complexo da maré_ múltiplas territorialidades locais em movimento

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1 Centro de Ciências Sociais Departamento de Geografia e Meio Ambiente Monografia Final de Conclusão de Curso Rogério Pereira dos Santos Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento Profェ Drェ Haidine da Silva Barros Duarte (Orientador) Rio de Janeiro Dezembro/2005

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Monografia de conclusão do curso de Graduação em Geografia e Meio Ambiente concluído em Dezembro/2005 na PUC/RJ.

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Page 1: Complexo da Maré_ Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

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Centro de Ciências SociaisDepartamento de Geografia e Meio AmbienteMonografia Final de Conclusão de Curso

Rogério Pereira dos Santos

Complexo da Maré:Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Profª Drª Haidine da Silva Barros Duarte(Orientador)

Rio de JaneiroDezembro/2005

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Agradecimentos:

Aos meus pais, apesar de estarem um tanto distante da minha realidade

acadêmica...

À minha orientadora, professora Haidine Duarte, pela paciência,

disponibilidade de tempo e, principalmente, pelo suporte acadêmico durante este

trabalho final de curso e, também, nas disciplinas por ela ministradas.

Aos professores do Departamento de Geografia e Meio Ambiente pelos

ensinamentos que adquiri ao longo de minha jornada como graduando e à Edna,

funcionária, que tantos galhos quebrou a este aluno. Agradecimentos esses

extensivos ao Cláudio e a Anair do Departamento de História que, também muito me

ajudaram.

Aos professores da banca avaliadora, professores João Rua e Regina Célia

que, carinhosamente aceitaram o desafio de julgar minha monografia.

Aos funcionários do campus da PUC-RJ: André do Laboratório de

Informática – RDC; Sebastião da Biblioteca – 3º andar do prédio Frings; ao pessoal

da Pastoral (para o qual presto uma homenagem em especial pois, sem o benefício

do FESP, minha caminhada estudantil aqui na universidade não seria completa) e

aos ascensoristas que diariamente contribuíam para a minha chegada/saída às

aulas.

Aos colegas que conheci durante o curso, em especial, ao amigo Filósofo-

Geógrafo Professor Paulo José (PJDADS) que, sem dúvida alguma, foi um dos

alicerces de meu progresso como aluno.

Ao meu irmão Rildo, que muito me ajudou, principalmente, com xerox de

textos e outros materiais durante esses anos.

Ao técnico de informática Fernando Santos (Bimbão) pelo suporte

operacional dedicados a mim nesses quatro anos e meio de minha vida acadêmica.

Por último, dedico esta monografia em nome de José Rinaldo Pereira dos

Santos, meu irmão já falecido e a Ellen Ferreira Pereira dos Santos, minha primeira

filha.

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Sumário

I – Apresentação..................................................................................... 05

Capítulo 01: A Cidade do Rio de Janeiro e as Territorialidades emMovimento .............................................................................................. 111.1 – Territorialidades e a Problemática Conceitual ........................... 111.2 – Territorialidades e Segregação Sócio-Espacial Urbana ............. 19

Capítulo 02: A Formação do Complexo da Maré.................................. 292.1 – Primórdios da Ocupação na Maré (1940/1960)............................ 292.2 – Políticas Públicas e Seus Reflexos na Segregação do Espaço

(1960/1980)..................................................................................... 402.3 – Reconhecimento de Um Bairro Popular e as intervençõesPúblicas (1980/2005) .............................................................................. 46

Capítulo 03: Os Territórios da Maré e Suas Particularidades ............. 513.1 – Os Atores Sociais e Suas Atuações na Maré: AsTerritorialidades em Movimento............................................................ 51

4 – Conclusão ......................................................................................... 68

5 – Referências Bibliográficas............................................................... 69

6 – Anexos .............................................................................................. 72

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"A favela é um espaço em constante movimentoporque os moradores são os verdadeiros responsáveispor sua construção, ao contrário do morador da cidadeformal, que muito raramente se sente envolvido naconstrução do seu espaço urbano e, em particular, dosespaços públicos de sua cidade. A participaçãocomunitária ocorre de forma muito mais representativanas favelas e áreas favelizadas em geral do que nacidade formal. Os técnicos, arquitetos e urbanistasresponsáveis por projetos e intervenções em favelas, namaioria dos casos, em vez de tentar seguir osmovimentos já iniciados pêlos moradores, impõem suaprópria lógica construtiva, diretamente ligada à cultura eà estética da cidade formal. Esses profissionais lutamexatamente contra tal movimento do espaço das favelas,com a finalidade de estabelecer uma pretensa” ordem".O resultado (...) é uma rejeição por parte dos moradoresdessa imposição formal, o que resulta em umafavelização ainda mais radical, como no exemplo dasalterações realizadas pelos próprios moradores nosconjuntos habitacionais”. (Jacques 2002, p. 48).

In memória de José Rinaldo Pereira dos Santos

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Complexo da Maré:Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

1 – Apresentação:

Este trabalho final de curso tem como objetivo central identificar os territórios

que envolvem o complexo da Maré e suas particularidades, tendo como foco

principal o tema “Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em

Movimento”, então observadas na área de estudo. Para tal será utilizado, com

freqüência, “A História da Maré em Capítulos”, encontrado na internet em

http://www.ceasm.org.br e que discutirá com muita eficácia a trajetória da formação

do bairro “Maré”.

De acordo com o site da Prefeitura (2003) a área territorial da Maré

corresponde a 426,88 ha (a densidade demográfica de cada comunidade está no

Anexo I). O recorte definido pelo IBGE ignorou a condição formal de bairro da Maré,

estabelecida desde o final da década de 80, reconhecendo as comunidades locais

como “Unidades Territoriais Específicas” – é a maior concentração de população de

baixa renda do município do Rio de Janeiro. O conjunto de 16 comunidades [Morro

do Timbáu (1930/1940), Baixa do Sapateiro (1947), Conjunto Marcílio Dias (1948),

Parque Maré (1953), Parque Roquete Pinto (1955), Parque Rubens Vaz (1961),

Parque União (1961), Nova Holanda (1962), Praia de Ramos (1962), Conjunto

Esperança (1982), Vila do João (1982), Vila do Pinheiro (1989), Conjunto Pinheiro

(1989), Conjunto Bento Ribeiro Dantas ou Fogo Cruzado (1992), Nova Maré (1996)

e Salsa e Merengue (2000)] totaliza, segundo o “Censo Maré – 2.000”1, uma

população de 132.176 representando esse contingente, 2,26% da população do

município do Rio de Janeiro e apenas 0.97 % dos habitantes do Estado do Rio de

1 O Censo Maré, a fim de melhor descrição da heterogeneidade local, considerou a comunidade deMandacaru, localizada no território de Marcílio Dias, como uma comunidade específica, devido àssuas condições peculiares.

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Janeiro abrigado em 38.273 domicílios (Censo Maré 20002). A densidade

habitacional da Maré está representada no Anexo II.

Para Jacques (2002, p. 19) a Maré se diferencia de uma outra favela pois;

“A Maré não é simplesmente uma favela, mas o que se denomina um complexo defavelas, várias comunidades diferentes juntas, como se fossem vários bairrosdistintos, uma quase cidade formal. Assim a Maré se torna um dos maioreslaboratórios urbanos de habitação popular do país, onde inúmeras experiênciashabitacionais foram feitas nas últimas décadas. O próprio sítio sofreu tantasalterações que a própria maré que deu nome ao complexo já não existe mais; foramtantos os aterros, que o mar já ficou bem distante”.

Ainda Jacques (Ibidem, p. 21):

“A pseudo-semelhança entre as mais diversas favelas cariocas pode ser desmentidaem um rápido passeio pela Maré. A diversidade de formas está patente nasdiferentes comunidades do complexo. Quase todas as morfologias urbanas etipologias arquitetônicas referentes a habitações populares têm ou tiveram umexemplar na Maré: da favela labiríntica de morro ao mais cartesiano conjuntohabitacional modernista, passando por palafitas em áreas alagadas e conjuntohabitacionais favelizados. Vai-se do padrão mais informal ao mais formal, que acabase informalizando também”.

Tomadas no interior de uma mesma unidade territorial, as comunidades que

compõem o bairro da Maré possuem, na sua dimensão populacional absoluta, uma

expressão significativa em relação ao conjunto da população da Região

Metropolitana e do próprio Estado do Rio de Janeiro (Fonte: Censo Maré 2000).

A expressividade do tamanho do Complexo da Maré pode ser constatada

quando se toma como referência os 22 municípios mais populosos da malha

municipal do Estado do Rio de Janeiro, hoje composta por 91 unidades

administrativas. Um olhar superficial verifica que o bairro da Maré possui um número

de habitantes superior aos identificados para Macaé (131.550 hab), Cabo Frio

(126.894 hab), Queimados (121.688 hab), Angra dos Reis (119.180 hab), Resende

(104.482 hab) e Barra do Piraí (88.475 hab). E, numa classificação por ordem de

grandeza, se o bairro da Maré recebesse o status de município, ocuparia a 17ª

posição em termos populacionais nesse estado (Ibidem).

2 O “Censo Maré 2000” foi um empreendimento com iniciativa do CEASM, com financiamento doBNDES e com vínculos a um conjunto de iniciativas de Políticas Sociais da Prefeitura do Rio deJaneiro e que ficou conhecido como “Projeto Multissetorial da Maré”.

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O destaque da Maré torna-se mais evidente e visível quando comparamos o

tamanho absoluto de sua população com os números identificados para os

municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, conforme apresenta o Tabela

I.

Tabela I – População Residente nos Municípios da Região Metropolitanado Rio de Janeiro:

Município População Município População

1 – Rio de Janeiro 5.851.944 11 – Queimados 121.688

2 – Nova Iguaçu 915.366 12 – Japeri 83.160

3 – São Gonçalo 889.828 13 – Itaguaí 81.952

4 – Duque de Caxias 770.865 14 – Maricá 78.556

5 – Niterói 458.465 15 – Seropédica 65.020

6 – São João de Meriti 449.229 16 – Paracambi 40.412

7 – Belford Roxo 433.120 17 – Guapimirim 37.940

8 – Magé 205.669 18 – Tanguá 26.001

9 – Itaboraí 187.127 19 – Mangaratiba 24.854

10 – Nilópolis 153.572 XXXXXXXXXXXXX XXXXXXXXXX

Fonte: (Censo Maré 2000) http://www.ceasm.org.br

A simples observação dos dados nos indica que a população da Maré

apresenta um tamanho absoluto superior aos números apresentados por nove

municípios da Região Metropolitana (Queimados, Japeri, Itaguaí, Maricá,

Seropédica, Paracambi, Guapimirim, Tanguá e Mangaratiba). Tomando a Maré

como um município hipotético, ele ocuparia a 11ª posição em termos de população

desta região do Estado. Seu contingente demográfico corresponde à população de

um município com a possibilidade de representação política, segundo o que

determina a Constituição Federal.

No que concerne aos outros complexos de comunidades populares do Rio de

Janeiro, Rocinha, Alemão e Jacarezinho, observa-se que o bairro em estudo

aparece como o de maior concentração populacional.

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Tabela II – População nas Principais Favelas do Rio de Janeiro:

Localidade 1991 1996 2000Rocinha 42.892 45.585 56.313Alemão 51.591 54.795 65.637

Jacarezinho 37.393 34.919 36.428Maré 62.458 68.817 113.817 /

132.176*Fonte: (Censo IBGE – 2000; *Censo CEASM-2000).

Embora a Tabela II confirme a concentração da população na Maré, cabe

destacar que o crescimento revelado pelos números do IBGE, não expressa um

incremento real, por que o Instituto levou em consideração na sua contagem da

população da Maré, nos anos de 1991 e 1996, apenas nove comunidades: Baixa do

Sapateiro, Parque Maré, Nova Holanda, Roquete Pinto, Rubens Vaz, Parque União,

Praia Ramos e Timbáu. As demais não foram incorporadas por serem definidas

como conjuntos habitacionais.

Na composição social do Bairro Maré é bastante relevante a questão de

gênero. A presença feminina destaca-se ali como sendo a maioria dos seus

habitantes (vide Tabela III), acompanhando a tendência da distribuição da população

por gênero no estado e no município do Rio de Janeiro (vide Tabela IV), onde as

mulheres também se apresentam com expressiva maioria.

Tabela III – Distribuição da População Residente no Bairro Maré porGênero:

Comunidades Homens Mulheres Sub-totalParque União 8.911 8.885 17.796Vila Pinheiros 7.641 7.844 15.485Parque Maré 7.557 7.842 15.399Baixa do Sapateiro 5.512 5.955 11.467Nova Holanda 5.547 5.748 11.295Vila do João 5.280 5.371 10.651Rubens Vaz 4.060 3.936 7.996Marcílio Dias 3.610 3.569 7.179

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Timbáu 2.962 3.069 6.031Conjunto Esperança 2.827 2.901 5.728Salsa e Merengue 2.644 2.665 5.309Praia de Ramos 2.287 2.507 4.794Conjunto Pinheiros 2.319 2.448 4.767Nova Maré 1.517 1.625 3.142Roquete Pinto 1.238 1.276 2.514Bento RibeiroDantas

1.082 1.117 2.199

Mandacarú 206 218 424Maré 65.200 66.976 Total 132 176

Fonte: Censo Maré – 2000

Tabela IV – População por Gênero no Estado e no Município do Rio deJaneiro – 2000

Unidade Mulheres HomensEstado do Rio 7.490.947 6.900.335Município 3.109.761 2.748.143Maré 66.976 65.200

Fonte: Censo IBGE – 2000

Ao longo dos últimos 10 anos, a Maré apresentou um rápido incremento de

domicílios e, evidentemente, de população. Com isso, ela aparece, pela primeira

vez, como o mais populoso complexo de favelas do Rio de Janeiro. O fato decorre

da incorporação ao bairro, pelo IBGE, das comunidades locais até então

identificadas como conjuntos habitacionais. Outro fator significativo foi a construção,

entre 1993 e 1997, de três novos conjuntos, realizada pelo programa municipal de

remoção de populações em áreas de risco: Nova Maré; Bento Ribeiro Dantas e

Salsa e Merengue (oficialmente identificado como Novo Pinheiros).

A grande fronteira interna existente atualmente no Complexo da Maré não

está entre as comunidades mas, infelizmente, entre as três diferentes facções do

tráfico de drogas e do crime organizado que, literalmente, cortam a Maré ao meio

com suas disputas de territórios de dominação. Verdadeiras batalhas são travadas

quase sempre entre as facções rivais ou entre essas e a polícia, o que acaba, de

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fato, formando áreas de confronto perigosas, verdadeiras ‘linhas-de-tiro’ dentro do

complexo, afetando de forma direta a vida cotidiana de seus moradores.

O objetivo em estudar esse complexo encravado no espaço urbano carioca

(ver a disposição espacial da Maré no Anexo III) advém não só de uma vivência

cotidiana como morador que nasceu e cresceu acompanhando seus movimentos

sociais mas, sobretudo, de procurar entender suas possíveis territorialidades,

decorrentes do conflito de interesses entre os atores sociais que interagem no

processo de estruturação do local.

O primeiro capítulo procura de forma, sucinta, mostrar o Complexo da Maré

como produto da chamada “fragmentação do tecido sócio-político espacial”, como

define Souza (2003, p. 500), no processo de expansão da cidade do Rio de Janeiro

e a constituição de territorialidades em seu tecido urbano, partindo de considerações

de natureza conceitual formulada por autores que têm se dedicado ao tema

territorialidades.

O segundo capítulo, de caráter empírico, trata de forma factual a formação do

Complexo da Maré e suas vinculações com as políticas públicas voltadas para a

população de baixa renda, tema este que extrapolando o objeto da presente

dissertação mantém-se na pauta de discussões, como as que ainda hoje, em pleno

século XXI, envolvem as lideranças políticas do Município do Rio de Janeiro.

No terceiro capítulo são apresentados os principais atores sociais que fazem

do Complexo da Maré um espaço partido, fragmentado e marcado pelo interesse de

facções antagônicas, suas práticas sociais e, de que algum modo, caracterizam as

territorialidades e as desterritorialidades evidenciadas no local.

Finalmente, na tentativa de arriscar algumas conclusões, são feitas as

considerações finais sobre esta monografia.

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1 – A Cidade do Rio de Janeiro e as Territorialidades emMovimento:

1.1 – Territorialidades e a Problemática Conceitual:

Antes de esclarecer de que forma entendo o termo território – para logo em

seguida tratar das possíveis territorialidades que possam ser identificadas nas áreas

da Maré – acho de suma importância definir o conceito de espaço pois, é nele que

se insere o território e como diz Raffestin (1993, p. 178): “o espaço é anterior ao

território”.

