david hume - investigação sobre o entendimento humano e os princípios da moral.pdf

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FUNDA(AO EDITORA DA UNESP Prwdmte do Consclho Curador Jose Carlos Souza T rindade f) 1re tor- President e C.1stilho Martlues Nno Editor Executivo Jczio Hernani Bomfim Gutierre Conselho Editorial Acadhnico Alberto Ikeda Alfredo Pereira Junior Antonio Carlos Carrera de Souza Elizabeth Bcrwcnh Srucchi Kester Carrara Lourdes A. M. dos Santos Pinto Maria Helofsa Martins Dias Paulo Jose Branda Santilli Ruben Aldrovandi Tania Regina de Luca EdJtora Assistente Dt:nisc Katchuian Dognini l BIBUOTECA FAFlCH/UFMG DAVID HUME Investiga£0es sobre o entendimento humano e sobre os princfpios da moral Jose Oscar de Almeida Marques U.F.M.G.- BIBLIOTECA UNIVERSITARIA 1111111111111111111111111111111111 18500705 NAO DANIFIQUE ESTA ETIQUETA lfNdESP

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  • FUNDA(AO EDITORA DA UNESP

    Prwdmte do Consclho Curador Jose Carlos Souza T rindade

    f) 1re tor- President e Jost~ C.1stilho Martlues Nno

    Editor Executivo Jczio Hernani Bomfim Gutierre

    Conselho Editorial Acadhnico Alberto Ikeda

    Alfredo Pereira Junior Antonio Carlos Carrera de Souza

    Elizabeth Bcrwcnh Srucchi Kester Carrara

    Lourdes A. M. dos Santos Pinto Maria Helofsa Martins Dias Paulo Jose Branda Santilli

    Ruben Aldrovandi Tania Regina de Luca

    EdJtora Assistente Dt:nisc Katchuian Dognini

    l

    BIBUOTECA FAFlCH/UFMG

    DAVID HUME

    Investiga0es sobre o entendimento humano e

    sobre os princfpios da moral

    Tradu~ao Jose Oscar de Almeida Marques

    U.F.M.G.- BIBLIOTECA UNIVERSITARIA

    1111111111111111111111111111111111 18500705

    NAO DANIFIQUE ESTA ETIQUETA

    lfNdESP

  • I I

    Tftulo original em ingles: Enquiries Concerning Human Understanding and Concerning the Principles of Moral

    H9Ii

    2003 da tradu~ao brasileira Funda~ao Edirora da UNESP (FEU)

    Pra~a da Se, I 08 o I oo I -900 - Sao Paulo - SP

    Tel.: (Oxxl I) 3242-7I7I Fax: (Oxxii) 3242-7I72 www.edi toraunesp.com. br

    feu @edi tora.unesp.br

    CIP-Brasil. Cataloga~ao na Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Hume, David, 171 I-I776 Investiga~oes sabre o entendimento humano e sabre os princfpios

    da moral/ David Hume; tradu~ao de Jose Oscar de Almeida Marques. -Sao Paulo: Editora UNESP, 2004.

    Tradu~ao de: Enquiries Concerning Human Understanding and Concerning the Principles of Moral Anexo ISBN 85-7139-526-8

    I. Teo ria do conhecimento. 2. Erica. 3. Ciencia polftica. I. Tftulo. 04-I6I9. COD 192

    S:Jfe:t:) ABoclact6n de Edttortan Untven~ttarias

    de Amertc.a l.attna y el Carlbe

    Editora afiliada:

    1 , Associa.;io Brasileira das

    Editoras Universitarias

    13 03 c2(xJ f

    CDU I (42)

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    'ornR!fTO"

    Sumario

    Nota a esta edi~ao 9

    Nota introdut6ria 15

    Uma investiga{iio sobre o entendimento humano

    SefiiO 1 Das diferentes especies de filosofia . 19

    SefiiO 2 Da origem das ideias . 33

    SefiiO 3 Da associa~ao de ideias . 41

    SefiiO 4 Duvidas ceticas sabre as opera~oes do entendimento . 53

    SefiiO 5 Solu~ao cetica dessas duvidas . 71

    5

  • ........,

    David Hume

    Sefao 6 Da probabilidade . 9I

    Seao 7 Da ideia de conexao necessaria . 95

    Sefao 8 Da liberdade e necessidade . II9

    Sefao 9 Da razao dos animais . I47

    Seao z o Dos milagres . I 53

    Seao I I De uma providencia particular e de un1 estado vindouro . I8J

    Seao z 2 Da filosofia academica ou cetica . 203

    Uma investigafao sobre os prindpios da moral Seao I Dos prindpios gerais da moral . 225

    Seao 2 Da benevolencia . 233

    Seao 3 D~ justi~a . 24I Sefao 4 Da sociedade polftica . 269

    6

    lnvestigafi5es sobre o entendimento humano e sobre os princfpios da moral

    Sefao 5 Por que a utilidade agrada . 277

    Sefao 6 Das qualidades uteis a n6s mesmos . JOJ

    Sefao 7 Das qualidades imediatamente agradaveis a n6s mesmos . 323

    Seao 8 Das qualidades imediatamente agradaveis aos outros . 337

    Seao 9 Conclusao . 347

    Apendice I Sabre o sentimento moral . 367

    Apendice 2 Do amor de si mesmo . 379

    Apendice 3 Algumas considera~oes adicionais com rela~ao a justi~a . J89 Apendice 4 Algumas disputas verbais . 40I

    Urn dialogo . 415

    7

  • \

    Nota a esta ediiiO

    David Hume (1711-1776) conta-se entre os espintos mais luminosos de seu seculo e ocupa urn lugar proeminente entre os autores de lfngua inglesa, nao apenas por sua obra filos6fica, mas tambem como ensafsta e historiador. Conti-nuador da tradi~ao empirista inaugurada por Bacon e desen-volvida por Locke e Berkeley, levou-a a sua mais extrema conclusao, culminando em urn sistema que tern sido injusta-mente acusado de ser excessivamente cetico e de privar a cien-cia e a moral de qualquer justifica~ao racimul. *

    Os dois textos aqui apresentados tern uma origem comum, sendo ambos condensa~oes e reelabora~oes de partes de uma obra mais vast a, o Tratado da natureza humana, ** que David Hume redigiu em sua juventude, tendo-a iniciado em 1734, enquanto residia na Fran~a, e conclufdo em 173 7, ap6s seu

    * Para uma breve, mas util introdu~ao a obra de David Hume, consul-te-se QUINTON, A. Hume. Sao Paulo: Editora UNESP, I 999. 6 3p.

    (Cole~ao "Grandes Fil6sofos"). ** HUME, D. Tratado da natureza humana. Trad. Debora Danowsky. Sao

    Paulo: Editora UNESP, 200 I. 7 I 2p.

    9

  • \

    DavidHume

    retorno para a Inglaterra. Essa obra fora concebida por H 1 1 " "1' " ume em esca a monumenta , e suas tres partes, ou tvros

    "D d. " "D P . - " "D M 1" - o Enten tmento ; as atxoes e a ora -, pre-tendiam realizar uma verdadeira revolu~ao filos6fica pela

    introdu~ao, nos estudos humanfsticos, do "metodo experi-mental" propugnado por Isaac Newton para as cien.cias da natureza.

