o avesso da paisagem cultural em laguna · guerra dos farrapos e da república juliana no século...

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O AVESSO DA PAISAGEM CULTURAL EM LAGUNA REITZ, LUCAS (1); YUNES, GILBERTO S. (2) . 1. Universidade Federal de Santa Catarina. Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade/ PGAU -Cidade. Núcleo de Investigação em Configuração e Morfologia na Arquitetura e no Urbanismo. Centro Tecnológico, Campus Universitário Trindade. 88040-900 Florianópolis SC. [email protected] 2. Universidade Federal de Santa Catarina. Professor Adjunto do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade/ PGAU -Cidade.Coordenador e Pesquisador do Núcleo de Investigação em Configuração e Morfologia na Arquitetura e no Urbanismo. Centro Tecnológico, Campus Universitário Trindade. 88040-900 Florianópolis SC. [email protected] RESUMO O artigo utiliza a aquarela que representa a paisagem do município de Laguna, Santa Catarina, elaborada em 1827 por Jean-Baptiste Debret, para o entendimento da definição da cidade como paisagem cultural. Analisa sua interpretação dos elementos que compõem o registro e identificam seu tempo. Não existem evidencias oficiais da visita do artista à cidade e a imagem foi criada a partir de relatos, resultando de filtros que a tornam constituída de elementos selecionados por sua subjetividade e construção cultural. Utilizando-se do conceito de Pechman, de que a “imagem não é mais uma paisagem, embora simule sê-la” (2012), parte-se da ideia de uma representação definida como o avesso da paisagem, calcada na técnica e subjetividade do artista. A partir do estudo do avesso da paisagem”, o artigo desenvolve a hipótese e verifica como as imagens percebidas e registradas contribuem para a criação de ficções e invenção de urbanidades, tomando como estudo de caso a cidade de Laguna. Resultado do processo histórico de ocupação e da morfologia natural, o conjunto paisagístico do município desempenhou importante papel nacional. Inicialmente como ponto divisor do Tratado de Tordesilhas, foi posteriormente palco da Guerra dos Farrapos, sendo também importante porto e polo cultural catarinense. Esta paisagem começa a ser valorizada a partir da década de 1950, quando recebe sua primeira ação de preservação com o tombamento pontual da Casa de Câmara e Cadeia. Consecutivamente, variadas edificações isoladas são tombadas no âmbito municipal e estadual até o ano de 1978, coincidindo com a elaboração do plano diretor. Nota-se uma tendência de tombamento de edificações de tempos e linguagens específicas, além de algumas com caráter monumental. A partir deste final de década, ocorre a expansão mais significativa do núcleo inicial em direção ao oceano, com a criação do balneário praia do Mar Grosso, cujo adensamento vai ocasionar uma mudança no caráter econômico e espacial da cidade. Em 1985, o núcleo fundador é tombado pelo IPHAN, por considera-lo “fundamental para a manutenção da identidade dos brasileiros e da paisagem urbana de Laguna” (CITTADIN,2010). É definida uma poligonal de tombamento que estabelece os limites de preservação da paisagem no município, um recorte espacial identificado como o mais representativo de sua eleição como imagem desejada. A partir deste tombamento de seu núcleo

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Page 1: O AVESSO DA PAISAGEM CULTURAL EM LAGUNA · Guerra dos Farrapos e da República Juliana no século XIX. É um município localizado ao litoral sul do estado de Santa Catarina, aproximadamente

O AVESSO DA PAISAGEM CULTURAL EM LAGUNA

REITZ, LUCAS (1); YUNES, GILBERTO S. (2)

.

1. Universidade Federal de Santa Catarina. Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade/

PGAU -Cidade. Núcleo de Investigação em Configuração e Morfologia na Arquitetura e no Urbanismo. Centro Tecnológico, Campus Universitário – Trindade. 88040-900 – Florianópolis –

SC. [email protected]

2. Universidade Federal de Santa Catarina. Professor Adjunto do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade/

PGAU -Cidade.Coordenador e Pesquisador do Núcleo de Investigação em Configuração e Morfologia na Arquitetura e no Urbanismo. Centro Tecnológico, Campus Universitário –

Trindade. 88040-900 – Florianópolis – SC. [email protected]