De acordo com Andrade (1994, p. 213) o conceito de território:

“não deve ser confundido com o de espaço ou de lugar, estando muito ligado à idéiade domínio ou de gestão de uma determinada área, sendo assim, deve-se ligarsempre a idéia de território à idéia de poder, quer se faça referência ao poderpúblico, estatal, quer ao poder das grandes empresas que estendem os seustentáculos por grandes áreas territoriais, ignorando as fronteiras políticas”.

Este mesmo autor cita que “o território, unidade de gestão, se expande pelo

espaço não conquistado e cria novas formas de territorialidades que dialeticamente

provocam novas formas de desterritorialidades e dá origem a novas territorialidades”

(Ibidem, p. 220).

Milton Santos (1997, p. 51) foi um dos autores que mais trabalhou com este

tema geográfico e segundo ele o espaço seria formado: “por um conjunto

indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de

ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história

se dá”.

Define ainda que (Ibidem, p. 83):

“O espaço, uno e múltiplo, por suas diversas parcelas, e através do seu uso, é umconjunto de mercadorias, cujo valor individual é função do valor que a sociedade, emum dado momento, atribui a cada pedaço de matéria, isto é, cada fração dapaisagem”.

Para o mesmo autor, “o espaço é hoje um sistema de objetos cada vez mais

artificiais, povoado por sistemas de ações igualmente imbuídos de artificialidade, e

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cada vez mais tendentes a fins estranhos ao lugar e a seus habitantes.”(Ibidem p.

51).

Santos, afirma, entretanto, que espaço e paisagem não são sinônimos. “A

paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças

que representam as sucessivas relações localizadas entre o homem e a natureza. O

espaço são essas formas mais a vida que as anima” (Ibidem, p. 83).

Para Lefebvre, citado por Ferreira (2005):

“a utilização da noção de forma, função e estrutura (utilizadas com o mesmo peso deimportância) que contribuiriam para a revelação do espaço produzido, já quepermitiria a apreensão de suas estabilidades provisórias e de seus equilíbriosmomentâneos, até porque a própria noção de estrutura tem, também, um caráterprovisório. Ademais, a conjunção das três noções permite desvelar um conteúdosócio-espacial que se encontra oculto, posto que dissimulado nas formas, funções eestruturas analisadas”.

Ainda Ferreira (2005) citando Santos, apoiado por Lefebvre, propõe a

utilização dessas categorias como um auxílio na interpretação do espaço em sua

totalidade – acrescentando aqui outra variável, o processo. Para Ferreira o espaço

deve ser analisado a partir de algumas categorias a qual ele classifica como: Forma(o aspecto visível de um objeto), Função (atividade a ser desempenhada pelo objeto

criado, a forma), Estrutura (trata-se da natureza social e econômica de uma

sociedade em um dado momento do tempo: matriz social onde as formas e funções

são criadas e justificadas) e Processo (é uma estrutura em seu movimento de

transformação). A esse respeito Correia (1995, p. 29-30) escreve que:

“Forma, função, estrutura e processo são quatro termos disjuntivos associados, a empregarsegundo um contexto do mundo de todo dia. Tomados individualmente, representam apenasrealidades parciais, limitadas, do mundo. Considerados em conjunto, porém, e relacionadosentre si, eles constroem uma base teórica e metodológica a partir da qual podemos discutir osfenômenos espaciais em totalidade”.

Referindo à sua natureza multifacetada como aspecto teórico mais importante

do espaço, Lefebvre citado por Gottdiener (1993, p. 127), menciona que:

“O espaço é ao mesmo tempo o local geográfico da ação e a possibilidade social deengajar-se na ação. Isto é, num plano individual, por exemplo, ele não só representao local onde ocorrem os eventos (a função de receptáculo), mas também significa aformação social de engajar-se nesses eventos (a função da ordem social)”.

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Lefebvre conceitua “design espacial” como sendo ele próprio, um aspecto das

forças produtivas da sociedade – que, juntamente com a tecnologia, o conhecimento

humano e a força de trabalho, contribuem para o nosso “potencial de produção –

assinala ele que:

“A cidade, o espaço urbano e a realidade urbana não podem ser concebidos apenascomo a soma dos locais de produção e de consumo... O arranjo espacial de umacidade, uma região, um país ou um continente aumenta as forças produtivas, domesmo modo que o equipamento a as máquinas de uma fábrica ou de um negócio,mas em outro nível. Usa-se espaço exatamente como se usa uma máquina.”(Ibidem, p. 128).

“O design espacial é um instrumento político de controle social que o Estado usa parapromover seus interesses administrativos. O espaço de autoridades eadministrações políticas dá, assim, ao Estado um instrumento independente parapromover seus interesses”. (Ibidem, p. 130).

Já Geiger, (1994, p. 238) analisa a cidade de forma que ela “aparece

implicitamente como o elo entre o território e o amplo espaço, o material, e o

abstrato, do pensamento. O território corresponde a um nível de produção social do

espaço”. Este autor também defende a tese de que “espaço e território não

significam exatamente a mesma coisa e o esclarecimento deste fato tem a ver com a

argumentação sobre os conceitos de des-territorialização e espacialização ora em

uso” (Ibidem, p. 235).

A respeito de território, Raffestin (1993, p. 59-60) entende ser “um trunfo

particular, recurso e entrave, continente e conteúdo, tudo ao mesmo tempo. O

território é o espaço político por excelência, o campo de ação dos trunfos”.

Neves (1994, p. 271) define os territórios como “espaços de ação e de

poderes e esse poder – como capacidade de decidir – é adaptado às circunstâncias

contraditórias e particulares no tempo e no espaço [cada vez mais diversificado e

heterogêneo]”.

Ainda para esse mesmo autor, “os novos territórios estão sendo formados e

transformados em todas as partes sobre os escombros das territorialidades, da luta

de classes ou das novas fontes espacializadas de produção de mercadorias”

(Ibidem, p. 273).

Já Corrêa (1989, p. 09) analisa o espaço urbano como sendo um local

“fragmentado e articulado, reflexo e condicionante social, um conjunto de símbolos e

campo de lutas”. É assim a própria sociedade em uma de suas dimensões, aquela

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mais aparente, materializada nas formas espaciais. Cita ainda que “este espaço seja

um produto social, resultado de ações acumuladas através do tempo e engendradas

por agentes que produzem e consomem espaços, são agentes sociais concretos”. A

esses agentes que fazem e refazem a cidade ele nomeou-os em: proprietários dos

meios de produção (os grandes industriais); os proprietários fundiários (interessados

no valor de troca da terra e não no seu valor de uso); os promotores imobiliários

(que realizam operações de incorporação, financiamento...); o Estado (que atua

diretamente como grande produtor e consumidor de espaço) e os grupos sociais

excluídos (que tinham como possibilidades de moradia os densamente ocupados

cortiços localizados próximos ao centro da cidade). E assim o espaço transforma-se,

através da política, em território.

Para Andrade (1994, p. 251) o “território não é sinônimo de espaço... do

mesmo modo territorialidade e espacialidade não devem ser empregadas de modo

indiferenciado”. Para ele “território constitui-se, em realidade, em um conceito

subordinado a um outro mais abrangente, o espaço, isto é, à organização espacial;

ele é o espaço revestido da dimensão política, afetiva ou ambas”.

Trindade Júnior (1996, p. 139) analisa da seguinte forma: “O espaço urbano

não é sujeito, mas produto, condição e meio de (re)produção das relações sociais.

Nesse sentido, a reprodução da vida da e na cidade hoje faz-se num contexto de

instauração de uma, como diz Lefebvre, sociedade urbana que é, ao mesmo tempo,

real e virtual”.

Ramagem (1996, p. 49) diz que “um território pressupõe um povo, um

grupamento com unidade cultural, o qual reclama uma dada porção do espaço como

exclusivamente sua; um espaço vivido, campo de representações simbólicas, lócus

de solidariedades territoriais, percebido através do sentimento”.

Outro autor que trabalha com este tema é Souza (1995, p. 78) que define o

território fundamentalmente como: “um espaço definido e delimitado por e a partir de

relações de poder”.

Souza (Ibidem, p. 99) prefere empregar o termo “Territorialismo” – que longe

de ser uma simples questão de instinto, é também uma estratégia – para designar o

conteúdo de territorialidade. Diz ainda que no singular (territorialidade) “remeteria a

algo extremamente abstrato: aquilo que faz de qualquer território um território, isto é,

relações de poder espacialmente delimitadas e operando sobre um substrato

referencial” e no plural (territorialidades) significariam “os tipos gerais em que podem

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ser classificados os territórios conforme suas propriedades, dinâmicas, etc”. O autor

exemplifica: territórios contínuos e territórios descontínuos singulares são

representantes de duas territorialidades distintas, contínuas e descontínuas. A

territorialidade remete a um certo tipo de interação entre o homem e o espaço, a

qual é sempre uma interação entre seres humanos “mediatizada pelo espaço”

(Raffestin, 1993 p. 160). Já Robin, citado por Haesbaert (1995, p. 202) indaga que:

“Quanto ao espaço e ao território, eles tendem a ser escamoteados: a mundializaçãooperada pela multimídia e a infovias apagam nossas referências espaciais. O espaçopúblico vivido, aquele da rua, da cidade (...), desaparece. Ora, o território é o lugarprivilegiado da construção social, o laço maior de articulação entre o social e oeconômico; é aí também que se constata a alteridade e se opera o confronto com osoutros. De fato, não existe político que não se inscreva sobre um território.”.

O geógrafo Haesbaert é o autor que tem se dedicado a discutir o conceito de

território, alimentando com suas formulações o conhecimento das relações sociais

inerentes ao processo da produção do espaço. Compreende o autor (2001, p. 1770)

que as concepções de território podem ser agrupadas em três pontos – tendo como

influências as leituras de Augé (1992), Deleuze, Guattari (1997), Storper (1994),

Raffestin (1993) e Sack (1986):

* Jurídico-político = “... é a mais difundida, onde o território é visto como um

espaço delimitado e controlado, através do qual se exerce um determinado

poder, na maioria das vezes visto como o poder político do Estado”.

* Cultural(ista) = “... prioriza a dimensão simbólico-cultural, mais subjetiva,

em que o território é visto sobretudo como o produto da

apropriação/valorização simbólica de um grupo sobre seu espaço”.

* Econômico = “... bem menos difundida, enfatiza a dimensão espacial das

relações econômicas, no embate entre classes sociais e na relação capital-trabalho”.

O território define-se, segundo Ferreira (2005), essencialmente, a partir de

relações de poder:

“... o território seria relacional não somente no sentido da incorporação de umconjunto de relações sociais, mas também no de desenvolver uma complexarelação entre processos sociais e espaço material, onde se conclui que o territórioinclui o movimento, a fluidez e as redes – sendo relacional".

Ainda Haesbaert (2001, p. 1770):

Page 16: Complexo da Maré_ Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

16

“... o território envolve sempre, ao mesmo tempo, uma dimensão simbólica, cultural,através de uma identidade territorial atribuída pelos grupos sociais, como forma de‘controle simbólico’ sobre o espaço onde vivem (sendo também, portanto, uma formade apropriação), e uma dimensão mais correta, de caráter político-disciplinar: aapropriação e ordenação do espaço como forma de domínio e disciplinarização dosindivíduos.”.

Corrêa (1994, p. 251) aproxima-se de Haesbaert (2001, p. 1770) quando

afirma que a “territorialidade, por sua vez, refere-se ao conjunto de práticas e suas

expressões materiais e simbólicas capazes de garantirem a apropriação e

permanência de um dado território por um determinado agente social, o Estado, os

diferentes grupos sociais e as empresas”.3

A expansão do território, segundo Andrade (1994, p. 214), ao mesmo tempo

em que promovia a ampliação da territorialidade: “provocava a desterritorialidade

nos grupos que se sentiam prejudicados com a forma e a violência com que era

feita”.

E assim “o território – que ficou ausente das preocupações geográficas até

recentemente – retorna com insistência na última década do século XX como

elemento que condiciona as relações de produção”, como salienta Sposito (2004, p.

119).

E dessa convergência espacial dos contrários, surgiu a reação à gestão

central, à desterritorialização e à integração com a formação de novas

territorialidades, novas formas de concepção do uso e do processo de domínio do

território.

Com esta base conceitual seguirá uma apresentação sobre as

denominações: territorialização, desterritorialização e re-territorialização (des-re-

territorialização).

Com uma grande ligação com o lugar, a territorialização é iniciada sem a

preocupação de estar fincada somente no viés da ocupação do espaço de forma

materialmente construída, mas também, através de um processo de criação de

símbolos e códigos que caracterizam um lugar para um indivíduo ou grupo social,

estando esse próprio lugar, interligado às relações travadas entre as pessoas ao

longo do tempo – o lugar embebido de objetos comuns. Conforme afirmam Deleuze

e Guattari, citados por Ferreira (2005): “não há território sem um vetor de saída do

3 Esta definição de territorialidade está embasada em Sack (apud, Corrêa/1994) onde ele aceita que“para os seres humanos (territorialidade) é uma poderosa estratégia geográfica para controlarpessoas e coisas através do controle de uma área”.

Page 17: Complexo da Maré_ Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

17

território, e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo

tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte”.

Haesbaert (1995, p. 168) define desterritorialização como “a superação

constante das distâncias, a tentativa de superar os entraves espaciais pela

velocidade, de tornar-se ‘liberto’ em relação aos constrangimentos geográficos – ou

rugosidades”, quando se refere Milton Santos. Quando se remete a

desterritorialização percebe-se a perda dos vínculos com o lugar e as relações nele

realizadas. Santos, citado por Ferreira (2005), enfatiza essa tese quando argumenta

que: “hoje, a mobilidade se tornou praticamente uma regra. O movimento se sobrepõe ao

repouso. Os homens mudam de lugar(...) mas também os produtos, as mercadorias,as imagens, as idéias. Tudo voa. Daí a idéia de desterritorialização.Desterritorialização é, freqüentemente, uma outra palavra para significarestranhamento, que é, também, desculturização”.

Ainda Ferreira (Ibidem): “A desterritorialização rompe com toda uma formação de sistemas simbólicos de

significados, de valores, que foram instituídos através de práticas sócio-culturais que,por sua vez, foram responsáveis pela construção social do lugar. A noção dedesterritorialização deve ser percebida como uma concepção mais integradora doterritório, ao mesmo tempo espaço de apropriação/reprodução concreta e simbólica”.

Um processo de desterritorialização pode ser tanto simbólico – com a

destruição de símbolos, marcos históricos, identidades – quanto concreto, material

[político e/ou econômico], pela destruição de antigos laços/fronteiras econômico-

políticas de integração.

É bom lembrar que a produção do espaço envolve sempre e,

concomitantemente, a desterritorialização e a reterritorialização como definiu Barel,

citado por Haesbaert (1995, p. 170):

“(...) seria interessante se representar a mudança social [e seu contrário, o bloqueio]sob a forma de uma dinâmica territorial, pois a mudança social é em parte esta: avida e a morte dos territórios. Estes territórios têm uma história. A mudança social évista aqui como um movimento de territorialização-desterritorialização-reterritorialização bem entendido, a história territorial da transformação social restainteira por escrever (...) De uma certa maneira, pode-se representar a modernidadecomo o lento aparecimento de códigos desterritorializantes que engendram seucontrário, isto é, a necessidade de novos territórios”

Page 18: Complexo da Maré_ Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

18

As práticas sócio-culturais, que foram responsáveis pela construção social do

lugar, fazem com que haja uma ruptura de toda uma formação de sistemas

simbólicos de significados e de valores através da desterritorialização.

A reterritorialização representa uma nova rede de relações e processos que

geralmente desencadeiam uma nova codificação; ela rompe com toda uma

formação de sistemas simbólicos e significados e de valores instituídos que foram

responsáveis pela elaboração do lugar. Quando é realizada guarda novos traços e

trajetórias. O processo de reterritorialização se manifesta em associação a um

movimento dentro da própria organização espacial do lugar.

Um exemplo disso é um indivíduo que passa a trabalhar como autônomo e

permanece com seu vínculo empregatício; ele monta em sua própria residência um

mini-escritório de vendas de pequenos produtos para beleza feminina, por exemplo,

– com esse movimento de migração de tarefas de um determinado lugar para outro

ele exercita uma desterritorialização e uma reterritorialização para logo após,

desterritorializar-se e reterritorializar-se novamente.

Concluindo, Corrêa (1994, p. 252) menciona que a desterritorialização: “É entendida como a perda do território apropriado e vivido em razão de diferentes

processos derivados de contradições capazes de desfazerem o território. Novasterritorialidades ou re-territorialidades, por sua vez, dizem respeito à criação denovos territórios, seja através da reconstrução parcial, in situ, de velhos territórios,seja por meio da recriação parcial, em outros lugares, de um território novo quecontém, entretanto, parcela das características do velho território: neste caso osdeslocamentos espaciais como as migrações, constituem a trajetória que possibilitao abandono dos velhos territórios para os novos”.

