delÍrios de um poeta sem inspiraÇÃo por ana luísa … · eu não dei por esta mudança, tão...

29
DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa Ricardo Orlândia, SP 2012

Upload: vodien

Post on 08-Nov-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO

Por Ana Luísa Ricardo

Orlândia, SP

2012

Page 2: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

PERSONAGENS (9. 3F e 6M)

DANIEL; O aspirante á poeta.

CECÍLIA

CARLOS

ALVARES

CASTRO

CLARICE

OLAVO

FERNANDO

GABRIELA; LUA.

CENA ÚNICA

Page 3: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

O PALCO ESTÁ

ESCURO. NO MEIO,

COMEÇA UM FOCO DE

LUZ QUE VAI

AUMENTANDO

GRADATIVAMENTE.

PODE-SE VER UM

ESPELHO GRANDE, O

QUE PARECE SER

UMA CORTINA E UMA

POLTRONA E ALGUNS

LIVROS JOGADOS

PELO CHÃO.

[Daniel está deitado,

todo espatifado, com

um papel em uma mão

e uma caneta ao lado

de sua outra mão. Está

dormindo. Acorda aos

poucos, tentando

entender onde está. ] .

DANIEL: [Espreguiçando e esf regando as mãos nos olhos, cara de

sono].

O que? .. .

[Boceja, olha para os lados, para cima].

Onde estou? .. . [Começa a se levantar, cambaleante].

[Para em f rente ao espelho]

Meu Deus? O que aconteceu? .. .

[ENTRA FERNANDO, CHAPÉU, ÓCULOS REDONDO, TERNO E

GRAVAT A E UM CIGARRO APAGADO NO CANTO DA

BOCA.].

FERNANDO:

Então é um dos meus? Grande rapaz... [Pega um garrafa vazia de

vodka no chão]

Page 4: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

[DANIEL SE VIRA ESPANTADO. CONTINUA INTACTO OLHANDO O

HOMEM.].

DANIEL:

Posso saber quem é você e o que está fazendo no meu quarto?

FERNANDO:

[riso irônico]: Ora, vejo que já descobriu seu paradeiro.

DANIEL:

. . .

FERNANDO:

A propósito.. . [balança a aba do chapéu] Me chamo Fernando...

DANIEL:

U-Hum. [silêncio, Fernando pega um livro que está sobre a poltrona e

se senta nela.]. E como entrou aqui?

FERNANDO:

[ folheando o l ivro, curioso]

Pela porta?

DANIEL:

E a mãe?

FERNANDO:

Vai muito bem e a sua?

DANIEL:

[ irritado] Não seja irônico, é da minha mesmo que estou falando. Como

ela deixou você entrar.. .?

FERNANDO:

Ah! Claro.. . [olha para Daniel] . Não a vi. . . Mas, porque bebeu tanto?

DANIEL:

Page 5: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

Eu não bebi.

FERNANDO:

Ah não? Era o que eu também dizia.. . Por isso repito.. . É mesmo um

dos meus... [balança a cabeça negativamente]. Anda

escrevendo?

DANIEL:

[bufando] Não. Não sou escritor.

FERNANDO:

És poeta... Eu sei. . .

DANIEL:

Nem poeta... [dá de ombros] Sou apenas um rapaz... E já dá muito

trabalho...

FERNANDO:

Sei.. . Daniel, não é?

DANIEL:

Como sabe?

FERNANDO:

[mostrando o l ivro] Está escrito na capa...

DANIEL SENTA NO CHÃO. COLOCA AS MÃOS NA CABEÇA.

CHATEADO.

FERNANDO:

O que foi? Sem inspiração?

DANIEL:

Já disse que não escrevo... Quer dizer, não escrevo mais.. .

FERNANDO:

Mas escrevia?

DANIEL: [ levanta a cabeça em direção a Fernando]

Page 6: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

Sim...

FERNANDO:

E o que aconteceu?

