passar dos anos, restou evidente a pouca eficácia desse modelo, de modo

que a Igreja Católica teria que empreender novos esforços para difundir o cristianismo no

ultramar. As ordens religiosas se propuseram, nesta perspectiva, a levar adiante esse

movimento missionário, sendo os franciscanos os protagonistas nessa tarefa. Posteriormente,

alguns integrantes da Companhia de Jesus mostraram grande interesse no seu envio para

auxiliar na conversão religiosa dos gentios do Novo Mundo. Como se verificará adiante, os

membros da Companhia de Jesus iriam assumir uma posição de destaque na tarefa de

evangelização dos indivíduos que povoavam os novos territórios ultramarinos.

Nesse ponto, a história do Brasil, como é evidente, tinha uma vinculação estreita com

a de Portugal, até porque faziam parte de uma só história. Prova disso é que, pouco antes do

descobrimento das terras brasileiras, D. Manuel assinou, em 25 de dezembro de 1496, um

édito que determinava a expulsão, no prazo de dez meses, de todos os judeus e mouros não-

convertidos, residentes em terras portuguesas. Foi nesse contexto, de pouca tolerância para

com as minorias religiosas, que Pedro Álvares Cabral aportou nas novas terras sul-

americanas. Logo após a chegada nas distantes terras da Ilha de Vera Cruz, coube a Frei

Henrique Soares de Coimbra celebrar a primeira missa no novo território, com o

inquestionável intuito de deixar patente a estreita ligação entre a Coroa portuguesa e a religião

católica.

463

Page 9: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

Desde cedo, ficou evidenciada, no território recém-descoberto, a ligação entre o

Estado e a Igreja Católica, bem como o alargamento da jurisdição eclesiástica portuguesa para

o novo continente conquistado em decorrência de sua expansão marítima. Como lembra

Correa da Silva (2004, p. 26), o novo território foi logo submetido à jurisdição espiritual do

vigário de Tomar. Já em 1551, foi criada, pelo papa Júlio III, a primeira diocese em terras

brasileiras, com sede na cidade de São Salvador. Em 1676, por obra do papa Inocêncio XI, a

diocese de São Salvador foi elevada à Dignidade Arcebispal e metropolitana, tendo como

sucedâneas, em solo brasileiro, as dioceses de São Sebastião do Rio de Janeiro e Olinda.2

A criação da Companhia de Jesus, durante o reinado de D. João III, foi uma

reafirmação do governo lusitano, no sentido de tomar para si a missão de difundir e exigir a

observância da fé cristã nas terras descobertas, aí se incluindo o Brasil, agora com o decisivo

auxílio dos religiosos. A responsabilidade de cristianizar as novas terras coube,

fundamentalmente, aos missionários jesuítas que, partindo de território luso, intencionavam

aculturar religiosamente os povos conquistados, impondo-lhes os usos e os costumes cristãos.

Com esse objetivo, a Companhia de Jesus estabeleceu-se na América portuguesa e, junto com

o primeiro governador-geral, vieram para o Brasil os primeiros jesuítas: os padres Manuel da

Nóbrega, Antônio Pires, Aspicuela Navarro, Leonardo Nunes, Diogo Jácome e Vicente

Rodrigues. Apesar de não ter sido a primeira ordem a aqui se instalar, eis que, como dito

alhures, os franciscanos foram os precursores nessa empreitada eclesiástica, os integrantes da

Companhia de Jesus foram os mais proeminentes atores na vida religiosa colonial brasileira.

A Companhia de Jesus pretendia não apenas cristianizar os povos do Novo Mundo,

mas também conquistar essas almas para a Igreja Católica. Porém, não se pode negar que os

propósitos confessionais das ordens religiosas que se dirigiam às terras descobertas estavam

impregnados de ambições políticas. Em nome de intenções piedosas, estabelecia-se a luta pela

restauração do poder político da Igreja de Roma, abalado pela reforma protestante. Nessa

tarefa, a Companhia de Jesus buscava trazer os povos das novas terras para o seio da Igreja

Católica. Por outro lado, buscava impedir que ocorresse, nas comunidades indígenas, a

penetração das seitas "heréticas". Com esse propósito, lançava as bases da igreja romana,

além de manter a vigilância sobre os colonos, de forma que não se desgarrassem dos preceitos

católicos. Essas funções eram outorgadas às ordens religiosas em geral e aos jesuítas em

particular.

2 Registre-se, em complemento à informação da autora, que, além de São Sebastião do Rio de Janeiro e Olinda, a

elevação de Salvador a arcebispado teve o objetivo de também lhe tornar sufragâneas as dioceses africanas de

Angola e de Cabo Verde.

464

Page 10: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

O ensino ministrado pelos jesuítas, tanto em Portugal quanto no Brasil, era público e

gratuito. Entretanto, a manutenção econômica dos membros da Companhia de Jesus era

subvencionada pelo poder público. Para tanto, D. Sebastião instituiu, em 1564, uma taxa

especial destinada à Companhia, denominada redízima, que era descontada sobre todos os

dízimos e direitos da Coroa. Para além dessa cooperação econômica do Estado, as missões

possuíam fonte própria de subsistência dos religiosos, eis que montavam verdadeiras

empresas agroextrativas nas terras conquistadas. Esse bom relacionamento entre os poderes

político e religioso enfrentou um momento de grande desgaste, quando, no ano de 1759, os

jesuítas foram compelidos a abandonar as terras brasileiras, em face de um decreto expedido

durante o governo de D. José. É que teriam sido acusados de colaboração com a guerra

libertária realizada contra a Coroa portuguesa, além de acusações de que enfrentavam

problemas com a catequização dos indígenas (SILVA, 2004, p. 28).

O mesmo D. João III, apesar de criar a Companhia de Jesus em seu reinado, foi

responsável por um dos períodos de manifestação oficial da intolerância religiosa, com o

cesarismo do Estado em Portugal, seguindo-se a implantação da Inquisição. Com efeito, o

citado monarca exerceu forte pressão perante o poder religioso, tendo mesmo ameaçado o

papa Paulo III de cisma. Logrou o seu intento e conseguiu do Vaticano a autorização

definitiva para a instauração do Tribunal da Inquisição em Portugal, em 1547, desencadeando

graves consequências para as colônias. Não obstante jamais tenha sido instituído um Tribunal

da Inquisição no Brasil, não se pode desconhecer que, ao longo do período colonial, essa

instituição funcionava plenamente em Lisboa. Assim, os acusados de cometerem crimes

religiosos no Brasil eram transportados até Lisboa para serem julgados e, a depender do

veredicto, executados. Atitudes dessa natureza reforçavam a intolerância religiosa e

demonstram a ausência de liberdade religiosa no Brasil durante o período colonial.

Contudo, o mais relevante elemento jurídico na relação firmada entre o Estado

português e a igreja, tendo perdurado durante o período colonial e imperial brasileiros, não foi

a Companhia de Jesus, tampouco o Tribunal da Inquisição, mas sim foi o direito de padroado

(jus patronatus). Como resultado desse sistema de auxílio recíproco entre os poderes político

e religioso, foi deferida pelos papas a concessão do direito de padroado aos reis portugueses

da época. Eram vários os direitos e deveres do padroado português, dentre os quais se

destacam: a construção, a conservação e a reparação das igrejas, mosteiros e demais lugares

de culto das dioceses; a doação dos objetos necessários ao culto; a deputação e o sustento dos

465

Page 11: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

eclesiásticos e seculares necessários à ministração do serviço religioso (NUNES, 2005, pp.

150/151).3

No regime do padroado, o soberano português era considerado o patrono da igreja.

Firmava-se entre o Estado e a Igreja Católica uma estruturação jurídica semi-contratual

(bilateral e onerosa), pela qual aquele cobrava diretamente da população os dízimos e rendas

eclesiásticas e, em troca, obrigava-se a manter e expandir a propriedade da igreja, financiar o

trabalho educacional e missionário, bem como sustentar o clero secular (diocesano) e regular

(ordens). Dentre os poderes do soberano, estava a prerrogativa para a designação de bispos,

párocos e outros funcionários da igreja, que eram incorporados à estrutura estatal (ALVES,

2008, p. 45). Registre-se que esse privilégio de escolha dos candidatos às dioceses ou

paróquias não dispensava a confirmação e a anuência do papa, que se reservava o direito de

aceitar ou não a indicação do soberano.

No ano de 1677, foi instituído, na cidade de São Salvador, o primeiro Tribunal

Eclesiástico do Brasil. A criação dessa corte despertou o interesse pelo estudo do direito da

religião e resultou na elaboração, já em 1707, da primeira obra jurídica exclusivamente

brasileira, intitulada “As constituições primeiras do arcebispado da Bahia” (ALVES, 2008, p.

46). Convém registrar que o discurso mobilizado no referido estudo não é de grande pureza

jurídica, eis que estava impregnado do discurso teológico-confessional. Em sua essência, o

texto foi resultante do primeiro sínodo arquidiocesano, tendo posteriormente se tornado a base

do direito canônico brasileiro.

A situação jurídica da igreja no território português da América estava estabilizada e

se manteria sem alterações de maior importância ao longo do restante do período colonial.