O que pode ser observado é que quando o território, unidade de gestão, se

expande pelo espaço não conquistado cria novas formas de territorialidades que

dialeticamente provocam novas formas de desterritorialização e dá origem a novas

territorialidades – é um ciclo contínuo. E é sobre essas (possíveis) territorialidades

que o estudo de três comunidades do “Complexo da Maré” (foco desse trabalho)

objetiva identificar as relações sociais do processo de construção do espaço.

A compreensão de uma realidade local insere-se na compreensão do

processo de formação do espaço à qual pertence. Neste sentido, faz-se necessária

uma abordagem, ainda que sumária, da constituição do espaço urbano da cidade do

Rio de Janeiro e as suas territorialidades resultantes da segregação sócio-espacial

ou ainda, da fragmentação do tecido sóciopolítico-espacial, conforme apontado por

Souza (2003a, p. 90).

Page 19: Complexo da Maré_ Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

19

1.2 – Territorialidades e Segregação Sócio-Espacial Urbana:

O entendimento das possíveis territorialidades existentes na cidade do Rio de

Janeiro, exige ema volta no tempo para que se possa compreender como ocorreu e

para qual direção se deu o espraiamento da população carioca.

Um marco decisivo para o processo de urbanização da cidade do Rio de

Janeiro foi sem dúvida a chamada “revolução” ocorrida nos meios de transporte

coletivo da cidade carioca no último quartel do século XIX, onde “as empresas de

‘carris’ comandaram – em larga medida – o espraiamento da malha urbana para

muito além do antigo perímetro da Cidade Velha e da Ulterior Cidade Nova,

contribuindo, ao mesmo tempo, para tornar cada vez mais nítida uma nova

estruturação social do espaço carioca”, Benchimol (1990, p. 96).

Neste momento a tendência da cidade era a de bifurcar-se em dois viézes

distintos: de um lado os bairros com predomínio do uso residencial localizados nas

áreas norte e sul e de outro uma área central com características “febril, multiforme,

superpopulosa e insalubre”. Para fazer a conexão entre a zona norte surge o tronco

ferroviário da Estação Ferroviária D. Pedro II, aonde os bairros do subúrbio iriam

progressivamente se estruturar até final do século, dando início a implementação

das principais estações ferroviárias e conseqüentemente, o espraiamento da

população carioca. (ibidem).

Os conflitos e as contradições espaciais tornaram-se presentes no espaço

urbano durante a transição de cidade colonial – tendo em sua base a mão-de-obra

escravista – para a cidade capitalista. Neste instante, século XIX, surgiram os

primeiros elementos segregadores do espaço com a introdução do bonde e do trem

que torna a expansão física do espaço expressiva.

Entre 1850-1870, a crise habitacional – dita como “escassez e carestia das

habitações para gente pobre” – emergiu como um dos traços mais característicos e

recorrentes da vida urbana do Rio de Janeiro, somando-se a isso, ter-se-ia ainda a

incidência de epidemias, onde o epicentro desta crise seria a área central onde

coabitava-se em grande número e de forma desordenada, grande parte da

população carioca. Apoiando-se em Engels, Benchimol (1990, p. 124) cita que: “a

crise da habitação é produto da forma social burguesa; sua história está, portanto,

indissoluvelmente subordinada ao desenvolvimento das relações capitalistas de

Page 20: Complexo da Maré_ Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

20

produção no espaço urbano carioca (e à conseqüente apropriação capitalista desse

espaço).

No início do século XX, o prefeito Pereira Passos (1902-1906), aliado ao

governo republicano, realizou a primeira grande intervenção urbana no Rio de

Janeiro, Ao procurar embelezar e modernizar a cidade, o denominado “Haussmann

Tropical” iniciou a reestruturação da cidade, redefinindo o centro e as áreas

residenciais, oficializando a segregação espacial entre ricos e pobres, e tornando-se,

paradoxalmente, um grande responsável pela consolidação inicial das favelas4.

Corrêa (1989, p. 65), citando Harvey, diz que a segregação significa:

“diferencial de renda real. Proximidade às facilidades de vida urbana, como água,esgoto, áreas verdes, melhores serviços educacionais, etc; e ausência deproximidade aos custos da cidade, como crime, serviços educacionais inferiores,ausência de infra-estrutura, etc. se já há diferença de renda monetária, a localizaçãoresidencial pode implicar diferença ainda maior no que diz respeito à renda real”.

De acordo com a definição da Escola de Chicago, “Segregação Residencial”

seria “uma concentração de tipos de população dentro de um território”, onde a área

natural – ”uma área geográfica caracterizada pela individualidade física e cultural

resultante do processo de competição impessoal que geraria espaços de dominação

dos diferentes grupos sociais, replicando ao nível da cidade processos que ocorrem

no mundo vegetal” – seria a expressão espacial da segregação (Zorbaugh, apud

Corrêa/1989, p. 59).

Castells (apud Corrêa, 1989 p. 60) define a Segregação Residencial como

“um processo que origina a tendência a uma organização espacial em áreas de forte

homogeneidade social interna e de forte disparidade entre elas, sendo um produto

da existência de classes sociais e tendo sua espacialização no urbano” . Ainda

Corrêa escreve que: “A segregação residencial pode ser vista como um meio de

reprodução social, e neste sentido o espaço social age como um elemento

condicionador sobre a sociedade”.

Assim, enquanto o lugar de trabalho, fábricas e escritórios, constitui-se no local

de produção, as residências e os bairros, definidos como unidades territoriais e

sociais, constituem-se no local de reprodução e deste modo a segregação

residencial significa não apenas um meio de privilégios para a classe dominante,

4 Caracteriza-se pela precariedade das condições de habitabilidade, tanto no que se refere à moradia(construções feitas com materiais perecíveis), como à oferta de infra-estruturas básicas (saneamentoe drenagem), à ocupação (morfologia e tipologia) e à propriedade da terra. (IPEA 2001).

Page 21: Complexo da Maré_ Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

21

mas também um meio de controle e de reprodução social para o futuro (Corrêa,

1989 p. 60).

A questão de como morar é concomitantemente associado à problemática da

produção da habitação – que se trata de uma mercadoria cujo valor de uso é

superado pelo valor de troca, fazendo dela uma mercadoria sujeita aos mecanismos

de mercado – e tem um caráter especial surgido na medida em que depende de

outra mercadoria especial, a terra urbana, cuja produção é cara, o que exclui boa

parte da população.

No problema de moradia o Estado intervêm de forma direta através da

construção de habitações e indiretamente na forma de financiamento aos

consumidores e às firmas construtoras, ampliando a demanda solvável e

viabilizando o processo de acumulação capitalista. Isso define a questão de “como e

onde morar” apontada por Corrêa (1989, p. 63), onde “ambos se fundem dando

origem a áreas que tendem a ser uniformes internamente em termos de renda,

padrões culturais, valores e, sobretudo, em termos dos papéis a serem cumpridos

na sociedade pelos seus habitantes”, onde esta tendência que se mostra mais

marcante nos extremos da sociedade: nos grupos mais elevados e mais baixos da

sociedade.

Se por um lado o Estado exerce o papel na ação estatal, a classe dominante

(ou algumas de suas frações) exerce, subjacente, este poder na segregação

residencial na medida em que controla o mercado de terras, a incorporação

imobiliária e a construção, direcionando seletivamente a localização dos demais

grupos sociais no espaço urbano, atuando indiretamente através do Estado.

O primeiro registro referente a uma favela no Rio deu-se no recenseamento

de 1920, que documentou uma aglomeração de 839 casas no Morro da Providência

organizada por veteranos da guerra dos Canudos. A primeira leva importante de

migrantes rurais no Brasil, nos primeiros anos da década de 1930, provocou o rápido

crescimento da população favelada. Aos novos migrantes à procura de casa vinham

somar-se os moradores da cidade que não mais podiam pagar os aluguéis nem

mesmo de cortiços, avenidas ou cabeças de porco. As favelas, nas colinas ao redor

do centro da cidade, ofereciam a dupla vantagem de não cobrarem aluguel e de

serem bem localizadas, e para muitos constituíram a melhor solução.

Com isso foi inevitável o acentuado número de favelas concentradas na

cidade do Rio de Janeiro, já a partir da década de 60, quando sua população teve

Page 22: Complexo da Maré_ Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

22

um crescimento bastante significativo, conforme se observa na Tabela V e nos

Gráficos I, II, III e IV.

As favelas, definidas e contabilizadas, começaram a ser estudadas, tornando-

se cada vez mais visíveis e tema de vários debates. Portanto apenas em meados do

século XX é que se problematiza novamente a questão da habitação popular, tendo

então como eixo principal a favela. Este padrão de habitação auto-produzido

caracterizava-se pela sua ilegalidade em termos jurídicos e sua irregularidade em

termos urbanísticos, além da precariedade e da insalubridade. Assim, quando não

pôde mais ser negada, sua existência foi considerada uma “chaga” que deveria ser

extirpada e seus moradores removidos.

Tabela V – Evolução do Crescimento da População de Favelas, daPopulação Total e do Crescimento de Favelas no Estado do Rio de

Janeiro Entre as Décadas de 1950/1991.

Ano População deFavelas (A)

População total doRio (B) A/B (%)

% do crescimentode Favela por

Década

% de crescimentoda População doRio por Década

1950 169.305 2.337.451 7.24 _____ _____

1960 337.412 3.307.163 10.20 99.29 41.49

1970 563.970 4.251.918 13.26 67.15 28.57

1980 628.170 5.093.232 12.33 11.38 19.79

1991 1.001.336 5.480.768 18.27 59.41 7.60

Fonte: http:www.ibge.gov.Br

Page 23: Complexo da Maré_ Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

23

Gráfico I – Percentual de Moradores de Favelas

Fonte: http://www.favelatemmemoria.com.br

Gráfico II – Evolução da População de Favelas no Município do Rio deJaneiro

Fonte: http://www.favelatemmemoria.com.br

Page 24: Complexo da Maré_ Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

24

Gráfico III – Evolução do Nº de Favelas no Município do Rio deJaneiro

Fonte: http://www.favelatemmemoria.com.br

Gráfico IV – Crescimento Populacional de 04 Favelas:

Fonte: http://www.favelatemmemoria

Page 25: Complexo da Maré_ Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

25

De 14 favelas em 1920 para mais de 500 no ano 2000. Nesse período, muita

coisa mudou na realidade dos morros cariocas. Hoje, o número de favelados

representa quase 20% da população total do município do Rio de Janeiro.

Algumas comunidades viraram complexos, Alemão, Jacarezinho e Maré, que

conforme o gráfico acima, ultrapassaram os 50 mil habitantes, enquanto áreas

como a Zona Oeste – antes um vazio no mapa – viraram opção de moradia barata e

hoje lideram o ranking de novas construções.

Embora não haja uma explicação unânime para a segregação social, é

evidente que a cidade formal sempre manteve um posicionamento contrário à favela,

sugerindo a formação de uma cidade à parte pela presença desses assentamentos.

A partir da década de 40, as favelas começam a ser vistas pelos moradores da

cidade formal como “aglomerados invasores” e “ocupações ilegais de terra” embora

a crítica à chamada “teoria da marginalidade” tenha buscado mostrar o equívoco dos

discursos dualistas sobre as favelas a partir da década de 70.

De qualquer forma, a visão dualista por parte da cidade formal ganhou novo

fôlego com a inclusão do narcotráfico e da violência urbana e foi dotada de

legitimidade social pela utilização freqüente pela mídia de metáforas como “cidade

partida” e “desordem urbana”. De fato, a partir da primeira metade do século 20, o

próprio Estado mudou sua forma de encarar as favelas, baseando-se em políticas de

controle e repressão sendo os aglomerados usualmente comparados a “doenças

sociais”. Por outro lado, ao mesmo tempo em que políticas de remoção das favelas

são postas em práticas, emergem demandas por parte de governo e instituições não

governamentais de novos discursos que subsidiem a política de “integração da

favela ao bairro”.

Na realidade, o distanciamento social entre a cidade formal e as favelas

continua em curva ascendente. A barreira invisível entre estas e a cidade,

materializa-se através da auto-segregação da classe média em condomínios

exclusivos e somam-se aos muros invisíveis da estigmatização e do preconceito

geradas pela associação simplista entre favelas e tráfico de drogas. Segundo Souza

(2002 p. 500), o ingrediente principal para esta “fragmentação do tecido sócio-

político-espacial” encontra-se na multiplicação de enclaves territoriais controlados

por traficantes de drogas de quem se necessita a anuência para que sejam

viabilizados quaisquer tipos de intervenção estatais.

Page 26: Complexo da Maré_ Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

26

Embora não seja prerrogativa das favelas a existência do tráfico de droga e

sua conseqüente violência, a falta de governança nessas áreas empobrecidas

encorajou o surgimento de um novo poder paralelo que desafia constantemente o

poder público oficial e espalha o terror por todo o território urbano. De fato, o

comprometimento do poder público com a cidade formal em detrimento das

populações mais carentes, resultou em assentamentos irregulares de tipologia

urbano-arquitetônica característica. A alta densidade desses assentamentos

juntamente às precárias condições de vida traduziu de forma contundente o descaso

de toda a sociedade com a população mais empobrecida. Se por um lado a cidade

formal cresceu dentro de parâmetros urbanos definidos, por outro, as favelas se

multiplicaram em um estado de completa desordem impossibilitando a integração

com o resto da urbe e perpetuando o ciclo de pobreza e exclusão.

Através de indicadores sociais pode-se considerar que algumas das

principais questões que diferenciam um bairro formal de uma favela, além da

questão da ilegalidade seja ela fundiária ou edilícia, são: a falta de infra-estrutura

urbana e serviços essenciais, o baixo valor da renda da população, a alta taxa de

desemprego, o alto índice de analfabetismo e o baixo grau de escolaridade. No

entanto, para que se possa entender melhor as características das favelas e suas

diferenças em relação à cidade formal, além dos índices socioeconômicos, deve-se

levar em consideração as relações sociais existentes dentro dessas comunidades,

seus símbolos e seu dinamismo, bem como a sua relação com a cidade formal.

É amplamente reconhecido – pelo menos na mídia especializada – que o

agravamento dos problemas urbanos associados à pobreza, relacionados

espacialmente aqueles associados à favelização e ao ímpeto da incorporação de

novas áreas nas periferias, tem-se constituído em importante desafio para o poder

público.

A política governamental do Estado em relação às favelas mudou

radicalmente na última década do século XX – anteriormente o que se pretendia era

o desfavelamento (erradicação), hoje a “urbanização e regularização de favelas”5

são consideradas importantes instrumentos para possibilitar o acesso da população

5 Ação mais complexa que a regularização de loteamentos – integração de assentamentos urbanosilegais ao conjunto da cidade legal, mediante investimentos públicos e medidas administrativas ejurídicas para promover a compatibilização da realidade física (do local), registraria (do direito depropriedade) e a administrativa (da gestão urbanística) –, pois geralmente exige investimentospúblicos para urbanização e mesmo para substituição de habitações removidas para dar lugar àsobras de urbanização.

Page 27: Complexo da Maré_ Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

27

de mais baixa renda à terra urbana. Sobre o programa de erradicação das mesmas

será melhor abordado no item 04 deste trabalho.

Sabe-se que as favelas são, atualmente, territórios em constante conflito

entre traficantes de facções rivais e destes com a polícia, e que a população, sem

ter como se defender, fica vulnerável às vontades e ações desses vários exércitos,

que dominam e impõem a sua própria lei aos moradores, os quais não tem outra

saída a não ser aprender a conviver e respeitar as regras a eles impostas, uma vez

que diferentemente de qualquer morador da cidade formal, não tem nenhum acesso

à segurança e à polícia. Essa última vê em todos os moradores da favela um

bandido em potencial, dando o mesmo tratamento a todos: a intimidação e a

repressão violenta.

Como fato social, a favela deve ser enquadrada em um processo histórico

mais generoso tendo em vista a dinâmica de seus atores: os favelados. Neste

sentido, entende-se que a única estrutura espacial urbana que atende é o quilombo.

Assim, a favela vem representando para a república o mesmo que o quilombo

representou para a ordem imperial, onde a ação do Estado se fez presente somente

através do aparelho repressivo policial. Desta maneira, o espaço favelado vem

passando por um processo contraditório de construção (busca de habitação pelos

mais pobres) e desconstrução (“necessidade” do ordenamento espacial da cidade).

Um mix de fatores como ausência do Estado na dotação infra-estrutural, sobretudo

para saúde e educação; falta de absorção desta mão-de-obra pelo mercado de

trabalho, dentre outros fatores; juntamente com pré-disposição do aparelho

repressivo fizeram da favela ‘locus’ da violência urbana nos dias de hoje.