RESUMO O artigo utiliza a aquarela que representa a paisagem do município de Laguna, Santa Catarina, elaborada em 1827 por Jean-Baptiste Debret, para o entendimento da definição da cidade como paisagem cultural. Analisa sua interpretação dos elementos que compõem o registro e identificam seu tempo. Não existem evidencias oficiais da visita do artista à cidade e a imagem foi criada a partir de relatos, resultando de filtros que a tornam constituída de elementos selecionados por sua subjetividade e construção cultural. Utilizando-se do conceito de Pechman, de que a “imagem não é mais uma paisagem, embora simule sê-la” (2012), parte-se da ideia de uma representação definida como o avesso da paisagem, calcada na técnica e subjetividade do artista. A partir do estudo do “avesso da paisagem”, o artigo desenvolve a hipótese e verifica como as imagens percebidas e registradas contribuem para a criação de ficções e invenção de urbanidades, tomando como estudo de caso a cidade de Laguna. Resultado do processo histórico de ocupação e da morfologia natural, o conjunto paisagístico do município desempenhou importante papel nacional. Inicialmente como ponto divisor do Tratado de Tordesilhas, foi posteriormente palco da Guerra dos Farrapos, sendo também importante porto e polo cultural catarinense. Esta paisagem começa a ser valorizada a partir da década de 1950, quando recebe sua primeira ação de preservação com o tombamento pontual da Casa de Câmara e Cadeia. Consecutivamente, variadas edificações isoladas são tombadas no âmbito municipal e estadual até o ano de 1978, coincidindo com a elaboração do plano diretor. Nota-se uma tendência de tombamento de edificações de tempos e linguagens específicas, além de algumas com caráter monumental. A partir deste final de década, ocorre a expansão mais significativa do núcleo inicial em direção ao oceano, com a criação do balneário praia do Mar Grosso, cujo adensamento vai ocasionar uma mudança no caráter econômico e espacial da cidade. Em 1985, o núcleo fundador é tombado pelo IPHAN, por considera-lo “fundamental para a manutenção da identidade dos brasileiros e da paisagem urbana de Laguna” (CITTADIN,2010). É definida uma poligonal de tombamento que estabelece os limites de preservação da paisagem no município, um recorte espacial identificado como o mais representativo de sua eleição como imagem desejada. A partir deste tombamento de seu núcleo

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fundador e seu contexto paisagístico, Laguna passa a ser um destino turístico de interesse também por sua imagem histórica divulgada, desprestigiando as continuidades espaciais da cidade que configuram seu conjunto urbano como processo de construção coletiva. Assim, identifica-se que, também os estudos realizados atualmente acerca de sua definição como paisagem cultural, tendem a valorizar a paisagem natural, a morfologia do núcleo fundador e algumas relações antrópicas pontuais. A partir do estudo das cartografias e documentação visual, chega-se à conclusão de que a construção da paisagem cultural aqui ocorrida, ao eleger elementos específicos do passado para seu entendimento presente, mantém relação com a interpretação de Debret. Esta também seleciona elementos escolhidos como significativos para a elaboração de uma imagem institucionalizada, reforçando a versão do avesso da paisagem em Laguna. Palavras-chave: Paisagem; Urbanização; Representação; Laguna.

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A Laguna de Debret e o Avesso da Paisagem

As imagens registradas do passado nos ajudam a remontar os modos de representar e pensar

de uma época. Nos anos de consolidação do território brasileiro, as pinturas de paisagem

foram um dos registros responsáveis por noticiar um Brasil pouco conhecido.

Destacamos aqui, a Missão Francesa de 1816, que objetivava revolucionar as artes na

colônia e imprimir no novo mundo as marcas profundas e úteis dos artistas franceses (Souza

e Silva, 2009). Um de seus maiores expoentes, Jean-Baptiste Debret, contribuiu fortemente

com relatos escritos e pictóricos, culminando na publicação de Viagem pitoresca e histórica ao

Brasil, entre 1834 e 1839.

O artista dedicou-se a retratar um Brasil a partir de temáticas civilizatórias, como a relação

europeus-indígenas e economia escravocrata. Entretanto, não podemos considerar a sua,

como uma visão pura e real – “virtualmente inexistente”, já que ele parte de uma reelaboração

da tradição neoclássica e iconográfica europeia (Squeff, 2008). Assim, pode-se dizer que:

“A obra de Debret, como qualquer outra produção humana, não escapa a

inexorabilidade de constituir-se numa interpretação construída por um sujeito

inserido no mundo. Seu plano de interpretação do Brasil só pode ser pensado

como possuindo firme alicerce nas ideias de seu tempo e no referencial de

seu passado europeu” (Batista, 2013).

O eco de suas obras remonta à exposição itinerante, “Debret – Viagem ao Sul do Brasil”,

curada por Anna Paola Batista em 2011. Nela, um conjunto de aquarelas e desenhos

realizados pelo artista por volta de 1827, retrata as paisagens sul-brasileiras, apontadas como

“uma das principais fontes da memória da sociedade brasileira na primeira metade do século

XIX” (Batista, 2013)

Dentre elas, destacamos o panorama a partir do hospital, em Laguna – influente porto e centro

urbano no século XIX, ao sul do estado se Santa Catarina.

