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1 Demografia da Guerra Porto Alegre e a Guerra dos Farrapos Ana Silvia Volpi Scott (Unicamp) Dario Scott (Unicamp) Resumo Esta comunicação apresenta resultados sobre os impactos da Guerra dos Farrapos (1835-1845) na população de Porto Alegre. Essa perspectiva é pouco tratada pela historiografia que estuda os recorrentes conflitos que marcaram a história da Capitania e, mais tarde, Província do Rio Grande do Sul, entre os séculos XVIII e XIX. A partir da utilização das séries de assentos paroquiais e dados estatísticos obtidos nos Relatórios de Presidentes da Província, procuramos analisar o período entre 1825 e 1854, isto é, o arco temporal que inclui os dez anos que precederam a guerra, o período do conflito em si, assim como o decênio que se seguiu à assinatura do tratado que pôs fim à luta. Entre os resultados, destacam-se as perturbações relativas ao movimento dos batizados, óbitos e casamentos, que se fizeram sentir, especialmente na primeira metade do período da guerra (1835-1840), quando a cidade de Porto Alegre enfrentou três momentos de cerco, impostos pelos “farrapos”. Ressalta-se aqui, o impacto na mortalidade e a situação de forte crise, causada não pela guerra em si, mas por dificuldades de abastecimento e por uma epidemia de escarlatina que atingiu duramente as crianças até 14 anos, livres e cativas. Importante ainda é chamar a atenção para outros desdobramentos, ligados ao comportamento da população livre, em relação aos batizados de crianças naturais. Aqui percebemos a presença muito mais recorrente da informação, no assento de batismo, do nome do pai ao lado do nome da mãe, ou a identificação apenas do nome do pai, indicando que o contexto da guerra, estimulou mudanças na relação que se mantinha sobre o reconhecimento dos filhos naturais, assinalada no ato do batizado. De forma geral, fica o desafio de aprofundar a análise dos comportamentos da população em período de guerra, tema que não tem merecido a atenção dos historiadores demógrafos no Brasil.

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Demografia da Guerra – Porto Alegre e a Guerra dos Farrapos

Ana Silvia Volpi Scott (Unicamp) Dario Scott (Unicamp)

Resumo

Esta comunicação apresenta resultados sobre os impactos da Guerra dos Farrapos (1835-1845) na população de Porto Alegre. Essa perspectiva é pouco tratada pela historiografia que estuda os recorrentes conflitos que marcaram a história da Capitania e, mais tarde, Província do Rio Grande do Sul, entre os séculos XVIII e XIX. A partir da utilização das séries de assentos paroquiais e dados estatísticos obtidos nos Relatórios de Presidentes da Província, procuramos analisar o período entre 1825 e 1854, isto é, o arco temporal que inclui os dez anos que precederam a guerra, o período do conflito em si, assim como o decênio que se seguiu à assinatura do tratado que pôs fim à luta. Entre os resultados, destacam-se as perturbações relativas ao movimento dos batizados, óbitos e casamentos, que se fizeram sentir, especialmente na primeira metade do período da guerra (1835-1840), quando a cidade de Porto Alegre enfrentou três momentos de cerco, impostos pelos “farrapos”. Ressalta-se aqui, o impacto na mortalidade e a situação de forte crise, causada não pela guerra em si, mas por dificuldades de abastecimento e por uma epidemia de escarlatina que atingiu duramente as crianças até 14 anos, livres e cativas. Importante ainda é chamar a atenção para outros desdobramentos, ligados ao comportamento da população livre, em relação aos batizados de crianças naturais. Aqui percebemos a presença muito mais recorrente da informação, no assento de batismo, do nome do pai ao lado do nome da mãe, ou a identificação apenas do nome do pai, indicando que o contexto da guerra, estimulou mudanças na relação que se mantinha sobre o reconhecimento dos filhos naturais, assinalada no ato do batizado. De forma geral, fica o desafio de aprofundar a análise dos comportamentos da população em período de guerra, tema que não tem merecido a atenção dos historiadores demógrafos no Brasil.

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Demografia da Guerra – Porto Alegre e a Guerra dos Farrapos

Ana Silvia Volpi Scott (Unicamp) Dario Scott (Unicamp)

Resumo

Esta comunicação apresenta resultados sobre os impactos da Guerra dos Farrapos (1835-1845) na população de Porto Alegre. Essa perspectiva é pouco tratada pela historiografia que estuda os recorrentes conflitos que marcaram a história da Capitania e, mais tarde, Província do Rio Grande do Sul, entre os séculos XVIII e XIX. A partir da utilização das séries de assentos paroquiais e dados estatísticos obtidos nos Relatórios de Presidentes da Província, procuramos analisar o período entre 1825 e 1854, isto é, o arco temporal que inclui os dez anos que precederam a guerra, o período do conflito em si, assim como o decênio que se seguiu à assinatura do tratado que pôs fim à luta. Entre os resultados, destacam-se as perturbações relativas ao movimento dos batizados, óbitos e casamentos, que se fizeram sentir, especialmente na primeira metade do período da guerra (1835-1840), quando a cidade de Porto Alegre enfrentou três momentos de cerco, impostos pelos “farrapos”. Ressalta-se aqui, o impacto na mortalidade e a situação de forte crise, causada não pela guerra em si, mas por dificuldades de abastecimento e por uma epidemia de escarlatina que atingiu duramente as crianças até 14 anos, livres e cativas. Importante ainda é chamar a atenção para outros desdobramentos, ligados ao comportamento da população livre, em relação aos batizados de crianças naturais. Aqui percebemos a presença muito mais recorrente da informação, no assento de batismo, do nome do pai ao lado do nome da mãe, ou a identificação apenas do nome do pai, indicando que o contexto da guerra, estimulou mudanças na relação que se mantinha sobre o reconhecimento dos filhos naturais, assinalada no ato do batizado. De forma geral, fica o desafio de aprofundar a análise dos comportamentos da população em período de guerra, tema que não tem merecido a atenção dos historiadores demógrafos no Brasil.

Palavras chave: Demografia; População; Guerra dos Farrapos

Introdução

Há alguns anos atrás foi publicado nos Annales de Démographie Historique um

número especial sobre a população na época da Grande Guerra (1914-1918)1. Na

introdução do volume, Olivier Faron fez uma breve discussão enfocando a questão

da(s) Guerra(s) e a Demografia Histórica. Ainda que a atenção estivesse voltada para

uma guerra em particular, não deixava de ser desafiadora a pergunta que abria suas

considerações: “Quais são as consequências demográficas de uma guerra?”. Questão

ampla com inumeráveis respostas, sem dúvida. E, embora Faron lembrasse que os

efeitos das guerras variavam de acordo com a intensidade do conflito, havia

elementos comuns como, por exemplo, o desaparecimento dos jovens do sexo

1 Veja-se https://www.cairn.info/revue-annales-de-demographie-historique-2002-1.htm acesso em fevereiro de 2018.

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masculino, o desequilíbrio na razão de sexos, a multiplicação de viúvas e órfãos. Além

desses efeitos mais óbvios, Faron advertia também que uma guerra pressupõe

perturbações profundas nas condições gerais de vida da população, sendo muitas

vezes acompanhadas de surtos epidêmicos, que se tornam tão ou mais importantes

quando atacam populações enfraquecidas por privações e sofrimentos (Faron,

2002:5).

Tais considerações constituíram o ponto de partida para este texto, cujo

objetivo é analisar os impactos que a Guerra dos Farrapos2 teve na população da

cidade de Porto Alegre. O longo conflito insere-se na conjuntura de instabilidade que

marcou a transição do primeiro para o segundo império e se desenrolou entre os anos

de 1835 e 1845.