Esse quadro permaneceu mesmo após a elevação, em 1720, da colônia do Brasil à condição

de vice-reino de Portugal. Em suma, e buscando a retenção de ideias centrais, poder-se-ia

afirmar que, durante o período colonial, os principais elementos caracterizadores do fenômeno

religioso em terras brasileiras foram: a predominância do preconceito religioso e as

consequentes restrições às liberdades religiosas; a violência contra os índios e negros que, em

alguma medida, resistiam a conversão ao catolicismo; a marcante presença educacional dos

jesuítas; a instalação do Tribunal Eclesiástico; o efetivo exercício do direito do padroado e a

3 A autora Rosa Dionízio Nunes destaca que o direito do padroado foi sendo sedimentado paulatinamente e que o

processo de ampliação das concessões durou cerca de oitenta anos para ser concluído. Lembra que, através do

documento Dudum pro parte, de Leão X, datado de março de 1516, passou a ser conferido aos reis de Portugal o

direito universal de padroado em todas as igrejas sob o seu domínio. Esclarece ainda a pesquisadora que a

primeira referência expressa ao padroado real, nos territórios do ultramar, é encontrada na bula Dum fidei

constantiam, datada de 07 de junho de 1514, de Leão X. Nela, foi concedido ao monarca português, D. Manuel I,

o direito de apresentação para todos os benefícios nas terras adquiridas nos dois anos anteriores e nas

futuramente adquiridas, sendo que nas restantes o direito pertencia ainda à Ordem de Cristo.

466

Page 12: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

atuação da “santa inquisição”. Na verdade, as mudanças de maior impacto no panorama

jurídico-religioso do vice-reino do Brasil só iriam ocorrer após a compulsória transferência da

família real portuguesa para terras sul-americanas, buscando refúgio da iminente invasão de

Napoleão Bonaparte. Surgiu, a partir daí, um novo momento da temática religiosa no Brasil,

especificamente no início do período imperial.

3. O BRASIL IMPÉRIO E A QUESTÃO RELIGIOSA

Dois anos após a chegada da família real portuguesa ao Brasil, que ocorreu em 1808,

foram assinados pelo príncipe regente D. João três tratados de aliança e comércio entre as

Coroas de Portugal e de Inglaterra. No Tratado da Amizade, Comércio e Navegação, verifica-

se a primeira concessão de uma literal (e relativa) garantia de tolerância religiosa no direito

luso-brasileiro conferida aos súditos britânicos. Foi-lhes facultada a prática de seus cultos

religiosos, mesmo que distintos dos cultos da igreja católica apostólica romana.4

4 Existe, nesse aspecto, relevante discordância doutrinal: para Ingrid Pinheiro Correa da Silva, o tratado apenas

permitia que os súditos da coroa inglesa que residissem no Brasil realizassem seus cultos em suas casas ou em

locais destinados às reuniões e que não possuíssem forma exterior de templo (obra citada, p. 31). Já para Othon

Moreno de Medeiros Alves, o tratado foi mais abrangente, permitindo que os súditos ingleses edificassem

templos, capelas ou igrejas. Esta maior amplitude levou-o a advogar a tese de que haveria um primeiro sinal de

liberdade e não de simples tolerância religiosa (obra citada, p. 48). Inicialmente, não se pode concordar com a

alegação de que havia uma liberdade religiosa, ante as restrições e as penalidades impostas aos que criticassem a

religião católica. Havia, sim, tolerância. Quanto ao dissenso doutrinário acima apontado, no que diz respeito à

existência ou inexistência de possibilidade de edificação de igrejas e capelas, o texto contido no art. 12 do

tratado, assinado em 19 de fevereiro de 1810, não deixa dúvidas de que Medeiros Alves está correto. Porém, a

divergência é justificável, eis que, muito embora fosse possível construir igrejas e capelas, elas não poderiam

possuir tal forma exterior. Para dar maior fidedignidade ao alegado, o trabalho julgou oportuno transcrever o

texto do tratado: “Sua Alteza real, o Príncipe Regente de Portugal, declara, e se obriga no seu próprio nome, e no

de seus herdeiros e sucessores, que os vassalos de Sua Majestade Britânica, residentes nos seus territórios e

domínios, não serão perturbados, inquietados, perseguidos ou molestados por causa de sua religião, mas antes

terão perfeita liberdade de consciência e licença para assistirem e celebrarem o serviço divino em honra do

Todo-Poderoso Deus, quer seja dentro de suas casas particulares, quer nas Igrejas e Capelas, que Sua Alteza

Real agora, e para sempre graciosamente lhes concede a permissão de edificarem e manterem dentro dos seus

domínios. Contanto, porém, que as sobreditas Igrejas e Capelas sejam construídas de tal modo que externamente

se assemelhem a casas de habitação; e também que o uso dos sinos não lhes seja permitido para o fim de

anunciarem publicamente as horas do serviço divino. Ademais, estipulou-se que nem os vassalos da Grã-

Bretanha, nem quaisquer outros estrangeiros de comunhão diferente da religião dominante nos domínios de

Portugal, serão perseguidos ou inquietados por matéria de consciência, tanto no que concerne às suas pessoas

como suas propriedades, enquanto se conduzirem com ordem, decência e moralidade e de modo adequado aos

usos do país, e ao seu estabelecimento religioso e político. Porém, se se provar que eles pregam ou declamam

publicamente contra a religião católica, ou que eles procuram fazer prosélitas, ou conversões, as pessoas que

assim delinquirem poderão, manifestando-se o seu delito, ser mandadas sair do país, em que a ofensa tiver sido

cometida. E aqueles que em público se portarem sem respeito, ou com impropriedade para com os ritos e

cerimônias da religião católica dominante serão chamados perante a polícia civil e poderão ser castigados com

multas, ou com prisão em suas próprias casas. E se a ofensa for tão grave e tão enorme que perturbe a

tranquilidade pública e ponha em perigo a segurança das instituições da Igreja e do Estado estabelecidas pelas

leis, as pessoas que tal ofensa fizerem, havendo a devida prova do fato, poderão ser mandadas sair dos domínios

de Portugal. Permitir-se-á também enterrar em lugares para isso designados os vassalos de Sua Majestade

Britânica que morrerem nos territórios de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal; nem se perturbarão de

467

Page 13: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

Desde então, inaugurou-se um período de tolerância religiosa no direito brasileiro,

algo que viria a influenciar a elaboração da Lei Fundamental do Império, em 1824. Com o

advento da Carta Constitucional imperial, é possível fazer-se um retrato da questão jurídico-

religiosa pelo espírito contido no seu art. 5º. O citado dispositivo dispunha que a religião

católica apostólica romana continuaria a ser religião oficial do Império. Entretanto, todas as

demais religiões eram permitidas em seu culto doméstico e particular, em casas para isso

destinadas, sem demonstração exterior de templo. Havia, pois, a consolidação do regalismo,

eis que o modelo adotado deixava evidenciada a precedência do poder político, sendo

induvidoso que as exigências da liberdade religiosa foram, naquela oportunidade, seriamente

mutiladas.

Ao apreciar a questão religiosa na Constituição imperial, José Afonso da Silva (2001,

p. 254) chegou a afirmar que, em verdade, não houve no Império liberdade religiosa. Lembra

que o culto católico gozava de grande privilégio e podia realizar-se livremente. Todavia,

muitas restrições eram impostas à organização e ao funcionamento da própria religião oficial,

a ponto de hoje se reconhecer que era uma religião manietada e escravizada pelo Estado,

através da sua intervenção abusiva na esfera da igreja. Ora, se não havia real liberdade

religiosa nem em prol da religião oficial, com maior de razão, eram impostas severas

discriminações para as minorias religiosas, que eram apenas toleradas. Por exemplo, os

cidadãos que não professassem a religião oficial, os chamados “acatólicos”, não poderiam, até

o advento da Lei Saraiva (de 1881), ser eleitos para cargos públicos, sendo verdadeiramente

excluídos da vida política.

Foi observando esse contexto que Rui Barbosa (1880, p. 142) negou categoricamente

a existência de liberdade religiosa, de consciência e de culto no período imperial brasileiro.

Para ele, a liberdade religiosa só seria possível com um processo de irradiação sensível da

consciência livre. Por essa razão, não se podia falar em liberdade religiosa e de consciência,

sem a efetiva liberdade de cultos. Já para Ribeiro Bastos (2000, p. 191), a liberdade de

consciência religiosa existia, até porque estava interligada com o plano interior do indivíduo.

O que não havia era a liberdade de exteriorização dessa consciência religiosa. Por

conseguinte, entende que existia, no Império, a liberdade de crença, sendo restrita apenas a

liberdade de culto.

modo algum, nem por qualquer motivo, os funerais ou as sepulturas dos mortos. Do mesmo modo, os vassalos

de Portugal gozarão nos domínios de Sua Majestade Britânica de uma perfeita e ilimitada liberdade de

consciência em todas as matérias de religião, conforme o sistema de tolerância que se acha neles estabelecido.

Eles poderão livremente praticar os exercícios da sua religião pública, ou particularmente nas suas casas de

habitação, ou nas capelas, e lugares de culto designados para este objeto, sem que lhes ponha o menor obstáculo,

ou embaraço, ou dificuldade alguma, tanto agora como no futuro”. Vide REILY, 1993. pp. 40/41.