Nessa aquarela, concluída em 1828, Debret contraria sua marcante característica de

intimidade e proximidade com a cena, retratando o porto de um ponto de observação distante

e alto (Batista, 2013). Nas paisagens do Sul do Brasil, Debret repete “um cacoete compositivo

(...), os personagens de costas a caminho ou observando a localidade retratada” (Batista,

2013). Alguns historiadores acreditam que essa constante distância, se deve ao fato de que a

viagem ao sul nunca fora realizada, tendo o artista “se utilizado de relatos e desenhos de

outros viajantes para compor os trabalhos” (Batista, 2013).

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Debret também se utiliza de aspectos morfológicos e signos na paisagem não

correspondentes aos reais, estes ganham um caráter homogêneo e simbólico. Conforme

observa-se na Figura 1, os morros muito lembram as paisagens europeias; o balcão asséptico

do hospital; os inúmeros barcos denotando a vocação da cidade e o espectador

desconhecido; todos compõem uma feição “etérea que apontam pra a construção visual do

conceito de sublime” (Batista, 2013).

Figura 1 - A imagem representando o olhar de distância de Debret sobre a paisagem. Jean Baptiste Debret – Vista de Hospital

em Laguna, 1827. (Fonte: Museus Castro Maya)

Endente-se que a aquarela de Debret pode ser considera uma representação do real,

interpretada pela ótica da técnica e da subjetividade do pintor. Portanto, como representação,

essa “imagem não é mais uma paisagem, embora simule sê-la”, conforme propõe Pechman

(2012). Para entender como essa paisagem não constitui um registro, se recorre ao conceito

de avesso. Por essa ótica, a paisagem, dotada de processos espaciais no tempo é o

antagônico da imagem, destituída de passado. Sobretudo na paisagem urbana, a imagem

destrói a própria cidade, compõe um lugar imaginário de desterritorialização contemporânea:

“(...) a cidade com o peso de sua história, com a presença de sua arquitetura

e com a veemência de sua urbanidade passa a ser temida como um

empecilho à travessia dos fluxos e de toda a natureza” (Pechman, 2012,

p.258)

Assim, a imagem opera como um simulacro na “transformação da cidade numa imagem de

cidade” (Pechman, 2012), transformando e desmanchando a urbanidade. Portanto, mesmo

com a possível inexistência da viagem da viagem de Debret ao sul do Brasil, as

representações nos servem como construção artística e mental da paisagem de um tempo,

para todos os efeitos: um avesso.

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Hoje Laguna carrega um importante legado na história do Brasil. No ano de 1494, a cidade foi

apontada como ponto divisor das terras portuguesas e espanholas no Tratado de Tordesilhas,

onde pela primeira vez configura nos domínios da corte. Desempenhou, posteriormente,

importante papel no século XVII, durante as expansões territoriais, além de ser palco da

Guerra dos Farrapos e da República Juliana no século XIX.

É um município localizado ao litoral sul do estado de Santa Catarina, aproximadamente a

120km de Florianópolis, inserido no Complexo Lagunar Sul Catarinense. Seu nome deriva de

sua conformação geográfica, já que sua área central caracteriza uma porção de terra banhada

por uma laguna – lagoa alimentada por águas fluviais e oceânicas.

As primeiras ocupações do território lagunense remontam aos grupos sambaquianos. No

século XIV, as terras são registradas por jesuítas, até serem ocupadas por bandeirantes e

vicentistas em 1676. A cidade começa sua consolidação urbana quando é elevada à categoria

de vila, em 1714, se desenvolvendo apoiada na economia portuária e como caminho das rotas

de charque e gado para o Rio Grande do Sul.

Após o desvio da rota do gado, entre 1748 e 1756, chegam os imigrantes açorianos, que

mudam drasticamente os hábitos da cidade, redefinindo os costumes e padrões de ocupação

do solo (Campos, 2007, p.35-40).

Em 1847, a vila é elevada à cidade por Decreto Imperial. Nesta época, a população de 9000

habitantes era composta de comerciantes, militares e trabalhadores portuários de classe

média e baixa, que testemunhavam a chegada de imigrantes italianos e alemães.

Na virada do século XIX, a cidade vê um desenvolvimento da economia portuária aliado ao

comercio e indústrias da região, o que a põe em uma “posição econômica invejável

possibilitando com isso, melhores condições de vida a toda a população” (Campos, 2007,

p.41-45).

O fim do século XIX e o início do século XX caracterizam a “época áurea” de Laguna, onde

são implantados variados equipamentos urbanos, de lazer e serviços, ainda concentrados

próximos ao núcleo fundador. Esse período testemunha alterações drásticas nos padrões de

ocupação e modificadores da paisagem urbana.

A queda subsequente da economia portuária entre e pós guerras no século XX, traz o declínio

econômico a cidade, fator que leva a ocupação e consolidação para os bairros além do centro,

provocado pelo deslocamento do porto.

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Ao longo da segunda metade do século XX, a cidade vive um período de incerteza econômica,

o que a faz explorar, a partir da década de 1970, a atividade turística, criando o balneário Praia

do Mar Grosso, oposto geográfico ao núcleo fundador (Campos, 2007, p.41-45). Desse modo,

testemunhou-se um deslocamento de algumas importantes atividades, como os festejos de

carnaval, para outras áreas da península central, como o bairro Magalhães e Mar Grosso.