    Sem pretender examinar OS meritos e limita~oes da aplica-~ao de urn "metodo experimental" a filosofia, basta notar, aqui, que Hume pretendia, com essa ideia, apenas defender a primazia, nessas investiga~oes, dos fatos experimentalmente constatados sobre a forma como os seres humanos pensam e sao emocionalmente afetados em sua experiencia do mundo e no convfvio com seus semelhantes. 0 que se recusa e a repre-

    senta~ao da natureza humana segundo modelos derivados de hip6teses puramente conjeturais sobre, por exemplo, sua 11 ra-cionalidade", e a conseqi.iente tentativa de fundamentar na ra-zao todas as atividades que sao pr6prias do ser humano, entre as quais se incluem a aquisi~ao do conhecimento de fatos empfricos e o julgamento moral sobre as a~oes de outros e de si mesmo.

    Outra caracterfstica distintiva do "metodo experimental" de Hume e a precisa concentra~ao em seu objeto de estudo, que e 0 ser humano, ou antes, 0 fluxo de experiencias que constituem a vida mental dos seres humanos. Assim, ao tratar do problema do conhecimento, Hume procede de forma pu-ramente imanente e nao recorre a uma ordem exterior e ne-cessaria do mundo que pudesse servir como referencia e pe-dra de toque de nosso sistema de cren~as: a aquisi~ao de conhecimento se caracteriza pelo desenvolvimento de ideias ou expectativas acerca do comportamento das coisas e sua

    10

    lnvcstigaoes sobre o entendimento humano e sobre os princlpios da moral

    corrobora~ao pelas impressoes que efetivamente recebemos debs. Do mesmo modo, nossos julgamentos e avalia~oes n1o-rais nao sao referidos a urn padrao transcendente do que e in-trinsecamente born ou mau, mas derivam integralmente dos sentimentos de aprova~ao ou desaprova~ao que experimenta-mos diante de certas a~oes, comportamentos e inclina~oes, e das conseqi.iencias praticas dessas avalia~oes para o born fun-cionamento da sociedade.

    Uma importante conseqi.iencia da escolha de Hume de seu metodo de investiga~ao e, portanto, a unidade que essa escolha permite conferir a toda a obra. A primeira vista, o Tratado apa-rece como urn conjunto heterogeneo de investiga~oes sobre campos nao relacionados, cobrindo desde questoes ligadas a nosso conhecimento factual do mundo, das rela~oes causais e dos objetos exteriores, ate o estudo aprofundado do repert6-rio de nossos afetos e emo~oes, e de nossas atitudes valorati-vas diante de nossas a~oes e de outras pessoas. Seu escopo abrange assim a epistemologia, a psicologia e a filosofia mo-ral, areas que a sensibilidade contempodnea acostumou-se a considerar estanques e incomunidveis. De f1to, uma correta compreensao da obra de Hume come~a pelo reconhecimento da profunda unidade que subjaz a sua abordagem de cada urn desses campos de estudo; uma unidade que deriva de sua perspectiva metodol6gica comum aplicada ao exame de urn objeto igualmente unificado: o sistema de capacidades do ser humano que lhe permitem desenvolver tanto suas cren~as en1pfricas acerca do comportamento dos objetos exteriores como seus julgamentos morais das pdticas e caracteres de outros homens.

    Sabemos qual foi o triste destino do Tratado, uma obra que, nas palavras do autor, "saiu natimorta do prelo". Embo-

    11

  • \

    :111

    I' I' li

    1:

    David Hume

    ra a tenaz oposi~ao dos drculos academicos e eclesi;1sticos oficiais tenha tido um papel nesse fracasso, seu estilo pesado, complexo e emaranhado sem duvida dificultou sua recep~ao. Convencido de que o problema nao estava em seu conteudo mas no estilo de sua exposi~ao, Hume decidiu, alguns anos mais tarde, extrair dele duas obras mais curtas, nas quais pro-curou dar um tom acessfvel ao texto, eliminar a prolixidade argumentativa, suprimir OS topicos nao-essenctaiS para a

    condu~ao de seu argumento central e cuidar ao maximo da clareza da expressao. Sao essas as duas lnvestiga{oes reunidas no presente volume: a lnvestiga{iiO sobre o entendimento humano e a lnvestiga{iiO sobre os princfpios da moral, extrafdas do primeiro e do terceiro livros do Tratado e publicadas respectivamente em I748 e I75I.*

    Nessa nova versao, as propostas de Hume alcan~aram imen-sa penetra~ao e inf1uencia, e consti tuem hoje pontos de pas sa-gem obrigatorios no estudo da teoria do conhecimento e da filosofia moral. Conforme a propria recomenda~ao do autor, so esses novas textos revisados representam a expressao final e definitiva de suas ideias e princfpios filosoficos, e, ainda que nao estejamos obrigados a aceitar esse julgamento e con-tinuemos a nos f'lscinar com o texto mais denso, profunda e desafiador do Tratado, nao ha duvida de que sao essas versoes posteriores que constituem a melhor porta de entrada para o pensamento do autor.

    * Uma terceira obra, a Disserta(iiO sabre as paixi5es, extrato do Livro II do Tratado e publicada em I 7 57. carece de maior relevancia. De fa to, os t6picos de maior interesse filos6fico do Livro II, como a discuss:io da liberdade e da necessidade, j

  • \

    DavidHume

    e sempre que acrescentei alguma informa~ao (como dados bi-bliogrificos mais completes ou tradu~oes para o portugues de cita~oes originalmente em lfngua grega ou latina) esse acrescimo aparece entre colchetes. Notas adicionais sao in-troduzidas por meio de asteriscos, e destinam-se a prover in-

    forma~oes sabre vultos ou acontecimentos hist6ricos que nao sao hoje tao familiares como o eram na epoca de Hume.

    Quando se considera a moderna divisao administrativa universiraria, que separa as materias praticas das te6ricas e trata de forma compartimentalizada as questoes referentes a filosofia moral e a teoria do conhecimento, pareceria mais vantajoso- quanta a eficiencia da distribui~ao a seus respec-tivos publicos -que as duas obras contidas neste volume ti-vessem sido publicadas em separado, ja que cada uma delas, de fato, tern seu lugar estabelecido nos estudos canonicos que levam ao moderno tratamento dos problemas respectiva-mente eticos ou epistemol6gicos. Mas, ao estuda-las separa-damente, perde-se de vista sua unidade de perspectiva e seus paralelos metodol6gicos, e nao se tira o devido proveito da

    ilumina~ao redproca que sao capazes de lan~ar uma sabre a outra. Visando exatamente contemplar essa unidade e possi-bilitar ao leitor uma visao mais aprofundada do projeto filo-s6fico humeano, optou-se aqui pela publica~ao conjunta, in-centivando os estudiosos da epistemologia e os que se dedi-cam aos temas da filosofia moral e polftica a lan~ar urn olhar redprocc sabre seus campos de atua~ao, recuperando, assim, na medida do que e hoje possivel, 0 carater unirario da filoso-fia humeana.

