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DEMARCANDO TERRITÓRIOS E TERRITORIALIDADES NA CONSTRUÇÃO DE UMA MEMÓRIA NEGRA Daniele Machado Vieira Mestranda em Geografia UFRGS Professora de Geografia SMED/PMPA

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DEMARCANDO TERRITÓRIOS E TERRITORIALIDADES NA CONSTRUÇÃO DE

UMA MEMÓRIA NEGRA

Daniele Machado Vieira Mestranda em Geografia – UFRGS

Professora de Geografia – SMED/PMPA

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RS NEGRO? Também!

Embora reconhecida, presença negra não é evidente nas narrativas

sobre Porto Alegre e o RS

Representações (tanto imagéticas, quanto discursivas) invisibilizam a

presença negra na constituição destes espaços;

Construção da imagem de um espaço homogêneo, “alisado” (sem

rugosidades), aparentemente composto por um único grupo étnico-

racial – branco – oculta marcas da presença de outros grupos (negros

e indígenas);

Invisibilização oculta espaços e pessoas, autoriza violências físicas e

simbólicas (SANTOS, 2009)

Questiona e deslegitima presença negra;

Não fornece subsídios para: i) reconhecimento por si

(autoreconheicmento) e pelo outro (não-negro); ii) a constituição de

uma memória negra, enquanto pertencente àquele espaço.

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PRETINHOSIDADES, Santa Cruz /RS

“A ação, chamada Pretinhosidades, uma junção das palavras preto e preciosidade,

pretende romper com o estereótipo de que o município do interior gaúcho – que tem

forte colonização alemã – é composto apenas por cidadãos de pele e olhos claros.

[imagem de um espaço homogêneo]

Seis crianças negras (4 a 6 anos), acompanhadas da frase “Santa Cruz também é negra”.

“– Quem é negro em Santa Cruz cresce ouvindo que a cidade não é sua, por não ter

descendência alemã. É um racismo que já está enraizado, especialmente nas

propagandas que são feitas para promover a cidade [narrativas oficiais: discursiva e

imagética]. Esse é um discurso que permanece ao longo do tempo. O que a gente quer

é que nossos filhos se reconheçam como cidadãos santa-cruzenses – declara Marta

Nunes, professora universitária e uma das idealizadoras do projeto.” [violência

simbólica: não reconhecimento por si e pelo outro, não pertencimento]

As fotos feitas em locais de referência da cidade.

“– Escolhemos uma linha de ônibus que circula por toda a cidade. A ideia é de que as

nossas crianças negras da periferia se enxerguem e que possamos trazer toda a

sociedade santa-cruzense para o debate – acrescenta Marta.” [projeto de sociedade

DCN Educ. Relaç. Étnico Raciais: “todos possam se reconhecer”; “chamar a sociedade

para o debate”]

Fonte: Jornal Zero Hora, 28/07/2016.

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Pretinhosidades: Pedro, Francisco, Isabella, Gabriela, Mariah e Heloísa (da esquerda para direita).

Fonte: medium.com/@projetopretinhosidades

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REGISTRO DE MEMÓRIAS NEGRAS (positivadas, para além da escravização)

Capa livro “Negro em Preto e Branco: história fotográfica da população negra de Porto Alegre”. Irene Santos (Org.), 2005.

Abertura livro “Colonos e Quilombolas: memória fotográfica das colônias africanas de Porto Alegre”. Irene Santos et al (Org.), 2010.

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Trabalhos acadêmicos já exploraram este tema [territórios negros]

e apresentaram os estereótipos construídos pelo preconceito e

pela discriminação, mas silenciaram quanto ao aspecto em que o

projeto Colonos e Quilombolas privilegiará e deitará seu olhar: o

de apresentar e mostrar de forma afirmativa uma comunidade

alegre, trabalhadora, atuante, organizada, solidária, participativa e

com grande contribuição no cenário educacional, histórico, social,

esportivo, cultural e musical de Porto Alegre (SANTOS, 2010).

“[...] territórios negros não apenas como espaços de exclusão, mas

também como espaços de construção de singularidades e

elaboração de um repertório comum”. (ROLNIK, 2009, p. 76).