468

Page 14: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

Os elementos constitucionais mais característicos da relação Estado-igreja durante o

Império foram os seguintes: havia a confessionalidade do Estado (vivenciava-se um Estado

confessional com claro regalismo); havia o caráter público e oficial da Igreja Católica

Apostólica Romana; havia tolerância religiosa individual e coletiva; as religiões não-católicas

deveriam manter-se fora do espaço público. Sem dúvida, durante o Império, o regime do

padroado foi mantido. Observe-se também que o preâmbulo da Constituição invocava a

proteção da Santíssima Trindade. O texto constitucional ainda estabelecia que os cemitérios

eram religiosos, sendo que havia a recusa de sepultamento para os que não professavam a

religião do Estado. O padroado, todavia, deixava de ser uma concessão papal e transmudara-

se num direito próprio do principado civil. Nesse sentido, o § 2º do art. 102 da Constituição,

além de conceder a faculdade ao imperador para nomear bispos, conferia-lhe também a

possibilidade de promover benefícios eclesiásticos e negar a vigência de qualquer norma

eclesiástica que fosse contrária aos dispositivos constitucionais. Em suma, a

constitucionalização da tolerância religiosa foi o marco mais relevante deixado pela Carta

Política do Império.

A monarquia brasileira se fragilizou ao longo dos anos. Em consequência,

começaram a ser ouvidas, por todos os lados, vozes a defender a implantação da República.

Ademais, estavam cada vez mais presentes as ideias liberais. No campo das relações travadas

entre o poder político e o religioso, o liberalismo influenciaria diversos setores da sociedade,

difundindo ideias de liberdade, livre-arbítrio, gradativa emancipação da pessoa humana e

crença no valor de cada indivíduo. A propagação dessas ideias liberais ocorreu,

fundamentalmente, em seguida à distribuição de diversos periódicos franceses e por meio dos

estudantes brasileiros que se graduavam em Coimbra. A ação da maçonaria também foi

relevante na propagação do liberalismo no Brasil (SILVA, 2004, p. 33). Desde que foi

fundada a Grande Loja de Londres, em 1717, a maçonaria passou a refletir o espírito do

século: tolerância religiosa; fé no progresso da humanidade e em Deus (considerado pelos

maçons como o Supremo Arquiteto da humanidade); racionalismo; aversão pelo sacerdócio

oficial e pela fé em milagres. Por essa identificação com os pensamentos libertários da

Revolução Francesa e pela presença de seus membros em quase todos os movimentos

revolucionários que eclodiram à época (aí se incluindo a proclamação da República no

469

Page 15: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

Brasil), a maçonaria passou a ser identificada como a grande inimiga do trono e do altar,

tornando-se o alvo preferencial da nominada “Santa Aliança”.5

O consórcio (quase uma simbiose) existente entre os poderes político e religioso, que

perdurou até o final do Império, produziu uma série de atritos e de distorções. Vários foram os

confrontos decorrentes da natureza antiliberal do Estado e das constantes interferências

religiosas no Estado e deste na igreja, contribuindo para a derrocada imperial (RIBEIRO,

2002, p. 83). Com efeito, a abolição da escravatura, ditada pela Lei Áurea, somada às pressões

de relevantes figuras públicas (muitas das quais por meio da maçonaria e outras ligadas a

autoridades católicas) abriram uma fenda nas relações estabelecidas entre o governo imperial

e a Igreja Católica. Essa fissura fomentou o episódio conhecido por “questão religiosa”,

culminando por conduzir à proclamação da República, em 15 de novembro de 1889 (SILVA,

2004, p. 34). É inegável que a “questão religiosa” foi o evento catalisador do distanciamento

entre a Igreja Católica e o regime imperial. A partir daí, a continuidade da aliança entre igreja

e Estado tornara-se insustentável, sendo a questão religiosa elemento decisivo e determinante

para a vitória dos propósitos de instalação republicana no Brasil. Naturalmente, as

significativas modificações no quadro político provocaram claros desdobramentos na temática

religiosa.

4. A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA E A QUESTÃO RELIGIOSA

A liberdade religiosa e a laicidade do Estado em terras brasileiras foram

estabelecidas logo após a proclamação da República e, até mesmo, antes de ser promulgada a

primeira Constituição republicana. Esse foi o momento de viragem da temática religiosa no

Brasil que, desde 1500, caracterizara-se pela existência de uma confissão religiosa imposta ou

recomendada pelo Estado. Assim, a partir da proclamação da República, o Estado deixou de

ser o mandatário da igreja.

Com efeito, em 07 de janeiro de 1890, foi promulgado o Decreto nº 119-A, do

governo provisório, estabelecendo a separação entre o Estado e as igrejas, determinando-se,

também, a extinção do padroado. Desde o advento do citado diploma legal, o Estado

brasileiro assumiu a posição de garantidor da liberdade e da pluralidade religiosa. A doutrina

especializada atribui a Rui Barbosa a redação da normativa de separação. Para José Afonso da

5 Isabel Lustosa realizou um estudo de fôlego, com abordagem predominantemente histórica, sobre a

importância da maçonaria na proclamação da República do Brasil e na defesa dos pensamentos liberais. Vide

LUSTOSA, 2000, pp. 56/58.

470

Page 16: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

Silva (1997, p. 244), a República principiou estabelecendo a liberdade religiosa, bem como a

separação entre igrejas e Estado. Isso se deu antes mesmo da constitucionalização do novo

regime, com o citado Decreto nº 119-A, de 1890, expedido pelo governo provisório.

Para Guedes Soriano (2002, p. 73), Rui Barbosa teve um papel fundamental no

processo de separação entre as igrejas e o Estado e também na promoção da liberdade

religiosa. O sistema republicano emergente não mais podia conviver com as restrições à

liberdade religiosa, especialmente no que se referia ao culto religioso. A liberdade de

pensamento e de consciência, conforme alegava Rui Barbosa, era de pouca valia, quando se

restringia a exteriorização dessas faculdades. Por essa razão, procurou-se fazer do Brasil um

Estado laico, observando-se que tal rompimento ocorreu com relativa tranquilidade e sem

movimentos anticlericais violentos. A participação de Rui Barbosa foi decisiva para a

elaboração de um texto que enfrentou, com serenidade, um dos temas mais delicados do

Estado brasileiro de então. Segundo a doutrina especializada, além de discreto e preciso, o

texto não continha excessos, nem expressava ódios ou quaisquer sentimentos antirreligiosos

(SCAMPINI, 1974, p. 378).

A ideia de separação contava com robusta aceitação popular, entendendo-se que

contribuiria para a pacificação nacional e a promoção da estabilidade da República. Some-se a

esse elemento o auspicioso fato de que não houve qualquer expropriação de propriedades e de

bens da religião majoritária. Mesmo no seio desta, havia vozes preferindo a liberdade

religiosa republicana ao tratamento dispensado pelo antigo modelo de religião oficial

imperial. Usava-se o argumento de que a proteção estatal anteriormente concedida pelas

autoridades políticas do Império tinha se convertido numa espécie de engessamento das

atividades religiosas.

Além das contínuas ingerências imperiais nos domínios da igreja, havia uma

sistemática frieza, para não dizer desprezo, no que concerne aos reclamos da religião católica.

Sendo assim, de maneira geral, a posição da Igreja Católica quanto à lei de separação foi de

concordância. Até porque, da forma como foi redigido o decreto da separação, assegurava-se

à Igreja Católica uma gama de liberdades como ela nunca logrou ter no tempo da Monarquia

(SCAMPINI, 1974, p. 380). Contudo, não deixaram de existir críticas6, sendo as mais

evidentes aquelas contra a secularização dos cemitérios públicos e o reconhecimento jurídico

limitado ao matrimônio civil (ALVES, 2008, p. 54/55).

6 A pastoral coletiva (constituída pelo arcebispo da Bahia, dez bispos e um vigário capitular), em 19 de março de

1890, aprovou um dos raros documentos de maior contestação da Igreja Católica em face da Lei de Separação.

Nesse documento, lamentava-se a cisão, afirmando-se que o trono poderia ter desaparecido de terras brasileiras,

mas que o altar ainda se encontrava de pé.

471

Page 17: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

Para autores como Pedro Oro (2005, p. 439), Augusto Kirchhein (2003, p. 51),

Mainwaring (1989) e Giumbelli (2002, p. 238), a natureza pacífica da separação brasileira

entre o Estado e as Igrejas encontrava justificativa no fato de que a implantação jurídica da

liberdade religiosa deu-se por meio de iniciativas estatais e não tanto como fruto de pressões

populares. Como outro motivo suscitado para que a laicização brasileira fosse pouco

conflituosa, dizia-se que a questão da laicidade não conseguiu alcançar, no Brasil, um público

abrangente, ficando circunscrita às elites eclesiásticas, políticas e intelectuais. Tal

peculiaridade contribuiu para que o sentimento e a própria constatação popular de mudança

tivessem sido tímidos.

As mais marcantes modificações decorrentes do Decreto nº 119-A, de 1890, e que,

segundo Medeiros Alves (2008, pp. 54/55), teriam se perenizado no direito brasileiro foram as

seguintes: separação normativa entre o Estado e as igrejas, razão pela qual nem a União nem

os Estados Federados poderiam expedir quaisquer normas sobre assuntos religiosos, vedar o

seu livre exercício ou sustentar qualquer culto às expensas do dinheiro público; plena

liberdade interna e administrativa das organizações religiosas, o que incluiria o direito à livre

constituição civil, segundo o seu credo e disciplina; ilicitude de quaisquer atos públicos ou

privados que viessem a impossibilitar o livre exercício da liberdade religiosa coletiva previsto

no decreto; liberdade religiosa como expressão de um direito civil individual e também

coletivo, com pleno reconhecimento público da personalidade jurídica de direito privado

(não-estatal) das organizações religiosas e do direito destas de adquirir, gerenciar e manter seu

acervo patrimonial; extinção do padroado do Estado sobre a Igreja Católica, com todas as suas

instituições próprias, prerrogativas e recursos administrativos. Esta derradeira alteração foi de

suma importância, eis que – na prática e em concreto – propiciou a garantia e a efetividade

das demais medidas.