DANIEL: [Abaixa a cabeça novamente]

Perdi a inspiração.

FERNANDO:

Entendo. Isso é normal.. . Sempre perco... Mas tenho alguns amigos

que me ajudam muito.. . Esses dias estava conversando com

um deles... o Álvaro, grande amigo...Disse -me assim:

[recitando]

Eu, eu mesmo... Eu, cheio de todos os cansaços Quantos o mundo pode dar. —

Eu... Afinal tudo, porque tudo é eu...

DANIEL:

E o que isso quer dizer?

FERNANDO:

Meu caro, a inspiração não está somente em nós mesmos... A maior virtude do ser humano é multiplicar sua pessoa em muitas outras... Totalmente diferentes, cheias de poesias... E ideias novas...

DANIEL:

Talvez... Quem poderia ter uma alma multiplicada? [sorri]

FERNANDO:

Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei.

Page 7: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

Continuamente me estranho. Nunca me vi nem acabei.

De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma.

Quem vê é só o que vê, Quem sente não é quem é,

DANIEL:

[se aproxima do espelho e olha]

Quer saber? ...

[Fernando não está mais lá]

Cadê ele? ... Eu estou ficando louco...

CARLOS ENTRA DO OUTRO LADO.

CARLOS:

[Sobretudo e gravata borboleta]

Não está não...

DANIEL:

[Dá um salto para trás]

Ai meu Deus! E você quem é?

CARLOS:

Não se assuste menino, sou Carlos.

DANIEL:

Eu te conheço?

CARLOS:

[SORRI] Talvez... Daqui... [aponta para a cabeça]

DANIEL:

Page 8: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

E o que quer?

CARLOS:

Eu? ... Nada

DANIEL:

Então? Por que ainda está aqui?

CARLOS:

Quer saber de uma coisa?

DANIEL:

Ah quero... Com certeza quero...

CARLOS:

Estou procurando uma amiga... Cecília, você a viu?

DANIEL:

Hum... Não! [olha para os lados]

CARLOS:

Certo... E você? Procurando alguém [olha para os lados como Daniel]

DANIEL:

Na verdade sim... Um maluco, como você, que entrou no meu quarto...

CARLOS:

E onde ele está? [fala olhando pelo palco]

DANIEL:

É exatamente isso o que quero saber... Você não o viu?

CARLOS:

Não...

Page 9: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

DANIEL:

Ai céus! Se ele acordar minha mãe eu o mato

CARLOS:

[RINDO]

DANIEL:

Porque está rindo?

CARLOS:

[sorrindo] Nada... é que... deixa pra lá...

DANIEL:

... [Silêncio] E você?

CARLOS:

O que tem eu?

DANIEL:

O que tem eu? .. Ora, vai ficar aí, feito um dois de paus?

CARLOS:

Quer que eu faça alguma coisa...

DANIEL:

Claro... Quero que vá embora, preciso dormir um pouco...

CARLOS:

[olha no relógio] Por Deus... Não são nem seis horas ainda... E não posso ir... Estou esperando algumas pessoas...

DANIEL:

Algumas pessoas? No meu quarto? Em plena sexta feira? Está doido?

Page 10: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

CARLOS:

Não... Você bebeu?

DANIEL:

[Queixo caído] Ora... Porque todos estão dizendo isso... ?[inconformado]

CARLOS:

Deixa pra lá... I DO NOT UNDERSTAND...

DANIEL:

O que você está falando?

CARLOS:

Já deveriam estar aqui... E onde está o chá?

DANIEL:

[RINDO INCONFORMADO] Não, só pode ser brincadeira... Aqui virou a casa da mãe Joana por um acaso...?

CARLOS:

Ah... Então sua mãe se chama Joana? [fala amigavelmente]

DANIEL:

NÃO! E você... SAI! AGORA!

CARLOS:

[AJEITA A GRAVATA E CONTINUA OLHANDO PARA DANIEL]

FERNANDO APARECE COM UMA GARRAFA DE VODK CHEIA.

