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Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.2 n. 7 | p. 1-99 | out./2017 | ISSN: 2525-5266 9 A CRISE DE DOKLAM ENTRE CHINA E ÍNDIA: IMPLICAÇÕES REGIONAIS E O FATOR ESTRUTURAL S. Kalyanaraman 1 e Erik H. Ribeiro 2 A crise de Doklam marca o ponto mais baixo das relações China-Índia no período pós- Guerra Fria. As recorrentes crises de fronteira nos últimos anos refletem um conflito de interesse sino- indiano mais amplo dentro da ordem regional asiática. O desenvolvimento mais relevante após Doklam é o aprofundamento da parceria estratégica India-Japão, enquanto os Estados Unidos e o BRICS têm tido uma influência mais sutil, mas pervasiva na dinâmica sino-indiana de cooperação e conflito. 1 Pesquisador do Instituto para Estudos e Análises de Defesa (IDSA) da Índia. Doutor em Relações Internacionais pela Jawaharlal Nehru University. Professor Visitante na Kings College London. Contato: [email protected] 2 Doutorando em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEEI-UFRGS). Pesquisador As- sistente do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT). Pesquisador Visitante no Instituto para Estudos e Análises de Defesa (IDSA) da Índia. Contato: [email protected] Apresentação As relações China-Índia são essenciais para compreendermos o futuro da política internacional na Ásia e a centralidade da região do Indo-Pacífico no Século XXI. Estas relações bilaterais têm sido marcadas por rivalidade e cooperação, misturando dinâmicas econômicas e de segurança em múltiplos níveis. Após mais de duas décadas de reaproximação desde 1988, China e Índia não conseguiram mitigar a competição por influência regional na Ásia. Disputas bilaterais recorrentes sobre a questão da fronteira e as relações especiais da China com o Paquistão têm refletido uma rivalidade regional cada vez mais complexa, conforme ambos os países aumentam seu poder econômico, político e militar. A crise de Doklam sinaliza o ponto mais baixo das relações bilaterais no período pós-Guerra Fria entre China e Índia. O impasse de três meses perto da fronteira Butão-China-Índia levou os Indianos a defenderem uma terceira parte na disputa, pondo um empecilho contra as intenções de Pequim em consolidar suas reivindicações nesta área. Além disso, as visões Chinesa e Indiana de integração e conectividade regional têm divergido, reduzindo o espaço para a cooperação e interdependência econômica. Assim, em longo prazo, há uma possibilidade de aumento das disputas bilaterais e regionais entre a China e a Índia, especialmente no contexto de fortalecimento da parceria de defesa Índia-EUA e do estreitamento das relações indo-

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Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.2 n. 7 | p. 1-99 | out./2017 | ISSN: 2525-5266

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BOLETIM DE CONJUNTURA

NERINTA crise de doklAm entre chinA e ÍndiA: implicAções regionAis e o fAtor estruturAl

S. Kalyanaraman1 e Erik H. Ribeiro2

• A crise de Doklam marca o ponto mais baixo das relações China-Índia no período pós-

Guerra Fria.

• As recorrentes crises de fronteira nos últimos anos refletem um conflito de interesse sino-

indiano mais amplo dentro da ordem regional asiática.

• O desenvolvimento mais relevante após Doklam é o aprofundamento da parceria

estratégica India-Japão, enquanto os Estados Unidos e o BRICS têm tido uma influência mais

sutil, mas pervasiva na dinâmica sino-indiana de cooperação e conflito.

1 Pesquisador do Instituto para Estudos e Análises de Defesa (IDSA) da Índia. Doutor em Relações Internacionais pela Jawaharlal Nehru University. Professor Visitante na Kings College London. Contato: [email protected]

2 Doutorando em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEEI-UFRGS). Pesquisador As-sistente do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT). Pesquisador Visitante no Instituto para Estudos e Análises de Defesa (IDSA) da Índia. Contato: [email protected]

Apresentação

As relações China-Índia são essenciais para compreendermos o futuro da política internacional na Ásia e a centralidade da região do Indo-Pacífico no Século XXI. Estas relações bilaterais têm sido marcadas por rivalidade e cooperação, misturando dinâmicas econômicas e de segurança em múltiplos níveis. Após mais de duas décadas de reaproximação desde 1988, China e Índia não conseguiram mitigar a competição por influência regional na Ásia. Disputas bilaterais recorrentes sobre a questão da fronteira e as relações especiais da China com o Paquistão têm refletido uma rivalidade regional cada vez mais complexa, conforme ambos os países aumentam seu poder econômico, político e militar.

A crise de Doklam sinaliza o ponto mais baixo das relações bilaterais no período pós-Guerra Fria entre China e Índia. O impasse de três meses perto da fronteira Butão-China-Índia levou os Indianos a defenderem uma terceira parte na disputa, pondo um empecilho contra as intenções de Pequim em consolidar suas reivindicações nesta área. Além disso, as visões Chinesa e Indiana de integração e conectividade regional têm divergido, reduzindo o espaço para a cooperação e interdependência econômica. Assim, em longo prazo, há uma possibilidade de aumento das disputas bilaterais e regionais entre a China e a Índia, especialmente no contexto de fortalecimento da parceria de defesa Índia-EUA e do estreitamento das relações indo-

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japonesas.