A Carta Política de 1891 promoveu a constitucionalização da natureza laica do

Estado, deixando evidenciada a separação entre o poder político e o religioso. Esta é a

constatação a que se chega a partir da detida análise dogmático-constitucional do seu texto. O

§ 2º do artigo 11 vedava aos Estados, bem como à União, estabelecer, subvencionar ou

embaraçar o exercício dos cultos religiosos. O art. 72 resumia a mudança no tratamento da

temática religiosa no país, ao dispor que todos os indivíduos e confissões religiosas podiam

exercer, pública e livremente, o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens,

observadas as disposições do direito comum (§ 3º); a República reconheceria apenas o

casamento civil (§ 4º); os cemitérios passaram a ter caráter secular, sendo administrados pela

autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos

472

Page 18: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

em relação aos seus crentes, desde que não ofendessem a moral pública e as leis (§ 5º); o

ensino ministrado nos estabelecimentos públicos seria laico (§ 6º); nenhum culto ou igreja

gozaria de subvenção oficial, nem teria relações de dependência ou aliança com o governo da

União ou o dos Estados (§ 7º); por motivo de crença ou função religiosa, nenhum cidadão

brasileiro poderia ser privado de seus direitos civis e políticos nem eximir-se de cumprimento

de qualquer dever cívico (§ 28º); os que alegassem motivo de crença religiosa com o fim de se

isentarem de qualquer ônus que as leis da República impusessem aos cidadãos, e os que

aceitassem condecorações ou títulos de nobiliárquicos estrangeiros perderiam todos os

direitos políticos (§ 29º).

Desde o nascimento da República brasileira, foi instituída a liberdade religiosa e

como tal ela se constitui em patrimônio jurídico a ser preservado. Tal foi o entendimento que

norteou as demais cartas constitucionais da República Federativa do Brasil ao longo do século

XX.

5. A QUESTÃO RELIGIOSA NA CONSTITUIÇÃO DE 1934

Registre-se, desde logo, a natureza muito efêmera da Constituição de 1934, tendo

sido a de menor tempo de vigência em toda a história constitucional brasileira. A Lei

Fundamental em apreço foi decorrente da Revolução Constitucionalista de 1932, ocasião em

que a força pública do Estado de São Paulo entrou em choque com o exército brasileiro. Era

evidente, ao final da dita revolução, a necessidade de profundas alterações na Constituição de

1891, já obsoleta em face do dinamismo e da rápida evolução da política brasileira no início

do século XX. A Carta reformulava a organização da República Velha e era marcada por

mudanças progressistas.

No que tange à temática religiosa, em virtude de pressão de grupos políticos de

interesses religiosos e com lastro em bases liberais mais moderadas, a Constituição

incorporava ares de maior colaboração estatal para com as confissões religiosas. Se na

Constituição de 1891 a laicidade era marcada pelo distanciamento, o novo texto constitucional

caracterizava-se por uma laicidade positiva, aqui entendida como o Estado que deve ter em

conta as crenças religiosas na sociedade, não podendo ignorar o fenômeno religioso. O

modelo brasileiro deixava de ser o de laicidade por omissão, caracterizada pelo

distanciamento do Estado em face da questão religiosa, e passava a assumir o aspecto de uma

laicidade por atenção.

473

Page 19: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

Não se pode esquecer que, uma vez convocada a Assembleia Constituinte, a igreja

participou do processo de escolha dos seus integrantes, por intermédio da Liga Eleitoral

Católica. Tratava-se de uma entidade comandada por leigos que defendiam uma série de

propostas para a nova Constituição, dentre as quais constava a indissolubilidade do

casamento, com a não aceitação do divórcio e a atribuição de efeitos civis ao casamento

religioso.7 Pode-se afirmar, então, que a Carta Política de 1934 promoveu, em certa medida,

uma recristianização da legislação brasileira. Não representou um retorno ao passado da união

entre o Estado e as igrejas, mas assegurou um respeito ao sentimento religioso dos cidadãos

(KOWALIK, 2009, p. 3). Não obstante tenha mantido a natureza laica do Estado brasileiro,

relativizou a separação entre o campo religioso e o político, evitando que fosse total, completa

e absoluta.8

Tanto é assim que houve um movimento “contra o laicismo da Constituição de 1891”

que conseguiu estabelecer um novo modus vivendi entre as religiões e o Estado. Como

resultado, foram aprovadas na Constituição de 1934 cinco alterações dignas de destaque nesta

temática. Como primeira, mencionou-se, no preâmbulo da Constituição, que os representantes

do povo brasileiro punham a sua confiança em Deus, invocado no ato de promulgação do

texto constitucional. A segunda alteração consistiu numa cláusula aposta ao texto de vedação

de subvenção oficial aos cultos e a aliança ou dependência. Com efeito, o constituinte de 1934

manteve o texto e o sentido do Decreto 119-A de 1890 e da Constituição de 1891. Todavia,

estabeleceu uma ressalva, no sentido de admitir no Brasil a cooperação entre Estado e igrejas.

Haveria, pois, que se relativizar a proibição de auxílios do Estado em prol das igrejas, quando

o interesse coletivo o exigisse.

7 O Supremo Tribunal Federal apreciou a retomada, pela Constituição de 1934, da aceitação de efeitos civis ao

casamento religioso. Com efeito, o então Ministro Cunha Peixoto, relator dos embargos no recurso

extraordinário registrado sob o nº 83.859-7/RJ, afirmou que a Constituição de 1934, abandonando o critério

rígido relativamente ao casamento leigo, prevalente no início da República, seguiu um caminho mais liberal,

permitindo o casamento religioso com efeito civil, mediante a observância de algumas formalidades que o

subordinavam à legislação material. Destacou ele a indispensabilidade de que os nubentes se habilitassem

perante a autoridade civil, para resolver os casos de oposição e verificar a existência ou não de impedimentos.

Apenas desse modo é que poderia o casamento celebrado perante sacerdote ou ministro de entidade religiosa ser

inscrito no Registro Civil. 8 Para muitos pensadores, desde longa data, ou existe separação absoluta ou não existe separação. Não haveria,

portanto, um ponto intermediário. Apenas a título ilustrativo, Melasporos foi um dos primeiros no Brasil a

registrar a necessidade de uma separação total entre o poder político e o religioso. Para ele, a separação completa

entre igrejas e Estado, a independência absoluta do poder religioso na economia, governo e direção dos cultos,

era o único meio de tornar satisfatórias as relações dos poderes civil e eclesiástico. Afirmou ainda que toda

restrição à liberdade do homem no exercício desse direito inalienável, toda intervenção coativa no cumprimento

dessa obrigação, todo esforço para constranger a consciência era um atentado contra a prerrogativa reservada e

privativa de Deus sobre o homem. Até porque a crença e o culto não podem ser agradáveis a Deus, senão quando

voluntários. Vide MELASPOROS, 1866. p. 26 e pp. 17/18.

474

Page 20: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

A terceira modificação dizia respeito ao reconhecimento dos efeitos civis ao

casamento religioso. Nesse aspecto, observou-se a pluriconfessionalidade religiosa, eis que o

casamento celebrado perante o ministro de qualquer confissão religiosa, cujo rito não

contrariasse a ordem pública ou os bons costumes, produziria os efeitos civis. A quarta

mudança permitiu a assistência religiosa em instituições públicas de internamento coletivo,

como hospitais, penitenciárias e instituições militares (registre-se que tal assistência, por

expressa disposição do art. 113, nº 6, haveria de ser sem ônus para os cofres públicos e não

poderia causar constrangimento ou coação aos assistidos).

A quinta alteração relevante no texto constitucional de 1934 foi a introdução do

ensino religioso como matéria facultativa nas instituições públicas. Essas mudanças foram

interpretadas como sinais marcantes da ruptura que o constituinte de 1934 efetuou do texto da

primeira Carta Constitucional da República (ALVES, 2008, pp. 61/62). Houve ainda algumas

alterações secundárias envolvendo as relações entre o Estado e as igrejas, tais como o retorno

da gestão dos cemitérios por parte das igrejas e a explicitação de que as associações religiosas

adquiririam sua personalidade jurídica, nos termos da lei civil.

No entendimento de Milton Ribeiro (2002, p. 86), a restrição da liberdade religiosa

em face da ordem pública e dos bons costumes teria a finalidade de abrir espaços contrários à

liberdade de crença e de culto. No entanto, o presente estudo entende que tais limitações

decorreram da natureza não absoluta de qualquer direito fundamental, mesmo o de liberdade

religiosa. Com efeito, como os direitos e os seus titulares estão em constante interação, é de se

louvar a prudência do constituinte de 1934 em reafirmar a possibilidade de, numa ponderação

de valores, fazer necessárias e pontuais restrições à liberdade de crença e de culto. Logo, não

se enxerga qualquer pretensão constitucional de sufocamento da crença ou do culto, mas sim

o desejo de compatibilizar tais garantias com outros bens jurídicos de igual grandeza e

dignidade constitucionais.