FERNANDO:

Ah Carlos! Que bom que veio...

CARLOS:

Amigo... [ dá um abraço em FERNANDO]

DANIEL:

Page 11: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

ONDE você estava e ONDE arrumou isso? [aponta para a garrafa]

FERNANDO:

Ah... [bebe um gole] na cozinha... E tem muitas dessa... Rapaz... Quantos anos têm?

DANIEL:

Não te interessa.

FERNANDO:

Tão novo e bebendo desse jeito [balança a cabeça e bebe mais um gole]

DANIEL:

Olha quem fala... [ irônico, pega a garrafa de Fernando e bebe um gole]

CARLOS:

Cheguei a tempo amigo... Mas onde estão os outros?

DANIEL:

[fala olhando para Fernando] Ahhhh... Então foi o Senhor que convidou “todos”

FERNANDO:

Sim!

DANIEL:

COLOCA AS MÃOS NA CABEÇA. IRRITADO.

ENTRA CECÍLIA. VESTIDO FLORIDO E LUVA. COLAR DE PÉROLAS E CHAPÉU COM UM LAÇO.

CARLOS:

Cecília... Finalmente chegou... Mas por que esse olhar tão cansado?

CECILIA:

Ufa! Estou mesmo cansada... [vê o espelho e fica de frente a ele. Fica triste]

Page 12: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro,

[PASSA A MÃO PELO ROSTO] nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.

[FECHA OS OLHOS E ABRI NOVAMENTE] Eu não tinha estas mãos sem força,

tão paradas e frias e mortas; [OLHA AS MÃOS]

eu não tinha este coração que nem se mostra. [PÕE A MÃO NO PEITO]

Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil:

Em que espelho ficou perdida a minha face? [COLOCA A MÃO NO ESPELHO]

CARLOS:

[chega perto e põe a mão em seu ombro]

Como proteger-me das feridas que rasga em mim o acontecimento,

qualquer acontecimento que lembra a Terra e sua púrpura

demente? E mais aquela ferida que me inflijo

a cada hora, algoz do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.

[um segundo de silêncio, todos imóveis]

DANIEL:

Lindo [batendo palmas] Muito lindo... Agora... Podem ir.

CARLOS/CECILIA:

(olhando um para o rosto do outro e para Fernando com tom interrogativo)

FERNANDO:

[Sentando novamente] Ele não entende...

DANIEL:

Ah é? Mesmo? Posso saber o que não entendo?

FERNANDO:

Page 13: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

Que estamos aqui para te ajudar...

DANIEL:

Eu não preciso de ajuda.

CARLOS:

Precisa sim...

DANIEL:

Não... De onde tiraram isso?

FERNANDO:

[levanta-se e vai em direção a Daniel]

Você está bebendo feito um maluco...

DANIEL:

E o que isso tem a ver?

FERNANDO:

Que precisa, literalmente, de ajuda...

DANIEL:

[se altera]

NÃO! JÁ DISSE QUE NÃO. NÃO, NÃO E NÃO.

CECILIA:

[fica entre Fernando e Daniel que estão se encarando]

Parem com isso! Ah... [esbarra em Fernando e senta na poltrona, cara de choro]

Ah! Que desolação...

DANIEL:

O que você tem?

CECILIA: [ainda triste, gesticula bastante]

Page 14: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

Não sei... Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

— não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.

DANIEL: [ajoelha-se perto dela]

Eles te magoaram? [aponta para Fernando e Carlos. Ela faz sinal negativo com a cabeça]. Mas... Então porque você é tão triste?

CECILIA:

Não querido. Não... Não sou alegre nem sou triste: [pausa e suspiro]

sou poeta.

CARLOS:

[FALA PARA FERNANDO]

Céus. Não deveríamos estar ajudando o rapazote?

DANIEL:

Não estão vendo que ela não está bem?

FERNANDO:

Ora! [vai até Cecília e a puxa-a pelo braço] Levante-se Cecília... Engole esse choro e ponto final. Não avisarei outra vez...

