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O AVESSO DO IMAGINÁRIO ARTE CONTEMPORÂNEA E PSICANÁLISE TANIA RIVERA

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Leia trecho de "O avesso do imaginário, de Tania Rivera.

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O AVESSO DO IMAGINÁRIOARTE CONTEMPORÂNEA E PSICANÁLISE

TANIA RIVERA

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O AVESSO DO IMAGINÁRIO

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O AVESSO DO IMAGINÁRIO

TANIA RIVERA

O AVESSO DO IMAGINÁRIOARTE CONTEMPORÂNEA E PSICANÁLISE

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09 introdução

parte um corpo, imagem e palavra

17 O retorno do sujeito: Sobre performance e corpo 47 Kosuth com Freud: A imagem e a palavra 79 A letra, a imagem: Gary Hill

parte dois sublimação, espaço e fantasia

105 Sublimação, parangolé e cultura 129 A fantasia e o espaço: Lygia Clark 153 Cruzeiro do Sul e o avesso do imaginário

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parte três a crise, a ética e o objeto

177 Arte é crítica: Sobre Através 199 Mário Pedrosa, ética e arte pós-moderna 225 A aura e o sujeito em Waltercio Caldas e Cildo Meireles

parte quatro transmissões

247 Ernesto Neto: A pele e o espaço 269 Louise Bourgeois e o heterorretrato 299 Milton Machado e a arquitetura do pensamento 325 A estética é sempre política: Cildo Meireles

381 Notas 400 Sobre os textos 403 Bibliografia 418 Índice de nomes 424 Índice de obras 428 Créditos das imagens

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É sempre contra a corrente que a arte tenta operar de novo seu milagre.jacques lacan

O espaço não existe, é apenas uma metáfora para a estrutura de nossa existência.louise bourgeois

O olhar […] sempre procura: alguém, alguma coisa.roland barthes

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INTRODUÇÃO

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Gosto de pensar na relação entre arte e psi-canálise como uma fita de Moebius – figura topológica que surgirá muitas vezes ao longo deste livro. Assim como posso, passeando o dedo por sua superfície, passar de den-tro para fora e logo, em continuidade, de fora para dentro, tento deslizar entre os dois campos de modo a dar voz ora a um, ora ao outro, pondo em prática uma torção que tal-vez defina a ambos.

Mais do que forçar um diálogo entre dois campos bem delimitados culturalmente, trata-se aqui da tentativa de explicitar algo que ambos exploram de modos diferentes: uma reversão do eu e do mundo, uma “cam-balhota no cosmos sobre si mesmo” – como dizia Mário Pedrosa – 1 que nos convida a re-configurar a relação com nós mesmos e com

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o outro. Tal convite, como uma mensagem de náufrago jogada ao mar, é um gesto efêmero que pode nunca chegar a seu destino, mas repete-se como endereçamento e assim pode se transmitir, de modo sempre imprevisível. Esse gesto vai (re)construindo, as-sim, a cultura como “raiz aberta”, para usar a expressão de Hélio Oiticica:2 algo que já está lá mas deve ser reinventado, em um incessante apelo ao outro.

Essa reconstrução da cultura e do sujeito é necessariamente polifônica, implicando, é claro, outros campos do saber que ten-tamos aqui convocar, especialmente com alguns autores da filo-sofia. Conto que essa polifonia possa incorporar cada vez mais vozes, outros timbres, novas línguas.

Os textos aqui reunidos transitam entre o ensaio mais livre e aquele mais conceitual. Trata-se sempre de confrontar traba-lhos artísticos e problemas teóricos, algumas vezes partindo dos trabalhos (ou de um artista em particular), outras tomando o primeiro elã de questões conceituais. Os capítulos esboçam uma vaga progressão, mas podem ser lidos de maneira independente.

A primeira parte pretende abordar ao mesmo tempo as prin-cipais vias pelas quais a psicanálise tenta se aproximar da arte e algumas das principais questões a partir das quais reflete a pró-pria produção artística: o corpo, a imagem e a palavra, em mani-festações tão diversas quanto a performance, a videoarte e a arte dita conceitual.

A segunda parte traz uma conceitualização mais densa, em textos cujas primeiras versões foram destinadas ao leitor fa-miliarizado com a teoria psicanalítica, e abordam aprofunda-damente as relações entre sublimação, imaginário e fantasia.

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Mas eles também permitem, espero, uma leitura mais solta, em torno do mal-estar na cultura e da questão do espaço, res-saltando alguns pontos da reflexão artística de Hélio Oiticica, Lygia Clark e Cildo Meireles.

