complexo da maré: múltiplas territorialidades locais em movimento

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Centro de Ciências Sociais Departamento de Geografia e Meio Ambiente Monografia Final de Conclusão de Curso Rogério Pereira dos Santos Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento Profª Drª Haidine da Silva Barros Duarte Rio de Janeiro Dezembro/2005

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Page 1: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Centro de Ciências Sociais Departamento de Geografia e Meio Ambiente Monografia Final de Conclusão de Curso

Rogério Pereira dos Santos

Complexo da Maré:

Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Profª Drª Haidine da Silva Barros Duarte

Rio de Janeiro Dezembro/2005

Page 2: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Agradecimentos:

Aos meus pais, apesar de estarem um tanto distante da minha realidade acadêmica...

À minha orientadora, professora Haidine Duarte, pela paciência, disponibilidade

de tempo e, principalmente, pelo suporte acadêmico durante este trabalho final de curso e

também, nas disciplinas ministradas por ela durante esses longos anos nesta

universidade.

Aos professores do Departamento de Geografia e Meio Ambiente pelos

ensinamentos que adquiri durante esta longa jornada como graduando e à Edna,

funcionária, que tantos galhos quebrou a este aluno! E também ao Cláudio e a Anair do

Departamento de História que muito me ajudaram durante esses anos.

Aos professores que compuseram a banca avaliadora, profºs João Rua e Regina

Célia, e que aceitaram esse pequeno desafio de avaliar essa minha monografia.

Aos funcionários do campus da PUC-RJ: André (Laboratório de Informática –

RDC), Sebastião (da Biblioteca – 3º andar do prédio Frings), ao pessoal da Pastoral (a

qual presto uma homenagem em especial pois, sem o benefício do FESP, minha

caminhada estudantil aqui na academia não seria completa), aos ascensoristas que

diariamente contribuíam para a minha chegada/saída às aulas.

Aos colegas que conheci durante o curso, em especial, ao amigo Filósofo-

Geógrafo Profº Paulo José (PJDADS) que, sem dúvida alguma, foi um dos alicerces que

muito contribuiu para meu progresso como aluno.

Ao meu irmão Rildo, que muito me ajudou, principalmente, com xerox de livros

durante esses anos.

Ao técnico de informática Fernando Santos (Bimbão) pelo suporte operacional

dedicados a mim durante esses quatro anos e meio.

Dedico esta monografia em nome de José Rinaldo Pereira dos Santos, meu irmão

já falecido e a minha filha Ellen Ferreira Pereira dos Santos!!!!

Page 3: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Sumário I – Apresentação ......................................................................................... 05

Capítulo 01: A Cidade do Rio de Janeiro e as Territorialidades em

Movimento .................................................................................................. 10

1.1 – Territorialidades e a Problemática Conceitual .............................. 10

1.2 – Territorialidades e Segregação Sócio-Espacial Urbana ................17

Capítulo 02: A Formação do Complexo da Maré ..................................... 25

2.1 – Primórdios da Ocupação na Maré (1940/1960) .............................. 25

2.2 – Políticas Públicas e Seus Reflexos na Segregação do Espaço

(1960/1980) ........................................................................................... 35

2.3 – Reconhecimento de Um Bairro Popular e as intervenções Públicas

(1980/2005) .................................................................................................. 40

Capítulo 03: Os Territórios da Maré e Suas Particularidades ................ 45

3.1 – Os Atores Sociais e Suas Atuações na Maré: As Territorialidades

em Movimento ............................................................................................ 45

4 – Conclusão ............................................................................................. 60

5 – Anexos .................................................................................................. 61

6 – Referências Bibliográficas .................................................................. 65

Page 4: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

"A favela é um espaço em constante movimento porque os moradores são os verdadeiros responsáveis por sua construção, ao contrário do morador da cidade formal, que muito raramente se sente envolvido na construção do seu espaço urbano e, em particular, dos espaços públicos de sua cidade. A participação comunitária ocorre de forma muito mais representativa nas favelas e áreas favelizadas em geral do que na cidade formal. Os técnicos, arquitetos e urbanistas responsáveis por projetos e intervenções em favelas, na maioria dos casos, em vez de tentar seguir os movimentos já iniciados pêlos moradores, impõem sua própria lógica construtiva, diretamente ligada à cultura e à estética da cidade formal. Esses profissionais lutam exatamente contra tal movimento do espaço das favelas, com a finalidade de estabelecer uma pretensa "ordem". O resultado (...) é uma rejeição por parte dos moradores dessa imposição formal, o que resulta em uma favelização ainda mais radical, como no exemplo das alterações realizadas pelos próprios moradores nos conjuntos habitacionais ". (Jacques 2002, p. 48). In memória de José Rinaldo Pereira dos Santos

Page 5: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

1 – Apresentação:

Este trabalho final de curso tem como objetivo central identificar os territórios que

envolvem o complexo da Maré e suas particularidades, tendo como foco principal o tema

“Complexo da Maré: As Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento”, então

observadas na área de estudo. Para tal será utilizado, com freqüência, “A História da

Maré em Capítulos”, encontrado na internet em http://www.ceasm.org.br e que discutirá

com muita eficácia a trajetória da formação do Bairro “Maré”.

De acordo com o site da Prefeitura (2003) a área territorial da Maré corresponde a

426,88 ha (a densidade demográfica de cada comunidade está no Anexo I). O recorte

definido pelo IBGE ignorou a condição formal de bairro da Maré, estabelecida desde o

final da década de 80, reconhecendo as comunidades locais como “Unidades Territoriais

Específicas” – é a maior concentração de população de baixa renda do município do Rio

de Janeiro. O conjunto de 16 comunidades [Morro do Timbáu (1930/1940), Baixa do

Sapateiro (1947), Conjunto Marcílio Dias (1948), Parque Maré (1953), Parque Roquete

Pinto (1955), Parque Rubens Vaz (1961), Parque União (1961), Nova Holanda (1962),

Praia de Ramos (1962), Conjunto Esperança (1982), Vila do João (1982), Vila do Pinheiro

(1989), Conjunto Pinheiro (1989), Conjunto Bento Ribeiro Dantas ou Fogo Cruzado

(1992), Nova Maré (1996) e Salsa e Merengue (2000)] totaliza, segundo o “Censo Maré –

2.000”1, uma população de 132.176 representando esse contingente, 2,26% da população

do município do Rio de Janeiro e apenas 0.97 % dos habitantes do Estado do Rio de

Janeiro abrigado em 38.273 domicílios (Censo Maré 20002). A densidade habitacional da

Maré está representada no Anexo II.

Para Jacques (2002, p. 19) a Maré se diferencia de uma outra favela pois;

“A Maré não é simplesmente uma favela, mas o que se denomina um complexo de favelas, várias comunidades diferentes juntas, como se fossem vários bairros distintos, uma quase cidade formal. Assim a Maré se torna um dos maiores laboratórios urbanos de habitação popular do país, onde inúmeras experiências habitacionais foram feitas nas últimas décadas. O próprio sítio sofreu tantas alterações que a própria maré que deu nome ao complexo já não existe mais; foram tantos os aterros, que o mar já ficou bem distante”.

1 O Censo Maré, a fim de melhor descrição da heterogeneidade local, considerou a comunidade de Mandacaru, localizada no território de Marcílio Dias, como uma comunidade específica, devido às suas condições peculiares. 2 O “Censo Maré 2000” foi um empreendimento com iniciativa do CEASM, com financiamento do BNDES e com vínculos a um conjunto de iniciativas de Políticas Sociais da Prefeitura do Rio de Janeiro e que ficou conhecido como “Projeto Multissetorial da Maré”.

Page 6: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Ainda Jacques (Ibidem, p. 21):

“A pseudo-semelhança entre as mais diversas favelas cariocas pode ser desmentida em um rápido passeio pela Maré. A diversidade de formas está patente nas diferentes comunidades do complexo. Quase todas as morfologias urbanas e tipologias arquitetônicas referentes a habitações populares têm ou tiveram um exemplar na Maré: da favela labiríntica de morro ao mais cartesiano conjunto habitacional modernista, passando por palafitas em áreas alagadas e conjunto habitacionais favelizados. Vai-se do padrão mais informal ao mais formal, que acaba se informalizando também”.

Tomadas no interior de uma mesma unidade territorial, as comunidades que

compõem o bairro da Maré possuem, na sua dimensão populacional absoluta, uma

expressão significativa em relação ao conjunto da população da Região Metropolitana e

do próprio Estado do Rio de Janeiro (Fonte: Censo Maré 2000).

A expressividade do tamanho do Complexo da Maré pode ser constatada quando

se toma como referência os 22 municípios mais populosos da malha municipal do Estado

do Rio de Janeiro, hoje composta por 91 unidades administrativas. Um olhar superficial

verifica que o bairro da Maré possui um número de habitantes superior aos identificados

para Macaé (131.550 hab), Cabo Frio (126.894 hab), Queimados (121.688 hab), Angra

dos Reis (119.180 hab), Resende (104.482 hab) e Barra do Piraí (88.475 hab). E, numa

classificação por ordem de grandeza, se o bairro da Maré recebesse o status de

município, ocuparia a 17ª posição em termos populacionais nesse estado (Ibidem).

O destaque da Maré torna-se mais evidente e visível quando comparamos o

tamanho absoluto de sua população com os números identificados para os municípios da

Região Metropolitana do Rio de Janeiro, conforme apresenta o Tabela I.

Tabela I – População Residente nos Municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro:

Município População Município População

1 – Rio de Janeiro 5.851.944 11 – Queimados 121.688

2 – Nova Iguaçu 915.366 12 – Japeri 83.160

3 – São Gonçalo 889.828 13 – Itaguaí 81.952

4 – Duque de Caxias 770.865 14 – Maricá 78.556

5 – Niterói 458.465 15 – Seropédica 65.020

6 – São João de Meriti 449.229 16 – Paracambi 40.412

7 – Belford Roxo 433.120 17 – Guapimirim 37.940

8 – Magé 205.669 18 – Tanguá 26.001

9 – Itaboraí 187.127 19 – Mangaratiba 24.854

10 – Nilópolis 153.572 XXXXXXXXXXXXX XXXXXXXXXX

Fonte: (Censo Maré 2000) http://www.ceasm.org.br

Page 7: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

A simples observação dos dados nos indica que a população da Maré apresenta

um tamanho absoluto superior aos números apresentados por nove municípios da Região

Metropolitana (Queimados, Japeri, Itaguaí, Maricá, Seropédica, Paracambi, Guapimirim,

Tanguá e Mangaratiba). Tomando a Maré como um município hipotético, ele ocuparia a

11ª posição em termos de população desta região do Estado. Seu contingente

demográfico corresponde à população de um município com a possibilidade de

representação política, segundo o que determina a Constituição Federal.

No que concerne aos outros complexos de comunidades populares do Rio de

Janeiro, Rocinha, Alemão e Jacarezinho, observa-se que o bairro em estudo aparece

como o de maior concentração populacional.

Tabela II – População nas Principais Favelas do Rio de Janeiro:

Localidade 1991 1996 2000

Rocinha 42.892 45.585 56.313

Alemão 51.591 54.795 65.637

Jacarezinho 37.393 34.919 36.428

Maré 62.458 68.817 113.817 / 132.176*

Fonte: (Censo IBGE – 2000; *Censo CEASM-2000).

Embora a Tabela II confirme a concentração da população na Maré, cabe destacar

que o crescimento revelado pelos números do IBGE, não expressa um incremento real,

por que o Instituto levou em consideração na sua contagem da população da Maré, nos

anos de 1991 e 1996, apenas nove comunidades: Baixa do Sapateiro, Parque Maré, Nova

Holanda, Roquete Pinto, Rubens Vaz, Parque União, Praia Ramos e Timbáu. As demais

não foram incorporadas por serem definidas como conjuntos habitacionais.

Na composição social do Bairro Maré é bastante relevante a questão de gênero. A

presença feminina destaca-se ali como sendo a maioria dos seus habitantes (vide Tabela

III), acompanhando a tendência da distribuição da população por gênero no estado e no

município do Rio de Janeiro (vide Tabela IV), onde as mulheres também se apresentam

com expressiva maioria.

Page 8: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Tabela III – Distribuição da População Residente no Bairro Maré por Gênero:

Comunidades Homens Mulheres Sub-total

Parque União 8.911 8.885 17.796

Vila Pinheiros 7.641 7.844 15.485

Parque Maré 7.557 7.842 15.399

Baixa do Sapateiro 5.512 5.955 11.467

Nova Holanda 5.547 5.748 11.295

Vila do João 5.280 5.371 10.651

Rubens Vaz 4.060 3.936 7.996

Marcílio Dias 3.610 3.569 7.179

Timbáu 2.962 3.069 6.031

Conjunto Esperança 2.827 2.901 5.728

Salsa e Merengue 2.644 2.665 5.309

Praia de Ramos 2.287 2.507 4.794

Conjunto Pinheiros 2.319 2.448 4.767

Nova Maré 1.517 1.625 3.142

Roquete Pinto 1.238 1.276 2.514

Bento Ribeiro Dantas 1.082 1.117 2.199

Mandacarú 206 218 424

Maré 65.200 66.976 Total 132 176 Fonte: Censo Maré – 2000

Tabela IV – População por Gênero no Estado e no Município do Rio de Janeiro – 2000

Unidade Mulheres Homens

Estado do Rio 7.490.947 6.900.335

Município 3.109.761 2.748.143

Maré 66.976 65.200 Fonte: Censo IBGE – 2000

Ao longo dos últimos 10 anos, a Maré apresentou um rápido incremento de

domicílios e, evidentemente, de população. Com isso, ela aparece, pela primeira vez,

como o mais populoso complexo de favelas do Rio de Janeiro. O fato decorre da

incorporação ao bairro, pelo IBGE, das comunidades locais até então identificadas como

conjuntos habitacionais. Outro fator significativo foi a construção, entre 1993 e 1997, de

três novos conjuntos, realizada pelo programa municipal de remoção de populações em

áreas de risco: Nova Maré; Bento Ribeiro Dantas e Salsa e Merengue (oficialmente

identificado como Novo Pinheiros).

Page 9: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

A grande fronteira interna existente atualmente no Complexo da Maré não está

entre as comunidades mas, infelizmente, entre as três diferentes facções do tráfico de

drogas e do crime organizado que, literalmente, cortam a Maré ao meio com suas

disputas de territórios de dominação. Verdadeiras batalhas são travadas quase sempre

entre as facções rivais ou entre essas e a polícia, o que acaba, de fato, formando áreas

de confronto perigosas, verdadeiras ‘linhas-de-tiro’ dentro do complexo, afetando de

forma direta a vida cotidiana de seus moradores.

O objetivo em estudar esse complexo encravado no espaço urbano carioca (ver a

disposição espacial da Maré no Anexo III) advém não só de uma vivência cotidiana como

morador que nasceu e cresceu acompanhando seus movimentos sociais mas, sobretudo,

de procurar entender suas possíveis territorialidades, decorrentes do conflito de

interesses entre os atores sociais que interagem no processo de estruturação do local.

O primeiro capítulo procura de forma, sucinta, mostrar o Complexo da Maré como

produto da chamada “fragmentação do tecido sócio-político espacial”, como define Souza

(2003, p. 500), no processo de expansão da cidade do Rio de Janeiro e a constituição de

territorialidades em seu tecido urbano, partindo de considerações de natureza conceitual

formulada por autores que têm se dedicado ao tema territorialidades.

O segundo capítulo, de caráter empírico, trata de forma factual a formação do

Complexo da Maré e suas vinculações com as políticas públicas voltadas para a

população de baixa renda, tema este que extrapolando o objeto da presente dissertação

mantém-se na pauta de discussões, como as que ainda hoje, em pleno século XXI,

envolvem as lideranças políticas do Município do Rio de Janeiro.

No terceiro capítulo são apresentados os principais atores sociais que fazem do

Complexo da Maré um espaço partido, fragmentado e marcado pelo interesse de facções

antagônicas, suas práticas sociais e, de que algum modo, caracterizam as territorialidades

e as desterritorialidades evidenciadas no local.

Finalmente, na tentativa de arriscar algumas conclusões, são feitas as

considerações finais sobre esta monografia.

Page 10: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

1 – A Cidade do Rio de Janeiro e as Territorialidades em Movimento:

1.1 – Territorialidades e a Problemática Conceitual:

Antes de esclarecer de que forma entendo o termo território – para logo em

seguida tratar das possíveis territorialidades que possam ser identificadas nas áreas da

Maré – acho de suma importância definir o conceito de espaço pois, é nele que se insere

o território e como diz Raffestin (1993, p. 178): “o espaço é anterior ao território”.