    jose Oscar de Almeida Marques

    14

    Nota introdut6ria*

    Os prindpios e raciodnios contidos neste volume foram em sua maior parte publicados em uma obra em tres volumes intitulada Urn Tratado da Natureza Humana, que o autor proje-tara ja antes de concluir seus estudos universirarios e que es-creveu e publicou nao muito tempo depois. Nao o conside-rando, porem, urn trabalho bem-sucedido, o autor reconheceu seu erro em ter ido muito cedo ao prelo e rearranjou todo o material nas se~oes que se seguem, nas quais espera ter corri-gido algumas negligencias em seus raciodnios anteriores e, mais ainda, em sua expressao. Contudo, varios escritores que honraram a filosofia do autor com suas replicas cuidaram de dirigir todas as suas baterias contra aquela obra de juventude que o autor nunca autorizou, e presumiram ter triunfado em cada uma das vantagens que supostamente alcan~aram contra ela; uma pritica bern contriria a todas as regras da lisura e im-

    * Est a nota foi preparada por Hume em I 77 5, pouco antes de sua mor-te, para prefaciar o segundo volume de seus Essays and Treatises on Seve-ral Subjects. (N. T.)

    lj

  • \

    DavidHume

    parcialidade, e urn born exemplo das artimanhas argumentati-vas que o zelo fanatica se julga autorizado a empregar. 0 au-tor deseja, doravante, que os textos a seguir - e s6 eles -possam ser considerados como contendo suas opinioes e prindpios filos6ficos.

    z6

    Uma investiga{iio sobre o entendimento humano

  • \

    Se~ao I Das diferentes especies de filosojia

    1 A filosofia moral, ou ciencia da natureza humana, pode ser tratada de duas maneiras diferentes, cada uma delas possui-dora de urn merito peculiar e capaz de contribuir para 0 en-tretenimento, instru~ao e reforma da humanidade. A primei-ra considera o homem principalmente como nascido para a

    a~ao e como influenciado em suas atitudes pelo gosto e pelo sentimento, perseguindo urn objeto e evitando outro, de acordo com o valor que esses objetos parecem possuir e se-gundo a perspectiva em que se apresentam. Como a virtude, dentre todos OS objetOS, e 0 que se admite ser 0 mais valioso, os fil6sofos dessa primeira especie a pintam com as cores mais agradaveis, tomando de emprestimo toda a ajuda da poe-sia e da eloqi.iencia, e tratando seu assunto de uma maneira simples e acessfvel, como e mais adequado para agradar a ima-gina~ao e cativar os afetos. Esses fil6sofos selecionam as ob-serva~oes e exemplos mais marcantes da vida cotidiana, si-tuam caracteres opostos em urn contraste apropriado e, atraindo-nos para as trilhas da virtude com cenas de gloria e felicidade, guiam nossos passos nessas trilhas por meio dos

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  • \

    David Hume

    prindpios mais confiaveis e dos mais ilustres exemplos. Eles nos fazem sentir a diferen~a entre vfcio e virtude, excitam ere-gulam nossos sentimentos e, assim, basta-lhes que sejam ca-pazes de inclinar nossos cora~6es para 0 amor a probidade e a verdadeira honra para ja considerarem como plenan1ente atingido o fim de todos os seus esfor~os.

    2 Fil6sofos da segunda especie veem no homem antes um ser dotado de razao do que um ser ativo, e dirigem seus esfor~os mais a forma~ao de seu entendimento do que ao cultivo de seus costumes. Tomam a natureza humana como um objeto de especula~ao e submetem-na a um exame meticuloso a fim de discernir os prindpios que regulam nosso entendimento, excitam nossos sentimentos e fazem-nos aprovar ou conde-nar algum objeto, a~ao ou conduta particulares. Parece-lhes vergonhoso para toda a literatura que a filosofia nao tenha ate agora estabelecido, para alem de toda controversia, os fundamentos da moral, do raciocfnio e da crftica, e que fale interminavelmente sobre verdade e falsidade, vfcio e virtu-de, beleza e deformidade, sem ser capaz de determinar a ori-gem dessas distin~oes. Ao empreender essa ardua tarefa, eles nao se deixam dissuadir po~ quaisquer dificuldades, mas, partindo de casos particulares em dire~ao a prindpios gerais, vao estendendo suas investiga~6es para prindpios ainda mais gerais, nao se dando por satisfeitos ate que atinjam aqueles prindpios originais que, em qualquer ciencia, im-p6em um limite a toda curiosidade humana. Suas especula-

    ~6es parecem abstratas e ate ininteligfveis aos leitores co-muns, mas a aprova~ao que almejam e ados instrufdos e dos sabios, e julgam-se suficientemente recompensados pelo es-

    for~o de toda uma vida se forem capazes de descobrir algu-

    20

    Uma investiga{ao sobre o entendimento humano

    mas verdades ocultas que possam contribuir para a instru~ao da posteridade.

    3 E certo que, para o grosso da humanidade, a filosofia sim-ples e acessfvel tera sempre preferencia sabre a filosofia exata e abstrusa, e sera louvada por muitos nao apenas como mais agradavel, mas tambem como mais util que a outra. Ela parti-cipa mais da vida cotidiana, molda o cora~ao e os afetos, e, manipulando os prindpios que atuam sabre os homens, re-forma sua conduta e os traz para mais perto do modelo de perfei~ao que ela descreve. A filosofia abstrusa, ao contrario, estando baseada numa predisposi~ao que nao participa da vida dos neg6cios e da a~ao, esvanece-se quando o fil6sofo deixa a sombra e sai a luz do dia; e nao e facil que OS princfpios dessa filosofia retenham alguma influencia sobre nossa con-duta e comportamento. Os sentimentos de nosso cora~ao, a

    agita~ao de nossas paixoes, a veemencia de nossos afetos dis-sipam todas as suas conclus6es e reduzem o fil6sofo profun-da a um mero plebeu.

    4 Tambem e preciso confessar que a fama mais duradoura, bem como mais justa, foi conquistada pela filosofia simples, e que os raciocinadores abstratos parecem ter gozado ate agora de uma reputa~ao apenas momentanea, devida aos ca-prichos ou ignorancia caracterfsticos de sua propria epoca, sem serem capazes de preservar seu rename diante de uma posteridade mais imparcial. E facil para um fil6sofo profun-da cometer um engano em seus sutis raciodnios, e um enga-no e necessariamente 0 gerador de outro; ele, entretanto, segue todas as conseqi.iencias e nao hesita em endossar qual-quer conclusao a que chegue, por mais inusitada ou confli-tante com a opiniao popular. No caso, porem, de um fil6sofo

    21

  • David Hume

    cuja pretensao e apenas representar o sensa comum da huma-nidade em cores mais belas e mais atraentes, se ele incorre acidentalmente em erro, nao prossegue na mesma dire~ao, mas, apelando mais uma vez ao senso comum e aos sen-timentos naturais do espfrito, retorna ao caminho correto e se previne contra quaisquer ilusoes perigosas. A fama de Ci-cero floresce no presente, mas a de Arist6teles esra comple-tamente arruinada. La Bruyere atravessa os mares e ainda mantem sua reputa~ao, mas a gloria de Malebranche esta confinada a sua propria na~ao e a sua propria epoca. E Addi-

    i son, talvez, ainda sera lido com prazer quando Locke estiver inteiramente esquecido.