“Neste sentido é que tratamos de territórios negros, enquanto

espaços apropriados, marcados, qualificados, por grupos negros,

ainda que não sejam exclusivos (RATTS, 2012, p. 232), pois

juntavam-se a eles também os pobres e excluídos da sociedade

(ROLNIK, 2009).

PROTAGONISMO NEGRO

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PROTAGONISMO NEGRO – PORTO ALEGRE

Irmandade do Rosário (1786 – séc XX)

“As contas do meu rosário são balas de artilharia” (MULLER, 1999)

Sociedades Negras

Floresta Aurora (1872 – atualidade)

Satélite Prontidão (início séc XX – atualidade)

Imprensa Negra

Jornal “O Exemplo” (1892 – 1930)

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Irmandade do Rosário – Porto Alegre

Jean-Baptiste Debret. Coleta para a manutenção da igreja de Nossa Senhora do Rosário em Porto Alegre, 1828. Fonte: https://docs.ufpr.br/~lgeraldo/upoimagens3.html

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TERRITÓRIOS, TERRITORIALIDADES E PERTENCIMENTO

Reconhece vozes historicamente silenciadas, além de trazer a tona

marcas espaciais apagadas: “rugosidades” de um espaço “alisado”,

construído como homogêneo (SANTOS, 2009, p. 14);

Política identitária (SANTOS, 2009): construção de referenciais

positivos;

“Ver-se representado num mapa, numa abordagem para além da

condição de escravizado constitui uma forte política identitária” (SANTOS,

2009)

Referenciais: marcos físicos e simbólicos

Físicos: área, território ocupado outrora. Ex. Colônia Africana, Areal da

Baronesa, Bacia do Mont’ Serrat.

Simbólicos: protagonismo, afirmação, luta; tudo que estes núcleos

negros representavam.

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MEMÓRIA DA PORTO ALEGRE NEGRA: TERRITÓRIOS E TERRITORIALIDADES

Memória negra da/na cidade

Restrita a pessoas e espaços de circulação;

Pouco registro e sistematização;

Inquietações iniciais: quais eram os “territórios negros”? Onde se

localizavam? Qual o período de exitência? Foram contemporâneos?

Existiam relações entre eles?

Territórios negros “soltos no espaço imaginário” da cidade

Textos narravam, mas não localizavam (parecia que era evidente).

Qual a área ocupada pelo Areal da Baronesa? A Av. Luiz Guaranha

(atual Quilombo do Areal)?

Frequente minimização e paulatino esquecimento destes espaços.

TN abordados pelo viés do outro (segregação, estereótipos, etc.).

Silêncio sobre protagonismos e agenciamentos internos.

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Territórios Negros abordados:

Final séc. XIX – meados séc. XX

Área central e entorno

Locais ocupados majoritariamente por famílias negras, ainda

que não exclusivamente (ROSA, 2014)

TERRITÓRIOS NEGROS – PORTO ALEGRE

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DESLOCAMENTO TERRITÓRIOS NEGROS – PORTO ALEGRE

1º momento

• Localização: área central;

• Período Colonial (séc. XVIII – final séc. XIX);

• Ruptura: "modernização" da área central – arrumando a "sala de visitas" (BAKOS, 1994).

2º momento

• Localização: entorno da área central; cinturão negro ao redor do Centro (PESAVENTO, 1995);

• Período do Pós-abolição (final séc. XIX – 1930/40);

• Ruptura: urbanização do entorno da área central, grandes obras de remodelação urbana.

3º momento

• Periferização das camadas de baixa renda;

• Período de remodelação urbana (meados séc. XX);

• Transformação brusca da paisagem urbana; construção de grandes conjuntos habitacionais na longínqua periferia.

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MAPA TN FINAL SÉC XIX – MEADOS SÉC XX (EM CONSTRUÇÃO)

AREAL DA BARONESA

(1880 – 1950/60)

COLÔNIA AFRICANA

(1884 -1930/40)

ILHOTA

(1905 – 1970)

BACIA DO MONT’ SERRAT

(1910 – atualidade?)

TERRITÓRIOS NEGROS

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TERRITÓRIOS NEGROS FINAL SÉC XIX – MEADOS SÉC XX

AREAL DA BARONESA

(1880 – 1950/60)

COLÔNIA AFRICANA

(1884 -1930/40)

ILHOTA

(1905 – 1970)

BACIA DO MONT’ SERRAT

(1910 – atualidade?)