Reconheça-se também que o espírito da Constituição era respeitoso para com as

escolhas religiosas dos indivíduos, ao estabelecer que não haveria quaisquer privilégios ou

distinções por motivo de crenças religiosas ou concepções políticas (art. 113, item 1º). Como

reforço ou complemento, também ficou estabelecido que ninguém seria privado de qualquer

de seus direitos por motivo de convicções filosóficas, políticas ou religiosas (art. 113, item

4º). Por fim, a Constituição consagrou a inviolabilidade de consciência e de crença e garantiu

o livre exercício dos cultos religiosos, desde que não houvesse qualquer contrariedade à

ordem pública e aos bons costumes (art. 113, item 5º). Para alguns mais críticos, a

Constituição de 1934 teria sido a mais católica da história do constitucionalismo brasileiro.

475

Page 21: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

Afirma-se que a grande proximidade de Getúlio Vargas (que viria a governar o Brasil entre

1930 e 1945) com importantes autoridades eclesiásticas teria permitido que a Igreja Católica

recuperasse uma série de privilégios. A religião católica ostentava, no dizer de Ricardo

Mariano (2001, p. 145), o status de religião “quase-oficial” do país.

Como já referido no início deste tópico, a Carta Constitucional de 1934 foi bastante

fugaz. Em 10 de novembro de 1937, em pleno período de campanha presidencial, Getúlio

Vargas, sob o falacioso argumento de que se deveria deter a iminente infiltração comunista

em terras brasileiras, outorgou uma nova Constituição, deixando de ser um legítimo

presidente e transformando-se em ditador. Por conseguinte, o Estado revolucionário e

libertário até então pregado pela Carta de 1934 seria substituído por um Estado com

indisfarçável perfil autoritário.

6. A QUESTÃO RELIGIOSA NA CONSTITUIÇÃO DE 1937

A Carta Política de 10 de novembro de 1937 manteve a separação entre o Estado e as

igrejas, respeitando a tradição e o espírito republicano que se instalara desde o final do século

anterior. Tal assertiva resta evidente quando se aprecia a alínea “b” do art. 32 do referido

texto mandamental, que estabelecia ser vedado à União, aos Estados e aos Municípios

estabelecer ou subvencionar o exercício dos cultos religiosos. Entretanto, o espírito de

laicidade por atenção deixa de existir, verificando-se um retorno ao modelo de laicidade por

omissão. Tal fato comprometeu o cânone da cooperação entre o Estado e as confissões

religiosas. Pontes de Miranda (Apud SCAMPINI, 1974, p. 164) confirma essa mutação, ao

afirmar que a Constituição de 1937, no que se refere à laicidade do Estado, teria saltado a de

1934 e retornado a de 1891.

A Carta em exame não fez menção expressa à liberdade de consciência e de crença,

referindo-se apenas à liberdade de culto. Nesse sentido, o item 4 do art. 122 preconizava que

todos os indivíduos e confissões religiosas poderiam exercer, pública e livremente, seu culto,

associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum,

as exigências de ordem pública e dos bons costumes. O presente texto atribui a ausência de

referência à liberdade de consciência e de crença, entre outros motivos, ao fato de a

Constituição ter sido elaborada de afogadilho, com evidente má técnica legislativo-

constitucional. Contudo, é preciso fazer uma interpretação mais alargada do art. 123 da

Constituição de 1937. Dispunha o referido dispositivo que a especificação das garantias e

direitos enumerados não excluiria outras garantias e direitos resultantes da forma de governo e

476

Page 22: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

dos princípios consignados na Constituição. Tal abertura poderia servir para abranger as

liberdades de consciência e de crença.

No que concerne ao casamento, a Constituição de 1937 quedou-se silente, não

dispondo sobre o matrimônio civil nem sobre o religioso, tendo deixado o regramento de tão

importante matéria para a regulamentação infraconstitucional. Houve, por conseguinte, a

recepção da Lei nº 379, de 16 de janeiro de 1937, que tinha atribuído os efeitos civis ao

casamento religioso previsto na Constituição de 1934.

Com a queda de Getúlio Vargas e o fim do Estado Novo, era necessária a elaboração

de uma nova Carta Constitucional, menos centralizadora e mais consentânea com os

parâmetros democráticos que voltavam a ser vislumbrados no território brasileiro. No campo

religioso, verificava-se o aumento do número de religiões não-católicas. Esse fato levou o

texto constitucional a ser mais receptivo para com a ideia de igual dignidade constitucional

das diversas confissões religiosas. É o que se irá estudar em seguida.

7. A QUESTÃO RELIGIOSA NA CONSTITUIÇÃO DE 1946

A Constituição de 1946, promulgada em 18 de setembro, foi resultado do processo

de redemocratização do país. Entre outras inovações, trouxe, em seu texto, vários preceitos no

sentido de evitar o centralismo e, assim, buscar implantar, efetivamente, o federalismo em

terras brasileiras. O contexto histórico nacional (com a queda do regime ditatorial de Getúlio

Vargas) e mundial (com a derrota de Adolf Hitler e de seus aliados na II Guerra Mundial) não

permitia a continuidade de asfixias à democracia. Assim, era chegado o momento de se

romper com o modelo anteriormente imposto e diluir as responsabilidades decisórias pelos

componentes da estrutura federativa. Impunha-se também promover a descentralização e a

desconcentração administrativas, para além de inserir, no contexto da dogmática

constitucional, uma série de valores e de axiomas9 esquecidos até o conhecimento dos

horrores praticados no decorrer da II Guerra Mundial. Partindo do fato de que a Constituição

democrática de 1946 resgatou o federalismo no Brasil, Michel Temer (2000, p. 72) assinala

que, nessa quadra histórica, o país experimentou a democracia de uma forma mais ampla e os

Estados-membros recuperaram parte de sua autonomia política.

9 A doutrina constitucional espanhola faz menção aos valores superiores que devem ser perseguidos pela

Espanha. A vigente carta constitucional do Brasil refere-se, em seu preâmbulo, aos valores supremos da

sociedade brasileira. A carga axiológica hoje vivenciada muito se deve aos primeiros textos constitucionais do

pós-guerra. Acerca do problema dos valores nas constituições hodiernas, vide CUNHA, 2008. pp. 83/90.

477

Page 23: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

Fazendo-se um cotejo histórico-constitucional, verifica-se que a Carta de 1946 tinha

grandes aproximações com a Constituição de 1934, com algumas melhorias e

aprimoramentos. Ademais, teve o condão de provocar alargadas consequências no tratamento

das questões do direito da religião em terras brasileiras. A Lei Fundamental de 1946 manteve

a separação entre as igrejas e o Estado, conforme se depreende da leitura do seu art. 31.

Dispunha ele que era vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios

estabelecer ou subvencionar cultos religiosos ou embaraçar-lhes o funcionamento. Além

disso, proibia aos entes federados manter relação de aliança ou dependência com qualquer

culto ou igreja, ficando ressalvada, todavia, a colaboração em prol do interesse coletivo.

A Carta Política de 1946 proclamou a inviolabilidade da liberdade de consciência e

de crença, bem como assegurou o livre exercício dos cultos religiosos, excetuando-se os casos

em que eles contrariassem a ordem pública ou os bons costumes (§ 7º do art. 141).

Estabeleceu que, por motivo de convicção religiosa, filosófica ou política, ninguém poderia

ser privado de nenhum de seus direitos. Ressalvava apenas a possibilidade de alguém invocar

essa convicção para se eximir de obrigação, encargo ou serviço impostos pela lei aos

brasileiros em geral, ou recusasse os que ela estabelecesse em substituição daqueles deveres, a

fim de atender escusa de consciência (§ 8º do art. 141).

Seguindo esse ideário, prescreveu que, sem constrangimento dos favorecidos, fosse

prestada (por cidadão brasileiro) assistência religiosa às forças armadas e, quando solicitada

pelos interessados ou seus representantes legais, também nos estabelecimentos de internação

coletiva (§ 9º do art. 141). Preconizou, ainda, que os cemitérios teriam caráter secular e que

seriam geridos pela autoridade municipal. Nesse aspecto, convém destacar que permitiu a

quaisquer confissões religiosas praticar seus ritos no recinto dos cemitérios. Também é digno

de nota o fato de o texto constitucional permitir que as associações religiosas mantivessem

cemitérios particulares (§ 10 do art. 141).

Ademais, reafirmou a liberdade religiosa no Brasil, ao determinar, no § 1º do art.

141, ser inviolável a liberdade de consciência e crença, assegurando o livre exercício dos

cultos religiosos, salvo se contrariassem a ordem pública e os bons costumes. O Estado tomou

para si a missão de proteger as manifestações da liberdade religiosa, obrigando-se, por

imperativo constitucional, a impedir perturbações que partissem de terceiros e que tivessem

por finalidade o atingimento do efetivo direito de manifestação da pertença religiosa

(SCAMPINI, 1974, p. 178).

Ainda na esteira da retomada de preceitos da Constituição de 1934, o § 7º do artigo

141 da Carta de 1946 estabeleceu que a aquisição da personalidade jurídica das associações

478

Page 24: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

religiosas dar-se-ia na forma da lei civil. Todavia, elas tinham liberdade para comprar ou

alienar bens, sendo-lhes também assegurado o direito de auto-organização. Outro retorno ao

espírito da Carta de 1934 foi observado no que concernia ao casamento. Nesse sentido, o art.