De acordo com Andrade (1994, p. 213) o conceito de território:

“não deve ser confundido com o de espaço ou de lugar, estando muito ligado à idéia de domínio ou de gestão de uma determinada área, sendo assim, deve-se ligar sempre a idéia de território à idéia de poder, quer se faça referência ao poder público, estatal, quer ao poder das grandes empresas que estendem os seus tentáculos por grandes áreas territoriais, ignorando as fronteiras políticas”.

Este mesmo autor cita que “o território, unidade de gestão, se expande pelo

espaço não conquistado e cria novas formas de territorialidades que dialeticamente

provocam novas formas de desterritorialidades e dá origem a novas territorialidades”

(Ibidem, p. 220).

Milton Santos (1997, p. 51) foi um dos autores que mais trabalhou com este tema

geográfico e segundo ele o espaço seria formado: “por um conjunto indissociável,

solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não

considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá”.

Define ainda que (Ibidem, p. 83):

“O espaço, uno e múltiplo, por suas diversas parcelas, e através do seu uso, é um

conjunto de mercadorias, cujo valor individual é função do valor que a sociedade, em um dado momento, atribui a cada pedaço de matéria, isto é, cada fração da paisagem”.

Para o mesmo autor, “o espaço é hoje um sistema de objetos cada vez mais

artificiais, povoado por sistemas de ações igualmente imbuídos de artificialidade, e cada

vez mais tendentes a fins estranhos ao lugar e a seus habitantes.”(Ibidem p. 51).

Santos, afirma, entretanto, que espaço e paisagem não são sinônimos. “A

paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que

representam as sucessivas relações localizadas entre o homem e a natureza. O espaço

são essas formas mais a vida que as anima” (Ibidem, p. 83).

Para Lefebvre, citado por Ferreira (2005):

“a utilização da noção de forma, função e estrutura (utilizadas com o mesmo peso de importância) que contribuiriam para a revelação do espaço produzido, já que permitiria a

Page 11: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

apreensão de suas estabilidades provisórias e de seus equilíbrios momentâneos, até porque a própria noção de estrutura tem, também, um caráter provisório. Ademais, a conjunção das três noções permite desvelar um conteúdo sócio-espacial que se encontra oculto, posto que dissimulado nas formas, funções e estruturas analisadas”.

Ainda Ferreira (2005) citando Santos, apoiado por Lefebvre, propõe a utilização

dessas categorias como um auxílio na interpretação do espaço em sua totalidade –

acrescentando aqui outra variável, o processo. Para Ferreira o espaço deve ser analisado

a partir de algumas categorias a qual ele classifica como: Forma (o aspecto visível de um

objeto), Função (atividade a ser desempenhada pelo objeto criado, a forma), Estrutura

(trata-se da natureza social e econômica de uma sociedade em um dado momento do

tempo: matriz social onde as formas e funções são criadas e justificadas) e Processo (é

uma estrutura em seu movimento de transformação). A esse respeito Correia (1995, p.

29-30) escreve que:

“Forma, função, estrutura e processo são quatro termos disjuntivos associados, a empregar segundo um contexto do mundo de todo dia. Tomados individualmente, representam apenas realidades parciais, limitadas, do mundo. Considerados em conjunto, porém, e relacionados entre si, eles constroem uma base teórica e metodológica a partir da qual podemos discutir os fenômenos espaciais em totalidade”.

Referindo à sua natureza multifacetada como aspecto teórico mais importante do

espaço, Lefebvre citado por Gottdiener (1993, p. 127), menciona que:

“O espaço é ao mesmo tempo o local geográfico da ação e a possibilidade social de engajar-se na ação. Isto é, num plano individual, por exemplo, ele não só representa o local onde ocorrem os eventos (a função de receptáculo), mas também significa a formação social de engajar-se nesses eventos (a função da ordem social)”.

Lefebvre conceitua “design espacial” como sendo ele próprio, um aspecto das

forças produtivas da sociedade – que, juntamente com a tecnologia, o conhecimento

humano e a força de trabalho, contribuem para o nosso “potencial de produção – assinala

ele que:

“A cidade, o espaço urbano e a realidade urbana não podem ser concebidos apenas como

a soma dos locais de produção e de consumo... O arranjo espacial de uma cidade, uma região, um país ou um continente aumenta as forças produtivas, do mesmo modo que o equipamento a as máquinas de uma fábrica ou de um negócio, mas em outro nível. Usa-se espaço exatamente como se usa uma máquina.” (Ibidem, p. 128).

“O design espacial é um instrumento político de controle social que o Estado usa para

promover seus interesses administrativos. O espaço de autoridades e administrações políticas dá, assim, ao Estado um instrumento independente para promover seus interesses”. (Ibidem, p. 130).

Page 12: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Já Geiger, (1994, p. 238) analisa a cidade de forma que ela “aparece

implicitamente como o elo entre o território e o amplo espaço, o material, e o abstrato, do

pensamento. O território corresponde a um nível de produção social do espaço”. Este

autor também defende a tese de que “espaço e território não significam exatamente a

mesma coisa e o esclarecimento deste fato tem a ver com a argumentação sobre os

conceitos de des-territorialização e espacialização ora em uso” (Ibidem, p. 235).

A respeito de território, Raffestin (1993, p. 59-60) entende ser “um trunfo particular,

recurso e entrave, continente e conteúdo, tudo ao mesmo tempo. O território é o espaço

político por excelência, o campo de ação dos trunfos”.

Neves (1994, p. 271) define os territórios como “espaços de ação e de poderes e

esse poder – como capacidade de decidir – é adaptado às circunstâncias contraditórias e

particulares no tempo e no espaço [cada vez mais diversificado e heterogêneo]”.

Ainda para esse mesmo autor, “os novos territórios estão sendo formados e

transformados em todas as partes sobre os escombros das territorialidades, da luta de

classes ou das novas fontes espacializadas de produção de mercadorias” (Ibidem, p.

273).

Já Corrêa (1989, p. 09) analisa o espaço urbano como sendo um local

“fragmentado e articulado, reflexo e condicionante social, um conjunto de símbolos e

campo de lutas”. É assim a própria sociedade em uma de suas dimensões, aquela mais

aparente, materializada nas formas espaciais. Cita ainda que “este espaço seja um

produto social, resultado de ações acumuladas através do tempo e engendradas por

agentes que produzem e consomem espaços, são agentes sociais concretos”. A esses

agentes que fazem e refazem a cidade ele nomeou-os em: proprietários dos meios de

produção (os grandes industriais); os proprietários fundiários (interessados no valor de

troca da terra e não no seu valor de uso); os promotores imobiliários (que realizam

operações de incorporação, financiamento...); o Estado (que atua diretamente como

grande produtor e consumidor de espaço) e os grupos sociais excluídos (que tinham

como possibilidades de moradia os densamente ocupados cortiços localizados próximos

ao centro da cidade). E assim o espaço transforma-se, através da política, em território.

Para Andrade (1994, p. 251) o “território não é sinônimo de espaço... do mesmo

modo territorialidade e espacialidade não devem ser empregadas de modo

indiferenciado”. Para ele “território constitui-se, em realidade, em um conceito

subordinado a um outro mais abrangente, o espaço, isto é, à organização espacial; ele é

o espaço revestido da dimensão política, afetiva ou ambas”.

Trindade Júnior (1996, p. 139) analisa da seguinte forma: “O espaço urbano não é

sujeito, mas produto, condição e meio de (re)produção das relações sociais. Nesse

Page 13: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

sentido, a reprodução da vida da e na cidade hoje faz-se num contexto de instauração de

uma, como diz Lefebvre, sociedade urbana que é, ao mesmo tempo, real e virtual”.

Ramagem (1996, p. 49) diz que “um território pressupõe um povo, um grupamento

com unidade cultural, o qual reclama uma dada porção do espaço como exclusivamente

sua; um espaço vivido, campo de representações simbólicas, lócus de solidariedades

territoriais, percebido através do sentimento”.

Outro autor que trabalha com este tema é Souza (1995, p. 78) que define o

território fundamentalmente como: “um espaço definido e delimitado por e a partir de

relações de poder”.

Souza (Ibidem, p. 99) prefere empregar o termo “Territorialismo” – que longe de ser

uma simples questão de instinto, é também uma estratégia – para designar o conteúdo de

territorialidade. Diz ainda que no singular (territorialidade) “remeteria a algo extremamente

abstrato: aquilo que faz de qualquer território um território, isto é, relações de poder

espacialmente delimitadas e operando sobre um substrato referencial” e no plural

(territorialidades) significariam “os tipos gerais em que podem ser classificados os

territórios conforme suas propriedades, dinâmicas, etc”. O autor exemplifica: territórios

contínuos e territórios descontínuos singulares são representantes de duas

territorialidades distintas, contínuas e descontínuas. A territorialidade remete a um certo

tipo de interação entre o homem e o espaço, a qual é sempre uma interação entre seres

humanos “mediatizada pelo espaço” (Raffestin, 1993 p. 160). Já Robin, citado por

Haesbaert (1995, p. 202) indaga que:

“Quanto ao espaço e ao território, eles tendem a ser escamoteados: a mundialização operada pela multimídia e a infovias apagam nossas referências espaciais. O espaço público vivido, aquele da rua, da cidade (...), desaparece. Ora, o território é o lugar privilegiado da construção social, o laço maior de articulação entre o social e o econômico; é aí também que se constata a alteridade e se opera o confronto com os outros. De fato, não existe político que não se inscreva sobre um território.”.

O geógrafo Haesbaert é o autor que tem se dedicado a discutir o conceito de território, alimentando com suas formulações o conhecimento das relações sociais

inerentes ao processo da produção do espaço. Compreende o autor (2001, p. 1770) que

as concepções de território podem ser agrupadas em três pontos – tendo como

influências as leituras de Augé (1992), Deleuze, Guattari (1997), Storper (1994), Raffestin

(1993) e Sack (1986):

* Jurídico-político = “... é a mais difundida, onde o território é visto como um

espaço delimitado e controlado, através do qual se exerce um determinado poder,

na maioria das vezes visto como o poder político do Estado”.

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* Cultural(ista) = “... prioriza a dimensão simbólico-cultural, mais subjetiva, em que

o território é visto sobretudo como o produto da apropriação/valorização simbólica

de um grupo sobre seu espaço”.

* Econômico = “... bem menos difundida, enfatiza a dimensão espacial das

relações econômicas, no embate entre classes sociais e na relação capital-trabalho”.

O território define-se, segundo Ferreira (2005), essencialmente, a partir de relações de poder:

“... o território seria relacional não somente no sentido da incorporação de um conjunto de

relações sociais, mas também no de desenvolver uma complexa relação entre processos sociais e espaço material, onde se conclui que o território inclui o movimento, a fluidez e as redes – sendo relacional".

Ainda Haesbaert (2001, p. 1770):

“... o território envolve sempre, ao mesmo tempo, uma dimensão simbólica, cultural, através

de uma identidade territorial atribuída pelos grupos sociais, como forma de ‘controle simbólico’ sobre o espaço onde vivem (sendo também, portanto, uma forma de apropriação), e uma dimensão mais correta, de caráter político-disciplinar: a apropriação e ordenação do espaço como forma de domínio e disciplinarização dos indivíduos.”.

Corrêa (1994, p. 251) aproxima-se de Haesbaert (2001, p. 1770) quando afirma

que a “territorialidade, por sua vez, refere-se ao conjunto de práticas e suas expressões

materiais e simbólicas capazes de garantirem a apropriação e permanência de um dado

território por um determinado agente social, o Estado, os diferentes grupos sociais e as

empresas”.3

A expansão do território, segundo Andrade (1994, p. 214), ao mesmo tempo em

que promovia a ampliação da territorialidade: “provocava a desterritorialidade nos grupos

que se sentiam prejudicados com a forma e a violência com que era feita”.

E assim “o território – que ficou ausente das preocupações geográficas até

recentemente – retorna com insistência na última década do século XX como elemento

que condiciona as relações de produção”, como salienta Sposito (2004, p. 119).

E dessa convergência espacial dos contrários, surgiu a reação à gestão central, à

desterritorialização e à integração com a formação de novas territorialidades, novas

formas de concepção do uso e do processo de domínio do território.

Com esta base conceitual seguirá uma apresentação sobre as denominações:

territorialização, desterritorialização e re-territorialização (des-re-territorialização).

Com uma grande ligação com o lugar, a territorialização é iniciada sem a preocupação de estar fincada somente no viés da ocupação do espaço de forma

3 Esta definição de territorialidade está embasada em Sack (apud, Corrêa/1994) onde ele aceita que “para os seres humanos (territorialidade) é uma poderosa estratégia geográfica para controlar pessoas e coisas através do controle de uma área”.

Page 15: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

materialmente construída, mas também, através de um processo de criação de símbolos

e códigos que caracterizam um lugar para um indivíduo ou grupo social, estando esse

próprio lugar, interligado às relações travadas entre as pessoas ao longo do tempo – o

lugar embebido de objetos comuns. Conforme afirmam Deleuze e Guattari, citados por

Ferreira (2005): “não há território sem um vetor de saída do território, e não há saída do

território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se

reterritorializar em outra parte”.

Haesbaert (1995, p. 168) define desterritorialização como “a superação constante

das distâncias, a tentativa de superar os entraves espaciais pela velocidade, de tornar-se

‘liberto’ em relação aos constrangimentos geográficos – ou rugosidades”, quando se

refere Milton Santos. Quando se remete a desterritorialização percebe-se a perda dos

vínculos com o lugar e as relações nele realizadas. Santos, citado por Ferreira (2005),

enfatiza essa tese quando argumenta que:

“hoje, a mobilidade se tornou praticamente uma regra. O movimento se sobrepõe ao repouso. Os homens mudam de lugar(...) mas também os produtos, as mercadorias, as imagens, as idéias. Tudo voa. Daí a idéia de desterritorialização. Desterritorialização é, freqüentemente, uma outra palavra para significar estranhamento, que é, também, desculturização”.

Ainda Ferreira (Ibidem):

“A desterritorialização rompe com toda uma formação de sistemas simbólicos de significados, de valores, que foram instituídos através de práticas sócio-culturais que, por sua vez, foram responsáveis pela construção social do lugar. A noção de desterritorialização deve ser percebida como uma concepção mais integradora do território, ao mesmo tempo espaço de apropriação/reprodução concreta e simbólica”.

Um processo de desterritorialização pode ser tanto simbólico – com a destruição de símbolos, marcos históricos, identidades – quanto concreto, material [político e/ou

econômico], pela destruição de antigos laços/fronteiras econômico-políticas de integração.

É bom lembrar que a produção do espaço envolve sempre e, concomitantemente,

a desterritorialização e a reterritorialização como definiu Barel, citado por Haesbaert

(1995, p. 170):

“(...) seria interessante se representar a mudança social [e seu contrário, o bloqueio] sob a forma de uma dinâmica territorial, pois a mudança social é em parte esta: a vida e a morte dos territórios. Estes territórios têm uma história. A mudança social é vista aqui como um movimento de territorialização-desterritorialização-reterritorialização bem entendido, a história territorial da transformação social resta inteira por escrever (...) De uma certa maneira, pode-se representar a modernidade como o lento aparecimento de códigos desterritorializantes que engendram seu contrário, isto é, a necessidade de novos territórios”

As práticas sócio-culturais, que foram responsáveis pela construção social do

lugar, fazem com que haja uma ruptura de toda uma formação de sistemas simbólicos de

significados e de valores através da desterritorialização.

Page 16: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

A reterritorialização representa uma nova rede de relações e processos que

geralmente desencadeiam uma nova codificação; ela rompe com toda uma formação de

sistemas simbólicos e significados e de valores instituídos que foram responsáveis pela

elaboração do lugar. Quando é realizada guarda novos traços e trajetórias. O processo de

reterritorialização se manifesta em associação a um movimento dentro da própria

organização espacial do lugar.

Um exemplo disso é um indivíduo que passa a trabalhar como autônomo e

permanece com seu vínculo empregatício; ele monta em sua própria residência um mini-

escritório de vendas de pequenos produtos para beleza feminina, por exemplo, – com

esse movimento de migração de tarefas de um determinado lugar para outro ele exercita

uma desterritorialização e uma reterritorialização para logo após, desterritorializar-se e

reterritorializar-se novamente.

Concluindo, Corrêa (1994, p. 252) menciona que a desterritorialização:

“É entendida como a perda do território apropriado e vivido em razão de diferentes processos derivados de contradições capazes de desfazerem o território. Novas territorialidades ou re-territorialidades, por sua vez, dizem respeito à criação de novos territórios, seja através da reconstrução parcial, in situ, de velhos territórios, seja por meio da recriação parcial, em outros lugares, de um território novo que contém, entretanto, parcela das características do velho território: neste caso os deslocamentos espaciais como as migrações, constituem a trajetória que possibilita o abandono dos velhos territórios para os novos”.