Esta guerra teve e continua a ter a atenção de gerações de historiadores,

principalmente sul-rio-grandenses3, que revisitam a temática considerando,

sobretudo, os aspectos políticos e militares da luta, bem como as tensões e conflitos

engendrados entre o império brasileiro e as recém-instaladas repúblicas platinas.

Como é constantemente referido pela historiografia, além da Guerra dos

Farrapos, a região conviveu com uma sucessão de combates que marcaram a história

do atual estado do Rio Grande do Sul. Trabalhos mais recentes não têm se furtado a

dar sua contribuição aos estudos sobre esta temática, que tem sido alavancada pelas

novas abordagens, fontes e metodologias que são incorporadas, conquanto o aspecto

político-militar continue a predominar4. Nessa linha de análise destacam-se os

estudos que procuram (ainda) refletir sobre a presença constante e latente do clima

de conflito e guerra que perpassou o território.

Exemplar, nesse sentido, é a coletânea publicada em 2010, Continente em

armas: uma história da guerra no sul do Brasil. Na apresentação da obra lembrava-se

que, “inegavelmente”, aqueles que povoaram as terras ao sul de Laguna e ao norte

do rio da Prata, genericamente denominada “Continente”, desde muito cedo se

2 A historiografia mais recente que revisita o conflito, coloca em causa o conceito de Revolução, e consequentemente o uso de “Revolução Farroupilha”, apontando a inadequação do termo “revolução”, pois não houve uma verdadeira alteração de estruturas (Kühn, 2004: 83-84). Diante disso, assume-se o uso de Guerra dos Farrapos. 3 Entre os autores clássicos podemos citar Walter Spalding. A revolução farroupilha. São Paulo: Cia. Editora Nacional / UnB, 1982; Alfredo Varela. História da grande revolução. O ciclo farroupilha no Brasil. Porto Alegre: Globo, 1933 (6 vols.). 4 Lembramos aqui, entre outros, os trabalhos de César A. B. Guazzelli, 1998; Maria Medianeira Padoin (2001); Sandra J. Pesavento (2009). Mais recentemente, vêm se destacando os trabalhos vinculados à Nova História Militar (vejam-se, por exemplo, a dissertação de Mestrado (Unisinos, 2012) e a tese de doutorado (UFRJ, 2016) do jovem historiador Miquéias Henrique Mügge.

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envolveram em “contendas que se associavam ao uso da violência física”. Apesar

disso “e espantosamente”, não havia uma publicação que tratasse o tema de forma

direta e aprofundada. De acordo com os organizadores, Eduardo Neumann e Luiz

Alberto Grijó, a coletânea reunia especialistas em diversos períodos e temáticas da

história do Rio Grande do Sul, que escreveram sobre conflitos armados que

irromperam na região, entre os séculos XVIII ao XX (Neumann; Grijó. 2010:19).

Ao correr os olhos pelo índice da coletânea fica clara a presença recorrente de

lutas e conflitos. Foram analisadas a Guerra Guaranítica (1752-1756); as rivalidades

ibéricas no sul da América portuguesa (1762-1801); a presença luso-brasileira no Rio

da Prata e o período cisplatino; fronteiras em conflito no espaço platino, a Guerra dos

Farrapos, a Guerra Grande; e, por fim, a Guerra do Paraguai.

Por outro lado, a perspectiva dos impactos demográficos sobre a população

não tem sido objeto de maior atenção. É um aspecto que, no entanto, passou a atrair

o nosso interesse.

O projeto em andamento, sobre a freguesia que dá origem à cidade de Porto

Alegre5, permite que façamos incursões neste tema da “demografia da guerra dos

farrapos”, analisando elementos relativos às componentes demográficas da

fecundidade e da mortalidade, assim como os desdobramentos da guerra na questão

da nupcialidade.

É importante trazer alguns elementos que situem o contexto que levou ao

conflito em tela. De acordo com Fábio Kühn, a província apresentava uma combinação

explosiva nas primeiras décadas do século XIX, em que se misturavam a condição

fronteiriça e militarizada, a insatisfação com o governo regencial e a difusão de ideias

liberais. Resumidamente, o autor aponta as causas do conflito: insatisfação com a

condição econômica da província, especialmente a política tarifária não protecionista,

que não taxava o charque platino, concorrente direto dos produtores gaúchos. De

outra parte, havia as questões políticas que não haviam sido resolvidas entre o

governo do Império e as elites locais (Kühn, 2004:79-80)6.

5 O projeto, financiado pelo CNPq nos últimos anos, através de Editais de Produtividade em Pesquisa,

Iniciação Científica, Universal, tem como objetivo analisar a população e a família na Freguesia da Madre de Deus de Porto Alegre, na perspectiva da demografia histórica e da história social da população. 6 Não é possível aprofundar essa questão aqui. Portanto, remetemos para a bibliografia especializada

no tema, parte dela referida nas notas e na bibliografia final.

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Depois do início do conflito (1835), a província declarou sua independência,

dando origem à República Rio Grandense (ou República do Piratini, em setembro de

1836) até quando foi assinada a Paz de Ponche Verde, em 01 de março de 1845, que

colocou termo à luta, reintegrando a província Rio Grande do Sul ao império do Brasil.

A cidade de Porto Alegre, ao longo das lutas, permaneceu fiel ao Império,

recebendo por isso o título de “leal e valorosa”, concedido pelo imperador D. Pedro II

em 18417. Esse fato teve repercussões fundamentais para a cidade e para sua

população, uma vez que durante os anos da guerra enfrentou três cercos impostos

pelos rebeldes farroupilhas, entre os anos de 1836 e 1840 (Franco, 2011).

O prolongado sítio de Porto Alegre foi um fracasso militar dos farroupilhas.

Depois de ter sido tomada pelos rebeldes em 20 de setembro de 1835, a cidade foi

reconquistada pelas forças imperiais em 15 de junho de 1836, e assim permaneceu

até o final das lutas. A cidade enfrentou o primeiro sítio entre junho e setembro de

1836; o segundo entre maio de 1837 e fevereiro de 1838 e, finalmente; o terceiro,

entre junho de 1838 a dezembro de 1840.

Esses episódios certamente tiveram impactos sobre a população que vivenciou

o longo conflito e, sobretudo, quando teve que enfrentar os cercos impingidos à cidade

no decorrer da primeira metade da guerra. Na linha do que propõe Faron,

pretendemos analisar os distúrbios que a população da cidade foi submetida, devido

à guerra em si, além dos problemas adicionais gerados a partir do fato de Porto Alegre

ter ficado sitiada.

Tais elementos constituem o foco da comunicação e emergiram no contexto de

outros trabalhos sobre aquela população. Cada vez mais crescia o interesse pela

discussão da “demografia da guerra”. No tópico relativo à discussão dos resultados

retomaremos alguns dos indícios que instigaram a presente comunicação.

Materiais e Métodos

A fonte básica é composta pelas séries de registros paroquiais de batizado,

casamento e óbito. As séries contínuas e praticamente completas estão em bom

estado de conservação e suas informações foram inseridas no software NACAOB

(Scott, 2009) que sistematiza os dados de forma padronizada. O banco de dados

completo abrange as séries paroquiais desde 1772 (ano de criação da Freguesia da

Nossa Senhora da Madre de Deus de Porto Alegre) até 1872, ano do primeiro

7 Decr. 103, 10 Outubro 1841.

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recenseamento geral da população brasileira, único realizado durante a vigência da

escravidão.