163, §§ 1º e 2º, tanto permitia a celebração separada do casamento civil e do religioso, como

também reconhecia a celebração conjunta, observando-se os ritos religiosos de cada

confissão, bem como as prescrições da lei civil. Como se observa, compôs-se um Estado mais

amigo e, consequentemente, mais colaborativo com a religião, sem que com ela se

confundisse.

8. A QUESTÃO RELIGIOSA NA CONSTITUIÇÃO DE 1967 E NA EMENDA

CONSTITUCIONAL Nº 1/1969

O pêndulo da história fez com que o Brasil voltasse a vivenciar um regime ditatorial,

tendo sido elaborada, por conseguinte, uma nova constituição autoritária. Registre-se que o

movimento antidemocrático imposto pelos militares em 1964 era, à época, uma constante na

América Latina. Nesse contexto, em 24 de janeiro de 1967, foi aprovada a nova Constituição

brasileira. O objetivo era institucionalizar e legalizar o regime militar que promovera o golpe

em 1964. Estabelecia-se, no ordenamento jurídico brasileiro, uma hierarquia constitucional

centralizadora, ante o maior peso concedido ao Poder Executivo em detrimento do Poderes

Legislativo e Judiciário. Não obstante o novo texto constitucional tenha mantido,

formalmente, o Brasil como uma federação, saltava aos olhos o seu desiderato centralista.

O relacionamento entre o Estado e a religião, como era de se esperar, também sofreu

mutações com a nova ordem constitucional militarizada, ante a tendência, própria dos

governos antidemocráticos, no sentido de centralizar a temática em legislação federal. Como

se não bastasse, o texto constitucional achou por bem enumerar os campos de atuação

preferencial de cooperação entre o Estado e as igrejas. Tais inovações funcionaram como

cláusulas limitatórias ou restritivas da cooperação entre o poder político e o poder religioso. O

art. 9º da Carta Constitucional de 1967 estabelecia, em seu inciso II, que era proibido à União,

aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas,

subvencioná-los, embaraçar-lhes o exercício ou manter com eles ou seus representantes

relações de dependência ou aliança. Ressalvava, entretanto, a colaboração por interesse

público, na forma e nos limites da lei federal, notadamente no setor educacional, no

assistencial e no hospitalar.

479

Page 25: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

Na esteira da fragilização da liberdade de expressão, o parágrafo único do art. 30

estabelecia que não seria tolerada a publicação de pronunciamentos que envolvessem ofensas

às instituições nacionais, propaganda de guerra, de subversão, de ordem política ou social, de

preconceitos de raça, de religião, dentre outras. Na mesma linha repressiva de manifestação, e

com claro ar de reiteração do pensamento anteriormente descrito, o § 8º do art. 15310

determinava que não seriam toleradas as propagandas de guerra, de subversão da ordem ou de

preconceitos de religião, de raça ou de classe e de publicação e exteriorização contrárias à

moral e aos bons costumes.

O art. 15011

garantia que todos eram iguais perante a lei, sem distinções relativas ao

sexo, à raça, ao trabalho, ao credo religioso e às convicções políticas (§ 1º). Também

estabelecia ser plena a liberdade de consciência, ficando assegurado aos crentes o exercício

dos cultos religiosos, que não contrariassem a ordem pública e os bons costumes (§ 5º).

Igualmente, prescrevia que, por motivo de crença religiosa, ou de convicção filosófica ou

política, ninguém seria privado de qualquer dos seus direitos, salvo se a invocasse para

eximir-se de obrigação legal imposta a todos. Nesse caso, a lei poderia determinar a perda dos

direitos incompatíveis com a escusa de consciência (§ 6º).

O governo militar, atendendo às solicitações da Igreja Católica, por meio do § 1º do

art. 175 da Constituição, estabeleceu a indissolubilidade do casamento. Houve, porém, grande

pressão popular e desconforto religioso por parte de algumas religiões minoritárias, tudo em

virtude do fato de que o constituinte tinha desconsiderado as confissões religiosas que

admitiam a dissolução do enlace matrimonial. Em consequência dos reclamos populacionais,

foi aprovada a Emenda Constitucional nº 9, de 28 de junho de 1977, implantando o divórcio

no ordenamento jurídico brasileiro. A matéria foi regulamentada no mesmo ano, por

intermédio da Lei nº 6.515. Contudo, as garantias constitucionais referentes à liberdade

religiosa e de crença eram postas de lado quando estavam em causa questões de segurança

nacional. Flávio Pierucci e Reginaldo Prandi (1996, p. 247) afirmam que, nos chamados anos

de chumbo, não havia liberdade religiosa perante a doutrina da segurança nacional, nem

liberdade de palavra, de associação, de reunião, de divulgação e de imprensa.

O regime militar entrou em declínio, muito em virtude da pressão popular para

escolher o presidente da República que, segundo a Constituição de 1967, era eleito de forma

indireta, pelo Parlamento, bem como em face da insubordinação popular contra as atrocidades

10

Dispositivo constitucional reenumerado pela EC 1/69. 11

Com o advento da Emenda Constitucional nº 1/1969, o texto mencionado no trabalho passou a integrar o art.

153 e não mais o art. 150.

480

Page 26: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

cometidas. Com o término do período ditatorial, houve a redemocratização do Brasil. Com

isso, houve a necessidade de elaboração de uma nova Carta Constitucional que trouxesse no

seu corpo uma carga valorativa mais democrática e mais respeitosa para com os direitos

fundamentais. Nesse novo contexto, foi promulgada a Constituição de 1988. Também é

inequívoco que a nova modelação constitucional tinha palavras a proferir sobre a temática

religiosa.

9. A QUESTÃO RELIGIOSA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Precedida de intensa expectativa popular, foi promulgada, em 05 de outubro de 1988,

a atual Lei Fundamental brasileira. A nova Constituição consagrava em seu texto: o

estabelecimento de um extenso rol de direitos detentores de fundamentalidade; a consignação

de mecanismos facilitadores da participação popular no cotidiano das decisões políticas e

administrativas do país; a indisfarçável crença do constituinte na natureza dirigente da nova

Constituição. Recebeu a denominação popular de Constituição Cidadã, mormente porque

elevou a dignidade da pessoa humana ao status jurídico de fundamento da República. Nesse

sentido, partiu do reconhecimento de que a pessoa constitui-se no preferencial alvo estatal,

não podendo ser reduzida a um elemento secundário (não supremo) do ordenamento jurídico.

Noutras palavras, a dignidade da pessoa humana, como fundamento republicano, exige que se

interprete o Estado como um Estado de cidadãos, construído a partir da pessoa e para servi-la

(COSTA, 1999. pp. 191/199).

Tais particularidades da vigente Constituição brasileira, mormente com uma

preocupação mais inclusiva do constituinte para com os cidadãos e com um maior respeito

democrático pela diversidade, tiveram desdobramentos na abordagem da temática religiosa.

Para Chaitz Scherkerkewitz (1996, pp. 60 e ss.), ela consagra a liberdade de religião como

sendo um direito fundamental, além de prescrever que a República Federativa do Brasil se

constitui em um Estado laico. Significa que o constituinte firmou a democrática opção de

atribuir ao Estado o encargo de proporcionar a seus cidadãos um clima de perfeita

compreensão religiosa, proscrevendo a intolerância e o fanatismo. Assegurou a existência de

uma cristalina divisão entre o Estado e as igrejas, não sendo possível o estabelecimento de

uma religião oficial. Dentro de um contexto de dever de proteção, o Estado brasileiro tomou

para si a tarefa de proteger e garantir o livre exercício de todas as religiões.

Registre-se, entretanto, que o preâmbulo da vigente Carta Política brasileira

promoveu uma invocação divina que parece colidir com a natureza laica do Estado, também

481

Page 27: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

proclamada pela mesma Constituição (art. 5º, inciso VI, e art. 19, inciso I). Tal matéria é para

muitos um falso problema, porquanto o Supremo Tribunal Federal brasileiro firmou o

entendimento de que o preâmbulo não seria detentor de força jurídica, expressando apenas

uma conotação meramente histórica e política. Não é objeto deste trabalho discutir a natureza

das disposições constitucionais preambulares. Porém, independentemente da natureza da

motivação do preâmbulo (jurídica, política ou histórica), ele parece pouco respeitoso para

com os ateus. Afinal, são cidadãos que merecem de todos e do Estado igual direito, respeito e

consideração, de modo que não se deveria invocar qualquer divindade na Lei Maior de uma

nação.