O que pode ser observado é que quando o território, unidade de gestão, se

expande pelo espaço não conquistado cria novas formas de territorialidades que

dialeticamente provocam novas formas de desterritorialização e dá origem a novas

territorialidades – é um ciclo contínuo. E é sobre essas (possíveis) territorialidades que o

estudo de três comunidades do “Complexo da Maré” (foco desse trabalho) objetiva

identificar as relações sociais do processo de construção do espaço.

A compreensão de uma realidade local insere-se na compreensão do processo de

formação do espaço à qual pertence. Neste sentido, faz-se necessária uma abordagem,

ainda que sumária, da constituição do espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro e as

suas territorialidades resultantes da segregação sócio-espacial ou ainda, da fragmentação

do tecido sóciopolítico-espacial, conforme apontado por Souza (2003a, p. 90).

Page 17: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

1.2 – Territorialidades e Segregação Sócio-Espacial Urbana: O entendimento das possíveis territorialidades existentes na cidade do Rio de Janeiro, exige ema volta no tempo para que se possa compreender como ocorreu e para

qual direção se deu o espraiamento da população carioca.

Um marco decisivo para o processo de urbanização da cidade do Rio de Janeiro

foi sem dúvida a chamada “revolução” ocorrida nos meios de transporte coletivo da cidade

carioca no último quartel do século XIX, onde “as empresas de ‘carris’ comandaram – em

larga medida – o espraiamento da malha urbana para muito além do antigo perímetro da

Cidade Velha e da Ulterior Cidade Nova, contribuindo, ao mesmo tempo, para tornar cada

vez mais nítida uma nova estruturação social do espaço carioca”, Benchimol (1990, p.

96).

Neste momento a tendência da cidade era a de bifurcar-se em dois viézes

distintos: de um lado os bairros com predomínio do uso residencial localizados nas áreas

norte e sul e de outro uma área central com características “febril, multiforme,

superpopulosa e insalubre”. Para fazer a conexão entre a zona norte surge o tronco

ferroviário da Estação Ferroviária D. Pedro II, aonde os bairros do subúrbio iriam

progressivamente se estruturar até final do século, dando início a implementação das

principais estações ferroviárias e conseqüentemente, o espraiamento da população

carioca. (ibidem).

Os conflitos e as contradições espaciais tornaram-se presentes no espaço urbano

durante a transição de cidade colonial – tendo em sua base a mão-de-obra escravista –

para a cidade capitalista. Neste instante, século XIX, surgiram os primeiros elementos

segregadores do espaço com a introdução do bonde e do trem que torna a expansão

física do espaço expressiva.

Entre 1850-1870, a crise habitacional – dita como “escassez e carestia das

habitações para gente pobre” – emergiu como um dos traços mais característicos e

recorrentes da vida urbana do Rio de Janeiro, somando-se a isso, ter-se-ia ainda a

incidência de epidemias, onde o epicentro desta crise seria a área central onde coabitava-

se em grande número e de forma desordenada, grande parte da população carioca.

Apoiando-se em Engels, Benchimol (1990, p. 124) cita que: “a crise da habitação é

produto da forma social burguesa; sua história está, portanto, indissoluvelmente

subordinada ao desenvolvimento das relações capitalistas de produção no espaço urbano

carioca (e à conseqüente apropriação capitalista desse espaço).

No início do século XX, o prefeito Pereira Passos (1902-1906), aliado ao governo

republicano, realizou a primeira grande intervenção urbana no Rio de Janeiro, Ao procurar

embelezar e modernizar a cidade, o denominado “Haussmann Tropical” iniciou a

Page 18: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

reestruturação da cidade, redefinindo o centro e as áreas residenciais, oficializando a

segregação espacial entre ricos e pobres, e tornando-se, paradoxalmente, um grande

responsável pela consolidação inicial das favelas4.

Corrêa (1989, p. 65), citando Harvey, diz que a segregação significa:

“diferencial de renda real. Proximidade às facilidades de vida urbana, como água, esgoto, áreas verdes, melhores serviços educacionais, etc; e ausência de proximidade aos custos da cidade, como crime, serviços educacionais inferiores, ausência de infra-estrutura, etc. se já há diferença de renda monetária, a localização residencial pode implicar diferença ainda maior no que diz respeito à renda real”.

De acordo com a definição da Escola de Chicago, “Segregação Residencial” seria “uma concentração de tipos de população dentro de um território”, onde a área natural –

”uma área geográfica caracterizada pela individualidade física e cultural resultante do

processo de competição impessoal que geraria espaços de dominação dos diferentes

grupos sociais, replicando ao nível da cidade processos que ocorrem no mundo vegetal” –

seria a expressão espacial da segregação (Zorbaugh, apud Corrêa/1989, p. 59).

Castells (apud Corrêa, 1989 p. 60) define a Segregação Residencial como “um

processo que origina a tendência a uma organização espacial em áreas de forte

homogeneidade social interna e de forte disparidade entre elas, sendo um produto da

existência de classes sociais e tendo sua espacialização no urbano” . Ainda Corrêa

escreve que: “A segregação residencial pode ser vista como um meio de reprodução

social, e neste sentido o espaço social age como um elemento condicionador sobre a

sociedade”.

Assim, enquanto o lugar de trabalho, fábricas e escritórios, constitui-se no local de

produção, as residências e os bairros, definidos como unidades territoriais e sociais,

constituem-se no local de reprodução e deste modo a segregação residencial significa

não apenas um meio de privilégios para a classe dominante, mas também um meio de

controle e de reprodução social para o futuro (Corrêa, 1989 p. 60).

A questão de como morar é concomitantemente associado à problemática da

produção da habitação – que se trata de uma mercadoria cujo valor de uso é superado

pelo valor de troca, fazendo dela uma mercadoria sujeita aos mecanismos de mercado –

e tem um caráter especial surgido na medida em que depende de outra mercadoria

especial, a terra urbana, cuja produção é cara, o que exclui boa parte da população.

No problema de moradia o Estado intervêm de forma direta através da construção

de habitações e indiretamente na forma de financiamento aos consumidores e às firmas

construtoras, ampliando a demanda solvável e viabilizando o processo de acumulação

4 Caracteriza-se pela precariedade das condições de habitabilidade, tanto no que se refere à moradia (construções feitas com materiais perecíveis), como à oferta de infra-estruturas básicas (saneamento e drenagem), à ocupação (morfologia e tipologia) e à propriedade da terra. (IPEA 2001).

Page 19: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

capitalista. Isso define a questão de “como e onde morar” apontada por Corrêa (1989, p.

63), onde “ambos se fundem dando origem a áreas que tendem a ser uniformes

internamente em termos de renda, padrões culturais, valores e, sobretudo, em termos dos

papéis a serem cumpridos na sociedade pelos seus habitantes”, onde esta tendência que

se mostra mais marcante nos extremos da sociedade: nos grupos mais elevados e mais

baixos da sociedade.

Se por um lado o Estado exerce o papel na ação estatal, a classe dominante (ou

algumas de suas frações) exerce, subjacente, este poder na segregação residencial na

medida em que controla o mercado de terras, a incorporação imobiliária e a construção,

direcionando seletivamente a localização dos demais grupos sociais no espaço urbano,

atuando indiretamente através do Estado.

O primeiro registro referente a uma favela no Rio deu-se no recenseamento de

1920, que documentou uma aglomeração de 839 casas no Morro da Providência

organizada por veteranos da guerra dos Canudos. A primeira leva importante de

migrantes rurais no Brasil, nos primeiros anos da década de 1930, provocou o rápido

crescimento da população favelada. Aos novos migrantes à procura de casa vinham

somar-se os moradores da cidade que não mais podiam pagar os aluguéis nem mesmo

de cortiços, avenidas ou cabeças de porco. As favelas, nas colinas ao redor do centro da

cidade, ofereciam a dupla vantagem de não cobrarem aluguel e de serem bem

localizadas, e para muitos constituíram a melhor solução.

Com isso foi inevitável o acentuado número de favelas concentradas na cidade do

Rio de Janeiro, já a partir da década de 60, quando sua população teve um crescimento

bastante significativo, conforme se observa na Tabela V e nos Gráficos I, II, III e IV.

As favelas, definidas e contabilizadas, começaram a ser estudadas, tornando-se

cada vez mais visíveis e tema de vários debates. Portanto apenas em meados do século

XX é que se problematiza novamente a questão da habitação popular, tendo então como

eixo principal a favela. Este padrão de habitação auto-produzido caracterizava-se pela

sua ilegalidade em termos jurídicos e sua irregularidade em termos urbanísticos, além da

precariedade e da insalubridade. Assim, quando não pôde mais ser negada, sua

existência foi considerada uma “chaga” que deveria ser extirpada e seus moradores

removidos.

Page 20: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Tabela V – Evolução do Crescimento da População de Favelas, da População Total e do Crescimento de Favelas no Estado do Rio de Janeiro

Entre as Décadas de 1950/1991.

Ano População de Favelas (A)

População total do Rio (B) A/B (%)

% do crescimento de Favela por

Década

% de crescimento da População do Rio por

Década

1950 169.305 2.337.451 7.24 _____ _____

1960 337.412 3.307.163 10.20 99.29 41.49

1970 563.970 4.251.918 13.26 67.15 28.57

1980 628.170 5.093.232 12.33 11.38 19.79

1991 1.001.336 5.480.768 18.27 59.41 7.60

Fonte: http:www.ibge.gov.Br

Gráfico I – Percentual de Moradores de Favelas

Fonte: http://www.favelatemmemoria.com.br

Page 21: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Gráfico II – Evolução da População de Favelas no Município do Rio de Janeiro

Fonte: http://www.favelatemmemoria.com.br

Gráfico III – Evolução do Nº de Favelas no Município do Rio de Janeiro

Fonte: http://www.favelatemmemoria.com.br

Page 22: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Gráfico IV – Crescimento Populacional de 04 Favelas:

Fonte: http://www.favelatemmemoria

De 14 favelas em 1920 para mais de 500 no ano 2000. Nesse período, muita coisa

mudou na realidade dos morros cariocas. Hoje, o número de favelados representa quase

20% da população total do município do Rio de Janeiro. Algumas comunidades viraram

complexos, Alemão, Jacarezinho e Maré, que conforme o gráfico acima, ultrapassaram

os 50 mil habitantes, enquanto áreas como a Zona Oeste – antes um vazio no mapa –

viraram opção de moradia barata e hoje lideram o ranking de novas construções.

Embora não haja uma explicação unânime para a segregação social, é evidente que a cidade formal sempre manteve um posicionamento contrário à favela, sugerindo a

formação de uma cidade à parte pela presença desses assentamentos. A partir da

década de 40, as favelas começam a ser vistas pelos moradores da cidade formal como

“aglomerados invasores” e “ocupações ilegais de terra” embora a crítica à chamada

“teoria da marginalidade” tenha buscado mostrar o equívoco dos discursos dualistas

sobre as favelas a partir da década de 70.

De qualquer forma, a visão dualista por parte da cidade formal ganhou novo fôlego

com a inclusão do narcotráfico e da violência urbana e foi dotada de legitimidade social

pela utilização freqüente pela mídia de metáforas como “cidade partida” e “desordem

urbana”. De fato, a partir da primeira metade do século 20, o próprio Estado mudou sua

forma de encarar as favelas, baseando-se em políticas de controle e repressão sendo os

aglomerados usualmente comparados a “doenças sociais”. Por outro lado, ao mesmo

tempo em que políticas de remoção das favelas são postas em práticas, emergem

Page 23: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

demandas por parte de governo e instituições não governamentais de novos discursos

que subsidiem a política de “integração da favela ao bairro”.

Na realidade, o distanciamento social entre a cidade formal e as favelas continua

em curva ascendente. A barreira invisível entre estas e a cidade, materializa-se através

da auto-segregação da classe média em condomínios exclusivos e somam-se aos muros

invisíveis da estigmatização e do preconceito geradas pela associação simplista entre

favelas e tráfico de drogas. Segundo Souza (2002 p. 500), o ingrediente principal para

esta “fragmentação do tecido sócio-político-espacial” encontra-se na multiplicação de

enclaves territoriais controlados por traficantes de drogas de quem se necessita a

anuência para que sejam viabilizados quaisquer tipos de intervenção estatais.

Embora não seja prerrogativa das favelas a existência do tráfico de droga e sua

conseqüente violência, a falta de governança nessas áreas empobrecidas encorajou o

surgimento de um novo poder paralelo que desafia constantemente o poder público oficial

e espalha o terror por todo o território urbano. De fato, o comprometimento do poder

público com a cidade formal em detrimento das populações mais carentes, resultou em

assentamentos irregulares de tipologia urbano-arquitetônica característica. A alta

densidade desses assentamentos juntamente às precárias condições de vida traduziu de

forma contundente o descaso de toda a sociedade com a população mais empobrecida.

Se por um lado a cidade formal cresceu dentro de parâmetros urbanos definidos, por

outro, as favelas se multiplicaram em um estado de completa desordem impossibilitando a

integração com o resto da urbe e perpetuando o ciclo de pobreza e exclusão.

Através de indicadores sociais pode-se considerar que algumas das principais

questões que diferenciam um bairro formal de uma favela, além da questão da ilegalidade

seja ela fundiária ou edilícia, são: a falta de infra-estrutura urbana e serviços essenciais, o

baixo valor da renda da população, a alta taxa de desemprego, o alto índice de

analfabetismo e o baixo grau de escolaridade. No entanto, para que se possa entender

melhor as características das favelas e suas diferenças em relação à cidade formal, além

dos índices socioeconômicos, deve-se levar em consideração as relações sociais

existentes dentro dessas comunidades, seus símbolos e seu dinamismo, bem como a sua

relação com a cidade formal.

É amplamente reconhecido – pelo menos na mídia especializada – que o

agravamento dos problemas urbanos associados à pobreza, relacionados espacialmente

aqueles associados à favelização e ao ímpeto da incorporação de novas áreas nas

periferias, tem-se constituído em importante desafio para o poder público.

A política governamental do Estado em relação às favelas mudou radicalmente na

última década do século XX – anteriormente o que se pretendia era o desfavelamento

Page 24: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

(erradicação), hoje a “urbanização e regularização de favelas”5 são consideradas

importantes instrumentos para possibilitar o acesso da população de mais baixa renda à

terra urbana. Sobre o programa de erradicação das mesmas será melhor abordado no

item 04 deste trabalho.

Sabe-se que as favelas são, atualmente, territórios em constante conflito entre

traficantes de facções rivais e destes com a polícia, e que a população, sem ter como se

defender, fica vulnerável às vontades e ações desses vários exércitos, que dominam e

impõem a sua própria lei aos moradores, os quais não tem outra saída a não ser aprender

a conviver e respeitar as regras a eles impostas, uma vez que diferentemente de qualquer

morador da cidade formal, não tem nenhum acesso à segurança e à polícia. Essa última

vê em todos os moradores da favela um bandido em potencial, dando o mesmo

tratamento a todos: a intimidação e a repressão violenta.

Como fato social, a favela deve ser enquadrada em um processo histórico mais

generoso tendo em vista a dinâmica de seus atores: os favelados. Neste sentido,

entende-se que a única estrutura espacial urbana que atende é o quilombo. Assim, a

favela vem representando para a república o mesmo que o quilombo representou para a

ordem imperial, onde a ação do Estado se fez presente somente através do aparelho

repressivo policial. Desta maneira, o espaço favelado vem passando por um processo

contraditório de construção (busca de habitação pelos mais pobres) e desconstrução

(“necessidade” do ordenamento espacial da cidade). Um mix de fatores como ausência do

Estado na dotação infra-estrutural, sobretudo para saúde e educação; falta de absorção

desta mão-de-obra pelo mercado de trabalho, dentre outros fatores; juntamente com pré-

disposição do aparelho repressivo fizeram da favela ‘locus’ da violência urbana nos dias

de hoje.

Em se tratando de Rio de Janeiro, fica evidente que, desde sua origem, se

pensarmos em um processo, os lugares ocupados pelos mais pobres vêm recebendo

pouca atenção do poder público no que se refere ao tamanho dos problemas sociais.

Entretanto, como no passado, em sua versão anterior à República, o quilombo, a favela

recebe uma atenção especial do aparelho policial, tendo em vista que favelas e favelados

são considerados como um caso de polícia, mas não como um problema da sociedade.