Por outro lado, os dois países também unem esforços para a reforma da ordem global, o que também abre espaço para uma extensa agenda de cooperação. A Cúpula dos BRICS em Xiamen (2017) serviu como um mecanismo para neutralizar a crise de Doklam, já que ambos os países não queriam comprometer a agenda dos BRICS por causa de uma disputa bilateral. Enquanto a China é o membro mais importante do BRICS e o principal motor dos objetivos do grupo, a Índia tem contribuído activamente para a criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) e é um dos principais acionistas no Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (BAII), liderado pela China. Portanto, até agora, os dois países têm considerado a transição política estrutural como uma característica essencial da sua ascensão como grandes potências. Por isso, ambas tem pragmaticamente focado na cooperação multilateral para atenuar as divergências bilaterais nos campos econômico e securitário.

O Contexto da Crise de Doklam Entre junho e agosto de 2017, China e Índia estiveram envolvidas em um impasse militar na região disputada do planalto de Doklam, que é reivindicada por Butão e China. Esta área está localizada perto da tri-junção Butão-China-Índia, estando próxima ao Sikkim, integrado como estado indiano em 1975. A crise começou quando soldados chineses foram encontrados construindo uma estrada pavimentada em direção à área disputada. A Índia tem um tratado de amizade com o Butão, contendo o Artigo 2 do qual se lê: “Nenhum Governo deve permitir o uso de seu

território para atividades prejudiciais à segurança nacional e interesses do outro [país]3” (tradução nossa). De acordo com o governo indiano, a decisão de enviar tropas para a área disputada e interromper a construção da estrada ocorreu porque o governo do Butão tinha pedido ajuda, levando em consideração o espírito do acordo firmado.

O impasse foi um grande desafio diplomático para os dois países, uma vez que a Índia não estava protegendo o que considera ser o seu próprio território, mas uma terceira parte. Os meios de comunicação chineses levantaram a retórica: o Global Times publicou um editorial afirmando que a China poderia reconsiderar o reconhecimento de Sikkim como território Indiano. Outra opinião de um colaborador externo no mesmo meio afirmou que a China deve “ensinar a Índia uma segunda lição”, referindo-se à Guerra Sino-Indiana de 1962 (Global Times, 2017; Gong 2017). Esta chamada para a guerra poderia ser tanto um reflexo do descontentamento da China com a intrusão indiana, ou destinado a exercer pressão sobre a liderança do Partido Comunista Chinês (PCC) para tomar medidas contra o que consideravam como sendo um comportamento imprudente da Índia.

Em qualquer caso, a situação exigiu um tratamento cuidadoso e um conjunto de reuniões entre altos funcionários chineses e indianos. Depois de três meses, ambos os lados concordaram com um plano de retirada mútua, embora seus termos não tenham sido claros. O governo indiano afirmou que ambos os lados concordaram em retirar sequencialmente da região de Doklam. A China, por sua vez, ambiguamente declarou que a situação foi bem resolvida, mas deixou espaço

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para a retomada de suas atividades na área no futuro.

Mais importante, as relações China-Índia vêm se deteriorando nos últimos anos, com crises recorrentes nos setores de fronteira de Ladakh e Arunachal Pradesh. As causas mais profundas para o aumento da frequência de disputas fronteiriças podem ser encontradas no conflito de interesse ao longo de várias questões na cordilheira do Himalaia, na competição Sino-Indiana por influência na Ásia, e na parceria entre a China e o Paquistão.

O período de 1988 a 2005 viu uma aproximação Sino-Indiana, começando com a visita de Rajiv Gandhi à China, que culminou com a assinatura de uma parceria estratégica entre os dois países. Este movimento progressivo levou a diálogos regulares sobre a disputa de fronteira e, mais importante, a um nível razoável de interdependência econômica em longo prazo, o que fez da China o maior parceiro comercial da Índia a partir de 2011. Ambos os países também concordaram sobre a necessidade de reformar as organizações internacionais, tais como a Organização das Nações Unidas (ONU), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial do Comércio (OMC). A parceria em nível global também foi impulsionada pela criação do grupo BRICS, que além de China e Índia também inclui Brasil, Rússia e África do Sul.

Quanto à disputa de fronteira, havia uma noção de que ambos os lados estavam satisfeitos com o status quo e poderiam, eventualmente, concordar com uma “troca” entre Aksai Chin e Arunachal Pradesh, que já estão respectivamente sob o controle da China e da Índia. Na verdade, os dois países assinaram um acordo em 2005 sobre os

parâmetros políticos e princípios orientadores para um acordo de fronteira. Este acordo foi pensado para ser o ponto alto do processo que começou em 1993, quando o primeiro acordo bilateral de medidas de confiança ao longo da fronteira foi assinado. Em 2003, a Índia reconheceu formalmente o Tibete como parte da China, enquanto os chineses reconheceram Sikkim como um estado Indiano. Outro desenvolvimento positivo foi a abertura da passagem de Nathu La (Sikkim) para o comércio, em julho de 2006.

No entanto, ao final de 2006, as autoridades chinesas começaram a denominar Arunachal Pradesh como ‘Tibete do Sul’, indicando a sua vontade em retomar a área, particularmente a cidade de Tawang, que é um antigo mosteiro sagrado budista e o lugar onde o sétimo Dalai Lama nasceu há séculos atrás. Neste sentido, um aspecto do longo litígio entre os dois países é o status do Tibete e a residência permanente do Dalai Lama na Índia. Os chineses sempre interpretaram o alojamento do líder budista tibetano em Dharamsala como um trunfo nas mãos indianas. Ele também fez várias visitas a Tawang, que foram percebidas como atos de provocação contra a China.

