delírios

309
Delírios Holbein Menezes Posfácio Priscilla Menezes

Upload: priscilla-menezes

Post on 06-Mar-2016

215 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

 

TRANSCRIPT

Page 1: Delírios

Delírios

Holbein Menezes

Posfácio

Priscilla Menezes

Page 2: Delírios

1

Primeiro subtítulo:

... de um nonagenário.

Segundo subtítulo:

Farrapos memorialísticos

de uma longa vida vivida.

Terceiro subtítulo:

Verdades que só se dizem

depois que se conquista

imputabilidade.

Quarto subtítulo:

Relembranças dos

muitos livros que li.

Quinto subtítulo:

Eu vi, e às vezes vivi!

Page 3: Delírios

2

Proposição:

o “nãodito” (ou o fantástico)

não é o contrário antagônico

do dito embora o dito não seja

necessariamente a reprodução

do objeto sobre o qual se quis

dizer.

O nãodito está no subjacente

do objeto, é seu interior, sua

“coluna do meio”, a parte não

expressa seja pela linguagem

seja pela técnica acadêmicas;

todavia, manifestada pela

penumbra da insinuação às

vezes desfocada, às vezes

inteligente, mas sempre

poética.

[Obs. Na filosofia dialética

materialista, contrário

antagônico é a situação

oposta de um fenômeno,

contradição que carece de ser

resolvida para que o fenômeno

Page 4: Delírios

3

se desenvolva; e essa resolução

só pode ocorrer pela via

revolucionária a fim de

processar-se um salto em

qualidade; por isso que pela

forma evolucionista ocorreria

apenas acumulação

quantitativa.]

A antítese nem sempre é o

antagônico da tese (embora

represente seu contrário) e

pode ser materializada por

muitos meios inclusive pelas

dúvidas que a própria tese

possa suscitar uma vez que a

antítese representa o

movimento do novo que

quer vir a ser.

De igual modo

a síntese não é o sumário da

tese posto que é seu

desenvolvimento; é a antiga

tese modificada em qualidade

Page 5: Delírios

4

embora conservando em

quantidade algo da antiga tese;

visto que em toda tese existem

elementos de antítese, e em

toda antítese há elementos

tanto da velha quanto da nova

teses.

É o que a dialética quer

significar com “penetração de

opostos”.

Os filósofos chineses

nomearam os elementos tese e

antítese, de “yang” e “yin”: o

primeiro é a força ativa,

positiva e masculina do

princípio do Universo; o

segundo é a força passiva,

negativa e feminina desse

mesmo princípio; mas uma

força

não é mais importante que a

outra nem pode prescindir

uma d’outra; há que

coexistirem ambas para

Page 6: Delírios

5

operar-se o desenvolvimento;

não existe desenvolvimento só

“yang” ou só “yin”.

A própria metáfora bíblica da

criação do homem, ao usar

aquela linguagem “nãodita”,

criou “yin” (feminino=Eva) do

meio (costela) do “yang”

(masculino=Adão); isso para

que se tornassem forças

dinâmicas iguais para gerar a

Humanidade; por isso que

uma força sem a outra a

Humanidade não se teria

criado.

Portanto, neste livro não

pretendi dizer nada além do

que o texto não disse.

Page 7: Delírios

6

Capítulo

primeiro e único

do Livro I.

Page 8: Delírios

7

No céu.

Quando voltei à consciência

estava sob uma árvore de copa

larga e fechada. Com vagar e

ainda a sentir algum torpor

olhei vagarosamente em volta:

encontrava-me numa espécie

de clareira, ou talvez extenso

platô decorrente de

nivelamento e aterro, ao meio

do qual erguia-se uma mansão

na forma de U, em estilo

colonial, edificação muito bem

conservada. A cercar o platô,

menos na saída para uma

estrada de cascalhos, um muro

de pedra de cerca de 40 ou 50

centímetros de altura e aí

Page 9: Delírios

8

pelos 30 cm de largura. Para

fora do muro, mata fechada

com árvores altas que

impediam ver-se o firmamento

além de um estreito círculo.

Page 10: Delírios

9

Solilóquio: - Terei morrido?

Será isso o céu? E a casa do

senhor será aquela? Onde

estão os santos ministros de

deus e o seu exército de

arcanjos, anjos e querubins?

Page 11: Delírios

10

Nesse cismar, eis que uma

mulher alta de seus trinta anos

toda vestida com mantos

brancos, em passos lentos se

aproxima de mim; agacha-se

próximo de onde eu estou,

toma minha mão direita na

sua, beija-a e pergunta-me:

- Quem é o Senhor?

Respondo-lhe com outra

pergunta:

- Onde estou? Parece-me que,

tal Parsifal, me perdi na

floresta e desmaiei de tão

cansado.

- Mas o Senhor agora está a

se sentir bem?

Page 12: Delírios

11

- Não de todo. Ainda que

lúcido experimento alguma

prostração...

- Seu nome, por favor?

- Meu nome? Ora meu nome...

mas como é que me chamo

mesmo? Desculpa, minha

senhora, esqueci.

- Onde o Senhor mora?

- Lembro-me de que era numa

grande cidade de muitos

arranha-céus, com mais de

dois milhões de pessoas, uma

cidade grande e suja, muito

suja, e por isso malcheirosa.

Por enquanto é do que me

recordo.

Page 13: Delírios

12

- Deve ser uma das cidades do

Brasil dirigidas pelo partido

dos trabalhadores...

- Como é que é?!?

- Nada não. Esqueça.

Ocorreu-me a pergunta em

vista de algumas notícias que

recebi recente do Brasil.

- Sobre o “mensalão”?

- O Senhor também sabe desse

tipo de sujeira?

- Lembro-me de alguma

coisa... Daquele tribunal que

se proclama supremo... em

especial do seu presidente que

esbravejou alto e bom som nos

microfones das tevês do meu

Page 14: Delírios

13

País: “Nada existe acima deste

Tribunal!”

- Não excetuou nem o Senhor

Deus?

- Nem também o povo, em

nome de quem todo poder é

constituído, e exercido!

- E há quem pense que a

consciência coletiva é o

décimo superior das mentes, e

que tudo mais deve está

debaixo dela. O Senhor Deus...

- Não entendi essa.

- Não entendeu? O Senhor não

está a sentir nenhuma dor?

- Muita dor, senhora! Muita. A

dor da decepção, espasmos de

frustração, agonia da

Page 15: Delírios

14

ingratidão, náuseas de

traições..., “... o odioso

sentimento de indignação que

as deslealdades provocam...”, a

repetir Leonardo Padura em

“O homem que amava os

cachorros.”

- Qual é sua idade?

- Nem sei direito, porém mais

de noventa anos, disso estou

certo.

- Mas o Senhor aparenta

menos idade.

- Do lugar de onde eu vim

aprende-se muito cedo que “as

aparências enganam”.

- E de qual lugar o Senhor

pensa que vem?

Page 16: Delírios

15

- Talvez do inferno!

- Mas no inferno não existe

ninguém vivo. Todos foram

queimados no fogo

purificador!

- E a senhora acha que estou

vivo?

- Estamos a conversar, não

estamos?

- E os mortos não conversam

entre si?

- Além de muitas moradas, na

Casa do Senhor Deus há

muitos tipos de vidas; o

Senhor Deus, por exemplo,

ressuscitou seu único Filho...

- A senhora acredita nessa

história? Aceita que o senhor

Page 17: Delírios

16

deus tenha sido tão masdeísta

ao ponto de sacrificar o filho

único?

- O Senhor tem filhos?

- Acho que gerei oito, com

alguns dos quais não me dou

bem; e dois morreram, um

natimorto e outro com dez

anos.

- Por que o Senhor desaveio-se

com seus filhos?

- Dei-lhes tudo que criamos...

- O quê?

- Dei-lhes a casa que fizemos /

que venderam sem pudor /

nem isso de tolhimento.

Page 18: Delírios

17

- Definitivamente o Senhor

não está bem! Está a delirar!

- Dei-lhes todo teu acervo /

tuas vestes tão bonitas / tuas

joias preciosas.

- Ah! Compreendi! O Senhor

está a recitar um poema...

- Dei-lhes por fim teu jazigo /

ao lado do meu sepulcro /

“Bodas de Diamante!”.

- ?

- Leonardo Boff.

- Quem é Leonardo Boff, o

poeta desses tercetos?

- Autor de reflexões, não de

tercetos.

- E esses tercetos?

Page 19: Delírios

18

- Os compus eu próprio em

saudade de minha ex

companheira, com a qual vivi e

convivi 61 anos. Bodas de

Diamante!

- Leonardo Boff... Leonardo

Boff... acho que já ouvi falar

nesse nome.

- “A doença chamada

homem”. Esta frase é do

filósofo Friedrich Nietzsche e

quer dizer: o ser humano é um

ser paradoxal, são e doente:

nele vivem o santo e o

assassino.”

- Senhor, essa não é uma

reflexão sadia; um Santo é um

Santo e um assassino é um

pecador capital!

Page 20: Delírios

19

- “Bioantropólogos,

cosmólogos e outros afirmam:

o ser humano é, ao mesmo

tempo, sapiente e demente,

anjo e demônio, diabólico e

simbólico.”

- Quais antropólogos afirmam

tais absurdos?

- “Freud dirá que nele vigoram

dois instintos básicos: um de

vida que ama e enriquece a

vida e outro de morte que

busca a destruição e deseja

matar”.

- Sigmund Freud foi um

herege; por isso está a pagar

no Hades por sua vaidade de

negar ou pôr em dúvida

Page 21: Delírios

20

verdades eternas e imutáveis

da Fé Cristã.

- Parece que quem está a

delirar é a senhora. No ser

humano, segundo o filósofo

Leonard Boff “...coexistem

simultaneamente as duas

forças. Por isso, nossa

existência não é simples mas

complexa e dramática. Ora

predomina a vontade de viver

e então tudo irradia e cresce.”

- Não é verdade, o Homem é

imagem e semelhança de

Deus!

- Então deus... Ora, aprendi

com o cientista brasileiro, meu

amigo Victor Andrade, que

nada existe além do cérebro.

Page 22: Delírios

21

- O Senhor está a citar mais

um herege! Por que não cita o

sábio Apóstolo São Paulo?

- Portanto “... o que acontece

conosco, não acontece do jeito

que acontece com os outros

animais, por motivo da

constituição de seus cérebros.”

- Todos os seres da Natureza

são criação de Deus. O Livro

Sagrado registra a

determinação do Senhor

Deus: “Produza a terra seres

viventes conforme a sua

espécie: animais domésticos,

répteis e animais selváticos,

segundo a sua espécie.”

- Victor Andrade ainda

escreveu: “Nos seres humanos,

Page 23: Delírios

22

acontece diferente porque o

nosso cérebro é dividido em

dois hemisférios.

- O Senhor especifica os seres

humanos, mas a águia, por

exemplo, enxerga muito mais

do que os humanos. O cão tem

olfato superior ao dos

homens. E os morcegos

portam radares próprios...

- E a senhora ainda diz que

somos a imagem e semelhança

de deus!

- O Senhor Deus...

- Continua meu amigo Victor:

“... o (hemisfério) esquerdo

tem a função de dar

consciência lógica às

Page 24: Delírios

23

informações que lhe são

transmitidas pelo direito.”

- Esse Victor é

neurocirurgião?

-Victor é psicanalista didata,

Membro Fundador da

International Neuro-

Psychoanalysis Society.

Escreveu no seu livro “Um

diálogo entre a Psicanálise e a

Neurociência: “... o

hemisfério direito compete

transmitir informações novas

com conteúdo afetivo que

podem ser rejeitadas

(negadas) pelo esquerdo em

seu apego obsessivo à ordem

interna estabelecida.

Page 25: Delírios

24

- O Senhor me parece estar

muito confuso; gostaria de

conversar com o Santo

Médico Psiquiatra daqui da

Casa do Senhor Deus?

- Por quê? A senhora acha que

sou doido?

- Não! Desculpe se o levei a

duvidar; minha missão é de

Fé e Esperança!

- Mas não estou a duvidar,

tenho certeza!

- Certeza de quê?

- De que sou doido.

- Não! Doido o Senhor não é!

Apenas o que o Senhor está a

dizer é que não é normal.

Page 26: Delírios

25

- E o que é normal?

- O seu filósofo Leonardo Boff

não lhe ensinou?

- Meu filósofo é também um

teólogo.

- Ótimo. A teologia se ocupa

de Deus e da Casa do Senhor.

- Mas não de um único deus.

- Só existe um único Deus

verdadeiro!

- Não aceito isso não. Sei que

meu teólogo se indigna diante

da bestialidade dos homens

que a senhora diz ser a

imagem e semelhança...

- Parece que seu teólogo não

consegue alcançar a grandeza

Page 27: Delírios

26

de Deus nem compreender o

alcance do livre arbítrio.

- Ele registrou em recente

artigo: “Por que escrevo isso

tudo? É em razão do

tresloucado que no dia 5 abril

numa escola de um bairro do

Rio de Janeiro matou à bala

doze inocentes estudantes

entre 13-15 anos e deixou

outros doze feridos.”

- Essa lamentável ocorrência

indica falta de Crença em

Deus!

- Meu teólogo escreveu: “Já se

fizeram um sem número de

análises, foram sugeridas

inúmeras medidas como a da

restrição da venda de armas,

Page 28: Delírios

27

de montar esquemas de

segurança policial em cada

escola e outras.”

- O que quer dizer que as

Autoridades Constituídas já

tomaram providências.

- Assim não parece ao meu

teólogo. Boff disse o contrário:

“Tudo isso tem seu sentido.

Mas não se vai ao fundo da

questão. A dimensão

assassina, sejamos concretos e

humildes, habita em cada um

de nós.”

- Quem habita em cada um de

nós é o Espírito Santo!

- “Temos instintos de agredir e

de matar. É da condição

humana, pouco importam as

Page 29: Delírios

28

interpretações que lhe

dermos.”

- O Papa Francisco não pensa

dessa forma.

- O papa Francisco está a

cometer sublimação.

- A Sublimação é uma Atitude

Cristã.

- Meu teólogo Boff não aceita

isso. Prega o contrário: “A

sublimação é a negação desta

antirrealidade que não nos

ajuda.”

- Ajuda, sim!

- Porque, segundo Boff,

“Importa assumi-la e buscar

formas de mantê-la sob

controle e impedir que inunde

Page 30: Delírios

29

a consciência, recalque o

instinto de vida e assuma as

rédeas da situação”.

- Isso é coisa de Sigmund

Freud, o herege que nunca

teve Fé Religiosa nem respeito

para com as crenças

religiosas alheias.

- A religião é o ópio do povo.

- Ah! Essa não é ideia do Sr.

Sigmund Freud!

- Freud escreveu, numa carta a

Albert Einstein, que tudo o

que faz criar laços emotivos

entre os homens, tudo o que o

civiliza, toda educação, toda

arte e toda competição,

trabalha contra a agressão e a

morte.

Page 31: Delírios

30

- Já começo a gostar do

Senhor Freud...

- Mas tal conceito sobre os

homens levou-o a ser expulso

da Academia de Ciência de

Viena. O Complexo de Édipo,

por exemplo...

- O Senhor não quer ir falar

com nosso Santo Psicólogo?

- Essa música que estou a

ouvir ao longe é de Ludwig van

Beethoven, é o terceiro

movimento do Quarteto nº

132, também conhecido como

“Hino do Agradecimento”.

- É a música preferida do

Senhor Deus.

- Quem está a executá-la?

Page 32: Delírios

31

- O Quarteto dos Querubins.

Esse adágio representa o

agradecimento do compositor

ao Senhor Deus pela

recuperação dele Beethoven

de séria enfermidade.

- É uma das mais sublimes

criações musicais de todos os

tempos. Entretanto, pela

complexidade da sua notação

penso que Beethoven, ao invés

de querer agradecer a alguém,

desejou desafiar os músicos de

seu tempo...

- Então o Senhor acha que

não é um Hino de

Agradecimento ao Senhor

Deus?

Page 33: Delírios

32

- ...pretendeu desafiar os

conjuntos de corda a tocarem

esse adágio com a perfeição

exigida pela notação. O grupo

bem-sucedido poderia então

ser considerado um exímio

conjunto! Acho que o orgulho

de Beethoven quis dar um

recado: só grandes músicos

serão capazes de tocar o maior

compositor que o Mundo

conheceu, ELE!

- O Senhor distorce tudo!

“Heiliger Dankgesang eines

Genesenen an die Gottheit, in

der lydischen Tonart”, é um

agradecimento à Divindade

pela recuperação que

Beethoven obteve após grave

Page 34: Delírios

33

enfermidade. Assim registra a

História.

- Não. Beethoven, muito

senhor do seu talento, é que se

tinha grande. Quando se

encontrou com Mozart em

Viena em 1787, não o procurou

para ter aulas com Mozart,

como registram alguns

biógrafos, mas para desafiar

Mozart, exibindo-se.

- Como é que o Senhor sabe

disso?

- Não sei, deduzo pelo

comportamento de Mozart;

pelo menoscabo com que

devotou à peça que Beethoven

tocou para ele; considerou-a

Page 35: Delírios

34

“muito barulhenta”, e nada

disse sobre a interpretação.

- Qual foi a peça?

- Mozart não lhe deu muita

atenção nem conselhos, nem o

aceitou como aluno. Isso deve

ter magoado muito a

Beethoven.

- Mera suposição.

- Enquanto Mozart sempre se

perguntava “Quem sou?”,

Beethoven afirmava, “Eu

sou!”

- Mais conjecturas.

- Em 1797 Beethoven anotou

em seu caderno de notas:

“Coragem! Apesar de todas as

Page 36: Delírios

35

falhas do corpo, meu talento

deve triunfar!”

- Pelo que sabemos aqui na

Casa do Senhor Deus, o

compositor Amadeus Mozart

também era ambicioso.

- Na verdade, Mozart não

criou nenhuma linguagem

musical.

- Mas na Terra, os Senhores

consideram-no gênio.

- Todo gênio é distorcido. Em

carta de 14 de maio de 1778,

Mozart afirma que para

compor é preciso “permanecer

na ideia”.

- E o que é “permanecer na

ideia”?

Page 37: Delírios

36

- Ideias levadas às últimas

consequências conduzem a

nada.

- O Senhor pensa complicado!

- Um velhinho, de 89 anos,

barbicha como eu, Rex Stout.

- Esse está cá na Casa do

Senhor Deus desde 1975.

- E o gorducho Nero Wolfe?

- Esse nunca foi criatura, foi

personagem.

- Também não havia espaço

físico para ele aqui...

- A Casa do Senhor é

Infinitamente Grande!

- E em que outro Universo se

situa a casa de deus... se o

Page 38: Delírios

37

próprio Universo é finito

segundo Einstein.

- O Físico Albert Einstein não

está na Casa do Senhor Deus.

- Mas escreveu angustiada

carta a Sigmund Freud

intrigado com o

comportamento dos homens

que se proclamam filhos de

deus!

- Li essa carta, Einstein

perguntou: “Podemos superar

esta dilaceração no humano?”

- E Freud respondeu: “Não

existe a esperança de suprimir

de modo direto a agressividade

humana.”

Page 39: Delírios

38

- Ele está enganado. Existe,

sim, em se praticando o Culto

ao Senhor Deus!

- Freud, que era médico e

sabia das coisas humanas

afirmou o contrário; que nos

homens “vigoram dois

instintos básicos: um de vida

que ama e enriquece a vida e

outro de morte que busca a

destruição e deseja matar.”

- Talvez Freud tenha razão:

agora estou a me lembrar de

que Caim matou Abel...

Page 40: Delírios

39

- Resignado, Freud terminou a

carta: "... esfaimados

pensamos no moinho que tão

lentamente mói, que

poderemos morrer de fome

antes de receber a farinha".

- E por falar em “esfaimados”,

esta seca de agora no

Nordeste Brasileiro é a

septuagésima que a História

registra.

- E quem produz as estiagens,

deus, os homens, confluências

climáticas, ou o quê?

- Os homens que, no exercício

do seu livre arbítrio, um

Santo Dom dado pelo Senhor

Deus, estão a destruir a

Natureza que Ele criou.

Page 41: Delírios

40

- Dom ou Dan?

- Que é isso de “Dan”?

- Da dupla “Dida e Dan”. Que

manda no Banco do Brasil e na

Caixa de Previdência dos

Funcionários do Banco do

Brasil.

- Não entendo o que o Senhor

está a dizer: ora, se a Caixa é

dos, por que não é o dos que

manda nela, e sim a dupla

Dida e Dan?

- Porque assim interessa ao

Ministro da Fazenda.

- Quem é o Ministro da

Fazenda?

- Um prestidigitador contábil.

Page 42: Delírios

41

- Que é isso de prestidigitador

contábil?

- Uma pessoa que transforma

déficit em superávit.

- Isso acontece no Brasil?

- À revelia da Presidente.

- Então por que a Presidente

não troca o Ministro da

Fazenda?