Para esta comunicação, optamos por fazer um recorte temporal que permita

conhecer a situação da população, em relação aos batizados, casamentos e óbitos

de livres e escravos, dez anos antes do conflito (entre 1825-1834), o período da

guerra, propriamente dito, que se divide em dois momentos (1835-1840; o segundo,

1840-1845) e o terceiro, os dez anos que sucedem o conflito, entre 1846 a 1854. A

análise parte da exploração do movimento geral de batizados, óbitos e casamentos.

Os dados foram complementados, na medida do possível, com documentação

administrativa, produzida no âmbito dos relatórios dos presidentes da província do Rio

Grande do Sul8, disponíveis no site do Center for Research Libraries e que abrangem,

no período que nos interessa nesta comunicação, os anos de 1829, 1830, 1831, 1832,

1835, 1837, 1846, 1847, 1848, 1849, 1850, 1851,1852, 1853, 18549. É possível

encontrar, em diversos desses relatórios, informações estatísticas sobre a província e

a cidade de Porto Alegre, assim como úteis elementos de cunho qualitativo para

contextualizar o período. As estatísticas arroladas foram utilizadas para obtermos uma

aproximação em relação à população total. Especialmente, em relação aos óbitos, foi

aplicada a metodologia proposta por Jacques Dupâquier para analisar eventuais

crises de mortalidade (Dupâquier, 1979).

Resultados e Discussão

A freguesia da Madre de Deus de Porto Alegre, apesar de seu início modesto,

foi marcada, nas décadas sucessivas, por um grande dinamismo populacional e

econômico. A posição de porto fluvial colocava a localidade como porta de acesso ao

interior do “Continente” do Rio Grande de São Pedro e mais tarde a Província do Rio

Grande do Sul, propiciando grande movimento de pessoas, de embarcações, assim

como a intensa circulação de mercadorias. Neste contexto entende-se a presença

importante de contingente populacional masculino, onde se destacavam os militares,

os marinheiros e os comerciantes.

Nos finais do século XVIII a freguesia se consolidava como núcleo urbano,

embora estivesse cercada de arredores rurais. Vale lembrar que em 1773 a freguesia

8 Segundo Riograndino da Costa e Silva, o nome oficial da terra rio-grandense, a partir da Independência é Província do Rio Grande do Sul que foi consagrado na Constituição Imperial de 25 de março de 1824 (Silva, 1968:110). 9 Veja-se http://www-apps.crl.edu/brazil/provincial/rio_grande_do_sul, acesso em fevereiro de 2018.

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recém-criada (e desmembrada de Viamão) foi alçada a capital do Continente, devido

aos desdobramentos relacionados às lutas contra a invasão dos castelhanos (invasão

e tomada da vila de Rio Grande em 1763, e reconquista daquela vila pelos

portugueses, em 1776). No contexto belicoso e de luta entre as coroas ibéricas, foi

construída uma linha de fortificações, que demarcou os limites internos de Porto

Alegre, definindo o que se caracterizaria como a “zona urbana”. Tal fortificação

murada foi demolida apenas no final da Guerra dos Farrapos.

A freguesia foi elevada, de direito, a vila em 1809 e, em 1822, à condição de

cidade, o que reflete a importância que conquistou no contexto do Brasil Meridional.

O testemunho do viajante francês Auguste de Saint-Hilaire, que esteve na, então, vila

de Porto Alegre no início da década de 1820, é ilustrativo10:

Pode ser considerada como principal entreposto da Capitania [...] os negociantes

adquirem quase todas as mercadorias no Rio de Janeiro e as distribuem nos arredores

da cidade; em troca exportam, principalmente, couros, trigo e carne seca; é, também,

de Porto Alegre que saem todas as conservas exportadas da província11.

Sobre a “malha urbana” e o arruamento Saint-Hilaire descreve Porto Alegre e

aponta que seriam três as ruas principais e, entre elas, se destacava a Rua da Praia

(atual Rua dos Andradas):

A Rua da Praia, que é a única comercial, é extremamente movimentada. Nela se encontram numerosas pessoas a pé e a cavalo, marinheiros e muitos negros carregando volumes diversos. É dotada de lojas muito bem instaladas, de vendas bem sortidas e de oficinas de diversas profissões (Saint-Hilaire, 2002:43).

Arsène Isabelle foi outro francês que deixou escritas suas impressões sobre

Porto Alegre, às vésperas da guerra dos Farrapos, chegando à cidade em 20 de março

de 1834. Como Saint-Hilaire, Isabelle faz referência à população da cidade, que foi

estimada entre 12 a 15 mil habitantes. Chamava a atenção para a “população flutuante

de estrangeiros”, que vinham de toda a parte para ali comerciar. A rua da Praia

também foi descrita como a “mais comercial, onde se encontravam as lojas e as

principais casas de negócio”. Sem dúvida, era um núcleo populacional de importância

na Província, do ponto de vista administrativo, econômico e comercial.

10 Veja-se, por exemplo, o artigo Counting colonial populations: A comparative exercise between ecclesiastical and civil sources from the southernmost region of Portuguese America in the late colonial period (Scott et al., 2015) 11 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. 4. ed. Porto Alegre, Martins Livreiro Editor, 2002 , p. 46.

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No entanto não é fácil conhecer o total da população. Os dados são

problemáticos por conta do uso de critérios diferentes para a contagem, assim como

pela lacuna de informações e, por isso, fizemos um esforço para estimar o número de

habitantes da freguesia da Madre de Deus.

Há que se chamar a atenção para as dificuldades inerentes aos distintos

enquadramentos administrativos, como “freguesia” e “distrito”. A primeira refere-se à

divisão da administração eclesiástica e administrativa (devido ao padroado régio) que

registrava, nos respectivos livros, os assentos de batismo, casamento e óbito.

Correspondia ao território e à jurisdição de uma igreja matriz e suas capelas filiais. No

entanto, os dados sobre a população apresentados nos relatórios dos presidentes da

província indicam que a população estava organizada em distritos.

A Constituição Imperial de 1824 previu a instituição desse ordenamento e a

Justiça de Paz foi criada em outubro de 1827, sendo promulgada a Lei Orgânica das

Justiças de Paz, criando em cada freguesia um juiz de paz e um suplente12. Portanto,

parte-se do princípio que o primeiro distrito corresponde à freguesia Madre de Deus,

isto é, a freguesia que deu origem à cidade.

É importante lembrar também que a Madre de Deus foi desmembrada, dando

origem às freguesias de Nossa Senhora do Rosário de Porto Alegre e Nossa Senhora

das Dores de Porto Alegre, por Decreto Regencial s.n. de 24 de outubro de 1832.

Entretanto, ocorre que a subdivisão de 1832, não teve efeito imediato, pois, de fato,

os assentos paroquiais das novas freguesias começaram a ser assentados nos livros

das respectivas igrejas, anos mais tarde: Igreja do Rosário em 1844; Igreja das Dores

em 1859. Portanto, admite-se que os fregueses (os moradores da freguesia)

continuaram a ser dependentes da Matriz, e lá seguiram sendo registrados (Rubert,

112-118). Seguindo a mesma lógica, essas duas novas freguesias devem ter dado

origem ao segundo e terceiro distritos, respectivamente. Assim, essas mudanças

administrativas acarretam problemas para estimar o total da população da freguesia

da Madre de Deus.

Feitas essas advertências, e com base nos dados coletados em fontes

variadas, apresentam-se os números arrolados nos mapas de população (período

colonial), relatórios (período imperial) e/ou estimativas para a população da Madre de

12 Art. 1º. Em cada uma das freguesias e das capelas filiais curadas, haverá um juiz de paz e um suplente para servir no seu impedimento, enquanto não se estabelecerem os distritos, conforme a nova divisão estatística do Império (Coda, 2012:19).