Há vários aspectos adicionais de ‘relações Himalaia’ que impactam a dinâmica bilateral China-Índia. Sempre que há distúrbios no Tibete, como aconteceu em 2008, na preparação para os Jogos Olímpicos de Pequim, a percepção da China é que a Índia deve ser responsabilizado por não impedir as atividades políticas da comunidade tibetana no seu próprio território que apenas mais internacionaliza a questão do estatuto soberania da região. Além disso, a Índia ainda mantém - embora em baixo perfil - as Special Frontier Forces,

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uma força paramilitar composta de tibetanos étnicos sob o comando da agência de inteligência externa indiana, a Research and Analysis Wing (RAW). Outros pontos de conflito relativos à questão da fronteira são: a erosão da esfera de influência indiana sobre os estados do Himalaia (Butão e Nepal); o maciço crescimento da infraestrutura da China na Região Autónoma do Tibete durante os últimos quinze anos; e o compartilhamento das águas do Himalaia nas bacias do Sutlej e do Ganges-Brahmaputra.

Desde 2013, tem havido um número crescente de conflitos não violentos na fronteira e invasões sobre a Linha Atual de Controle (LAC), particularmente pelo lado chinês. Em 2013, semanas antes da visita do Primeiro-Ministro chinês Li Keqiang para a Índia, houve um impasse em Ladakh, no setor ocidental da LAC, provocado por uma incursão chinesa. Mais uma vez, em 2014, tropas chinesas foram vistas construindo uma estrada em território controlado pela Índia no mesmo setor, a apenas alguns dias da primeira visita do Presidente Xi Jinping à Índia. O que torna a desconfiança mútua ainda mais evidente é o fato de que os países assinaram outro acordo de cooperação de fronteira em outubro de 2013, mas isso não levou a uma melhoria nas relações ou à diminuição no número de incidentes relacionados com a fronteira.

Em geral, a abordagem chinesa para disputas de fronteira tornou-se cada vez mais assertiva durante o mandato de Xi Jinping (2012-), com destaque para o estabelecimento de uma Zona de Identificação para Defesa Aérea no Mar da China Oriental e a construção de ilhas artificiais para consolidar reivindicações sobre o arquipélagos do Mar do Sul da China. Além disso, a China tem freqüentemente

interceptado, escoltado ou perturbado meios civis e militares estrangeiros que transitam por estas águas.

Quando analisados em conjunto, os movimentos chineses podem ser interpretados como um padrão que tem sido chamado de “salami slicing”, caracterizado pela tomada progressiva e ocupação de territórios disputados até que o outro lado ofereça resistência. A estratégia chinesa para a defesa de suas fronteiras tem sido baseada em concessões sempre que a China é claramente o país mais forte e a outra parte reconhece a superioridade chinesa. No entanto, a China tem sido mais inclinada ao uso da força e de coerção em situações onde suas reivindicações não são suficientemente fortes; ou o outro país é protegido por uma grande potência (Taiwan, Filipinas); ou a outra parte é um país de maior expressão (Índia, Japão, União Soviética).

No caso de Doklam, a China possivelmente testou a determinação indiana para proteger o Butão. Isto se assemelha à abordagem chinesa para a disputa do Mar do Sul da China, onde o país testa a reação dos Estados Unidos através da construção de instalações nos territórios reivindicados ou ameaçando embarcações das Filipinas e do Vietnã em águas disputadas. Embora a China tenha assinado, em 1998, um acordo com o Butão para a resolução pacífica de disputas territoriais, na prática ela construiu estradas nessas áreas e forçou o governo do Butão a ceder a suas reivindicações. O interesse da China é mostrar não somente para o Butão, mas também para o Nepal, que a Índia não é um aliado confiável e que seus interesses seriam mais bem servidos se ambos os países do Himalaia estabelecessem relações mais estreitas

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com a China.

A Índia, por sua vez, também tomou um passo ousado na crise de Doklam, que surgiu em parte como uma contingência para proteger seu aliado, mas também reflete uma postura de defesa territorial ativa. Até o início da década de 2000, a Índia negligenciou a construção de infraestrutura em áreas de fronteira e estacionou um número limitado de tropas nos setores de Ladakh e Arunachal Pradesh. A inauguração chinesa da ferrovia Qinghai-Tibete forçou o governo indiano e suas elites a abandonarem a inércia, desencadeando importantes mudanças.

A Índia tem respondido de duas maneiras à crescente pressão nas fronteiras do Himalaia: com a construção de infraestrutura e reforçando a presença militar em áreas de fronteira. O governo indiano iniciou um projeto para a construção de 73 “estradas de fronteira Indo-Chinesas”, mas elas não foram concluídas dentro do prazo inicial de 2012, sendo que apenas 27 estradas foram construídas até 2017. O prazo atualmente previsto é dezembro de 2022 (IANS 2017a). Além disso, foram construídas pistas de pouso avançadas para compensar a falta de conectividade terrestre.

Mais importante, há um esforço renovado para reforçar a defesa territorial da Índia contra a China na região Nordeste. Em 2009, foi autorizada a criação de duas novas divisões de montanha e em 2013 iniciou-se a criação do primeiro Mountain Strike Corps, que estará plenamente operacional nos próximos cinco anos. O Exército Indiano também está formando o primeiro regimento de mísseis cruzadores BrahMos para o Nordeste. Em relação à Força Aérea Indiana, novos esquadrões

de caças Sukhoi Su-30MKI foram postados na mesma região.Mesmo que possa haver uma percepção de aumento do conflito fronteiriço que poderia levar a uma guerra, a realidade das relações fronteiriças bilaterais é muito mais complexa. Na verdade, ambos os países negligenciaram por muito tempo a defesa das fronteiras do Himalaia, deixando a tarefa de patrulhas de rotina para batedores, milícias e forças policiais. Pelo menos neste momento, os avanços simultâneos na esfera militar e de construção de infraestrutura em ambos os lados pode ser visto mais no contexto de um esforço de dissuasão do que uma postura ofensiva para mudar o status quo. No entanto, existem fatores externos que contribuem para o aumento da desconfiança entre China e Índia, o que pode ter um impacto adverso sobre as relações fronteiriças.