Em se tratando de Rio de Janeiro, fica evidente que, desde sua origem, se

pensarmos em um processo, os lugares ocupados pelos mais pobres vêm

recebendo pouca atenção do poder público no que se refere ao tamanho dos

problemas sociais. Entretanto, como no passado, em sua versão anterior à

República, o quilombo, a favela recebe uma atenção especial do aparelho policial,

tendo em vista que favelas e favelados são considerados como um caso de polícia,

mas não como um problema da sociedade. “Atualmente, a favelização e a

periferização, expressões espaciais mais marcantes da reprodução da pobreza

urbana, impressionam não somente por sua magnitude, mas igualmente por sua

complexidade (Souza, 2000 p. 193).”

Page 28: Complexo da Maré_ Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

28

De acordo com Souza (2000, p. 193), “o traço mais impressionante da

favelização, da década passada para cá, fica por conta, porém, da ‘territorialização

de favelas por parte do tráfico de drogas”, onde os espaços socialmente segregados

que oferecem suporte logístico para as quadrilhas que operam no varejo nas

metrópoles não se restringem às favelas... Elas são, dentre todos os espaços

segregados, os palcos preferenciais da territorialização protagonizada por traficantes

de varejo, inexistente em bairros de classe média.

Essa territorialização ficou evidenciada na virada dos anos 70 para os anos

80 sendo um marco histórico pois conduziu a uma fragmentação que envolveu não

apenas dos ‘territórios ilegais’ – as favelas e outros espaços controlados por alguma

quadrilha de traficantes vinculada a algum ‘comando’ – mas igualmente, aqueles

espaços que não estão submetidos a qualquer ‘poder paralelo’ ao Estado.

O que pode ser observado é que quando o território, unidade de gestão, se

expande pelo espaço não conquistado cria novas formas de territorialidade que

dialeticamente provocam novas formas de desterritorialidade e dá origem a novas

territorialidades – é um ciclo contínuo. E é sobre essas (possíveis) territorialidades

que o estudo das comunidades da Maré procura identificar.

Page 29: Complexo da Maré_ Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

29

2 – A Formação do Complexo da Maré:

O modelo econômico adotado pelo país, após a Segunda Guerra Mundial,

consolidou o poder da burguesia urbano-industrial. Com a decadência da agricultura

e a forte industrialização, intensos movimentos migratórios se formaram em direção

às cidades. Os migrantes chegavam à Capital e se instalavam nos subúrbios

distantes ou nas favelas. A distância entre o local de trabalho e o domicílio

aumentou consideravelmente e a necessidade de morar perto do local de trabalho

levou a população migrante a se instalar nos terrenos não ocupados que escaparam

da especulação imobiliária pela dificuldade, ou mesmo, impossibilidade de

construção: morros, terrenos inundáveis e de propriedade duvidosa. Favelas se

propagaram tanto em zonas industriais, como residenciais.

O poder público pouco se manifestava face ao aumento do fluxo migratório,

uma vez que o aumento da mão-de-obra barata era necessário para a indústria em

crescimento e os terrenos ocupados pelas favelas eram públicos ou pouco

valorizados. Por outro lado, pelo caráter populista da política governamental, entre

1945 e 1964, as favelas passaram a ser vistas como fontes de numerosos votos.

Os anos 40 marcaram um período de mais forte proliferação de favelas no

Rio de Janeiro. Foi nesta época que o primeiro Censo oficial foi realizado. Apesar

dos números deste Censo terem sido controvertidos, ele se tornou o marco do

reconhecimento oficial pelo Estado da existência das favelas, que já faziam parte da

paisagem da cidade do Rio de Janeiro.

2.1 – Primórdios da Ocupação na Maré (1940/1960):

Conforme quadro abaixo observa-se, ao início da década de 50, a existência

de 105 favelas no Rio de Janeiro, abrigando um total de 169.305 de moradores. As

favelas concentravam-se na chamada zona suburbana (44% das favelas e 43% da

população favelada), seguida da zona sul (24% e 21% respectivamente) e da região

Centro-Tijuca (com 22% e 30%). Esse recenseamento, realizado pelo IBGE em

1970, também revelou a predominância de uma população de migrantes nas favelas

cariocas: 52% eram naturais do Estado do Rio de Janeiro (na ocasião a capital

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30

federal – a Cidade do Rio de Janeiro – constituía o Distrito Federal), Minas Gerais,

Espírito Santo e regiões do nordeste brasileiro.

Tabela VI – Evolução do Número de Favelas em Relação aosDomicílios e Habitantes da Cidade do Rio de Janeiro

ANO Nº DE FAVELAS DOMICÍLIOS HABITANTES

1950 105 44.000 169.305

1960 147 69.680 335.696

1967 230 162.741 757.696

1970 300 185.000 1.000.000Fonte: Anuário Estatístico da Guanabara, do Censo de 1970 – IBGE. Extraído de “Metrópole de 300Favelas”. Nunes, Guida. Ed. Petrópolis. 1976.

Em 1950, 36% da população brasileira viviam na área urbana, enquanto

63,8% faziam do Brasil um país predominantemente rural. Em 1991, verifica-se que

este quadro inverteu-se, drasticamente, passando o país a ter 75,2% de sua

população vivendo nos grandes centros urbanos. Esse crescimento da população

urbana no Brasil foi conseqüência de vários fatores, mas nenhum tão marcante

como o êxodo rural.

Na cidade do Rio de Janeiro, como em outras áreas urbanas do país, o fluxo

migratório agravou o problema da escassez de moradias, já comprometido com a

descontinuidade de uma política urbana e habitacional voltada para população de

baixa renda, problemática esta agravada a partir da década de 40 quando assumiu

proporções cada vez maiores, permanecendo ainda hoje como tema de um debate

político sem soluções concretas legitimadas. Mesmo assim, medidas

governamentais foram objeto de políticas públicas que visavam a proibição do

crescimento das favelas.

A vinda de migrantes nordestinos foi marcante para as áreas deste estudo.

Eles procuravam áreas pertencentes à União. Neste sentido, a área ocupada hoje

pela Maré, oferecia todas as condições para este tipo de ocupação, pois se tratava,

em boa parte, de terras devolutas e terrenos da Marinha Brasileira. Na figura abaixo

pode-se observar a antiga área de mangue, hoje ocupada pela Maré.

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Figura 01. “Maré – Época de Manguezal”. (Fonte: http://www.ceasm.org.br)

Fato fundamental para o surgimento e crescimento do Complexo da Maré foi

a construção, em 1946, da chamada “Variante Rio-Petrópolis”, que mais tarde se

tornaria a conhecida Avenida Brasil (Fig. 02).

Fig. 02 – “Obra de construção da Avenida Brasil, trecho Manguinhos, 1940”. Acervo do Arquivo Geralda Cidade. In: http://www.ceasm.org.br

Page 32: Complexo da Maré_ Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

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O projeto de construção de uma via (ver fig. 03) tinha a finalidade principal de

expandir a antiga área industrial do Rio de Janeiro – e que acabou por se tornar a

principal via de comunicação entre o centro, os bairros do subúrbio e a periferia da

cidade.

A Av. Brasil proporcionou o crescimento de um cinturão industrial às suas

margens, que somado ao isolamento dos terrenos na orla da Baía de Guanabara e à

facilidade de acesso a tais áreas, criou condições bastante favoráveis para o

surgimento das comunidades da Maré, pois em sua construção trabalharam muitos

dos primeiros moradores destas áreas – como se percebe na figura abaixo a Av.

Brasil e o viaduto de Bonsucesso em construção.

Fig. 03. “Variante Rio-Petrópolis – atual Av. Brasil – com o Instituto Oswaldo Cruz ao centro/acima”.(Foto: acervo da Casa de Oswaldo Cruz). In: http://www.ceasm.org.br

E segue adiante um pequeno recorte das comunidades da Maré...

As comunidades da área hoje conhecida como Complexo da Maré surgiram a

partir das décadas de 30/40, sendo a mais antiga a que se originou no Morro do

Timbáu, região já ocupada desde o período colonial, por se localizar, ali, o antigo

Porto de Inhaúma. Posteriormente, a área foi ocupada por portugueses e italianos

que ali estabeleceram suas chácaras e por pescadores que fundaram uma colônia

de pesca. O nome da comunidade passa a ser o da região, que era conhecida como

thybau, do tupi-guarani, "entre as águas", o que denota terem sido os índios os

primeiros habitantes do lugar. Esse local “é uma formação típica de favelas em

Page 33: Complexo da Maré_ Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

33

encostas mas com uma grande diferença em comparação com outras favelas de

morro; o Timbáu apresenta uma densidade habitacional extremamente baixa”

(Jacques, p. 25). A ocupação da comunidade propriamente dita se dá a partir da

chegada da primeira moradora da comunidade, D. Orosina, que num passeio de

final de semana se apaixona pelo lugar, e recolhendo a madeira que a maré trazia,

demarca uma área e constrói o primeiro barraco, com a ajuda de seu marido.

Este primeiro casal vinha do centro do Rio, onde viviam numa casa de

cômodos, atrás da Estação da Central do Brasil. A mulher tinha acabado de chegar

do interior de Minas Gerais e não conseguia viver sufocada no pequeno cômodo,

"com a chuva caindo em goteiras". Ela escolheu um ponto seco, conveniente, numa

pequena elevação próxima ao mar e levantou seu pequeno barraco com os

materiais que a maré trazia de graça. Mais tarde, ela se dedicou a plantar árvores

frutíferas e uma horta e a cercar seu "território". Ela conseguiu fazer tudo sem que

qualquer pessoa a perturbasse. Mesmo assim, o casal estava bastante assustado,

percebendo que eles estavam ocupando algo, sem autorização, que não lhes

pertencia. Sobre o processo de formação das comunidades da Maré, Jacques

(2002, p. 22) argumenta que:

“As comunidades que formam o complexo têm características e processos espaciaisbem distintos, que vão do mais planejado ao mais espontâneo, do mais regular aomais irregular, do mais formal ao mais informal, do mais projetado ao mais livre. Asdiferentes entre as formas, que hoje constituem uma diversidade muito rica, sederam por vários fatores: a história de cada ocupação, as características do sítio, asquestões de propriedade, as origens da população, a organização da comunidade,os contextos políticos e sociais. Uma grande gama de formas espaciais pode serencontradas na Maré... As diferentes comunidades são tão distintas como osdiferentes bairros de uma cidade formal e chegam a ter identidades próprias, queconstituem, todas juntas, a cultura multifacetada da Maré”.

O 1º Regimento de Carros de Combate (RCC) instalou-se defronte ao Morro

do Timbáu, e sob a justificativa de impedir a ocupação de terrenos que lhe

pertenciam (o que mais tarde se vai verificar não ser verdade) passou a exercer um

controle sistemático sobre a comunidade com a derrubada de barracos, o controle

da entrada de moradores através da colocação de cercas de arame farpado e a

cobrança, por parte, de alguns militares de ‘taxas de ocupação’.

A história da comunidade do Timbáu vai ser, na década de 50, marcada pela

resistência ao exército que reclamava a propriedade da área e que vai tentar impedir

por todos os meios, inclusive pela violência, a sua ocupação. Por intervenção de D.

Page 34: Complexo da Maré_ Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

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Orosina, que escreve uma carta denunciando tal situação ao Presidente Getúlio

Vargas, que a recebe no Palácio e lhe responde dando garantias contra os agentes

militares, a comunidade passou a crescer e se organizar tendo, em 1954, fundado a

terceira associação de favelas do Rio de Janeiro.

Enquanto a comunidade do Timbáu apresentou um lento crescimento,

permanecendo na década de 40 com poucos habitantes surgia, ao final deste

período (1947), a primeira grande concentração humana que foi a Baixa do

Sapateiro que na época, teve sua formação a partir de um pequeno grupo de

barracos construídos sobre palafitas. Não há consenso sobre a origem do nome.

A ocupação por moradias, inicialmente, ocorreu a partir dos limites do

“loteamento de Bonsucesso”, onde ainda se podem notar muitas casas do início do

século XX. Nessa época se tem notícias dos primeiros barracos:

“Há dois anos moradores iniciaram a construção de barracões nos terrenos daMarinha à margem da Avenida Brasil em Bonsucesso. Os terrenos formavam umcharco que, à medida que iam levantando as casas, iam aterrando. Se localizam alihoje cerca de 800 barracos. Já havia na parte alta da Rua Jerusalém outro grupo deresidências. A Prefeitura mandou destruir tudo”.(Fonte: Jornal ‘A Noite’, 24/11/1947).

“Cerca de 2000 pessoas ficarão desabrigadas (...) Prefeitura ameaça demolir 800barracões. Há quase dois anos construídos por operários, em terrenos existentes nolugar denominado ‘Favelinha do Mangue de Bonsucesso’, no fim da Rua NovaJerusalém – Comissão faz veemente apelo ao prefeito Ângelo Mendes deMoraes”.(Fonte: Jornal ‘O Globo’, 26/11/1947).

Estes artigos publicados em diferentes jornais da cidade dão notícia, já em

1947, da existência de uma ocupação com grande número de barracos, no final da

Rua Jerusalém, hoje principal acesso à comunidade da Baixa do Sapateiro e dessa

forma, pode-se dizer que a localidade é uma das mais antigas comunidades da

Maré. Em 1957 surge a “União de Defesa e Melhoramentos do Parque Proletário da

Baixa do Sapateiro”, que somente foi registrada em 1959, sendo uma das primeiras

associações de favelas do Rio de Janeiro.

Em 1944, após pedido do ministro Gustavo Capanema ao Presidente da

República decide-se pelo aterramento do arquipélago das ilhas do Fundão para

tornar realidade o sonho de uma universidade neste local, o que provocou diversas

alterações no quadro social da região, pois muitos dos que trabalharam na sua

construção vieram a se instalar na Maré, devido à proximidade, o que provocou um

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35

incremento na ocupação e crescimento das comunidades – principalmente no Morro

Timbáu e na Baixa do Sapateiro.

“É interessante notar que na Maré, ao contrário da maioria das favelas de morro, osterrenos mais valorizados eram os mais altos, por serem os mais secos. Na partemais baixa ficava a população mais pobre, geralmente em palafitas nas áreasinundáveis. Foi só com o ‘Projeto Rio’ que as palafitas desapareceramcompletamente... Mesmo que hoje já não existam palafitas nem áreas inundáveis nacomunidade, em sua configuração urbana, e principalmente na irregularidade dotecido, podemos ainda notar sinais desse passado próximo de precariedade einstabilidade. A Baixa do Sapateiro junto com parte do Morro do Timbáu e do ParqueMaré são as áreas onde as características típicas das favelas cariocas – arquiteturasfragmentária, tecido urbano labiríntico, desenvolvimento territorial orgânico – seapresentam de forma mais evidente dentro do Complexo da Maré” (Jacques 2002 p.32-33).

Em 1950, surgem as primeiras moradias do Parque Maré (vide fig. 04) como

um prolongamento da ocupação ocorrida na Baixa do Sapateiro e essa área tornou-

se bastante atrativa às populações que chegavam com o fluxo migratório,

principalmente da Região Nordeste. A área que ia sendo ocupada pelos moradores

do Parque da Maré (1953 já consolidado) era dominada pela lama, por vegetação de

mangue e pelo movimento das águas, tendo a partir da década de 60 ocorrido uma

grande expansão da ocupação em direção à Baía da Guanabara, sendo o Parque

Maré, nesta época, predominantemente dominado pelas palafitas, conforme as

figuras abaixo:

Fig. 04 – “Parque Maré – Década de 50”. Fonte: http://www.favelatemmemoria.com.br

Page 36: Complexo da Maré_ Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

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Fig. 05 – “Maré em 1960”. Fonte: http://www.favelatemmemoria.com.br

Não havia qualquer infra-estrutura, a luz era coisa rara nas casas,

inicialmente puxada, através dos "gatos" e posteriormente por meio de cabines onde

havia um medidor da LIGHT e a luz era revendida às casas. Posteriormente, por

medida do próprio governo, foram criadas as Comissões de Luz. A água chegava

através de pequenas bicas, puxadas clandestinamente dos ramais, onde se

formavam grandes filas. Muitos apanhavam água do outro lado da Avenida Brasil,

que pela distância exigia meios criativos para o transporte de uma maior quantidade.

Daí surgiram os chamados "rola-rola" ou "água-de-rôla": um barril de madeira,

envolto em pneus, ou com madeira emborrachada, puxado por uma alça de ferro.

Comuns eram os atropelamentos na "variante" (atual avenida Brasil) e face as

dificuldades, muitos faziam um verdadeiro comércio com a água.

Enquanto isso acontecia as crianças não tinham local apropriado para

brincarem, pois eram escasso os locais de entretenimento – somente nas escolas ou

quando saíam com os pais –, sendo assim, elas brincavam em ambientes

inadequados como, por exemplo, nas pontes sobre a maré negra e correndo sérios

riscos à sua integridade física (como retratada na fig. 07).

