decifrando a história e o estigma do analfabetismo no brasil

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Decifrando a História e o enigma do analfabetismo no Brasil.

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  • Educ. Soc., Campinas, v. 32, n. 114, p. 245-249, jan.-mar. 2011Disponvel em

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    DECIFRANDO A HISTRIA E O ESTIGMA DO ANALFABETISMO NO BRASIL*

    V S**

    Para a concepo crtica, o analfabetismo no uma cha-ga, nem uma erva daninha a ser erradicada, nem tam-pouco uma enfermidade, mas uma das expresses concre-tas de uma realidade social injusta. (Freire apud Ferraro, 2009, p. 7)

    A a rmao de Paulo Freire, em epgrafe, com que o autor, Alceu R. Ferraro, o homenageia na dedicatria deste livro Histria inacabada do analfabetismo no Brasil , sinaliza com nfase que o leitor tem em mos uma obra destina-da a revolver as cinzas do passado para iluminar e clarear questes cruciais do pre-sente neste campo: a construo social do analfabetismo como problema nacional; a emergncia e con gurao histricas das desigualdades regionais; a pretensa peda-gogia dos homens livres da ditadura militar; a relao entre escola e produo do analfabetismo; e, por m, a questo central: quem so os analfabetos?

    Quando h alguns anos nascia, no mbito do Conselho Editorial de Educao, da Editora Cortez, a proposta de constituio de uma Biblioteca Bsica de Histria da Educao Brasileira (

    ), esta foi pensada em duas sries. A primeira, para abordar temas como educao e escolarizao, conforme registros cronolgicos e temticos amplos: educao no imprio; formao e difuso da escola republicana; disseminao da escola de massas a partir de 1920 ao nal do sculo , entre ou-tros. A segunda, para tratar de temas mais espec cos, como a histria da pro sso docente no Brasil, histria dos currculos, dos mtodos e materiais de ensino. Dentre estes, logo se destacou o do analfabetismo no Brasil e sua histria. E para abord-lo, como ocorreu em outros casos, formou-se de imediato um claro consenso entre os membros desse Conselho Editorial e coordenadores dessa Biblioteca Bsica: a en-comenda deveria ser feita primeiramente a um determinado especialista de renome na rea. A algum que h muito alimentava, com raro domnio da matria, o debate

    * Resenha do livro de Alceu Ravanello Ferraro, Histria inacabada do analfabetismo no Brasil (So Paulo: Cortez;

    , 2009).

    ** Doutor em Cincias da Educao e professor titular aposentado da Universidade Federal de So Carlos (). E-mail: [email protected]

  • Decifrando a histria e o estigma do analfabetismo no Brasil

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    de um tema ainda insu cientemente estudado e cuja compreenso se tornava a cada dia mais vital para a histria, no apenas da educao, mas tambm da cultura po-ltica do pas como nao.

    Ferraro relata, na introduo deste livro, o desa o que lhe signi cou esse con-vite e dele faz o ponto de partida de uma oportuna e pertinente re exo sobre algu-mas questes metodolgicas postas para um socilogo convidado a tratar da histria do analfabetismo no Brasil. Tais questes se iniciam com a pergunta sobre quem so os historiadores da educao. A esta ele responde, com apoio em concluses de es-tudo de Clarice Nunes, que so pedagogos, historiadores, lsofos e socilogos da educao, entre outros pro ssionais, tratando-se, portanto, de pesquisadores com formao, perspectiva e interesses diferentes (Ferraro, 2009, p. 12). Pesquisadores que interrogam, alm de fontes espec cas, outras, de diferente natureza (econmi-cas, polticas, por exemplo), a partir das exigncias prprias dos fenmenos pedag-gicos e/ou educativos (Nunes apud Ferraro, op. cit., p. 12).

    Suas preocupaes metodolgicas o levam a examinar as relaes, muitas vezes con ituosas, entre socilogos e historiadores na abordagem de mltiplos temas, mas que encontrariam na maioria dos casos, como o do objeto deste estu-do, razes de frutfera colaborao e rica complementaridade; mormente quando se adota, para perspectivas histricas de mudana, a do tipo de nido como sen-do o das mudanas ou processos de longa durao (alfabetizao, escolarizao, feminizao do magistrio) que tiveram lugar no decorrer dos sculos e e que, todavia, continuam inacabados na entrada do sculo (Ferraro, op. cit., p. 13).