O Crescente Conflito de Interesse Sino-Indiano na Ásia

John Garver (2002) apresenta três aspectos que definem as relações China-Índia, que são: o status do Tibete, a parceria China-Paquistão e competição por influência regional. Na última década, todas as três questões têm gradualmente se deteriorado. O primeiro elemento foi discutido na seção anterior, enquanto os outros dois são essenciais para compreender os contornos mais amplos das relações China-Índia. Nos últimos anos, a parceria China-Paquistão se aprofundou em termos econômicos e militares, refletindo uma tendência de longo prazo de relações estreitas entre estes dois países, que afeta diretamente as preocupações de segurança da Índia. Em relação ao contexto asiático, a Índia recusou-se a participar da Belt and Road Initiative (BRI) chinesa

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para ampliar a conectividade econômica regional. Em vez disso, promoveu seus próprios projetos regionais, aproximando-se também dos interesses do Japão.

Ambas as dinâmicas indicam um conflito de interesses nos assuntos regionais e reduzem a relevância da interdependência econômica existente entre China e Índia. Embora analistas tenham contemplado que a cooperação econômica bilateral poderia mitigar o dilema de segurança, Holslag (2009, 2010) já argumentou que, até o momento, os seus efeitos não reduziram a concorrência na esfera da segurança.

China e Paquistão sustentam mais de cinquenta anos de relações especiais - denominado como uma “Amizade Incondicional” (All-Weather Friendship) - e há crescentes interesses geopolíticos chineses na estabilidade do Paquistão, que é um adversário declarado da Índia. Embora a Índia não se oponha ao crescimento econômico do Paquistão - e até mesmo procura por um maior grau de interdependência bilateral - a China exporta armas e tecnologia nuclear para o Paquistão, enquanto constrói um corredor econômico para conectar seu interior com o Oceano Índico através do porto de Gwadar.

A dinâmica triangular pode ser observada a partir do fenômeno de catch up no desenvolvimento de armas nucleares e os processos de modernização militar. Além disso, há uma dimensão sub-convencional nas questões de insurgência e terrorismo que contribui para as relações triangulares. Índia realizou testes nucleares Pokhran-II em 1998, justificando a necessidade de uma capacidade nuclear aberta devido ao arsenal

nuclear chinês e seu apoio ao programa nuclear do Paquistão, com o último sendo claramente uma ameaça à Índia4. Duas semanas mais tarde, o Paquistão realizou seus próprios testes e também se tornou uma potência nuclear declarada, consolidando a dinâmica triangular na dimensão nuclear.

Nas últimas décadas, a Índia desenvolveu a família Agni de mísseis balísticos, que agora está atingindo um alcance de mais de 5,000 km após quatro testes do Agni-V. Em resposta ao crescente arsenal de mísseis da Índia, o Paquistão introduziu as famílias de mísseis Ghauri e Shaheen. A Índia também desenvolveu seu primeiro submarino de propulsão nuclear, o INS Arihant, que foi comissionado em 2016. Alguns meses mais tarde, o Paquistão testou a versão do míssil cruzador Babur-III lançada por submarino. Além disso, os dois países desenvolvem programas de pesquisa para ogivas múltiplas, que podem aumentar a letalidade e capacidade de retaliação dos arsenais nucleares indiano e paquistanês. Na esfera convencional, de acordo com o banco de dados SIPRI, o Paquistão tem sido o maior cliente da venda de armas da China no período de 2012-2016, representando 35% das suas exportações, incluindo fragatas, submarinos e caças de quarta geração (Fleurant et al 2017 ).

A China também tem ignorado estreitas relações do Paquistão com grupos militantes e terroristas que têm bases em solo paquistanês, como o Lashkar-e-Taiba (LeT) e o Jaish-e-Mohammad (JEM). Esses grupos foram responsáveis por grandes ataques terroristas na Índia em 2001 e 2008, o que aumentou a possibilidade de uma guerra convencional no subcontinente e, como

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consequência, até mesmo a escalada nuclear não intencional. Além disso, o Paquistão tem historicamente apoiado o Taliban no Afeganistão, onde ele busca influência como uma forma de ganhar profundidade estratégica contra pressões políticas e militares da Índia. Nos últimos anos, a China tem pragmaticamente participou no processo de paz no Afeganistão, mas não deu incentivos ou pressionou o Paquistão para abandonar o seu apoio a grupos insurgentes. Pelo contrário, os chineses continuam protelando resoluções contra os principais líderes desses grupos no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), fator que gera mais uma disputa com a Índia.

Há também uma competição por influência na vizinhança, com China e Índia, tendo divergentes visões de ordem regional. A China está cada vez mais buscando a hegemonia regional em toda a Ásia, mas a Índia ainda se esforça para obter uma esfera de influência no Sul da Ásia e na Região do Oceano Índico (ROI). John Garver já havia identificado esta tensão sino-indiana no Século XX, que ele chamou de uma “competição prolongada” entre dois rivais. Na sua opinião, devido à grande diferença de poder que estava sendo formada após o fim da Guerra Fria, a Índia não pode competir com a China globalmente ou mesmo na Ásia. Assim, ela teria que escolher entre buscar a hegemonia regional apenas no Sul da Ásia ou acomodar uma China hegemônica em sua própria sub-região (Garver 2001: 29).