- Porque um ex-presidente não

deixa.

- No Brasil há presidente e ex-

presidente que mandam

simultaneamente?

- No Brasil faz mais de dez

anos que quem manda é a

política de poder da casta

Page 43: Delírios

42

sindical do partido dos

trabalhadores.

- Trabalhador não é quem

trabalha?

- No Brasil, o partido dos

trabalhadores pertence aos

que não trabalham, os “boss”

sindicalistas que pululam

soberanos, sem vínculo com a

relação de produção; e isso

vem de longe, desde o tempo

do finado Getúlio Vargas.

- Getúlio Vargas não foi

aquele Presidente que se

matou?

- Foi.

- Qual motivo levou-o a

suicidar-se?

Page 44: Delírios

43

- Para entrar na História!

- E como Presidente ele não

entraria na História?

- Acho que ele desconfiava que

não. Depois de ter mandado

matar muita gente por meio do

seu chefe de Polícia, Felinto

Strubing Müller...

- Esse era alemão?

- Tenente do exército

brasileiro, promovido a

capitão por Luis Carlos

Prestes, comandante de uma

Coluna de Revolucionários.

- Mas Prestes não foi preso a

mando desse chefe de polícia,

Felinto Müller?

Page 45: Delírios

44

- Prestes e sua esposa, Olga

Benário; esta executada em

Benburg, na Alemanha de

Hitler para onde Felinto

Müller a havia deportado.

- Felinto Müller era nazista?

- Meu teólogo Leonardo Boff

explica a atitude do Müller: “A

dimensão assassina... habita

em cada um de nós. Temos

instintos de agredir e de

matar.”

- Também já começo a gostar

desse seu teólogo. Sim, porque

a tal dimensão assassina que

habita os homens preferiu

Barrabás ao Filho de Deus,

Jesus.

Page 46: Delírios

45

- Mas a “dimensão assassina”

não terá sido também do pai-

deus de jesus?

- Ao contrário! Foi um Santo

Sacrifício, para salvar os

pecadores...

- Que a parte masoquista de

jesus aceitou: “... não seja

como eu quero, e, sim, como

tu queres.”

- ... para salvar os pecadores.

- É. As pessoas assustadas em

geral atraem a maldade dos

outros.

- Jesus não estava assustado

ao pedir “Meu Pai, se possível

afasta de mim este cálice”.

Page 47: Delírios

46

- Qualquer aventura existe

mais na narrativa do que nos

fatos.

- O Filho de Deus ofereceu seu

Sangue em holocausto para a

salvação dos homens.

- A palavra sangue tem às

vezes um poder maior do que a

palavra morte.

- Esse é pensamento seu?

- É um pensamento do escritor

brasileiro Luiz Alfredo Garcia-

Roza.

- O Senhor está a ter

relembranças dos livros que

leu?

- Assim como observamos a

realidade externa, também

Page 48: Delírios

47

perscrutamos a realidade

interna.

- Que é realidade interna?

- É a composta por lembranças

que só adquirem significado

quando repercutem na

percepção.

- Perceber não é tomar

consciência dos objetos?

- Freud: o ego emite catéxias

de atenção exploratória do

mundo exterior que vão

encontrar o objeto a meio-

caminho.

- Assim também acontece com

a percepção da realidade

interna?

Page 49: Delírios

48

- Freud nunca deixou claro o

mecanismo de percepção da

realidade interna; mas não a

atribuía à percepção.

- Atribuía a quê?

- Separou percepção e

consciência.

- ?

- Atribuiu à consciência a

qualidade de receber

excitações do mundo interno.

- Que significa isso?

- Excitações do mundo interno

constituem-se exclusivamente

de sensações de prazer e

desprazer.

Page 50: Delírios

49

- O Senhor sente mais prazer

aqui na Casa do Senhor Deus

do que no lugar de onde vem?

- Lá na minha megalópole suja

e malcheirosa perdi muitas das

antigas certezas, mas não

cheguei à verdade nenhuma;

pelo contrário, ampliei minhas

dúvidas e cismas.

- Que antigas certezas o

Senhor tinha?

- De que todos nascemos no

piloto automático, mas apenas

alguns assumem o comando.

- Que significa essa metáfora?

- Quando ganhei a

aposentadoria fiquei sem

Page 51: Delírios

50

saber o que fazer com o resto

da minha vida.

- A lei da aposentadoria é

humana, e assim falha; só a

Lei de Deus é Efetiva e

Perfeita.

- Os homens ao fazer suas leis

pretendem estar expressando

no microcosmo humano a

ordem do macrocosmo.

- Nos humanos, todo segredo

escrito é para ser descoberto.

Por analogia, todas as leis

cuidam, não para serem

cumpridas mas,

especialmente, para não

serem descumpridas; porque

no Brasil há as leis que pegam

e leis que não pegam.

Page 52: Delírios

51

- Quem faz sinal para tudo,

não faz sinal para nada.

- O Senhor acredita que o

nada existe?

- O nada é uma abstração

desde que não corresponda ao

zero.

- E por que o zero que é

nenhum não deva

corresponder ao nada que

também é nenhum?

- Engels: porque o zero é

muito rico, mais rico em

conteúdo do que qualquer

outro número.

- ?

- Ponha-se seis zeros ao lado

direito da unidade e esta se

Page 53: Delírios

52

transforma em um milhão de

unidades.

- Essa é uma verdade dos

homens, mas não é a Verdade

do Deus Pai.

- O zero anula qualquer outro

número pelo qual seja

multiplicado.

- Quando eu era gente, nunca

fui bom em tabuada...

- Quem foi bom em tabuada

foi Albert Einstein.

Já se fazia tarde. A arcanja

começava a bocejar. Os lindos

olhos cor de avelã aos poucos

perdiam o brilho. O franzido

Page 54: Delírios

53

na testa indicava cansaço.

Perguntei:

- Aqui na casa do senhor deus

não se descansa?

- Só aqui na Casa de Deus é

que experimentamos o

Descanso Profundo e Eterno!

Boa-noite, Senhor!

- Até amanhã.

Na manhã seguinte procurou-

me a Dra. Quê Escopeta,

brasileira de origem italiana.

E, com a empáfia comum a

todos os médicos, que se

julgam senhores da vida e da

morte, foi logo comandando:

- Preciso ver sua identidade.

Page 55: Delírios

54

- Identidade não se vê,

percebe-se pelo conjunto de

características que distinguem

uma pessoa.

- Refiro-me a sua cédula de

identidade. Por favor!

- Não tenho documento algum.

Perdi todos os papéis que se

encontravam no meu

embornal.

- O Senhor é um cavalgante?

- Sou caminhante. E não me

posso chamar nem de

Pacífico nem de Jubiloso,

talvez Desgraçado, como na

“Walquíria”, de Wagner. O

sofrimento dá voltas em torno

de mim como um caracol em

sua casa.

Page 56: Delírios

55

- Já conversei com a Arcanja

Recepcionista, a qual me

informou que o Senhor é

metido a gênio.

- Gênio é um tipo que faz

acontecer coisas sem ter ideia

de que elas vão acontecer...

- O Senhor parece-me

conturbado, um tanto louco!

- Acertou na mosca. Meu

desejo de vencer a morte que

se avizinha tem-me

transtornado.

- Como médica, posso

garantir-lhe que é impossível

desviar a finalidade da morte.

Page 57: Delírios

56

- Mas num mundo que é

governado à toa pode-se

contar com coincidências.

- Devemos sempre desconfiar

das coincidências.

- Curei-me de um câncer de

próstata em razão de

coincidências.

- Um câncer de próstata não é

resultado de coincidências.

- Mas a cura é.

- A cura, qualquer cura, é

resultado de estudos e

pesquisas e tratamento.

- A minha experiência de

paciente ensinou-me que a

cura do câncer de próstata é

Page 58: Delírios

57

resultado direto da obstinação

do canceroso.

- E como se manifestou esse

seu estado de obstinação?

- Pela teimosia. Sou teimoso

tal um jumento chucro.

- No mal de Parkinson a

máquina humana trepida e

para; no câncer são células

que não param de crescer...

- Obra de deus...

- O Senhor Deus nada tem a

ver com isso. São sempre as

circunstâncias, subproduto do

livre arbítrio.

- De trás para frente: meu

irmão morreu... de câncer de

próstata.

Page 59: Delírios

58

- Sabia disso. O fato está nos

nossos Santos Registros.

- Ele era médico e pela lógica

um médico que se tem dono da

vida e da morte não devia

morrer.

- Ora, disparate! Se médico é

dono da vida e da morte,

como o Senhor diz, era de se

esperar que devia viver para

sempre!

- A espera é feita mais de

fantasia do que de realidade.

- Não enrole, quais foram as

“circunstâncias”?

- A fundamental circunstância:

à beira da morte meu irmão

Page 60: Delírios

59

disse-me: você será o

próximo.

- O Senhor era mais velho do

que ele?

- Ele era mais velho do que eu

dois anos.

- Que idade ele tinha quando

morreu?

- Setenta e poucos.

- Quantos anos o Senhor tem

agora?

- Mais de noventa!

- Havia outros irmãos?

- Mais novo do que eu, dois

homens e uma mulher. Os

homens já morreram, nenhum

de câncer de próstata.

Page 61: Delírios

60

- O câncer prostático não é

hereditário, a medicina

constata apenas que numa

família onde um membro foi

portador de câncer de

próstata, outros têm a

probabilidade de sê-lo

também.

-Mas na Natureza os iguais

tendem a se agrupar e a

expelir os diferentes...

- Que o Senhor quer dizer com

isso?

- Em geral são os pequenos

detalhes que agem sobre a vida

da gente.

- Que pequenos detalhes?

Page 62: Delírios

61

- Quando meu irmão médico,

já moribundo, predisse meu

câncer de próstata, só a partir

daí foi que eu soube que havia

próstata!

- Sim.

- Fui consulartar-me com um

urologista. O toque indicou

tumoração suspeita. Aí ele

pediu biópsia.

- A biópsia confirmou a

existência da neoplasia

maligna?

- Não; deu negativa. O PSA é

que registrou um íncide acima

do normal.

Page 63: Delírios

62

- Identificações táteis, visuais

e indiciantes são pouco

confiáveis.

- No ano seguinte fiz novo

toque retal e nova biópsia; o

índice do PSA aumentara, mas

a biópsia continuava a dar

negativa.

- Quando é que o Senhor

conheceu que era portador de

neoplasia prostática?

- Três anos depois da morte de

meu irmão médico. Foi

necessária raspagem

transuretal da próstata para a

biópsia registrar o câncer.

- É a isso que o Senhor chama

de “circunstâncias”?

Page 64: Delírios

63

- A potencialidade para a vida

ou para morte está presente,

com igual intensidade, em

todas as pessoas; as pessoas é

que não atentam para os

pequenos detalhes.

- E o Senhor acha que sua

obstinação, ou teimosia como

o senhor denomina, é um

pequeno detalhe?

- O hábito é a usina da

mediocridade; mas obstinação

é formação superior.

- O Senhor se considera

superior?

- Obstinado. Sem coragem

não se pode fazer nada.

Aqueles que não têm coragem

viram as costas à vida. Quando

Page 65: Delírios

64

eu acho que posso parar de

procurar, é justamente quando

começo a procurar.

- E o que é que o Senhor está a

procurar aqui na Casa do

Senhor Deus?

- Não foi num processo de

busca que me deparei com este

lugar parasidíaco; perdi-me na

floresta, e ao subir numa pedra

para visualizar a situação,

escorreguei e caí; bati a cabeça

e desfaleci. O corpo não mente

nem engana: quando senti

fome, aos trancos e barrancos

vim ter aqui.

- O Senhor já comeu alguma

coisa?

Page 66: Delírios

65

- Não, mas saciei-me de

sabedoria. Para mim bastou.

- O Senhor Deus costuma

dizer: “Os seres humanos são

um sintoma de busca

obsessiva de alguém ou de

algum lugar que os façam

felizes.”

- A esse “algum lugar” ou “esse

alguém”, Freud chamou de

NIRVANA.

- Conheço essa especulação de

Freud. Até indicou o útero

materno como a “situação

paradisíaca”.

- A senhora já leu Freud!

Page 67: Delírios

66

- Nunca fiz psicanálise, o

Senhor Deus é meu Pastor,

nada me faltará!

- Fizemos 30 anos!

- Fizemos quem?

- Minha família. Minha

mulher artista plástica e mãe,

e nossos filhos. Trinta anos!

- O Senhor fez trinta anos de

psicanálise?

- A família, se somadas todas

as análises individuais.

- Guardo curiosidade de saber

como é uma sessão de

psicanálise.

- Compram-se cinquenta

minutos do tempo do analista.

Page 68: Delírios

67

- Análise é um comércio, que

se vende e se compra?

- Não é do gênero mercantil

mas se não se compra não se

tem. Não há análise gratuita.

- O analista conversa,

pergunta, faz exames,

investiga, ausculta os

pacientes?

- O mais das vezes fica calado,

e quando fala é para dizer:

“Seu tempo terminou. Até a

próxima sessão.”

- E como se processa o

tratamento médico?

- Por via da atenção flutuante.

- “Atenção flutuante”? Isso

não é contraditório?

Page 69: Delírios

68

- Provocar com a mudez

manifestações de crises de

culpa.

- Um tanto sádico...

- Talvez não sejam crises. Crise

não é periódica? O

permanente não é função?

- A ignorância é a mais

perigosa das doenças. Mas

continuando com o assunto

anterior: como é que o Senhor

enfrentou o câncer de

próstata?

- De frente. A pegar o touro

pelo cifre. Com a firme

convicção de que a vida é mais

importante do que a morte.

Um dia de vida vale toda uma

eternidade duvidosa...

Page 70: Delírios

69

- Fez cirurgia?

- Fiz radioterapia.

- Não ficou com sequelas?

- Fiz radioterapia

tridimensional. A radiação

dirigida para o tumor e não

sobre o órgão que abriga o

tumor. A destruir assim o

tumor sem nenhum efeito

secundário no órgão

albergueiro.

- Reconheço que é um avanço

da medicina moderna, a

busca da interioridade, do

específico e não do geral.

Aliás, as especialidades

médicas de hoje brotaram

dessa tendência.

Page 71: Delírios

70

- Os médicos idosos são contra

as especialidades porque

aprenderam nas antigas

Faculdades que os seres

humanos são macrocosmos;

enquanto os laboratórios de

agora constatam que as

doenças em geral são

microcósmicas.

- Foi um prazer conversar

com o Senhor. Agora será a

vez de o Senhor falar com o

Arcanjo Encarregada do setor

Histórico-social.

- E se eu não quiser falar?

- São apenas procedimentos

de rotina.

Page 72: Delírios

71

- Aqui também funcionam as

normas da burra burocracia

oficial do Banco do Brasil?

A Dra. Quê Escopeta virou-me

as costas de maneira abrupta,

autêntica médica que é, e

dirigiu-se à mansão celestial.

Alguns minutos depois, de lá

saiu um senhor de meia-idade,

gorducho, andar lento,

cabisbaixo, vestido com sapato

sem graxa nem meia, calça e

paletó gastos, camisa de listas,

gravata-borboleta e barba por

fazer.

- Sou o Arcanjo Encarregado

do Setor Histórico-Social.

- Que significa isso?

Page 73: Delírios

72

- Somos o Cadastro da Casa

do Senhor Deus.

- Não tenho bens imóveis, não

sou sócio de nada, nem

pertenço à empresa comercial

alguma; nem tenho dinheiro

em bancos nem também no

bolso...

- Mas o Senhor possui um

passado, e se o tem, é senhor

também de uma história.

Queremos saber qual é a sua

história.

- Para quê?

- Para o Livro que o Filho do

Senhor Deus está a escrever

faz dois mil anos.

Page 74: Delírios

73

- “Nada corrompe um homem

de modo tão profundo como

escrever um livro.”

- Quem disse essa

barbaridade?

- Nero Wolfe.

- Quem é Nero Wolfe?

- Um detetive privado.

- Nero Wolfe?

- O Gordo.

- Aqui no meu “Lap Topper”

não há registro de Nero

Wolfe, só de Nero Claudius

Caesar Augustus Germanicus,

que nasceu em 15 de

novembro do ano 37 dC e

Page 75: Delírios

74

morreu em Roma no ano 68

dC.

- O meu Nero é um

personagem criado pelo

escritor estadunidense Rex

Stout.

- O Nero Cláudio também foi

um personagem, aliás, um

estranho e complicado

personagem da História.

- É, nunca se sabe o que uma

conversa vai decidir... até que

se a tenha realizado.

- Não percebi o que o Senhor

quer dizer com isso.

- Nem eu próprio.

Page 76: Delírios

75

- Sejamos objetivos, seu nome,

por favor; e data e local de

nascimento.

- “Sou uma Sombra! Venho de

outras eras / do

cosmopolitismo das

moneras...”

- É um nome comprido

demais, em extensão só perde

para o nome do primeiro Rei

do Brasil: Pedro de Alcântara

Francisco Antônio João

Carlos Xavier de Paula

Miguel Rafael Joaquim José

Gonzaga Pascoal Cipriano

Serafim de Bragança e

Bourdon.

- É, só se consegue tirar

alguma coisa do pensamento

Page 77: Delírios

76

dos burocratas se se coloca

outro no seu lugar.

- E a data e local do seu

nascimento?

- O hábito é mesmo a usina da

mediocridade! Rex Stout tinha

razão.

- Pelo que me informaram os

Assessores Técnicos do Senhor

Deus, o Senhor é brasileiro,

nasceu no Brasil, no Nordeste

brasileiro, no flagelado Ceará.

Nosso GPS é Santo e

Purificado!

- Qual GPS? O Global

Positioning System da

espionagem estadunidense ou

o tupiniquim Guia da

Previdência Social, sistema de

Page 78: Delírios

77

arapongagem da Receita

Federal do Brasil?

-Nosso GPS é a Guardamoria

do Paraiso Santificador, que

informa ao Senhor Deus sobre

todas as coisas, em especial os

milagres dos candidatos a

Santos.

- Mas os santos não são

escolhidos pelo papa?

- O Papa é o Chefe da Igreja

de Deus, é seu Representante

na Terra.

- Houve uma papisa...

- Isso é lenda.

- Houve dois papas...

- Calúnia!

Page 79: Delírios

78

- “Houve reis e santos

analfabetos, como houve

nações ágrafas”.

- Isso é charada?

- Antônio Houaiss em uma

conferência durante um

encontro de escritores em

Brasília.

- Tenho muito que fazer, estou

com a mesa abarrotada de

papéis. Vamos logo: data e

local de nascimento?

- Escreva aí: trinta e um de

fevereiro.

- Pelo Calendário Gregoriano

adotado em 1582 pelo Santo

Papa Gregório XIII, não

existe a possibilidade de

Page 80: Delírios

79

alguém ter nascido em trinta

e um de fevereiro. O

Calendário Juliano estava em

atraso de quase uma semana

em relação ao calendário

solar, por isso...

- Onde você aprendeu tudo

isso?

- Ora, na Internet!

- Estimava fosse na santa

biblioteca celestial.

- A Guardamoria do Paraíso

Santificador possui a mais

completa biblioteca do

Universo!

- Maior do que a da santa sé,

que já é enorme?

Page 81: Delírios

80

- A Biblioteca da Santa Sé foi

criada com as sobras dos

livros e documentos que

guardamos na Guardamoria

do Paraiso Santificador.

- Estimava tivesse sido com os

butins tomados dos hereges,

pela santa iquisição.

- Data de nascimento!!

- Pois. Se o papa gregório viu-

se obrigado a tirar três dias do

mês de fevereiro para

consertar erro do seu coirmão

juliano, também posso tirá-los

do dia do meu nascimento.

- Anotado: 28 de fevereiro.

- Parece-me que tanto a mente

humana quanto a não humana

Page 82: Delírios

81

não passam de mera pilhéria.

Engels disse: “o pensamento

falso levado até a sua

conclusão lógica, chega

regularmente ao contrário do

seu ponto de partida.”

- Engels? Desconheço.

- Friedrich Engels, alemão,

escreveu um extraordinário

livro: “Dialética da Natureza”,

cujos direitos autorais deu-os

a Karl Marx para ajudá-lo a

manter-se e manter a sua

família.

- A Natureza é Obra de Deus!

Está no Gênesis.

- Obra de deus... Ora, a criação

do mundo é obra do acaso!

Consequência do Big Bang.

Page 83: Delírios

82

- O Senhor está a blasfemar!

- Toda blasfêmia vista pelo

retrovisor pode vir a se tornar

lógica e coerente.

- O Senhor é metido a

engraçado...

- Parece que estou é metido

numa baita enrascada!

- Então seja sensato e

coerente e claro nas suas

respostas.

- Às vezes a diferença entre ser

sensato ou ser tolo não

depende da gente...

- Depende de quê?

- Nenhum homem com um

pouco de juízo pode supor que

Page 84: Delírios

83

as palavras de outro homem

tenham, exatamente, o mesmo

significado para ambos.