    5 0 filosofo puro e urn personagem que em geral nao e mui-to bem-aceito pelo mundo, pois supoe-se que ele em nada contribui para o proveito ou deleite da sociedade, ao viver lange do contato com os seres humanos e envolvido com prindpios e ideias nao menos distantes da compreensao des-res. Por outro lado, o mero ignorante e ainda mais despreza-do; e, em uma epoca e na~ao em que florescem as ciencias, nao ha sinal mais seguro de estreiteza de espfrito que o de nao se sentir minimamente atrafdo por esses nobres afazeres. E de supor que 0 carater mais perfeito esra situado entre esses ex-tremos, exibindo aptidao e gosto tanto pelos livros como pela convivencia social e pelos negocios, revelando, na conversa-

    ~ao, o discernimento e a delicadeza que brotam da familiari-dade com as belas-letras, e, nos negocios, a integridade e exa-tidao que sao o resultado natural de uma correta filosofia. Para difundir e cultivar urn carater assim excelente, nada pode ser mais adequado do que obras em genera e estilo aces-sfveis, que nao se afastem demasiado da vida, que nao exijam excessiva concentra~ao ou retraimento para serem compreen-

    22

    Uma investiga{iio sobre o entendimento humano

    didas e que devolvam o estudante ao convfvio dos homens, cheio de sentimentos generosos e munida de sabios preceitos apliciveis a todas as exigencias da vida humana. Por meio des-sas obras, a virtude e a ciencia tornam-se agradaveis, a compa-nhia, instrutiva e a propria solidao, aprazfvel.

    6 0 homem e urn ser racional e, como tal, recebe da ciencia seu adequado alimento e nutri~ao. Tao estreitos, porem, sao os limites do entendimento humano que pouca satisfa~ao pode ser esperada nesse particular, tanto no tocante a exten-sao quanta a confiabilidade de suas aquisi~oes. Alem de urn ser racional, o homem e tambem urn ser sociavel, mas tam-pouco pode desfrutar sempre de companhia agradavel e di-vertida, ou continuar a sentir por ela a necessaria atra~ao. 0 homem tambem e urn ser ativo, e e for~ado, por essa inclina-

    ~ao e pelas variadas necessidades da vida humana, a dedicar-se aos negocios e offcios; mas a mente exige algum descanso e nao pode corresponder sempre a sua tendencia ao trabalho e a diligencia. Parece, entao, que a natureza estipulou uma es-pecie mista de vida como a mais adequada aos seres huma-nos, e secretamente os advertiu a nao permitir que nenhuma dessas inclina~oes se imponha excessivamente, a ponto de in-capacita-los para outras ocupa~oes e entretenimentos. HSa-tisfaz tua paixao pela ciencia", diz ela, Hmas cuida para que essa seja uma ciencia humana, com direta relevancia para a pratica e a vida social. 0 pensamento abstruso e as investiga-

    ~oes reconditas sao por mim proibidos e severamente castiga-dos com a pensativa tristeza que ensejam, com a infindavel incerteza em que seds envolvido e com a fria recep~ao dedi-cada a tuas pretensas descobertas, quando comunicadas. Se urn fil6sofo, mas, em meio a toda tua filosofia, nao deixes de ser urn homem."

    2j

  • DavidHume

    7 Se o grosso da humanidade se contentasse em dar prefe-rencia a filosofia simples em oposi~ao a abstrata e profunda, sem expressar nenhuma condena~ao ou desprezo em rela~ao a esta ultima, nao seria talvez impr6prio aquiescer a essa opi-niao geral e nao se opor a que cada qual busque satisfazer seu proprio gosto e opiniao. Mas, comoa questao e muitas vezes levada mais lange, chegando mesmo a absoluta rejei~ao de to-dos os raciodnios mais aprofundados, ou daquilo que cornu-mente se chama metajfsica, passaremos agora a considerar o que se pode razoavelmente dizer em favor destes ultimos.

    8 Podemos come~ar observando que uma vantagem conside-ravel que resulta da filosofia exata e abstrata e 0 auxilio que oferece a filosofia simples e humana, a qual, sem a primeira, ja-mais poderia atingir urn grau suficiente de exatidao em suas opinioes, preceitos e raciodnios. Todas as belas-letras nada mais sao que retratos da vida humana em varias atitudes e si-

    tua~oes, e inspiram-nos diversos sentimentos, de louvor ou censura, admira~ao ou ridiculo, de acordo com as qualidades do objeto que nos apresentam. Para ter sucesso nessa emprei-tada, estad mais bern qualificado o artista que, alem de urn gosto refinado e uma dpida compreensao, possua urn conhe-cimento exato da constitui~ao interna, das opera~oes do en-tendimento, do funcionamento das paixoes e das varias espe-cies de sentimentos que discriminam entre vicio e virtude. Por mais penosa que possa parecer essa busca ou investiga~ao interior, ela se torna, em certa medida, urn requisito para aqueles que pretendem ter exito na descri~ao da aparencia vi-sivel e exterior da vida e dos costumes. 0 anatomista poe-nos diante dos olhos os objetos mais horrendos e desagradaveis, mas sua ciencia e util ao pintor para delinear ate mesmo uma Venus ou uma Helena. Mesmo quando emprega as cores

    24

    Uma investigafiiO sobre o entendimento bumano

    nuis exuberantes de sua arte e da a suas figuras os ares mais graciosos e atraentes, o artista deve manter sua aten

  • David Hume

    segue pelas avenidas da ciencia e da instru~ao, e todo aquele que for capaz de remover algum obsraculo nesse caminho, ou descortinar novas perspectivas, deve, nessa medida, ser consi-derado urn benfeitor da humanidade. E embora essas pesqui-sas possam parecer penosas e fatigantes, ocorre com algumas mentes o mesmo que com alguns corpos, os quais, tendo sido dotados de uma saude vigorosa e exuberante, requerem seve-ro exerdcio e colhem prazer daquilo que parece arduo e labo-rioso a humanidade em geral. A escuridao, de faro, e tao dolo-rosa para a mente como para a vista, mas obter luz da escuri-dao, por mais esfor~o que acarrete, sera sem duvida motivo de jubilo e deleite.