Mesmo que a primeira década do Século XXI tenha presenciado algum progresso, existe uma renovada concorrência de segurança sino-indiana na região do Oceano Índico. Contrariamente à percepção de Garver, Índia, não só tem buscado hegemonia no

subcontinente, mas tem uma estratégia de longo prazo para criar uma esfera de influência em toda a ROI. No passado, o governo indiano interviu em conflitos em Bangladesh (1971), Maldivas (1988) e Sri Lanka (1987-1990). Recentemente, tem auxiliado os países insulares como Maldivas e Maurício com a venda de navios de patrulha e instalação de radares de vigilância e sonares. Enquanto o propósito destes países menores está localizado principalmente na esfera da segurança não-tradicional, a Índia está gradualmente expandindo sua rede para controlar pontos-chave do ROI (Brewster 2014).

Desde 2001, a Índia já tem um comando tri-serviço nas Ilhas Andaman e Nicobar, que estão localizadas perto do Estreito de Malaca. Para testar as capacidades de vigilância da Índia e a sua própria capacidade de operar em águas distantes, a Marinha Chinesa tem freqüentemente navegado seus submarinos para o Oceano Índico e também envia patrulhas regulares antipirataria para o Golfo de Aden (Sen 2017).

Em 2017, a China abriu a sua primeira base naval permanente no exterior em Djibouti, dando um salto em frente nas suas intenções de projetar poder para a ROI. A China também tem construído ou modernizado portos em países como Mianmar, Sri Lanka e Paquistão, que poderiam eventualmente ser utilizados para apoiar suas operações na região. No entanto, a idéia de um cerco naval chinês é exagerado na situação atual, uma vez que seria muito difícil para a China sustentar as operações em um ambiente distante e hostil, e os portos seriam alvos fixos e fáceis para a Marinha Indiana.

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A ascensão simultânea de China e Índia está levando a diferentes projetos de integração econômica regional, os quais têm poucos pontos de convergência. A China tem investido grandes esforços econômicos e diplomáticos na Belt and Road Initiative (BRI). A BRI é composta por seis principais corredores de infraestrutura que ligam o continente chinês à Eurásia e ao Oceano Índico. Três deles passam pela Ásia Central, Mongólia e Rússia. No entanto, os projetos com maior impacto para a geopolítica da Ásia são o Corredor Econômico China-Paquistão (CECP), o corredor Bangladesh-China-Índia-Mianmar (BCIM) e outro corredor do sul da China para a península da Indochina. Há também uma proposta de Rota da Seda Marítima, que continuará a desenvolver infra-estrutura portuária no Sudeste Asiático e na ROI (Lopes e Pautasso 2016, Ghiasy e Zhou 2017). Juntos, esses planos vão aumentar ainda mais a influência econômica da China em países e regiões que são adjacentes à Índia ou percebidos pelo lado indiano como parte de sua tradicional esfera de influência.

Os chineses têm afirmado repetidamente que a Índia é uma parte importante da BRI, embora não esteja claro qual seria o papel reservado para ela. Em maio de 2017, a China fez uma iniciativa de quatro pontos para a melhoria das relações China-Índia, destinada a convencer a Índia a participar no Fórum Belt and Road, realizado no final do mesmo mês, que contou com líderes políticos globais de países chave interessados na BRI. A proposta chinesa incluiu alinhar a BRI com a política de agir para o leste (Act East) da Índia; a assinatura de um tratado de boa vizinhança e cooperação; progredir para um acordo de livre comércio bilateral; e resolver a questão da fronteira o mais breve

possível (PTI 2017).

As razões da Índia para não participar da BRI são múltiplas, mas derivam de duas causas principais: a disputa de soberania com o Paquistão sobre a região de Gilgit-Baltistan, através do qual o projeto CECP é executado; e o medo de que a China vai aumentar ainda mais a disparidade econômica e comercial em relação à Índia. Neste sentido, o governo indiano já manifestou a sua preocupação com a violação de sua soberania pelo projeto CECP.Além disso, a Índia agora sustenta relutantemente um déficit comercial de mais de US$ 45 bilhões com a China, que é o seu maior parceiro. Um sintoma desse problema foi visto durante a crise de Doklam, quando o governo indiano decidiu impor regras anti-dumping sobre uma gama de produtos chineses (ET on-line 2017). Embora existam muitas oportunidades econômicas e comerciais da agenda bilateral, pouco progresso foi feito até agora no sentido de abertura de mercados (Bajpai et al 2016). Assim, a Índia é cada vez mais cautelosa sobre os possíveis efeitos negativos de aprofundar as relações econômicas bilaterais, enquanto os chineses buscam um grau de interdependência que promova principalmente o seu crescimento econômico.

A Índia não somente se recusou a participar efetivamente da BRI, mas também não permite que a China participe como membro pleno em suas principais iniciativas econômicas e de segurança na região do Oceano Índico, como a Indian Ocean Rim Association (IORA) e a Indian Ocean Naval Symposium (IONS). A diplomacia indiana investe muita energia nestes fóruns, que foram impulsionados como uma alternativa para as falhas percebidas no projeto de integração

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da Associação Sul-Asiática para a Cooperação Regional (SAARC).