- Já notei que o Senhor adora

provérbios; já leu os de

Salomão, filho de Davi, o rei

de Israel?

- Gosto do número 20,

versículo 1º: “Grita na rua a

sabedoria, nas praças levanta a

sua voz; do alto dos muros

clama, à entrada das portas e

nas cidades profere as suas

palavras.”

- Estou a entender sua

cavilação. Mas esse Santo

Provérbio não justifica os

movimentos de

insubordinação e baderna

Page 85: Delírios

84

recentemente acontecidos no

Brasil.

- O partido dos trabalhadores,

quando não estava no poder,

pregava: “O povo unido jamais

será vencido!”

- As coisas não são tão

assustadoras quanto

parecem, quando encaradas à

luz dos ensinamentos do

Senhor Deus.

- Então responda-me com

franqueza: a indicação do

número 31 do versículo citado,

dos provérbios: “Portanto

comerão do fruto do seu

procedimento...”, justifica as

balas de borracha e as bombas

de gás?

Page 86: Delírios

85

- !?!

- Porque não existe

democracia do povo, pelo

povo, e para o povo; todo o

poder é grupal. Pelo menos

assim nos ensina da História

da Humanidade. O poder há

sempre sido exercido por e

para uma casta, desde Moisés.

- Mas na Biblioteca da

Guardamoria do Paraíso

Santificador existem uns

livros escritos por marxista

que falam em classes.

- Para efeito didático, esses

escritos dividiram a

humanidade em classes.

- Então na realidade não há

classes?

Page 87: Delírios

86

- Não. As classes gerais

especificadas por Karl Marx,

operários, camponeses,

burguesia e capitalistas, foram

para efeito metodológico, a fim

de comportar o livro que Marx

estava a escrever, “O Capital”.

- O capital do Senhor Deus

são as Rezas e Orações.

- Até a se tornarem o ópio do

povo.

- Aqui na Casa do Senhor

dividimos a Humanidade em

Crentes e ímpios.

- As crenças são resultantes da

função precípua do hemisfério

esquerdo do cérebro humano.

Page 88: Delírios

87

- E o livre arbítrio não é uma

Dádiva Divina?

- O livre arbítrio no sentido de

liberdade não existe. Porque

os humanos somos sempre

aprisionados as nossas

lembranças, e em função

delas, agimos.

- Lembranças são recordações

ou memórias?

- Registros mnemônicos.

Quando duas pessoas estão a

conversar, uma e outra nutrem

expectativas de respostas

correspondentes as suas

necessidades.

- Não comprendi.

Page 89: Delírios

88

- Não há duas pessoas no

mundo cujos interesses sejam

idênticos.

- Por quê?

- Porque é difícil para cinco

pessoas viverem sob o mesmo

teto durante três dias sem

terem arranhado a pele dos

seus egos.

- O Senhor pensa assim?

- Meu escritor predileto, Rex

Stout.

- Os anteriores Irmãos em

Deus que lhe inquiriram...

- E eu estou a ser inquirido?

- Ninguém adentra a Casa do

Senhor Deus sem que

Page 90: Delírios

89

saibamos e avaliemos sua

história.

- Porventura foi avaliado

aquele ladrão crucificado ao

lado do cristo?

- Deus e seu Filho, o Senhor

Jesus, são Oniscientes. Leram

no coração do ladrão.

- Quer dizer que também

sabem tudo sobre mim?

- Sabem.

- Então, e por que estou a ser

perguntado?

- Rotina.

- Rex Stout disse que a

curiosidade é uma forma de

Page 91: Delírios

90

atração mas eu acho que é de

atracação.

- O que o Senhor quer dizer

com essa metáfora,

“atracação”? É o ato de

encostar embarcações aos

cais?

- Chegou a vez de eu dizer:

Santa Ingenuidade! Estou a

me referir ao ato de aprisionar,

prender, essas coisas.

- Aprisionar ou prender o quê

ou a quem?

- A mim.

- Mas o que queremos aqui na

Casa do Senhor Deus é a sua

Salvação.

- E eu estou a correr perigos?

Page 92: Delírios

91

- Todos os homens que não

creem em Deus Todo

Poderoso, correm perigo.

- Quais perigos?

- De ir para o Inferno.

- Mas eu já moro no inferno!

- Nossa eficiente

Guardamoria do Paraiso

Santificador diz que o Senhor

reside no Brasil.

- Você conhece o Brasil?

- Só por meio dos nossos

Satélites.

- E também por espiões de

batina.

- Na Casa do Senhor Deus não

temos espiões, não

Page 93: Delírios

92

concorremos com os Estados

Unidos.

- E a universal estrutura da

igreja católica, é o quê?

- São Agentes para a Salvação

de almas, não espiões.

- E o exército da salvação?

- Essa organização não

pertence ao Reino do Senhor

Deus.

- Mas arranca dinheiro dos

trouxas em nome de deus.

- Num mundo de causa e

efeito todas as coincidências

são suspeitas.

- Essa frase era minha, só

estava esperando uma deixa.

Page 94: Delírios

93

- Essa frase é de Rex Stout.

- Mas Rex Stout é o meu autor

predileto e não o seu.

- Na verdade nunca o li; dele

sei e do seu pensar pelos

pareceres da Guardamoria do

Paraiso Santificador.

- Aqui também fazem-se

pareceres?

- Resumos, sínteses,

apanhados dos jornais da

Terra arquivados na GPS.

- Se na biblioteca do GPS

daqui existem romances

policiais, já começo a gostar do

GPS.

Page 95: Delírios

94

- Sabemos que o Senhor é

também escritor de romances

policiais.

- Apenas escrevi uns três...

- Editou-os?

- Por conta própria, um! E

nesse criei um detetive,

Arsênio Lobato.

- Alguma influência do Arsene

Lupin do escritor francês

Maurice Leblanc?

- Meu detetive não é ladrão, é

mulherengo.

- Lupin, no livro “A agulha

oca”, decifra o enígma desta

frase: “Retirada do volume PT

Camaradas partiram com ele

e aguardarão instruções até

Page 96: Delírios

95

oito horas manhã PT Tudo

bem PT”.

- Pelo visto você leu o livro.

- E o Senhor foi capaz de

decifrar o mistério contido

nesse enigma?

- Muito fácil.

- Muito fácil por quê?

- Por via do efeito burrice;

quando o PT entra num

negócio escuso deixa sempre o

rabo do lado de fora.

- !?!

- Pelo seu sorriso à moda

“Madona”, já vi que entendeu.

- O Senhor criou um só

detetive?

Page 97: Delírios

96

- Criei dois; há também o

Comissário Marximiano

Engels de Jesus.

- Que nome esdrúxulo!

- Em razão de o método de

investigação do Comissário

seguir a dialética dos elos

essenciais dos acontecimentos.

- Que significa isso?

- Promete desculpar-me se me

alongar na explicação? É que

envolve conceitos filosóficos.

- Que conceitos?

- A compreensão do mundo.

Seu desenvolvimento como

diminuição e aumento (ou

seja, evolução) ou como

Page 98: Delírios

97

unidade de contrários (ou seja,

revolução).

- Que isso quer dizer?

- Como diminuição e aumento

representa o evolucionismo

vulgar, e as mudanças são

quantitativas, de aumento e

diminuição.

- E da maneira dialética-

materialista, como ocorre o

desenvolvimento?

- Qualitativamente, como

resultado das contradições

internas de cada fenômeno;

tais contradições, uma vez

resolvidas por via de processos

revolucionários, produzem

saltos em qualidade.

Page 99: Delírios

98

- Muito palavrório.

- Na sua função de descobridor

das causas das ocorrências

policiais, meu comissário

Marximiano não perdia tempo

com os fatos exteriores das

ocorrências policiais – o quê?

onde? como? quando? – mas

sim com o interior de cada

ocorrência, em especial na

busca do elo essencial.

- Lá vem mais palavrório...

- Pensar é função superior das

pessoas capazes; constatar,

todos constatamos.

- Está a me chamar de vulgar,

eu, Provedor Celestial do

Senhor Deus Criador de

Todas as Coisas?

Page 100: Delírios

99

- Estou a informar sobre a

maneira de como o meu

comissário Marximiano

resolvia seus casos policiais.

- E ele os solucionava?

- No caso que meu livro

descreve, para o comissário

Marximiano o elo essencial

residia no “perfume de rosa”

que ele sentiu no interior do

carro de Mônica Lima e Silva,

que capotou, matando-a.

- Como fez tal dedução?

- Esse intenso “perfume de

rosa” deu ao comissário a

certeza de que Mônica era uma

mulher româtica.

- Sim. E daí?

Page 101: Delírios

100

- Os româticos vivem de

fantasias e ilusões; destarte,

Mônica jamais pensaria em

atentar contra a própria vida,

um gesto destituído de

qualquer sublimidade. O

desatre, portanto, não deveria

ser um desastre comum, talvez

uma ocorrência preparada...

para parecer desastre.

- Ja começo a entender:

alguém preparou o carro da

Senhora Mônica para ocorrer

um acidente, é isso?

- O começo da solução: se

existia um “alguém”, quem era

esse ou essa?

- Estou a entender. Daí a

importância de examinarem-

Page 102: Delírios

101

se os aspectos interiores dos

casos e não apenas responder

o quê? onde? quando? como?

- E o “perfume de rosa”

constituia-se em elo essencial.

- Romântica e ingênua, de

alguma maneira a Senhora

Mônica teria deixado o

“leitmotiv”. Mas de que

maneira?

- Pela mais comum das

maneiras, uma carta.

- Carta?

- Carta é a mais comum das

intimidades dos ingênuos.

- Mas a quem?

Page 103: Delírios

102

- Na psicologia de Mônica, ao

marido por quem era

obcecada.

- E o elo essencial para

encontrar tal suposta carta ao

marido era...

- O “perfume de rosa”.

- Por quê?

- Em que comum lugar os

românticos poem cartas

“secretas” para serem

obrigatória e posteriormente

descobertas?

- Todos os românticos agem

assim?

- Os suicidas românticos, para

vingarem-se entre aspas dos

objetos de seu afeto doentio,

Page 104: Delírios

103

ao cometerem suicídio

“acreditam” que vão produzir

nesses objetos sentimentos de

culpa.

- Na suposição ou eperança de

que poderá trazer o objeto do

afeto de volta a si.

- Isso. A morte material e

própria nunca é pensada como

morte real e sim como modo

de barganha.

- Daí a razão da existência de

uma carta da Senhora

Mônica.

- Já está pensando

dialeticamente.

- E o elo essencial será um

livro onde os românticos

Page 105: Delírios

104

escondem as coisas

destinadas a serem

descobertas?

- Exatamente.

- E a inter-relação dessa

conjectura com o “perfume de

rosa”...

- O livro “O Nome da Rosa”, de

Umberto Eco.

- E lá estava a carta da

Senhora Mônica ao marido,

na biblioteca da casa!

- Sim, no livro de Umberto

Eco.

- Os suicidas românticos são

bem engenhosos.

Page 106: Delírios

105

- Porque são instintivos e não

racionais. E como instintivos

aprendem que os únicos

segredos em segurança são os

não escritos; pois quando

escritos são para serem

descobertos.

- As coisas nunca são

assustadoras quanto parecem

se vistas por dentro.

- Outra deixa minha.

- Desculpe. Prossigamos.

- Levar adiante o quê?

- A feitura de sua fé-de-ofício.

- Meu prontuário?

Page 107: Delírios

106

- Sim, seu prontuário; mas

não no sentido que a polícia

dá a esse documento.

- Também aqui na casa do

senhor deus tem polícia?

- Se o ponto fraco dos

humanos fosse somente a

besteira, ninguém seria

condenado às penas do

Inferno!

- Isso é do “Auto da

Compadecida”, do Ariano

Suassuna. Uma fala do João

Grilo.

- Sei que é. Mas esses seus

“delírios” estão prenhes de

frases tiradas de livros!

Page 108: Delírios

107

- Mas eu avisei no começo:

Relembranças dos muitos

livros que li.

- Quer dizer, plágios.

- Plágio só se efetiva quanto o

trecho é ipsis litteris.

Aproveitar-se das suas ideias é

tudo que os escritores

desejam. Sinal de que foram

lidos e apreciados. E nesse

caso não acontece o sofisma da

“intenção presumível”...

- Li alhures que sem plateia, a

entrada é apenas uma

chegada; vimos isso no

julgamento do “mensalão”.

- E eu li em Mary Westmacott

que “um cachorro possui

Page 109: Delírios

108

extraordinária capacidade de

levantar o ego” dos homens.

- ?

- Porque “para o cachorro o

dono é um deus idolatrado”!

- ??

- E que “... o problema do

segundo filho é que é sempre o

anticlímax”!

- ???

- Que em geral o leitor olha o

começo do livro, percebe do

que se trata, salta para o fim

para conhecer o desfecho e

volta para o meio para saber

por quê.

Page 110: Delírios

109

- Noto que o Senhor está

sempre a fazer da vida

pilhéria.

- A vida é que não me leva a

sério.

- E observo também que o

Senhor é simpatizante do

partido dos trabalhadores...

- De jeito nem maneira! Errou!

O partido dos trabalhadores é

o asilo dos espiroquetas

salvados do derrotado partido

comunista.

- Do nosso Santo GPS recebi

informações de que o Senhor

escreveu um livro sobre sua

experiência como militante

comunista.

Page 111: Delírios

110

- Escrevi, mas nunca

publiquei.

- Por que?

- Não sei. O livro até que foi

elogiado pelos que tiveram

oportunidade de lê-lo.

- Pela veracidade do relato?

- Pela necessidade de se

criticar o comunismo, a grande

frustração de toda uma

geração. Servi ao partido

durante mais de quinze anos.

Por todo esse longo tempo

nunca me deram o direito,

nem a oportunidade, para

analisar e criticar.

Page 112: Delírios

111

- Mas o partido se

proclamava lutar contra a

ditadura e pela democracia.

- A fotografia da chamada

“vanguarda brasileira”, o

escritor Osvaldo Peralva a

divulgou no livro “O Retrato”.

- Temo-lo na Santa Biblioteca

da Guardamoria do Paraíso

Santificador.

- Peralva, e outros tantos

ingênuos, éramos apenas

auxiliares do comitê central.

- Que era quem mandava...

- Não. Quem mandava era a

comissão executiva.

- Então, decisões tomadas

coletivamente.

Page 113: Delírios

112

- Não. Quem concebia as

decisões era o secretário

político do secretariado

nacional composto de cinco

camaradas pertencentes à

comissão executiva.

- Luis Carlos Prestes era o

Secretário Político.

- Na prática, era Diógenes

Arruda, o “procurador” e

“porta-voz” de Prestes... que

estava escondido e ocupado na

prazerosa tarefa de fazer

filhos!

- E vocês os demais dirigentes

eram o quê?

- Éramos paus-mandados,

tínhamos que cumprir sem

discutir, fazer sem perguntar,

Page 114: Delírios

113

porque a razão das coisas

constituía privilégio do

secretariado nacional.

- Parecido com o que acontece

aqui na Casa do Senhor Deus;

só que aqui o Senhor Deus é

Onissapiente, e representa a

Verdade e a Vida.

- Também diziam isso lá.

- Quem figurava de “deus” no

partido comunista?

- Diógenes Arruda, vulgo

Bigode.

- Mas Luis Carlos Prestes era

o secretário-geral.

- Ele pensava que era, mas

Arruda manipulava-o. A

pretexto da segurança do

Page 115: Delírios

114

“cavaleiro da esperança”,

Arruda mantinha-o em

cativeiro numa fazenda nas

confundas do interior do

Brasil. Só Arruda sabia onde

Prestes estava escondido e só

Arruda comunicava-se com

Prestes.

- E os militantes não

protestavam?

- Militante, milita. Todas as

coisas do mundo têm seus

contrários e o contrário de

herói é filho bastardo. Os

militantes não passavam

disso: éramos todos filhos

bastardos.

- Mas pelo que consta nos

registros da Santa Biblioteca

Page 116: Delírios

115

do Paraíso, tanto Arruda

quanto Prestes foram

expulsos...

- É, foram expulsos do partido

comunista, como traidores!

- Quem então ficou a mandar?

- O partido quebrou-se tal

galho seco: sem seiva, e

bichado. Os impulsos

“mandonistas” de cada

dirigente da executiva nacional

levou-os a cada um fundar seu

próprio partido comunista.

- Isso lembra-me o sacerdote

agostiniano Martin Lutero e a

Reforma...

Page 117: Delírios

116

- Mas na reforma protestante

não surgiu nenhum Roberto

Freire, surgiu?

- A reforma protestante foi

contra o vendedor de

indulgências, Johann Tetzel,

que “pregava” que os pecados

podiam ser purgados por

meio das indulgências que ele

vendia...

- A sujeira no comportamento

humano é inerente à raça

humana.

- Só a Fé no Senhor Deus nos

poderá salvar!

- Na política partidária dos

homens não se pode ter amigo

com quem não se possa brigar,

Page 118: Delírios

117

nem inimigo com quem não se

possa fazer as pazes.

- Quem disse isso?

- Um destacado político

cearense. Dizia também: antes

da eleição voto em todos, no

dia da eleição voto num só,

mas depois da eleição digo que

votei no que ganhou!

- Pelo seu modo desabusado

de criticar, o Senhor se

considera superior!

- Com um metro e cinquenta e

oito de altura não posso ter a

veleidade de querer ser

superior a nada.

- O Senhor me obriga a fazer

uso de um lugar-comum: nos

Page 119: Delírios

118

pequenos frascos é que estão

os grandes perfumes.

- Adágio popular já fora de

moda. Quase tudo agora é

miniatura. O nano é a medida

elétrica do Século XXI, e dos

futuros tempos.

- Só o Senhor Deus nasceu

Grande, é Grande e

continuará Grande!

- Amém.

- O Senhor está a zombar de

mim?

- ...por outro lado, nano

lembra-me mano; o mano

médico, vinte anos antes de

morrer de câncer de próstata

escreveu um conto que ganhou

Page 120: Delírios

119

o “Premio Jabuti” de

Literatura, em o qual conto

descreve com pormenores os

padecimentos de um

personagem também vítima

mortal de câncer de próstata.

Não é isso intrigante?

- É premonição, um Dom que

o Senhor Deus dá a alguns

homens, por merecimento!

- No caso do meu irmão parece

castigo!

- Por que castigo?

- Porque meu irmão foi vítima

de padecimentos mui

semelhantes aos descritos por

ele com ironia no conto

premiado.

Page 121: Delírios

120

- ?

- Tal qual; até a cena

insignificante da sonda vesical

para captar urina direto dos

rins em virtude da obstrução

dos ureteres. Como no conto, o

coletor ficava amarrado ao pé

dianteiro da cama, para não

deixar o paciente ver a cor da

urina.

- Coincidências demais!

-As cenas de morte de meu

irmão e do personagem só são

desconformes numa situação:

sentindo-se no fim da vida o

personagem sentia

necessidade – talvez para não

pensar no seu próximo e

inevitável falecimento – de

Page 122: Delírios

121

divertir-se com qualquer coisa,

e na falta de algo risível, da

sacada do apartamento onde

residia, sorrindo contava os

carros que cruzavam as duas

pontes de Florianópolis e

imaginava um estória

engraçada para cada carro;

enquanto meu irmão, que

morava numa casa, jamais

aceitou sair do seu escritório,

que transformara em quarto.

- Seu irmão era médico de que

especialidade?

- Ginecologista e Obstetra. E

professor Universitário.

Deputado estadual pelo PDT,

nas horas vagas.

Page 123: Delírios

122

- O Senhor se dava bem com

seu irmão?

- Eu o considerava meu irmão

e o tratava com extrema

fraternidade; mas ele era

arredio e ácido comigo.

Quando meus filhos

criticavam-me por aceitar essa

desigualdade de tratamento,

eu respondia: sou irmão dele,

ele é que não me tem como

irmão; e isso é problema dele.

- Como o seu ídolo Freud

explica isso?

- Como a psicanálise explica,

não sei; eu compreendia e

tomava como forma de

rejeição.

- Rejeição a quê e a quem?

Page 124: Delírios

123

- O inconsciente do filho

desmamado capta o desmame

como consequência da nova

gestação em processo; e após o

nascimento do irmão ou irmã

transfere sentimentos de

rejeição para a criança recém-

nascida que o substituiu nos

generosos cuidados da mãe.

- É o caso do Senhor e seu

irmão médico?

- Pode ter sido o caso da

gratuita rejeição do meu irmão

médico, para comigo. Ele

nasceu em dezembro de 1921 e

eu devo ter sido gerado nove

meses depois, em setembro de

1922. De nove meses a um

ano, e às vezes mais, era o

Page 125: Delírios

124

tempo da amamentação

naqueles recuados tempos.

- Quando nada, uma

explicação lógica.

- Quando nada, uma

racionalização.