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Deus/ Primeiro Distrito de Porto Alegre, até a data final que corresponde ao total

apresentado no primeiro censo do Império do Brasil (1872), para a freguesia em

estudo. Não há como se percebe, dados estatísticos consistentes sobre a população

para o período em foco (1825-1854)13, por isso, a tabela 1 apresenta os dados

disponíveis e ajustados (quando necessário) para o período entre 1772 a 1872.

Uma aproximação foi ensaiada a partir das informações encontradas para a

província, reunidos pela publicação da Fundação de Economia e Estatística (FEE) em

198114, que têm como origem os relatórios de presidentes da província.

Tabela 1 – Evolução da População da Freguesia da Madre de Deus (1780-1872)15

No quadro da população livre de 1846 (FEE, 1981a:60), informa-se que para o

1º distrito haveria 6.752 habitantes (3.303 homens e 3.449 mulheres16.

Para o ano seguinte, 1847, temos novamente o quadro da população livre,

segundo o sexo, mas, desta vez, organizado também por grupos etários (homens e

13 Para uma discussão mais aprofundada sobre fontes de cunho estatístico para o Rio Grande do Sul, veja-se FEE, 1981a; FEE 1981b; Senra, 2006:103-125. 14 De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul – Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre, 1981. 15 A redução estimada de 33% no desmembramento da freguesia foi calculada através da diferença baseada em uma média móvel de 5 anos, anterior e posterior à divisão, relativa aos assentos de batizado e de óbito. 16 Uma indicação dos problemas são as observações na coluna lateral do mesmo quadro, que admitem que cálculos foram feitos para corrigir os valores para chegar à estimativa da população total da província (total da população livre indicada no quadro foi de 147.846 e o total da população livre, corrigida, foi de 179.363)

Homens Mulheres Homens Mulheres

1780*

588 508 1096 64,0 357 261 617 36,0 1713 11,8 116 137

1798 1011 1020 2031 58,3 878 574 1452 41,7 3483 6,9 99 153

1802 1331 1179 2511 60,0 1035 637 1672 40,0 4183 6,5 113 163

1805 1453 1307 2760 63,3 1008 588 1597 36,7 4357 6,6 111 171

1807**

1910 1336 3245 64,7 1109 661 1771 35,3 5016 6,7 143 168

1810 2164 1424 3588 64,9 1141 802 1943 35,1 5531 6,4 152 142

1814 1853 1515 3368 59,3 1408 904 2312 40,7 5680 7,6 122 156

1846*** 3303 3449 6752 70,4 1729 1110 2839 29,6 9591 6,7 96 156

1847*** 2541 2653 5194 68,9 1428 917 2345 31,1 7539 6,6 96 156

1848**** 3497 3803 7300 70,8 1834 1177 3011 29,2 10311 6,6 92 156

1858***** 3470 3774 7244 71,7 1549 1312 2861 28,3 10105 6,9 92 118

1872 3653 3261 6914 84,0 558 757 1315 16,0 8229 6,8 112 74

Média 66,7 Média 33,3

Ano

Livres

Total %

Escravos

Total %Total

Geral

% < 1

ano

Razão

sexo

Livres

Razão

sexo

Escravos

Fonte: De 1780 à 1810 Mapas de população, de 1814 à 1858 relatórios do presidente de provincia e o censo de 1872.

* % < 1 ano é na realidade < 7 anos em 1780

** % < 1 ano foi estimado pela média dos outros anos.

*** Mapas de 1846, 1847 e 1848 da provincia apresentam somente a população livre. População escrava foi estimada por interpolação entre

os anos 1814 e 1858.

**** Mapa de 1848 da provincia apresenta 15.389 como total da população de Porto Alegre. Consideramos uma redução de 33% referente

ao desmembramento de 1832 efetivado em 1844 N. S. Rosário.

***** Mapa de 1858 da provincia apresenta 29.723 como total da população de Porto Alegre. Consideramos uma resução de 66% referente

ao desmembramento de 1832 efetivado em 1844 N.S. Rosário e 1859 N.S. Dores.

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mulheres até 10 anos, até 20.... até 110). Para o 1º distrito seriam 2.541 homens e

2.653 mulheres, no total 5.194 habitantes (FEE, 1981a:61).

O relatório de 1848 apresenta mais um quadro da população “pelas listas

eclesiásticas”. No entanto, as colunas indicam, para os municípios o número de

casamentos, batizados e óbitos (os dois últimos divididos em livres / libertos e

escravos, por sexo e, na coluna final, a “população calculada”, sem outros elementos

para determinar-se a origem/ fonte desse cálculo (FEE, 1981a:62), apontando que a

freguesia da N.S. da Madre de Deus (incluindo a N.S. das Dores de Porto Alegre) teria

uma população calculada em cerca de 15.389 habitantes. No quadro, a freguesia de

N.S. do Rosário de Porto Alegre, já efetivamente desmembrada, teria uma população

calculada de 11.114 habitantes.

Tudo indica que os dados devem estar sujeitos a muita imprecisão, até porque,

em muitos dos relatórios dos presidentes da província há recorrentes referências às

enormes dificuldades e problemas para a coleta das informações.

Por outro lado, para o ano de 1848 o quadro sobre a população arrola o total

dos assentos paroquiais de batizados, casamentos e óbitos registrados na Madre de

Deus. Comparamos as informações do quadro com a quantidade de assentos inserida

no nosso banco de dados (NACAOB) para verificar a compatibilidade dos números.

Houve diferenças, mas pouco significativas, sugerindo que o problema é mais grave

no que diz respeito aos dados informados sobre a população total e não ao

assentamento dos registros paroquiais:

Tabela 2 – Comparação Dados do Quadro de 1848 e Dados NACAOB 1848 (Assentos paroquiais, batizado, casamento e óbito) – Madre de Deus

Tipo do Assento

Quadro NACAOB Diferença %

Batizados 483 478 -1% NACAOB

Casamentos 71 67 -1% NACAOB

Óbitos 378 389 +2,8% NACAOB

Fonte: NACAOB extração Janeiro de 2018 e relatório de presidente da província 1848

Essas considerações revelam a necessidade de se fazer não apenas uma

acurada crítica às fontes de cunho quantitativo, como também buscar fontes

qualitativas que possam corroborar/ confrontar as informações que permitem refletir

sobre essa população e o contexto mais amplo em que estavam inseridas (pacificação

da província; provável entrada de escravos adultos, às vésperas do final do tráfico

atlântico em 1850).

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Colocadas essas reflexões e ponderações, passemos à exploração agregada

dos dados coletados nos assentos paroquiais, disponíveis no NACAOB, para a Madre

de Deus entre 1825 e 1854.

O gráfico 1 situa o contexto geral de batizados e óbitos para todo o período em

destaque, sem distinção da condição jurídica dos indivíduos. Trata-se de um total de

31.501 registros, sendo 13.905 batizados e 17.596 óbitos.

Desconsiderando a variável migração, no total do período o crescimento

vegetativo foi negativo, isto é, temos mais óbitos do que batizados registrados.

Selecionando apenas os anos do conflito, entre 1835 e 1845, a situação repetiu-se:

temos 13.986 assentos no total, sendo 6.450 de batizados e 7.536 de óbitos. Em

termos mais abrangentes, o que chama a atenção no gráfico 1 é que o impacto do

conflito não foi homogêneo.