A Índia também está aprofundando a parceria econômica com o Japão, concordando no mês de maio de 2017 em lançar um projeto regional rival para a BRI, chamado Corredor de Crescimento Ásia África. A proposta surgiu nas conversações Modi-Abe em novembro de 2016, mas foi formalmente apresentada apenas durante a reunião do Banco Africano de Desenvolvimento, realizada em Ahmedabad (Índia) (Puri e Nishimura 2017).

A parceria Índia-Japão pode ser cada vez mais vista como um movimento para balanceamento interno e externo pelo lado indiano. O Japão já está aumentando seus investimentos em infraestrutura indiana, com o principal projeto sendo o primeiro trem-bala do país, que ligará Gujarat a Mumbai. Além disso, o Japão está planejando investir na região nordeste da Índia, incluindo o estado disputado de Arunachal Pradesh. No início deste ano, a Índia e o Japão concordaram em aprofundar a parceria em defesa e iniciar um diálogo para o desenvolvimento de tecnologias de uso dual e expansão de treinamento militar em guerra anti-submarino, por exemplo. O Japão também manifestou vontade em exportar aviões anfíbios com preço de desconto para a Índia.

Além disso, o Japão foi o único país a manifestar apoio ao lado indiano durante a crise de Doklam. O embaixador japonês para a Índia afirmou que o país teve de intervir na área porque tem acordos bilaterais com o Butão; além disso, afirmou que nenhum dos lados deveria recorrer a “tentativas unilaterais para mudar o status quo”, em uma clara referência à construção de estradas pela

China em Doklam (Roy 2017). Assim, os japoneses estão sinalizando um aumento em seu apoio diplomático para a Índia, especialmente em disputas relacionadas com a China.

O Japão também iniciou um processo de modernização militar em parte porque os compromissos de defesa dos EUA não são um elemento dissuasório confiável ou suficiente contra a China em longo prazo (Chanlett-Avery et al 2017). Por sinal, a crescente convergência de interesses no Indo-Pacífico se dá entre Índia e Japão, que são os primeiros a sentirem os efeitos reais de ascensão da China. Enquanto uma aliança Índia-EUA parece improvável por agora, analistas baseados em Delhi como Raja Mohan (2017) já argumentam em favor de uma relação de aliança indo-japonesa. O motivo é exatamente a incerteza sobre os interesses de longo prazo de Washington e suas políticas para a região, o que pode se transformar em um “recuo ou uma decisão deliberada [...] de ceder mais espaço para Beijing na Ásia”. No entanto, como veremos a seguir, os EUA permanecem como um fator estrutural bastante pervasivo sobre as relações China-Índia no longo prazo.

O Fator Estrutural: os Estados Unidos, os BRICS e as relações China-Índia

Apesar dos fatores bilaterais e regionais terem influência sobre as relações China-Índia, a política dos Estados Unidos para o Indo-Pacífico e o grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) são variáveis estruturais que afetam as dinâmicas bilaterais de cooperação e conflito. Neste sentido, tanto a China como a Índia priorizam questões estruturais sobre contenciosos bilaterais ou mesmo regionais,

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porque as primeiras aumentam o seu prestígio e facilitam a sua ascensão econômica e política, que são condições essenciais para as estratégias de longo prazo de ambos os países. Em outras palavras, por agora, China e Índia estão mais preocupadas com tendências globais mais amplas e seus realinhamentos, ao invés de se concentrar em questões locais que poderão levar a conflitos maiores no futuro.

O estado geral das relações China-Índia começou a se deteriorar após o acordo nuclear de 2005 entre EUA e Índia, fato que marcou o início de uma parceria estratégica entre os dois países e o reconhecimento do status de grande potência da Índia pela única superpotência global. Como Raja Mohan (2003) argumentou, a Índia “atravessou o Rubicão” quando decidiu realizar o teste nuclear Pokhran II em 1998, colocando o país no mais alto escalão do Sistema Internacional. A partir desse momento, a Índia tem buscado o reconhecimento do seu status de grande potência não somente no Conselho de Segurança, mas também junto a organizações comerciais e financeiras, por exemplo (Paul e Shankar 2014). Neste sentido, embora a China perceba a Índia como um parceiro para a reforma da ordem mundial, também está ciente de que a Índia cresce como uma grande potência rival.

Uma parceria mais profunda com os Estados Unidos é entretida tanto pelo Congresso Nacional Indian quanto pelo Partido Bharatiya Janata, especialmente como uma ferramenta de barganha e como meio de reforçar o balanceamento contra a China. A Índia sempre foi relutante em se alinhar com qualquer potência a fim de manter a sua autonomia estratégica. Por outro lado, isso não

significa que a Índia vai manter eqüidistância entre os EUA e a China. Durante a Guerra Fria, por exemplo, a Índia assinou um tratado com a União Soviética para dissuadir uma possível intervenção chinesa durante a guerra de 1971 contra o Paquistão.

Os limites da parceria Índia-EUA, no entanto, têm sido evidentes. As elites indianas entendem que os EUA não podem se comprometer inteiramente a uma estratégia de contenção da China, e não haveria nenhum incentivo para a Índia buscar apenas políticas alinhadas com os EUA. Além disso, é possível que os Estados Unidos adotam uma política de acomodação com a China em um mundo bipolar. Não só a Índia, mas o Japão também está ciente do relacionamento econômico especial entre EUA e China, que poderia se transformar em um engajamento político mais amplo (Brzezinski 2009). Esta ideia foi entretida por ambas as elites americanas e chinesas na forma do G2, que seria um condomínio bilateral para definir a agenda de uma nova ordem mundial. Na China, o debate do G2 tem girado em torno do conceito de “Novo Tipo de Relações entre Grandes Potências”, apresentado pelo Primeiro Ministro Xi Jinping (Zheng e Breslin 2016).