CECILIA:

Grosso!

CARLOS: [Passa o braço pelo ombro dela]

Calma. Calma.

FERNANDO:

Senhor! Não é possível... Será que eu sou o mais estável aqui?

[ENTRA CASTRO, CALÇA BRANCA E PALETÓ MARROM]

OH DEUS! [GRITA, TODOS SE ASSUSTAM] LIBERDADE, Ó DEUS!

DANIEL:

Page 15: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

XIIIII [pede silencio] Que isso? Ficou maluco? Porque está gritando?

CASTRO:

RECITANDO COM FERVOR E ESPAÇOSAMENTE

Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus,

Se eu deliro... ou se é verdade

Tanto horror perante os céus?!...

DANIEL:

Ahn?

CASTRO:

RECITANDO COM FERVOR E ESPAÇOSAMENTE ANDANDO PELO PALCO

Ó mar, por que não apagas

Co'a esponja de tuas vagas

Do teu manto este borrão?

Astros! Noites! Tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrem os mares, tufão!...

DANIEL:

[pensativo, começa a entender o que está acontecendo]

Ai meu Deus... [senta-se na poltrona] Meu Deus...

FERNANDO:

[para Castro]

Endoideceu?

CASTRO:

Estou pedindo liberdade. [GRITA]LIBERDADE!

FERNANDO:

Situe-se homem... Estamos no século XXI...

DANIEL:

Page 16: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

[contando nos dedos] Fernando, Carlos, Cecília e agora... Castro. [começa a rir] Castro Alves...

CASTRO:

Sou eu [fala ajeitando a gravata] e peço liberdade!

DANIEL:

UHUM... Eu sei... [irônico]

FERNANDO:

Não existem mais escravos Castro... Então... Acalme-se... Tudo bem?

CASTRO:

Sem escravos?

FERNANDO:

Sem.

Castro:

Nem no Brasil?

CARLOS:

Nem...

CASTRO:

Então... O que faço aqui?

CECÍLIA:

Boa pergunta...

CARLOS:

Ora Cecília, esqueceu que viemos ajudar o rapaz?

CECÍLIA: [PENSATIVA]

Ah é!

Page 17: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

FERNANDO: [BALANÇA A CABEÇA NEGATIVAMENTE E FALA EXAGERADAMENTE]

Dai-me paciência DEUS!

[ENTRA CLARICE, UMA MULHER ELEGANTE, UM CIGARRO NA MÃO. MUITO MAQUIADA]

CLARICE:

Amigos? [cumprimenta todos com um aceno de cabeça]

DANIEL:

Deixa-me adivinhar... Você deve ser a Clarice...

CLARICE:

[SEMPRE DE CARA FECHADA] Sim... Perdi algo?

DANIEL:

Nossa! [irônico] Estão mesmo brotando poetas mortos do meu quarto... Que lindo!

CLARICE:

Mortos? [indignada]

DANIEL:

[Pega o cigarro da mão dela]

Você acha que está como minha filha...? Mortinha! [desdém]

CLARICE:

O que importa afinal, viver ou saber que se está vivendo?

DANIEL:

[MOSTRA-LHE A LÍNGUA, FERNANDO INTERVÉM]

FERNANDO:

CHEGA! CHEGA COM ESSA BALBURDIA... DEVO LEMBRA-LHES AMIGOS, QUE ESTAMOS AQUI POR UM ÚNICO MOTIVO...

CARLOS:

Page 18: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

Sim, claro... Sabemos.

CECÍLIA:

É.

CASTRO:

Sabemos?

FERNANDO: [IGNORA CASTRO]

DANIEL... OLHE PARA NÓS... ACHA QUE FOI FÁCIL?

CECÍLIA:

Definitivamente não foi...

CARLOS:

Não mesmo...