Os ensaios que compõem a terceira parte delineiam questões mais amplas e menos diretamente ligadas à teoria psicanalítica, em uma abordagem que não deixa, contudo, de ser por ela mar-cada. O papel da crítica de arte é questionado em sua relação com a produção artística contemporânea, especialmente em diálogo com Através, de Cildo Meireles. Apresenta-se uma con-tribuição para a reflexão sobre o objeto de arte e sua “aura”, a partir de Walter Benjamin e em confronto com trabalhos de Wal-tercio Caldas e, mais uma vez, Cildo Meireles. Além disso, o con-ceito de arte pós-moderna segundo Mário Pedrosa é ressaltado em sua dimensão ética, para a qual a psicanálise revela-se uma importante influência. A radical abertura ao outro implicada nessa dimensão é rapidamente explorada em Hélio Oiticica, na proposta do parangolé, e em Lygia Clark com o trabalho que ela considerava “terapêutico”.

Na última parte, mais próxima do que convencionalmente se chama crítica de arte, cada ensaio refere-se à obra de um artista, explorando as reflexões poéticas realizadas pelo próprio trabalho na tentativa de retransmiti-las em múltipla polifonia.

Agradeço muito a Cildo Meireles, Ernesto Neto, Frederico Morais, Glória Ferreira, Marília Panitz, Milton Machado, Paulo Herkenhoff, Ricardo Basbaum, Rodolfo Caesar, Umberto Costa Barros, Vladimir Safatle e Waltercio Caldas, cujas vozes, sons, ideias e imagens aqui se apresentam, entremeados, ou res-

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soam de forma mais sutil. Sou extremamente grata pelo apoio e ajuda de Maria Cristina Poli, Izabela Pucu, Jeanne-Marie Gagne-bin, Ana Coutinho, Paula Pape, Marcos Bonisson, Cesar Oiticica Filho e toda a família Oiticica. Meus agradecimentos vão tam-bém (e sempre) para Evandro Salles, Anita e Isadora.

A investigação que deu origem a este trabalho contou com o apoio do CNPq, sob forma de Bolsa de Produtividade em Pes-quisa, e da Funarte (MinC), através de Bolsa de Apoio à Produ-ção Crítica em Artes Visuais (Edital de 2008). Para a publicação deste livro, foi decisivo o auxílio da Secretaria de Estado de Cul-tura do Rio de Janeiro, via Chamada Pública de 2011 para a área de Artes Visuais.

Citando um dito do arqueólogo alemão Alfred Schuler que só se-ria passado adiante “à boca pequena”, Walter Benjamin afirma que todo conhecimento “deve conter um grão de contrassenso”. Assim como a pequena irregularidade em um tapete antigo, re-sidiria nisso sua “imperceptível marca de autenticidade”.3 Mais importante que a progressão de conhecimento em conheci-mento, o decisivo seria a rachadura capaz de se revelar no inte-rior de cada um deles. Espero aqui ter dado lugar a brechas desse tipo, e que nelas cada leitor possa brevemente se alojar.

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PARTE UM

CORPO,

IMAGEM E

PALAVRA

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O RETORNO DO SUJEITO: SOBRE PERFORMANCE E CORPO

Five points make a man(cinco minúsculas gotas d’água)james lee byars

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Um amigo me contava, outro dia, a trágica história de uma conhecida que ficou tetra-plégica após um grave acidente. Falou de sua perturbação diante do primeiro e-mail en-viado por ela, do hospital, utilizando algum tipo de instrumento para digitar com a boca:

“Estou viva”. Lembrei-me imediatamente de On Kawara e dos cartões-postais que ele en-viava a pessoas do meio artístico com a ins-crição: “Eu ainda estou vivo – On Kawara”.

Mais forte do que a escrita, a presença corporal de alguém, ao se oferecer ao olhar do outro, não seria essencialmente uma de-claração inequívoca de que “se está vivo” – o que sempre significa que “ainda” se está vivo? “Na morte”, dizia James Lee Byars em 1978, “anulo todas as minhas obras.” 4 O que a presença do corpo denuncia, para além de

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qualquer reafirmação de sua existência individual, é sua fugaci-dade, a condição mortal, passageira, do homem. Como indica o título de um trabalho de Byars, um quadrado de folha de ouro com 3 × 3 metros sobre o chão, no salão de entrada de uma expo-sição em Berlim em 1989, The Perfect Performance is to Stand Still.

Eu gostaria de ressaltar, na performance, mais uma terrível (e por vezes bela) ausência do que a presença mais ou menos es-petacular do corpo.

C O R P O E S U J E I TO Emprestar seu corpo à obra, dar à obra um corpo ou ainda fazer do corpo uma obra – essas expressões não dizem tudo e mostram o jogo mesmo entre corpo e arte, entre corpo e sujeito. Algo se subtrai e nos atinge na presença maci-ça de um corpo oferecido ao olhar. Nesse jogo, refletir sobre a performance é construir uma reflexão sobre a própria noção de sujeito hoje. Em outras palavras, a performance põe em questão o sujeito – e a arte, talvez seu reduto mais próprio.