Apesar destes constrangimentos, Nova Deli vê uma oportunidade clara para reforçar o seu poder militar e status global com a ajuda dos Estados Unidos. Durante os governos Vajpayee e Clinton/Bush, especialmente após o início da Guerra ao Terror, ambos os países começaram um diálogo estratégico para superar contenciosos anteriores sobre o programa nuclear da Índia, avançando sua parceria estratégica e de defesa. Durante os governos do presidente dos EUA Barack

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Obama (2009-2016), ele expressou seu apoio à candidatura da Índia a um assento permanente no Conselho de Segurança e em favor de sua participação no Grupo de Fornecedores Nucleares. Também durante seu segundo mandato, a Índia tornou-se uma das dez maiores importadores de armas dos EUA e o maior comprador mundial de equipamento militar (Blanchfield et al 2017).

Na esfera bilateral, há impedimentos domésticos nos EUA para a transferência de tecnologia de uso militar ou dual para a Índia, que é um dos principais interesses em Nova Déli. No entanto, existe uma vontade crescente por parte dos Norte-Americanos em aprofundar os laços em defesa, cooperação industrial e tecnológica, como é evidente a partir da declaração da Índia como “major defense partner”. Nos últimos anos, plataformas importantes estão sendo exportadas para a Índia e há maior envolvimento de empresas indianas nos processos de produção dessas plataformas. Componentes para o C-130 Hercules são fabricados pela Tata na Índia. Os EUA também exportaram algumas tecnologias sensíveis incorporadas ao helicóptero de ataque AH-64 Apache e à aeronave de vigilância marítima P-8 Poseidon, ambos fabricados pela Boeing. Recentemente, a Lockheed Martin se ofereceu para transferir a linha de montagem do avião caça F-16 à Tata (Índia), caso a Força Aérea Indiana decida comprar pelo menos cem unidades da aeronave (Rapoza 2017).

Em consonância com a parceria de defesa, o governo de Narendra Modi pretende desenvolver um complexo industrial de defesa no âmbito do programa “Make in India”, abrindo o setor para empresas privadas nacionais e convidando propostas de joint ventures. Neste sentido, há um

crescente lobby industrial privado interessado no aprofundamento da parceria de defesa Índia-EUA.A Índia e os EUA reforçam sua parceria por meio de exercícios militares regulares, com destaque para o exercício naval Malabar, que tornou-se trilateral de forma permanente com a inclusão do Japão em 2015, recebendo eventualmente outros países (Austrália e Singapura) (Sinha 2016). Em 2016, Índia e EUA institucionalizaram ainda mais sua cooperação naval por meio do Memorando de Entendimento para Intercâmbio Logístico, que oficializa o compartilhamento de logística militar e instalações navais entre os dois países (Khurana 2016). Os Norte-Americanos ativamente encorajam a Índia e o Japão a se aproximarem, convocando vários encontros trilaterais oficiais desde 2011. Estes encontros são claramente consequências da ascensão chinesa e de seu esforço em conquistar a hegemonia regional na Ásia, com os Estados Unidos facilitando o aprofundamento das relações entre seus aliados tradicionais - especialmente Austrália e Japão - e o novo parceiro indiano.

Ao mesmo tempo, os BRICS representam um grupo ad hoc pela reforma das instituições internacionais e criação de uma nova ordem global. Neste sentido, a Índia é um participante ativo do recém criado Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS e, de modo ainda mais relevante, também participa do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, uma iniciativa liderada pela China. A Índia foi o país a propor a criação do NBD em 2012, cuja proposta foi formalmente aprovada no ano seguinte e oficialmente assinada em 2014 (Baumann 2017). Atualmente, KV Kamath, um executivo indiano, está na presidência do NBD. No BAII, a Índia é o segundo país com maior poder de voto (8.3%), atrás apenas da China (28,7%), que investe metade do

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capital do banco (Weiss 2017).

Estes novos bancos provavelmente não substituirão as instituições financeiras existentes, mas sim trabalharão em cooperação com estas e proverão uma nova alternativa de financiamento para países em desenvolvimento. Assim, China e Índia têm compartilhado uma política fortemente pragmática em não permitir que suas disputas bilaterais afetem seus interesses globais em descentralizar a governança global das potências tradicionais em direção aos países do BRICS, que são as potências emergentes mais fortes do Sistema Internacional.

Não surpreende que esta abordagem pragmática tenha tido um efeito positivo em desarmar a crise de Doklam. De acordo com ao menos duas fontes indianas, as negociações sobre Doklam começaram apenas em julho - poucas semanas após o início do impasse - durante a cúpula do G20 em Hamburgo (IANS 2017b, Samanta 2017). Naquela ocasião, Narendra Modi conversou com Xi Jinping durante o encontro informal do BRICS nos bastidores do evento, iniciando uma série de negociações de alto nível entre o Assessor de Segurança Nacional da Índia e o Conselheiro de Estado da China, com suas respectivas equipes.