Gráfico 1 – Movimento Geral de Batizados e Óbitos População Total (1825-1854)

Fonte: NACAOB extração Janeiro de 2018

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Gráfico 2 - Movimento Anual de Batizados por condição jurídica Madre de Deus de Porto Alegre 1825 - 1854

Fonte: NACAOB extração Janeiro de 2018

Vejamos a informação desagregada dos Batizados, por condição jurídica. Cabe

sublinhar que na categoria “livres” estão considerados os assentos relativos a forros

também, por conta da pouca expressão numérica que apresentaram.

Em relação aos batizados (gráfico 2), vemos que eles se mantêm numa faixa

que gira em torno de 700 batizados ao ano, até 1835. A partir daí o montante começa

a cair, atingindo o ponto mais baixo em 1839 (501 batizados). Em 1840/41 os

batizados assentados na igreja voltam a crescer, indicando uma recuperação, em

relação ao período anterior. Essa recuperação perde força, mas creditamos essa nova

inflexão, agora sim, à efetiva divisão da freguesia, já que temos, a partir de então,

registros paroquiais assentados também na igreja de Nossa Senhora do Rosário de

Porto Alegre. Segundo Arlindo Rubert (1998:113), em junho de 1841 foi apresentado

o pároco colado Pe. Inácio Soares Viana, que tomou posse em seis de outubro de

1841, embora os livros comecem somente em 1844.

Por outro lado, em relação aos óbitos temos o gráfico 3, que revela uma

situação muito interessante. A curva da mortalidade vinha com uma tendência de

elevação, especialmente entre os anos de 1827, 1828, com um pico em 1829. Nos

primeiros anos da década de 1830, os níveis voltaram a uma relativa “normalidade”,

para então, explodir em 1837. No período seguinte os dados ainda mantêm níveis

mais altos, embora na sequência (1844), se verifique que o número de óbitos começou

a diminuir. Novamente atribuímos esta queda à efetiva divisão da freguesia da Madre

de Deus.

Resta explicar o que está por trás da perturbação no movimento anual de

óbitos. Sabemos que, em populações pré-transicionais a alta, normalmente, pode ser

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atribuída a epidemias, o que, consequentemente, geraria uma crise de mortalidade.

Teriam sido registradas crises nessa comunidade?

Gráfico 3 - Movimento Anual de Óbitos por condição jurídica Madre de Deus de Porto Alegre 1825 - 1854

Fonte: NACAOB extração Janeiro de 2018

Para verificar possíveis altas nos óbitos, relacionadas a crises de mortalidade,

temos as duas opções mais utilizadas pelos estudiosos da Demografia Histórica: a

metodologia proposta por Massimo Livi Bacci e Lorenzo Del Panta (1979), e a

proposta por Jacques Dupâquier (1979).

A título de exemplo, lembramos estudos como o de Pollero (2013), que teve

como foco Montevidéu (1757-1860), e David (1992) que analisou as crises de

mortalidade em Portugal (Concelho de Braga, entre 1700-1880). Ambos apostaram

na metodologia proposta por Dupâquier.

No caso da Madre de Deus, os resultados tiveram variação, conforme a

metodologia escolhida. Optamos, como os autores citados, pelo emprego da

metodologia de Dupâquier, porque ela se mostrou mais sensível para captar os

distúrbios que ocorreram na mortalidade da freguesia da Madre de Deus e por isso

nos dava um quadro com maiores possibilidades de analisar as variações

apresentadas a partir dos óbitos coletados.

O quadro 1 apresenta a proposta de classificação do autor, para tipificar a

escala das crises:

Quadro 1 - Escala de intensidade pelo método de Dupâquier 01 < I < 02 crise menor

02 < I < 04 crise média

04 < I < 08 crise forte

08 < I < 16 crise maior ou importante

16 < I < 32 crise superior ou grande crise

I > 32 catástrofe

Fonte: (Dupâquier, 1979)

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A tabela 3 apresenta os resultados relativos à freguesia da Madre de Deus,

para o período mais alargado entre 1772 e 1872. Queremos, no entanto, enfocar

especificamente os anos entre 1825 e 1854.

Os resultados obtidos revelam uma sequência de crises que, entretanto,

oscilam quanto à intensidade. Nesses episódios, as doenças que mais afligiram os

habitantes, como seria de esperar em sistemas demográficos de alta pressão, são as

infecciosas. Elas foram as responsáveis pelas crises detectadas, sendo que

epidemias de varíola e sarampo predominaram ao longo das primeiras décadas do

XIX.

Conforme Marcia Eckert Miranda (2000) era comum que ocorressem surtos de

epidemias no Continente do Rio Grande, especialmente de varíola, como ficou

explícito nos dados relativos à Madre de Deus. Miranda aponta que, desde cedo, havia

uma preocupação com a “vacinação” da população, embora o procedimento fosse, de

fato, inoculação. A primeira referência desta prática em grande escala encontrada na

região foi a Provisão Régia de 25 de maio de 1808, que encarregava o físico-mor das

tropas da Capitania do Rio Grande de São Pedro da “Introdução da Inoculação da

Vacina nos habitantes, brancos e pretos daquela Capitania” (Miranda, 2000:135).

Ainda de acordo com a mesma autora, foi somente em 1820 que o governo

decidiu aplicar, de maneira sistemática, a inoculação da população, através de uma

“instituição de vacinas”, conforme Aviso Régio da Secretaria dos Negócios do

Governo de 12 de fevereiro de 1820. Este documento régio determinou a criação do

Estabelecimento da Vacina na Capitania de São Paulo e obrigava aquele governador

a comunicar às capitanias vizinhas (como o Rio Grande de São Pedro), para que elas

formassem estabelecimentos semelhantes (Miranda, 2000:135). A persistência da

presença da varíola no período estudado atesta a limitação dos resultados concretos

da aplicação das medidas que o governo tentava impor.

De todo modo, na primeira fase da Guerra dos Farrapos, quando a cidade

esteve sitiada, registrou-se a pior crise de mortalidade, no período que antecede a

chegada da epidemia de cólera no Rio Grande do Sul. Contudo, em 1837, a vilã não

foi varíola, mas sim escarlatina, como fica claro a partir das causas de óbito

registradas nos assentos analisados.

A epidemia atingiu, de forma dura, a população livre e escrava: foram

registrados 451 óbitos de escravos, sendo 126 (27,9%) falecidos por conta da doença;

entre 718 óbitos de livres registrados no mesmo ano, 263 faleceram de escarlatina

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(36,6%), indicando que a doença pesou mais entre a população livre (ou pelo menos

nestes grupos o eventual subregistro foi menor). Os meses mais intensos da

mortalidade por escarlatina foram julho e agosto (no inverno), situado exatamente

dentro do intervalo de tempo do segundo cerco à cidade, que foi imposto pelos

revoltosos entre maio de 1837 e fevereiro de 1838.