Eixo Sul: territórios limítrofes;

Fisionomia e cotidiano marcado pelo Riachinho (Arroio Dilúvio); constantes alagamentos.

Ambos espaços associados a população negra, as casas de religião de matriz africana e ao carnaval de rua;

Desmantelamento TN relacionados a retificação e canalização do Arroio Dilúvio;

Eixo Leste: 1ª e 2ª fase processo de deslocamento TN;

Colônia Africana: 1º momento

Bacia do Mont’ Serrat: toponímia (nome do local) relacionada ao relevo da área – bacia;

Ambos espaços associados a população negra e as casas de religião de matriz africana;

Desmantelamento da área relacionados aos melhoramentos e aumento impostos da área;

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Década de 1890

1895: notícia do Jornal do Comércio narrando um incêndio na Colônia

Africana (KERSTING, 1998, p. 117).

Colônia Africana passa a aparecer com frequência na imprensa, contudo

sendo retratada de forma desabonadora, em geral ligada a criminalidade

(idem, p. 118).

Diante da falta de outros registros é a este tipo de fonte que nos resta

recorrer para tentar localizar a Colônia Africana no tempo.

Embora a Colônia Africana não tenha sido reconhecida oficialmente como

uma área da cidade, ela aparece em ao menos dois documentos do poder

público, em 1896 e em 1898.

COLÔNIA AFRICANA: primeiras referências

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O ato 6 de 9/4/1896 corrige algumas ruas que tem o mesmo nome, as quais localizam-se na Colônia Africana:

“Considerando que a existência de oito ruas nesta Capital tendo duas o mesmo nome, traz entre outros inconvenientes o de originar dúvidas que podem embaraçar ou perturbar as relações sociais, decreta:

Art. 1º - A rua Boa Vista, na Colônia Africana, se denominará Cabral, em comemoração a Pedro Álvares Cabral, descobridor do Brasil; conservando o nome de Boa Vista a de igual nome no arraial de S. Miguel.

Art. 2º - A rua Venâncio Aires, na mesma Colônia Africana, se denominará Vasco da Gama, em comemoração do descobridor da Índia, digno precursor de Cabral; conservando o nome de Venâncio Aires a de igual nome nesta cidade (...)”

Ato n. 6 de 9/4/1896. Legislação Municipal. Porto Alegre, 1896

COLÔNIA AFRICANA: primeiras referências

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S

Futura Ilhota

TOPONÍMIAS DA MEMÓRIA NEGRA

Apagadas do mapa e em

vias de esquecimento da

memória da cidade:

Rua 28 de setembro

(Lei do Ventre Livre).

Antiga Rua dos Pretos

Forros, atual Av.

Ipiranga

Rua 13 de Maio (atual

Av. Getúlio Vargas).

Limites Sul e Leste do

Areal da Baronesa

Planta 1888 (CD Cartografia Virtual Histórica-Urbana de Poa, Séc XIX – início séc XX)

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AREAL E ILHOTA: reconstituindo a paisagem

"Ainda há pouco menos

de trinta anos, este

tenebroso e diluviano

Arroio do Sabão,

engrossado pelas águas

do Arroio Cascata,

chicoteado pelas curvas

e, por vezes, rebojado

pelo vento sul,

provocava, tais e tão

terríveis inundações

nessa zona baixa da

Ilhota, Arraial da

Baronesa, Santana [...]

que só quem viu pode

imaginar!" (SANHUDO,

1975, p. 85).

PLANTA 1888 (CD Cartografia Virtual Histórica-Urbana de Poa, Séc XIX – início séc XX)

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AREAL E ILHOTA: os mais animados carnavais da cidade

Adão Alves de Oliveira, Seu Lelé, (1º rei momo negro). Fonte: Negro em Petro e Branco: história fotográfica da população negra de Porto Alegre”. Irene Santos (Org.), 2005.

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CONSIDERAÇÕES

A comprensão dos territórios negros está atrelada ao

entendimento do contexto geográfico e histórico no qual

estava inserido;

O desmantelamento e deslocamento destes territórios estão

relacionados a momentos de profundas transformações do

espaço urbano;

A construção de uma cartografia implica na atualização da

memória que se tem sobre espaços reconhecidos da cidade,

outrora ocupados pela população negra.

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GRATA!

[email protected]