“Atualmente, a favelização e a periferização, expressões espaciais mais marcantes da

reprodução da pobreza urbana, impressionam não somente por sua magnitude, mas

igualmente por sua complexidade (Souza, 2000 p. 193).”

5 Ação mais complexa que a regularização de loteamentos – integração de assentamentos urbanos ilegais ao conjunto da cidade legal, mediante investimentos públicos e medidas administrativas e jurídicas para promover a compatibilização da realidade física (do local), registraria (do direito de propriedade) e a administrativa (da gestão urbanística) –, pois geralmente exige investimentos públicos para urbanização e mesmo para substituição de habitações removidas para dar lugar às obras de urbanização.

Page 25: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

De acordo com Souza (2000, p. 193), “o traço mais impressionante da favelização,

da década passada para cá, fica por conta, porém, da ‘territorialização de favelas por

parte do tráfico de drogas”, onde os espaços socialmente segregados que oferecem

suporte logístico para as quadrilhas que operam no varejo nas metrópoles não se

restringem às favelas... Elas são, dentre todos os espaços segregados, os palcos

preferenciais da territorialização protagonizada por traficantes de varejo, inexistente em

bairros de classe média.

Essa territorialização ficou evidenciada na virada dos anos 70 para os anos 80

sendo um marco histórico pois conduziu a uma fragmentação que envolveu não apenas

dos ‘territórios ilegais’ – as favelas e outros espaços controlados por alguma quadrilha de

traficantes vinculada a algum ‘comando’ – mas igualmente, aqueles espaços que não

estão submetidos a qualquer ‘poder paralelo’ ao Estado.

O que pode ser observado é que quando o território, unidade de gestão, se

expande pelo espaço não conquistado cria novas formas de territorialidade que

dialeticamente provocam novas formas de desterritorialidade e dá origem a novas

territorialidades – é um ciclo contínuo. E é sobre essas (possíveis) territorialidades que o

estudo das comunidades da Maré procura identificar.

2 – A Formação do Complexo da Maré:

O modelo econômico adotado pelo país, após a Segunda Guerra Mundial,

consolidou o poder da burguesia urbano-industrial. Com a decadência da agricultura e a

forte industrialização, intensos movimentos migratórios se formaram em direção às

cidades. Os migrantes chegavam à Capital e se instalavam nos subúrbios distantes ou

nas favelas. A distância entre o local de trabalho e o domicílio aumentou

consideravelmente e a necessidade de morar perto do local de trabalho levou a

população migrante a se instalar nos terrenos não ocupados que escaparam da

especulação imobiliária pela dificuldade, ou mesmo, impossibilidade de construção:

morros, terrenos inundáveis e de propriedade duvidosa. Favelas se propagaram tanto em

zonas industriais, como residenciais.

O poder público pouco se manifestava face ao aumento do fluxo migratório, uma

vez que o aumento da mão-de-obra barata era necessário para a indústria em

crescimento e os terrenos ocupados pelas favelas eram públicos ou pouco valorizados.

Por outro lado, pelo caráter populista da política governamental, entre 1945 e 1964, as

favelas passaram a ser vistas como fontes de numerosos votos.

Page 26: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Os anos 40 marcaram um período de mais forte proliferação de favelas no Rio de

Janeiro. Foi nesta época que o primeiro Censo oficial foi realizado. Apesar dos números

deste Censo terem sido controvertidos, ele se tornou o marco do reconhecimento oficial

pelo Estado da existência das favelas, que já faziam parte da paisagem da cidade do Rio

de Janeiro.

2.1 – Primórdios da Ocupação na Maré (1940/1960):

Conforme quadro abaixo observa-se, ao início da década de 50, a existência de

105 favelas no Rio de Janeiro, abrigando um total de 169.305 de moradores. As favelas

concentravam-se na chamada zona suburbana (44% das favelas e 43% da população

favelada), seguida da zona sul (24% e 21% respectivamente) e da região Centro-Tijuca

(com 22% e 30%). Esse recenseamento, realizado pelo IBGE em 1970, também revelou a

predominância de uma população de migrantes nas favelas cariocas: 52% eram naturais

do Estado do Rio de Janeiro (na ocasião a capital federal – a Cidade do Rio de Janeiro –

constituía o Distrito Federal), Minas Gerais, Espírito Santo e regiões do nordeste

brasileiro.

Tabela VI – Evolução do Número de Favelas em Relação aos Domicílios e Habitantes da Cidade do Rio de Janeiro

ANO Nº DE FAVELAS DOMICÍLIOS HABITANTES

1950 105 44.000 169.305

1960 147 69.680 335.696

1967 230 162.741 757.696

1970 300 185.000 1.000.000

Fonte: Anuário Estatístico da Guanabara, do Censo de 1970 – IBGE. Extraído de “Metrópole de 300 Favelas”. Nunes, Guida. Ed. Petrópolis. 1976. Em 1950, 36% da população brasileira viviam na área urbana, enquanto 63,8%

faziam do Brasil um país predominantemente rural. Em 1991, verifica-se que este quadro

inverteu-se, drasticamente, passando o país a ter 75,2% de sua população vivendo nos

grandes centros urbanos. Esse crescimento da população urbana no Brasil foi

conseqüência de vários fatores, mas nenhum tão marcante como o êxodo rural.

Na cidade do Rio de Janeiro, como em outras áreas urbanas do país, o fluxo

migratório agravou o problema da escassez de moradias, já comprometido com a

descontinuidade de uma política urbana e habitacional voltada para população de baixa

Page 27: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

renda, problemática esta agravada a partir da década de 40 quando assumiu proporções

cada vez maiores, permanecendo ainda hoje como tema de um debate político sem

soluções concretas legitimadas. Mesmo assim, medidas governamentais foram objeto de

políticas públicas que visavam a proibição do crescimento das favelas.

A vinda de migrantes nordestinos foi marcante para as áreas deste estudo. Eles

procuravam áreas pertencentes à União. Neste sentido, a área ocupada hoje pela Maré,

oferecia todas as condições para este tipo de ocupação, pois se tratava, em boa parte, de

terras devolutas e terrenos da Marinha Brasileira. Na figura abaixo pode-se observar a

antiga área de mangue, hoje ocupada pela Maré.

Figura 01. “Maré – Época de Manguezal”. (Fonte: http://www.ceasm.org.br)

Fato fundamental para o surgimento e crescimento do Complexo da Maré foi a

construção, em 1946, da chamada “Variante Rio-Petrópolis”, que mais tarde se tornaria a

conhecida Avenida Brasil (Fig. 02).

Page 28: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Fig. 02 – “Obra de construção da Avenida Brasil, trecho Manguinhos, 1940”. Acervo do Arquivo Geral da Cidade. In: http://www.ceasm.org.br

O projeto de construção de uma via (ver fig. 03) tinha a finalidade principal de

expandir a antiga área industrial do Rio de Janeiro – e que acabou por se tornar a

principal via de comunicação entre o centro, os bairros do subúrbio e a periferia da

cidade.

A Av. Brasil proporcionou o crescimento de um cinturão industrial às suas

margens, que somado ao isolamento dos terrenos na orla da Baía de Guanabara e à

facilidade de acesso a tais áreas, criou condições bastante favoráveis para o surgimento

das comunidades da Maré, pois em sua construção trabalharam muitos dos primeiros

moradores destas áreas – como se percebe na figura abaixo a Av. Brasil e o viaduto de

Bonsucesso em construção.

Fig. 03. “Variante Rio-Petrópolis – atual Av. Brasil – com o Instituto Oswaldo Cruz ao centro/acima”. (Foto: acervo da Casa de Oswaldo Cruz). In: http://www.ceasm.org.br

Page 29: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

E segue adiante um pequeno recorte das comunidades da Maré...

As comunidades da área hoje conhecida como Complexo da Maré surgiram a partir

das décadas de 30/40, sendo a mais antiga a que se originou no Morro do Timbáu, região

já ocupada desde o período colonial, por se localizar, ali, o antigo Porto de Inhaúma.

Posteriormente, a área foi ocupada por portugueses e italianos que ali estabeleceram

suas chácaras e por pescadores que fundaram uma colônia de pesca. O nome da

comunidade passa a ser o da região, que era conhecida como thybau, do tupi-guarani,

"entre as águas", o que denota terem sido os índios os primeiros habitantes do lugar.

Esse local “é uma formação típica de favelas em encostas mas com uma grande

diferença em comparação com outras favelas de morro; o Timbáu apresenta uma

densidade habitacional extremamente baixa” (Jacques, p. 25). A ocupação da

comunidade propriamente dita se dá a partir da chegada da primeira moradora da

comunidade, D. Orosina, que num passeio de final de semana se apaixona pelo lugar, e

recolhendo a madeira que a maré trazia, demarca uma área e constrói o primeiro barraco,

com a ajuda de seu marido.

Este primeiro casal vinha do centro do Rio, onde viviam numa casa de cômodos,

atrás da Estação da Central do Brasil. A mulher tinha acabado de chegar do interior de

Minas Gerais e não conseguia viver sufocada no pequeno cômodo, "com a chuva caindo

em goteiras". Ela escolheu um ponto seco, conveniente, numa pequena elevação próxima

ao mar e levantou seu pequeno barraco com os materiais que a maré trazia de graça.

Mais tarde, ela se dedicou a plantar árvores frutíferas e uma horta e a cercar seu

"território". Ela conseguiu fazer tudo sem que qualquer pessoa a perturbasse. Mesmo

assim, o casal estava bastante assustado, percebendo que eles estavam ocupando algo,

sem autorização, que não lhes pertencia. Sobre o processo de formação das

comunidades da Maré, Jacques (2002, p. 22) argumenta que:

“As comunidades que formam o complexo têm características e processos espaciais bem distintos, que vão do mais planejado ao mais espontâneo, do mais regular ao mais irregular, do mais formal ao mais informal, do mais projetado ao mais livre. As diferentes entre as formas, que hoje constituem uma diversidade muito rica, se deram por vários fatores: a história de cada ocupação, as características do sítio, as questões de propriedade, as origens da população, a organização da comunidade, os contextos políticos e sociais. Uma grande gama de formas espaciais pode ser encontradas na Maré... As diferentes comunidades são tão distintas como os diferentes bairros de uma cidade formal e chegam a ter identidades próprias, que constituem, todas juntas, a cultura multifacetada da Maré”.

O 1º Regimento de Carros de Combate (RCC) instalou-se defronte ao Morro do

Timbáu, e sob a justificativa de impedir a ocupação de terrenos que lhe pertenciam (o que

mais tarde se vai verificar não ser verdade) passou a exercer um controle sistemático

Page 30: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

sobre a comunidade com a derrubada de barracos, o controle da entrada de moradores

através da colocação de cercas de arame farpado e a cobrança, por parte, de alguns

militares de ‘taxas de ocupação’.

A história da comunidade do Timbáu vai ser, na década de 50, marcada pela

resistência ao exército que reclamava a propriedade da área e que vai tentar impedir por

todos os meios, inclusive pela violência, a sua ocupação. Por intervenção de D. Orosina,

que escreve uma carta denunciando tal situação ao Presidente Getúlio Vargas, que a

recebe no Palácio e lhe responde dando garantias contra os agentes militares, a

comunidade passou a crescer e se organizar tendo, em 1954, fundado a terceira

associação de favelas do Rio de Janeiro.

Enquanto a comunidade do Timbáu apresentou um lento crescimento,

permanecendo na década de 40 com poucos habitantes surgia, ao final deste período

(1947), a primeira grande concentração humana que foi a Baixa do Sapateiro que na

época, teve sua formação a partir de um pequeno grupo de barracos construídos sobre

palafitas. Não há consenso sobre a origem do nome.

A ocupação por moradias, inicialmente, ocorreu a partir dos limites do “loteamento

de Bonsucesso”, onde ainda se podem notar muitas casas do início do século XX. Nessa

época se tem notícias dos primeiros barracos:

“Há dois anos moradores iniciaram a construção de barracões nos terrenos da Marinha à margem da Avenida Brasil em Bonsucesso. Os terrenos formavam um charco que, à medida que iam levantando as casas, iam aterrando. Se localizam ali hoje cerca de 800 barracos. Já havia na parte alta da Rua Jerusalém outro grupo de residências. A Prefeitura mandou destruir tudo”.(Fonte: Jornal ‘A Noite’, 24/11/1947).

“Cerca de 2000 pessoas ficarão desabrigadas (...) Prefeitura ameaça demolir 800

barracões. Há quase dois anos construídos por operários, em terrenos existentes no lugar denominado ‘Favelinha do Mangue de Bonsucesso’, no fim da Rua Nova Jerusalém – Comissão faz veemente apelo ao prefeito Ângelo Mendes de Moraes”.(Fonte: Jornal ‘O Globo’, 26/11/1947).

Estes artigos publicados em diferentes jornais da cidade dão notícia, já em 1947,

da existência de uma ocupação com grande número de barracos, no final da Rua

Jerusalém, hoje principal acesso à comunidade da Baixa do Sapateiro e dessa forma,

pode-se dizer que a localidade é uma das mais antigas comunidades da Maré. Em 1957

surge a “União de Defesa e Melhoramentos do Parque Proletário da Baixa do Sapateiro”,

que somente foi registrada em 1959, sendo uma das primeiras associações de favelas do

Rio de Janeiro.

Em 1944, após pedido do ministro Gustavo Capanema ao Presidente da República

decide-se pelo aterramento do arquipélago das ilhas do Fundão para tornar realidade o

sonho de uma universidade neste local, o que provocou diversas alterações no quadro

Page 31: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

social da região, pois muitos dos que trabalharam na sua construção vieram a se instalar

na Maré, devido à proximidade, o que provocou um incremento na ocupação e

crescimento das comunidades – principalmente no Morro Timbáu e na Baixa do

Sapateiro.

“É interessante notar que na Maré, ao contrário da maioria das favelas de morro, os terrenos mais valorizados eram os mais altos, por serem os mais secos. Na parte mais baixa ficava a população mais pobre, geralmente em palafitas nas áreas inundáveis. Foi só com o ‘Projeto Rio’ que as palafitas desapareceram completamente... Mesmo que hoje já não existam palafitas nem áreas inundáveis na comunidade, em sua configuração urbana, e principalmente na irregularidade do tecido, podemos ainda notar sinais desse passado próximo de precariedade e instabilidade. A Baixa do Sapateiro junto com parte do Morro do Timbáu e do Parque Maré são as áreas onde as características típicas das favelas cariocas – arquiteturas fragmentária, tecido urbano labiríntico, desenvolvimento territorial orgânico – se apresentam de forma mais evidente dentro do Complexo da Maré” (Jacques 2002 p. 32-33).

Em 1950, surgem as primeiras moradias do Parque Maré (vide fig. 04) como um

prolongamento da ocupação ocorrida na Baixa do Sapateiro e essa área tornou-se

bastante atrativa às populações que chegavam com o fluxo migratório, principalmente da

Região Nordeste. A área que ia sendo ocupada pelos moradores do Parque da Maré

(1953 já consolidado) era dominada pela lama, por vegetação de mangue e pelo

movimento das águas, tendo a partir da década de 60 ocorrido uma grande expansão da

ocupação em direção à Baía da Guanabara, sendo o Parque Maré, nesta época,

predominantemente dominado pelas palafitas, conforme as figuras abaixo:

Fig. 04 – “Parque Maré – Década de 50”. Fonte: http://www.favelatemmemoria.com.br

Page 32: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Fig. 05 – “Maré em 1960”. Fonte: http://www.favelatemmemoria.com.br

Não havia qualquer infra-estrutura, a luz era coisa rara nas casas, inicialmente

puxada, através dos "gatos" e posteriormente por meio de cabines onde havia um

medidor da LIGHT e a luz era revendida às casas. Posteriormente, por medida do próprio

governo, foram criadas as Comissões de Luz. A água chegava através de pequenas

bicas, puxadas clandestinamente dos ramais, onde se formavam grandes filas. Muitos

apanhavam água do outro lado da Avenida Brasil, que pela distância exigia meios

criativos para o transporte de uma maior quantidade. Daí surgiram os chamados "rola-

rola" ou "água-de-rôla": um barril de madeira, envolto em pneus, ou com madeira

emborrachada, puxado por uma alça de ferro. Comuns eram os atropelamentos na

"variante" (atual avenida Brasil) e face as dificuldades, muitos faziam um verdadeiro

comércio com a água.

Enquanto isso acontecia as crianças não tinham local apropriado para brincarem,

pois eram escasso os locais de entretenimento – somente nas escolas ou quando saíam

com os pais –, sendo assim, elas brincavam em ambientes inadequados como, por

exemplo, nas pontes sobre a maré negra e correndo sérios riscos à sua integridade física

(como retratada na fig. 07).