Tabela 3 – Escala das Crises de Mortalidade - Madre de Deus (1795 – 1872)

Ano Método

Dupâquier Crises de mortalidade

1782 1,3

Até 1800 não eram declaradas as causas de morte

1795 5,0

1798 3,6

1799 1,5

1800 1,6

1801 4,6 Varíola

1803 1,2 Varíola

1804 2,5 Varíola

1806 4,1 Sarampo

1810 1,3 Varíola / Tuberculose

1813 1,2 Varíola / Tuberculose

1815 1,0 Tuberculose

1816 1,8 Diarreia e enterite / Tuberculose

1817 1,9 Varíola / Tuberculose

1818 1,8 Doenças do aparelho circulatório / Doenças do aparelho respiratório

1824 1,8 Diarreia e enterite

1825 4,2 Diarreia e enterite

1826 2,0 Diarreia e enterite

1827 2,2 Varíola

1828 2,3 Sarampo

1829 2,1 Diarreia e enterite / Tuberculose

1837 6,2 Escarlatina

1838 1,1 Diarreia e enterite / Varíola

1855 15,1 Cólera

1865 1,4 Diarreia e enterite

Fonte: NACAOB extração Janeiro de 2018

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Gráfico 4 – Distribuição mensal dos óbitos por escarlatina 1837

Fonte: NACAOB extração Janeiro de 2018

Outro dado que deve ser considerado é que os óbitos por escarlatina se

concentraram no grupo etário até 14 anos, a população mais jovem, somando nada

menos que 87,7% dos casos entre livres e escravos. Por outro lado, se examinarmos

a faixa até 4 anos de idade, morreram 62,5% de crianças até 4 anos (sendo 60,8%

entre as crianças livres de até 4 anos e 65,9% de crianças escravas). As crianças,

livres e escravas foram as grandes vítimas da epidemia, sempre mais escravos que

livres.

Depois do fim do cerco à cidade, que ocorreu em dezembro de 1840, entramos

no que denominamos como a segunda fase da guerra, quando Porto Alegre manteve-

se livre das tropas farrapas e, naquela conjuntura, as moléstias mais recorrentes

foram: disenteria, tétano, sarampo. Em todo o caso, excluímos dessa classificação

aquela causa que aparece com maior incidência e que era registrada como “moléstia

interior/interna”, englobada na categoria das doenças mal definidas. É importante

frisar que essa categoria tem um peso muito grande no total das causas de morte

arroladas ao longo dos cem anos analisados no projeto mais amplo e, entre 1840 a

1844, somavam nada menos do que 47% das causas de morte apontadas nos

registros. O que mostra a dificuldade de se buscar a generalização das análises.

Em relação à nupcialidade, podemos fazer uma aproximação ao fenômeno

através da análise dos assentos de casamentos17 que foram realizados na igreja da

Madre de Deus, conforme exposto no gráfico 5.

17 Para efeito de contagem, foram considerados apenas os casamentos que uniram noivo e noiva da mesma condição jurídica (Livres/Libertos e Escravos). O percentual de casamentos sacramentados entre pessoas de condição jurídica diferente era escasso: entre 1772 e 1845 somaram apenas 2,5% do total de casamentos que foram registrados na igreja da Madre de Deus. Veja-se Scott, 2015.

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Como era esperado, confirmou-se o limitadíssimo acesso dos escravos ao

casamento legitimado através da cerimônia religiosa. As poucas chances existentes

em tempos de “normais” reduziram-se a zero na primeira fase da guerra18.

No que diz respeito ao casamento entre a população livre, a guerra teve um

impacto marcante, embora no início da década de 1830 o movimento já apresentasse

tendência de queda. O ano de 1836 foi aquele que, no período em tela, apresentou o

menor número de casamentos entre a população livre, praticamente metade do

número registrado em 1825 (77, contra 39 realizados em 1836). A partir daí, observou-

se uma lenta recuperação, que se consolidou depois do final do cerco. Isso ocorreu,

por exemplo, com os registros de batizado, mas a tendência que era de elevação não

pode ser confirmada, já que a divisão, de fato, da freguesia interrompeu a análise da

sequência de retomada dos matrimônios19.

Gráfico 5 - Movimento Anual de Casamentos por condição jurídica Madre de Deus de Porto Alegre 1825 - 1854

Fonte: NACAOB extração Janeiro de 2018

De todo modo, o movimento dos assentos de batizado, casamento e óbito da

Madre de Deus revelaram o impacto do conflito, com a queda de batizados e

casamentos e o aumento das mortes, incluindo a mais forte epidemia registrada até

então (tabela 3).

Contudo, este tipo de análise que privilegia a visão geral dos fenômenos

demográficos, faz com que essas “curvas”, escondam nuances que só podem aflorar

18 Os assentos de casamentos ainda estão em processo de coleta e inserção no banco de dados. Estão mais avançados para a população livre (1855) do que para os escravos (1846). De toda forma, não devemos esperar uma mudança muito drástica no acesso dos escravos ao casamento, pelo menos até o final do tráfico. Depois há que se verificar. 19 Uma solução seria acompanhar os casamentos registrados, a partir de 1844, na Freguesia de N. S. do Rosário, até o ano de 1853. No entanto, ainda não foi possível concretizar esta proposta que, no entanto, está sendo considerada para outras etapas do projeto mais amplo.

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a partir de abordagens que persigam outros desdobramentos da guerra, que podem

refletir no comportamento daquela população. Neste caso, queremos retornar ao

estudo das séries de batizado e de casamento considerando outros quesitos, que

desagregam certas variáveis específicas, com foco na população livre.

É conhecido o fato de que a fecundidade ilegítima no Brasil dos séculos

passados era elevada, não apenas entre a população cativa, como também entre a

população livre. A historiografia sobre a família no Brasil não deixa dúvidas sobre essa

característica, assim como sua ligação com a nupcialidade: contingente significativo

dos homens e mulheres livres jamais se casou e parcela muito consistente desse

grupo optou, ou viu-se constrangido a ter relacionamentos baseados em uniões

consensuais estáveis ou não.

Para avançar nesta abordagem, retomamos alguns resultados apresentados

anteriormente sobre os batizados de criança livres, de acordo com a sua condição de

legitimidade - legítimos / naturais, (Scott & Scott, 2015: 56-58). A primeira informação

relevante era o aumento consistente da fecundidade ilegítima: após a criação da

freguesia, os batizados de crianças naturais giravam torno de 10%. Nos anos

seguintes elevaram-se para um patamar não inferior a 20% e, no último quinquênio

que havia sido analisado (1835-39), mais de 21% eram crianças nascidas fora do

matrimônio consagrado.

Naquela oportunidade, refinamos mais a análise sobre essas crianças nascidas

fora do sacramento do matrimônio, buscando informações relativas às mães e aos

pais, dessa prole natural, pois encontramos número não negligenciável de assentos

em que o nome da mãe e o nome do pai havia sido registrado.

Essa pista nos levou a considerar também a ocorrência de outros arranjos

nessa informação relativa aos pais dos batizandos: registros em que apenas o nome

do pai era registrado, assim como registros em que o padre não informava nem o

nome da mãe, nem o nome do pai (ainda que a criança fosse dada como natural e

não como exposta). Percebemos que a importância dos assentos das crianças livres

e naturais, em que o nome do pai era registrado, crescia, pelo menos até 1839.

A pergunta, então, passou a ser o que teria acontecido depois? A tendência

teria se mantido? E, em caso positivo, a instabilidade gerada pelo contexto da Guerra

dos Farrapos, especialmente na conjuntura da cidade sitiada de Porto Alegre, e nos

anos seguintes ao conflito, explicaria/justificaria o aumento dos percentuais de

batizados de filhos naturais em que ambos, pai e mãe eram nomeados?

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Com o andamento da inserção de dados, na base NACAOB, agora temos

condições de analisar qual foi o comportamento da população livre em relação à

ilegitimidade, não apenas no período da guerra dos Farrapos, como também para as

décadas seguintes (tabelas 4 e 5).

No intervalo analisado, entre 1825 e 1854, fica clara uma mudança no padrão.

Tomando-se o total de batizados de crianças livres, entre 1772 e 1869 (período cujo

levantamento de dados está completo) temos o registro de 22.508 batizados. A média

de batizados de crianças naturais entre a população livre ficou em torno de 20%, assim

como os batizados de crianças expostas girou em torno de 4%.

Durante o período da guerra houve um pequeno crescimento, que atingiu seu

ponto mais alto entre 1845-1854. A média ficou em 23,8%, e o pico atingiu 26,1%,

após o ponto final do conflito.