DANIEL:

Do que vocês estão falando? [braços abertos]

ENTRA ALVARES, TÍMIDO. AO INVES DE UMA GRAVATA. USA UM LENÇO. CABELO COM GEL. TRAJANDO PRETO.

ALVARES:

Do seu dom. [é incisivo]

DANIEL:

[SE VIRA PARA VER QUEM FALA]

Dom?

CARLOS:

Claro... Acha que estamos aqui por quê?

DANIEL:

Por que são doidos... Óbvio... Ou eu realmente fiz mais do que beber um litro de Vodka?

Page 19: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

FERNANDO:

Na verdade, um e meio. [olha para ele] Bebeu metade da minha.

DANIEL:

Da minha que você furtou você quer dizer, não é?

FERNANDO:

Hum...

ALVARES:

Vai ficar se escondendo por quanto tempo?

DANIEL:

Ei, não estou me escondendo... Só... Só não quero mais escrever... Não faz diferença alguma.

ALVARES:

É o que pensas. Mas não é o certo. Acredite, tens quase a minha idade. Tenra idade um grande talento.

DANIEL:

Não é o que as pessoas dizem.

ALVARES:

E quem liga para o que as pessoas dizem? Elas dizem muita coisa que não serve. Na minha época, o seu dom era mais valorizado, mesmo que... Depois de

morto. Mas era...

DANIEL:

[Cabeça baixa, todos os outros escutam atentos.]

ALVARES:

[fala doce e tristemente, muito pálido]

Page 20: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

Eu queria ter vivido mais... Nunca falei isso a ninguém... Mas, foi tão pouco... Eu falei adeus muito cedo...

Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!

Não levo da existência uma saudade!

E tanta vida que meu peito enchia

Morreu na minha triste mocidade!

DANIEL:

Isso é triste.

ALVARES:

[Sorri timidamente]

Nem tanto. Fico feliz de, na minha dor e na minha desesperança... Ter feito poesia. [ PAUSA] O que te impede?

DANIEL:

De escrever?

ALVARES: Isso.

DANIEL:

Medo. Eu acho.

FERNANDO:

Todos nós tivemos.

DANIEL:

Sei lá, vocês levam isso muito a sério...

CARLOS:

Leve do seu jeito, mas leve... O mundo de hoje precisa muita mais de poesia do que o que outrora...

CECÍLIA: [APERTANDO O OMBRO DE CARLOS]

Disse bem Carlos. Disse bem...

Page 21: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

DANIEL:

[olha no chão, onde ainda está o papel e a caneta]

Não sei como organizar minhas ideias... Nem meus sentimentos.. É tudo tão confuso...

CECÍLIA:

[Vai e pega a caneta e o papel, entrega a ele]

Apenas comece... Escreva! Escreva!

DANIEL:

[hesitante, pega o papel e a caneta, sorri]

Quem sabe eu tente, mais tarde...

FERNANDO:

Tarde? [olha no relógio] Céus, temos que ir...

CLARICE:

Temos? [ dá uma tragada] Estou gostando tanto daqui... Sinto Deus nesse lugar...

FERNANDO:

[Pega em sue braço] Certo, pois vãos sentir Deus mais de perto... Venha!

FERNANDO, CARLOS, CLARICE E CECÍLIA ESTÃO SAINDO QUANDO DE REPENTE FERNANDO LEMBRA-SE DE CASTRO.

FERNANDO:

Ai... [Bate na testa] O Castro...

CASTRO:

[Pega um livro da Poltrona, é Crepúsculo]

Que engraçado...

FERNANDO:

[Puxa Castro pela manga que não quer soltar o livro, olha para Daniel ironicamente]

Page 22: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

Você lê isso?

DANIEL:

É da minha irmã...

FERNANDO:

Da irmã não é? Sei... Vamos Castro, solte isso [pega o livro e joga na poltrona novamente] [Todos saem]

NO PALCO CONTINUAM ALVARES E DANIEL.

DANIEL:

E você não vai? [já está mais amigável]

ALVARES:

[SENTADO NO CHÃO, ENCOSTADO NA PAREDE]

Só depois de te convencer a escrever...