O sujeito está no centro da questão da arte. Isso poderia pa-recer um viés subjetivante, ou, pior, psicologizante. Mas não se trata disso. É necessário afirmar hoje que a arte contemporânea é marcada por um verdadeiro retorno do sujeito, de forma arti-culada ao que Hal Foster, em um famoso texto, propõe como

“retorno do real”.5 Após a crítica à mímesis realizada pelas van-guardas modernistas, que desmantelou a bem-aventurada e calculada relação entre o sujeito da pintura e a “realidade” re-presentada, o sujeito, assim como o real, se faz valer de fora do espaço da representação, contra, ao mesmo tempo, ilusionismos e formalismos. O real que, segundo Foster, retorna na arte con-

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temporânea, e que ele explora especialmente no que diz respeito à pop art, é o oposto da realidade mimética construída de forma ilusionista. Por uma torção talvez sutil, porém vigorosa, não se trata mais da realidade como janela para o mundo, dada por e para um olho fixo. Trata-se do real do léxico de Lacan, aquele que é uma espécie de fundo último das coisas, destacado da ima-gem, e que se trata sempre de tentar representar, sem que tal operação jamais se cumpra de forma definitiva. Real traumático, terrível, com o qual o sujeito se depara repetida e violentamente.

O sujeito de que se trata na arte há muito não é mais aquele olho soberano capaz de ordenar a representação em regras mais ou menos fixas. Ele é outro: descentrado, não coincide mais com um centro organizador da representação. O sujeito que retorna na arte contemporânea se desmaterializou e problematizou suas fronteiras em relação ao outro, no mesmo passo em que se tem-poralizou e deslocou em uma nova concepção, fragmentada, do espaço. Contudo, uma vez abandonado seu lugar como origem inequívoca da representação, ele volta de fora da representação, como corpo real – o que reconfigura suas relações consigo pró-prio, com o objeto e com o espaço. O sujeito recusa-se a se as-similar ao olho ideal e, nesse deslocamento, perde seu lugar de direito para retornar como questão, em uma convocação direta do espectador.

Se, como dizia Robert Smithson, “a fotografia torna a reali-dade obsoleta”,6 o sujeito que zanzou pelo “deserto” de Malevich, sem se encontrar no espelho, veio a esbarrar nas impecáveis ruí-nas que são os objetos minimalistas, objetos que parecem recusar o sujeito para se afirmar como entidades autônomas, puros ob-

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jetos. Para se destacar da representação mimética, é necessário que eles neguem o homem como seu par e se recusem a espelhá-

-lo. Mas o que alcançam, assim, é convocar o sujeito a uma nova forma de presença. “As três dimensões são principalmente um espaço para mover-se”, já considerava o artista em seu funda-mental “Objetos específicos”, de 1965.7 O minimalismo recoloca a interdependência entre objeto e sujeito em termos não mais complementares, mas alternantes: o objeto, como o cubo de seis palmos de Tony Smith, diz ao sujeito: Die! (“morra”, este é seu tí-tulo). “Seis palmos”, reflete o próprio Smith, “sugere que se está morto. Uma caixa de seis palmos. Seis palmos sob a terra.” 8 Ex-traído do campo da representação para se inserir nas coordena-das do espaço circundante, o objeto faz aí um inequívoco apelo ao sujeito, convidando-o a se perceber e se mover nesse espaço real em que, eventualmente, o objeto vem violentamente – ou belamente – atingi-lo.

Georges Didi-Huberman já mostrou o quanto as escultu-ras de Smith são “objetos-questões”, o que podemos entender como objetos que põem radicalmente em questão o eu (diante de Die, diz o autor, “nosso ver é inquietado”,9 pois somos postos diante daquilo que seria uma espécie de túmulo e aparece em um verso de Mallarmé como um “calmo bloco caído de um de-sastre obscuro”).10 Desde o ready-made, o objeto já questionava seu autor e qualquer ideia de autoria, ressaltando o contraste entre as “intenções do artista”, como diz Duchamp, e o pro-duto realizado. Mas, se o autor é desbancado, é para que melhor possa surgir o sujeito, do lugar que lhe seria de direito: “de fora”.

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São os “olhadores” que “fazem o quadro”, na famosa fórmula de Duchamp.11

Contra qualquer psicologia a se fazer arauto da “interiori-dade” do eu e defender sua “exteriorização” em uma ideologia expressionista, a psicanálise é a reflexão que surge na aurora do século xx para literalmente pôr o sujeito fora de si. O eu, diz a frase lapidar de Freud, “não é mais senhor em sua própria casa”.12 Talvez ele nem tenha mais casa, uma vez que o incons-ciente o desaloja, faz de seu mais íntimo o que Lacan denomina êxtimo, cunhando um neologismo para denominar o que é radi-calmente singular, e no entanto vem de fora.