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Fig. 06 – “Armazenamento caseiro d’água”. Fonte: http://www.favelatemmemoria.com.br

O esgoto, muito precário foi feito pelos próprios moradores, e era despejado

por ligações clandestinas nas galerias construídas pelo Governo Carlos Lacerda na

Rua Flávia Farnese – no Parque Maré. Também na década de 60 é fundada a

Associação de Moradores do Parque Maré que teve importante papel na

consolidação da comunidade, principalmente na época de instituição do Projeto-Rio.

Fig. 07 – “Crianças sobre as pontes da maré”. Fonte: http://www.favelatemmemoria.com.br

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A história do “Parque Rubens Vaz” começa no ano de 1951, quando surgem

no local os primeiros barracos. A área, nesta época, era conhecida como areal,

devido à grande quantidade de areia espalhada no local, por ocasião da drenagem e

canalização do Canal da Portuária. Quando uma pessoa chegava à área para fixar

residência, já era avisada de que não deveria construir à margem da avenida Brasil,

porque esta seria futuramente alargada, como de fato foi. Sendo assim, ninguém

construiu sua habitação a menos de 40 metros da variante Rio-Petrópolis.

Os barracos eram construídos, inicialmente, com um cômodo só e, de acordo

com as possibilidades, os moradores iam aumentando o número de cômodos. As

construções eram rudimentares e sem nenhuma tecnologia. Segundo os moradores,

era proibida a construção em alvenaria sob pena de demolição por parte da polícia.

Em 1965, durante o Governo Carlos Lacerda, a população da área sente

necessidade de encontrar um nome oficial para o lugar. Escolhem o nome Rubens

Vaz em homenagem ao major assassinado em atentado na Rua Toneleros, em

Copacabana. A Associação de moradores é então registrada com o nome de

Associação de Moradores do Parque Major Rubens Vaz.6

Fig. 08. “Construção de palafita na Maré em 06/09/1971”. Fonte: http://www.favelatemmemoria.com.br

6 História dos Bairros da Maré, coordenado por Lilian Fessler Vaz, UFRJ, 1994. Retirado da internetem http:// www.ceasm.gov.br em 05/10/05.

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O advogado Margarino Torres – o mesmo que defendeu a população e seu

direito de permanecerem na área hoje conhecida como Parque Major Rubens Vaz –

ligado ao PCB e que tinha um escritório nesta localidade, deu todas as coordenadas

para a estruturação da comunidade Parque União, em 1959, e esta localidade foi

uma das áreas com um certo “planejamento de ocupação”, pois ele demarcou áreas

para a permanência dessa população. Segundo Vaz (1994), “As casas eram

construídas primeiramente em madeira. Internamente eles iam levantando as

paredes em alvenaria, isso tudo feito às escondidas, pois, segundo a população, o

governo proibia a construção em alvenaria. A madeira só era retirada, quando a

casa já estava praticamente pronta”. Margarino e sua equipe lideraram e

administraram a área até 1961.

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40

2.2 – Políticas Públicas e Seus Reflexos na Segregação do Espaço (1960/80):

Nova Holanda foi concebida como um Centro de Habitação Provisória (CHP)

que funcionaria como um local de triagem, dentro da política de remoções do

governo, que visava muito mais retirar núcleos favelados de áreas nobres da cidade,

do que resolver o problema habitacional. A tarefa de controlar o processo de

transferência dos moradores de favelas a serem erradicadas ficou a cargo da

Fundação Leão XIII, que foi incorporada à Secretaria de Serviço Social da Prefeitura

da Cidade do Rio de Janeiro. Para uma melhor análise dessa situação é preciso

voltar ao passado e conhecer melhor o “Programa de Erradicação de Favelas”, que

deu origem aos CHPs – como a Nova Holanda.

“No CHP os moradores removidos passariam por um processo de preparação paramorarem em locais urbanizados, tendo noções de higiene e educação, além decuidados com a nova moradia. No período de 1962-63 foi construído o primeirosetor, que era formado por 981 (conforme quadro abaixo) casas de madeiraconstruídas em lotes 5 X 10 mts e o segundo setor foi construído no último ano degoverno de Lacerda, onde se construíram 228 vagões de madeira divididos em 39unidades... O que era transitório, acabou por se tornar definitivo, e até hoje vivem nacomunidade, muitas famílias que foram para Nova Holanda aguardar sua remoção

“A comunidade Nova Holanda (1962) teveum processo de ocupação completamentediferente, para não dizer oposto, ao das demaisformações que vimos até agora. Sua origem nãofoi um invasão espontânea, nem mesmo umainvasão planejada, como ocorreu no ParqueUnião. A comunidade de Nova Holanda foiinteiramente planejada e construída pelo poderpúblico na década de 60, no governo CarlosLacerda, sobre um imenso aterro realizado aolado do Parque Maré. As dimensões do aterrorealizado impressionaram tanto que influenciaramaté a escolha do nome da comunidade, umahomenagem à Holanda, o país europeu quaseinteiramente construído abaixo do nível do marsobre aterros e diques. Outra semelhança são asroldanas, que podemos encontrar em algumascasas e que indicam que as mudanças eramfeitas por cabos externos, exatamente comoocorre em cidades holandesas, principalmenteAmsterdã” (Fonte:http://www.ceasm.org.br).

Page 41: Complexo da Maré_ Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

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para um novo conjunto da cidade, o que nunca chegou a acontecer. Com adegradação dos serviços de água e esgoto e a chegada em 1971 dos removidos daFavela Macedo Sobrinho, a situação do CHP se agrava e dessa forma, osmoradores de Nova Holanda iam se integrando, pelos problemas comuns, cada vezmais aos demais moradores da Maré” (Fonte: http://www.ceasm.org.br).

Em 1956, foi criado o SERFHA – Serviços Especial de Recuperação das

Favelas e Habitações Anti-Higiênicas – que sofreu uma reestruturação em 1960,

tornando-se o primeiro organismo oficial voltado mais precisamente para

“urbanização de favelas”.

Na década de 60, inaugura-se uma nova forma de tratamento das favelas

com o lançamento do “Programa de Remoção das Favelas”, cujo objetivo era de

“eliminar as favelas e transferir suas populações para outros locais, apoiados pela

administração de Lacerda (1960-1965), criando assim a COHAB-GB (1962), órgão

estadual.

“Durante o governo Lacerda (1961-1965) foram adotadas diversas medidas a fim dedar um aspecto moderno à cidade. Tal política baseava-se na realização de obrassuntuosas como a construção de viadutos, túneis e parques e jardins na zona sul dacidade. Ao mesmo tempo, a população mais pobre sofria com uma política deerradicação de favelas e remoção de sua população para áreas distantes edesvalorizadas da cidade e nesse contexto surge o projeto do ‘cais de saneamento’,que visava construir uma cais de pedra por toda a extensão da orla da baía do Cajúao Rio Meriti, seguindo à Avenida Brasil, e portanto, o cais de saneamento visavaatingir a dois problemas que vinham preocupando as autoridades na época: apoluição da Baía de Guanabara e a saturação da Avenida Brasil”. (Fonte: Ceasm).

Com o aumento do número de habitantes nas favelas do Rio de Janeiro, as

associações de moradores se mobilizavam – tanto no nível interno, quanto no nível

de suas articulações externas, com grupos de apoio tais como a igreja, através da

Pastoral das Favelas e a Federação das Associações de Favelas (antiga FAFEG e

atual FAFERJ). Em dado momento da história (1969) esta repressão [ao tentar

liderar os moradores da primeira favela atingida pela ação da CHISAM7 –

Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande

Rio (1968-1973)], junto a eles a CODEFAM (Comissão de Defesa das Favelas da

Maré) que conseguiu criar um espaço de participação na elaboração definitiva do

“Projeto Rio” [projeto esse que veio a beneficiar os moradores da maré na década

7 O programa da CHISAM se iniciou com a remoção das favelas situadas em torno da Lagoa Rodrigode Freitas. Valladares (1980, p. 30).

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de 80] foram órgãos fundamentais na luta dos favelados pela posse definitiva de seu

barraco.

Nesta época de trabalho da CHISAM (1968-1973) se assistiu à maior

operação anti-favela que a cidade jamais tinha conhecido. Os órgãos

governamentais então envolvidos eram o BNH (1967) – Banco Nacional de

Habitação, como financiador – , a própria CHISAM, como coordenadora do

programa de remoção, a COHAB-GB – Companhia de Habitação Popular, como

construtora e comercializadora das unidades habitacionais e a Secretaria de

Serviços Sociais, como responsável pela ação social junto às populações atingidas.

Com o fim da CHISAM o órgão que ficou encarregado de dirigir as esporádicas

remoções que continuavam a ocorrer foi a Fundação Leão XIII – que surgiu em 1946

a partir de entendimento entre a Arquidiocese e a Prefeitura do Rio de Janeiro, que

tinha como meta a “recuperação das favelas”. A COHAB-GB e a Secretaria de

Serviço Social desapareceram com a fusão dos estados da Guanabara e do Rio de

Janeiro e foram substituídas respectivamente pela CEHAB-RJ e pela Coordenadoria

do Bem-Estar Social. Enquanto a COHAB-GB, organismo estadual, desenvolvia sua

ação no sentido da remoção das favelas, a administração de Negrão de Lima criava,

em 1968, a CODESCO – Companhia de Desenvolvimento de Comunidade – a partir

de uma alternativa oposta à remoção: a “Urbanização”. (ver Tabelas VII e VIII).

Tabela VII – Conjuntos Habitacionais da COHAB-GB porLocalização, Ano de Ocupação, Nº e Tipos de Unidades

Nome doConj.

Bairro Ano deOcup.

Triagem Casa Apartº Totalpor

Conj.

NovaHolanda

Bonsucesso 1963 981 xxxx xxxx 981

Cidadede Deus

Jacarepaguá 1966 1.193 3.865 1.600 6.658

MiguelGustavo

Senador Camará 1972 2.466 xxxx xxxx 2.466

Total xxxx xxxx 4.640 3.865 1.600 10.105

(Fonte: CEHAB-RJ – Extraído de Valladares (1980, p. 40) – Adaptado.

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“Foram tais problemas básicos que serviram para justificar a elaboração de pelomenos quatro projetos de intervenção na região. Como as favelas ali existentes eramresponsabilizadas por grande parte da poluição da baía, e por outro lado, ocupavamparte da área por onde deveria passar a nova via paralela à Avenida Brasil, osprojetos previam a remoção de grande parte da população residente no local” (Fonte:http://www.ceasm.org.br).

Tabela VIII – Remoções Realizadas na Guanabara, no Período de1962-1974.

Administração ePeríodos das

Remoções

Total de FavelasAtingidas

Total de BarracosRemovidos

Total deHabitantesRemovidos

Calos Lacerda (1962-1965) 27 8.078 41.958

Negrão de Lima (66-67/68-71)

66-67 (s/r) 68-71(33)

66-67 (s/r) 68-71(12.782) 6.685/63.910

Chagas Freitas (1971-1974) 20 5.333 26.665

Total 80 26.193 139.218Fonte: COHAB-GB – Extraído de Valladares (1980, p. 39) – Adaptado.

Em decorrência da renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, grande

parceiro na realização do Projeto com o Governo do Distrito Federal, o “Cais de

Saneamento” se resumiu apenas a estudos preliminares, tendo sido retomado

apenas em 1966, pela Superintendência de Urbanização e Saneamento (SURSAM),

do então Estado da Guanabara.

Em janeiro de 1969, houve no Rio de Janeiro uma reunião com membros

relacionados ao assunto favela onde foi simulado um jogo em que se traçava o

futuro das favelas para os próximos dez anos. No desenrolar da reunião, três pontos

de vista emergiram, sintetizando tanto a opinião erudita como as idéias populares de

como, as favelas eram consideradas: “Aglomerações patológicas”, “Comunidades

em busca de superação” ou como “Uma calamidade inevitável”.

Esse período marca, também, a primeira grande intervenção do Governo

Federal na área: o “Projeto Rio”, que previa o aterro das regiões alagadas e a

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transferência dos moradores das palafitas para construções pré-fabricadas. São hoje

as comunidades da Vila do João, Vila do Pinheiro, Conjunto Pinheiro e Conjunto

Esperança, localizados próximo ao “Parque Ecológico da Ilha do Pinheiro”, na Maré.

Dos projetos que antecederam ao “Projeto Rio”, o mais ambicioso foi aquele

elaborado no final do primeiro mandato do Governador Chagas Freitas (1971-1974)

onde a área ocupada pelas favelas foi declarada “non aedificandi”, como forma de

conter o avanço das favelas sobre aterros clandestinos. (Ibidem).

“Em maio de 1979, no momento em que Freitas exercia o seu segundo mandato(1979-82), o projeto foi novamente apresentado, cedendo lugar ao Projeto Rioanunciado um mês depois, e por este motivo e pelas semelhanças entre ambos osprojetos, o Governador, na época, reivindicou a paternidade do Projeto Rio, que foianunciado pelo Governo Federal, via o Ministério do Interior (DNOS e BNH), atravésdo então ministro Mário Andreazza”. (Fonte: http://www.ceasm.org.com.br).

E, em 08/06/1979, o próprio ministro anuncia o mais audacioso projeto com a

finalidade de sanear a orla da Baía de Guanabara e que na verdade, se baseava

nos projetos anteriores apresentados pelo Governo Chagas Freitas que não foram

implementados (Ibidem).

O “Projeto Rio” previa uma intervenção desde a Ponta do Caju, até os rios

Sarapuí e Meriti, em Duque de Caxias, num trecho de 27 quilômetros, e apresentava

como objetivos centrais a criação de espaços para abrigar populações de baixa

renda e criação de condições para ambientação ecológica e paisagística do trecho

mais poluído da Baía de Guanabara. A execução do projeto coube ao Banco

Nacional de Habitação (BNH), como órgão financiador, e ao Departamento Nacional

de Obras e Saneamento, incumbido de fazer os aterros e macrodrenagem. À

FUNDREM, órgão estadual, coube o encargo das pesquisas de levantamento

cadastral.

Segundo o levantamento inicial, um terço dos habitantes da área da Maré

morava em palafitas, sendo o conjunto formado, até então, por seis favelas: Timbáu,

Baixa do Sapateiro, Parque Maré, Nova Holanda, Parque Rubens Vaz e Parque

União, e para execução desse programa, o BNH criou o “PROMORAR” – Programa

de Erradicação da Sub-habitação – que seria o responsável pelo processo de

construção de 9.531 unidades habitacionais para o assentamento dos moradores

das palafitas. O projeto previa, ainda, o saneamento do trecho da Baía da

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45

Guanabara que se estendia do Caju até a Praia de Ramos, considerado o mais

poluído, mediante a construção de um aterro de 2.300 hectares.

Várias vezes surgiam desconfianças por parte dos moradores devido aos

atrasos nas obras e ao não cumprimento dos cronogramas e, neste sentido, as

associações de moradores tiveram um papel de suma importância ao criarem a

CODEFAM – Comissão de Defesas das Favelas da Maré – onde exerceram forte

pressão para que as promessas de campanha fossem cumpridas.

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46

2.3 – Reconhecimento de um Bairro Popular e as Intervenções Públicas

(1980/2005):

Até o início dos anos de 1980, a Maré das palafitas era tida como símbolo da

miséria nacional como retrata a música “Alagados” (1984) da Banda Paralamas do

Sucesso, que estourou nas rádios naquele momento:

Alagados

(Música: Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João BaroneLetra: Herbert Vianna)

Todo dia

O sol da manhã vem e lhes desafia

Traz do sonho pro mundo que já não queria

Palafitas, trapiches, farrapos

Filhos da mesma agonia

E a cidade

Que tem braços abertos no cartão-postal

Com os punhos fechados da vida real

Lhes nega oportunidades

Mostra a face dura do mal

Alagados, Trenchtown, Favela da Maré

A esperança não vem do mar

Nem das antenas de Tevê

A arte de viver da fé

Só não se sabe fé em quê

Os primeiros conjuntos habitacionais construídos na Maré surgiram na

década de 1980. A Vila do João (1982) era vista como uma esperança de vida para

os moradores das palafitas que após cadastro no programa Promorar, receberam

suas casas. A Vila do João, na época de sua inauguração, foi apelidada pela

população de “Malvinas” e de “Inferno Colorido”, sendo o primeiro nome uma alusão

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à Guerra das Malvinas – entre Argentina e Inglaterra –, devido aos intensos tiroteios

e, o segundo, por causa do sortido colorido e calor das casas recém construídas,

apelidos esses que caíram no desuso (Fonte: http://www.ceasm.org.br).