    Como esclarece o autor, essa exatamente a principal perspectiva de mu-dana que interessa neste estudo, isto , a de mudanas de longa durao: nesse sentido, por exemplo, que se falar de tendncia secular do analfabetismo. Mesmo quando se considere um perodo menor de tempo (algumas dcadas, por exemplo), o olhar estar voltado para o longo prazo (idem, ibid., p. 14).

    Essa a perspectiva que lhe dar amparo na deciso de tomar como ponto de partida desta histria no a dcada de 1930, como lhe fora solicitado pelos organiza-dores da

    , mas o ano de 1872, ano em que se realizou o primeiro recenseamento geral da populao no Brasil.

    O autor vai mais alm nessas precises metodolgicas que do a esta obra a solidez de um clssico. Faz, entre outras, uma consistente discusso acerca da re-lao entre perspectivas quantitativas e qualitativas em estudo desta natureza. Cha-ma especialmente a ateno para os limites daquelas, tratando as estatsticas, por exemplo, como objeto de investigao, de questionamento, e no simplesmente como algo dado (p. 15).

  • Valdemar Sguissardi

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    Alm dessa consistente introduo, que alerta o leitor para a riqueza e os de-sa os terico-metodolgicos do contedo da obra, esta se compe de oito captulos com variados enfoques e espaos cronolgicos.1

    No primeiro captulo Analfabetismo no Brasil na entrada do sculo o autor nos faz ver o quanto a histria do analfabetismo continua inacabada e quo desa ante e imensa a tarefa de alfabetizao que ainda sobra para o nosso sculo.

    Com esse ponto de partida, no segundo captulo Analfabetismo no Brasil: um retrospecto faz-se uma necessria retomada da questo do analfabetismo, com destaque para trs pontos, segundo o autor: explicitao de algumas posies contrastantes dentro do prprio liberalismo quanto alfabetizao e escolarizao das massas; descrio do estado educacional no Segundo Reinado; e busca de um ponto de partida para a histria do analfabetismo sobre o qual se props a es-crever (Ferraro, op. cit., p. 16).

    Um dos captulos centrais deste livro, especialmente para no versados em importantes eventos e subperodos do Segundo Reinado, o terceiro A constru-o social do analfabetismo como questo nacional: 1878-1881 , que trata exata-mente da relao desta construo social com os debates, na Cmara dos Deputados, em torno dos projetos liberais da reforma eleitoral ocorridos nesse perodo. Visava-se ento a aprovao da Lei Saraiva, de 9 de janeiro de 1881, que incluiu na legisla-o e na prtica poltica a excluso dos analfabetos do direito de voto (idem, ibid., p. 17). Como diz o autor (idem), Mostro, com base nos debates parlamentares, como os termos analfabetismo e analfabeto foram transformados em verdadeiro estigma, e como o problema do analfabetismo, de questo pedaggica, se transfor-mou numa questo eminentemente ideolgica. Esta demonstrao se con gura, ao lado da resposta questo sobre quem so os analfabetos, no, talvez, principal legado desta obra.

    O quarto captulo Trajetria do analfabetismo no Brasil: 1872 a 2000 onde se colocam questes como a da periodizao da trajetria do analfabetismo nesse longo perodo, do primeiro ao seu mais recente censo, e, metodolgicas, como a relacionada ao Censo de 1900.

    Para marcar um dos momentos centrais em que a oram as verdadeiras con-tradies do pensamento, cultura e poltica dominantes em relao ao analfabeto e ao analfabetismo no Brasil, o autor insere como quinto captulo um estudo anterior que ele elaborou e publicou na dcada de 1980, mas que apresenta a mais agrante atualidade: : a pedagogia dos homens livres da Ditadura Militar.