    11 0 que se objeta, porem, a obscuridade da filosofia profun-da e abstrata nao e simplesmente que seja penosa e fatigante, mas que seja fonte inevitavel de erro e incerteza. Aqui, de faro, repousa a obje~ao mais justa e plausfvel a uma parte considera-vel dos estudos metaffsicos: que eles nao sao propriamente uma ciencia, mas provem ou dos esfor~os frustrados da vaida-de humana, que desejaria penetrar em assuntos completamente inacessfveis ao entendimento, ou da astucia das supersti~oes populares que, incapazes de se defender em campo aberto, cul-tivam essas sar~as espinhosas impenetraveis para dar cober-tura e prote~ao a suas fraquezas. Expulsos do terreno desim-pedido, esses salteadores fogem para o interior da f1oresta e la permanecem a espera de uma oportunidade para irromper so-bre qualquer caminho desguarnecido da mente e subjuga-lo com temores e preconceitos religiosos. Mesmo o mais forte antagonista, se afrouxar sua vigilancia por urn s6 instante, sera sufocado. E muitos, por loucura ou covardia, abrem de born grado os portoes aos inimigos e os recebem como seus legftimos soberanos, com reverencia e submissao.

    26

    12

    Uma investigafiio sobre o entendimento humano

    Mas sera essa uma razao suficiente para que fil6sofos de-vam desistir de tais pesquisas e deixar a supersti~ao na posse de seu refugio? Nao seria apropriado chegar a conclusao oposta e reconhecer a necessidade de levar a guerra ate os mais secretos redutos do inimigo? Em vao esperarfamos que os homens, em face dos freqi.ientes desapontamentos, vies-sem por fim a abandonar essas etereas ciencias e descobrir a provincia apropriada da razao humana. Pois, alem do faro de que muitas pessoas sentem urn consideravel interesse em vol-tar permanentemente a esses t6picos, alem disso, eu digo, o desespero cego nao pode razoavelmente ter Iugar nas cien-cias, dado que, por mais malsucedidas que tenham sido as tentativas anteriores, sempre se pode esperar que a dedica~ao, a boa fortuna ou a sagacidade aprimorada das sucessivas gera-

    ~oes venham a realizar descobertas que epocas passadas igno-raram. T odo genio audaz continuara lan~ando-se ao arduo premio e considerar-se-a antes estimulado que desencorajado pelos fracassos de seus predecessores, esperando que a gloria de alcan~ar sucesso em tao diffcil empreitada esteja reservada apenas para si. 0 unico metodo de livrar a instru~ao definiti-vamente dessas reconditas questoes e investigar seriamente a natureza do entendimento humano e mostrar, com base em uma analise exata de seus poderes e capacidades, que ele nao esta de modo algum apto a tratar de assuntos tao remotos e abstrusos. Devemos dar-nos a esse trabalho agora para viver-mos despreocupadamente no futuro, e devemos dedicar algum cuidado ao cultivo da verdadeira metaffsica a fim de destruir aquela que e falsa e adulterada. A indolencia que, para algumas pessoas, fornece uma salvaguarda contra esta filosofia engano-sa e, em outras, contrabalan~ada pela curiosidade; e 0 desespe-ro que em alguns momentos prevalece pode em seguida ceder

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  • DaviJHume

    lugar a esperan~as e expectativas demasiado otimistas. 0 racio-dnio exato e justa e 0 unico remedio universal, apropriado para todas as pessoas e todas as inclina~oes, e so ele e capaz de subverter a filosofia abstrusa eo jargao metafisico que, mistu-rados a supersti~ao popular, tornam-na de certo modo inex-pugnavel aos argiiidores negligentes, e emprestam-lhe ares de ciencia e sabedoria.

    13 Alem dessa vantagem de rejeitar, apos uma investiga~ao ponderada, a parte mais incerta e desagradavel do aprendiza-do, ha muitas vantagens positivas que resultam de urn exame

    I minucioso dos poderes e faculdades da natureza humana. Com rela~ao as opera~oes da mente, e nora vel que, embora se-jam as que se apresentam a nos de maneira mais fntima, pare-cern envolver-se em obscuridade sempre que se tornam obje-to de reflexao, e nao visualizamos prontamente as linhas e contornos que as demarcam e distinguem. Os objetos sao de-masiado tenues para permanecerem por muito tempo como mesmo aspecto e na mesma situa~ao, e devem ser apreendidos instantaneamente por uma perspicacia superior, derivada da natureza e aperfei~oada pelo habito e pela reflexao. Consti-tui, assim, uma parte nada desprezfvel da ciencia a mera tarefa de reconhecer as diferentes opera~oes da mente, distingui-las umas das outras, classifica-las sob os tftulos adequados e corrigir toda aquela aparente desordem na qual mergulham quando tomadas como objetos de pesquisa e reflexao. Essa tarefa de ordenar e distinguir, que nao tern merito quando exercida sabre objetos externos, os objetos de nossos senti-dos, cresce em valor quando dirigida para as opera~oes do en-tendimento, proporcionalmente ao esfor~o e a dificuldade que exige de nos para sua realiza~ao. E se nao pudermos ir mais alem dessa geografia mental, ou delineamento das dife-

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    Uma investigafiiO solwe o ententlimento bumano

    rentes partes e poderes da mente, chegar ate la ja tera sido uma satisfa~ao; e quanta mais obvia essa ciencia vier a parecer ( e ela nao C de modo algum obvia) 1 mais censuravel ainda se devera julgar seu desconhecimento por parte daqueles que as-piram ao saber e a filosofia.

    14 Tampouco pode restar alguma suspeita de que essa ciencia seja incerta ou quimerica, a menos que alimentemos urn ceti-cismo tao completo que subverta inteiramente toda especula-

    ~ao e, mais ainda, toda a a~ao. Nao se pode por em duvida que a mente esra dotada de varios poderes e faculdades, que esses poderes sao distintos uns dos outros, que aquila que se apre-senta como realmente distinto a percep~ao imediata pode ser distinguido pela reflexao, e, conseqiientemente, que existe verdade e falsidade em todas as proposi~oes acerca deste as-sunto, e uma verdade e uma falsidade que nao estao fora do ambito do entendimento humano. Ha muitas distin~oes ob-vias dessa especie que estao ao alcance da compreensao de toda criatura humana, tais como aquelas entre a vontade e o entendimento, entre a imagina~ao e as paixoes; e as distin~oes mais sutis e filosoficas nao sao menos reais e certas, embora mais diffceis de compreender. Alguns exemplos, especial-mente os mais recentes, de sucesso nessas investiga~oes po-dem dar-nos uma ideia mais precisa da certeza e solidez desse campo de estudos. E deverfamos porventura considerar dig-no do trabalho de urn filosofo fornecer-nos o verdadeiro sis-tema dos planetas e conciliar a posi~ao e a ordem desses corpos longfnquos, ao mesmo tempo que simulamos desconhecer aqueles que com tanto sucesso delineiam as partes da mente que de tao perto nos dizem respeito?