A Vila do Pinheiro (1983) nasce na região remanescente da Bela “Ilha do

Pinheiro”, na época de aterramento das sete ilhas onde atualmente está erguida a

Universidade Federal do Rio de Janeiro (a UFRJ), a Ilha do Pinheiro foi excluída do

projeto, mas acabou sendo anexada ao continente nos aterros promovidos pelo

Projeto Rio. Na época, a ilha comportava um centro de pesquisa com macacos da

espécie Rhesus da Fundação Fiocruz e, neste período, foi retomada pela União para

fins de aterramento e construção de Unidades Habitacionais. O que restou da ilha

virou um pequeno parque ecológico. Nos terrenos da Vila dos Pinheiros foi erguido

um conjunto de prédio chamado de Conjunto Pinheiros (1989) e um outro conjunto

de casas de nome Salsa e Merengue (2000).

“Em frente ao Conjunto Pinheiros foi construído, já na década de 1990, o ConjuntoBento Ribeiro Dantas, mais conhecido como ‘Fogo Cruzado’, por ter estado pormuito tempo próximo da ‘linha de tiro’ entre as facções criminosas rivais...atualmente, percebe-se no conjunto um processo contínuo de favelização e atémesmo de verticalização. Os moradores desse conjunto foram transferidos de outrasfavelas consideradas de risco, através do ‘Programa Morar Sem Risco’, ou seja,favelas que não poderiam ser urbanizadas pelo programa municipal de urbanizaçãosistemática de favelas criado em 1994 – o “Favela Bairro”. Tratava-se basicamentedas ditas “favelas de Rua”, que se situavam na beira de avenidas, embaixo deviadutos ou ainda na margem de rios urbanos; ou ainda de áreas de risco dasfavelas que estavam sendo “urbanizadas” pelo Favela-Bairro. O novo “modelo” oupadrão construtivo do conjunto foi repetido em outras comunidades carentes dacidade, inclusive na própria Maré, com a construção do Conjunto Nova Maré em umaterro próximo à Baixa, decorrente da construção da Linha Vermelha, como citaJacques”. (2002, p. 47-48).

A identificação da Maré como um bairro popular ocorre principalmente pela

criação em 15/08/1988 da XXXª Região Administrativa (ver figura 09 e 10) – a

primeira de favelas da cidade através do Decreto de 24/01/1994 – como um marco

no reconhecimento das novas características da Maré, que vai se consolidando

como um complexo de bairros populares. A figura 11 mostra a delimitação territorial

do Complexo da Maré nos dias de hoje (e assim se observa a evolução urbana

ocorrida na Maré, conforme apresentada no Anexo IV).

Em 21/04/1992, é inaugurado um antigo projeto – elaborado na época de

Carlos Lacerda passando pelos governos de Chagas Freitas e por Leonel Brizola – a

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Linha Vermelha. Construída sob a alegação de promover o desafogo no trânsito da

saturada Avenida Brasil, tornou-se na verdade, uma via de elite que favorece o

trânsito de carros particulares, tendo promovido forte impacto, uma espécie de ‘tiro

de misericórdia’, no que sobrou da Baía de Guanabara.

Em 1996, a Prefeitura do Rio de Janeiro elege a Maré como uma nova área

de assentamentos, face a sua política de remoção de moradores de áreas

consideradas de risco em toda a cidade e tendo em vista o grande número de

grandes áreas remanescentes do Projeto Rio que não haviam sido utilizadas. A

Prefeitura, na gestão do Prefeito César Maia, adquire tais áreas da Caixa Econômica

Federal e inicia a construção de novas casas, nos molde do Conjunto Bento Ribeiro

Dantas (1992), surgindo o Conjunto Nova Maré (1996).

Outra via de transporte importante, criada na região, foi a Linha Amarela em

24/11/1997. Sua construção tornou-se realidade pela utilização do modelo de

concessão de serviços públicos, sendo a primeira e, até hoje, a única concessão

rodoviária municipal do país. Uma solução pioneira de uma grande parceria

envolvendo enormes desafios e que beneficiou, de um certo modo, a população da

Maré no intuito de encurtar a distância entre a Maré e a Barra da Tijuca, local de

trabalho de boa parte dessa população.

Em 1998, a Prefeitura, com base numa idéia inicialmente proposta pela União

das Associações de Moradores do Bairro Maré (UNIMAR), inicia no Parque Burle

Marx, área verde contígua à Linha Vermelha – as obras da Vila Olímpica da Maré,

que viria a ser um dos mais importantes agentes sociais presentes na Maré. Sem

dúvida, a Vila Olímpica da Maré (1999) atende a mais de 8.000 alunos em seus mais

diversos projetos educacionais e em 23 modalidades esportivas. Ela foi criada em

parceria com a iniciativa privada e em convênio com a gestora UEVOM (União

Esportiva da Vila Olímpica da Maré).

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Fig. 09 – “Localização da XXXª R.A. da Maré”. Fonte: http://www.armazemdedados.com.br

Fig. 10 – “Área de atuação da XXXª R.A. da Maré”. Fonte: http://www.armazemdedados.com.br

O desenho territorial da Maré encontra-se atualmente rearranjado como

observado na ortofoto abaixo:

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Fig. 11 – “Desenho territorial da Maré nos dias de hoje”. Fonte: http://www.armazemdedados.com.br

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3. Os Territórios da Maré e Suas Particularidades:

3.1 – Os atores sociais e suas atuações na Maré: as territorialidades em movimento:

Neste capítulo será descrita a atuação dos atores sociais envolvidos nas

possíveis territorialidades encontradas na Maré: a Ong CEASM8, as Associações de

Moradores, a Igreja, o Poder Público (a Polícia), a Vila Olímpica da Maré (ligada à

Prefeitura da cidade) e o próprio tráfico como ator circunstancial de transformação

do espaço segregado, responsável principal das territorialidades em movimento.

O texto está fundamentado nas informações obtidas através de uma

entrevista concedida pelo Srº Lourenço César – um dos diretores da ong CEASM,

com sede nas comunidades do Morro do Timbáu e da Nova Holanda, e morador há

mais de 30 anos da Maré. Seu testemunho, somado ao conhecimento adquirido pela

convivência cotidiana com o lugar, permite traçar um perfil das relações e conflitos

decorrentes do jogo de interesses entre os atores envolvidos.

A respeito da ong CEASM:

É inegável a atuação positiva das ações realizadas por esta instituição nas

comunidades da Maré, principalmente, no tocante às práticas sociais que envolvem,

de um lado, profissionais capacitados nas mais diversas áreas do planejamento

educacional e, do outro, o jovem – presente no âmago da população interessada por

novos conhecimentos – que representa o desejo cada vez maior pelo saber e pelo

discernimento do aprendizado que no futuro, lhe será de grande valia.

Assim, se inicia essa entrevista com o discurso real de um diretor de uma

importante organização educacional e, acima de tudo, um morador que percebe, a

cada dia que passa, a realidade de um imenso complexo de favelas que se

territorializa, desterritorializa para mais adiante voltar a re-territorializar-se, em um

verdadeiro círculo vicioso. Suas visões a respeito da ong são as seguintes:

8 O Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré – CEASM – é uma associação civil, sem finslucrativos, criada em 15 de agosto de 1997 que atua no conjunto de comunidades populares da Maré.O Centro foi fundado e é dirigido por moradores e ex-moradores locais que, em sua grande maioria,conseguiram chegar à universidade. Os projetos desenvolvidos pelo CEASM visam superar ascondições de pobreza e exclusão existentes na Maré, apontado como o terceiro bairro de pior Índicede Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade (Censo 2000).

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“A proposta do CEASM é de uma atuação na área política, através da educação, dacultura e da comunicação. Essas três linhas serão norteadoras de uma intervençãona área da Maré a médio e longo prazos”.

“Foi sempre passado pelos fundadores do CEASM que a idéia era de que a entidadepudesse aos poucos se libertar dessa função – que seria do Estado – e estarocupando um papel cada vez mais político e mobilizador”.

“A prática do cotidiano foi solapando um projeto político de futuro que atualmenteestá em discussão por aqui: ‘O que a gente está fazendo’? e ‘O que pretendemosfazer’? Essa seria a avaliação do que estamos concretizando no nosso dia a dia.”

“As ongs fazem, sim, o trabalho que seria próprio do Estado. Elas poderiam serclassificadas como ‘Potencializadoras de Movimentos Sociais’. Há a dificuldade dosmovimentos sociais em mobilizar a mídia, e neste sentido, surge a ong com opropósito de colaborar; exemplo disso foi no Fórum Social Mundial em que apresença de várias ongs contribui para que as classes menos favorecidasparticipassem neste evento – antes marcados pela presença somente da classemédia bancada pelo Estado e pelas Universidades”.

Neste sentido as ongs, têm papel fundamental no processo de estruturação

social do lugar, embora deixe de cumprir seus objetivos seja pela necessidade de

estar aliada aos interesses do ‘financiador’, que pode não concordar com a forma de

atuação, ou pelas demandas do próprio cotidiano de estar atrás de recursos e

financiamentos, para a manutenção do espaço da entidade. Continuando, Lourenço

destaca que:

“Aqui dentro do CEASM eu puxo muito para essas questões como, por exemplo, acriação da U.A.U. (União de Alunos Universitários) que surgiu com a finalidade demobilizar universitários de favelas; a Rede Maré Jovem – rede de jovens quecontribui com o debate de vários temas criando mobilizações nas ruas – e o FórumMaré que já ocorre há um ano e que conta com a participação de várias instituições,líderes comunitários etc.”.

Na realidade, ocorre, também, a presença de movimentos sociais externos à

Maré, que, de forma geral, atingem as comunidades do complexo, como o

Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o MST, que se coloca sempre à

disposição das necessidades do CEASM, no sentido de somarem forças

potencializadoras, embora, muitas vezes, a relação dos atores sociais na Maré

acabe por inibir os efeitos dessa potencialidade, como afirma Lourenço:

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“A incapacidade nossa de não conseguirmos mobilizar uma determinada comunidadeem um evento participativo de uma outra devido à questão da ‘fronteira’ causadapelo tráfico de drogas, faz com que essa mobilização seja fragilizada, ou seja, nemtodo mundo está apto ou com garantias de vida para se fazer presente em outracomunidade num ato público, por exemplo. Uma ação que fazemos aqui no CEASM(Morro do Timbáu), que se faz necessária a essas pessoas, é impedida, através dotráfico, de que moradores de outra comunidade possam assistir”.

As políticas de mobilização realizadas pela ong CEASM é assim destacada por

Lourenço quando ele afirma que:

“As políticas de mobilização na Maré são realizadas nas dezesseis comunidades oque causa um grande desgaste de várias ordens, ocorre que em cada reunião domovimento surgem grupos distintos participando e isto é um fator que temprejudicado em muito as nossas ações. Outra dificuldade é que o público alvo dascomunidades trabalha e estuda e o tempo disponível é limitado, muito reduzido, eque as vezes inviabiliza os questionamentos sobre as ‘Utopias Coletivas’ que exigecerta mobilização e uma disponibilidade de tempo muito grande e um arcabouçofinanceiro-familiar que o impossibilita a uma liberdade para estar realizando suasações, sendo isso mais um fator negativo”.

Recentemente um artigo vinculado num jornal de grande circulação na cidade

promoveu um reboliço nas classes menos favorecidas da Maré, pois colocava em

pauta a discussão sobre a remoção de favelas, como cita nosso entrevistado:

“A questão da polícia e a relação com o Estado e a mídia que, ao mesmo tempo quecobra do Estado uma ação mais efetiva, inibe por parte do Estado, uma ação maiscidadã; Um exemplo disso foi uma matéria vinculada no jornal ‘O Globo’ intitulada‘Ilegal e daí?’ que é uma campanha em relação às favelas, onde o presidente doSindicato das Empresas de Materiais de Construções criticava uma tentativa doGoverno do Estado de se criar uma cesta básica para materiais de construções. Aalegação era que se ‘baratear’ o preço desses materiais para a construção de obrasiria se consolidar a favela, pois o pobre teria acesso a esses materiais e assim elemelhoraria sua qualidade de moradia e de vida dentro de suas casas. O que sepercebe é que uma ação dessas, proveniente dessas organizações venham inibirque o Governo/Estado façam qualquer tipo de ação que é apoiada por essasinstituições. Eles são a favor das ‘remoções de favelas’.

A favela começa a conquistar o direito de ser ouvida e representada como voz

atuante de seu caminho. E para tanto, torna-se essencial o conhecimento, não só de

suas carências, mas também de suas virtudes, de seu passado e de seu presente,

de suas generalidades e particularidades, e principalmente, de seus desejos. Por

isso o Censo Maré 2000, trabalho realizado pelo CEASM, representou a

possibilidade de realização de um estudo específico da realidade das várias marés.

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Ou seja, as várias histórias e geografias das favelas que foram se formando

na área hoje reconhecida como XXXª Região Administrativa. Tem-se agora, um

instrumento primordial na luta por uma vida mais digna e justa, pois os dados

permitem uma atuação consciente na gestão pública e comunitária, possibilitando

uma visão mais focal, centrada em algumas particularidades e uma visão global, que

apreende as generalidades da XXXª R.A. Um instrumento que permite a ação

conjunta frente aos órgãos públicos e entidades privadas, sem mais especulações e

incertezas9. Portanto, um instrumento fundamental de territorialização da Maré na

cidade do Rio de Janeiro (Fonte: Censo Maré 2000. In. http://www.ceasm.gov.br).

As Associações de Moradores:

O funcionamento e as relações com a comunidade local e o tráfico de drogas

por parte das associações de moradores nas comunidades da Maré é assim

relatada por Lourenço:

“Uma ação que vem prejudicando em muito as mobilizações coletivas nascomunidades da Maré é a ‘despolitização das ações das associações de moradores’.Raras dessas associações têm eleições presidenciais – a maioria dos presidentesdessas instituições são ‘empossados’ pelo tráfico; qualquer ação realizada nessascomunidades e que ‘chamam a atenção da mídia ou do Estado, os traficantes têmque estar sabendo com antecedência pois senão correm risco de vida os própriosorganizadores desses eventos”.

Os moradores sofrem muito com esse fardo quando se discute o problema, o

que muitas vezes se reflete na própria identidade dos moradores, que dominados

pelo medo, têm dificuldades de se relacionarem com o local.

“Dentro deste retrato atual quem (qual o morador) bate no peito e diz com satisfaçãoque mora na Maré? Ou que mora numa favela? Um exemplo contrário a isso é quena época da Grécia antiga os grandes artistas tinham como sobrenome o nome de

9 “As favelas apresentam várias características, mas nenhuma delas parece ser tão específica quantoo seu status jurídico ilegal, na qualidade de ocupação de terras públicas ou privadas pertencentes aterceiros. A pobreza de sua população é, sem dúvida, uma característica distintiva muito comum, maso nível de pobreza é bastante variável não só entre favelas (...), mas também no interior de favelasgrandes e consolidadas, especialmente quando situadas em áreas valorizadas. A carência de infra-estrutura, assim como a pobreza, é, igualmente, uma característica muito comum, mas, não menosque a pobreza, variável... ‘mas, e se o Estado dotar uma favela de infra-estrutura e promover a suaregularização fundiária? O espaço continuará a ser uma favela?, citado por Souza (2003, p. 173-174).

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sua cidade; o cidadão daquela época pertencia a uma cidade e tinha com ela umaidentidade e um orgulho por pertencer a ela”.

Fazendo um panorama entre as décadas de 60/70/80 e a época atual,

Lourenço destaca que:

“Nos governos militares da década de 60 – no pós Vargas – teve aquela tentativa dese ‘abraçar a favela e as comunidades carentes’ no intuito do próprio Vargas ter umpoder de voto muito grande (aquela idéia do ‘pai dos pobres’) e isso possibilitou umavisão romantizada da favela e neste momento os artistas tinham seu nome ligado àsfavelas como Cartola, Pixinguinha, etc. Já entre as décadas de 70/80 tínhamos oMartinho da Vila (Izabel), Jorginho (do Império), etc. Todos eles ligados à umafavela, via questão cultural e às identidades culturais”.

“Mais tarde (década de 90/00) surgem os ‘funkeiros’ que são totalmentemarginalizados pela mídia, e conseqüentemente, pela sociedade, e desta forma sãolançados nos braços dos traficantes, que são os únicos a apoiarem esses garotos eesse ‘movimento musical’, fazendo com que eles (os funkeiros) tenham umaidentidade muito forte com aquela determinada facção criminosa do que com o estilomusical e que acabam por terem seus nomes vinculados às comunidades como oDuda (do Borel) e outros”.