A par disso, não se pode olvidar que a inserção de figuras divinais no preâmbulo da

Constituição é uma característica marcante nos textos de outrora, sendo igualmente certo que

tem se verificado, nos dias atuais, uma queda de intensidade do uso de tal invocação. Apenas

para uma breve aportação historiográfica (eis que não se tem qualquer pretensão de fazer-se

uma abordagem científica da história dessa temática), registre-se que foi atitude comum a

invocação do nome de Deus em remotas leis da humanidade, apontando-se os seguintes

exemplos: Hamurabi fez a abertura do seu Código de Leis fazendo, invocando o Deus Anum;

Justiniano promulgou seu Digesto com a constituição Deo auctore; o Código de Sete Partidas

trazia em seu frontispício a máxima “Deus é o começo, o meio e o fim de todas as coisas”; as

Leis das Índias começavam invocando por “Deus, nosso senhor”.12

Contudo, existe, nos presentes dias, uma tendência no sentido de se evitar, dentro de

um pensamento secularizado, a invocação divina no interior das disposições normativas. Um

dos mais claros exemplos do que se alega foi a versão final do preâmbulo do Tratado para

uma Constituição Europeia (de Roma). Após um debate ferrenho ocorrido com as igrejas

(que, na sua maioria, insistiam na inserção do nome de Deus no frontispício constitucional), o

referido Tratado não contém qualquer referência a Deus nem faz menção ao cristianismo ou à

herança cristã da Europa. Dentre os principais argumentos para a já citada curva de

intensidade decrescente do uso do nome de Deus na linguagem jurídica, destacam-se: a

racionalidade, a pureza da lei, o progresso e a secularização.13

12

Para uma visão global a respeito da pertinência ou não de se invocar, em textos jurídicos (aí se incluindo a

legislação, a doutrina e a jurisprudência), o nome de Deus, vide F. PUY, 1988. pp. 487/499. 13

PÉREZ RUIZ, 1985. O autor elenca a concepção de vários autores, no sentido de que seria pouco racional ou

científico o uso ou o recurso aos deuses para a decisão dos casos juridicamente relevantes (primado da

racionalidade). Afirma que a pureza metódica de Kelsen seria impeditiva de qualquer elemento estranho ao

mundo jurídico, aí se incluindo o religioso (preceito da pureza). Aduz, outrossim, que o progresso científico e

tecnológico seria inconciliável com o aparente atraso de se sobrepor o ordenamento jurídico vigente a aspectos

metafísicos (cânone do progresso). Por fim, garante que o avanço da sociedade fê-la afastar-se de apegos

religiosos, tornando-a secularizada. Por essa razão, não se poderia mais admitir que os paradigmas clericais

482

Page 28: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

O constituinte originário da Carta Constitucional vigente no Brasil, ignorando essa

nova tendência mundial, manteve-se fiel ao modelo clássico. Mantendo a tradição, assinalou,

no preâmbulo, que estava a promulgar aquela Constituição “sob a proteção de Deus”. Mesmo

os defensores do uso do nome de Deus nas normatizações afirmam que ele não pode ser

invocado de maneira vã. Essa invocação só deveria ocorrer nos raros casos em que tal fato

fosse necessário (circunstâncias em que o objeto a ser tratado na lei ou no julgamento fosse de

índole religiosa), sob pena de se vulgarizar o ato de invocação divina. Sendo assim, não é

necessário invocar Deus para promulgar a Constituição de um país. Trata-se de um fato

histórico, sociológico, jurídico e político, não tendo, portanto, conotação religiosa. Espera-se

que não se procure encontrar uma base anticlerical nas ideias ora expostas. Não se trata de

uma bandeira do ateísmo em face do teísmo, mas apenas da necessidade de tratamento

isonômico entre todas as pessoas que devem ser igualmente representadas e respeitadas no

texto constitucional (sejam elas crentes ou descrentes de qualquer religião).

O Estado brasileiro, dentro de seus quadrantes geográficos, tem o dever de

salvaguardar o pluralismo religioso. Deve, além disso, criar condições materiais para o livre

exercício dos atos religiosos por parte das diversas confissões religiosas, para além de velar

pela pureza do princípio da igualdade religiosa. Contudo, esse mesmo Estado, sem que tal

mister se constitua em paradoxo ou contradição com o citado preceito, deverá manter-se à

margem de assuntos religiosos, sem incorporar, em sua ideologia, a preferência por qualquer

religião.

A ideologia estatal deve ser arreligiosa. A liberdade religiosa é um princípio

estruturante da relação travada entre o poder político e o religioso, bem como um direito

jusfundamental. É o princípio jurídico central e basilar que regula as relações entre o Estado e

as igrejas, em consonância com o direito fundamental dos indivíduos e dos grupos de

defender e propagar suas crenças religiosas. Os demais preceitos do direito da religião lhe

serão acessórios e complementares, quase que a atuar como coadjuvantes e solidários do

cânone básico da liberdade religiosa (SORIANO, 1990, p. 61).

Alguns autores, diversamente do que aqui será defendido, acreditam no total acerto

do atual modelo constitucional brasileiro de defesa da liberdade religiosa. Para Flávio Pierucci

e Reginaldo Prandi (1996, pp. 276/277), a prática religiosa e as organizações religiosas não

sofrem nenhuma discriminação negativa. Para eles, os atores da cena religiosa gozam até

mesmo de privilégios normativos, significando que, se alguma discriminação existe, é de

fossem mantidos como determinantes para os atos gênese legislativa e de aplicação das normas para o caso

jurídico concreto (princípio da secularização).

483

Page 29: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

natureza positiva. Afirmam, em tom de arremate, que a liberdade religiosa está,

definitivamente, consagrada no ordenamento jurídico brasileiro.

Na mesma esteira de pensamento, Ricardo Mariano (2001, p. 165) afirma que a

liberdade religiosa, incorporada ao patrimônio jurídico do povo e do Estado brasileiro, se

efetivou plenamente após a segunda metade do século XX, firmando-se com uma base sólida

da realidade brasileira. Enfatiza, por fim, que atualmente situa-se na raiz da constituição do

pluralismo e do desenvolvimento do dinâmico mercado religioso brasileiro.

Firmado o contraponto argumentativo acima e tendo em conta o percurso histórico,

bem como o embasamento jurídico do tema, envereda-se pelo caminho das considerações

finais.

10. CONCLUSÕES

Não se pode negar que, ao longo dos anos, o Brasil conseguiu aprimorar, de forma

significativa, o tratamento destinado ao fenômeno religioso. No entanto, é preciso reconhecer

que ainda existe um longo percurso a ser vencido para a sedimentação de um Estado que,

simultaneamente, atenda a todos os cânones do direito da religião.14

Não se pode pensar que

já se alcançou a máxima efetividade social, política e jurídica da liberdade religiosa, nada

precisando melhorar quanto à laicidade, ao pluralismo religioso, à tolerância, à cooperação e à

igual dignidade constitucional das confissões religiosas. Pensar dessa forma seria ignorar as

perseguições e os privilégios ainda existentes no ordenamento jurídico e no trato

administrativo brasileiro, para além de conduzir a temática a um perigoso engessamento.

Entretanto, é de se reafirmar que os pontos mais conseguidos da temática religiosa no

Brasil, anteriormente listados, não podem ser confundidos com a suposta edificação de um

modelo juridicamente incriticável de laicidade e de liberdade religiosa. Existem problemas,

podendo-se apontar como um dos mais destacados a ausência de uma regulamentação

infraconstitucional. Some-se a isso a manutenção de uma jurisprudência nacional

comprometida com a religião católica, além de grande timidez doutrinário-jurídica no

enfrentamento da questão religiosa.

O modelo constitucional brasileiro, no que diz respeito à temática religiosa, ainda

preserva situações do tipo: a existência dos feriados religiosos; a ministração de educação

14

Em linha de concordância com o presente estudo, afirmando que o Brasil não seria um Estado inteiramente

laico, com especial enfoque na jurisprudência compromissária com a religião dominante, vide MARTEL, 2007.

pp. 11/57.

484

Page 30: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

religiosa nas escolas públicas; a participação de líderes religiosos nas campanhas eleitorais,

candidatando-se mesmo nos locais onde exercem as suas funções eclesiásticas; a existência e

a criação de partidos políticos que tenham programas e propostas assumidamente religiosos e

que tenham nomes ou símbolos de identificação com conotação religiosa; a previsão de

liberação de recursos estatais para a edificação de capelas, oratórios e congêneres nos prédios

públicos, valendo-se dos tributos de toda a sociedade, aí se incluindo os agnósticos e os ateus;

a manutenção dos crucifixos em salas de aula, nos plenários de várias Casas Legislativas, em

várias Cortes de Justiça do país e nos prédios públicos em geral.

Outro ponto problemático é que a Constituição atual não faz expressa menção à

liberdade religiosa, apenas tendo se limitado a textualizar a inviolabilidade da liberdade de

consciência e de crença. Pode parecer que se tratou apenas de um dos muitos silêncios do

constituinte. Porém, foram esses mesmos silêncios constitucionais sobre a temática religiosa

que permitiram que o governo brasileiro assinasse, em 13 de novembro de 2008, nova

Concordata com a Santa Sé, contendo alguns dispositivos de duvidosa harmonização com os

preceitos da laicidade estatal, da igualdade e da liberdade religiosas.

Não se pode negar que avanços ocorreram. Porém, diversas melhorias ainda

precisam ser implantadas para uma convivência cada vez mais harmônica entre as distintas

confissões religiosas e os seus adeptos. É também necessário estabelecer marcos divisórios

mais claros na atuação dos poderes político e religioso. Nessa perspectiva, a primeira

constatação a que se pode chegar ao longo deste extenso trajeto dogmático-constitucional da

liberdade religiosa no ordenamento brasileiro é que o fenômeno religioso foi sempre um tema

polêmico nos mais distintos momentos históricos e políticos da vida na nação brasileira:

durante a experiência monárquica; por ocasião da implantação dos valores republicanos; em

plena ditadura ou na pulsante vida democrática.

Dalla Torre (2002, pp. 30/32 e pp. 47/49)15

enfatiza que a constituição deve ser

interpretada como um elemento social e jurídico vivo. Por conseguinte, o conceito do

princípio constitucional da liberdade religiosa possui força evolutiva (ZAGREBELSKY,

2007, pp. 91/104)16

.