Atualmente, a cidade vê os resultados da consolidação como balneário, enquanto a economia

se apoia na sazonalidade litorânea, na exploração do turismo com apelo histórico, em

atividades comercias e pesqueiras locais, e, mais recentemente, como polo universitário.

As visões de Laguna pela paisagem

Para abordar os aspectos naturais e antrópicos da paisagem em Laguna, se faz uso da

dissertação de Mestrado de Ana Paula Cittadin, arquiteta responsável pelo Escritório Técnico

do Iphan em Laguna. No trabalho, a autora pretende “introduzir objetivos de proteção ao

patrimônio cultural e natural da paisagem na elaboração de diretrizes de política urbana para o

município de Laguna.” (CITTADIN, 2010, p. 9). Assim, compreende os elementos naturais do

território, elementos antrópicos do processo de ocupação e as unidades de paisagem. A partir

daí, elenca variados aspectos para a caracterização.

Os elementos naturais do território são estudados pela ótica de subcategorias que juntas

englobam: geomorfologia, hidrografia, dunas e vegetação; traçando um quadro geral de

elementos que articulam a paisagem do município. Compreende-se a inserção de Laguna na

Unidade Geomorfológica da Serra do Tabuleiro e a posição divisora das feições

geomorfológicas do litoral brasileiro do Cabo de Santa Marta; a importância da inserção no

complexo lagunar sul catarinense; a conformação das dunas e a inserção no bioma da mata

atlântica.

Já os elementos antrópicos do processo de ocupação, abrangem a “ação conjunta e

prolongada, ao longo do tempo, de fatores bióticos e abióticos sobre o território” (p. 76).

Destaca-se a contribuição humana na modificação e construção da paisagem, vista através

da passagem do tempo e estabelecimento das culturas. Aqui, se aborda as diferentes

ocupações dos grupos Sambaquianos, Jês e Guaranis e mais tarde das ocupações

europeias, chegando até os dias atuais. Aponta estudos desde o primeiro núcleo urbano da

cidade, atual Centro, até a atual ocupação do território.

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Enfim, a autora avalia a paisagem de Laguna em três etapas:

Paisagem Atual Rural e Urbana, identificando “características do ambiente, densidade

de assentamentos urbanos e infraestrutura disponível”;

Identificação e Valoração da Paisagem, apontando "as paisagens reconhecidas

legalmente e os valores de paisagem encontrados em cada unidade”;

Dinâmicas e Processos que incidem na Paisagem, definindo quais paisagens são

resultados de processos entre múltiplas dinâmicas atuando em diferentes escalas, como o

crescimento urbano.

Para a complementação do presente estudo, elencando a paisagem como categoria,

evidencia-se que esta não pode ser entendida apenas a partir da visão de uma porção do

espaço, ou de uma única ótica. Para tanto, se recorre aos padrões ocupacionais e ao traçado,

segundo Cosgrove (2008), vestígio histórico urbano de mais longa duração e consequente

testemunho da ação antrópica no território.

A partir dessas categorias, se busca o entendimento da paisagem como um “processo

dinâmico de transformações biofísicas, sociais, econômicas e políticas a partir da escala

urbana” (Alcantara, 2012). Apresentam-se os processos de ocupação na área central do

município, destacando os motores de ocupação e processos socioeconômicos que as

caracterizam.

Aqui, se realiza um recorte mais preciso na paisagem, focando na península central da

cidade, lugar onde os processos da passagem do tempo na paisagem são mais evidentes.

As primeiras impressões deixadas cidade de forma consolidada concentram-se numa área

restrita, ocupada estrategicamente protegida do mar aberto, entre os morros e a Lagoa de

Santo Antônio dos Anjos, para a proteção de ataques. O traçado se constitui a partir de duas

praças – atualmente Vidal Ramos e República Juliana e uma fonte – Bica da Carioca, e sua

conexão com a laguna, onde se situava o porto. A área era ocupada por edificações em fita,

em sua grande maioria, constituindo uma paisagem tendendo a hegemonia quanto a tipos e

unidade de fachada, indicada pela mancha vermelha no infográfico da Figura 2.

Já a virada do século XIX para o XX, é marcada pela ação de modificação do homem na

paisagem, seja por obras de infraestrutura ou de expansão da ocupação, como indicado na

mancha azul do infográfico da Figura 2. Nesta mesma época, começam as obras dos molhes

da barra, para possibilitar um melhor acesso a Laguna e do porto no bairro Magalhães.

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Enfatiza-se que no início do século XX, havia “dois portos; assim, poder-se-ia dizer que a

mudança de localização do porto principal acompanhou a dinâmica da economia carvoeira”

(Elíbio, 2005). Simultaneamente, aterram-se uma faixa da orla do centro e as terras

pantanosas do bairro Campo de Fora para a ampliação da ferrovia e recepção da estação

ferroviária, configurando as mesmas tipologias de ocupação do Centro.