    15 Mas nao nos sera lfcito esperar que a filosofia, cultivada com esmero e encorajada pela aten~ao do publico, possa avan-

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    DavidHume

    ~ar ainda mais em suas pesquisas e revelar, pelo menos ate cerro ponto, os m6veis e prindpios ocultos que impulsionam a mente humana em suas a~oes? Os astronomos por rnuito tempo se contentaram em deduzir dos fenomenos visfveis os verdadeiros movimentos, ordem e magnitude dos corpos ce-lestes, ate surgir finalmente urn fil6sofo que, pelos mais afor-tunados raciodnios, parece ter determinado tambem as leis e

    for~as que governam e dirigem as revolu~oes dos planetas. Resultados semelhantes tern sido alcan~ados em outros do-mfnios da natureza, e nao ha razao para nao esperarmos urn igual sucesso em nossas investiga~oes acerca dos poderes e

    organiza~ao da mente, se levadas a cabo com a mesma compe-tencia e precau~ao. E provavel que uma dada opera~ao ou prindpio da mente dependa de urn outro, o qual, por sua vez, possa reduzir-se a urn prindpio ainda mais geral e universal, e nao e facil determinar exatamente, antes ou ate mesmo depois de uma cuidadosa experimenta~ao, ate onde essas investiga-

    ~oes podem ser levadas. E cerro que todos os dias tentativas desse tipo sao feitas, mesmo por aqueles que filosofam da forma mais negligente, mas 0 que acima de tudo se requer e que o empreendimento seja conduzido com total cuidado e

    aten~ao, para que, se estiver ao alcance do entendimento hu-mano, possa por fim alcan~ar urn resultado favoravel, e se nao estiver, possa, por outro lado, ser rejeitado com alguma certe-za e seguran~a. Essa ultima conclusao certamente nao e dese-javel, nem deve ser aceita de maneira precipitada, pois e gran-de a perda que ela traz para o valor e o encanto dessa especie de filosofia. Os te6ricos da moral, ao considerarem a vasta multidao e diversidade das a~oes capazes de excitar nossa

    aprova~ao ou antipatia, acostumaram-se ate agora a procurar algum prindpio comum do qual esta variedade de sentimen-

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    Uma investigafaO sobre o entendimento bumano

    tos pudesse depender. E, embora algumas vezes tenham ido longe demais em sua paixao por urn prindpio geral unico, de-ve-se reconhecer que e desculpavel essa sua expectativa de descobrir alguns prindpios gerais aos quais todos os vfcios e virrudes pudessem ser adequadamente reduzidos. Esfor~os semelhantes tern sido realizados por te6ricos nos campos das artes, da l6.gica e mesmo da polftica, e suas tentativas nao re-sultaram totalmente malsucedidas, embora talvez urn tempo mais longo, uma maior exatidao e uma dedica~ao mais inten-sa possam trazer essas ciencias para ainda mais perto de sua perfei~ao. Renunciar imediatamente a todas as expectativas dessa especie pode ser com razao classificado como mais brusco, precipitado e dogmatico que a mais ousada e afirma-tiva filosofia que ja tenha tentado impor suas rudes doutrinas e prindpios a humanidade.

    16 Nao ha nada de mais no fato de que estes raciodnios acer-ca da natureza humana pare~am abstratos e de diffcil compre-ensao. Isso nao e sinal de que sejam falsos, antes o contdrio: parece impossfvel que aquila que ate agora tern escapado a tantos fil6sofos sabios e profundos possa ser algo muito simples e evidente. E por mais penosas que nos sejam essas

    investiga~oes, poderemos nos considerar suficientemente re-compensados, nao apenas quanta ao proveito, mas tambem quanta ao prazer, se por meio delas formos capazes de trazer qualquer acrescimo ao nosso invendrio de conhecimentos, em assuntos de tao extraordinaria imporrancia.

    17 Como, porem, o carater abstrato de tais especula~oes nao constitui, afinal, uma recomenda~ao, mas antes uma desvan-tagem, e como essa dificuldade talvez possa ser superada pela

    dedica~ao e habilidade, e pela exclusao de todo detalhe ines-

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    David Hume

    sencial, procuramos na investiga~:io que se segue lan~ar algu-ma luz sobre assuntos dos quais a incerteza ate agora afugen-tou OS sabios e a obscuridadc, OS ignor;lntes. Oar-nos-emos por fclizes se pudermos unir as frontciras das difcrentcs es-pccies de filosofia, rcconciliando a investiga~ao aprofundada com a clarcza, e a verdade com a inova~ao. E por mais fclizes ainda se, ao raciocinar dcssa maneira descomplicad;l, formos capazes de minar as funda~oes de uma filosofia abstrusa que parece ter servido ate agora apenas como abrigo para a supers-

    ti~ao e como anteparo para o erro e a absurdidade.

    Se~ao 2 Da origem das ideias

    T odos admitirao prontamente que h;i uma considedvcl diferen~a entre as percep~oes da mente lluando um homem sente a dor de um calor excessivo ou o prazer de uma tepidez moderada, e lluando traz mais tarde essa sensa~ao a sua me-moria, ou a antecipa pela sua imagina~ao. Essas faculdades podem imitar ou copiar as percep~oes dos scntidos, mas ja-mais podem atingir coda a for~a c vivacid;1de da expericncia original. T udo o que podemos dizcr de las, mesmo lluando operam com 0 maximo vigor, C llllC reprcscntam Sell objetO de uma maneira tao vfvida que quase podcmos dizcr llue o ve-mos ou sentimos. Excetuando-se, porem, os casas em que a mente esd perturbada pela doen~a ou loucura, nunca se atin-ge um grau de vivacidade capaz de tornar completamente in-distingufveis essas percep~oes. T odas as cores da poesia, por esplendidas que sejam, nao serao jamais capazes de retratar OS objetos de tal maneira que se tome a descri~ao por uma paisa-gem real, e 0 mais vfvido pensamento sed sempre inferior a mais obtusa das sensa~oes.

    2 Podemos observar que uma distin~:io semelhante percorre todas as demais percep~oes da mente. Urn homem tomado de

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    DavidHume

    urn acesso de furia e afetado de maneira muito diferente de urn outro que apenas pensa nessa emo~ao. Se voce me diz que uma certa pessoa esta enamorada, eu entendo facilmente o que voce quer dizer e forma uma ideia adequada da situa~ao dessa pessoa, mas jamais confundiria essa ideia com os tu-multos e agita~oes reais da paixao. Quando refletimos sabre nossas experiencias e afec~oes passadas, nosso pensamento atua como urn espelho fiel e copia corretamente os objetos, mas as cores que emprega sao palidas e sem brilho em compa-

    ra~ao com as que revestiram nossas percep~oes originais. Nao se requer urn refinado discernimento nem grande aptidao metaflsica para perceber a diferen~a entre elas.

    3 Em conseqiiencia, podemos aqui dividir todas as percep-~oes da mente em duas classes ou especies que se distinguem por seus diferentes graus de for~a e vivacidade. As que sao menos fortes e vivazes sao comumente denominadas pensa-mentos ou idiias. A outra especie carece de nome em nossa lfn-gua, assim como na maioria das outras, e suponho que isto se da porque nunca foi necessaria para qualquer prop6sito, ex-ceto os de ordem filos6fica, agrupa-las sob algum termo ou

    denomina~ao geral. Vamos entao tamar uma pequena liber-dade e chama-las impressoes, empregando a palavra num senti-do urn pouco diferente do usual. Entendo pelo termo impres-siio, portanto, todas as nossas percep~oes mais vfvidas, sem-pre que ouvimos, ou vemos, ou sentimos, ou amamos, ou odiamos, ou desejamos ou exercemos nossa vontade. E im-pressoes sao distintas das ideias, que sao as percep~oes me-nos vfvidas, das quais estamos conscientes quando refleti-mos sabre quaisquer umas das sensa~oes ou atividades ja mencionadas.