- Que o Senhor quer dizer com

“racionalização”?

- Conforme a definição do

Dicionário Houaiss: “processo

de caráter defensivo pelo qual

um indivíduo apresenta uma

explicação coerente ou

moralmente aceitável para

atos, ideias ou sentimentos

cujos motivos verdadeiros não

percebe”!

- Interessante isso!

Page 126: Delírios

125

- Também é assim aqui na casa

do senhor seu deus?

- Na Casa do Senhor Deus não

há lugar para rejeição. Aqui

tudo é Amor e Bondade!

- Há um apartamento vago

para mim?

- É para avaliar e decidir do

seu destino que os Santos

Auxiliares do Senhor Deus

estão a inquiri-lo.

- E se eu levar pau nos

exames?

- Vai para o Purgatório, para

purificar-se. A depender do

resultado do seu julgamento

poderá ou não viver a Vida

Eterna.

Page 127: Delírios

126

- Mais eu não quero viver a

vida eternamente; desejo

apenas completar o centenário

que tanto pode ser de

nascimento quanto de vida

vivida.

- Que significa isso de vida

vivida; há vida não vivida?

- Em termos psicanalíticos,

considera-se vida a vida

uterina.

- E também segundo os Santos

Princípios da Casa do Senhor

Deus.

- A proibição do papa ao

aborto...

- Com base no Sexto

Mandamento do Senhor Deus,

Page 128: Delírios

127

comunicado ao Povo de Deus

pelo Santo Profeta Moisés:

“Não matarás”.

- Quer dizer que Moisés

antecipou-se a Freud na

compreensão do começo da

vida?

- Foi o Filho do Senhor Deus,

Jesus Cristo, que estendeu o

significado dos “Dez

Mandamentos de Deus”.

- Quando garoto frequentei

por três anos a escola

dominical presbiteriana;

jovem, li a Bíblia ao lado da

História do PCUS; adulto,

rejeitei os absurdos da Bíblia;

mas agora ancião consulto-a

sempre que necessário. É o

Page 129: Delírios

128

livro mais antigo da

Humanidade; e o mais sábio,

sabendo-se lê-lo.

- O Senhor Jesus ao estender

as sumárias Leis de Deus à

intenção, completa em São

Mateus 5:28 os Santos

Mandamentos de Deus.

- Quer dizer, o homem não é

somente o que faz mas

também a sua intenção de

fazê-lo. Porque o pensamento

é a matéria do cérebro e o ato,

apenas realização. Isso é puro

Freud!

- E há também a tal “intenção

presumida” de que o Senhor já

nos falou.

Page 130: Delírios

129

- Reinvenção do presidente da

corte suprema acima da qual

nada mais existe.

- Ele pensa assim talvez por

influência do anjo rebelde

Lúcifer.

- Li alhures que deus não tirou

de Lúcifer seu poder angélico.

- Óbvio. Da mesma forma

como o Brasil não foi

descoberto pelo português

Pedro Álvares Cabral; o

Senhor Deus já o tinha feito

quando fez a Terra e o Céu.

- Mas está a ser “reinventado”

pelo sumo sacerdote das leis

brasileiras cuja pose e

aspiração aristocráticas

levaram-no a pescar até nas

Page 131: Delírios

130

águas turvas da constituição

fascista de Mussolini.

- Os culpados no processo AP

470 são inocentes?

- Os culpados do mensalão são

culpados!

- E por que o Senhor volta-se

contra quem os condenou?

- Volto-me contra quem

condenou sem prova nos

autos, com base na intenção

presumida ou na abrangente

dinâmica dos fatos.

- No seu entender o Senhor

José Dirceu não era o chefe?

- Era o Chefe da Casa Civil, e

como tal é difícil entender

desconhecesse a manobra de

Page 132: Delírios

131

poder do partido dos

trabalhadores em cuja

agremiação política Zé Dirceu

exercia efetiva liderança; mas

conhecer não quer dizer fazer,

praticar.

- Saber de um erro e nada

fazer para corrigi-lo é

compactuar com o erro.

- Moralmente, sim; mas não

do ponto de vista das leis

humanas, e, em especial, sem

provas nos autos.

- Todos os condenados foram

julgados à revelia das provas

dos autos?

- Apenas o considerado “o

Chefe”, Zé Dirceu. Por

pinimba pessoal do presidente

Page 133: Delírios

132

do tribunal que se vangloriou

ao proferir a sentença de

condenação: “Nada existe

acima de nós”.

- O que levou o Presidente da

Corte a atitudes tão

evidentemente ácidas para

com o Sr. José Dirceu?

- Aqui se permite imaginar?

- “Não farás para ti

imagem...”

- Não, não é isso. Refiro-me

aos possíveis motivos da

atitude hostil do presidente da

corte em relação ao Zé Dirceu.

- Na verdade, na verdade, na

casa do Senhor Deus estamos

a tentar entender esse

Page 134: Delírios

133

comportamento do Sumo

Sacerdote.

- Pedindo perdão por usar o

achismo, acho que por trás

dessa animosidade há uma

resposta.

- Uma resposta de quem e a

quê?

- Zé Dirceu, oriundo do

partidão, e nele educado,

assimilou como nenhum outro

o mandonismo vigente na

executiva do partido

comunista.

- Mas, pelos nossos registros,

o Sumo Sacerdote da Corte

Suprema nunca foi militante

do Partido Comunista.

Page 135: Delírios

134

- Imagino animosidades

surgidas devido a algum

comentário pouco lisonjeiro

do Zé Dirceu ao então

candidato a ministro da

suprema casa.

- Isso no tempo da indicação

do nome do Advogado para

compor a mais alta Corte do

País.

- Por esse tempo a lista de

candidatos a Ministro do

Supremo deve ter passado pelo

crivo do Zé Dirceu, que poderá

ter opinado contra.

- Só por isso?

- E também é sabido que Zé

Dirceu não é chegado à cor

preta... só à vermelha.

Page 136: Delírios

135

- Muito possível um

comentário desairoso do Sr.

José Dirceu contra a cor do

Advogado candidato.

- Daí a vendeta. Não está no

santo livro dos provérbios,

mas sei de um adágio popular

dos humanos que diz: “a

vingança é um prato que se

come frio”.

- As palavras do Santo Livro

dos Provérbios são palavras

de Deus!

- E o Zé Dirceu entrou numa

“fria”!

- Que é “entrar numa fria”?

- O ministro presidente deu-

lhe o troco com a subjetividade

Page 137: Delírios

136

da “intenção presumida”, e

carregou nas penas. Aliás, o

ministro encarna bem a figura

bíblica do “sumo sacerdote”.

- O Filho de Deus, Jesus

Cristo, não respondeu a

Pilatos. Aceitou o julgamento

e a condenação.

- Entre nós humanos grande

parte das pessoas sábias na lei

dos homens considera o

julgamento do mensalão um

ato político e não de justiça.

- Mas o Senhor acredita que

houve de fato tentativa do

Partido dos Trabalhadores de

permanecer no poder pelo

viés da compra de votos?

Page 138: Delírios

137

- Houve. Da mesma forma

como houve compra de votos

de deputados e senadores para

a manobra que tornou possível

no Brasil a reeleição para

presidente da república.

- Aqui na Casa do Senhor

Deus sabemos que manobra

semelhante foi também

perpetrada para transferir a

capital do País para Brasília.

- Em qualquer país dos

humanos as leis são pensadas

e feitas para favorecer castas.

- Por isso as leis dos homens

são falhas ou convenientes. Só

as Leis de Deus são Absolutas

porque Justas!

Page 139: Delírios

138

- Ora, se a negação da vida

está essencialmente contida na

própria vida, os fatos da vida

também.

- Que o Senhor entende como

“negação da vida”?

- A morte.

- Mas a morte pode vir a ser o

começo da Vida Eterna.

- A morte é sempre a

decomposição de organismos

vivos; de todos os organismos

vivos, e não somente do

homem.

- Está escrito: “Porque tu és

pó e ao pó hás de voltar"

(Gênesis. 3:19). Entretanto,

Page 140: Delírios

139

aos homens o Senhor Deus

deu-lhes uma Alma Imortal.

- Desde que se tome alma

como energia, concordo. Desse

ponto de vista, a energia dos

mortos sobrevive. Ou

transforma-se.

- “No princípio era o Verbo...”,

do Evangelho Segundo São

João.

- Aliás, o verbo está a ser

muito maltratado por escribas

oportunistas nestes tempos de

supremacia do “marketing”.

- Reconheço que a mágica da

Internet universalizou e

nivelou a mediocridade.

Page 141: Delírios

140

- Que pariu escritores de

sucesso tipo Paulo Coelho.

- Seu irmão médico, escritor

laureado com o “Prêmio

Jabuti” de Literatura, escrevia

bem?

- Contava histórias muito bem,

era engenhoso com o que

narrava, mas escrevia um

pobre Português.

- Mas pertencia a Academia

de Letras de Santa Catarina!

- Zé Sarnei faz parte da

academia brasileira de letras,

entretanto...

- Aqui na Casa do Senhor

Deus, seus Porta-vozes

Profetas e Evangelistas em

Page 142: Delírios

141

que pese terem sido pessoas

simples, inspirados pelo

Espírito Santo conseguiram

escrever corretos e bons

Textos Sagrados.

- A bíblia é mais um livro de

poesia do que de prosa.

- Qual o motivo de o Senhor

classificar assim o Livro de

Deus?

- Pela liberdade literária dos

livros da bíblia. Sem

compromisso com a realidade

objetiva.

- De que modo?

- Pelo uso excessivo de

parábolas e metáforas e

profecias.

Page 143: Delírios

142

- Mas as Parábolas e

Metáforas e Profecias foram

escritas em Hebraico Bíblico...

- Aí é que está: o hebraico

bíblico é o dialeto do

judaísmo.

- É a Língua de Deus!

- O hebraico bíblico difere do

hebraico moderno tanto na

gramática quanto no

vocabulário; até na fonologia.

Dialeto um tanto inventado,

quiçá oportunista, que poucos

dominavam, e assim não se

pode saber se os livros escritos

nesse hebraico foram bem

escritos à luz da gramática

hebraica moderna.

Page 144: Delírios

143

- Para o Senhor Deus,

escrever correto é escrever

segundo a Sua Santa

Verdade.

- É o que faz o Paulo Coelho; a

gramática coelhista não segue

regras de vernáculo nenhum

senão do dialeto de faturar

grana.

- Aqui na Santa Biblioteca do

Paraíso temos alguns livros

do Escritor Paulo Coelho.

- O que não honra a santa

biblioteca; o ex-presidente dos

Estados Unidos, Bill Clinton,

andava com um livro do Paulo

Coelho debaixo do sovaco...

- Por que o Senhor não usa a

palavra axila?

Page 145: Delírios

144

- Pelo mesmo motivo de um

antigo deputado federal por

Sobral usar fiofó em vez de

ânus.

- Que motivo?

- Ignorância. Certa vez o tal

deputado ao receber em casa

uma visita solene, para se

mostrar erudito e havendo

esquecido o termo ânus, na

presença da visita solene

perguntou alto e bom som ao

filho: - Menino, qual foi o

apelido que o médico botou no

fiofó de tua mãe?

- E de que doença sofria a

mãe?

- Hemorroida.

Page 146: Delírios

145

- É o mesmo deputado que se

hospedava no Hotel Serrador,

na Cinelândia?

- É outro. Embora ambos de

Sobral.

- Igualmente ignorantes?

- No Brasil, deputados e

senadores são políticos, não

precisam ser letrados. A

estória do Hotel Serrador não

envolve sinonímia, mas sim

concordância verbal.

Perguntado pelo viva-voz da

recepção do Hotel em que

estava hospedado quem era

fulano de tal dos anzóis, gritou

lá da sua poltrona no hall de

entrada: É eu!

Page 147: Delírios

146

- Aqui na Santa Biblioteca da

Casa do Senhor temos todas

as gramáticas de todas as

línguas da Terra.

- Até do cearês?

- Do linguajar cearense temos

dois dicionários e um

vocabulário.

- Conheço o “Orélio Cearense”,

de Andréa Saraiva e o

“Dicionário Cearense”, do

Marcus Gadelha.

- O “Vocabulário Popular

Cearense”, do professor

Raimundo Girão, é um livro

de grande responsabilidade,

criteriosa compilação feita

com base em abundante

leitura e muito estudo dos

Page 148: Delírios

147

bons mestres da língua

portuguesa.

- O Ceará tórrido e hostil e

flagelado compensa-se ao

tentar ser “um corpo com

células de criatividade por

todos os lados e um grupo de

células de humor por todo o

corpo”, como escreveu

Cândido Neto na orelha do

“Orélio”.

- Os cearenses estão até a

pleitear terem um Santo

próprio ...

- Sei disso. Meu santo padim

pade ciço. Poderoso chefão!

- Mas há muitas dúvidas na

Santa Comissão de Querubins

responsável pela apuração da

Page 149: Delírios

148

conduta e dos milagres

necessários à Santa

Beatificação. Dúvidas sobre

certos atos praticados ou

consentidos pelo referido

Padre.

- Em Jaguaruana, minha terra

natal, propala-se à boca

pequena a respeito de um

pacto do padim ciço com

Lampião.

- A Santa Comissão de

Querubins jamais apurou a

veracidade de tal acusação.

Ao contrário, apurou que o

Padre Cícero Romão Batista,

em vez de armas e munições

deu Santos Rosários a

Lampião e seus asseclas,

advertindo-os de que só

Page 150: Delírios

149

utilizassem os Santos

Rosários depois de largarem o

cangaço.

- Mas Lampião foi promovido

a capitão pelo governo!

- Foi. Mas não pela deputado

Floro Bartolomeu nem por

influência do Padre Cícero e

sim pelas mãos do funcionário

público Pedro de Albuquerque

Uchoa, integrante do

batalhão patriótico criado

pelo governo federal para

combater a Coluna Prestes. A

Coluna Prestes foi um

brilhante feito estratégico e

tático!

Page 151: Delírios

150

- A coluna Prestes foi a

primeira grande ilusão e erro

de Luis Carlos Prestes.

- Houve outras ilusões e

erros?

- A quartelada de 1935. Que

representou três grandes

mentiras e nenhuma verdade.

- Aqui na Casa do Senhor

Deus estamos interessados em

compreender razões

humanas.

- As três mentiras: primeira,

Antônio Maciel Bonfim, nome

de guerra Miranda, era

secretário geral do PCB no

tempo da quartelada de 1935.

Nessa qualidade, inventou e

enviou informações para o

Page 152: Delírios

151

Komintern (Terceira

Internacional) sobre a situação

pré-revolucionária no Brasil

de 1935. Louvado nessa

invencionice de Miranda, o

Komintern despachou Prestes,

que estava em Moscou, de

volta ao Brasil para liderar o

partido e assumir o comando

da revolução socialista.

- E as outras duas mentiras?

- Que o movimento de massa

da pequena-burguesia

denominado Aliança Nacional

Libertadora não estava, como

informara Miranda à Moscou,

a ser dirigido pelo partido

comunista; era um movimento

popular capitaneado pelos

remanescentes do tenentismo

Page 153: Delírios

152

da Revolta dos 18 do Forte de

Copacabana (1922), da

Comuna de Manaus e Coluna

Prestes, ambas revoltas de

1924.

- E a terceira mentira?

- Antônio Maciel Bonfim,

vulgo Miranda, que se tinha

secretário geral do PCB, não o

era, e talvez nunca o tenha

sido. Luis Carlos Prestes de há

muito já fora cooptado pelo

Komintern para assumir o

cargo de secretário geral, e foi

nessa condição que Prestes,

desprezando e isolando

Miranda e seu grupelho,

assumiu a direção do partido e

o comando da quartelada de

1935.

Page 154: Delírios

153

- Mas isso não é uma mentira,

é um fato histórico.

- A grande e preocupante

enganação é o fato de o Prestes

ter sido nomeado, por Moscou,

chefe de um partido da classe

operária sem nunca ter sido

operário e nem ao menos

militante de qualquer outro

partido operário.

- Atitude de menoscabo para

com os comunistas

brasileiros!

- E evidência do “dedo de

Moscou”.

- Vladimir Lenin, Mao

Tsetung, Ho Chi Minh e outros

dirigentes de revoluções

socialistas vitoriosas também

Page 155: Delírios

154

não eram operários...

Descendiam da pequena-

burguesia.

- Mas todos eles militaram por

muito tempo nos partidos

comunistas de seus países, e

foram escolhidos chefes pelos

comunistas de seus países; o

vietnamita Ho Chi Ming, por

exemplo, foi um dos

fundadores do Partido

Comunista Francês.

- E a única verdade?

- A única verdade é que o

materialismo-dialético de Luis

Carlos Prestes não passava de

metafísica-kantiana. A grande

paixão de Prestes sempre foi a

matemática; Prestes

Page 156: Delírios

155

acreditava que o número é real

tal como existe em si mesmo.

Tanto que na prisão da Rua

Frei Caneca, onde passou mais

de dez anos numa cela isolada,

estava a escrever um

compêndio... de matemática!

- Só por isso?

- No fundo, todas as atitudes

de Prestes à frente do PCB

possuem caráter messiânico,

de salvador do Brasil; para

Prestes quem errava era o

partido e não ele.

Inconscientemente se julgava

um messias...

- Aqui na Casa do Senhor

Deus nós sabemos que é fácil

falar na terceira pessoa. E

Page 157: Delírios

156

quanto à atuação do Senhor

no Partido Comunista?

- Sempre fui sub, do quarto

escalão.

- Que isso significa na

prática?

- Posso pedir um tempo?

- Que é pedir um tempo?

- Um interregno, uma pausa,

descanso.

- O Senhor está a se sentir

cansado?

- Ao contrário, receio que

possa estar a cansar...

- Os Santos Arcanjos nunca

cansam, estamos

acostumados, a Humanidade

Page 158: Delírios

157

é complexa demais, e

problemática. Está sempre a

carecer dos cuidados dos

Eleitos do Senhor Deus.

- Somos um saco, né?

O burocrata mor, ou seja, o

Arcanjo Encarregado do Setor

Histórico-Social da Casa de

Deus que se sentara a meu

lado numa cadeira especial de

alumínio, que abria e fechava

sob pressão, e a trouxera

consigo debaixo do braço –

lembrei-me imediatamente do

genial e esquisito pianista

Glenn Gould, o qual sempre

portava consigo, para os

concertos que dava, cadeira de

Page 159: Delírios

158

modelo igual –, o gentil e

paciente Arcanjo levantou-se,

fechou a cadeira, tomou de sua

pasta de executivo,

cumprimentou-me com

vigoroso aperto de mão e

dirigiu-se à sede do palácio

celestial.

E desse palácio surgiu outro

Arcanjo. Dirigiu-se a mim.

Esperei. Anunciou-se:

- Sou o Arcanjo do Senhor

Deus Encarregado dos

Assuntos Sindicais.

- Até aqui?!?

- Até aqui o quê?

Page 160: Delírios

159

- Mas você não pertence ao

partido dos trabalhadores,

pertence?

- Não entendo o que o Senhor

quer significar com partido

dos trabalhadores.

- Nem eu. Trabalhador é quem

trabalha, é parte da relação de

produção, é a parte explorada

que ganha enquanto a parte

que explora é a que paga.

- O Senhor não está a trocar

os termos?

- Talvez. Porque a mais-valia é

o tanto da exploração, mas

valia mais que a exploração

fosse maior a fim de os

explorados ganharem mais...

Page 161: Delírios

160

- Muito confuso!

- É confuso, sim. Vou tentar

explicar: para produzir dada

mercadoria há que se ter

meios de produção ou

ferramentas de trabalho.

Porém tais meios eles por si só

não produzem mercadorias

nem riquezas, necessitam de

alguém que os manipule; a

esse alguém chama-se de

trabalhadores ou força de

trabalho. Essa operação custa

dinheiro, e então surge

necessariamente o capitalista,

que é aquele que tem o

dinheiro e paga, mas não faz

parte da relação de produção...

- Aqui na Casa do Senhor

Deus não há dinheiro e nem

Page 162: Delírios

161

força de trabalho; todos

temos tarefas e funções. E o

Senhor Deus é nosso Pastor,

por isso nada nos falta!

- Mas lá de onde vim não é

assim. Muitos trabalham para

poucos, os poucos ganham

muito e os muitos que

trabalham ganham pouco.

- Mas isso é injusto!

- E perverso.

- Quem criou esse jogo injusto

de relacionamento?

- Quem criou todas as coisas

dos céus e da terra?

- O Senhor Deus é o Criador

dos céus e da terra. Está

escrito no Livro Santo do

Page 163: Delírios

162

Senhor, no Segundo Capítulo

do Primeiro Livro de Moisés,

Versículo quatro.

- Portanto...

- Com a desobediência de

Adão e Eva o Senhor Deus

criou o trabalho: “No suor do

rosto comerás o teu pão.”

- Até que enfim descobri quem

inventou o trabalho...