Seria seu corpo a sua casa, como parece defender Lygia Clark com seus A casa é o corpo e O corpo é a casa? Não, no corpo o su-jeito está um tanto desconfortável. Não há coincidência entre eu e meu corpo. Isso é o que a linguagem comum acentua todos os dias, quando dizemos “tenho um corpo”, mais do que “sou um corpo”. No espaço, essa “casa” abre-se para uma imprevisibili-dade, um nomadismo, um trânsito que é o contrário da ideia de um lócus fixo e assegurador. “O espaço arquitetural me trans-torna”, diz Lygia, explicando em seguida o que seria tal espaço:

“Pintar um quadro ou fazer uma escultura é tão diferente de viver em termos de arquitetura”.13 É nesse sentido do “transtorno” que o espaço vivido impinge ao sujeito que deve ser tomada a afir-mação de Freud de que a primeira casa do homem, sua única le-gítima casa, absolutamente asseguradora mas de saída perdida, seria o ventre materno.

Não basta uma apresentação do corpo, seja ela orgiástica, do-lorosa ou poética, para que se reafirme o sujeito. Ricardo Basbaum

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denuncia com muita pertinência a existência de uma “anestesia” atual em relação à performance.14 Não creio que tal anestesia seja devida a condições desfavoráveis de recepção, como desin-teresse ou massificação extrema. Talvez ela se deva ao fato de que, hoje, não basta a presença do corpo para que a verdadeira questão do sujeito se coloque. A performance deve explicitar uma reflexão poética que se engate na fugidia condição do su-jeito na contemporaneidade.

EU E O OUTRO Ainda que diversas manifestações presenciais do artista possam pretender uma afirmação identitária com, por vezes, ressonâncias políticas, o essencial é que o corpo se dá a ver. “Toda carne”, escreve Merleau-Ponty em 1960, “e mesmo a do mundo, irradia-se fora de si mesma.”15 O eu apela ao outro, relembrando sua dependência constitutiva, que faz o seu íntimo estar fora, êxtimo. A presença do corpo pode, nesse campo do olhar, incitar a uma subversão do eu que faz surgir o sujeito do in-consciente. A performance mostra, assim, que o sujeito só pode aparecer de forma efêmera, fugaz, como efeito de um ato que se dá entre o eu e o outro. Não se trata, nesse ato, de uma relação si-métrica, mero jogo de espelhos. As figuras formadas pelas linhas de Nazca, no Peru, só podem ser vistas de avião, e eram portanto invisíveis para o povo que as construiu. Elas foram feitas para um olhar de fora, um olhar absoluto, Outro. Na performance, trata-

-se de “dar-se a ver” ao Outro. Nesse apelo além do espelho, há uma tentativa um tanto sacrificial, a bem dizer, de “co-memorar” (relembrar) o próprio surgimento do sujeito, em sua dependência e demanda em relação a um Outro.

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Marina Abramovic em Rhythm 0, realizada em 1974, entre-gou-se inteiramente à manipulação dos espectadores, tendo a seu lado objetos como batom, perfume, fósforos, água, uma vela, uma arma, uma bala, uma serra, um machado, agulhas, uma tesoura, mel, uvas e enxofre. “Há 72 objetos sobre a mesa que podem ser usados em mim como desejarem. Eu sou o ob-jeto”, era a declaração da artista.16 Seis horas mais tarde, após Marina ter sido despida, cortada, pintada, limpa, coroada com espinhos e ter tido a arma, carregada, apontada para sua cabeça, a performance foi interrompida por espectadores preocupados com seu desfecho.

Yoko Ono já havia, em sua Cut Piece, de 1964, convidado o pú-blico a utilizar uma tesoura afiada para cortar suas roupas, des-nudando-a. Nessas ações, as artistas oferecem-se ao outro como objeto de modo a revelar a condição fundamental do objeto para si mesmo e para o outro. É necessário varrer de nossa ideia a tra-dicional diferenciação, complementar, entre sujeito e objeto para poder espiar entre eles uma certa vertigem, uma fabulosa e peri-gosa oscilação. Não se trata de tornar-se outro como em um jogo de espelhos, sem restos e de forma inócua, numa complementar troca de papéis. Trata-se, para o sujeito, de assumir, por um breve instante quase insuportável, sua condição de quase-objeto, e com isso ver-se quase-sujeito: não propriamente sujeito de seus atos, mas assujeitado a eles. Paradoxalmente, ao assumir diante do outro sua condição de objeto – ao se assujeitar – pode-se engatar a posição de sujeito (e desejar, ou seja, reafirmar seu apetite do objeto). Algo se corta como a roupa de Yoko, algo cai e se perde, nessa arriscada encarnação do sujeito realizada pela performance.

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