Page 33: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Fig. 06 – “Armazenamento caseiro d’água”. Fonte: http://www.favelatemmemoria.com.br

O esgoto, muito precário foi feito pelos próprios moradores, e era despejado por

ligações clandestinas nas galerias construídas pelo Governo Carlos Lacerda na Rua

Flávia Farnese – no Parque Maré. Também na década de 60 é fundada a Associação de

Moradores do Parque Maré que teve importante papel na consolidação da comunidade,

principalmente na época de instituição do Projeto-Rio.

Fig. 07 – “Crianças sobre as pontes da maré”. Fonte: http://www.favelatemmemoria.com.br

Page 34: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

A história do “Parque Rubens Vaz” começa no ano de 1951, quando surgem no

local os primeiros barracos. A área, nesta época, era conhecida como areal, devido à

grande quantidade de areia espalhada no local, por ocasião da drenagem e canalização

do Canal da Portuária. Quando uma pessoa chegava à área para fixar residência, já era

avisada de que não deveria construir à margem da avenida Brasil, porque esta seria

futuramente alargada, como de fato foi. Sendo assim, ninguém construiu sua habitação a

menos de 40 metros da variante Rio-Petrópolis.

Os barracos eram construídos, inicialmente, com um cômodo só e, de acordo com

as possibilidades, os moradores iam aumentando o número de cômodos. As construções

eram rudimentares e sem nenhuma tecnologia. Segundo os moradores, era proibida a

construção em alvenaria sob pena de demolição por parte da polícia.

Em 1965, durante o Governo Carlos Lacerda, a população da área sente

necessidade de encontrar um nome oficial para o lugar. Escolhem o nome Rubens Vaz

em homenagem ao major assassinado em atentado na Rua Toneleros, em Copacabana.

A Associação de moradores é então registrada com o nome de Associação de Moradores

do Parque Major Rubens Vaz.6

Fig. 08. “Construção de palafita na Maré em 06/09/1971”. Fonte: http://www.favelatemmemoria.com.br O advogado Margarino Torres – o mesmo que defendeu a população e seu direito

de permanecerem na área hoje conhecida como Parque Major Rubens Vaz – ligado ao

PCB e que tinha um escritório nesta localidade, deu todas as coordenadas para a

estruturação da comunidade Parque União, em 1959, e esta localidade foi uma das áreas

com um certo “planejamento de ocupação”, pois ele demarcou áreas para a permanência 6 História dos Bairros da Maré, coordenado por Lilian Fessler Vaz, UFRJ, 1994. Retirado da internet em http:// www.ceasm.gov.br em 05/10/05.

Page 35: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

dessa população. Segundo Vaz (1994), “As casas eram construídas primeiramente em

madeira. Internamente eles iam levantando as paredes em alvenaria, isso tudo feito às

escondidas, pois, segundo a população, o governo proibia a construção em alvenaria. A

madeira só era retirada, quando a casa já estava praticamente pronta”. Margarino e sua

equipe lideraram e administraram a área até 1961.

2.2 – Políticas Públicas e Seus Reflexos na Segregação do Espaço (1960/80):

Nova Holanda foi concebida como um Centro de Habitação Provisória (CHP) que

funcionaria como um local de triagem, dentro da política de remoções do governo, que

visava muito mais retirar núcleos favelados de áreas nobres da cidade, do que resolver o

problema habitacional. A tarefa de controlar o processo de transferência dos moradores

de favelas a serem erradicadas ficou a cargo da Fundação Leão XIII, que foi incorporada

à Secretaria de Serviço Social da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Para uma

melhor análise dessa situação é preciso voltar ao passado e conhecer melhor o

“Programa de Erradicação de Favelas”, que deu origem aos CHPs – como a Nova

Holanda.

“No CHP os moradores removidos passariam por um processo de preparação para morarem em locais urbanizados, tendo noções de higiene e educação, além de cuidados com a nova moradia. No período de 1962-63 foi construído o primeiro setor, que era formado por 981 (conforme quadro abaixo) casas de madeira construídas em lotes 5 X 10 mts e o segundo setor foi construído no último ano de governo de Lacerda, onde se construíram 228 vagões de madeira divididos em 39 unidades... O que era transitório, acabou por se tornar definitivo, e até hoje vivem na comunidade, muitas famílias que foram para Nova Holanda aguardar sua remoção para um novo conjunto da cidade, o que nunca chegou a acontecer. Com a degradação dos serviços de água e esgoto e a chegada em 1971 dos removidos da Favela Macedo Sobrinho, a situação do CHP se agrava e dessa forma, os moradores de Nova Holanda iam se integrando, pelos problemas comuns, cada vez mais aos demais moradores da Maré” (Fonte: http://www.ceasm.org.br).

“A comunidade Nova Holanda (1962) teve um processo de ocupação completamente diferente, para não dizer oposto, ao das demais formações que vimos até agora. Sua origem não foi um invasão espontânea, nem mesmo uma invasão planejada, como ocorreu no Parque União. A comunidade de Nova Holanda foi inteiramente planejada e construída pelo poder público na década de 60, no governo Carlos Lacerda, sobre um imenso aterro realizado ao lado do Parque Maré. As dimensões do aterro realizado impressionaram tanto que influenciaram até a escolha do nome da comunidade, uma homenagem à Holanda, o país europeu quase inteiramente construído abaixo do nível do mar sobre aterros e diques. Outra semelhança são as roldanas, que podemos encontrar em algumas casas e que indicam que as mudanças eram feitas por cabos externos, exatamente como ocorre em cidades holandesas, principalmente Amsterdã” (Fonte:http://www.ceasm.org.br).

Page 36: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Em 1956, foi criado o SERFHA – Serviços Especial de Recuperação das Favelas e

Habitações Anti-Higiênicas – que sofreu uma reestruturação em 1960, tornando-se o

primeiro organismo oficial voltado mais precisamente para “urbanização de favelas”.

Na década de 60, inaugura-se uma nova forma de tratamento das favelas com o

lançamento do “Programa de Remoção das Favelas”, cujo objetivo era de “eliminar as

favelas e transferir suas populações para outros locais, apoiados pela administração de

Lacerda (1960-1965), criando assim a COHAB-GB (1962), órgão estadual.

“Durante o governo Lacerda (1961-1965) foram adotadas diversas medidas a fim de dar um aspecto moderno à cidade. Tal política baseava-se na realização de obras suntuosas como a construção de viadutos, túneis e parques e jardins na zona sul da cidade. Ao mesmo tempo, a população mais pobre sofria com uma política de erradicação de favelas e remoção de sua população para áreas distantes e desvalorizadas da cidade e nesse contexto surge o projeto do ‘cais de saneamento’, que visava construir uma cais de pedra por toda a extensão da orla da baía do Cajú ao Rio Meriti, seguindo à Avenida Brasil, e portanto, o cais de saneamento visava atingir a dois problemas que vinham preocupando as autoridades na época: a poluição da Baía de Guanabara e a saturação da Avenida Brasil”. (Fonte: Ceasm).

Com o aumento do número de habitantes nas favelas do Rio de Janeiro, as

associações de moradores se mobilizavam – tanto no nível interno, quanto no nível de

suas articulações externas, com grupos de apoio tais como a igreja, através da Pastoral

das Favelas e a Federação das Associações de Favelas (antiga FAFEG e atual FAFERJ).

Em dado momento da história (1969) esta repressão [ao tentar liderar os moradores da

primeira favela atingida pela ação da CHISAM7 – Coordenação de Habitação de Interesse

Social da Área Metropolitana do Grande Rio (1968-1973)], junto a eles a CODEFAM

(Comissão de Defesa das Favelas da Maré) que conseguiu criar um espaço de

participação na elaboração definitiva do “Projeto Rio” [projeto esse que veio a beneficiar

os moradores da maré na década de 80] foram órgãos fundamentais na luta dos

favelados pela posse definitiva de seu barraco.

Nesta época de trabalho da CHISAM (1968-1973) se assistiu à maior operação

anti-favela que a cidade jamais tinha conhecido. Os órgãos governamentais então

envolvidos eram o BNH (1967) – Banco Nacional de Habitação, como financiador – , a

própria CHISAM, como coordenadora do programa de remoção, a COHAB-GB –

Companhia de Habitação Popular, como construtora e comercializadora das unidades

habitacionais e a Secretaria de Serviços Sociais, como responsável pela ação social junto

às populações atingidas. Com o fim da CHISAM o órgão que ficou encarregado de dirigir

as esporádicas remoções que continuavam a ocorrer foi a Fundação Leão XIII – que

surgiu em 1946 a partir de entendimento entre a Arquidiocese e a Prefeitura do Rio de 7 O programa da CHISAM se iniciou com a remoção das favelas situadas em torno da Lagoa Rodrigo de Freitas. Valladares (1980, p. 30).

Page 37: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Janeiro, que tinha como meta a “recuperação das favelas”. A COHAB-GB e a Secretaria

de Serviço Social desapareceram com a fusão dos estados da Guanabara e do Rio de

Janeiro e foram substituídas respectivamente pela CEHAB-RJ e pela Coordenadoria do

Bem-Estar Social. Enquanto a COHAB-GB, organismo estadual, desenvolvia sua ação no

sentido da remoção das favelas, a administração de Negrão de Lima criava, em 1968, a

CODESCO – Companhia de Desenvolvimento de Comunidade – a partir de uma

alternativa oposta à remoção: a “Urbanização”. (ver Tabelas VII e VIII).

Tabela VII – Conjuntos Habitacionais da COHAB-GB por Localização, Ano de Ocupação, Nº e Tipos de Unidades

Nome do Conj.

Bairro Ano de Ocup.

Triagem Casa Apartº Total por Conj.

Nova Holanda

Bonsucesso 1963 981 xxxx xxxx 981

Cidade de Deus

Jacarepaguá 1966 1.193 3.865 1.600 6.658

Miguel Gustavo

Senador Camará 1972 2.466 xxxx xxxx 2.466

Total xxxx xxxx 4.640 3.865 1.600 10.105

(Fonte: CEHAB-RJ – Extraído de Valladares (1980, p. 40) – Adaptado.

“Foram tais problemas básicos que serviram para justificar a elaboração de pelo menos quatro projetos de intervenção na região. Como as favelas ali existentes eram responsabilizadas por grande parte da poluição da baía, e por outro lado, ocupavam parte da área por onde deveria passar a nova via paralela à Avenida Brasil, os projetos previam a remoção de grande parte da população residente no local” (Fonte: http://www.ceasm.org.br).

Tabela VIII – Remoções Realizadas na Guanabara, no Período de 1962-1974.

Administração e

Períodos das Remoções

Total de Favelas

Atingidas

Total de Barracos

Removidos

Total de

Habitantes Removidos

Calos Lacerda (1962-1965)

27

8.078

41.958

Negrão de Lima (66-67/68-71)

66-67 (s/r) 68-71 (33)

66-67 (s/r) 68-71 (12.782)

6.685/63.910

Chagas Freitas (1971-1974)

20

5.333

26.665

Total

80

26.193

139.218

Fonte: COHAB-GB – Extraído de Valladares (1980, p. 39) – Adaptado.

Em decorrência da renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, grande parceiro

na realização do Projeto com o Governo do Distrito Federal, o “Cais de Saneamento” se

Page 38: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

resumiu apenas a estudos preliminares, tendo sido retomado apenas em 1966, pela

Superintendência de Urbanização e Saneamento (SURSAM), do então Estado da

Guanabara.

Em janeiro de 1969, houve no Rio de Janeiro uma reunião com membros

relacionados ao assunto favela onde foi simulado um jogo em que se traçava o futuro das

favelas para os próximos dez anos. No desenrolar da reunião, três pontos de vista

emergiram, sintetizando tanto a opinião erudita como as idéias populares de como, as

favelas eram consideradas: “Aglomerações patológicas”, “Comunidades em busca de

superação” ou como “Uma calamidade inevitável”.

Esse período marca, também, a primeira grande intervenção do Governo Federal

na área: o “Projeto Rio”, que previa o aterro das regiões alagadas e a transferência dos

moradores das palafitas para construções pré-fabricadas. São hoje as comunidades da

Vila do João, Vila do Pinheiro, Conjunto Pinheiro e Conjunto Esperança, localizados

próximo ao “Parque Ecológico da Ilha do Pinheiro”, na Maré.

Dos projetos que antecederam ao “Projeto Rio”, o mais ambicioso foi aquele

elaborado no final do primeiro mandato do Governador Chagas Freitas (1971-1974) onde

a área ocupada pelas favelas foi declarada “non aedificandi”, como forma de conter o

avanço das favelas sobre aterros clandestinos. (Ibidem).

“Em maio de 1979, no momento em que Freitas exercia o seu segundo mandato (1979-82), o projeto foi novamente apresentado, cedendo lugar ao Projeto Rio anunciado um mês depois, e por este motivo e pelas semelhanças entre ambos os projetos, o Governador, na época, reivindicou a paternidade do Projeto Rio, que foi anunciado pelo Governo Federal, via o Ministério do Interior (DNOS e BNH), através do então ministro Mário Andreazza”. (Fonte: http://www.ceasm.org.com.br).

E, em 08/06/1979, o próprio ministro anuncia o mais audacioso projeto com a

finalidade de sanear a orla da Baía de Guanabara e que na verdade, se baseava nos

projetos anteriores apresentados pelo Governo Chagas Freitas que não foram

implementados (Ibidem).

O “Projeto Rio” previa uma intervenção desde a Ponta do Caju, até os rios Sarapuí

e Meriti, em Duque de Caxias, num trecho de 27 quilômetros, e apresentava como

objetivos centrais a criação de espaços para abrigar populações de baixa renda e criação

de condições para ambientação ecológica e paisagística do trecho mais poluído da Baía

de Guanabara. A execução do projeto coube ao Banco Nacional de Habitação (BNH),

como órgão financiador, e ao Departamento Nacional de Obras e Saneamento, incumbido

de fazer os aterros e macrodrenagem. À FUNDREM, órgão estadual, coube o encargo

das pesquisas de levantamento cadastral.

Page 39: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Segundo o levantamento inicial, um terço dos habitantes da área da Maré morava

em palafitas, sendo o conjunto formado, até então, por seis favelas: Timbáu, Baixa do

Sapateiro, Parque Maré, Nova Holanda, Parque Rubens Vaz e Parque União, e para

execução desse programa, o BNH criou o “PROMORAR” – Programa de Erradicação da

Sub-habitação – que seria o responsável pelo processo de construção de 9.531 unidades

habitacionais para o assentamento dos moradores das palafitas. O projeto previa, ainda, o

saneamento do trecho da Baía da Guanabara que se estendia do Caju até a Praia de

Ramos, considerado o mais poluído, mediante a construção de um aterro de 2.300

hectares.

Várias vezes surgiam desconfianças por parte dos moradores devido aos atrasos

nas obras e ao não cumprimento dos cronogramas e, neste sentido, as associações de

moradores tiveram um papel de suma importância ao criarem a CODEFAM – Comissão

de Defesas das Favelas da Maré – onde exerceram forte pressão para que as promessas

de campanha fossem cumpridas.

2.3 – Reconhecimento de um Bairro Popular e as Intervenções Públicas (1980/2005):

Até o início dos anos de 1980, a Maré das palafitas era tida como símbolo da

miséria nacional como retrata a música “Alagados” (1984) da Banda Paralamas do

Sucesso, que estourou nas rádios naquele momento:

Alagados

(Música: Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone Letra: Herbert Vianna)

Todo dia

O sol da manhã vem e lhes desafia

Traz do sonho pro mundo que já não queria

Palafitas, trapiches, farrapos

Filhos da mesma agonia

E a cidade

Que tem braços abertos no cartão-postal

Com os punhos fechados da vida real

Lhes nega oportunidades

Mostra a face dura do mal

Page 40: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Alagados, Trenchtown, Favela da Maré

A esperança não vem do mar

Nem das antenas de Tevê

A arte de viver da fé

Só não se sabe fé em quê

Os primeiros conjuntos habitacionais construídos na Maré surgiram na década de

1980. A Vila do João (1982) era vista como uma esperança de vida para os moradores

das palafitas que após cadastro no programa Promorar, receberam suas casas. A Vila do

João, na época de sua inauguração, foi apelidada pela população de “Malvinas” e de

“Inferno Colorido”, sendo o primeiro nome uma alusão à Guerra das Malvinas – entre

Argentina e Inglaterra –, devido aos intensos tiroteios e, o segundo, por causa do sortido

colorido e calor das casas recém construídas, apelidos esses que caíram no desuso

(Fonte: http://www.ceasm.org.br).