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    Uma investiga~ao sobre o entendimento humano

    4 Nada, a primeira vista, pode parecer mais ilimitado que o pensamento humano, que nao apenas escapa a todo poder e autoridade dos homens, mas esta livre ate mesmo dos limites da natureza e da realidade. Formar monstros e juntar as mais incongruentes formas e aparencias nao custa a imagina~ao mais esfor~o do que conceber os objetos mais naturais e fa-miliares. E enquanto o corpo esta confinado a urn unico pla-neta, sabre o qual rasteja com dor e dificuldade, o pensamen-to pode instantaneamente transportar-nos as mais distantes regioes do universo, ou mesmo para alem do universo, ate o caos desmedido onde se supoe que a natureza jaz em total confusao. Aquila que nunca foi vista, ou de que nunca se ou-viu falar, pode ainda assim ser concebido; e nada ha que esteja fora do alcance do pensamento, exceto aquila que implica uma absoluta contradi~ao.

    5 Mas, embora nosso pensamento pare~a possuir essa liber-dade ilimitada, urn exame mais cuidadoso nos mostrad que ele esta, na verdade, confinado a limites bastante estreitos, e que todo esse poder criador da mente consiste meramente na capacidade de compor, transpor, aumentar ou diminuir os ma-teriais que os sentidos e a experiencia nos fornecem. Quando pensamos em uma montanha de ouro, estamos apenas jun-tando duas ideias consistentes,. ouro e montanha, co!ll as quais estavamos anteriormente familiarizados. Podemos conceber urn cavalo virtuoso, pois podemos conceber a virtude a partir de nossos pr6prios sentimentos, e podemos uni-la a forma e figura de urn cavalo, animal que nos e familiar. Em suma, to-dos OS materiais do pensamento sao derivados da sensa~ao externa ou interna, e a mente e a vontade compete apenas misturar e compor esses materiais. Ou, para expressar-me em linguagem filos6fica, todas as nossas ideias, ou percep~oes

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    David Hume

    mais tenues, sao c6pias de nossas impressoes, ou percep~oes mais vfvidas.

    6 Para prova-lo, bastarao, espero, os dois argumentos se-guintes. Em primeiro lugar, quando analisamos nossos pen-samentos ou ideias, por mais complexos ou grandiosos que sejam, sempre verificamos que eles se decompoem em ideias simples copiadas de alguma sensa~ao ou sentimento prece-dente. Mesmo aquelas ideias que, a primeira vista, parecem as mais afastadas dessa origem revelam-se, ap6s urn exame mais detido, dela derivadas. A ideia de Deus, no sentido de um Ser infinitamente inteligente, sabio e bondoso, surge da reflexao sabre as

    opera~oes de nossa propria mente e do aumento ilimitado dessas qualidades de bondade e sabedoria. Podemos prosse-guir o quanta quisermos nessa investiga~ao, e para cada ideia que examinarmos sempre descobriremos que ela e copiada de uma impressao semelhante. Aqueles que desejarem declarar que essa proposi~ao nao e universalmente verdadeira, ou que admire exce~oes, s6 dispoem de urn metoda para refura-la, que de resto e simples: apresentar alguma ideia que, em sua opiniao, nao derive dessa fonte. Cabera en tao a n6s, se quiser-mos sustentar nossa doutrina, exibir a impressao, isto e, a percep~ao vfvida, que a ela corresponde.

    7 Em segundo lugar, quando urn homem nao pode, por al-gum defeito organico, experimentar sensa~oes de uma certa especie, sempre verificamos que ele e igualmente incapaz de formar as ideias correspondentes. Urn cego nao pode ter no-~ao das cores, nem urn surdo dos sons. Restitua-se a qualquer urn deles 0 sentido em que e deficiente, e, ao se abrir esse novo canal de entrada para suas sensa~oes, tambem se estara abrindo urn canal para as ideias, e ele nao ted dificuldades

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  • David Hume

    mediarios sejam diferentes, nao se podera consistentemente negar que os extremos sejam iguais. Suponhamos, entao, que uma pessoa usufruiu sua visao durante trinta anos e se familia-rizou perfeitamente com cores de todos os tipos, com exce-~ao, digamos, de uma particular tonalidade de azul, com a qual nunca teve a ventura de deparar. Suponhamos que todas as diferentes tonalidades dessa cor, com exce~ao daquela uni-ca, sejam dispostas diante dessa pessoa, descendendo gradual-mente da mais escura para a mais clara; e clara que ela perce-bed urn espa~o vazio onde f1lta aquele tom, e percebed que naquele Iugar ha, entre as cores contfguas, uma disrancia maior que em qualquer outro Iugar. Pergunto agora se lhe seria pas-sive! suprir essa falta a partir de sua propria imagina~ao e tra-zer a sua mente a ideia daquela tonalidade particular, embora esta jamais lhe tenha sido transmitida pelos sentidos. Acredi-to que poucos negarao que isso seja posslvel, o que pode ser-vir como prova de que as ideias simples nem sempre sao, em todos os casas, derivadas das impressoes correspondentes, embora esse exemplo seja tao singular que quase nao vale a pena examina-lo, e tampouco merece que, apenas por sua cau-sa, venhamos a alterar nossa tese geral.

    9 Eis aqui, portanto, uma proposi~ao que nao apenas parece simples e inteligivel em si mesma, mas tambem capaz, se apropriadamente empregada, de esclarecer igualmente todas as disputas e banir todo aquele jargao que por tanto tempo tern dominado os arrazoados metaftsicos e lhes trazido desgra~a. Todas as ideias, especialmente as abstratas, sao naturalmente fracas e obscuras: o intelecto as apreende apenas precaria-mente, elas tendem a se confundir com outras ideias asseme-lhadas, e mesmo quando algum termo esta desprovido de urn significado preciso, somas levados a imaginar, quando o em-

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    Uma investigafiio sobre o entendimento bumano

    pregamos com freqi.iencia, que a ele corresponde uma ideia de-terminada. Ao contrario, todas as impressoes, isto e, todas as

    sensa~oes, tanto as provenientes do exterior como as do interior, sao fortes e vfvidas; OS limites entre elas estao mais precisa-mente definidos, e nao e facil, alem disso, incorrer em qualquer erro ou engano relativamente a elas. Portanto, sempre que ali-mentarmos alguma suspeita de que urn termo filos6fico esteja sendo empregado sem nenhum significado ou ideia associada (como freqi.ientemente ocorre), precisaremos apenas indagar: de que impressiio deriva esta suposta idfia? E se for impassive! atri-buir-lhe qualquer impressao, isso servid para confirmar nossa suspeita. Ao expor as ideias a uma luz tao clara, podemos ali-mentar uma razoavel esperan~a de eliminar todas as controver-sias que podem surgir acerca de sua natureza e realidade. 1