O bairro Magalhães se constitui predominantemente de edificações residenciais isoladas no

lote, tendo como maior exemplar o Palacete de Polidoro Santiago, administrador do porto no

começo do século. Desenvolve-se ao longo da estrada de ligação entre o novo porto e o

centro.

A desativação do porto localizado no Centro acontece no estado novo, entre 1947 e 1945,

período próximo em que o porto, no então bairro Magalhães, chega ao seu pico de

movimentação de embarcações e carga, em 1948 (Elíbio, 2005). O período de declínio

começa a acentuar em 1954, com a ascensão do porto de Imbituba. A partir daí, começa a

operar como porto pesqueiro, de forma local e em reduzida escala.

É na década de 1970 que começa a exploração como balneário turístico, definindo o traçado

atual do Bairro Mar Grosso. Aqui, as vias são reguladas por pequenos loteamentos e

desmembramentos, e a interação com a orla marítima, além da continuação das vias de

acesso ao centro e bairro Magalhães. Essa expansão é indicada pela mancha verde do

infográfico da Figura 2.

Os gabaritos nas edificações sobem, não extrapolando a média de trinta metros de altura. O

bairro se consolida por edificações residenciais e comércio local, adotando a faixa de areia

como o grande espaço público.

Mais recentemente, no fim do século XX e começo do XIX, observa-se o loteamento e

ocupação da Praia do Gi, caracterizado por grandes lotes e condomínios particulares

murados. Nota-se uma tentativa, atualmente sem resultados palpáveis, de deslocamento do

balneário Mar Grosso para a Praia do Gi.

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Figura 2 - Infográfico. Acima a localização do município. Abaixo, mapa da península central de laguna, indicando as manchas

de expansão mais significativas em relação ao traçado e espacialidade na paisagem da cidade.(Fonte: Prefeitura Municipal

de Laguna, GoogleMaps e Wikipedia – Adaptado pelo autor)

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Dado este conjunto paisagístico singular, em 1954 surge a primeira ação de preservação em

Laguna, ainda em âmbito municipal, investida na Casa de Câmara e Cadeia. A intenção de

manutenção do bem é marcada pelo centenário da morte da onipresente lagunense, Anita

Garibaldi, em 1949. O edifício, então, passa a hospedar o museu intitulado pela heroína da

República Juliana.

Já a partir da década de 1970, o centro fundador começa a apresentar sinais de

desvalorização e esvaziamento de usos, por ser palco de uma “vida urbana tradicional”, frente

aos novos hábitos da modernidade. Diz-se que o deslocamento acelerado para a região

balneária da cidade “proporcionou efeitos não tão benéficos para a área” (Lucena, 2011).

Além disso, em 1978, com a elaboração do primeiro plano diretor, permite-se edificações de

até quatro pavimentos, incentivando a mudança nos padrões ocupacionais da área: “este fato

dá início ao rompimento da volumetria e morfologia do centro” (Cittadin, 2010). Junto ao plano,

edificações são tombadas de forma isolada no bairro Centro e Cadeia e Magalhães.

Após estudos realizados por Tavares (1983), se começa a pensar o tombamento de fração da

cidade em âmbito nacional. Este movimento resulta, em 1985, no tombamento de uma porção

do território do centro fundador, caracterizando uma poligonal de tombamento, indicado pelo

tracejado cinza na Figura 2. Vale ressaltar que algumas edificações de valor cultural

inestimável passaram por processo de demolição na mesma década. Este recurso abrange

uma totalidade aproximada de 700 edificações:

“Estas formam um conjunto com características singulares construídas a

partir do séc. XVIII. São residências térreas, sobrados, edificações de grande

volumetria, em estilos arquitetônicos variados como lusobrasileiro, eclético,

art deco, modernistas, entre outros” (Campos, 2007, p.44)

Na época, a poligonal é inscrita em dois livros de preservação, o Livro do Tombo Histórico e o

Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. É, importante destacar que,

juntamente ao tombamento das edificações, já há uma preocupação em relação a paisagem.

No relatório do IPHAN (1985) com as recomendações do tombo, o arquiteto Luiz Fernando P.

N. Franco expressa que “em sua dimensão estritamente arquitetônica, o patrimônio

construído do Centro Histórico de Laguna não apresenta as características de

excepcionalidade normalmente adotadas como critério para decidir sobre a oportunidade do

tombamento”. Assim, nota-se que a inserção e posição geográfica adotada pela ocupação é

fator decisivo para a preservação.