Tabela 4 - Batizados de crianças livres por condição de legitimidade

Período Total

batizados Filhos

Legítimos %

Filhos Naturais

% Expostos % Não Inf. %

1772-74 83 72 86,7 4 4,8 1 1,2 6 7,2

1775-79 259 218 84,2 30 11,6 6 2,3 5 1,9

1780-84 362 318 87,8 35 9,7 7 1,9 2 0,6

1785-89 424 349 82,3 54 12,7 21 5,0 0,0

1790-94 575 483 84,0 72 12,5 18 3,1 2 0,3

1795-99 715 560 78,3 117 16,4 37 5,2 1 0,1

1800-04 872 678 77,8 129 14,8 51 5,8 14 1,6

1805-09 1054 810 76,9 169 16,0 69 6,5 6 0,6

1810-14 1354 1006 74,3 253 18,7 87 6,4 8 0,6

1815-19 1505 1060 70,4 310 20,6 116 7,7 19 1,3

1820-24 1753 1238 70,6 364 20,8 137 7,8 14 0,8

1825-29 2014 1458 72,4 423 21,0 111 5,5 22 1,1

1830-34 2259 1621 71,8 481 21,3 99 4,4 58 2,6

1835-39 1844 1389 75,3 389 21,1 48 2,6 18 1,0

1840-44 2195 1599 72,8 524 23,9 34 1,5 38 1,7

1845-49 1251 821 65,6 327 26,1 8 0,6 95 7,6

1850-54 1116 760 68,1 271 24,3 12 1,1 73 6,5

1855-59 1246 941 75,5 255 20,5 3 0,2 47 3,8

1860-64 821 603 73,4 193 23,5 0,0 25 3,0

1865-69 806 561 69,6 179 22,2 8 1,0 58 7,2

Total 22508 16545 73,5 4579 20,3 873 3,9 511 2,3 Fonte: NACAOB extração Janeiro de 2018

O dado interessante é que, do ponto vista quantitativo, não houve variação

percentual importante, apesar da guerra. A mudança foi no perfil da ilegitimidade,

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quando o pároco passa a incluir, de forma mais recorrente, o nome das mães e dos

pais das crianças naturais, conforme pode ser observado na tabela 5.

Entre 1775 e 1834 (excluindo o primeiro período, marcado pela criação e

instalação da freguesia – 1772 a 1774), vimos que em 89,4% dos assentos de batismo

de crianças livres e naturais, os párocos registravam exclusivamente o nome da mãe.

No período do conflito (quinquênios entre 1835-1844) esse percentual despenca para

uma média de 58% (64,5% entre 1835-39; 51,5% entre 1840-44).

Houve, portanto um interesse maior dos pais e/ou do pároco, o Padre Thomé

Luiz de Souza, em registrar o nome da mãe e do pai, ou apenas do pai, das crianças

naturais. Vale lembrar que o padre Thomé se manteve à frente da Madre de Deus

entre 1836 e 1854. Ou seja, não houve uma mudança no “mediador” que fazia os

assentos. Pode-se supor, portanto, que a mudança está no interesse demonstrado

pelos pais em reconhecer a paternidade daquelas crianças. Entre 1840-44 nada

menos do que 48,5% dos assentos das crianças livres e naturais tinha a informação

dos pais ou do pai e no quinquênio, seguinte (1845-49) ainda conformavam 40,6%

dos assentos daquelas crianças.

Tabela 5 - Batizados de crianças naturais livres e informação sobre os pais

Período Só com a

Mãe %

Com o Pai e a Mãe

% Só com o

Pai %

Sem Mãe e sem Pai

%

1772-74 3 75,0 1 25,0 0 0,0 0,0

1775-79 25 83,3 5 16,7 0 0,0 0,0

1780-84 33 94,3 2 5,7 0 0,0 0,0

1785-89 51 94,4 1 1,9 0 0,0 2 3,7

1790-94 68 94,4 2 2,8 2 2,8 0,0

1795-99 117 100,0 0,0 0 0,0 0,0

1800-04 121 93,8 1 0,8 4 3,1 3 2,3

1805-09 146 86,4 14 8,3 9 5,3 0,0

1810-14 233 92,1 8 3,2 12 4,7 0,0

1815-19 272 87,7 29 9,4 8 2,6 1 0,3

1820-24 301 82,7 19 5,2 43 11,8 1 0,3

1825-29 349 82,5 45 10,6 26 6,1 3 0,7

1830-34 390 81,1 64 13,3 24 5,0 3 0,6

1835-39 251 64,5 113 29,0 23 5,9 2 0,5

1840-44 270 51,5 207 39,5 47 9,0 0,0

1845-49 193 59,0 110 33,6 23 7,0 1 0,3

1850-54 154 56,8 100 36,9 16 5,9 1 0,4

1855-59 142 55,7 84 32,9 27 10,6 2 0,8

1860-64 160 82,9 28 14,5 5 2,6 0,0

1865-69 155 86,6 20 11,2 4 2,2 0,0

Total 3434 75,0 853 18,6 273 6,0 19 0,4 Fonte: NACAOB extração Janeiro de 2018

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O que sabemos deles? Quem são os pais que “comparecem” ao batizado e

reconhecem os filhos naturais? Há algum atributo de distinção social? Infelizmente os

assentos paroquiais são pobres neste tipo de informação. Um exame dos atributos de

cor e/ou distinção social (patentes militares, cargos), mostrou que, em relação ao

primeiro (cor) há apenas cinco menções em 1.511 batizados de crianças naturais,

todos pretos e/ou negros. Patentes militares apenas 40 referências, no mesmo

conjunto. Em relação às mães, dos 1.511 assentos há referência a 152 mães (59

pardas, 58 crioulas, 24 pretas, 8 negras, 2 índias e uma china), todos atributos de

desqualificação. De outra parte, temos oito mães de crianças naturais para as quais

foi atribuída a categoria “Dona”. Para aprofundar o perfil, devemos buscar informações

cruzadas com outras fontes, o que não foi possível fazer nesse momento.

Relacionada a essa questão da mudança no perfil da ilegitimidade, outro tópico

que pretendemos explorar com maior profundidade é questão da nupcialidade e dos

casamentos realizados neste arco temporal. Temos indícios que parecem muito

promissores, sobre matrimônios que ocorreram na Madre de Deus e que tiveram como

especificidade o fato de “legitimar” a prole tida na vigência de uniões consensuais.

Novamente aqui não se trata da analisar a quantidade dos casamentos, mas

de perceber uma postura/atitude dos pais (homens) em relação às mães (suas

“concubinas”) e à prole composta pelos filhos(as) naturais gerados a partir desses

relacionamentos não legitimados. O levantamento preliminar revelou que entre 1836

e 1848 ocorreram 35 casamentos (que em um total de 979, somam 3,6%)20 nos quais

casais que viviam uniões estáveis (que poderiam ter durado mais de 20 anos)

escolheram se casar e legitimar seus filhos e filhas. Não percebemos semelhante

comportamento nos períodos precedentes e/ou posteriores à guerra dos Farrapos.