- Mas quem se apropriou da

força do trabalho foram os

bolchevistas...

- Concordo inteiramente. Para

os bolchevistas o trabalho é

um dever social, quem não

trabalha não come, estava no

Page 164: Delírios

163

preâmbulo da constituição da

união soviética.

- Isso devido à

desobediência...

- Mas só a partir dessa

desobediência pode o homem

ser fecundo e crescer e

multiplicar-se, como, aliás,

tinha ordenado Deus em

Gênesis 1:21 antes da

desobediência...

- O Senhor está a fazer

confusão... talvez com algum

propósito.

- Com o propósito de

compreender e desfazer a

confusão que não foi criada

por mim.

Page 165: Delírios

164

- Já me haviam prevenido de

que o Senhor é comunista,

ateu.

- E à toa.

- É à-toa, como consta do

“Novo Manual de Português”,

de Celso Luft, ou à toa?

- Agora, depois do novo acordo

ortográfico, de janeiro de

2009, o hífen foi eliminado, a

forma correta é, pois, à toa.

- Estar à toa significa estar a

esmo, sem fazer nada, não é?

- Correto. Dei-lhe o significado

de estar a vagabundar.

- O Senhor não tem ocupação?

Page 166: Delírios

165

- No Brasil, depois dos

noventa anos de vida nossa

única pré ocupação de

macróbios é nos manter vivos!

- Mas as falas de todos os

governos brasileiros que

temos arquivadas no Arquivo

Celestial do Senhor Deus

dizem da preocupação das

Autoridades com os anciãos.

- Mentira deslavada!

- Essa mentira deslavada

ocorre em todos os países do

mundo?

- Não. Só no Brasil, porque só

no Brasil a velhice é uma praga

que precisa ser combatida e

eliminada.

Page 167: Delírios

166

- Por que uma praga?

- Pela paga...

- Isso é um trocadilho?

- É uma aliteração.

- Repito a pergunta: por que

no Brasil a velhice tem que ser

eliminada?

- Porque alegam que custamos

muito aos planos de saúde,

pesamos demais no orçamento

da união e dos estados, e,

quando mais precisamos nos é

negada assistência médica de

qualidade. Aliás, os próprios

médicos preferem nos ver

longe de seus consultórios.

- Observo que o Senhor

reclama demais. Não foi por

Page 168: Delírios

167

acaso que me preveniram que

o Senhor é comunista.

- Não sou, fui; nem para ser

comunista sirvo mais.

- O Senhor é comunista desde

jovem?

- Desde quando tive

conhecimento de que no

regime comunista cada pessoa

seria obrigada a produzir

riqueza de acordo com sua

natural capacidade, mas só

receberia benefício na

conformidade de suas

necessidades.

- Se é assim, então aqui na

Casa do Senhor Deus temos o

comunismo!

Page 169: Delírios

168

- Se é assim, então aqui é o

único lugar do universo onde

se pratica o comunismo.

- A União Soviética não era

um país comunista?

- Não. A URSS foi um país

socialista.

- E qual é a diferença entre

comunismo e socialismo?

- No socialismo, cada pessoa é

obrigada a produzir riqueza de

acordo com sua natural

capacidade, mas recebe

remuneração correspondente

a essa capacidade.

- Não percebo a diferença.

- Nota-se que você é

sindicalista. No Brasil o

Page 170: Delírios

169

sindicato é uma organização

dirigida por uma pessoa

“esperta” – o presidente – que,

em geral, perpetua-se no

cargo; vive às custas dos

trabalhadores associados e do

imposto sindical obrigatório.

Os marxistas chamamos-lhes a

eles de “lúmpemproletários”.

- As pessoas associadas ao

sindicato pagam imposto

para ser do sindicato?

- E não só o imposto sindical

senão também uma

mensalidade que é descontada

na magra folha de pagamento

mensal do trabalhador; e, nos

acordos trabalhistas, generosa

percentagem é ainda

Page 171: Delírios

170

malandramente incluída a

favor dos sindicatos.

- Para que esses pagamentos?

- Para que os presidentes e

diretores dos sindicatos

tenham automotores de luxo,

viagem, às vezes com a família,

a pretexto de congressos de

trabalhadores; com todas as

despesas pagas e...

- Ainda tem mais?

- ... e, sem despender um

centavo, sejam candidatos a

cargos eletivos nas casas

legislativas!

- O Senhor é trotskista?

- Sou marxista anarquista.

Page 172: Delírios

171

- Anarquista é o mesmo que

ser anarquizado?

- Anarquista, segundo a

definição do dicionário

Houaiss, é quem “sustenta a

ideia de que a sociedade existe

de forma independente e

antagônica ao poder exercido

pelo Estado”.

- E o Estado o que é?

- No Brasil o estado é uma

engenhosa e complexa e

multifacetada engrenagem

para cobrar impostos.

- Só para isso?

- No Brasil, maiormente sim.

- Não serve para mais nada?

Page 173: Delírios

172

- Para enriquecer a casta que

estiver no poder.

- Casta?

- De caráter hereditário.

- Determinado por genes?

- Transmitido por sucessão. O

presidente, no fim do seu

mandato, escolhe seu sucessor

o qual, no fim do seu período

de governo, entrega de volta a

presidência ao anterior

presidente, até ambos

completarem curtos períodos

de vinte anos. Getúlio,

militares, petistas...

- Petistas é o quê?

- Rescaldo do finado partido

comunista.

Page 174: Delírios

173

- Esse comunismo parece

onipresente.

- Quem é onipresente é a

miséria!

- Desde quando o Senhor é

comunista?

- Para usar uma metáfora

psicanalista, desde o útero de

minha mãe. Mundanamente,

desde a década 40 do Século

passado. Entrei no PCB em

1946.

- Foi compelido, catequizado

ou cooptado?

- Fui por vontade própria. Na

rua em que eu morava,

defronte de minha casa havia

uma célula do partido

Page 175: Delírios

174

comunista então na legalidade.

Faz muito tempo, mas ainda

me recordo do nome: Célula

25 de Março. Por mera

curiosidade atravessei a rua e

fui assistir a uma reunião.

- Impressionou-se com o que

ouviu!

- Impressionei-me com o baixo

nível teórico dos comunistas.

Então eu já lera alguma coisa

de Lênin, lera o “Manifesto

Comunista” de Marx e a

“Dialética da Natureza”, de

Engels.

- Os membros da célula não

discutiam os princípios

marxistas?

Page 176: Delírios

175

- Os membros daquela célula o

máximo que sabiam era o

nome de Stalin; ignoravam até

o seu prenome, Iosif...

- Discutiam então o quê?

- Nada. O secretário político da

célula lia um papel em que

estavam arroladas tarefas, e

distribui-as entre os

participantes.

- Tarefas de educação

política?

- Tarefas de passar rifas,

vender os jornais do partido,

fazer pichação em muros,

comparecer às manifestações

públicas programadas pelo

comitê estadual ou municipal

ou distrital do partido; essas

Page 177: Delírios

176

coisas práticas do cotidiano

partidário.

- O Senhor aceitou alguma

tarefa?

- Foi aí que começou tudo: no

fim da reunião, a pessoa que a

presidira dirigiu-se a mim,

agradeceu a minha presença e

perguntou se eu gostaria de

colaborar.

- E o Senhor?

- Respondi: por que devo

colaborar? Com o quê? Para

que fim? Qual era o objetivo

político das tarefas? Por

exemplo: a pichação da

palavra de ordem “Abaixo a

ditadura de Dutra”. Ora, o

presidente Eurico Gaspar

Page 178: Delírios

177

Dutra tinha sido eleito em

escrutínio legal e legítimo e

democrático, eleição realizada

sob a supervisão do tribunal

eleitoral.

- Que respondeu o presidente?

- O secretário político

argumentou que o General

Dutra era remanescente da

ditadura de Vargas, fora seu

Ministro da Guerra. Respondi:

mas o partido comunista

participou da campanha

“Queremos Getúlio”.

- Verdade histórica.

- Perguntei: os senhores aqui

não discutem e analisam as

tarefas que recebem da direção

do partido? O secretário

Page 179: Delírios

178

político respondeu: discutimos

o modo de como realizar as

tarefas. A razão política das

tarefas compete à direção do

partido.

- Aqui na Casa do Senhor

Deus também não discutimos

as missões que recebemos

porque o nosso Deus e Senhor

é onisciente e, assim, infalível.

Não erra nunca!

- Os comunistas também

pensavam assim com relação

ao “pai” Stalin, a quem

consideravam sábio e infalível.

Houve até aquele célebre

telegrama de Prestes a Stalin,

chamando-o de Guia e Pai dos

comunistas do mundo inteiro.

Page 180: Delírios

179

- No caso desse telegrama de

Prestes, era culto à

personalidade de Stalin,

bajulação; no nosso caso em

relação a Deus é Devoção, Fé,

Crença.

- Aí eu respondi ao secretário

político da célula: uma palavra

de ordem é uma conclamação,

e uma conclamação só pode

ser estabelecida se

corresponder à realidade, se

mantiver relação com as

necessidades de

desenvolvimento de uma dada

sociedade, se estiver em

consonância com as condições

objetivas existentes no

momento, e se puder ser

compreendida pela massa a

Page 181: Delírios

180

quem é dirigida; senão vira

palavrório.

- Em um livro escrito por um

comunista li: “A prática sem a

teoria é cega; a teoria sem a

prática é inoperante.”

- Então você leu a “História do

PCUS” que, enganosamente,

se propalou ser da lavra de

Joseph Stalin?

- E não foi?

- Nunca foi. Stalin apropriou-

se de um manuscrito da

“História da Revolução”,

produzido por Lev Kamenev,

Nikolai Bukharin e Grigori

Zinoviev.

- E assumiu a autoria?

Page 182: Delírios

181

- A bem da verdade, não

assumiu, mas depois que

expulsou do partido esses três

companheiros, e mandou

assassiná-los, deixou que os

puxa-sacos atribuísse a ele a

autoria da “História do PCUS”.

E é nessa “História”, onde há

um capítulo sobre teoria e

prática, que está a frase citada

por você.

- Vamos continuar...

- Sim. O secretário político

saiu com a generalidade de

que no Brasil a luta política era

pela completação da revolução

democrático-burguesa, para

por fim aos resíduos feudais

ainda existentes.

Page 183: Delírios

182

- Compreensão mecanicista

baseada na teoria do

materialismo histórico a

respeito do determinismo na

sucessão das etapas de

desenvolvimento das

sociedades.

- Teoria que Lênin houvera

espatifado com a tomada do

poder num país de maioria

camponesa, e com imensos

restos feudais; a contrariar

também, e destarte, a Segunda

Internacional que sustentava

que a tomado do poder só

poderia acontecer nos países

da Europa aonde se haviam

completado a revolução

democrático-burguesa.

Page 184: Delírios

183

- A historia do

desenvolvimento social é

sempre um vir a ser.

- !?!

- Seu espanto talvez decorra

de o Senhor julgar que os

cristão são metafísicos. Do

ponto de vista do

desenvolvimento da História,

somos evolucionistas. O Livro

de Deus mostra que os

cristãos são evolucionistas.

- Oportunistas. A trajetória da

igreja romana, de adaptação

dos seus rígidos dogmas aos

hábitos e estágios de

desenvolvimento das várias

sociedades, comprova a

Page 185: Delírios

184

assertiva. Mas o mesmo já não

ocorre com o judaísmo...

- O que o Senhor quer

significar como “judaísmo”?

- Civilização e cultura judaicas;

as crenças religiosas, dogmas e

rituais praticados no Estado de

Israel de hoje, dogmas e

rituais que diferem do

islamismo dos povos do

Oriente Médio e do

catolicismo da América Latina.

- O Senhor Deus e seu Único

Filho estão muito

preocupados com a situação

no Oriente Médio.

- Que situação?

Page 186: Delírios

185

- De guerras e destruição. As

terras por onde Jesus Cristo

passou e as cidades em que

viveu e pregou a Palavra de

Deus estão sendo destruídas...

em nome do próprio Senhor

Deus!

- A bestialidade humana está a

ir além da crueldade dos

primatas, dos quais

descendemos.

- O homem é criação do

Senhor Deus!

- A psicanálise de Freud fala

dos instintos de vida e de

morte comuns a homens e

animais selváticos...

Page 187: Delírios

186

- O homem não descende dos

animais selváticos, é criação

de Deus!

- Você refere-se à criação do

mundo segundo o absurdo do

Gênesis?

- Sim. Mas absurdo, não!

- Meu professor na Escola

Dominical da Igreja

Presbiteriana de Fortaleza,

diante do nosso espanto com a

sumarização quase mágica do

Gênesis sobre a formação do

Universo...

- Quando a Palavra de Deus

em Gênesis diz que “em

princípio criou Deus os céus e

a terra” está a querer

significar que criou um corpo

Page 188: Delírios

187

celeste, o planeta Terra. Está

no versículo 10 do primeiro

capítulo do Livro Gênesis.

- ... na verdade meu professor

ensinava que a palavra usada

nas sagradas escrituras foi

“Bereshit” e não “Bareshit”;

“Bereshit” quer significar “Em

princípio”, enquanto

“Bareshit” significa “No

princípio”.

- E seu professor está certo.

Aprendemos na Escola

Superior de Teologia da Casa

do Senhor Deus que a

preposição usada no Livro do

Gênesis foi “bet” (Em) e não

“bat” (No).

Page 189: Delírios

188

- Meu professor ia mais longe:

a palavra “Bereshit” em

hebraico é formada pelo verbo

“Reshit” com a preposição

“Bet”; esta preposição possui o

significado de “criar do nada”.

Ou seja: “Em princípio...

- Mais uma vez correto. Tem

sentido lato de “mais ou

menos”, “ pode ter sido

assim”.

- O professor dizia que a

preocupação do Livro do

Gênesis fora moral, e não

cosmogônica.

- Concordo. O versículo 1 do

Capítulo 1 da Palavra de Deus

deve ser entendido como

Page 190: Delírios

189

“pode ter sido assim” ou “mais

ou menos assim”.

- Até que enfim concordamos

em alguma coisa.

- Esse texto não é o mais

antigo das Sagradas

Escrituras, é até o mais

recente, tem cerca de 2700

anos. Nesse tempo, se algum

autor escrevia “Em princípio”

estava a querer chamar a

atenção para o uso de signos,

do simbólico (“Era uma

vez...), do que para o texto

como narração.

- Tanto que a descrição no

Gênesis mais parece uma

canção; tem até refrão: “Foi a

Page 191: Delírios

190

tarde e a manhã do primeiro

dia.”!

- “Foi a tarde e a manhã do

segundo dia” quando se criou

“os céus e a terra”.

- “Foi a tarde e manhã do

terceiro dia”, quando a Terra

começou a produzir.

- Nesse tempo, a indústria

fundamental era a olaria.

Tudo era feito de barro.

- Por outro lado, deus criou

tudo tão só pela “palavra” (o

“Dabar” hebraico, o “Logos”

grego, o “Verbo” latino)! Da

boca prá fora, como o povo

diz.

Page 192: Delírios

191

- Mas o Senhor Deus

condescende em ser oleiro,

mergulha as mãos no pó da

terra e esculpe Adam, que em

hebraico quer dizer

Humanidade.

- E beija esse homem-

humanidade para lhe soprar o

hálito de vida, o vento de deus,

o “ruah” hebraico.

- Certo!

- Mas, por favor, agora me

permita um ato de afeto e

justiça: aprendi tudo isso com

o emérito professor em

teologia, Ricardo Labuto

Gondim, em homenagem a

quem tiro meu boné de couro

de preá.

Page 193: Delírios

192

- Devolver a Cesar o que é de

Cesar.

- Dar ao autor de “Deus no

Labirinto” o mérito de ter-me

esclarecido sobre o aparente

absurdo do “Gênesis”.

- Na verdade, essa é a

simbologia por trás do Texto

Sagrado do Gênesis!

- A Humanidade é a mais alta

expressão do desenvolvimento

da matéria!

- A Humanidade é a mais alta

expressão do Amor de Deus!

- Mas não passamos de um

vaso de barro... de esperanças.

- A Humanidade é depositária

do “ruah” de Deus. Como cada

Page 194: Delírios

193

parte de Deus é o todo em si,

cada pessoa tem dentro de Si

a Luz do Criador.

- Daí a evolução qualitativa do

gênero humano, que supera o

lema do “olho por olho”

subtraído do código de

Hamurabi.

- Daí a beleza inconversível e

talvez inapreensível do “amai

os vossos inimigos”.

- Mas o fundamentalismo, que

é expressão da ortodoxia,

destrói a beleza do afeto, que

só foi resgatava e recriada

com Sigmund Freud.

- E como esse pseudo

recriador entende a beleza do

afeto?

Page 195: Delírios

194

- Segundo meu amigo Victor

Andrade, só no útero materno

o ser humano (ainda feto) vive

o estado de “narcisismo”

(felicidade) total e absoluto.

- O estado de felicidade total e

absoluta só se pode viver aqui

na Casa do Senhor Deus!

- Meu amigo e cientista Victor

diz que o nascimento do feto –

a arrancada abrupta do estado

nirvânico total e absoluto – irá

subverter o estado nirvânico

do bebê, que então inicia “um

movimento selfcentrífugo na

direção dos órgãos mais

diretamente estimulados

durante o nascimento –

coração e pulmões, além da

pele” – como, aliás, ocorre em

Page 196: Delírios

195

toda situação de sofrimento

físico.

- Muito complicado!

- A vida humana é que é

complexa. E sofrida desde o

nascimento.

- De fato o Senhor Deus havia

previsto esse sofrimento...

- O senhor deus decretou o

sofrimento da mulher e não do

feto. Em Gênesis 3:16 está

escrito: “Multiplicarei

sobremodo os sofrimentos da

tua gravidez; em meio de

dores darás à luz filhos.”

- Esse sofrimento decorre da

desobediência; que se não

Page 197: Delírios

196

verifica no ser em estado de

gestação.

- Justificação supérflua. Não

aceito. Prefiro a explicação do

meu amigo Victor Andrade:

“A saída do ambiente aquático

e bem delineado do útero e o

lançamento em um ambiente

aéreo e não delimitado

provocarão uma sensação de

desintegração...”

- Desculpe-me. Estamos a

esquecer a finalidade desta

inquirição.

- Nos sindicatos o comum é

falar abobrinhas...

Page 198: Delírios

197

Com essa provocação o

Arcanjo Encarregado dos

Assuntos Sindicais levantou-

se, pegou sua mala de

executivo, revestida de couro

de carneiro, pôs no bolso do

lenço os óculos de leitura com

armação de casco de tartaruga,

endireitou a gravata estilo

italiano, voltou-se e se dirigiu

à sede da Casa do Senhor.

Fiquei a pensar: as coisas

celestiais assemelham-se

bastante com as coisas

terreais.

E da suntuosa Casa de Deus

saiu um senhor de vasta

cabeleira, cara de santo e jeito

de Maestro ou cara de Maestro

Page 199: Delírios

198

e jeito de santo, redundância,

por isso que todo Maestro tem

a parecença de condutor de

almas, intérprete que é de

criações alheias (como se dele

fossem), sentenciador do

tempo e do ritmo e da

intensidade das obras

musicais dos grandes

compositores eruditos. E

muito mais: julgam-se

“ministros” em corte suprema

das intenções presumidas da

escrita musical – acima dos

quais, acreditam, nada mais

existe (remember Hebert Von

Karajan) – uma vez que se

têm intérpretes absolutos da

Obra Musical.

Page 200: Delírios

199

- Você deve ser o querubim

encarregado da música

celestial, não é?

- Errou! Não sou Querubim,

sou Santo, que é uma

categoria superior; sou o

“Kapellmeister” da Casa do

Senhor Deus.

- Quer dizer, não é um

“kapellmeistermusik”

qualquer?

- Não existe um

“kapellmeistermusik”

qualquer, todos os Maestros

somos Regentes de

Orquestras.

- Desculpe-me, estava a

referir-me a músicos sem

Page 201: Delírios

200

imaginação. Que nesses

tempos de agora pululam...

- Aqui na Casa do Senhor

Deus só tocamos música

erudita.

- Erudito ou eruditismo?

- A música que se executa aqui

na Casa do Senhor Deus segue

as regras de composição

greco-romano, aliás, normas

concebidas por inspiração do

Espírito Santo...

- Missas, réquiens e oratórios,

coisas assim?

- Não!

- Releve-me a ignorância, mas

eu nuca entendi essa tripla

Page 202: Delírios

201

divisão para músicas de

caráter litúrgico.

- Porque não estudou direito.

Missa é uma composição que,

em geral, divide-se em três

partes: Primeira parte, Kyrie,

Gloria in excelsis e Credo;

Segunda parte: Santus e

Benedictus; e, Terceira parte,

Agnus dei.

- E réquiem?

- Réquiem é a música

composta com a finalidade de

fazer parte do ofício dos

mortos, e principia sempre

com o “réquiem aeternum

dona eis”. Não segue a liturgia

das Santas Missas.