DANIEL:

[senta-se ao lado dele]

Acho que irei escrever... Algum dia...

ALVARES:

Acha? Algum dia? ... O tempo passa amigo e quando tu perceberes... acabou. (seco)

DANIEL:

Você é tão mórbido... Já se apaixonou? Amou?

ALVARES

[sorri timidamente e traga o cigarro] Vivi muito pouco para amar... Confesso. Mas claro que me apaixonei... E quer saber por quem?

DANIEL:

Uma garota linda, com certeza.

ALVARES:

Page 23: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

Bela moça. Enfeitiçou-me... Passei noites febris por causa dela... Delirando.

DANIEL:

E beijou ela? [ curioso]

ALVARES:

Impossível... Éramos de mundos diferentes...

DANIEL:

Já sei... aquela velha história... Você rico e ela pobre ou você pobre e ela rica...

ALVARES:

Nem um, nem outro... Quem me dera fosse esse o único obstáculo...

DANIEL:

Mas... e o que aconteceu?

ALVARES:

[levantando-se]

Nada. Eu morri. E então, minhas poesias ainda existem... E ela está nelas... E estará nos seus também...

DANIEL:

Vou me apaixonar por ela também? A mesma menina? [ começa a rir]

ALVARES:

Não rias... Irás se apaixonar...

DANIEL:

Pelos mesmos olhos?

ALVARES:

Pela mesma doçura, com certeza...

DANIEL:

Todos se apaixonam por ela? É assim que funciona?

Page 24: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

ALVARES:

Todos os poetas. [V um amigo entrando no palco] Quer dizer, quase todos...

DANIEL:

Como assim?

ALVARES: [APONTA A CABEÇA PARA O HOMEM QUE ENTRA][GRITA AO AMIGO]

Ora (direis) ouvir estrelas! Certo

Perdeste o senso!

E me dirás, no entanto...

OLAVO, ÓCULOS E BIGODE. CAMISA BRANCA. UM COPO DE WISQUE NA MÃO.

OLAVO:

[AVISTA O AMIGO E LEVANTA O COPO COMO SE FOSSE BRINDAR]

Para ouvi-Ias, muita vez desperto

E abro as janelas, pálido de espanto...

[gesticula com o copo para cima, olhando para a plateia].

E conversamos toda a noite, enquanto

A via láctea, como um pálio aberto,

Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,

Inda as procuro pelo céu deserto.

[Olha para Álvares]

Direis agora:

ALVARES:

[SORRINDO] Tresloucado amigo! [e vai a sua direção, abraçando-o de lado, seguem andando]

Que conversas com elas? Que sentido

Tem o que dizem, quando estão contigo?"

OLAVO:

[Álvares pega o copo e dá um gole devolvendo ao amigo]

"Amai para entendê-las!

Pois só quem ama pode ter ouvido

Capaz de ouvir e de entender estrelas."

Page 25: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

AMBOS SAEM DE CENA. DANIEL PERMANECE AINDA TENTANDO DIGERIR A SITUAÇÃO.

SENTA-SO CHÃO E COMEÇA ESCREVER ALGO. ESCREVE, AMASSA E JOGA FORA. ESCREVE, AMASSA E JOGA FORA. ESCREVE, AMASSA E JOGA FORA. UMA DAS BOLINHAS CAI PERTO DO PÉ DE GABRIELA QUE ESTÁ AO LADO DO

ESPELHO.

GABRIELA:

Acho que isso é seu... [atrás dele, estendo a mão com a bolinha] [foco de luz branca nela]

DANIEL:

[se assusta] [sorri]

Oi?

GABRIELA:

OI... Escrevendo?

DANIEL:

Tentando... Daniel. [estende a mão]

GABRIELA:

ENTÃO... NÃO ESTÁ ASSUSTADO? NÃO IRÁ ME PERGUNTAR COMO ENTREI AQUI?