A Vila do Pinheiro (1983) nasce na região remanescente da Bela “Ilha do Pinheiro”,

na época de aterramento das sete ilhas onde atualmente está erguida a Universidade

Federal do Rio de Janeiro (a UFRJ), a Ilha do Pinheiro foi excluída do projeto, mas

acabou sendo anexada ao continente nos aterros promovidos pelo Projeto Rio. Na época,

a ilha comportava um centro de pesquisa com macacos da espécie Rhesus da Fundação

Fiocruz e, neste período, foi retomada pela União para fins de aterramento e construção

de Unidades Habitacionais. O que restou da ilha virou um pequeno parque ecológico. Nos

terrenos da Vila dos Pinheiros foi erguido um conjunto de prédio chamado de Conjunto

Pinheiros (1989) e um outro conjunto de casas de nome Salsa e Merengue (2000).

“Em frente ao Conjunto Pinheiros foi construído, já na década de 1990, o Conjunto Bento Ribeiro Dantas, mais conhecido como ‘Fogo Cruzado’, por ter estado por muito tempo próximo da ‘linha de tiro’ entre as facções criminosas rivais... atualmente, percebe-se no conjunto um processo contínuo de favelização e até mesmo de verticalização. Os moradores desse conjunto foram transferidos de outras favelas consideradas de risco, através do ‘Programa Morar Sem Risco’, ou seja, favelas que não poderiam ser urbanizadas pelo programa municipal de urbanização sistemática de favelas criado em 1994 – o “Favela Bairro”. Tratava-se basicamente das ditas “favelas de Rua”, que se situavam na beira de avenidas, embaixo de viadutos ou ainda na margem de rios urbanos; ou ainda de áreas de risco das favelas que estavam sendo “urbanizadas” pelo Favela-Bairro. O novo “modelo” ou padrão construtivo do conjunto foi repetido em outras comunidades carentes da cidade, inclusive na própria Maré, com a construção do Conjunto Nova Maré em um aterro próximo à Baixa, decorrente da construção da Linha Vermelha, como cita Jacques”. (2002, p. 47-48).

A identificação da Maré como um bairro popular ocorre principalmente pela criação

em 15/08/1988 da XXXª Região Administrativa (ver figura 09 e 10) – a primeira de favelas

Page 41: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

da cidade através do Decreto de 24/01/1994 – como um marco no reconhecimento das

novas características da Maré, que vai se consolidando como um complexo de bairros

populares. A figura 11 mostra a delimitação territorial do Complexo da Maré nos dias de

hoje (e assim se observa a evolução urbana ocorrida na Maré, conforme apresentada no

Anexo IV).

Em 21/04/1992, é inaugurado um antigo projeto – elaborado na época de Carlos

Lacerda passando pelos governos de Chagas Freitas e por Leonel Brizola – a Linha

Vermelha. Construída sob a alegação de promover o desafogo no trânsito da saturada

Avenida Brasil, tornou-se na verdade, uma via de elite que favorece o trânsito de carros

particulares, tendo promovido forte impacto, uma espécie de ‘tiro de misericórdia’, no que

sobrou da Baía de Guanabara.

Em 1996, a Prefeitura do Rio de Janeiro elege a Maré como uma nova área de

assentamentos, face a sua política de remoção de moradores de áreas consideradas de

risco em toda a cidade e tendo em vista o grande número de grandes áreas

remanescentes do Projeto Rio que não haviam sido utilizadas. A Prefeitura, na gestão do

Prefeito César Maia, adquire tais áreas da Caixa Econômica Federal e inicia a construção

de novas casas, nos molde do Conjunto Bento Ribeiro Dantas (1992), surgindo o

Conjunto Nova Maré (1996).

Outra via de transporte importante, criada na região, foi a Linha Amarela em

24/11/1997. Sua construção tornou-se realidade pela utilização do modelo de concessão

de serviços públicos, sendo a primeira e, até hoje, a única concessão rodoviária municipal

do país. Uma solução pioneira de uma grande parceria envolvendo enormes desafios e

que beneficiou, de um certo modo, a população da Maré no intuito de encurtar a distância

entre a Maré e a Barra da Tijuca, local de trabalho de boa parte dessa população.

Em 1998, a Prefeitura, com base numa idéia inicialmente proposta pela União das

Associações de Moradores do Bairro Maré (UNIMAR), inicia no Parque Burle Marx, área

verde contígua à Linha Vermelha – as obras da Vila Olímpica da Maré, que viria a ser um

dos mais importantes agentes sociais presentes na Maré. Sem dúvida, a Vila Olímpica da

Maré (1999) atende a mais de 8.000 alunos em seus mais diversos projetos educacionais

e em 23 modalidades esportivas. Ela foi criada em parceria com a iniciativa privada e em

convênio com a gestora UEVOM (União Esportiva da Vila Olímpica da Maré).

Page 42: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Fig. 09 – “Localização da XXXª R.A. da Maré”. Fonte: http://www.armazemdedados.com.br

Fig. 10 – “Área de atuação da XXXª R.A. da Maré”. Fonte: http://www.armazemdedados.com.br

Page 43: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

O desenho territorial da Maré encontra-se atualmente rearranjado como observado na ortofoto abaixo:

Fig. 11 – “Desenho territorial da Maré nos dias de hoje”. Fonte: http://www.armazemdedados.com.br

Page 44: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

3. Os Territórios da Maré e Suas Particularidades:

3.1 – Os atores sociais e suas atuações na Maré: as territorialidades em movimento:

Neste capítulo será descrita a atuação dos atores sociais envolvidos nas possíveis

territorialidades encontradas na Maré: a Ong CEASM8, as Associações de Moradores, a

Igreja, o Poder Público (a Polícia), a Vila Olímpica da Maré (ligada à Prefeitura da cidade)

e o próprio tráfico como ator circunstancial de transformação do espaço segregado,

responsável principal das territorialidades em movimento.

O texto está fundamentado nas informações obtidas através de uma entrevista

concedida pelo Srº Lourenço César – um dos diretores da ong CEASM, com sede nas

comunidades do Morro do Timbáu e da Nova Holanda, e morador há mais de 30 anos da

Maré. Seu testemunho, somado ao conhecimento adquirido pela convivência cotidiana

com o lugar, permite traçar um perfil das relações e conflitos decorrentes do jogo de

interesses entre os atores envolvidos.

•••• A respeito da ong CEASM:

É inegável a atuação positiva das ações realizadas por esta instituição nas

comunidades da Maré, principalmente, no tocante às práticas sociais que envolvem, de

um lado, profissionais capacitados nas mais diversas áreas do planejamento educacional

e, do outro, o jovem – presente no âmago da população interessada por novos

conhecimentos – que representa o desejo cada vez maior pelo saber e pelo discernimento

do aprendizado que no futuro, lhe será de grande valia.

Assim, se inicia essa entrevista com o discurso real de um diretor de uma

importante organização educacional e, acima de tudo, um morador que percebe, a cada

dia que passa, a realidade de um imenso complexo de favelas que se territorializa,

desterritorializa para mais adiante voltar a re-territorializar-se, em um verdadeiro círculo

vicioso. Suas visões a respeito da ong são as seguintes:

8 O Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré – CEASM – é uma associação civil, sem fins lucrativos, criada em 15 de agosto de 1997 que atua no conjunto de comunidades populares da Maré. O Centro foi fundado e é dirigido por moradores e ex-moradores locais que, em sua grande maioria, conseguiram chegar à universidade. Os projetos desenvolvidos pelo CEASM visam superar as condições de pobreza e exclusão existentes na Maré, apontado como o terceiro bairro de pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade (Censo 2000).

Page 45: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

“A proposta do CEASM é de uma atuação na área política, através da educação, da cultura e da comunicação. Essas três linhas serão norteadoras de uma intervenção na área da Maré a médio e longo prazos”.

“Foi sempre passado pelos fundadores do CEASM que a idéia era de que a entidade

pudesse aos poucos se libertar dessa função – que seria do Estado – e estar ocupando um papel cada vez mais político e mobilizador”.

“A prática do cotidiano foi solapando um projeto político de futuro que atualmente está em

discussão por aqui: ‘O que a gente está fazendo’? e ‘O que pretendemos fazer’? Essa seria a avaliação do que estamos concretizando no nosso dia a dia.”

“As ongs fazem, sim, o trabalho que seria próprio do Estado. Elas poderiam ser

classificadas como ‘Potencializadoras de Movimentos Sociais’. Há a dificuldade dos movimentos sociais em mobilizar a mídia, e neste sentido, surge a ong com o propósito de colaborar; exemplo disso foi no Fórum Social Mundial em que a presença de várias ongs contribui para que as classes menos favorecidas participassem neste evento – antes marcados pela presença somente da classe média bancada pelo Estado e pelas Universidades”.

Neste sentido as ongs, têm papel fundamental no processo de estruturação social

do lugar, embora deixe de cumprir seus objetivos seja pela necessidade de estar aliada

aos interesses do ‘financiador’, que pode não concordar com a forma de atuação, ou

pelas demandas do próprio cotidiano de estar atrás de recursos e financiamentos, para a

manutenção do espaço da entidade. Continuando, Lourenço destaca que:

“Aqui dentro do CEASM eu puxo muito para essas questões como, por exemplo, a criação

da U.A.U. (União de Alunos Universitários) que surgiu com a finalidade de mobilizar universitários de favelas; a Rede Maré Jovem – rede de jovens que contribui com o debate de vários temas criando mobilizações nas ruas – e o Fórum Maré que já ocorre há um ano e que conta com a participação de várias instituições, líderes comunitários etc.”.

Na realidade, ocorre, também, a presença de movimentos sociais externos à Maré,

que, de forma geral, atingem as comunidades do complexo, como o Movimento dos

Trabalhadores Sem Terra, o MST, que se coloca sempre à disposição das necessidades

do CEASM, no sentido de somarem forças potencializadoras, embora, muitas vezes, a

relação dos atores sociais na Maré acabe por inibir os efeitos dessa potencialidade, como

afirma Lourenço:

“A incapacidade nossa de não conseguirmos mobilizar uma determinada comunidade em um evento participativo de uma outra devido à questão da ‘fronteira’ causada pelo tráfico de drogas, faz com que essa mobilização seja fragilizada, ou seja, nem todo mundo está apto ou com garantias de vida para se fazer presente em outra comunidade num ato público, por exemplo. Uma ação que fazemos aqui no CEASM (Morro do Timbáu), que se faz necessária a essas pessoas, é impedida, através do tráfico, de que moradores de outra comunidade possam assistir”.

Page 46: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

As políticas de mobilização realizadas pela ong CEASM é assim destacada por Lourenço quando ele afirma que:

“As políticas de mobilização na Maré são realizadas nas dezesseis comunidades o que

causa um grande desgaste de várias ordens, ocorre que em cada reunião do movimento surgem grupos distintos participando e isto é um fator que tem prejudicado em muito as nossas ações. Outra dificuldade é que o público alvo das comunidades trabalha e estuda e o tempo disponível é limitado, muito reduzido, e que as vezes inviabiliza os questionamentos sobre as ‘Utopias Coletivas’ que exige certa mobilização e uma disponibilidade de tempo muito grande e um arcabouço financeiro-familiar que o impossibilita a uma liberdade para estar realizando suas ações, sendo isso mais um fator negativo”.

Recentemente um artigo vinculado num jornal de grande circulação na cidade promoveu um reboliço nas classes menos favorecidas da Maré, pois colocava em pauta a

discussão sobre a remoção de favelas, como cita nosso entrevistado:

“A questão da polícia e a relação com o Estado e a mídia que, ao mesmo tempo que cobra

do Estado uma ação mais efetiva, inibe por parte do Estado, uma ação mais cidadã; Um exemplo disso foi uma matéria vinculada no jornal ‘O Globo’ intitulada ‘Ilegal e daí?’ que é uma campanha em relação às favelas, onde o presidente do Sindicato das Empresas de Materiais de Construções criticava uma tentativa do Governo do Estado de se criar uma cesta básica para materiais de construções. A alegação era que se ‘baratear’ o preço desses materiais para a construção de obras iria se consolidar a favela, pois o pobre teria acesso a esses materiais e assim ele melhoraria sua qualidade de moradia e de vida dentro de suas casas. O que se percebe é que uma ação dessas, proveniente dessas organizações venham inibir que o Governo/Estado façam qualquer tipo de ação que é apoiada por essas instituições. Eles são a favor das ‘remoções de favelas’.

A favela começa a conquistar o direito de ser ouvida e representada como voz atuante de seu caminho. E para tanto, torna-se essencial o conhecimento, não só de suas

carências, mas também de suas virtudes, de seu passado e de seu presente, de suas

generalidades e particularidades, e principalmente, de seus desejos. Por isso o Censo

Maré 2000, trabalho realizado pelo CEASM, representou a possibilidade de realização de

um estudo específico da realidade das várias marés.

Ou seja, as várias histórias e geografias das favelas que foram se formando na

área hoje reconhecida como XXXª Região Administrativa. Tem-se agora, um instrumento

primordial na luta por uma vida mais digna e justa, pois os dados permitem uma atuação

consciente na gestão pública e comunitária, possibilitando uma visão mais focal, centrada

em algumas particularidades e uma visão global, que apreende as generalidades da XXXª

R.A. Um instrumento que permite a ação conjunta frente aos órgãos públicos e entidades

Page 47: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

privadas, sem mais especulações e incertezas9. Portanto, um instrumento fundamental de

territorialização da Maré na cidade do Rio de Janeiro (Fonte: Censo Maré 2000. In.

http://www.ceasm.gov.br).

•••• As Associações de Moradores:

O funcionamento e as relações com a comunidade local e o tráfico de drogas por parte das associações de moradores nas comunidades da Maré é assim relatada por

Lourenço:

“Uma ação que vem prejudicando em muito as mobilizações coletivas nas comunidades da

Maré é a ‘despolitização das ações das associações de moradores’. Raras dessas associações têm eleições presidenciais – a maioria dos presidentes dessas instituições são ‘empossados’ pelo tráfico; qualquer ação realizada nessas comunidades e que ‘chamam a atenção da mídia ou do Estado, os traficantes têm que estar sabendo com antecedência pois senão correm risco de vida os próprios organizadores desses eventos”.

Os moradores sofrem muito com esse fardo quando se discute o problema, o que muitas vezes se reflete na própria identidade dos moradores, que dominados pelo medo,

têm dificuldades de se relacionarem com o local.

“Dentro deste retrato atual quem (qual o morador) bate no peito e diz com satisfação que mora na Maré? Ou que mora numa favela? Um exemplo contrário a isso é que na época da Grécia antiga os grandes artistas tinham como sobrenome o nome de sua cidade; o cidadão daquela época pertencia a uma cidade e tinha com ela uma identidade e um orgulho por pertencer a ela”.

Fazendo um panorama entre as décadas de 60/70/80 e a época atual, Lourenço destaca que:

“Nos governos militares da década de 60 – no pós Vargas – teve aquela tentativa de se

‘abraçar a favela e as comunidades carentes’ no intuito do próprio Vargas ter um poder de voto muito grande (aquela idéia do ‘pai dos pobres’) e isso possibilitou uma visão romantizada da favela e neste momento os artistas tinham seu nome ligado às favelas como Cartola, Pixinguinha, etc. Já entre as décadas de 70/80 tínhamos o Martinho da Vila (Izabel), Jorginho (do Império), etc. Todos eles ligados à uma favela, via questão cultural e às identidades culturais”.

9 “As favelas apresentam várias características, mas nenhuma delas parece ser tão específica quanto o seu status jurídico ilegal, na qualidade de ocupação de terras públicas ou privadas pertencentes a terceiros. A pobreza de sua população é, sem dúvida, uma característica distintiva muito comum, mas o nível de pobreza é bastante variável não só entre favelas (...), mas também no interior de favelas grandes e consolidadas, especialmente quando situadas em áreas valorizadas. A carência de infra-estrutura, assim como a pobreza, é, igualmente, uma característica muito comum, mas, não menos que a pobreza, variável... ‘mas, e se o Estado dotar uma favela de infra-estrutura e promover a sua regularização fundiária? O espaço continuará a ser uma favela?, citado por Souza (2003, p. 173-174).

Page 48: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

“Mais tarde (década de 90/00) surgem os ‘funkeiros’ que são totalmente marginalizados

pela mídia, e conseqüentemente, pela sociedade, e desta forma são lançados nos braços dos traficantes, que são os únicos a apoiarem esses garotos e esse ‘movimento musical’, fazendo com que eles (os funkeiros) tenham uma identidade muito forte com aquela determinada facção criminosa do que com o estilo musical e que acabam por terem seus nomes vinculados às comunidades como o Duda (do Borel) e outros”.