Page 203: Delírios

202

- Expressão latina que

significa...

- Em Portugês significa “Dai-

lhes o Repouso Eterno”.

- Enquanto oratório...

- Oratório é um conjunto de

peças musicais sobre assuntos

religiosos de cunho

dramático, assuntos quase

sempre tirados da Bíblia

Sagrada que é a Palavra do

Senhor Deus.

- Músicas para serem

executadas nas igrejas.

- Não. Errou! Músicas para

serem tocadas fora das

Santas Igrejas, em teatros e

Page 204: Delírios

203

auditórios sem qualquer

cenário nem vestes litúrgicos.

- Criadas no período barroco.

- Não. Músicas que se

contrapõem ao recitativo

estático em o qual o conjunto

musical serve apenas de

acompanhamento ao Bel

Canto.

- Obra revolucionária, o

Maestro Harnoncourt...

- O Maestro Nikolaus

Harnoncourt referiu-se à

música barroca como

“requintada e esotérica”, e ser

ela “o ponto final e culminante

da evolução de quase dois

séculos”. E o que evolui não

revoluciona.

Page 205: Delírios

204

- Pois. É justamente por

representar “ponto final” de

uma etapa que dá caráter

revolucionário à música

barroca: por isso que o “ponto

final” de uma mesmice

enfadonha.

- Com o barroco a música

deixou de ser apenas canção e

dança. Evoluiu, não

representou movimento de

revolta. Não destruiu nada.

- Mas na França e na Itália o

barroco expressou-se como

uma arte autônoma, que iria

resultar na elaboração da

sonata e do concerto; e

mais tarde, da sinfonia. A

música saiu das igrejas e

invadiu os salões.

Page 206: Delírios

205

- Não. O Senhor está mais

uma vez equivocado. A

música jamais saiu das

Santas Igrejas; a música

passou a ser também

executada em salões feudais e

nas salas públicas destinadas

para concertos musicais:

anfiteatros, teatros,

auditórios etc. Movimento que

não eliminou, acrescentou;

evoluiu, portanto.

- Evolução, para usar sua

palavra, que representou o

adeus aos cantos gregorianos,

e foi quase sua extinção...

Surgiram os instrumentos e

com esses os conjuntos

musicais.

Page 207: Delírios

206

- Algumas Santas Igrejas dos

anos 900 dC já adotavam o

“organum”, que adicionou ao

cantochão uma ou mais vozes.

- Mas “organum” não é o

instrumento que se conhece

hoje pelo nome de “órgão”.

- Não, não é; repito:

“organum” é a natural

evolução do cantochão. Com a

adição de outras vozes e

alguns ritmos.

- Não se pode precisar quando

surgiram os instrumentos

musicais. Entretanto o

Maestro Harnoncourt

considera possível que a “...

simples imitação sonora de

Page 208: Delírios

207

ruídos de animais” canoros

possa ter sido a origem.

- Talvez por isso, por tentar

imitar a Santa Natureza

criada pelo Senhor Deus é que

os instrumentos antigos

possuíam sonoridade

diferente, com timbres

agradáveis ao ouvido...

- Peraí, pelo que aprendi com

meus poucos estudos de

Física, timbres são dados fixos

de cada tom musical, e

específico para cada

instrumento. Um Fá

produzido por um violino cria

uma dada estrutura de

harmônicos, mas o mesmo Fá,

se gerado pela flauta, cria

outra estrutura de

Page 209: Delírios

208

harmônicos; embora ambos os

tons sejam a nota Fá.

- Sim, mas os instrumentos

musicais de um mesmo tipo

podem soar diferentes e

possuir caráter próprio; isso

ocorre devido a sua mecânica

de fabricação.

- Mas você disse que os

instrumentos antigos tinham

timbres agradáveis, e não é

bem assim.

- Então por que é?

- Primeiro, nem todos os

instrumentos musicais antigos

possuíam timbres eufônicos;

segundo, porque timbre é

resultado, representa o som

característico de um dado

Page 210: Delírios

209

instrumento, é a expressão da

curva harmônica de cada tom

de um dado instrumento.

- Observo que o Senhor está a

querer ensinar Padre-Nosso a

vigário. Seja. De fato, um

violino Stradivarius soa mais

agradável do que um violino

moderno. Daí custarem tão

caro.

- Não. Não soam

obrigatoriamente “mais

agradável e, se custam mais

caro, deve-se ao fator raridade;

a raridade é um dos

componentes que produzem

os preços. Mais raros os

objetos de arte, mais caros.

Page 211: Delírios

210

- Todos os violinos, quando

emitem uma nota Fá, estão a

criar igual estrutura

harmônica.

- Agora chegou a minha vez de

esclarecer! Um Fá produzido

por um violino moderno soa

diferente (mas não

necessariamente melhor) de

um Fá produzido por um

Stradivarius (embora as curvas

harmônicas sejam iguais)

porque...

- Êpa! Sabe dizer por que isso

acontece?

- Sei. Em virtude do formante.

Formante resulta do modo

peculiar de como um dado

instrumento é fabricado; ou

Page 212: Delírios

211

seja, é determinado pela

relação mútua dos materiais

empregados na fabricação de

cada unidade de dado

instrumento: madeira, plástico

e metal; também, do tipo de

cola, da solda, do verniz etc.

Por isso, dois violinos de alta

qualidade, um Stradivarius e

um Guarnerius, ambos

fabricados no Século XVII por

artífices da mais alta

competência, soam diferentes.

Assim, pois, não é pela

antiguidade nem pela

qualidade do artesão, é em

decorrência do modo de

fabricação e do material

empregado.

Page 213: Delírios

212

- O cravo tem sonoridade

diferente do seu sucessor, o

moderno piano de concerto.

- Não, parece que você está a

tergiversar. Foi o pianoforte

que sucedeu ao cravo.

- Desculpe o engano.

Concordo. O primeiro

pianoforte foi construído em

1709; Bartolomeo Cristofori

deu a ele o nome de

“gravicembalo col piano e

forte”.

- Que quer dizer “cravo com

suave e forte”.

- O pianoforte da época de

Wolfgang Mozart cobria

apenas cinco oitavas, e

Page 214: Delírios

213

pesava 175 libras, cerca de 80

quilos.

- Enquanto o piano moderno

cobre seis oitavas e pesa o

dobro.

- Oitava, não sei se o Senhor

sabe, é o intervalo, ascendente

e descendente, entre as sete

notas da escala diatônica: Dó,

Ré, Mi, Fá, Sol, Lá e Si.

- Sabia. Isso quer significar

que no teclado do pianoforte o

Dó (ou qualquer outra nota)

repete-se cinco vezes,

enquanto no teclado do piano

moderno, repete-se seis.

- Até que o Senhor não é tão

ignorante em música quanto

eu imaginava.

Page 215: Delírios

214

- A modéstia me inibe de

dizer-lhe “muito obrigado”.

- Mas desconfio que o Senhor

não sabe que também há

diferenças sonoras, em

especial de afinação, entre os

chamados “grand pianos”

modernos para concertos.

- Não sabia não.

- Pois aprenda. As mais

afamadas marcas são:

Becstein, Bosendorfer

Imperial, Fazioli F308 (o

número 308 refere-se aos três

metros e oito centímetros do

seu comprimento. É o maior

piano de concerto do Mundo),

Steinway D e Yamaha.

Page 216: Delírios

215

- Interessante... essa cultura

inútil.

- Não é cultura inútil. E tem

mais: somente os pianistas

virtuose, os Maestros, os

afinadores de piano e alguns

técnicos em gravação

conseguem estabelecer

diferenças de sonoridade

entre tais marcas.

- Gosto muito das “Sonatas”

para piano de Beethoven.

- O gênero musical sonata

nasceu na Itália. De início, em

oposição à cantata e à tocata.

- Qual a diferença entre

cantata e tocata?

Page 217: Delírios

216

- Vejo com satisfação que o

Senhor é curioso, gosta de

aprender.

- Gosto de aprender, mas não

sou curioso.

- Cantata é a composição feita

para vozes humanas,

enquanto tocata destina-se a

instrumentos.

- Nunca entendi a razão da

nomenclatura estabelecida por

Bach nos seus prelúdios e

fugas.

- São 48 Prelúdios e 48 Fugas.

Um prelúdio serve de

introdução a uma fuga. Mas o

Senhor quis referir-se às

suítes de Johann Sebastian

Bach, não é verdade?

Page 218: Delírios

217

- Sim. E o que é courante?

- Um movimento de uma

suíte. Suíte são movimentos

de dança. Courante é um tipo

de dança antiga de origem

francesa em a qual os

dançarinos movimentam-se

de forma lenta e em círculo.

- E gavota?

- Uma dança do tipo minueto,

mas bem mais rápida.

- Minueto?

- Dança de origem francesa

caracterizada por

movimentos lentos e

compassados de pessoas em

grupo.

- E bourrées?

Page 219: Delírios

218

- Dança executada em tempo

duplo, exigindo movimentos

rápidos e vivos; de origem

francesa.

- E forlana?

- Ainda movimentos de dança,

mas rápidos; de origem

italiana.

- Quer dizer, todas as partes de

uma suíte são concebidas para

dançar-se...

- Não. As suítes não são para

se dançar. São sequências

musicais compostas a partir

de danças antigas.

- Também não consigo

estabelecer a diferença entre

ópera-bufa e ópera-cômica.

Page 220: Delírios

219

- A diferença é sutil; a ópera-

cômica é composta com a

finalidade de produzir risos;

enquanto a ópera-bufa, ainda

que nela preponderem tipos

burlescos, há uma história,

um leit motiv, que faz da peça

um drama cantado. Mozart

foi o grande mestre da ópera-

bufa.

O santo kapellmeister da Corte

Celestial olhou para seu

“metrônomo” de horas tipo

relógio de pulso, bateu na testa

larga, passou as mãos na vasta

cabeleira já em desalinho, e

saiu sem despedir-se. Fiquei a

pensar: o modo de

comportamento celestial

Page 221: Delírios

220

assemelha-se bastante com o

modo de comportamento

terreal...

De macacão velho, folgado e

um tanto sujo, boné a cobrir a

careca, óculos espessos

revelando miopia de grau

elevado, mãos calejadas mas

firmes, nos dois pulsos a moda

relógio dois esquisitos

aparelhos: um multímetro

miniatura e um mini

decibelímetro. Riso fácil,

dentes perfeitos, lábios finos,

olhos azuis ou...

- Você deve ser o serafim

encarregado da reprodução do

Page 222: Delírios

221

som musical aqui da casa do

senhor, acertei?

- Em parte. Sou o Arcanjo

Encarregado da Audiofilia

Celestial.

- Também aqui existem

audiófilos?

- Existimos os que nos

utilizamos da música em

conserva para que não falte

permanentemente boa música

em redor do Senhor Deus.

- E há igualmente os

chamados equipamentos

eletrônicos “high-end”?

- Não, nem “low-end”. Temos

“apparatus” de um único

elemento condutor, revestido

Page 223: Delírios

222

de especiais nuvens

consolidadas; “apparatus”

que desempenha o papel de

acoplador, aumentador e

transformador, uma espécie

de fone de ouvido que

funciona sem eletricidade

hidráulica nem térmica nem

eólica, apenas pela poderosa

energia do afeto ao qual

damos o nome de “dai-e-dar-

se-vos-á.”

- Uma espécie de lei de

Talião...

- A Lei de Talião babilônica,

do Código de Hamurabi, de

1780 aC, correspondia, na

ação de reciprocidade do

crime e pena, à lei do “olho

por olho, dente por dente”. Na

Page 224: Delírios

223

Santa Lei de Deus que regula

o Afeto, o “DAR” do Filho de

Deus representa a

reciprocação do Seu Santo

Afeto para com a

Humanidade.

- Concordo, e aplaudo. Sempre

considerei que o afeto é

sentimento de duas mãos: o

dar deve ser do tamanho do

receber e o receber do dar; ou

seja, o ato de receber deve

corresponder entrega afetiva

do recebedor ao doador;

porque reciprocar é a forma

como se materializam os dois

aspectos do afeto.

- O Senhor Deus deu seu único

Filho para ter de volta as

Page 225: Delírios

224

Criaturas que Ele próprio

criara.

- Mas as ingratas criaturas que

deus criou preferiram

Barrabás... Judas preferiu as

quarenta moedas...

- Leornardo Padura

reconhece: “... descobrir a

futilidade de todos os orgulhos

humanos e a dimensão exata

de sua insignificância cósmica

diante do poder essencial do

eterno.”

- Parodiando: pois foi com

pesar e muita tristeza que

senti na própria carne a

insignificância das palavras

diante dos atos; pois quem

Page 226: Delírios

225

seus afetos negociam comete

sempre ingratidões.

- É “... o odioso sentimento de

ingratidão que as

deslealdades provocam.”

Ainda Leonardo Padura.

- O afeto ou catéxias ou libido,

que é a força vital, o princípio

da vida humana, ramifica-se

em amor e ódio ou prazer e

desprazer ou instinto de vida e

instinto de morte. Já o

desafeto representa o

predomínio do ódio sobre o

amor.

- Esse predomínio

consubstanciou-se por meio

do beijo de Judas na face do

Filho de Deus.

Page 227: Delírios

226

- E é por esse fato que

desprezo o beijo na face, em

geral hipócrita e falso.

- E qual a forma do beijo que o

Senhor considera representar

um ato de afeto?

- O beijo nos lábios! E agora

chegou a minha vez de citar

Leonardo Padura: “... a mãe...

costumava depositar ... na

comissura dos lábios do filho...

beijos úmidos ... para que o

sabor doce da saliva

permanecesse ... na boca por

mais tempo...”.

- Por que a ingratidão é uma

das doenças mais difíceis de

curar.

Page 228: Delírios

227

- Pois na Ilha do Desterro, lá

na minha casa terrena, o

predomínio da ingratidão

materializou-se na

mesquinhez que presidiu a

venda do Ateliê de Pintura de

Jarina Menezes – que

guardava o melhor da obra

dessa extraordinária artista –

em troca de quarenta moedas

podres... Em consequência,

toda a obra de uma vida está a

se estragar por falta de abrigo

próprio...

- Isso porque na verdade não

havia empatia entre os

herdeiros e a obra da artista...

- Baixa-fidelidade.

Page 229: Delírios

228

- E assim voltamos ao tema

da alta-fidelidade.

- Que parece ser o objetivo

deste encontro.

- O que os terrenos chamam

de alta-fidelidade (fidelidade

absoluta do som) aqui na

Casa do Senhor Deus nós

denominamos de auto-

fidelidade, isto é, fidelidade ao

próximo como a si mesmo.

Porquanto, se nos amamos,

que é nossa obrigação

primeira, estamos a amar

também quem nos criou, o

Senhor Deus.

- E é também de barro que o

oleiro divino fabrica a

conserva musical aqui no céu?

Page 230: Delírios

229

- É de fio.

- Fio metálico como nos

tempos dos primeiros

gravadores de som?

- Fio de lã de nuvem. Nuvens

que produzem a chuva, chuva

que molha a terra, terra que

produz os frutos... Louvado

seja o Senhor Deus!

- E as enchentes e os

maremotos e as tsunami.

- Regra geral, enchentes e

maremotos são consequências

da ação predatória do homem

sobre a Santa Natureza

criada por Deus no Primeiro

Dia da Criação.

Page 231: Delírios

230

- Ou acomodação e

aperfeiçoamento da obra de

deus... que não se mostrou tão

perfeita assim...

- Tal como num livro em

preparação, como neste que o

Senhor está a criar, muitas

vezes pode ocorrer que o

criador do livro torne-se

criatura, e o livro tome as

rédeas da narração.

- Você tem razão, neste livro

isso já aconteceu muitas vezes.

Quando menos eu esperava

estava a escrever o que não

pensara escrever; e uma vez, o

que não devia ou convinha

escrever.

Page 232: Delírios

231

- O que o Senhor não devia ou

não convinha escrever?

- Por exemplo: que na Terra

não há rico fora da

desonestidade; porquanto

todo rico da Terra foi, antes,

um desonesto!

- Desonesto em relação às

leis?

- De deus e dos homens.

Desonestos por índole e

pendor.

- O Senhor tem provas disso?

- Não sou supremo nem me

considero acima de todas as

coisas, mas as provas

abundam; não as tenho

comigo porque não sou

Page 233: Delírios

232

processo nem jornal, e nem

arquivo público; mas tanto

processos arquivados quanto

os arquivos dos jornais estão aí

para provar que um rico,

qualquer rico, sua fortuna

adveio de desonestidades.

- Pode dar algum exemplo?

- Aqui no Ceará, por exemplo,

a base da fortuna dos ricos de

agora vem de desonestidades

praticadas por parentes

antepassados.

- Quem foram eles?

- Uma dessas riquezas foi

constituída pela via de licenças

de importação fajutas. No

Brasil houve um tempo em

que licenças para importação

Page 234: Delírios

233

de mercadorias só poderiam

ser autorizadas por

departamento competente

sediado no Rio, e concedidas

para importação de aparelhos

e remédios destinados a

hospitais e casas de caridade.

Entretanto, nesse mencionado

tempo tais licenças foram

desonestamente modificadas

por um funcionário de

Fortaleza a serviço do

empresário corruptor,

alteradas para contemplar

importação de tecido de linho

ou máquinas de costura.

- O Senhor tem prova disso?

- Está nos jornais da época, e

nos arquivos do Banco do

Brasil. Escândalo que até

Page 235: Delírios

234

determinou a extinção da

CEXIM e à criação da atual

CACEX. E tem mais.

- Tem?

- Outro rico do Ceará

aumentou sua fortuna com

manobras desonestas com o

objetivo de apropriar-se de

bancos particulares.

- Santa Mãe de Deus!

- Ainda outro: pela via ignóbil

da utilização de artigos de

alimentação, como o açúcar,

por exemplo, avariados pelo

sal marinho no decorrer do

transporte de Pernambuco

para o Ceará. Nos armazéns do

comerciante o produto

avariado era misturado com

Page 236: Delírios

235

produto não danificado com o

fim de diminuir o índice de

contaminação; depois dessa

maquiagem, era vendido como

se bom e puro fosse. Com isso,

esse empresário ganancioso

recebia das seguradoras a

indenização correspondente à

avaria, e dobrava o ganho com

a venda aos consumidores do

produto misturado como se

estivesse em bom estado.

- Mas isso é mais que

estelionato, é atentado contra

a vida!

- Tem ainda mais. Existem os

grileiros que, à sombra do

poder apoderaram-se das

terras devolutas dos morros do

Mucuripe que pertenciam aos

Page 237: Delírios

236

antigos povoadores uma vez

que doadas, em regime de

sesmaria, pelo Imperador do

Brasil.

- O Senhor tem prova de tudo

isso?

- As provas encontram-se nas

páginas dos jornais dos anos

da década de 50 do Século

passado. Quem duvidar que vá

à biblioteca pública ou

arquivos de jornais, e

pesquise. E sobre as terras do

Mucuripe e adjacências, que

levante nos cartórios a origem

e a legitimidade das certidões

de propriedade dos inúmeros

lotes, hoje valiosas

propriedades de uns poucos.

Page 238: Delírios

237

- E sobre as manobras

desonestas para apropriação

de bancos particulares, quer

esclarecer com mais detalhes?

- Infelizmente, essas manobras

jamais foram noticiadas pelos

jornais. Portanto, não posso

provar nem indicar onde estão

as provas; e as pessoas que me

contaram tal falcatrua, já

faleceram. Entretanto, essas

pessoas disseram-me que uma

das manobras consistia em o

grande capitalista cearense

depositar no pequeno banco

particular grande quantidade

de dinheiro sob a promessa

verbal de não sacá-lo em

menos de seis meses; os donos

do banco, garantidos por essa

Page 239: Delírios

238

promessa verbal, emprestaram

o dinheiro ao público com

prazo de até 120 dias.

Disseram-me ainda os

saudosos e queridos falecidos,

que o grande capitalista, antes

de 90 dias, emitiu um cheque

de alta quantia contra um dos

tais bancos. Ora, como não

havia numerário em caixa

disponível para pagar o cheque

visto que o depósito fora todo

aplicado em empréstimos

populares, o grande capitalista

pressionou os diretores do

banco, ameaçando-os de

protestar o cheque caso não

fosse pago em quarenta e oito

horas. Apavorados, os

diretores do banco viram-se

obrigados a ceder suas ações

Page 240: Delírios

239

ao grande capitalista que,

assim, passou a ser o único

dono do banco.

- O Santo Filho do Senhor

Deus advertiu: “Mas ai de vós,

os ricos!”

- O homem de Nazaré foi um

sábio! Ainda que tenha

cometido o pecado da

reciprocidade dependente.

- Que é isso da “reciprocidade

dependente”?

- A cada atitude, os

mandamentos cristãos atribui

uma dada obrigação; ”Como

quereis que os homens vos

façam, assim fazei-o vós

também.”; “Dai, e dar-se-vos-

á”. E assim por diante.