Apesar de haver discordância em vários pontos com relação à disputa da fronteira China-Índia-Butão e suas reivindicações individuais, a China desejava realizar com sucesso a cúpula do BRICS em Xiamen e não deixaria que o incidente em Doklam ameaçasse a presença de Modi no evento. Ainda, os chineses estão cientes de que uma nova guerra com a Índia neste momento teria sérias consequências para a ascensão chinesa. Desde que Xi Jinping chegou ao poder em 2012, a estratégia

da China mudou sua característica de “Manter o Baixo Perfil”, de Deng Xiaoping, para “Esforçar-se por Realizações”, o que indica maior disposição em utilizar a diplomacia coercitiva e atrair maior apoio político por meio de demonstrações de força na arena internacional (Yan 2014).

Contudo, a China não deseja a formação de uma coalizão de potências regionais contra si, mas sim manter dinâmicas de cooperação e conflito operando em seu favor. Portanto, o desafio é achar o equilíbrio para esta equação e prevenir, por exemplo, que o quadrilátero Austrália, Índia, Japão e Estados Unidos se torne uma coalizão balanceadora. Cabe mencionar que estes países se encontraram no Diálogo de Segurança Quadrilateral pela primeira vez em 2007, mas não mantiveram encontros regulares desde então. No entanto, estes países retomaram o quadrilátero em novembro de 2017, com o objetivo de promover uma ordem regional na Ásia baseada em regras, discutir a crise da Península Coreana e aumentar a segurança marítima compartilhada (Panda 2017). Enquanto os EUA prometeram rebalancear, ou fazer o pivô para a Ásia-Pacífico em 2012, o verdadeiro balanceamento está sendo feito pelas potências regionais Asiáticas, que resistem ativamente contra uma postura chinesa mais assertiva e unilateral no Himalaia e no Oceano Pacífico.

Considerações Finais

O resultado agregado da crise de Doklam entre China e Índia é negativo e tem de ser analisado no contexto de deterioração das dinâmicas econômicas e securitárias regionais entre os dois países. Após quase duas décadas de reaproximação desde 1988, China e Índia estão

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cada vez mais hostis por causa das questões do Paquistão e do Tibete, tendo ainda projetos de integração regional em competição. As dinâmicas recentes sugerem o aprofundamento da parceria da Índia com o Japão e os Estados Unidos como um meio de balanceamento interno e externo contra a ascensão da China.

Apesar destas dificuldades, existem vários fatores contribuindo para um mínimo denominador comum, a partir do qual China e Índia podem aumentar sua cooperação e evitar a escalada de tensões bilaterais. O desafio não é transformar a rivalidade sino-indiana em uma parceria plena, mas entender os limites de sua cooperação e trabalhar para a melhora de suas relações.

Até o momento, o grande ponto de convergência tem sido a reforma da ordem global, mas mesmo neste caso os dois países têm diferentes visões. A China imagina um papel superior para si na Ásia e além, devido à existência de mais instrumentos de hard e soft power à sua disposição. A ascensão da Índia tem sido mais gradual e com menor impacto externo, mas isto não significa que aceitará ser um parceiro menor da China ou dos Estados Unidos.

Em termos regionais, há outros pontos de convergência a serem explorados, especialmente com relação à mudança de situação no Afeganistão e Mianmar. Ambos os Estados experimentaram longas guerras civis com intensa interferência externa e hoje são encruzilhadas para a estabilidade e a integração do continente asiático. Em ambos os casos, o engajamento direto ou indireto dos EUA também tem sido determinante para um desfecho positivo. Outro ponto que se relaciona diretamente com a situação do Afeganistão é a

expansão da Organização para a Cooperação de Xangai (OCX) para incluir Índia e Paquistão como membros plenos5. Resta observar se China e Índia serão capazes de ultrapassar suas diferenças e, mais importante, induzir mudanças positivas na estratégia de longo prazo do Paquistão de apoio a grupos militantes e terroristas no Sul da Ásia.

A chave para maior estabilidade bilateral também está no fortalecimento do poder econômico e militar da Índia, que a tornará menos dependente em fontes externas como meio de balancear a China. Muito da insegurança da Índia sobre a postura assertiva chinesa vem de sua própria percepção de ter falhado em superar vulnerabilidades domésticas e em dissuadir os chineses contra cruzarem os limites impostos pela diplomacia indiana. A diplomacia coercitiva da China só pode ser encarada com uma estratégia similar de avançar os próprios interesses e demonstrar força, ao mesmo tempo em que se engaja em diplomacia ativa, demonstrando vontade em cooperar para além de contenciosos bilaterais.

Neste sentido, a crise de Doklam não é inerentemente negativa, mas pode sinalizar uma nova fase das relações sino-indianas, onde sua coexistência é marcada pela política das Grandes Potências. O Japão, por exemplo, não abandonou sua agenda econômica com a China, incluindo conversas trilaterais sobre livre comércio com a Coreia do Sul. Reconhecer esta realidade simultânea de cooperação e conflito entre potências com interesses complexos ajudará os dois países a estabelecer uma agenda positiva, ao invés de frustrar perspectivas de cooperação a cada crise bilateral.

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Notas3 Government of India; Government of Bhutan. India-Bhutan Friendship Treaty. New Delhi, 2nd March 2007. Disponível em: https://idsa.in/resources/documents/Ind-BhutanFriendshiptreaty.2007

4 Depois de Pokhran II, o então Primeiro Ministro Indiano A. B. Vajpayee enviou uma carta ao Presidente dos EUA Bill Clinton, declarando que a Índia continuaria a ser um país responsável e justificando o teste como uma medida de dissuasão contra a China. A carta foi posteriormente vazada e publicada pelo New York Times.

5 Para uma análise desta questão, ver Ribeiro e Vieira (2016).

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Recebido em 22 de novembro de 2017.

Aprovado em 24 de novembro de 2017.