DANIEL:

E me dirá a verdade?

GABRIELA:

Sou Gabriela... Alguns amigos me pediram pra vir...

DANIEL:

Alguns amigos? Sei...

GABRIELA:

Na verdade, apenas um...

DANIEL:

Page 26: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

Não me diga [ finge estar surpreso]

GABRIELA:

[SORRI] Acredito que já saiba de quem se trata.

DANIEL:

Talvez.

GABRIELA:

Não se preocupe, você terá inspiração... Eu te trouxe um pouco...

DANIEL:

Ah! [ continua sentado] E inspiração é algo que se compra no supermercado?

GABRIELA:

Não, mas eu tenho a fonte...

DANIEL:

Que modesta.

GABRIELA:

Se te algo que não sou... é modesta.

DANIEL:

Mas... é bonita.

GABRIELA:

Agradecida.

DANIEL:

Então... Bela moça. [pausa] Me apaixonarei por você também?

GABRIELA:

Platonicamente.

DANIEL:

Page 27: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

Você magoou os sentimentos do meu amigo.

GABRIELA:

Isso sempre acontece, mas não posso ser de ninguém...

DANIEL:

Então porque faz todos eles se apaixonarem?

GABRIELA:

Eles?

DANIEL:

Nós... [PAUSA] O que veio fazer aqui? Terminar de me enlouquecer?

GABRIELA:

Só vim trazer algo...

DANIEL:

O que?

GABRIELA:

Inspiração.

DANIEL?

Inspiração?

Gabriela:

[Tira a fita do cabelo e lhe entrega]

DANIEL:

[olha para a fita em suas mãos e depois para Gabriela]

Isso é uma fita....

GABRIELA:

Quem disse?

Page 28: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

DANIEL:

[OLHA PARA A FITA]

GABRIELA:

Nem tudo é o que parece... [olha para a plateia, para cima]

Tenho que ir.

DANIEL:

Por quê? Fique mais um pouco...

GABRIELA:

Não posso... Já deu minha hora... Quase amanhece e eu preciso mesmo ir...

DANIEL:

Se é assim então.. Obrigado pela fita... Quer dizer, pela inspiração...

GABRIELA:

Por nada [ está indo embora, mas vira-se para ele] E aproveite... Só quem tem dom consegue usar isso...

DANIEL:

[SORRI] E como uso isso?

GABRIELA:

Durma um pouco. Durma... Quando despertar, saberá como usar... Eu prometo.

DANIEL:

Se você diz. Até.

GABRIELA:

[sorri]

Adeus!

ELA SE VIRA E VAI ANDANDO. DANIEL SE DEITA VIRADO PARA GABRIELA E FECHA OS OLHOS LENTAMENTE. GABRIELA PARA E AINDA DE COSTAS PARA ELE DIZ.

Page 29: DELÍRIOS DE UM POETA SEM INSPIRAÇÃO Por Ana Luísa … · Eu não dei por esta mudança, tão simples, ... Você deve ser a Clarice... CLARICE: ... Mortinha! [desdém]

GABRIELA:

E a propósito... Não me chamo Gabriela... [pausa e um sorriso doce] Meu nome é Lua. Muito prazer.

VIRA-SE, MAS PERCEBE QUE ELE JÁ ESTÁ DORMINDO.

Claro. Melhor assim... Mas quer saber? [ fala para ele, mas ele dorme] Alguns poetas também me enfeitiçam...

VAI ANDANDO E ANTES DE SAIR DO PALCO AINDA FALA.

Ah... Durma, quando acordar ainda se lembrará de mim... Poeta!

GABRIELA SAI. DANIEL FICA DEITADO, DORMINDO. TUDO ESCURO, SOMENTE UM FOCO DE LUZ EM SEU CORPO.

COMEÇA A MÚSICA: PENA – O TEATRO MÁGICO.

BACKOUT.

TODOS OS ATORES VOLTAM AO PALCO E AGRADECEM.

FIM