Page 241: Delírios

240

- É a reciprocidade divina.

- É a reciprocidade

condicionada. Para receber é

preciso dar!

- Mas isso não corresponde a

Lei de Talião?

- Ora, se o afeto é via de duas

mãos, o receber terá sido

decorrente de um dar.

- Não é assim que se deve

entender este mandamento

bíblico: “Como quereis que os

homens vos façam, assim

fazei-o também.”

- Mas o “dai e dar-se-vos-á”

significa ter que dar para

depois receber. Primeiro vem

Page 242: Delírios

241

o dar, depois, e em

consequência, o receber.

- O Senhor Deus, primeiro deu

a vida do seu único Filho...

- Por isso que deus é uma

abstração... ou um bobo.

- Ora, o Senhor está na Casa

do Senhor Deus, mais

respeito!

- Não. Estou sentado nesta

pedra dura faz mais de

quarenta e oito horas...

- Conversou com Santos,

Arcanjos, Querubins e Anjos.

- Conversei com pessoas que

se diziam santos, arcanjos,

querubins e anjos. A

inquirirem-me! Nem no tempo

Page 243: Delírios

242

da ditadura militar passei por

isso.

- O Senhor foi preso por ser

comunista?

- Salvamo-nos, minha mulher

e eu, mercê de circunstâncias

muito especiais.

- Pela Santa vontade do

Senhor Deus!

- Por puro acaso. Um amigo de

infância, amizade mui

consolidada, na idade adulta

tomou rumo diferente e até

oposto ao meu: tornou-se

combatente operante

anticomunista enquanto eu

assumia posto de comando na

hierarquia regional do partido

comunista; e minha

Page 244: Delírios

243

companheira Jarina Menezes

era Presidente da Federação

das Mulheres do Ceará, uma

organização a serviço do PCB.

- Tudo quanto os militares

torturadores andavam à

caça...

- Num certo dia, meu saudoso

compadre e amigo, Vicente de

Paula Gaspar (louvado seja

para sempre!), em companhia

de um padre da arquidiocese

do Ceará estavam em uma sala

do palácio episcopal a folhear

os arquivos do então

departamento de ordem

política e social – DOPS – para

escolher nomes para suas

tarefas contrarrevolucionárias.

Page 245: Delírios

244

- A Missão Católica

Anticomunista...

- Ao passar as fichas que eram

centenas, surpreendido deu

com minha ficha. Ficou

nervoso. Apreensivo foi até à

letra J e lá estava a ficha de

sua comadre Jarina. Adveio-

lhe de imediato duas certezas:

a fraternidade e o afeto

estavam acima de qualquer

outra convicção, e, tinha

porque tinha que destruir as

duas fichas. Mas o padre ali

presente...

- E o Senhor ainda não

acredita no poder do Senhor

Deus.

Page 246: Delírios

245

- Vicente raciocinou e agiu

depressa. Lembrou-se de que

haviam chegado informes da

atividade comunista na cidade

portuária de Camocim.

Nervoso, perguntou ao padre

onde ele tinha posto a carta

que viera de Camocim. O

padre informou que a pusera

no cofre do palácio. Diante

dessa informação, compadre

Vicente pediu ao padre o favor

de ir buscar a tal carta para ele

poder comparar nomes.

Quando ficou a sós, pegou as

duas fichas, de Jarina e minha

e pôs dentro da camisa, entre a

camiseta de algodão e a camisa

social. E na hora do almoço,

quando foi fazer a refeição em

sua casa, tirou as duas fichas e

Page 247: Delírios

246

queimo-as no fogão a lenha

que então se usava.

- Obra de Deus!

- É a segunda vez que o senhor

insinua isso; será que deus o

abstrato preocupar-se-ia com

dois comunistas escrachados?

- Todos somos Filhos de Deus!

- Por essas circunstancias, e

mais, como já residíamos

então no Rio de Janeiro, e

Jarina não exercia nenhuma

atividade política lá, e eu, no

rigor da clandestinidade

estava ligado exclusivamente

ao secretariado nacional do

Partidão, por tais

eventualidades humanas,

escapamos!

Page 248: Delírios

247

- Louvado seja o Senhor Deus

e seu Amado Filho.

- Você também vem inquirir-

me? – perguntei ao jovem

Anjo que se achegou a mim, e,

sem espanar a sujeira natural

da mureta, sentou-se na pedra

onde eu estava sentado; riu

seu riso largo e espontâneo de

jovem sem recalques, a

mostrar os fartos dentes da

generosa boca; calça jeans,

sapato-tênis de plástico,

camisa 10 da seleção

brasileira, disfarçada cicatriz

de “piercing” no nariz

proeminente, olhar tristes de

santo, um rosário de alvas e

pequenas pedras de marfim

Page 249: Delírios

248

enrolado no punho a molde

pulseira, porém simples como

a verdade; a fazer mímica e em

tom de recitação respondeu a

minha pergunta:

- “Tua pele é sombra, poça

d’água no escuro. Pressinto

teu cabelo emaranhado. Que

cultivas entre os fios?

Sementes, filtros de amor,

ossos de reis assassinados,

uma pirâmide com a Esfinge

dentro? Quais perguntas

enroladas nesses nós? Com

tua testa sustentas a noite, o

riso dos homens tontos, a

alegria de todo deslize. Rasga

o dia com teus dentes.

Guardas uma onça dentro da

tua boca tensa, anunciam

Page 250: Delírios

249

insurreições os teus quadris.

No peito, um milhão de

pernas correndo com a

alegria da revolta. Se coloco o

ouvido rente a ti, escuto o

farfalhar de asas, o mar

revolto, o rugir da terra, um

grito de pavor. Agitam

minhas pernas pensar nas

tuas afundando a terra

escura. Queima a minha boca

pensar na tua garganta

aberta para o dia ainda tão

sem fim.”

- Mas esse é um trecho de um

texto de minha neta Priscilla,

divulgado no seu blog

www.errotacito.blogspot.com.

br!

Page 251: Delírios

250

- É, sim. Participo intenso da

vida intelectual terrena pela

pena de sua neta; ela é minha

psicógrafa.

- Minha neta tem talento

bastante para não necessitar

de ajuda alheia, nem mesmo

daqui do além.

- A noção humana do Além...

- Desculpe. Força do hábito de

espernear. No meu país nada é

genuíno, nem nós próprios

que somos mistura do

cruzamento de raças

diferentes.

- João Grilo...

- O personagem do Ariano

Suassuna?

Page 252: Delírios

251

- O esperto mameluco que o

avô de Priscilla recriou para

fazê-la crescer.

- Quando chegou à Ilha do

Desterro, Pris tinha apenas

cinco anos! Olhos sem brilho,

corpo sem viço, choramingava

na mesa sem querer ingerir

nada. Para fazê-la comer

comecei a inventar casos com

base no personagem das

histórias de Trancoso que

minha avó Aninha contava. O

personagem central desses

casos era João Grilo .

- E fê-la crescer mesmo!

Priscilla é hoje uma talentosa

criadora de textos densos e

enigmáticos. Como este:

Page 253: Delírios

252

“A pele que avança é mesmo

minha, um tipo de dança que

inventei, é assim: fecho os

olhos no quarto escuro ou no

meio de uma avenida louca,

coloco as mãos em forma de

prece bem rígidas rente ao

rosto. Dentro da boca, a

língua dança. Todo o resto

denuncia um corpo penitente,

até meio santo. Tipo desses

que meditam enquanto o

querosene aguarda o fósforo

riscar. Mas minha invenção é

a língua bailarina. Avança e

recua em direção ao céu da

boca, as gengivas, ao escuro

da garganta. Quando danço,

minha pele alteia, ganha uma

Page 254: Delírios

253

vida toda dela. Meus ossos

repousam dentro de um corpo

que não cessa de nascer.”

- Remete-me à Clarice

Lispector, com nuanças

contraponteadas: o fato e o

símbolo; a frase que afirma / a

sentença que sugere; o

significado definido / o

entendimento conjecturado;

uma estrada de rodagem / um

caminho nas nuvens; a crueza

do cotidiano / a leveza do ser

poetizado; a ironia nas

situações descritas / as

situações irônicas apenas

subentendidas; a amargura

subjacente nas palavras

escolhidas com um dado fim

atemorizante / a doçura

Page 255: Delírios

254

vocabular sem finalidade

senão a beleza da língua culta.

Porém em ambas, tão só

composições literárias; não

são gritos de dor, são

pensamentos pacientemente

organizados; pensamentos que

são a matéria dos cérebros

humanos. Ouça, por exemplo,

Clarice:

“Não entendo. Isso é tão vasto

que ultrapassa qualquer

entender. Entender é sempre

limitado. Mas não entender

pode não ter fronteiras. Sinto

que sou muito mais completa

quando não entendo. Não

entender, do modo como falo,

é um dom. Não entender, mas

não como um simples de

Page 256: Delírios

255

espírito. O bom é ser

inteligente e não entender. É

uma benção estranha, como

ter loucura sem ser doida. É

um desinteresse manso, é uma

doçura de burrice. Só que de

vez em quando vem a

inquietação: quero entender

um pouco. Não demais: mas

pelo menos entender que não

entendo.”

- Escute Priscilla: “Cultivo a

rigidez de uma mulher diante

do atirador de facas. Ando

rija entre os porteiros de

Copacabana, os entregadores

de panfletos, as meninas

lindas de vestidos leves. O

medo do assédio, o medo da

água na boca, dissimulada

Page 257: Delírios

256

seriedade. Reajo alucinada

aos homens que catam coisas

do chão, vejo sobre eles o

manto dos profetas, dos

santos, dos espertos. Preciso

me cuidar para não acabar

como eles, só eu e a rua plena,

que tremor.”

- A mágica que eu era obrigado

a fazer, os esforços

verborrágicos para

encompridar as histórias até o

prato de Priscilla esvaziar-se;

porque a cada frase do conto

de carochinha improvisado eu

punha uma colherada cheia de

comida na pequena boca da

pequena Pris. Ao fim de três

meses, minha neta engordara

cinco quilos!

Page 258: Delírios

257

- Tão empolgado o Senhor fica

com a neta, que esqueceu que

lá atrás deixou uma frase

minha sem comentários.

- Qual?

- A noção humana do Além...

- Como se o além fosse o

mundo dos espíritos.

- Os jovens da Casa do Senhor

entendem e aceitam que o

espírito não é alma, é energia

cósmica.

- Freud achava que o espírito é

o inconsciente humano.

- Que o Senhor Deus deu aos

homens após a desobediência,

para contrabalançar suas

fantasias plenipotenciárias.

Page 259: Delírios

258

- Como assim?

- O inconsciente é o freio

invisível do Senhor Deus, é o

barro do qual o homem foi

feito pelo Oleiro Divino, é o pó

a que todos os humanos

voltarão. É, em resumo, a

sensatez do meio-termo!

- Meio-termo a que Priscilla

metaforicamente se reporta no

seguinte trecho: “Calma, não

larga ainda do meu braço. Eu

te guiei com os olhos, agora

me leva um pouco pela

escuridão. Vou fechar as

pálpebras e você me diz

alguma coisa da cegueira

enquanto me leva até a porta

de tua casa. Um dois três e já.”

Page 260: Delírios

259

- Meio-termo a que o Apóstolo

de Jesus, São Paulo, por

metáfora estabeleceu no já

citado versículo 11 do capítulo

13 da Primeira Epístola aos

Coríntios: “Quando eu era

menino... , quando cheguei a

ser homem...”. A desrazão e a

razão.

- O hemisfério esquerdo do

cérebro, e o direito.

- O Senhor deu a entender em

outro ponto de sua inquirição

que só o ser humano possui

cérebro com dois hemisférios.

- É. E errei. Até recebi

mensagem do meu amigo

psicanalista Victor Andrade, a

quem tenho levado parte das

Page 261: Delírios

260

conversas que aqui tenho tido.

Victor esclareceu:

“O que diferencia o ser

humano não é o fato de

possuir dois hemisférios, pois

os outros animais também os

possuem. A diferença é que no

ser humano o hemisfério

esquerdo possui uma função

especializada que permite a

verbalização e a consciência da

subjetividade (consciência do

"eu"), enquanto os outros

possuem apenas a consciência

primária, de natureza

perceptiva. O hemisfério

esquerdo humano é analítico e

racional, ao passo que o direito

permaneceu com a função

anterior comum aos demais

Page 262: Delírios

261

animais, sendo a sede da

intuição, da sensibilidade e da

empatia. Por isso, uma lesão

cerebral que leva à

incapacidade de falar e mesmo

de raciocinar logicamente, se

não atingir o hemisfério

direito pode permitir que o

indivíduo trauteie uma

melodia ou mesmo xingue

palavrões (neste caso, as

palavras não expressam ideias,

mas emoção, no caso, de

raiva). Por aí, você vê que o

ganho em capacidade analítica

representa perda em

capacidade afetiva. Por isso, os

animais costumam ter uma

"inteligência emocional" mais

aguda que os humanos, pois

mantiveram os dois

Page 263: Delírios

262

hemisférios intactos. No dia

em que o ser humano dominar

amplamente esse

conhecimento, dará tanta

atenção ao desenvolvimento

do hemisfério direito quanto

ao esquerdo, pois toda a

educação tem privilegiado a

esfera cognitiva da mente

(hemisfério esquerdo). Por

isso, meus netos (filhos da

Yasmin) foram "alfabetizados"

também em música: ao

entrarem para a escola

convencional, também

passaram a aprender piano e

violino, de modo que desde

cedo aprenderam a ler notas

musicais e também a apreciar

os grandes mestres da

música.”

Page 264: Delírios

263

- Todos os Santos e Arcanjos e

Querubins e Anjos da Casa do

Senhor Deus sabem ler a

escrita musical.

- Um dia antes de me perder

nesta grande floresta que

circunda este belo lugar ouvi a

“Quinta Sinfonia” de Anton

Bruckner – que compôs

algumas sinfonias tidas pelos

críticos como teológicas – na

interpretação da orquestra

“Staatskapelle Belin”, sob a

regência do judeu Daniel

Barenboim. Produz uma

emoção de quase fazer chorar.

- Soube que o Senhor apreciou

bastante o terceiro

movimento do “Quarteto Opus

132” de Beethoven, executado

Page 265: Delírios

264

ontem pelo Quarteto dos

Querubins, a pedido do

Senhor Deus.

- Tido como o agradecimento

do Compositor, ao senhor

deus, pela cura de Beethoven

de uma maléfica doença.

- Versão que o Senhor

contestou.

- A imaginação dos

musicófilos, ajudada pela

necessidade de os fazedores de

opinião de se tornarem

famosos, criou também a

lenda de que a “Sexta

Sinfonia” de Von Beethoven

são relembranças da vida

campesina.

- E não são?

Page 266: Delírios

265

- Primeiro ocorreu uma

confusão involuntária: a

Quinta Sinfonia de Beethoven

foi, por algum tempo,

denominada de Sexta, e a

Sexta de Quinta, misturada

essa decorrente de terem sido

as duas peças compostas

(terminadas) quase ao mesmo

tempo. E por ter sido a Sexta

apresentada em público

primeiro do que a Quinta,

ainda que na mesma noite de

22 de dezembro de 1808. Mas

nas partituras originais o

compositor restabeleceu a

cronologia.

- As verdades das partituras

são inquestionáveis.

Page 267: Delírios

266

- Nas partituras Beethoven

ficou em dúvida com respeito

à intenção da sua Sexta

Sinfonia: de início indicou-a

como sendo "... memórias da

vida campestre." Algum

tempo depois, quando

descreveu o significado dos

cinco movimentos, fez uma

observação intrigante.

Expressou: "Mais expressão

de sensações do que pinturas."

Quer dizer, mais drama e

menos enlevo. Mas não vacilou

quanto ao intento da Quinta

Sinfonia. Dela ele afirmou,

categórico: "Assim bate o

destino à porta."

- O que importa é o caminho e

não para onde ele nos conduz.

Page 268: Delírios

267

- Será que na vida estamos

indo ou vindo?

- Gosto deste bate-bola.

Explica mais que livros

inteiros. Aliás, os homens em

geral não sabem de verdade o

que é importante.

- Para mim, ancião, o que

conta na vida é a experiência!

- O que de fato importa é o

sentimento que uma dada

coisa provoca; não a forma

da coisa ou como ela é feita.

- Mas não são as chamadas

“coisas importantes” o tipo de

coisas que nos deixam

recordações.

Page 269: Delírios

268

- O Senhor sente assim porque

não é jovem.

- Quando se atinge a idade dos

noventa anos é então que se

sabe que a vida é divertida.

- Ao contrário, sabemos aqui

na Casa do Senhor Deus que

quando se atinge noventa

anos angustia-se por

experimentar que defeitos e

falhas tornam-se motivos de

desamor.

- Os jovens pensam que os

velhos são tolos, mas os velhos

sabem que os jovens é que são

tolos.

- Não me ofendeu. As

palavras duras só ferem

quando não são claras. De

Page 270: Delírios

269

mais a mais, o Senhor está a

citar Agatha Christie

- Cada um de nós é como vive

e o que lê.

- Aceitando os infortúnios

quase sempre os homens os

expulsam.

- Quando se conhece o perigo

não se arisca coisa alguma.

- A autocompaixão é um

trabalho muito absorvente...

- A esperança mentirosa que

todo jovem tem é a mesma

esperança mentirosa que todo

velho um dia teve.

- Aprendemos aqui na Casa

do Senhor Deus que é possível

conseguir qualquer coisa que

Page 271: Delírios

270

se deseje, se realmente se

deseja com todas as forças.

- Para se conseguir o que se

deseja é preciso pagar um

preço ou assumir um risco, e,

por vezes, ambas as coisas.

- Alguns ensejam a rejeição

pela confiança que nutrem

nos próprios julgamentos.

- Ora, se temos conhecimento

e julgamos com base nele, por

que precisamos acreditar?

- Acreditar no melhor de

alguém é fazer o melhor por

esse alguém.

- Pois eu acho que é melhor

odiar a deus do que à

Page 272: Delírios

271

Humanidade. Deus pelo

menos é uma abstração...

Page 273: Delírios

272

Clarice Lispector

versus

Priscilla Menezes.

Page 274: Delírios

273

Clarice Lispector: “Não

suporto meios termos. Por

isso, não me doo pela metade.

Não sou sua meia amiga nem

seu quase amor. Ou sou tudo

ou sou nada. Dizem que a vida

é para quem sabe viver, mas

ninguém nasce pronto. A vida

é para quem é corajoso o

suficiente para arriscar e

humilde o bastante para

aprender.”

Priscilla Menezes: “O corpo da

única mulher que olhei sabe

como era? Comprido, espesso,

negro, brilhante, violento.

Tinha umas cicatrizes no

quadril. A prima que se despia

nos banhos de cachoeira, que

Page 275: Delírios

274

deixava frestas milagrosas nas

portas dos banheiros, a prima

que cruzava as pernas

lentamente. Quando cheguei

ela já tinha um filho e esperava

outro. Eu me embolando para

dentro e ela colocando uns

corpos no mundo fora. Cegar

foi assim, minha filha, o

mundo de relance, o corpo de

uma mulher linda e depois só

a notícia dos nascimentos e

das mortes. Vê só, cegar não

foi muito diferente de viver. A

minha casa é aqui.”

Page 276: Delírios

275

Suíte contraponteada:

a jovem

e o ancião;

avô

versus neta.

Minha neta, você escreveu:

“Abandonar a subjetividade

como estrutura, é pensar uma

subjetividade fraturada,

estatelada, transformada pelo

acaso.”

- Ainda que estrutura,

concreta ou abstrata, como

definição seja a “organização,

disposição e ordem dos

elementos essenciais que

Page 277: Delírios

276

compõem um corpo” (corpo

que também pode ser concreto

ou abstrato). O que não pode é

ser uma estrutura sem

finalidade, sem nutrientes

para o corpo, tão só destinada

a sustentar um não corpo

transformado pelo acaso

(circunstâncias) ou por leis

naturais em algo não

verdadeiro, apenas imaginado

por mentes privilegiadas. Voto

contra.

Você escreveu: “Não quero

falar de mim, quero inventar

na minha fala.”

- Toda fala (ou toda escrita) é

fala própria, pessoal, e, às

vezes, particular. Mas não

deve ser praticada como

Page 278: Delírios

277

dialeto, muito menos em

“gíria” para pequenos grupos

de... “iluminados”. Voto

contra.

Você escreveu: “É preciso

exercitar a rebelião. Recusar-

se a ficar preso a regras.”

- A rebeldia é a essência do

desenvolvimento, de qualquer

desenvolvimento, do de

apenas dois passos à frente

embora seja-se obrigado, por

força de circunstâncias, vez

que outra dar-se um passo

atrás. Além de exercitá-la há

que se a organizar. E não se

entenda “organização” como

“arrumação”. Arrumar é

burocratizar; enquanto

organizar é estabelecer

Page 279: Delírios

278

objetivo, meios e número. E

também momentos. Por isso

que nem todos os momentos

transformam-se em o

momento. Voto a favor.