“Atualmente, essa situação está mais marginalizada pois quem recebe o sobrenomeda comunidade é o traficante: Marcinho VP, Celsinho da Vila Vintém, etc. Hoje o seunome ligado a uma comunidade ou a uma favela, já traz consigo um aspectonegativo para sua própria circulação dentro de sua cidade. Por outro lado, há umfracasso de não se garantir enquanto um espaço totalmente urbanizado e apropriadode serviços públicos de ordem coletiva e a própria garantia de poder manter umaidentidade e um respeito perante a cidade”.

Por outro lado, continua Lourenço, “se há o discurso de que a favela venceu

por que conseguiu manter e sobreviver às remoções da década de 60, há um

fracasso de não se garantir enquanto um espaço totalmente urbanizado e

apropriado de serviços públicos de ordem coletiva a própria garantia de poder

manter uma identidade e um respeito perante a cidade”.

“Mas a favela venceu no sentido cultural: a cultura que sai da favela, a idéia dosamba e da mulata e do próprio futebol, onde os maiores ídolos são provenientesdessas áreas (Zico – Quintino Bocaiúva, Ronaldo – Vila da Penha). E apesar damídia negar a favela, ela continua a ter uma identidade muito forte com a cidade, atépelo ponto geográfico da própria cidade que possibilita que a classe média e a favelamorem lado a lado – como no exemplo da Rocinha. Muito mais que isso é o aspectocultural e identidário que faz com que a gente não tenha aqui o tão sonhado projetode ‘europeirização’ de nossa cidade e que foi tentado por Passos e maisrecentemente, com César Maia – que tentou transformar a cidade carioca numa

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Barcelona. Essa idéia de vender a cidade negando essa diversidade cultural e dapopulação é um obstáculo que eles estão desejando desde o século XIX e que nãoirão conseguir êxito pois não há como fazer isso aqui no Rio de Janeiro. É uma lutainsana que eles estão tentando praticar”.

Mesmo assim, as associações de moradores mantêm uma relação próxima

com os moradores em relação à melhoria da qualidade de vida e de habitação. Elas

ainda realizam serviços que, a princípio, seriam dever do Poder Público – como o

desentupimento de caixas de esgotos, serviços de educação com cursos

profissionalizantes em sua sede própria, a exemplo do que acontece na associação

de moradores da Baixa do Sapateiro e outras atividades, o que faz com que

consigam atingir um número razoável de participantes.

Por outro lado, temos a visão do Srº Waldir – morador há cerca de 50 anos na

comunidade da Baixa do Sapateiro e que trabalhou como um dos diretores da

Associação de Moradores do Parque Proletário da Baixa do Sapateiro por 16 anos

consecutivos, que de colaborador passou a ser, após seu segundo mandato, o

secretário geral e, atualmente, exerce a função de conselheiro dos oito postos de

saúde localizados na área da Maré. Sua participação foi e continua sendo de suma

importância entre os moradores (principalmente os mais antigos) da Baixa do

Sapateiro e ele descreve assim a funcionalidade da citada associação:

“A relação entre a associação de moradores e os moradores é relativamente boa. Noinício (há dezesseis anos atrás) era um pouco conflitante mas atualmente éharmoniosa, apesar de hoje em dia poucos moradores contribuírem com opagamento das taxas cobradas pela associação. Em relação ao binômio associaçãode moradores e o tráfico de drogas pode-se dividir em duas frentes: a convivência ea conivência. O líder comunitário não pode simplesmente atender (somente) aparentes de pessoas ligadas ao tráfico, pois, assim, ele não estaria fazendo o seutrabalho social que é pensar no coletivo. O tráfico não interferiu no trabalho deplanejamento da associação, o que tem que haver é o respeito de ambas as partes.As ações realizadas por mim no passado são lembradas até hoje na comunidade”.

Contrário a opinião de Lourenço, srº Waldir diz que o trabalho realizado na

associação de moradores na época que ele trabalhava como diretor era sério e

atendia às necessidades da população e, à respeito das eleições comunitárias, ele

menciona que:

“As eleições comunitárias se realizavam de quatro em quatro anos e a últimarealizada há menos de três meses foi bastante democrática. O candidato que eu

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apoiei perdeu por uma diferença de 107 votos... Quem tinha direito à votação?moradores com no mínimo três anos de residência na comunidade. Corrupção? Setinha eu desconheço...”.

A Funcionalidade do Tráfico na Maré:

“A droga, através do tráfico internacional, tornou-se a segunda maior indústriaeconômica do mundo, capaz de destruir a imagem de países e redesenhar mapaspolíticos. Poder sem rostos, a droga está na origem de inúmeras guerrasinternacionais que se desdobram em guerrilhas urbanas e vem cada vez maisincorporando-se ao cotidiano das cidades dos cinco continentes... sendo umaquestão que transcende fronteiras e se globaliza. Hoje, prevalece a hegemonia docinismo, resultante da promiscuidade existente entre o legal e o ilegal”. (FábioMagalhães – Diretor-presidente do Memorial da América Latina – 1996 – Seminário:“Drogas – Debate Multidisciplinar – prólogo p. 13).

As questões sobre o tráfico de drogas tornam-se importantes principalmente

quando configuram territórios dominados pelas forças paralelas que controlam o

tráfico e por estarem profundamente relacionadas à questão urbana, em particular,

nas favelas. E como afirma Silva Júnior (2005) a respeito do cenário do tráfico de

drogas na cidade do Rio de Janeiro:

“O Rio de Janeiro tem como preponderância o fato de que a violência se articula como tráfico, a exclusão social configura territórios demarcados por lideranças locais,diminuindo a imagem tão conhecida do crime organizado. Nesse cenário em que otecido sócio-político espacial apresenta-se tão fragmentado, formam-se territóriosdescontínuos: "A pulverização territorial (e a instabilidade das redes em termosespaciais) determina uma territorialidade distinta daquela que é característica de umcartel ou quase-cartel, como é o caso do jogo do bicho, onde, em conformidade comum "pacto territorial", cada bicheiro possui sua área de influência, a qual é umterritório contíguo, portanto um território em sentido convencional. Já a cada uma das"organizações" do tráfico de drogas que lidam com o varejo e manifesta sob a formado que o autor do presente artigo denominou, em trabalho anterior, de territorialidadedescontínua (ou em rede).”

O tráfico se aloja principalmente nas favelas devido às oportunidades de

trabalho que são oferecidas em suas mais variadas funções e cargos. É nas favelas

onde se encontra com facilidade menores sem nenhuma estrutura familiar definida,

sem perspectiva de futuro e, por isto aptos a se engajarem neste infortúnio que é a

vida no tráfico. A falta de opções e a ociosidade são causas do crescimento do

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número de crianças no mundo do tráfico. A visão de Evangelista (2003, p. 45) é

objetiva neste sentido:

“A favela corresponde a um ambiente que torna fácil a busca por quadros que sedisponham a entrar no tráfico. Esta pobreza combinada com a insuficiente presençade organizações civis (estatais ou não), fazem com que os traficantes sejam, de fato,os verdadeiros mandarins da localidade, tendo, inclusive, o reconhecimento, porparte de não poucas comunidades, em decidir temas que não estão propriamenteafeitos ao tráfico, por exemplo, custear despesas, apressar favores, decidirpendências entre vizinhos etc.”

Sobre o funcionamento do tráfico de drogas na Maré constata-se que cada

facção criminosa têm seu espaço de dominação: o Comando Vermelho (C.V.) atua

na área da Nova Holanda, Amigos dos Amigos (A.D.A), dominam a Vila do João e

Pinheiros e o Terceiro Comando Puro (T.C.P.), exerce seu poder no Morro do

Timbáu e Baixa do Sapateiro. Cada facção tem uma forma distinta de agir e a

própria comunidade também tem sua forma específica de se relacionar com o tráfico

local. Como cita nosso entrevistado, o Srº Lourenço César:

“No Timbáu essa relação se dá da seguinte forma: o morador ‘cobra’ do traficante umrespeito pela moradia e cada vez que essa cobrança diminui, o morador cobra mais.Mas ainda há esse ‘respeito’, pois o Morro do Timbáu sofreu poucas intervenções dediferentes facções ou de pessoas estranhas. Mesmo quando mudasse a facção, o‘dono’ continuava o mesmo. Isso possibilitou que se criasse uma identidade muitoforte entre o morador e o próprio traficante sendo o ‘dono da favela’, também ummorador dessa comunidade e não aquele ‘empresário do tráfico’ que traz consigosua mão-de-obra de outra favela, a sua própria gang (de outra facção). Somente nomomento de guerra entre traficantes rivais é que o ‘dono’ pede reforço a favelas quetenham a mesma facção igualitária [fato comum nestes tipos de conflitos]”.

Isso possibilitou que o Morro do Timbáu e a Baixa do Sapateiro – que sempre

foram da mesma facção criminosa – ainda tivessem uma relação mais ‘benevolente’

entre morador e traficante como sintetiza Lourenço: “...Isso não quer dizer que essas

comunidades vivam às mil maravilhas, elas também sofrem muito com esse poder

exercido pelo tráfico mesmo sendo, pode-se dizer, as únicas que foram afligidas em

menor escala com a guerra do tráfico”.

Fazendo uma análise geral sobre a atuação das facções criminosas em três

comunidades da Maré, Lourenço estigmatiza sua vivência como morador da

seguinte forma:

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“A questão do tráfico nestas comunidades ligadas ao ‘Terceiro Comando Puro’ émuito recente ainda (à respeito da relação na Baixa do Sapateiro e no Morro doTimbáu). Já na Vila do João (ligada atualmente pela facção A.D.A.) seu histórico jáultrapassa os quinze anos em que a guerra com a própria Vila Pinheiro (antes ligadaao ‘T.C.P.’ e atualmente ‘A.D.A.) renderam vários e intensos tiroteios, o que fez comque parte da população se retirasse e mais tarde voltassem a residir nestascomunidades - exemplo claro de des-re-territorialização”.

“A Nova Holanda tem sua história negativa relacionada com o tráfico há muitos anos(desde a década de 70) e essa relação é bastante diferenciada, pois essacomunidade sempre teve uma única facção – o C.V. – e assim se tem por parte dosmoradores uma maior identificação com essa coisa ligada ao tráfico e desta forma,não há uma facilidade de uma facção rival tentar se instalar – ‘tomar a favela’ comodizem – nessa comunidade, contrária às Vilas do João e Pinheiro, que já foramtomadas e retomadas por grupos rivais e até hoje há o medo de serem invadidas eretomadas novamente...”.

A seguir, Lourenço faz uma abordagem entre o aspecto sócio-econômico de

cada comunidade em consideração a sua relação com a possibilidade de cobrança

(respeito), por parte do tráfico, em relação aos moradores:

“A relação entre moradores e o tráfico é diferenciada em cada comunidade devido asubstancial desigualdade em relação ao aspecto econômico de cada comunidade.No Morro do Timbáu, onde o poder aquisitivo dos moradores é superior ao dasoutras comunidades – Nova Holanda e Vilas do João e Pinheiros – a presença detraficantes armados causa um estranhamento por parte dos próprios moradores quese incomodam com a situação e a maior parte deles que tinha condições, mudoupara outras localidades e os que não tinham permaneceram e ainda não seacostumaram com essa questão do tráfico”.

Neste momento, nosso entrevistado faz uma reflexão sobre os constantes

tiroteios que outrora se faziam presentes com mais intensidade – e que atualmente

deu uma ‘acalmada’ – nestas comunidades e que aterrorizavam e afugentavam os

moradores dessas favelas para áreas mais ‘calmas’ da cidade:

“Um exemplo gritante disso é quando há o tiroteio no Morro do Timbáu – que édiferenciado em relação a Nova Holanda e nas Vilas do João e Pinheiros – a reaçãodos moradores é de fechar rapidamente todas as portas e janelas e se recolher.Fecha-se também as dependências do CEASM (onde há uma boa concentração dejovens realizando diversas atividades ligadas à cultura). E já na Nova Holanda osmoradores adotam uma outra estratégia: eles esperam piorar a situação, poisenquanto não piora, eles acham que não há a necessidade de se recolherem e defecharem suas portas e janelas (?!?!). Na Vila do João eu mesmo tinha medo de ir àpraça comprar um sanduíche devido aos intensos tiroteios; tinha mais medo do que

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os próprios traficantes. E isso causou nos moradores uma nova adaptação no seuestilo de vida: o lazer ‘dentro de casa’, como o videocassete, computador, aparelhode dvd, e a net, que acaba forçando o morador a ficar em casa e,conseqüentemente, evitar o pior, caso ele esteja na rua. Falta segurança !!”.

A violência urbana atinge a todos sem nenhuma distinção entre ricos e pobres,

causando o medo e aflição aos moradores das grandes cidades brasileiras e, neste

sentido, a mídia especializada destaca sempre que a classe média é bastante

afetada e que o pobre está acostumado com essa situação. Sobre isso Lourenço

enfatiza, de forma clara e sucinta, que:

“Há um mito de que o ‘favelado’ não sofre com a questão do tráfico de drogas.Quanto de nós planejamos sair à noite e evitamos voltar na madrugada para nãoencararmos o tiroteio de frente, preferindo assim, voltar pela manhã. Isso viabilizauma territorialidade mais intensa e solidária, pois o medo da morte está semprepresente em nossas mentes. Então o tráfico tem esses aspectos, tanto vale dafacção que está envolvida quanto também da experiência que aquela comunidadetem em relação ao tráfico”.

A participação do tráfico numa determinada comunidade carente causa

grande transtorno aos moradores, que, por falta de condições financeiras, acabam

por se adaptarem a esse modo (infeliz) de vida, pois não conseguem se alojar em

áreas menos conflitantes. As mais prejudicadas são as crianças que por falta de

opções (como a ausência de uma “CEASM” em uma comunidade, por exemplo) se

tornam presas fáceis devido, principalmente, à ociosidade, pois o convívio direto nas

ruas com a presença de traficantes armados causa, nessas crianças, o desejo de

um dia empunharem uma arma como forma de (poder) passagem da fase infantil

para a fase adulta – pulando etapas – e que é possibilitado pelo tráfico. Desta forma,

a síntese de Evangelista (2003, p. 51) é bastante precisa:

“Enfim, é uma atividade, a do tráfico, que cresce se autodestruindo, continuamente,sem deixar marcas. As alianças são fortuitas, esporádicas, circunstanciadas a umadada situação (que tão logo estas desaparecem os ‘laços de amizades’ sãodesfeitos). A morte percorre suas vidas e dias, ela está incluída no negócio. Não hácultura, não há associações, impera um voraz sistema competitivo que facilmenteaumenta as estatísticas de violência das delegacias”.

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O que se pode concluir é que está em andamento, de acordo com Souza

(2003 p. 500):

“... um processo em que, de uma parte, espaços segregados, notadamente favelas,passam a ser objetos de territorialização por parte de quadrilhas e ‘organizações’ detraficantes de droga e, de outra parte, cada vez mais como reação escapista àcrescente sensação de insegurança em seus bairros tradicionais, elites e parte daclasse média se auto-segregam, buscando refúgio nas cidadelas fortificadas que sãoos condomínios exclusivos, a isso se refere a fragmentação do tecido sóciopolítico-espacial da cidade”.

O tráfico responde por algumas das territorialidades que ocorrem numa favela

e que, de certo modo, conforme esse mesmo autor (1995, p. 91 e 92):

“contrasta vivamente com a estrutura territorial característica de organizaçõesmafiosas ou mesmo do jogo do bicho. Entre dois territórios amigos – como exemploa Baixa do Sapateiro e o Morro do Timbáu –, quer dizer, duas favelas territorializadaspela mesma organização, existe, porém, não apenas ‘asfalto’; pode haver igualmenteterritórios inimigos, pertencentes a outro comando. A territorialidade de cada facçãoou organização do tráfico de drogas é, assim, uma rede complexa, unindo nósirmanados pelo pertencimento a um mesmo comando, sendo que, no espaçoconcreto, esses nós de uma rede se intercalam com nós de outras redes, todas elassuperpostas ao mesmo espaço e disputando a mesma área de influência econômica(mercado consumidor), formando uma malha significativamente complexa”.

As favelas como espaços residenciais segregados vão, como no caso da

Maré, sendo controladas – ou territorializadas – por quadrilhas de traficantes de

drogas, que intimidam a população. A ‘lei do silêncio’ é imposta. Regras de uso do

espaço são impostas. O toque de recolher, a proibição de crimes comuns como

roubos e estupros são impostas. Aqueles que transgridem essas regras, são

severamente punidos.