Apenas como ilustração, temos o assento de casamento de Joaquim Xavier

Caldeira e Maria Rosa Silva, realizado em 24 de junho de 1837. As observações do

pároco informavam que o casamento havia sido realizado no

[...] Oratório das casas em que rezide Joaquim Xavier Caldeira, nesta cidade de Porto

Alegre, pelas cinco horas da tarde [...] legitimaram os seguintes filhos Manoel Alvares da Silva Caldeira (23 anos), Anna Amalia Caldeira (20 anos), Lino Antônio da Silva Caldeira (18 anos), Joaquina Francisca Caldeira (16 anos), Maria Bernardina do patrocínio Caldeira (5 anos), Francisco Xavier Caldeira (3 anos) e Alexandre Xavier

Caldeira (18 meses) [...] (NACAOB, extração Janeiro de 2018)

20 Esse percentual tem um ligeiro aumento (3,8%) se considerarmos apenas o período entre 1836 e 1845, período efetivo do conflito. Antes daquele ano não encontramos, pelo menos até agora, outros registros desse tipo.

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Tabela 6 – Casamentos na Madre de Deus 1836-1848

Ano Total de

Casamentos

Casamentos com filhos

legitimados

1836 39 1

1837 44 4

1838 61 2

1839 69 2

1840 67 2

1841 108 3

1842 109 3

1843 89 4

1844 104 6

1845 76 2

1846 79 3

1847 66 0

1848 68 3

Total 979 35

Fonte: NACAOB extração Janeiro de 2018

Apenas como ilustração, temos o assento de casamento de Joaquim Xavier

Caldeira e Maria Rosa Silva, realizado em 24 de junho de 1837. As observações do

pároco informavam que o casamento havia sido realizado no

[...] Oratório das casas em que rezide Joaquim Xavier Caldeira, nesta cidade de Porto

Alegre, pelas cinco horas da tarde [...] legitimaram os seguintes filhos Manoel Alvares da Silva Caldeira (23 anos), Anna Amalia Caldeira (20 anos), Lino Antônio da Silva Caldeira (18 anos), Joaquina Francisca Caldeira (16 anos), Maria Bernardina do patrocínio Caldeira (5 anos), Francisco Xavier Caldeira (3 anos) e Alexandre Xavier

Caldeira (18 meses) [...] (NACAOB, extração Janeiro de 2018)

O casal Joaquim e Maria Rosa legitimaram nada menos que sete filhos que

tinham idades que variavam entre 18 meses e 23 anos, indicando que a união não só

havia sido plenamente estável, como ainda se encontrava dentro do ciclo reprodutivo

da mulher, pois Alexandre, o filho mais novo tinha pouco mais de um ano. A opção

por casar se dá exatamente no momento que a cidade vivenciava o primeiro cerco e

os impactos dos anos iniciais da guerra. Esse casal e os demais assumiram que havia

um relacionamento consensual, que gerou prole “natural” e que agora, através do

matrimônio, era reconhecida perante a igreja e a comunidade de forma explícita. A

partir desse conjunto de 35 casamentos pretende-se cruzar as informações sobre

esses casais, rastreando os assentos de batismo de crianças livres naturais com os

assentos de casamento realizados na Madre de Deus. Será que foi apenas a

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conjuntura da guerra que estimulou pais e mães a legitimarem os filhos através de

matrimônio? Fica a questão para ser analisada nas próximas etapas21.

Considerações Finais

O território do Continente do Rio Grande de São Pedro e, mais tarde, da

Província do Rio Grande do Sul, foi marcado por uma sucessão de conflitos e guerras

que, certamente impactaram na vida de sua população, como apontou Olivier Faron.

Para além dos resultados comuns a todas as guerras como desaparecimento dos

jovens do sexo masculino, desequilíbrio na razão de sexos, multiplicação de viúvas e

órfãos, os conflitos e guerras pressupõem perturbações profundas nas condições

gerais de vida da população.

No nosso caso, e na medida das possibilidades das fontes, buscamos analisar

os impactos e desdobramentos da Guerra dos Farrapos na cidade de Porto Alegre.

Entre tantas lutas, este conflito foi escolhido pois, de fato, trouxe transtornos,

privações e mudanças que foram sentidas por sua população, já que a cidade

permaneceu fiel ao Império e vivenciou três momentos de sítios impostos pelos

revoltosos, que se estenderam, grosso modo, ao longo da primeira metade da guerra

(1836-1840). Problemas de abastecimento, escassez e carestia de gêneros foram

reportados, especialmente por Sergio da Costa Franco, ao estudar o período que a

cidade ficou sitiada (Franco, 2011). Também os relatórios dos Presidentes da

Província fizeram menção aos necessitados, especialmente viúvas e órfãos da guerra,

que receberam inclusive ajuda do Imperador D. Pedro II, quando ele esteve no Rio

Grande do Sul, logo após o cessar das lutas (RPP, 1846)22.

No que diz respeito ao “desaparecimento dos jovens” e “ao desequilíbrio na

razão de sexos” não foi possível examinar com maior acuidade, já que os dados não

21 Aqui mencionamos o estudo recente de Gabriel Berute (2015) sobre a Guerra dos Farrapos e os casamentos em Porto Alegre. http://historiaregional.upf.br/images/pdf/2015/ST4/gabriel-berute.pdf, acesso em março de 2018. O autor utilizou a base de dados do NACAOB para analisar, entre outras questões, a origem dos noivos casados entre 1835 e 1848, tendo em consideração o casamento que envolvia militares naturais de outras províncias do Brasil. 22 Relatório do Presidente da Província, 1846: “Esta província foi testemunha das virtudes do Magnanimo Imperador e da Excelsa Imperatriz, que assignalaram os dias de sua estada nas nossas cidades e villas com benefícios imensos prodigalizados com mãos generosas às Casas de Caridade, às Igrejas, aos desvalidos órfãos, às viúvas e a todos os indigentes, além, d’aqueles bens que emanam da presença de um monarca sábio e virtuoso em promover a prosperidade do seu império. O anno de 1845 será sempre um dos mais gloriosos e felizes nos annaes desta província de São Pedro do Rio Grande do Sul”, (http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/874/000004.html, acesso março de 2018).

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permitiram elaborar pirâmides etárias. Como vimos, foi bastante complexo

calcular/estimar a população total.

Deve-se considerar ainda, que embora Porto Alegre tenha enfrentado o cerco,

o palco dos combates não foi a cidade. As principais batalhas ocorreram nas regiões

de Triunfo, Taquari, Rio Pardo e Bagé. Não se registrou, nos assentos de óbito, a

informação sobre a morte de soldados.

Por outro lado, a exploração das séries de registros paroquiais revelou outros

desdobramentos que afetaram a vida de homens, mulheres e crianças, muito além

das duras privações, das doenças e epidemias. Neste ponto, esta comunicação

chamou a atenção para as mudanças relacionadas à fecundidade ilegítima, aos

batizados das crianças livres e naturais e, finalmente, aos casamentos que

legitimaram prole “natural”. Se os percentuais de ilegitimidade pouco mudaram,

permanecendo pouco acima dos 20% (que é a média para o período entre 1772 e

1872) no período do conflito, verificamos alterações mais profundas na tipificação/

qualificação dos batizados dos filhos naturais, que revelaram a presença significativa

dos pais, reconhecendo seus filhos no momento do batismo, mesmo não sendo

casados com as mães de seus rebentos. Além disso, indícios revelaram que alguns

casais que viviam em uniões não consagradas, procuraram corrigir o “desvio”,

legitimando as crianças que eram fruto daqueles relacionamentos.

Esses resultados abrem inúmeras perspectivas de análise, não apenas para o

fenômeno da ilegitimidade em tempos de guerra, mas também as implicações que

podem ter sobre as chances desses relacionamentos consensuais transformarem-se

em matrimônios sacramentados pela igreja, seja durante a guerra, seja no período

posterior ao conflito.

Assim os próximos desafios vinculam-se ao estudo da nupcialidade nos tempos

da guerra e nas décadas seguintes.

Referências Bibliográficas

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