    Em Analfabetismo no Brasil: con gurao e gnese das desigualdades regio-nais, como sexto captulo, ao mesmo tempo em que Ferraro retoma a questo da

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    trajetria do analfabetismo, o faz sob o ngulo da sua dimenso regional. Aqui se tornam evidentes os traos da construo tambm social das desigualdades regionais em que o analfabetismo emerge como um exemplo marcante.

    No stimo captulo Quem so os analfabetos? Cruzando as perspectivas de classe, raa, gnero e gerao enfoca-se, ao lado do que tratou da construo social do analfabetismo, um dos dois pilares essenciais deste estudo. Aqui se d o coroamento das anlises e re exes que j despontavam no primeiro captulo e que, de variadas formas, perpassam todos os captulos anteriores. Como diz o autor, esta pergunta requer ateno especial, at porque ela leva inapelavelmente a que o pesquisador se pergunte sobre o porqu das desigualdades quanto alfabetizao, provenham estas das relaes tnico-raciais, de classe social ou de gnero ou resultem elas de qualquer combinao dessas trs dimenses (Ferraro, 2009, p. 144).

    O autor encerra seu livro com o oitavo captulo Escola e produo do anal-fabetismo no Brasil: 1970-2005 , no qual retoma uma velha questo com que tem trabalhado nos anos de 1980, que visa mostrar quanto e como a reproduo persis-tente do analfabetismo nas novas geraes tem a ver com a dupla forma de excluso escolar: a excluso da escola e a excluso na escola (idem, ibid., p. 18).

    Falando da escola que exclui, o autor retoma uma signi cativa frase de um seu estudo anterior que dizia: a escola tanto mais excludente quanto mais o a socie-dade qual serve (idem, p. 189). Parodiando, algo similar se poderia dizer do anal-fabetismo, isto , que ele tanto mais um smbolo de desigualdade e injustia sociais quanto mais desigual e injusta se apresenta a sociedade que o produz e realimenta.

    A leitura deste livro, estruturado com captulos bastante autnomos, mas, ao mesmo tempo, com estreitos traos empricos e interpretativos interligando-os de modo orgnico (ver nota 1), produzir no leitor muitos sentimentos. Dentre estes, al-guns poderiam aqui se destacar. O primeiro o de admirao pelo domnio do tema abordado e das exigncias terico-metodolgicas que seu tratamento exige. O segun-do, o do prazer esttico provocado pelo estilo de redao que demonstra completo domnio da lgica da expresso escrita, da preciso da linguagem, sem so sticao, o que possibilita a compreenso do exposto por leitores de diferentes nveis de inicia-o ao tema. O terceiro sentimento o da importncia de um estudo desta natureza, com esta profundidade, como instrumento na luta obrigatria pela destruio das condies estruturais do modelo de desenvolvimento que produz e realimenta o analfabetismo como realidade crnica deste pas.

    Dentre os onze pontos destacados pelo autor, como sntese provisria deste livro, na concluso de seu ltimo captulo, que trata da relao entre escola e anal-fabetismo, vale a pena transcrever o que visa enfatizar o papel da escola na sua produo: No basta superar a excluso da escola mediante a expanso e at a

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    universalizao do acesso. Importa transformar a lgica de excluso que historica-mente veio regendo o processo de escolarizao das camadas populares (Ferraro, 2009, p. 195).

    O domnio sobre a histria do analfabetismo no Brasil ainda que inacabada, porque o prprio fenmeno em estudo, como diz o autor, tem um m imprevisvel d, com este livro, passos rmes, quali cados e tambm norteadores das tarefas que especialistas, estudiosos e militantes devem continuar a enfrentar neste campo repleto de desa os longevos e persistentes.2

    Notas

    1. Em relao forma de organizao do livro, destaca o autor e o leitor poder comprov-lo que, embora tenha sido composto de um conjunto de captulos relativamente autnomos cada um de-les poderia ser lido e compreendido independentemente do demais , eles mantm laos muito estreitos, interligando-os de forma bastante harmnica.

    2. Como praxe nos livros da Biblioteca Bsica de Histria da Educao Brasileira (

    ) a que pertence, este volume traz, ao nal, como sugesto de leitura para aprofundamento do tema, nove obras selecionadas e comentadas pelo autor.