“Atualmente, essa situação está mais marginalizada pois quem recebe o sobrenome da comunidade é o traficante: Marcinho VP, Celsinho da Vila Vintém, etc. Hoje o seu nome ligado a uma comunidade ou a uma favela, já traz consigo um aspecto negativo para sua própria circulação dentro de sua cidade. Por outro lado, há um fracasso de não se garantir enquanto um espaço totalmente urbanizado e apropriado de serviços públicos de ordem coletiva e a própria garantia de poder manter uma identidade e um respeito perante a cidade”.

Por outro lado, continua Lourenço, “se há o discurso de que a favela venceu por que conseguiu manter e sobreviver às remoções da década de 60, há um fracasso de não

se garantir enquanto um espaço totalmente urbanizado e apropriado de serviços públicos

de ordem coletiva a própria garantia de poder manter uma identidade e um respeito

perante a cidade”.

“Mas a favela venceu no sentido cultural: a cultura que sai da favela, a idéia do samba e da mulata e do próprio futebol, onde os maiores ídolos são provenientes dessas áreas (Zico – Quintino Bocaiúva, Ronaldo – Vila da Penha). E apesar da mídia negar a favela, ela continua a ter uma identidade muito forte com a cidade, até pelo ponto geográfico da própria cidade que possibilita que a classe média e a favela morem lado a lado – como no exemplo da Rocinha. Muito mais que isso é o aspecto cultural e identidário que faz com que a gente não tenha aqui o tão sonhado projeto de ‘europeirização’ de nossa cidade e que foi tentado por Passos e mais recentemente, com César Maia – que tentou transformar a cidade carioca numa Barcelona. Essa idéia de vender a cidade negando essa diversidade cultural e da população é um obstáculo que eles estão desejando desde o século XIX e que não irão conseguir êxito pois não há como fazer isso aqui no Rio de Janeiro. É uma luta insana que eles estão tentando praticar”.

Mesmo assim, as associações de moradores mantêm uma relação próxima com os

moradores em relação à melhoria da qualidade de vida e de habitação. Elas ainda

realizam serviços que, a princípio, seriam dever do Poder Público – como o

desentupimento de caixas de esgotos, serviços de educação com cursos

profissionalizantes em sua sede própria, a exemplo do que acontece na associação de

moradores da Baixa do Sapateiro e outras atividades, o que faz com que consigam atingir

um número razoável de participantes.

Por outro lado, temos a visão do Srº Waldir – morador há cerca de 50 anos na

comunidade da Baixa do Sapateiro e que trabalhou como um dos diretores da Associação

de Moradores do Parque Proletário da Baixa do Sapateiro por 16 anos consecutivos, que

Page 49: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

de colaborador passou a ser, após seu segundo mandato, o secretário geral e,

atualmente, exerce a função de conselheiro dos oito postos de saúde localizados na área

da Maré. Sua participação foi e continua sendo de suma importância entre os moradores

(principalmente os mais antigos) da Baixa do Sapateiro e ele descreve assim a

funcionalidade da citada associação:

“A relação entre a associação de moradores e os moradores é relativamente boa. No início (há dezesseis anos atrás) era um pouco conflitante mas atualmente é harmoniosa, apesar de hoje em dia poucos moradores contribuírem com o pagamento das taxas cobradas pela associação. Em relação ao binômio associação de moradores e o tráfico de drogas pode-se dividir em duas frentes: a convivência e a conivência. O líder comunitário não pode simplesmente atender (somente) a parentes de pessoas ligadas ao tráfico, pois, assim, ele não estaria fazendo o seu trabalho social que é pensar no coletivo. O tráfico não interferiu no trabalho de planejamento da associação, o que tem que haver é o respeito de ambas as partes. As ações realizadas por mim no passado são lembradas até hoje na comunidade”.

Contrário a opinião de Lourenço, srº Waldir diz que o trabalho realizado na associação de moradores na época que ele trabalhava como diretor era sério e atendia às

necessidades da população e, à respeito das eleições comunitárias, ele menciona que:

“As eleições comunitárias se realizavam de quatro em quatro anos e a última realizada há menos de três meses foi bastante democrática. O candidato que eu apoiei perdeu por uma diferença de 107 votos... Quem tinha direito à votação? moradores com no mínimo três anos de residência na comunidade. Corrupção? Se tinha eu desconheço...”.

•••• A Funcionalidade do Tráfico na Maré:

“A droga, através do tráfico internacional, tornou-se a segunda maior indústria econômica do mundo, capaz de destruir a imagem de países e redesenhar mapas políticos. Poder sem rostos, a droga está na origem de inúmeras guerras internacionais que se desdobram em guerrilhas urbanas e vem cada vez mais incorporando-se ao cotidiano das cidades dos cinco continentes... sendo uma questão que transcende fronteiras e se globaliza. Hoje, prevalece a hegemonia do cinismo, resultante da promiscuidade existente entre o legal e o ilegal”. (Fábio Magalhães – Diretor-presidente do Memorial da América Latina – 1996 – Seminário: “Drogas – Debate Multidisciplinar – prólogo p. 13).

As questões sobre o tráfico de drogas tornam-se importantes principalmente quando configuram territórios dominados pelas forças paralelas que controlam o tráfico e

por estarem profundamente relacionadas à questão urbana, em particular, nas favelas. E

como afirma Silva Júnior (2005) a respeito do cenário do tráfico de drogas na cidade do

Rio de Janeiro:

Page 50: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

“O Rio de Janeiro tem como preponderância o fato de que a violência se articula com o tráfico, a exclusão social configura territórios demarcados por lideranças locais, diminuindo a imagem tão conhecida do crime organizado. Nesse cenário em que o tecido sócio-político espacial apresenta-se tão fragmentado, formam-se territórios descontínuos: "A pulverização territorial (e a instabilidade das redes em termos espaciais) determina uma territorialidade distinta daquela que é característica de um cartel ou quase-cartel, como é o caso do jogo do bicho, onde, em conformidade com um "pacto territorial", cada bicheiro possui sua área de influência, a qual é um território contíguo, portanto um território em sentido convencional. Já a cada uma das "organizações" do tráfico de drogas que lidam com o varejo e manifesta sob a forma do que o autor do presente artigo denominou, em trabalho anterior, de territorialidade descontínua (ou em rede).”

O tráfico se aloja principalmente nas favelas devido às oportunidades de trabalho que são oferecidas em suas mais variadas funções e cargos. É nas favelas onde se

encontra com facilidade menores sem nenhuma estrutura familiar definida, sem

perspectiva de futuro e, por isto aptos a se engajarem neste infortúnio que é a vida no

tráfico. A falta de opções e a ociosidade são causas do crescimento do número de

crianças no mundo do tráfico. A visão de Evangelista (2003, p. 45) é objetiva neste

sentido:

“A favela corresponde a um ambiente que torna fácil a busca por quadros que se

disponham a entrar no tráfico. Esta pobreza combinada com a insuficiente presença de organizações civis (estatais ou não), fazem com que os traficantes sejam, de fato, os verdadeiros mandarins da localidade, tendo, inclusive, o reconhecimento, por parte de não poucas comunidades, em decidir temas que não estão propriamente afeitos ao tráfico, por exemplo, custear despesas, apressar favores, decidir pendências entre vizinhos etc.”

Sobre o funcionamento do tráfico de drogas na Maré constata-se que cada facção criminosa têm seu espaço de dominação: o Comando Vermelho (C.V.) atua na área da

Nova Holanda, Amigos dos Amigos (A.D.A), dominam a Vila do João e Pinheiros e o

Terceiro Comando Puro (T.C.P.), exerce seu poder no Morro do Timbáu e Baixa do

Sapateiro. Cada facção tem uma forma distinta de agir e a própria comunidade também

tem sua forma específica de se relacionar com o tráfico local. Como cita nosso

entrevistado, o Srº Lourenço César:

“No Timbáu essa relação se dá da seguinte forma: o morador ‘cobra’ do traficante um respeito pela moradia e cada vez que essa cobrança diminui, o morador cobra mais. Mas ainda há esse ‘respeito’, pois o Morro do Timbáu sofreu poucas intervenções de diferentes facções ou de pessoas estranhas. Mesmo quando mudasse a facção, o ‘dono’ continuava o mesmo. Isso possibilitou que se criasse uma identidade muito forte entre o morador e o próprio traficante sendo o ‘dono da favela’, também um morador dessa comunidade e não aquele ‘empresário do tráfico’ que traz consigo sua mão-de-obra de outra favela, a sua própria gang (de outra facção). Somente no momento de guerra entre traficantes rivais é que o ‘dono’ pede reforço a favelas que tenham a mesma facção igualitária [fato comum nestes tipos de conflitos]”.

Page 51: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Isso possibilitou que o Morro do Timbáu e a Baixa do Sapateiro – que sempre foram da mesma facção criminosa – ainda tivessem uma relação mais ‘benevolente’ entre

morador e traficante como sintetiza Lourenço: “...Isso não quer dizer que essas

comunidades vivam às mil maravilhas, elas também sofrem muito com esse poder

exercido pelo tráfico mesmo sendo, pode-se dizer, as únicas que foram afligidas em

menor escala com a guerra do tráfico”.

Fazendo uma análise geral sobre a atuação das facções criminosas em três

comunidades da Maré, Lourenço estigmatiza sua vivência como morador da seguinte

forma:

“A questão do tráfico nestas comunidades ligadas ao ‘Terceiro Comando Puro’ é muito recente ainda (à respeito da relação na Baixa do Sapateiro e no Morro do Timbáu). Já na Vila do João (ligada atualmente pela facção A.D.A.) seu histórico já ultrapassa os quinze anos em que a guerra com a própria Vila Pinheiro (antes ligada ao ‘T.C.P.’ e atualmente ‘A.D.A.) renderam vários e intensos tiroteios, o que fez com que parte da população se retirasse e mais tarde voltassem a residir nestas comunidades - exemplo claro de des-re-territorialização”.

“A Nova Holanda tem sua história negativa relacionada com o tráfico há muitos anos

(desde a década de 70) e essa relação é bastante diferenciada, pois essa comunidade sempre teve uma única facção – o C.V. – e assim se tem por parte dos moradores uma maior identificação com essa coisa ligada ao tráfico e desta forma, não há uma facilidade de uma facção rival tentar se instalar – ‘tomar a favela’ como dizem – nessa comunidade, contrária às Vilas do João e Pinheiro, que já foram tomadas e retomadas por grupos rivais e até hoje há o medo de serem invadidas e retomadas novamente...”.

A seguir, Lourenço faz uma abordagem entre o aspecto sócio-econômico de cada

comunidade em consideração a sua relação com a possibilidade de cobrança (respeito),

por parte do tráfico, em relação aos moradores:

“A relação entre moradores e o tráfico é diferenciada em cada comunidade devido a

substancial desigualdade em relação ao aspecto econômico de cada comunidade. No Morro do Timbáu, onde o poder aquisitivo dos moradores é superior ao das outras comunidades – Nova Holanda e Vilas do João e Pinheiros – a presença de traficantes armados causa um estranhamento por parte dos próprios moradores que se incomodam com a situação e a maior parte deles que tinha condições, mudou para outras localidades e os que não tinham permaneceram e ainda não se acostumaram com essa questão do tráfico”.

Neste momento, nosso entrevistado faz uma reflexão sobre os constantes tiroteios

que outrora se faziam presentes com mais intensidade – e que atualmente deu uma

‘acalmada’ – nestas comunidades e que aterrorizavam e afugentavam os moradores

dessas favelas para áreas mais ‘calmas’ da cidade:

Page 52: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

“Um exemplo gritante disso é quando há o tiroteio no Morro do Timbáu – que é diferenciado em relação a Nova Holanda e nas Vilas do João e Pinheiros – a reação dos moradores é de fechar rapidamente todas as portas e janelas e se recolher. Fecha-se também as dependências do CEASM (onde há uma boa concentração de jovens realizando diversas atividades ligadas à cultura). E já na Nova Holanda os moradores adotam uma outra estratégia: eles esperam piorar a situação, pois enquanto não piora, eles acham que não há a necessidade de se recolherem e de fecharem suas portas e janelas (?!?!). Na Vila do João eu mesmo tinha medo de ir à praça comprar um sanduíche devido aos intensos tiroteios; tinha mais medo do que os próprios traficantes. E isso causou nos moradores uma nova adaptação no seu estilo de vida: o lazer ‘dentro de casa’, como o videocassete, computador, aparelho de dvd, e a net, que acaba forçando o morador a ficar em casa e, conseqüentemente, evitar o pior, caso ele esteja na rua. Falta segurança !!”.

A violência urbana atinge a todos sem nenhuma distinção entre ricos e pobres,

causando o medo e aflição aos moradores das grandes cidades brasileiras e, neste

sentido, a mídia especializada destaca sempre que a classe média é bastante afetada e

que o pobre está acostumado com essa situação. Sobre isso Lourenço enfatiza, de forma

clara e sucinta, que:

“Há um mito de que o ‘favelado’ não sofre com a questão do tráfico de drogas. Quanto de nós planejamos sair à noite e evitamos voltar na madrugada para não encararmos o tiroteio de frente, preferindo assim, voltar pela manhã. Isso viabiliza uma territorialidade mais intensa e solidária, pois o medo da morte está sempre presente em nossas mentes. Então o tráfico tem esses aspectos, tanto vale da facção que está envolvida quanto também da experiência que aquela comunidade tem em relação ao tráfico”.

A participação do tráfico numa determinada comunidade carente causa grande

transtorno aos moradores, que, por falta de condições financeiras, acabam por se

adaptarem a esse modo (infeliz) de vida, pois não conseguem se alojar em áreas menos

conflitantes. As mais prejudicadas são as crianças que por falta de opções (como a

ausência de uma “CEASM” em uma comunidade, por exemplo) se tornam presas fáceis

devido, principalmente, à ociosidade, pois o convívio direto nas ruas com a presença de

traficantes armados causa, nessas crianças, o desejo de um dia empunharem uma arma

como forma de (poder) passagem da fase infantil para a fase adulta – pulando etapas – e

que é possibilitado pelo tráfico. Desta forma, a síntese de Evangelista (2003, p. 51) é

bastante precisa:

“Enfim, é uma atividade, a do tráfico, que cresce se autodestruindo, continuamente, sem deixar marcas. As alianças são fortuitas, esporádicas, circunstanciadas a uma dada situação (que tão logo estas desaparecem os ‘laços de amizades’ são desfeitos). A morte percorre suas vidas e dias, ela está incluída no negócio. Não há cultura, não há associações, impera um voraz sistema competitivo que facilmente aumenta as estatísticas de violência das delegacias”.

Page 53: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

O que se pode concluir é que está em andamento, de acordo com Souza (2003 p.

500):

“... um processo em que, de uma parte, espaços segregados, notadamente favelas,

passam a ser objetos de territorialização por parte de quadrilhas e ‘organizações’ de traficantes de droga e, de outra parte, cada vez mais como reação escapista à crescente sensação de insegurança em seus bairros tradicionais, elites e parte da classe média se auto-segregam, buscando refúgio nas cidadelas fortificadas que são os condomínios exclusivos, a isso se refere a fragmentação do tecido sóciopolítico-espacial da cidade”.

O tráfico responde por algumas das territorialidades que ocorrem numa favela e que, de certo modo, conforme esse mesmo autor (1995, p. 91 e 92):

“contrasta vivamente com a estrutura territorial característica de organizações mafiosas ou mesmo do jogo do bicho. Entre dois territórios amigos – como exemplo a Baixa do Sapateiro e o Morro do Timbáu –, quer dizer, duas favelas territorializadas pela mesma organização, existe, porém, não apenas ‘asfalto’; pode haver igualmente territórios inimigos, pertencentes a outro comando. A territorialidade de cada facção ou organização do tráfico de drogas é, assim, uma rede complexa, unindo nós irmanados pelo pertencimento a um mesmo comando, sendo que, no espaço concreto, esses nós de uma rede se intercalam com nós de outras redes, todas elas superpostas ao mesmo espaço e disputando a mesma área de influência econômica (mercado consumidor), formando uma malha significativamente complexa”.

As favelas como espaços residenciais segregados vão, como no caso da Maré,

sendo controladas – ou territorializadas – por quadrilhas de traficantes de drogas, que

intimidam a população. A ‘lei do silêncio’ é imposta. Regras de uso do espaço são

impostas. O toque de recolher, a proibição de crimes comuns como roubos e estupros são

impostas. Aqueles que transgridem essas regras, são severamente punidos.