15

Para ele, a Costituzione vivente é aquela concretamente observada, interpretada e aplicada dentro de

parâmetros aceitos pela consciência comum da sociedade regulada pela mesma norma constitucional. Trata-se de

um sinal de defesa do pensamento de Ferdinand Lassale em sua célebre obra “A essência da Constituição”. 16

Para o doutrinador italiano, a constituição viva (ou vivente) consistiria na experiência cotidiana de

interpretação levada a efeito pelas cortes constitucionais. Ele realça que os argumentos contrários à aceitação

deste molde consistem nos receios de uma jurisprudência criativa. Para o professor da Universidade de Turín, os

que suscitam os perigos da criação constitucional por parte das cortes constitucionais buscam: manter a

separação dos poderes; preservar o caráter judicial da justiça constitucional; preservar a legitimidade do poder

legislativo para a construção do direito legislado.

485

Page 31: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

A evolução constitucional da liberdade religiosa tem inclinação pela expansão de seu

conceito (até em face do princípio da proibição de retrocesso dos direitos fundamentais) e,

portanto, visa a garantir mais direitos religiosos ao cidadão brasileiro.

Os avanços17

são claros, eis que, no período pré-constitucional brasileiro, havia a

intolerância religiosa. Avançou-se por ocasião do nascimento da primeira constituição

brasileira, a de 1824. Não obstante continuasse a prever um Estado religioso, oficialmente

atrelado à Igreja Católica, passou a mais claramente tolerar a liberdade de culto privado das

demais confissões religiosas. As constituições republicadas, por sua vez, efetivaram a

separação entre o Estado e as igrejas, tomando a liberdade religiosa e a laicidade do Estado

como um direito inviolável e um patrimônio social e jurídico que deve ser preservado e

aperfeiçoado para a presente e as futuras gerações.

Por fim, imperioso afirmar, em sede conclusiva, que a sedimentação do cânone da

liberdade religiosa foi um dos fatores centrais para o desenvolvimento do estado laico hoje

vivenciado em terras brasileiras.

11. REFERÊNCIAS

ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. Coimbra: Almedina, 2002.

ALVES, Othon Moreno de Medeiros. Liberdade religiosa institucional: direitos humanos,

direito privado e espaço jurídico multicultural. Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer,

2008.

AZZI, Riolando. A cristandade colonial: mito e ideologia. Petrópolis: Vozes Editora, 2001.

17

Sobre a natureza não estática da liberdade religiosa, que deve sempre se amoldar às mutações sociais, registra-

se o pensamento de Ramón Soriano. Para ele, a liberdade religiosa não é o que foi nem o que é hoje; a liberdade

religiosa é um conceito histórico, como todas as liberdades, que no nosso tempo adota uma determinada forma,

que não é a única, nem a definitiva. Também a liberdade religiosa passou por várias etapas que a enriqueceram

pouco a pouco. Houve uma primeira etapa em que ela era reduzida exclusivamente à tolerância religiosa, ante o

predomínio de um monopólio religioso confessional: a religião dominante tolerava outros credos religiosos

diferentes (considerados “falsos e equivocados”), devido, primeiramente, aos imperativos da ordem pública e

depois ao reconhecimento da liberdade de consciência; uma etapa que substitui a outra do mais cruel

confessionalismo estatal, intransigente e militante representado, na Europa, pela diarquia do pontificado e do

império, guardião da tradição católica imperante no continente até as lutas religiosas do renascimento. Surgiu

uma segunda etapa de predomínio do pluralismo confessional, com o reconhecimento das distintas confissões

religiosas: a liberdade religiosa para as confissões, dentro de um panorama de relativa desigualdade no exercício

das religiões. A liberdade religiosa não está agora presidida pelo signo da tolerância no âmbito de uma única,

verdadeira e oficial religião do Estado, mas sim pela aceitação da pluralidade de credos dentro do território do

Estado; com este fenômeno religioso se engrandece e abarca uma diversidade de opções fideístas e a liberdade

religiosa se enriquece com a chegada de novos horizontes teológico-doutrinais; mas se trata, todavia, de um

pluralismo moderado, o pluralismo das opções fideístas e, exclusivamente, do coletivo dos crentes. Existe uma

terceira etapa na qual ainda não nos encontramos, mas que começa a brotar na doutrina da atualidade: a etapa do

pluralismo religioso integral, que representa a inserção das opiniões religiosas não fideístas dentro do conceito e

da proteção da liberdade religiosa (tradução própria). SORIANO, 1990, pp. 75/76.

486

Page 32: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

BARBOSA, Rui. Discursos parlamentares (Série: Obras completas de Rui Barbosa). Vol. 7.

Tomo I. Rio de Janeiro: Câmara dos Deputados, 1880.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 21 ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

COSTA, José Manuel Cardoso da. “O princípio da dignidade da pessoa humana na

Constituição e na jurisprudência constitucional portuguesas”. In: BARROS, Sérgio Resende

de et alli (coordenadores). Direito constitucional: Estudos em homenagem a Manoel

Gonçalves Ferreira Filho. São Paulo: Editora Dialética, 1999.

CUNHA, Paulo Ferreira da. Direito constitucional geral: uma perspectiva luso-brasileira.

São Paulo: Editora Método, 2007.

_______. Direito constitucional anotado. Lisboa: Quid Juris, 2008.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. “Constitucionalismo português e constitucionalismo

brasileiro”. In: MIRANDA, Jorge (org.). Perspectivas constitucionais nos 20 anos da

Constituição de 1976: Vol. I. Coimbra: Coimbra Editora, 1996.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. 35 ed. São Paulo: Record, 1999.

GIUMBELLI, Emerson. O fim da religião. Dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na

França. São Paulo: Attar Editorial, 2002.

KIRCHHEIN, Augusto Frederico. Estado laico e democracia: um estudo a partir do

crescimento dos pentecostais na política brasileira. Dissertação de mestrado defendida na

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2003.

KOWALIK, Adam. “Efeitos civis do casamento religioso no Brasil”. Texto disponível no

seguinte endereço eletrônico: http://www.libertadreligiosa.net/articulos/Efeito_civil.pdf.

Visitação feita em 18 de junho de 2009.

LUSTOSA, Isabel. Insultos impressos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

MAINWARING, Scott. Igreja católica e política no Brasil (1916-1985). São Paulo: Editora

Brasiliense, 1989.

MARIANO, Ricardo. Análise sociológica do crescimento pentecostal no Brasil. Tese de

doutoramento em Sociologia, defendida na USP, no ano de 2001.

MARTEL, Letícia de Campos Velho. “Laico, mas nem tanto: cinco tópicos sobre liberdade

religiosa e laicidade estatal na jurisdição constitucional brasileira”. In: Revista Jurídica. Vol.

9, nº 86, 2007.

MELASPOROS. Exposição dos verdadeiros princípios sobre que se baseia a liberdade

religiosa demonstrando ser a separação entre a igreja e o Estado uma medida de direito

absoluto e de summa importância. Rio de Janeiro: Editora Laemmert, 1866.

NUNES, Rosa Dionízio. Das relações da igreja com o Estado. Coimbra: Almedina, 2005.

487

Page 33: o princípio da liberdade religiosa ao longo da história jurídica

ORO, Ari Pedro. “Considerações sobre a liberdade religiosa no Brasil”. In: Ciências e

Letras. Nº 37, 2005.

PÉREZ RUIZ, C. La argumentación moral del tribunal supremo (1940-1975). Madrid:

Editorial Tecnos, 1985.

PIERUCCI, Antônio Flávio; PRANDI, Reginaldo. A realidade social das religiões no

Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996.

PUY, F. “Invocacion de Dios”. In: Derecho y Moral (Anales de la Cátedra Francisco Suárez,

nº 28/1988), Granada, 1988.

REILY, Duncan A. História documental do protestantismo no Brasil. São Paulo: Aste

Editora, 1993.

RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa. São Paulo: Editora Mackenzie, 2002.

SILVA, Ingrid Pinheiro Correa da. Liberdade religiosa em uma perspectiva luso-

brasileira. Coimbra: dissertação de mestrado policopiada, 2004.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 19 ed. São Paulo:

Malheiros Editores, 2001.

SCAMPINI, José. “A liberdade religiosa nas constituições brasileiras”. In: Revista de

Informação Legislativa. Nº 42, 1974.

_________. “A liberdade religiosa nas constituições brasileiras”. In: Revista de Informação

Legislativa. Nº 44, 1974.

SCHERKERKEWITZ, Iso Chaitz. “O direito de religião no Brasil”. In: Revista Trimestral

de Jurisprudência dos Estados. Ano 20, Vol. 146, 1996.

SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade religiosa no direito constitucional e internacional.

São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002.

SORIANO, Ramón. Las libertades públicas. Madrid: Editorial Tecnos, 1990.

TORRE, Giuseppe Dalla. Lezioni di diritto ecclesiastico. 2 ed. Torino: G. Giappichelli

Editore, 2002.

TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 16 ed. São Paulo: Malheiros

Editores, 2000.

ZAGREBELSKY, Gustavo. “Jueces constitucionales”. In: CARBONELL, Miguel (org.).

Teoría del neoconstitucionalismo: ensayos escogidos. Madrid: Editorial Trotta, 2007.

488