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Lucena (2011) ainda defende que, no caso de Laguna, o tombo trata-se de uma “análise

estritamente material do objeto para a preservação”, não levando em consideração os

aspectos históricos e socioeconômicos, associando a paisagem como moldura e cenário do

objeto material principal a ser preservado: o centro histórico. A autora também destaca esta

como uma tendência seguida após as recomendações da Carta de Veneza (1964), a

exemplos de sítios como Paraty e Porto Seguro.

Essa primeira leva de ações de preservação em Laguna engloba somente registros de

patrimônios materiais, compreendendo as modificações tangíveis do homem na paisagem. É

a partir do fim da década de 1980 e começo da década de 1990, que questões relacionadas

ao patrimônio imaterial começam a despontar com força no Brasil, desencadeados por uma

tendência mundial.

É importante assinalar que a constituição de 1988, Cap. III, Art.216, já demonstra tal

preocupação, classificando “bens de natureza material ou imaterial, incluindo o patrimônio

paisagístico que merecem fazer parte do futuro.” (BRASIL, 2004). Porém, somente no ano de

2000, com a lei nº 3551 que o patrimônio imaterial começa a constar num livro próprio. Em

2009, com a portaria nº127, enfim é estabelecida a Chancela de Paisagem Cultural, regendo a

manutenção e gestão das relações antrópicas na/com a paisagem.

Em Laguna, o primeiro marco do registro imaterial ocorre em 1997, com a Lei municipal nº

521, onde “os habitantes de Laguna, na qualidade de cidadãos, declaram os botos (golfinhos)

da Lagoa de Santo Antônio dos Anjos, patrimônio do município” (Brasil, 1997).

Neste ato a prefeitura se compromete a monitorar, proteger, divulgar e articular

cientificamente a questão da pesca com o auxílio dos golfinhos. Esta prática, mais frequente

nos meses de pesca da tainha, é um, se não o maior, exemplo eleito da interação

homem-natureza na paisagem do município. De cinquenta golfinhos que vivem no Complexo

Lagunar, cerca de vinte – entre adultos e filhotes, cooperam diretamente com a pesca (G1,

2013).

A partir daí, destacam-se estudos para a compreensão do valor material e imaterial da

paisagem de Laguna, apresentados nos trabalhos de Lucena (2011), Campos (2007) e

Cittadin (2010).

Lucena (2011), faz um apelo aos espaços públicos da cidade, sendo estes “espaços

que a sociedade manifesta publicamente seus valores socioculturais, seus anseios, suas

necessidades - do lazer, da palavra, da sociabilidade” (p.12), encarnando aí, a imaterialidade,

ou a urbanidade, no centro da cidade. A autora ainda discorre sobre a intervenção da

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chancela da paisagem cultural em Laguna sob duas alçadas, ambas partindo do centro da

cidade:

“Dentro do centro”: onde a manutenção pela chancela ocorreria nos espaços

públicos e na vida urbana nele inserida – festas, manifestações culturais e religiosas,

rotina e atividades econômicas como a pesca.

“Dentro para fora do Centro”: o “entorno imediato, formado pelos elementos

naturais que interagem e intervém no modo de vida das pessoas” (p.16). Abrange aí a

Lagoa – cenário da pesca e rotas de transporte; e os morros, que ao longo dos anos,

ganharam significado religioso e memorial.

Enfim, ressalta que para o uso da Chancela da Paisagem Cultural, deve-se buscar uma

gestão público-privada, que auxiliem na criação de:

“Instrumentos normativos, de obras de revitalização, de políticas que

valorizem e preservem as configurações sociais existentes no centro

histórico, que estimulam o lúdico, o cultural e a memória urbana nestes

espaços” (Lucena, 2011, p.19)

Nota-se uma preocupação evidente no resgate da urbanidade tradicional, do papel do

“centro histórico” na memória da cidade, e na eleição de elementos pré-industriais na

paisagem como catalizadores da relevância patrimonial frente às demandas contemporâneas.

Já Campos (2007), através da história oral temática, tenta entender como os órgãos de

preservação atuam no centro de Laguna, de forma a realizar o “desejo em visualizar uma

cidade que agrade tanto aos que residem quanto aos visitantes” (p. 94). Tenta entender como

as questões estéticas, funcionais e de gestão podem estar intimamente ligadas com a

questão patrimonial do município.

Enfim, acentua que, em Laguna, “o patrimônio como símbolo ainda não está totalmente

construído (...) suas ligações com a memória individual e coletiva são mais presentes do que

com a idéia de futuro, e de possibilidades” (p.94). E termina assinalando que o patrimônio

ganha sentindo quando relaciona as memórias, o passado, com as dialéticas da atualidade.

A autora propõe um debate acerca de dois tempos na cidade: no passado, onde ocorreu a

produção do patrimônio atual, e o presente, legando este patrimônio para o futuro.

Por fim, Cittadin (2010), após avaliar as questões naturais e antrópicas na paisagem da

cidade, como supracitado, gera propostas para a preservação da paisagem natural e cultural

de Laguna. Entende a chancela como uma proteção integrada do patrimônio, apontando:

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A preservação do patrimônio, material e imaterial, e da paisagem, para valorização da

história e melhora na qualidade de vida os cidadãos.