Existe uma hierarquia e uma divisão do trabalho nas quadrilhas que operam

nesses espaços socialmente segregados – como no caso exposto – que envolve diversos

outros atores sociais, como cita Souza (2000, p. 57):

“O chefete local é o ‘dono’, o qual controla diversos pontos de venda de tóxicos (‘bocas-de-fumo’). Uma vez que os ‘donos’ cada vez menos moram em favelas e sim no ‘asfalto’ (ainda que tenham origem favelada), quem responde pelo negócio em um dado local é o ‘gerente’, o qual realiza a contabilidade, supervisiona o pessoal da segurança e realiza diversos contatos em nome do ‘dono’10. Além do ‘dono’ e de seus ‘gerentes’ há os ‘soldados’, que são aqueles indivíduos que, fortemente armados, garantem a segurança do negócio, impondo a ‘ordem’ na favela e defendendo os pontos de venda de um ‘dono’ contra as tentativas de captura realizadas por outras quadrilhas (rivais). Há, também, os

10 De acordo com Souza (2000, p. 57): “Existem, na verdade, dois tipos de gerente: o ‘gerente geral’ e, nas quadrilhas mais estruturadas, ‘gerentes’ que cuidam de tarefas específicas ou de apenas uma ‘boca-de-fumo’.

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‘olheiros’, que são aqueles que avisam sobre a aproximação da polícia ou de ‘alemães’ (estranhos, inimigos), e os ‘aviões’ e ‘aviõezinhos’, que entregam droga aos Clientes, os quais muitos vezes aguardam na entrada da favela dentro de seus carros. Há, finalmente, as pessoas que trabalham na embalagem da droga a ser comercializada. Cada ator tem uma participação diferente nos ganhos do negócio...”

A escalada do jovem na vida do tráfico é intensa e aos poucos ele vai subindo, de

degrau em degrau a um patamar que, na maioria da vezes, seu final é quase o mesmo: a

morte. Sobre essa trajetória Zaluar (Apud Evangelista 2003, p. 26) tem a seguinte opinião:

“No Rio de Janeiro, onde o tráfico internacional de drogas se intensificou a partir do final da

década de 70, a posse de armas de fogo poderosas deu para os jovens quadrilheiros um poder militar que não só os levou a matar-se mutuamente, como abalou as bases de qualquer autoridade. No esquema de extorsão e dívidas contraídas com traficantes, os jovens começam como usuários de drogas, são levados a roubar, a assaltar e, algumas vezes, até a matar para pagar aqueles que os ameaçam de morte e os instigam a se comportar como eles. Muitos tornam-se membros de quadrilhas para saldarem dívidas ou para se protegerem dos inimigos criados, num círculo diabólico”.

E a relação entre os traficantes e o poder público – na forma do envolvimento

policial – se dá, conforme Souza (Ibidem, p. 58) da seguinte forma:

“Note-se, ainda, que no caso dos policiais que extorquem dinheiro de traficantes que operam no varejo, a expressão ‘dificultadores’, embora um pouco irônica, é mais apropriada que ‘facilitadores’... Quanto aos policiais que, eventualmente, financiam e organizam o negócio, esses são, a rigor, sócios dos traficantes. Podem, entretanto, ser simplesmente seus empregados, como no caso de policiais que fazem a segurança de criminosos”.

•••• O Foco Agora é a Polícia: A presença do aparato policial nas comunidades carentes em geral é quase que despercebida, a não ser no momento em que eles têm que intervir numa ação, causando

os freqüentes tiroteios com os traficantes locais.

Atualmente, a imagem da polícia encontra-se de forma estática (de mãos atadas

perante a realidade), o que possibilita a dificuldade de uma modificação nas relações que

se estabelecem com os grupos sociais, sendo desta forma, um dos grandes problemas

que são enfrentados na relação entre a comunidade e a polícia. Neste sentido Dorneles

(2003, p. 71) explicita a forma comportamental da atuação policial:

Page 55: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

“Há um comportamento ambíguo, tanto da corporação policial e das autoridades públicas quanto do conjunto da sociedade. Por um lado, parte considerável da sociedade exige uma polícia que respeite os direitos e que seja cumpridora das leis, ao mesmo tempo em que não deixe de garantir a segurança de todos. Por outro lado, essa mesma sociedade tem a expectativa geral de que a polícia se comporte de acordo com o estereótipo negativo que marca a instituição, isto é, a conduta brutal, violenta, arbitrária, corrupta e ilegal. Assim, a imagem que a população tem da polícia se reforça, formando uma cadeia difícil de se desfazer”.

“Também a polícia quer se apresentar com uma imagem positiva para o conjunto da

sociedade, buscando a aceitação para a sua atuação. Quer ser respeitada e identificada como protetora dos direitos, da lei e da justiça, garantindo a segurança de todos. No entanto, ao mesmo tempo, reforça a sua imagem social negativa quando não apenas deixa de garantir a segurança geral, como também passa a ser identificada como violenta, corrupta e transgressora das leis”.

Com base nessa introdução, voltemos ao nosso entrevistado que, neste instante,

abordará, em seus comentários, a presença (?) e/ou atuação/intervenção do aparato

policial nas comunidades da Maré em estudo:

“É complicado falar da polícia, pois não há um ação sistemática nas comunidades na qual, pode-se dizer, que essa ou aquela ação foi boa ou não. Não há o policiamento ostensivo e o que se vê é o conflito com os traficantes e que de certo forma, envolve a população. O que há é a ação truculenta e sem planejamento por parte dessa instituição”.

“É incrível a facilidade com que o traficante anda armado nas ruas e, principalmente, na rua atrás do batalhão da polícia (criado recentemente na Nova Holanda). Ela faz ‘vista grossa’, pois há uma câmera localizada em um dos postes da Light que cobre toda a rua e os traficantes fazem questão em mostrar suas armas e seus rostos; Eles ‘endolam’ – prática de se colocar a cocaína já pronta para o consumo em sacos plásticos para a venda no varejo – a droga fazendo questão de serem observados, e a polícia não vê ou se vê, não toma nenhuma providência. É um absurdo total”.

Lourenço afirma que essa realidade retratada acima, do ‘trabalhar a droga’ no meio

da rua, essa promiscuidade, é “uma total falta de respeito e consideração para com os

moradores – principalmente idosos e crianças – e esse histórico negativo já é antigo nesta

comunidade”. Dando continuidade a sua fala, nosso entrevistado argumentando a

respeito do ocorrido, conclui que:

“Isso leva a crer que a criação desse batalhão parte do princípio de que há um aspecto de ‘negociação’ (entre o comando militar e os traficantes locais) que eu não sei até onde ela é velada. Há a história na comunidade de que o comando do batalhão prefere ‘colaborar’ com essa do que aquela facção”.

Atualmente a polícia adotou um carro especial, revestido de material à prova de

balas e alguns policiais em seu interior fortemente armados e prontos para ‘disseminar’

Page 56: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

(ou exterminar) a bandidagem, conhecido com o singelo pseudômio de “Caveirão” e outro

de “Pacificador” e que se relaciona com a comunidade de forma muito agressiva e

desrespeitosa, como aponta Lourenço: “Eles usam um microfone interno dizendo em voz

alta: ‘troca-se bandidos por pintinhos’ ou ainda diziam para os traficantes, ‘vou c... sua

mulher’. Essa é a nossa polícia”.

Por outro lado, há também o lado positivo dessa mesma polícia a qual eles abrem

suas portas (do batalhão) à comunidade para reuniões sistemáticas com os líderes

comunitários na tentativa de se manter um canal aberto à população, mas o próprio líder

comunitário tem a sua própria limitação ao falar, como indaga nosso entrevistado:

“Como é que ele (o líder comunitário de determinada comunidade) vai a reunião no batalhão e pedir para acabarem com esse ou aquele traficante da favela que ele reside? O máximo que ele pede é que a polícia tenha uma ação mais respeitosa. Mesmo assim é difícil. Os únicos locais na Maré onde há um policiamento mais ostensivo são as Linhas Amarela e Vermelhas devido ao grande fluxo de carros/pessoas”.

Mas a entidade polícia também tem seu lado positivo no combate ao tráfico de

drogas na região em estudo. Diversas são as apreensões realizadas no Complexo da

Maré na tentativa de diminuir o índice de criminalidade local, como pode ser observado

em matéria vinculada na mídia intitulada “Preso chefe de tráfico em 11 favelas da Maré.”

“Um dos bandidos mais procurados do Rio, Edmilson Ferreira dos Santos, o Sassá, de 34 anos, foi preso ontem de manhã num esconderijo subterrâneo na Favela Salsa e Merengue, no Complexo da Maré. Chefe do tráfico em 11 favelas da região, Sassá foi responsável pela maioria dos tiroteios que nos últimos tempos levaram à interdição da Avenida Brasil e das linhas Vermelha e Amarela. O delegado Ricardo Hallack, titular da Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas (DRFC), que comandou a operação, disse que o bandido ofereceu R$ 1 milhão para ser solto. Sassá, que tem 11 mandatos de prisão contra ele, era o principal aliado de Erismar Rodrigues Moreira, o Bem-Te-Vi, da Rocinha, morto sábado passado pela polícia”. (Fonte: Jornal ‘O Globo’ de 05/11/2005).

Para concluir esta parte que retrata a polícia como um ator social de transformação

do espaço na Maré, cito a fala de Lima (2000, p. 175), onde ele analisa assim a

participação da polícia: “Na verdade...a polícia opera como se fosse uma agência

autônoma, a serviço de um Estado imaginário, encarregado de manter uma ordem injusta,

um uma sociedade de desiguais”. Mais adiante esse mesmo autor (Ibidem, p.231) afirma

que:

“Se, por um lado, as formas de organização da vida comunitária das classes populares alimentam a rede do tráfico, no entanto, são estes mesmos valores de reciprocidade e de solidariedade que permitem a emergência de organizações comunitárias hoje capazes de oferecer não apenas uma alternativa ao mundo do tráfico em termos de ascensão social,

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mas também uma alternativa de construção de políticas públicas de saúde e de educação infinitamente mais eficazes do que as propostas que o Estado poderia elaborar”.

•••• O Papel da Igreja:

A relação das instituições com o tráfico são todas elas desrespeitosas, com

exceção da Igreja e nosso entrevistado assim analisa: “A igreja consegue realizar nas

comunidades da Maré algo que as ong’s e o Estado não conseguem fazer: tirar as

crianças do tráfico. Todo grupo de marginalizados têm uma forte e interessante relação

com a Igreja”. Fazendo uma retomada histórica Lourenço cita que:

“Na década de 60 os traficantes tinham uma ligação com o candomblé (e com a macumba), nos anos 90/00 a idéia e a relação é com a Igreja subentendido com o slogan: ‘Fé em Deus!’ Mas há um respeito muito grande entre o traficante e a Igreja: muitas pessoas conseguiram largar o tráfico e permanecerem na Igreja e eu não conheço nenhuma ong que tenha conseguido esta proeza”.

“A igreja tem cumprido um papel muito forte em relação a isso, trazer o ex-traficante para o

seio da sociedade. A igreja serve como um refúgio para essas pessoas”.

Além disso, as Igrejas vêm praticando ações de solidariedade em prol da

comunidade, já há algum tempo e isso fica nítido na fala de nosso entrevistado:

“Uma determinada igreja, não lembro bem o nome dela, estava desenvolvendo uma ação social na comunidade de Nova Holanda como: corte de cabelo, tratamento dentário, exame de pressão e hipertensão... A igreja entrou por um lado onde somente as orações não estavam dando resultados e assim muda-se o formato daquela igreja antiga”.

•••• A Vila Olímpica da Maré:

Outro agente social de grande relevância na área na Maré é a “Vila Olímpica da Maré” que teve suas atividades iniciadas em Fevereiro/2000 e ocupa uma área de 80.000

m² . Criada pela prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e em parceria com a iniciativa

privada, num convênio com a gestora UEVOM (União Esportiva da Vila Olímpica da

Maré), atende a mais de oito mil pessoas de seis a oitenta anos de idade. São oferecidas

gratuitamente, de segunda a domingo, 23 atividades esportivas e educacionais. Têm

aulas esportivas de tênis, atletismo, capoeira, vôlei, basquete, futebol, natação, ginástica

aeróbica e olímpica, entre outras.

Page 58: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

A Vila Olímpica da Maré funciona, assim como a ong CEASM, como um espaço de

atividades sociais numa tentativa de cidadania em prol dos moradores dessas

comunidades, visando principalmente a inserção dos jovens na expectativa de que esse

mesmo jovem não venha a adentrar na vida do tráfico.

Entendemos que as intervenções, em conjunto ou não, desses principais atores

sociais na área da Maré, possibilitam territorialidades diversas no campo das observações

realizadas. Essas territorialidades vão ao longo do tempo assumindo alterações que

possibilitam que essas áreas em questão sofram desterritorializações e, dependendo da

atuação desses atores e a atitude dos moradores face aos resultados encontrados, essas

mesmas áreas passam a sofrer uma re-desterritorialização. É um verdadeiro ciclo que se

inicia e se repete a cada atitude praticada pelos atores estudados e que surtem efeitos

negativos à população.

As territorialidades se formam porque a presença do poder do tráfico supera a

ação dos demais atores que, representando instituições organizadas para oferecer à

população oportunidades e perspectivas de uma vida com maior dignidade e

respeitabilidade, não conseguem atingir seus objetivos.

A própria divergência entre facções divide o espaço por elas dominadas. As

variáveis tempo e espaço são afetadas por forte mobilidade, dependendo da força do

grupo dominante que tem sob seu poder conjuntos de comunidades, gerando conflitos

sociais entre os próprios moradores.

Novas territorialidades se fazem freqüentes quando o comando das facções está

fora do próprio Complexo da Maré, porque o “chefe” mora, ou porque o mando passa para

grupos externos que dominam outras favelas da cidade do Rio de Janeiro. Esta

mobilidade afeta e redireciona o trabalho exercido pelos diversos atores que atuam no

local.

Page 59: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

4 – Conclusão:

Como tentativa de conclusão deste trabalho podemos argumentar o fato de que os

atores sociais em plena atividade no espaço territorial do Complexo da Maré, nos leva a

perceber que as atividades exercidas, em conjunto, pelos mesmos, geram novas

territorialidades e que redefinem, ainda, novas formas de re-des-territorialidades nos

espaços nos espaços locais.

Esse “ciclo contínuo e ambíguo” se mostra bastante visível quando se percebe a

atuação dos principais atores sociais envolvidos na área de estudo. O Estado como

agente da produção do espaço tem papel fundamental na “fragmentação do tecido sócio-

político espacial”, como mencionado anteriormente (Souza 2003, p. 500). Neste sentido, a

mais prejudicada é a população que, em geral, se desloca continuamente, para territórios

provisórios onde, em determinado momento, aparenta ser mais “confortável”, em termos

de segurança e moradia.

Não obstante as solidariedades expressas pela população, as territorialidades se

formam através das relações de poder do tráfico. As práticas destas facções exercidas

por códigos e ameaças caracterizam as relações entre os diferentes atores. A constituição

social do lugar representada pela formação das 16 comunidades que constituem o

Complexo da Maré é, sem dúvida, afetada diretamente pelas práticas das facções do

tráfico. A Maré em seu processo contraditório de construção e desconstrução revela suas

territorialidades, em constante movimento de desterritorialização.

Espero que com esse trabalho final de curso, tenha superado o desafio de tentar

detalhar essas múltiplas territorialidades que sempre estão em movimento no espaço

territorial do Complexo da Maré.

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5 – ANEXOS:

Anexo I – “Densidade Demográfica na Área da Maré”. Fonte: Quem Somos? Quantos Somos? O Que Fazemos? A Maré em dados: Censo 2000. CEASM.

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Anexo II – “Densidade Habitacional na Maré”. Fonte: Quem Somos? Quantos Somos? O Que Fazemos? A Maré em dados: Censo 2000. CEASM.

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Anexo III – “Uso do Espaço na Maré”. Fonte: Quem Somos? Quantos Somos? O Que Fazemos? A Maré em dados: Censo 2000. CEASM.

Page 63: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

Anexo IV – “Evolução Urbana na Maré”. Fonte: Quem Somos? Quantos Somos? O Que Fazemos? A Maré em dados: Censo 2000. CEASM.

Page 64: Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento

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(Livro:“Espacialidade e Territorialidade: Limites da Simulação. Cadernos de Resumos –

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21 – Santos, Milton. “Espaço e Método”. São Paulo. Ed. Nobel. 1995. 2ª ed. (1997).

22 – SOUZA, Marcelo Lopes de. O Território: sobre espaço e poder, autonomia e

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25 ____________________________ “ABC do Desenvolvimento Urbano”. Rio de Janeiro.

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