Existe uma hierarquia e uma divisão do trabalho nas quadrilhas que operam

nesses espaços socialmente segregados – como no caso exposto – que envolve

diversos outros atores sociais, como cita Souza (2000, p. 57):

“O chefete local é o ‘dono’, o qual controla diversos pontos de venda de tóxicos(‘bocas-de-fumo’). Uma vez que os ‘donos’ cada vez menos moram em favelas e simno ‘asfalto’ (ainda que tenham origem favelada), quem responde pelo negócio em umdado local é o ‘gerente’, o qual realiza a contabilidade, supervisiona o pessoal da

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segurança e realiza diversos contatos em nome do ‘dono’10. Além do ‘dono’ e deseus ‘gerentes’ há os ‘soldados’, que são aqueles indivíduos que, fortementearmados, garantem a segurança do negócio, impondo a ‘ordem’ na favela edefendendo os pontos de venda de um ‘dono’ contra as tentativas de capturarealizadas por outras quadrilhas (rivais). Há, também, os ‘olheiros’, que são aquelesque avisam sobre a aproximação da polícia ou de ‘alemães’ (estranhos, inimigos), eos ‘aviões’ e ‘aviõezinhos’, que entregam droga aos Clientes, os quais muitos vezesaguardam na entrada da favela dentro de seus carros. Há, finalmente, as pessoasque trabalham na embalagem da droga a ser comercializada. Cada ator tem umaparticipação diferente nos ganhos do negócio...”

A escalada do jovem na vida do tráfico é intensa e aos poucos ele vai subindo,

de degrau em degrau a um patamar que, na maioria da vezes, seu final é quase o

mesmo: a morte. Sobre essa trajetória Zaluar (Apud Evangelista 2003, p. 26) tem a

seguinte opinião:

“No Rio de Janeiro, onde o tráfico internacional de drogas se intensificou a partir dofinal da década de 70, a posse de armas de fogo poderosas deu para os jovensquadrilheiros um poder militar que não só os levou a matar-se mutuamente, comoabalou as bases de qualquer autoridade. No esquema de extorsão e dívidascontraídas com traficantes, os jovens começam como usuários de drogas, sãolevados a roubar, a assaltar e, algumas vezes, até a matar para pagar aqueles queos ameaçam de morte e os instigam a se comportar como eles. Muitos tornam-semembros de quadrilhas para saldarem dívidas ou para se protegerem dos inimigoscriados, num círculo diabólico”.

E a relação entre os traficantes e o poder público – na forma do envolvimento

policial – se dá, conforme Souza (Ibidem, p. 58) da seguinte forma:

“Note-se, ainda, que no caso dos policiais que extorquem dinheiro de traficantes queoperam no varejo, a expressão ‘dificultadores’, embora um pouco irônica, é maisapropriada que ‘facilitadores’... Quanto aos policiais que, eventualmente, financiam eorganizam o negócio, esses são, a rigor, sócios dos traficantes. Podem, entretanto,ser simplesmente seus empregados, como no caso de policiais que fazem asegurança de criminosos”.

10 De acordo com Souza (2000, p. 57): “Existem, na verdade, dois tipos de gerente: o ‘gerente geral’e, nas quadrilhas mais estruturadas, ‘gerentes’ que cuidam de tarefas específicas ou de apenas uma‘boca-de-fumo’.

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O Foco Agora é a Polícia:

A presença do aparato policial nas comunidades carentes em geral é quase

que despercebida, a não ser no momento em que eles têm que intervir numa ação,

causando os freqüentes tiroteios com os traficantes locais.

Atualmente, a imagem da polícia encontra-se de forma estática (de mãos

atadas perante a realidade), o que possibilita a dificuldade de uma modificação nas

relações que se estabelecem com os grupos sociais, sendo desta forma, um dos

grandes problemas que são enfrentados na relação entre a comunidade e a polícia.

Neste sentido Dorneles (2003, p. 71) explicita a forma comportamental da atuação

policial:

“Há um comportamento ambíguo, tanto da corporação policial e das autoridadespúblicas quanto do conjunto da sociedade. Por um lado, parte considerável dasociedade exige uma polícia que respeite os direitos e que seja cumpridora das leis,ao mesmo tempo em que não deixe de garantir a segurança de todos. Por outrolado, essa mesma sociedade tem a expectativa geral de que a polícia se comportede acordo com o estereótipo negativo que marca a instituição, isto é, a condutabrutal, violenta, arbitrária, corrupta e ilegal. Assim, a imagem que a população tem dapolícia se reforça, formando uma cadeia difícil de se desfazer”.

“Também a polícia quer se apresentar com uma imagem positiva para o conjunto dasociedade, buscando a aceitação para a sua atuação. Quer ser respeitada eidentificada como protetora dos direitos, da lei e da justiça, garantindo a segurançade todos. No entanto, ao mesmo tempo, reforça a sua imagem social negativaquando não apenas deixa de garantir a segurança geral, como também passa a seridentificada como violenta, corrupta e transgressora das leis”.

Com base nessa introdução, voltemos ao nosso entrevistado que, neste

instante, abordará, em seus comentários, a presença (?) e/ou atuação/intervenção

do aparato policial nas comunidades da Maré em estudo:

“É complicado falar da polícia, pois não há um ação sistemática nas comunidades naqual, pode-se dizer, que essa ou aquela ação foi boa ou não. Não há o policiamentoostensivo e o que se vê é o conflito com os traficantes e que de certo forma, envolvea população. O que há é a ação truculenta e sem planejamento por parte dessainstituição”.

“É incrível a facilidade com que o traficante anda armado nas ruas e, principalmente,na rua atrás do batalhão da polícia (criado recentemente na Nova Holanda). Ela faz‘vista grossa’, pois há uma câmera localizada em um dos postes da Light que cobretoda a rua e os traficantes fazem questão em mostrar suas armas e seus rostos; Eles

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‘endolam’ – prática de se colocar a cocaína já pronta para o consumo em sacosplásticos para a venda no varejo – a droga fazendo questão de serem observados, ea polícia não vê ou se vê, não toma nenhuma providência. É um absurdo total”.

Lourenço afirma que essa realidade retratada acima, do ‘trabalhar a droga’ no

meio da rua, essa promiscuidade, é “uma total falta de respeito e consideração para

com os moradores – principalmente idosos e crianças – e esse histórico negativo já

é antigo nesta comunidade”. Dando continuidade a sua fala, nosso entrevistado

argumentando a respeito do ocorrido, conclui que:

“Isso leva a crer que a criação desse batalhão parte do princípio de que há umaspecto de ‘negociação’ (entre o comando militar e os traficantes locais) que eu nãosei até onde ela é velada. Há a história na comunidade de que o comando dobatalhão prefere ‘colaborar’ com essa do que aquela facção”.

Atualmente a polícia adotou um carro especial, revestido de material à prova

de balas e alguns policiais em seu interior fortemente armados e prontos para

‘disseminar’ (ou exterminar) a bandidagem, conhecido com o singelo pseudômio de

“Caveirão” e outro de “Pacificador” e que se relaciona com a comunidade de forma

muito agressiva e desrespeitosa, como aponta Lourenço: “Eles usam um microfone

interno dizendo em voz alta: ‘troca-se bandidos por pintinhos’ ou ainda diziam para

os traficantes, ‘vou c... sua mulher’. Essa é a nossa polícia”.

Por outro lado, há também o lado positivo dessa mesma polícia a qual eles

abrem suas portas (do batalhão) à comunidade para reuniões sistemáticas com os

líderes comunitários na tentativa de se manter um canal aberto à população, mas o

próprio líder comunitário tem a sua própria limitação ao falar, como indaga nosso

entrevistado:

“Como é que ele (o líder comunitário de determinada comunidade) vai a reunião nobatalhão e pedir para acabarem com esse ou aquele traficante da favela que elereside? O máximo que ele pede é que a polícia tenha uma ação mais respeitosa.Mesmo assim é difícil. Os únicos locais na Maré onde há um policiamento maisostensivo são as Linhas Amarela e Vermelhas devido ao grande fluxo decarros/pessoas”.

Mas a entidade polícia também tem seu lado positivo no combate ao tráfico de

drogas na região em estudo. Diversas são as apreensões realizadas no Complexo

da Maré na tentativa de diminuir o índice de criminalidade local, como pode ser

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observado em matéria vinculada na mídia intitulada “Preso chefe de tráfico em 11

favelas da Maré.”

“Um dos bandidos mais procurados do Rio, Edmilson Ferreira dos Santos, o Sassá,de 34 anos, foi preso ontem de manhã num esconderijo subterrâneo na Favela Salsae Merengue, no Complexo da Maré. Chefe do tráfico em 11 favelas da região, Sassáfoi responsável pela maioria dos tiroteios que nos últimos tempos levaram àinterdição da Avenida Brasil e das linhas Vermelha e Amarela. O delegado RicardoHallack, titular da Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas (DRFC), que comandoua operação, disse que o bandido ofereceu R$ 1 milhão para ser solto. Sassá, quetem 11 mandatos de prisão contra ele, era o principal aliado de Erismar RodriguesMoreira, o Bem-Te-Vi, da Rocinha, morto sábado passado pela polícia”. (Fonte:Jornal ‘O Globo’ de 05/11/2005).

Para concluir esta parte que retrata a polícia como um ator social de

transformação do espaço na Maré, cito a fala de Lima (2000, p. 175), onde ele

analisa assim a participação da polícia: “Na verdade...a polícia opera como se fosse

uma agência autônoma, a serviço de um Estado imaginário, encarregado de manter

uma ordem injusta, um uma sociedade de desiguais”. Mais adiante esse mesmo

autor (Ibidem, p.231) afirma que:

“Se, por um lado, as formas de organização da vida comunitária das classespopulares alimentam a rede do tráfico, no entanto, são estes mesmos valores dereciprocidade e de solidariedade que permitem a emergência de organizaçõescomunitárias hoje capazes de oferecer não apenas uma alternativa ao mundo dotráfico em termos de ascensão social, mas também uma alternativa de construção depolíticas públicas de saúde e de educação infinitamente mais eficazes do que aspropostas que o Estado poderia elaborar”.

O Papel da Igreja:

A relação das instituições com o tráfico são todas elas desrespeitosas, com

exceção da Igreja e nosso entrevistado assim analisa: “A igreja consegue realizar

nas comunidades da Maré algo que as ong’s e o Estado não conseguem fazer: tirar

as crianças do tráfico. Todo grupo de marginalizados têm uma forte e interessante

relação com a Igreja”. Fazendo uma retomada histórica Lourenço cita que:

“Na década de 60 os traficantes tinham uma ligação com o candomblé (e com amacumba), nos anos 90/00 a idéia e a relação é com a Igreja subentendido com oslogan: ‘Fé em Deus!’ Mas há um respeito muito grande entre o traficante e a Igreja:

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muitas pessoas conseguiram largar o tráfico e permanecerem na Igreja e eu nãoconheço nenhuma ong que tenha conseguido esta proeza”.

“A igreja tem cumprido um papel muito forte em relação a isso, trazer o ex-traficantepara o seio da sociedade. A igreja serve como um refúgio para essas pessoas”.

Além disso, as Igrejas vêm praticando ações de solidariedade em prol da

comunidade, já há algum tempo e isso fica nítido na fala de nosso entrevistado:

“Uma determinada igreja, não lembro bem o nome dela, estava desenvolvendo umaação social na comunidade de Nova Holanda como: corte de cabelo, tratamentodentário, exame de pressão e hipertensão... A igreja entrou por um lado ondesomente as orações não estavam dando resultados e assim muda-se o formatodaquela igreja antiga”.

A Vila Olímpica da Maré:

Outro agente social de grande relevância na área na Maré é a “Vila Olímpica

da Maré” que teve suas atividades iniciadas em Fevereiro/2000 e ocupa uma área

de 80.000 m² . Criada pela prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e em parceria

com a iniciativa privada, num convênio com a gestora UEVOM (União Esportiva da

Vila Olímpica da Maré), atende a mais de oito mil pessoas de seis a oitenta anos de

idade. São oferecidas gratuitamente, de segunda a domingo, 23 atividades

esportivas e educacionais. Têm aulas esportivas de tênis, atletismo, capoeira, vôlei,

basquete, futebol, natação, ginástica aeróbica e olímpica, entre outras.

A Vila Olímpica da Maré funciona, assim como a ong CEASM, como um

espaço de atividades sociais numa tentativa de cidadania em prol dos moradores

dessas comunidades, visando principalmente a inserção dos jovens na expectativa

de que esse mesmo jovem não venha a adentrar na vida do tráfico.

Entendemos que as intervenções, em conjunto ou não, desses principais

atores sociais na área da Maré, possibilitam territorialidades diversas no campo das

observações realizadas. Essas territorialidades vão ao longo do tempo assumindo

alterações que possibilitam que essas áreas em questão sofram desterritorializações

e, dependendo da atuação desses atores e a atitude dos moradores face aos

resultados encontrados, essas mesmas áreas passam a sofrer uma re-

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desterritorialização. É um verdadeiro ciclo que se inicia e se repete a cada atitude

praticada pelos atores estudados e que surtem efeitos negativos à população.

As territorialidades se formam porque a presença do poder do tráfico supera a

ação dos demais atores que, representando instituições organizadas para oferecer à

população oportunidades e perspectivas de uma vida com maior dignidade e

respeitabilidade, não conseguem atingir seus objetivos.

A própria divergência entre facções divide o espaço por elas dominadas. As

variáveis tempo e espaço são afetadas por forte mobilidade, dependendo da força

do grupo dominante que tem sob seu poder conjuntos de comunidades, gerando

conflitos sociais entre os próprios moradores.

Novas territorialidades se fazem freqüentes quando o comando das facções

está fora do próprio Complexo da Maré, porque o “chefe” mora, ou porque o mando

passa para grupos externos que dominam outras favelas da cidade do Rio de

Janeiro. Esta mobilidade afeta e redireciona o trabalho exercido pelos diversos

atores que atuam no local.

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4 – Conclusão:

Como tentativa de conclusão deste trabalho podemos argumentar o fato de

que os atores sociais em plena atividade no espaço territorial do Complexo da Maré,

nos leva a perceber que as atividades exercidas, em conjunto, pelos mesmos,

geram novas territorialidades e que redefinem, ainda, novas formas de re-des-

territorialidades nos espaços nos espaços locais.

Esse “ciclo contínuo e ambíguo” se mostra bastante visível quando se

percebe a atuação dos principais atores sociais envolvidos na área de estudo. O

Estado como agente da produção do espaço tem papel fundamental na

“fragmentação do tecido sócio-político espacial”, como mencionado anteriormente

(Souza 2003, p. 500). Neste sentido, a mais prejudicada é a população que, em

geral, se desloca continuamente, para territórios provisórios onde, em determinado

momento, aparenta ser mais “confortável”, em termos de segurança e moradia.

Não obstante as solidariedades expressas pela população, as territorialidades

se formam através das relações de poder do tráfico. As práticas destas facções

exercidas por códigos e ameaças caracterizam as relações entre os diferentes

atores. A constituição social do lugar representada pela formação das 16

comunidades que constituem o Complexo da Maré é, sem dúvida, afetada

diretamente pelas práticas das facções do tráfico. A Maré em seu processo

contraditório de construção e desconstrução revela suas territorialidades, em

constante movimento de desterritorialização.

Espero que com esse trabalho final de curso, tenha superado o desafio de

tentar detalhar essas múltiplas territorialidades que sempre estão em movimento no

espaço territorial do Complexo da Maré.

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5 – Referências Bibliográficas:

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(Livro:“Espacialidade e Territorialidade: Limites da Simulação. Cadernos de

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21 – Santos, Milton. “Espaço e Método”. São Paulo. Ed. Nobel. 1995. 2ª ed. (1997).

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23 ___________________________“O Desafio Metropolitano – Um Estudo Sobre a

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24 ___________________________“Mudar a Cidade: Uma Introdução Crítica ao

Planejamento e à Gestão Urbanos”. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. 2ª edição.

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25 ____________________________ “ABC do Desenvolvimento Urbano”. Rio de

Janeiro. Bertrand Brasil. 2003a.

26 – Sposito, Eliseu Savério. “Geografia e Filosofia – Contribuição para o Ensino do

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27 – Valladares, Licia do Prado. Passa-se uma casa – Análise do Programa de

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28 – Varella, Drauzio; Bertazzo, Ivaldo; Jacques, Paola Berenstein e Seiblitz, Pedro.

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5 – ANEXOS:

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Anexo I – “Densidade Demográfica na Área da Maré”. Fonte: Quem Somos? Quantos Somos? OQue Fazemos? A Maré em dados: Censo 2000. CEASM.

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Anexo II – “Densidade Habitacional na Maré”. Fonte: Quem Somos? Quantos Somos? O QueFazemos? A Maré em dados: Censo 2000. CEASM.

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Anexo III – “Uso do Espaço na Maré”. Fonte: Quem Somos? Quantos Somos? O Que Fazemos? AMaré em dados: Censo 2000. CEASM.

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Anexo IV – “Evolução Urbana na Maré”. Fonte: Quem Somos? Quantos Somos? O Que Fazemos?A Maré em dados: Censo 2000. CEASM.