Organização dos núcleos populacionais, seguindo critérios de ocupação estabelecidos

pelo plano diretor participativo

Manutenção das paisagens naturais para a integração de atividades como turismo,

agropecuária, recursos naturais e laser.

Este estudo, diferentemente dos outros, extrapola os limites da poligonal de tombamento no

centro fundador da cidade, entendendo a paisagem como questão integradora. Assim não

segmenta, ou o faz de forma menos evidente, a paisagem em territórios não articulados,

dividindo-os apenas como recorte de estudos.

Nota-se que o foco de ambas as pesquisas é o legado das ações pré-industriais ao presente,

considerando como relevância na paisagem natural, edificada, em suma, cultural, o saber

fazer e as ações antrópicas ditas “tradicionais”. A situação no tempo atual e identificação na

história do tempo presente não relegadas ao enaltecimento de ações e registros materiais

passados. Pouco se aborda sobre as novas dinâmicas da cidade, como o Carnaval e a

balneabilidade, observando-se uma tendência acadêmico-institucional de manter a imagem

de “Laguna tradicional”.

Representações e interpretações da paisagem

É nas representações populares, no cotidiano, que podemos ver como as marcas das

políticas de preservação incidem nas questões de identidade. Não seria a questão

patrimonial, um catalizador de influências para esta representação?

Para Canclini (2000), o patrimônio na modernidade alça questionamentos específicos.

Entende que a perenidade dos bens – materiais e imateriais, os elevam a um valor

inquestionável, tornando-os “fonte de consenso coletivo” (p.160).

De fato, é a partir da preservação, da intervenção com o pretexto de perdurar que,

oficialmente, um bem coletivo passa a dotar de uma “aura” oficializada. A diferença das

manifestações coletivas populares à erudição, e a denominação de algumas delas sob a

égide de denominações como o folclore, ajudam a alimentar essa “teatralização” do

patrimônio coletivo – seja através de pinturas, comemorações, monumentos ou museus

(Canclini, 2000).

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Em Laguna, não é diferente. A valorização da memória na cidade e da cidade, encontra

variadas maneiras de se manifestar e materializar. Assim, fica evidente que “preservar um

lugar histórico (...) e costumes, é uma tarefa sem outro fim que não o de guardar modelos

estéticos e simbólicos” (Canclini, 2000, p.161). Aí, é comum testemunhar manifestações

artísticas que retratam a mesma temática; estabelecimentos comerciais, instituições e

logradouros nomeados aos mesmos heróis e simulações de espaços para a valorização.

Observam-se ações questionáveis sobre a institucionalização de um tempo na cidade,

lançada, principalmente pelos órgãos de preservação.

Ao longo do centro fundador e dos bairros próximos, se vê uma profusão de estabelecimentos

homenageando a República Juliana e a heroína Anita Garibaldi. O Café República (item

número 1 da Figura 3) e o Café Garibaldi (item número 2 da Figura 3), são exemplos desta

tendência.

Na categoria do uso do patrimônio aliado ao apelo turístico, se pode elencar dois exemplos, os

Museu Casa de Anita (item número 3 da Figura 3) e o Museu Anita Garibaldi (item número 4

da Figura 3). O primeiro, erguido em 1711, ao lado da Igreja Matriz, foi o local onde a heroína

vestiu-se para seu primeiro casamento. Hoje, é dedicado a contar a história de Anita, se

afirmando como “relicário histórico” da lagunense. O fato de carregar o nome de “casa”, lugar

de morada, desmonta a historicidade de seu verdadeiro lar, localizado algumas ruas dali.

Já o Museu Anita Garibaldi, a antiga Casa de Câmara e Cadeia, é dedicado à Guerra dos

Farrapos e a República Juliana, instaurada na mesma praça onde se situa o museu. Ao

carregar o nome de Anita, o espaço de limita a atribuir os acontecimentos a uma única

personagem, valorizando-a em prol de um evento com variados protagonistas.

A ponte de nova ligação da rodovia BR-101, com obras iniciadas em 2010, importante fluxo

para o sul do estado e entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul, também recebe o nome de

Anita (item número 5 da Figura 3). Aqui, além de confirmar a onipresença de Garibaldi, a

ponte configura um marco colossal na paisagem da Laguna de Santo Antônio dos Anjos e

sombreia a importância histórica de suas ligações anteriores, marcos essenciais dos ciclos

econômicos alavancados pelo automóvel e pela ferrovia, marcados pela atual ponte de

automóveis e a antiga ponte ferroviária de Cabeçuda (item número 6 da Figura 3).