Você escreveu: “Cair, para

perder o medo da queda.

Inventar intimidade com a

queda, para perder o medo da

queda. Inventar a queda,

para deixar de morrer,

caindo.”

- Eu trocaria de verbo, em vez

de “cair” eu tiraria o prefixo

“ca” e ficava com o verbo

universal IR, verbo que pode

ser de qualquer gênero:

transitivo, intransitivo,

pronominal, hermafrodita

confesso e juramentado, o

Page 280: Delírios

279

escambau, desde que..., pois é,

desde que não nos tornemos

“lobrigadores”. Porque ver

passar não é passar. Voto a

favor, mutatis mutandis.

Você escreveu: “As operações

ficcionais dão-se como

montagens entre o

improvável e o plausível.”

- Voto a favor. Tudo no

Universo é um vir a ser em

ponto de intermezzo: nem É,

porque nada em movimento É,

está a ser e se está a ser, não é,

SERÁ! Trocando em miúdos: o

presente não existe uma vez

que agora (e o meu agora já

será diferente do seu agora)

já estamos no passado do

presente ali atrás escrito; e o

Page 281: Delírios

280

“SERÁ” é uma abstração como

todo futuro. Logo, minha

Querida, só há uma realidade:

O PASSADO!

Você escreveu: “Penso que

todo acontecimento possui

potência para além da

verificação de suas verdades

factuais, pois constroem um

campo de veracidades

próprias.”

- O diabo é que a verdade é

quase abstrata de tão

complexa. Vê-se um objeto ali

sobre a mesa; mas esse objeto

não é ele em si, pronto e

acabado, e imperativo; é a

representação dele no cérebro

de cada um; é o resultado das

ondas de lúmenes que o objeto

Page 282: Delírios

281

irradia, que se encontram a

meio-caminho com catéxias

(ondas exploratórias) emitidas

pelo cérebro do circunstancial

observador. Ora, não existem

dois cérebros humanos iguais

(os gráficos das encefalografias

estão a indicar) nem dois

momentos de lúmenes

semelhantes; logo... o que eu

vejo num dado instante é

diferente do que o que você vê,

e o objeto, assim, pois, pode

ser diferente do que vemos...

para nós dois ambos; e tome-

se como diferente, nuanças.

Ora, bolas! Voto a favor.

Você citou: “Somando as

incompreensões é que se ama

verdadeiramente.”

Page 283: Delírios

282

- O afeto (amor) é um

fenômeno. A “lei” fundamental

dos “fenômenos” é seu dele

movimento constante e

contraditório. Que parte do

SER para o VIR A SER a fim

de criar um temporário outro

SER que já traz em seu bojo

elementos contrários ao seu

temporário status de SER, o

qual, pela lei universal do

movimento, constituirá outro

SER... assim até que a

decomposição (a morte,

amém) os separe. As

incompreensões de hoje serão,

pois, as compreensões de

amanhã! Voto a favor.

Page 284: Delírios

283

Você citou: “Enquanto eu

imaginava que Deus é bom só

porque eu sou ruim.”

- A gente é aquilo que

necessitamos ser. E o

quantum e o caráter desse

“necessitamos” não depende

de nossa vontade nem de

nossas vãs filosofias; depende

de nossas estruturas

emocionais, do

balanceamento – que é

pessoal e intransferível – entre

nossos instintos de vida e de

morte, de construção e

destruição, de amor e de

desamor. E quem mete a

colher nessa panela é o senhor

SUPEREGO, o Loge (quebra-

galho) do “Ciclo do Anel” de

Page 285: Delírios

284

Richard Wagner; para bem de

nossa sobrevivência. Voto a

favor.

Você escreveu: “Mas me

embriago de coragem

travando uma batalha

silenciosa entre os ossos das

minhas costelas.”

- A coragem é sempre um

estágio do medo. Não há o

corajoso só nem o medroso só.

Somos sempre mocinho e

bandido no “western” da vida

pessoal. O ato de coragem ou a

atitude de covardia

constituem-se bebedeiras

ocasionais. Voto a favor.

Você escreveu: “Do pai herdei

um olho no avesso da pele, da

Page 286: Delírios

285

mãe os ossos que se

escondem.”

- Primeiro: o pai não é quem

faz, é quem cria! E você foi

criada pela “mãepai”. Com os

dois olhos em casa e o corpo

inteiro na rua. Posto que

provedora exclusiva.

Educando e educanda; fazer

para aprender ou aprender,

fazendo. Os ossos do esqueleto

com um cérebro prenhe de

afeto. Deu no que deu: um

talento! Voto contra.

Você escreveu: “Quando eu

era criança, sempre queria ir

mais além do corpo.”

Page 287: Delírios

286

- Como por exemplo: subir

tateando prenhe de medo no

“flamboyant” do quintal,

ascender os toscos degraus da

escada improvisada que seu

avô fez especialmente para

você ver o mundo de outro

plano, mais alto, mais além.

Voto a favor.

Você escreveu: “Manter a

alma em estado puro é mantê-

la bruta.”

- Por incrível que pareça, a

alma existe. Não é o espectro

imaterial que as religiões nos

oferece; é a corrente elétrica

cósmica que circula pelo

Universo e o mantém

desequilibrado desde o evento

do big bum. E o ser humano é

Page 288: Delírios

287

a mais alta realização desse

cataclismo, o que já é notável!

Mesmo porque o seu bruto

quer significar o mesmo que

champagne brut, ou seja, sem

doçura artificial... Voto a favor.

Você escreveu: “Míope e

vulgar, poucas combinações

são mais providenciais.”

- Inconvenientes, não sei, pois

“míope e vulgar” já é dose!

Existem ignorante e falastrão;

ladrão e “nouveau riche”;

Academia Brasileira de Letras

e Paulo Coelho; ou José

Sarney etc. É, “todo vira-lata é

altivo porque é rei da sua

vadiagem”, ou vulgaridade.

Voto a favor.

Page 289: Delírios

288

Você, para finalizar essa

arenga, escreveu: “O fracasso

é também uma potência. O

desvio dita a norma. A

infâmia pode ser grande

virtude.”

- E a mentira uma grande

verdade. O beijo na face

lembra traição; o beijo na boca

nos remete aos lençóis; só o

beijo nos lábios é puro afeto.

Voto a favor.

Cai o pano...

Page 290: Delírios

289

Sextilhas trissílabos

tônicos (Para minha neta

Priscilla Menezes).

Era uma vez...

eu contava

prá você,

pequena,

histórias

de João Grilo.

Hoje trago

histórias

cabeludas,

emoções

opostas,

problemas.

Page 291: Delírios

290

Era uma vez...

brincava,

criança,

na casa de

madeira

cor de rosa.

Hoje, moça,

brinca com

palavras

surreais

com sentido

subjetivo.

Era uma vez...

pé ante pé

Page 292: Delírios

291

da escola

de inglês

ia prá casa

comigo

a brincar,

sorrindo,

inocente

e pura,

e feliz.

Criança!

Hoje, adulta

viaja

sozinha,

tímida,

com medos;

Page 293: Delírios

292

vence-os!

Massapê,

vó Jarina,

fim do mundo!

Saudades.

Não foi aqui!

Não foi não!

As flores

às vezes

desabrocham

em monturos.

Em ruínas

nada cresce.

“Olhai os

Page 294: Delírios

293

lírios

do campo!”

Do nada

floreiam,

disse Jesus.

O nada

é tudo?

O zero

é nada?

um zero

à direita

de qualquer

número

decuplica

seu valor!

Page 295: Delírios

294

Onde o nada?

Não existe!

Outrora

menina

tímida.

Duvidosa

agora!

Saudade!

Saudade!

Quem dera

voltassem

os tempos!

Inocência.

Esperança!

Page 296: Delírios

295

Espera

esperança!

“Olhai os

lírios

do campo!”

E espera!

Fim do Livro.

Page 297: Delírios

296

Posfácio:

A dança ou A anatomia dos Anjos

Priscilla Menezes

Há uma outra versão que diz que quando ele

chega ao céu os anjos dançam. Incontáveis

querubins andróginos o saúdam com um baile de

samba de gafieira. Entre zigue-zagues,

malandragens, inversões, travadas, abraços e

enroscos, os anjos riem. Ele fica de canto, só

olhando, os pequenos pés afundando as nuvens

fofas. De vez em quando um querubim tropeça e é a

maior troça. Aos anjos só é permitido fazer festa

quando uma alma alegre é acolhida. Suas grandes

asas atrapalham um pouco a movimentação, mas

também criam uma impensada forma de erotismo.

As penas roçam os olhos angelicais, acariciam seus

braços, por vezes se prendem por um instante entre

suas pernas. Quando dançam, os anjos elaboram

seu complicadíssimo sexo. Feito de purezas

Page 298: Delírios

297

dilatadas e perversas conjunturas de cócegas e

ânsias. Quando acontece esse baile, é possível que

na terra chova, ou que ventanias exageradas varram

as ruas e os campos nus. O tremor dos anjos

bailarinos afeta a terra sobremaneira, por isso é

sabido no céu que alegria é a força mais perigosa

que há.

A anatomia dos anjos é uma coisa

interessante. Uma espécie de maquinaria, um

labirinto de carne e voo. Quando ele chegou ao

baile, impressionou-se primeiro foi com aqueles

corpos. Diferente do que se pensa, os anjos não são

menos carnais que os humanos. São apenas corpos

densos que o Misterioso dotou com longas asas.

Pura humanidade alada. Não são perfeitamente

belos e santos, talvez um pouco pálidos e

entediados, isso sim. Uma anja que já tinha cansado

de dança chegou perto dele e lhe deu boas-vindas:

- O céu dança sua vida. Esteja em casa.

Olhou bem para a anja e viu que parecia uma

mulher do norte, uma cabocla, mistura de negra

Page 299: Delírios

298

com índia, de lábios grossos, cabelo escuro e olhos

puxadinhos. Suas asas não eram perfeitamente

brancas, tendiam mais para um ocre sutil. Outros

anjos tinham as asas cor de chumbo; essas, em sua

opinião, as mais garbosas. A anja-cabocla lhe olhava

com certo interesse amedrontado, um ar de

dissimulação. Quando conseguiu falar, perguntou:

- Mas o que é isso, afinal?

- Esse é o céu em festa. Sempre que sobe até

nós uma alma verdadeiramente alegre, temos

permissão do Misterioso para dançarmos e

ouvirmos músicas populares. Lá pelo quinto dia,

também poderemos beber vinho. Sim, porque a

festa durante vinte dias e vinte noites terrestres. O

Misterioso fica meio contrariado, porque diz que o

vinho bebido assim para a festa, e não na sagrada

comunhão, é homenagem aos deuses antigos, é

Bacanal, entende? Mas trato é trato. Nós

sustentamos as arquiteturas celestes, vigiamos o

obscuro e a claridade do humano, levamos

mensagens para o mundo inferior, passamos dias

Page 300: Delírios

299

meditando diante de claridades, assistimos ao balé

do Espírito que insiste em tremular sobre as águas

por um velho hábito. Em troca de tudo, podemos

fazer festas quando uma alma verdadeiramente

alegre vem até nós. É a Lei.

Ele estava estarrecido. Um pouco com aquela

história toda, com aqueles tratos, com o fato de ser

ele a alma alegre. Mas, sobretudo, porque a anja-

cabocla era uma perdição. Como podia uma anja ser

assim tão sensual? Os lábios carnudos, o sotaque do

norte, um hálito de cajá. Havia muitas coisas que,

aquela altura, desejava saber, uma delas era se lhe

seria permitido flertar com aquela anja, ou mesmo

chegar a toca-la. Ali, era preciso reaprender tudo,

até a arte do cortejar.

- Escuta, como é o teu nome ?

- É Lidiane.

- Ô Lidiane, não tá parecendo que essa festa é

para mim não. Eu não estou entendendo nada, será

que alguém pode me explicar alguma coisa ?

- Você sabe dançar?

Page 301: Delírios

300

Não sabia. Mas notou que ali, sobre as

nuvens, seus pés adquiriam uma sabedoria própria.

A gafieira foi substituída por um Fox Trot, percebeu

que conseguia dar incríveis giros, viradas e twists.

Dançou por muitas horas, parando apenas quando

passava um avião muito perto da nuvem onde

estava. Os anjos estavam acostumados, mas ele

levava um enorme susto cada vez que isso acontecia.

Quando anoiteceu, começaram a dançar um

forró arrasta-pé e os ânimos se exaltaram. Sentiu

que era hora de buscar alguma explicação. Notou

que um anjo bastante andrógeno observava tudo de

canto. Magro, negro, alto, cabelos cheios,

começando a virar um black power e traços

bastante delicados, deixando em dúvida o gênero da

criatura em questão. Decidiu puxar assunto.

- Oi, você também não dança forró?

- Na verdade danço muito bem, eu queria

mesmo era falar com você.

Tinha a voz aguda e aveludada, mas ainda

poderia apostar que era um rapaz. Sua era belíssima

Page 302: Delírios

301

e reluzia sobre a noite estrelada. Tinha olhos que

cintilavam, como quem olha para algo perigoso ou

muito fascinante. Sua asas eram alvas, belíssimas,

usava uma camiseta preta de algodão e calças justas

também pretas. Seus sapatos pareciam pantufas, só

que mais modernas. O anjo continuou:

- Eu vi você dançando. É de fato uma alma

alegre. Apenas os alegres conseguem dançar em

meio a incompreensão.

- Mas eu não gosto de não entender. Você

pode me explicar como é o céu? Por que eu estou

aqui e como será minha estadia?

- Olhe, aos anjos é vedada a possibilidade de

dizer verdades. Segundo as Misteriosas Leis, dizer

verdades é um dos pecados capitais, nos

arremessaria direto ao submundo, para que

ardêssemos, corpo e asa, na caldeira dos Contadores

de Verdade.

- Mas então, terei que ficar aqui sem nada

saber?

- O Misterioso, porém, tem misericórdia.

Page 303: Delírios

302

Deixa que nos comuniquemos com o que há de mais

puro no ser: o corpo.

Por essa ele não esperava. Não parecia do

caráter de Deus considerar o corpo superior às

verdades metafísicas, aquilo o surpreendia

verdadeiramente. Mas ainda não entendia como

faria para obter qualquer informação. Estava

cansado, com fome, queria um pouco de privacidade

e, além de tudo, começava a sentir os sinais de uma

enxaqueca terrível.

- Mas então, como você se comunica pelo

corpo?

- Você pode tocar em mim, cada parte do meu

corpo, e do seu também, tem um pensamento. Está

nos Secretos Escritos que o ser humano se engana

muito acreditando ser a cabeça o centro da razão. A

razão é elétrica, sanguínea, corre na pele. Basta que

você toque na parte do meu corpo que quiser que

verá o que meu corpo pensa e sabe.

Page 304: Delírios

303

Aquilo mais parecia roteiro de

pornochanchada. Um argumento metafísico, até

sublime, mas que só pode funcionar com algum tipo

de sacanagem. Sentia que aqueles anjos estavam

tirando uma com a cara dele. Mas o anjo estendeu

sua bela mão e, sem pensar muito, ele o tocou. Foi

como se seu corpo fosse tragado para dentro de uma

esfera luminosa. Primeiro só conseguia enxergar a

luz, aos poucos sua visão foi voltando ao normal.

Quando pode olhar, viu que estava em outra nuvem,

esta isolada e silenciosa. Olhava para baixo e,

estranhamente, podia ver tanto à distância, como de

perto, dependendo apenas do seu desejo de ver. De

repente, soube.

Entendeu a fragilidade dos mistérios além-

vida. Como se levasse um choque, ele recebeu um

lampejo revelador: os anjos são aquilo que querem

ser. Em verdade, os anjos eram apenas homens e

mulheres que acreditavam, em vida, que quando

morressem virariam anjos. O Mistério, de fato, era a

fé. Dependia da criatividade de cada mente

Page 305: Delírios

304

fervorosa o seu destino na Eternidade. Mas “fé”

ainda não era a palavra certa, mais do que crer, era

preciso desejar. Os anjos eram aqueles que

desejavam sê-lo. Então a Lei secreta que rege o

universo era o desejo. Daí uma certa androginia na

maioria dos corpos angelicais, fruto desse desejo

bruto que transborda o gênero como é entendido na

Terra. Os Anjos, acima de tudo, eram os que

desejavam para muito além do corpo. Queriam ser

meio macho, meio fêmea. Queriam o dom

impensado do voo. Queriam a carne em brasa toda

suspensa em penas. Queriam ser a própria medida

do impossível.

Com outro choque, soube então porque não

lhe coube esse destino: nunca em vida havia

desejado ser anjo após a morte, bem pelo contrário,

se sentia muito mais tentado a dar uma olhada no

que se passada no submundo, nas obscuras e

fervorosas câmeras do Outro. Então, com a

sensação de um súbito arremesso, viu-se em uma

nuvem muito alta, de onde já não podia saber mais

Page 306: Delírios

305

nada da Terra. Soube que estava muito perto do

limite onde se pode chegar sem se queimar no Sol.

Soube que estava só. Ali, o esclarecimento que havia

obtido lhe parecia uma triste notícia. Se os homens

viviam, após a morte, aquilo que em vida desejavam

viver, por que é que ele estava ali naquele céu banal

repleto de clichês? Nunquinha que em vida tinha

desejado isso para si. Então, como se um soco no

estômago lhe tirasse o fôlego, veio-lhe a resposta: o

texto.

Era de conhecimento do Misterioso, esse

grande amante das letras, que ele havia deixado por

escrito um longa descrição de como seria sua

experiência no Além. Havia descrito, em um belo

texto, longos acontecimentos em um céu como

aquele: feito de nuvens, anjos e a notícia de um

Deus ausente. Seus anjos eram burocratas falastrões

que, por ora, apenas dançavam. Estava tudo

planejado para que, em seguida, tivesse a

oportunidade de viver o céu assim como ele havia

desejado, a ponto de tê-lo criado por escrito. Sentiu

Page 307: Delírios

306

então o fervor da raiva subindo-lhe pelo corpo: eles

não haviam entendido nada!

Acontece que seu desejo não era pelo céu,

mas pelo texto! Seu texto, por sua vez, não era

confissão de um desejo escuso, nem atestado de

nenhuma fé. O sentido do texto se fazia na escritura

e só texto poderia revelar o seu próprio mistério,

quem o escreve pouco sabe sobre ele. O escritor só

sabe de uma coisa: do irresistível chamado da

escrita. Seus temas, seus argumentos, suas aporias

nada mais são que vias por onde percorrer para

frequentar o texto. Esse sim, seu verdadeiro

interesse.

Quando voltou à nuvem, o anjo estava com os

olhos arregalados pois havia compreendido que o

Misterioso – pasmem – tinha cometido um engano.

Não era aquele, pois, o destino-desejo daquele

homem. O anjo silenciosamente recolheu sua mão e

pediu que ele o seguisse. Andaram na direção de

uma pequena torre de pedras que, até então, não

havia notado. Dentro dela, havia uma escada em

Page 308: Delírios

307

formato caracol, que descia rumo a uma escuridão

indevassável. O anjo disse:

- É preciso corrigir um engano. Seu destino é

outro. Esse você encontrará quando descer por

essas escadas.

Ele sentiu um novo ânimo lhe afetar o corpo,

mas também um certo medo. O que encontraria ali?

O anjo continuou:

- Aqui é o paraíso dos escritores: a biblioteca.

Nunca soube como é de fato, pois não é o meu.

Olha, a verdade é que todos vamos ao paraíso

depois da vida. Não importa se o sujeito deseja o

inferno e vai para lá, pois em verdade aquele inferno

é a sua delícia, seu ardor. Houve um erro, digamos,

de interpretação de texto. O Misterioso, através dos

meus olhos, deu-se conta disso agora quando você

acessou os Mistérios. Seu desejo não era o céu como

escreveu, mas o próprio escrever. E é por isso que

você vai ser transferido. Mas saiba que você

conseguiu aquilo que talvez todos os escritores

desejam: você confundiu a ordem perfeita do

Page 309: Delírios

308

Mistério. Agora descerá em direção aos Mistérios da

Biblioteca. Boa viagem.

Enquanto ia descendo as estreitas escadarias,

sentiu um fervor de orgulho animando o peito:

conseguira, trapaceara o próprio Deus. Sempre

tinha tido admiração por João Grilo, esse astuto

enganador, e agora havia superado mesmo a mais

brilhante de suas façanhas. E não sabia bem como,

só sabia que tinha sido assim. Antes de mergulhar

no obscuro e encontrar seu definitivo e correto

Paraíso, pode ouvir a Misteriosa Gargalhada. Deus

ria de seu próprio engano. Quanto a ele, estava

orgulhoso e animado, mas lamentara uma única

coisa: não poder mais dançar com Lidiane. Ô Anja

deliciosa!