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Figura 3 - As representações e interpretações do passado marcando a paisagem de Laguna. 1 - Café Rebpública; 2 - Café

Gabribaldi; 3 - Museu Casa de Anita; 4 - Museu Anita Garibaldi; 5 - Ponte Anita Garibaldi; 6 - Ponte Cabeçuda. (Fonte:

Prefeitura Municipal de Laguna, IPHAN, GuiaLitoralSul, Ronaldo Amboni – Adaptado pelo autor)

Já no contra caminho da representação de elementos pré-estabelecidos – principalmente os

ditos “históricos”, algumas produções e instituições se desenvolvem encontrando o caminho

contemporâneo da cidade. Estes atores buscam a convivência com o antigo, entendem seu

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espaço no tempo, e crescem juntos na busca de um futuro integrado também com o presente,

sem evidenciar somente um tempo.

Esta é uma geração disposta a “movimentar a cidade e criar uma alternativa de música,

fotografia e artes plásticas” (Bett, 2013). Juntam-se aos coletivos NEO Cult e With Art

Colletive, o Espaço Cultural Richard Calil Bulos – Chachá, as oficinas e cursos do Sesc e

algumas ações conjuntas e parcerias organizadas pela Universidade do Estado de Santa

Catarina. Assim tentam “vivenciar um ambiente que exala história e apreciar os trabalhos de

artistas locais” (Bett, 2013)

Também contemporâneo este acrítico sobre tela de Artur Cook (Figura 4), pintor radicado na

cidade, é intitulado “Laguna”. Nele, se pode observar a densidade de símbolos convivendo no

mesmo espaço físico, compondo uma espécie de alegoria da paisagem lagunense.

Figura 4 - A repetição de símbolos na representação da paisagem em Laguna. Artur Cook - Laguna, acrílico sobre tela.

(Fonte: http://arturcook.blogspot.com.br/p/obras.html

Compõem na mesma representação um panteão de representações (da esquerda para a

direita): a Bica da Carioca, a Casa de Câmara e Cadeia (atual museu Anita Garibaldi),

manifestações folclóricas de Boi de Mamão, estátua de Anita Garibaldi, a fonte da Praça Vidal

Ramos, a igreja matriz, a estátua de Nossa Senhora da Glória, o museu Casa de Anita, a

pesca, a Pedra do Frade e o Farol de Santa Marta.

Assim, de forma orquestrada, Cook representa os símbolos, cores e elementos

institucionalizados: os patrimônios culturais de Laguna. Como síntese das representações

citadas, eterniza estes elementos, elegendo-os como os mais significativos de serem

impressos no tempo e espaço. À sua forma, também cria uma nova paisagem, um novo

avesso.

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Expressado como a ideia de patrimônio se construiu na cidade de Laguna, e a reverberação

cultural que ela gerou, pode-se agora traçar perguntas para estruturar o pensamento do

avesso.

Ao desconstruir o conceito de Pechman (2012), entende-se que o avesso da paisagem

cultural em Laguna, deve muito às das políticas de preservação, que ajudam à mitificação de

elementos e signos em detrimento de outros. Neste caso, a paisagem urbana não

corresponde mais a uma cidade, e sim um “lugar imaginário, uma cenografia urbana”

(Pechman, 2012, p.257).

Testemunha-se uma repetição das representações na cidade. Assim, a paisagem cultural em

Laguna pode transformar-se “num cenário que não é mais um lugar, mas um décor para a

teatralização de fantasias” (Pechman, 2012, p.257).

Pode-se perceber tal fenômeno “de imagem em imagem”: a representação do desconhecido

em Debret; a poligonal de tombamento traçada no centro fundador, ignorando as

continuidades da paisagem; as manifestações artísticas contemporâneas, frutos da eleição de

um tempo.

Ao iniciar esta análise em Debret, entende-se a transformação da paisagem em imagem, a

destituição da realidade. O entendimento da preservação como representação é fundamental

para construir a imagem da atual paisagem lagunense, calcada nesse enaltecimento do

passado e da tradição.

Ao institucionalizar “recantos” da paisagem em Laguna, órgãos e instituições correm o perigo

de desencadear uma alteração da espontaneidade em prol da massificação da cultura, já que

adotam um tempo como “o tempo”. Aos poucos, o “cenário vai substituindo a paisagem da

cidade, provendo-a, sobretudo, de um novo sentido, levando a perda de seu sentido original”

(Pechman, 2012, p.258).

À iminência de transformar-se num artifício, num simulacro, deve-se atentar para as questões

que realmente fazem da paisagem de Laguna um bem cultural. É importante entender que, a

paisagem cultural em Laguna necessita do apoio no passado para o entendimento do

presente e construção futura. Entretanto é salutar atentar-se a outros fenômenos de

transformação na paisagem pelo homem, que acontecem hoje ou que necessitam acontecer

num futuro próximo, destituídos da teatralização e mitificação do passado. Conclui-se que

mais importante que buscar questões sobre a imagem da paisagem cultural, é nos perguntar

constantemente se já vivemos do avesso dela.

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