    E provavel que aqueles que negaram a existencia de idcias inatas estivessem apenas querendo dizer que todas as ideias sao c6pias de nossas impress6es, embora se deva confessar que os termos que em-pregaram nao foram escolhidos com a cautela necessaria nem defini-dos tao precisamente de forma a evitar todo engano acerca de sua doutrina. Pais o que se quer dizer com inato? Se inato e equivalence a natural, entao todas as percep~6es e ideias da mente devem ser admi-tidas como inatas ou naturais, qualquer que seja o sentido que se de a essa ultima palavra, em oposi~ao tanto ao que c incomum quanta ao que e artificial au ao que e milagroso. Se par inato se entender contem-ponineo ao nosso nascimento, a disputa parece ser fdvola, e nao vale muito a pena investigar em que epoca come~a o pensamento, se antes, du-rante ou depois de nosso nascimento. Alem disso, a palavra idiia pare-ce ter sido tomada usualmente num sentido muito amplo par Locke e outros, como significando qualquer uma de nossas percep~6es, nos-sas sensa~6es e paixoes, bem como pensamentos. Ora, nesse sentido, eu desejaria saber o que pode significar a asser~ao de que o amor de si mesmo, o ressentimento pelas injurias ou a paixao entre os sexos nao e inata.

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    DaviaHume

    Mas admicindo-se esses cermos, impressoes e idiias, no sencido ja ex-plicado, e encendendo por inato aquilo que e original, ou que nao e co-piado de nenhuma impressao precedence, encao podemos asseverar que codas as nossas impressoes sao inacas e nossas ideias nao o sao.

    Para falar francamence, devo confessar minha opiniao de que, nessa quescao, Locke caiu na armadilha dos escolascicos, os quais, ao faze-rem uso de cermos nao-definidos, alongam cediosamence suas dispu-cas sem jamais cocar no ponco em quescao. Semelhances ambiguida-des e circunl6quios parecem percorrer os raciodnios daquele fil6sofo nesce como na maioria dos oucros assuncos.

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    Se~ao 3 Da associaiio de ideias

    E evidente que ha urn prindpio de conexao entre os diver-sos pensamentos ou ideias da mente, e que, ao surgirem a me-moria ou a imagina~ao, eles se introduzem uns aos outros com urn certo grau de metoda e regularidade. Isso e tao mar-cante em nossos raciodnios e conversa~oes mais serios que qualquer pensamento particular que interrompa o fluxo ou encadeamento regular de ideias e imediatamente notado e re-jeitado. Mesmo em nossos devaneios mais desenfreados e er-rantes - e nao somente neles, mas ate em nossos pr6prios so-nhos -, descobriremos, se refletirmos, que a imagina~ao nao correu inteiramente a salta, mas houve uma liga~ao entre as diferentes ideias que se sucederam umas as outras. Se a mais negligente e indisciplinada das conversas fosse transcrita, ob-servar-se-ia imediatamente alga que a manteve coesa em cada uma de suas transi~oes. Ou, se isso estiver ausente, a pessoa que quebrou o fio da discussao poderia ainda informar-nos que uma sucessao de pensamentos percorrera secretamente sua mente, levando-a gradualmente a afastar-se do assunto da

    conversa~ao. Entre diferentes linguagens, mesmo quando

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    David Hume

    nao podemos suspeitar que haja entre elas a menor conexao ou contato, verifica-se mesmo assim que as palavras que ex-pressam as ideias mais complexas correspondem aproximada-mente umas as outras; uma prova cabal de que as ideias sin1-ples, compreendidas nas ideias complexas, foram reunidas por algum prindpio universal que exerceu igual inf1uencia em toda a humanidade.

    2 Embora o faro de que diferentes ideias estejam conectadas seja demasiado 6bvio para escapar a observa~ao, nao e de meu conhecimento que algum fil6sofo tenha tentado enumerar ou classificar tc.dos os princfpios de associa~ao; urn assunto que, entretanto, parece digno de investiga~ao. De minha parte, pare-ce haver apenas tres prindpios de conexao entre ideias, a saber, semelhana, contigiiidade no tempo ou no espa~o. e causa ou ejeito.

    3 Que esses princfpios sirvam para conectar ideias nao sed, acredito, objeto de muita duvida. Urn retrato conduz natu-ralmente nossos pensamentos para o original; 1 a men~ao de um comodo numa habita~ao leva naturalmente a uma indaga-~ao ou observa~ao relativas aos demais; 2 e, se pensarmos em urn ferimento, dificilmente conseguiremos evitar uma ref1e-xao sobre a dor que o acompanha. 3 Mas pode ser dificil pro-var satisfatoriamente para o lei tor, ou mesmo para si proprio, que essa enumera~ao e completa e que nao ha outros prindpios de associa~ao alem desses. T udo que se pode f1.zer, em tais casos, e recapitular diversos exemplos examinando cuidado-samente o prindpio que liga os diferentes pensamentos uns aos outros, nao nos detendo ate que tenhamos tornado o prin-

    I Semelhan~a. 2 Contiguidade. 3 Causa e efeito.

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    Uma investigarao s"bre o entendimento bumano

    dpio tao geral quanta possivel. Quanta mais exemplos exa-minarmos, e quanta mais cuidado dedicarmos ao exame, mais certeza adquiriremos de que a enumera~ao obtida do conjun-to e completa e integral.* Em vez de entrar em detalhes de sse tipo, que nos levariam a muitas sutilezas inuteis, vamos con-siderar alguns dos efeitos dessa conexao sobre as paixoes e a

    imagina~ao, com 0 que podemos abrir uma area de especula-~ao mais interessante e talvez mais instrutiva que a outra.

    4 Como 0 homem e urn ser dorado de razao e eSLl continua-mente em busca de uma felicidade que espera alcan~ar pela

    satisfa~ao de alguma paixao ou sentimento, ele raramente age, fala ou pensa sem urn prop6sito e uma inten~ao. Sem-pre tern em mira urn objetivo, e por menos apropriados que sejam as vezes os meios que ele escolhe para atingir seus fins, nunca perde de vista urn fim, e nao id desperdi~ar seus pen-samentos ou ref1exoes quando nao espera colher deles alguma

    satisf1~ao. 5 Requer-se, portanto, em todas as composi~oes de genio,

    que o escritor tenha algum plano ou objetivo, e, embora pas-sa vir a ser arremessado para fora dele pela veemencia do pen-samento, como em uma ode, ou o abandone descuidadamente como em uma epfstola ou ensaio, deve ser discernivel algum prop6sito ou inten~ao, se nao na composi~ao integral do tra-balho, pelo menos em seu primeiro esbo~o. Uma produ~ao sem urn designio assemelhar-se-ia mais aos delirios de urn louco que aos s6brios esfor~os do genio e da sabedoria.

    * T odo o restante desta se~ao foi suprimido na edi~ao p6stuma de I 777 e nao aparece, consequentemente, no texto estabelecido por L. A. Selby-Bigge, que tomou como base aquela edi~ao. (N. T.)

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  • II\

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    DnidHme

    6 Como essa regra nao admite nenhuma exce~ao, segue-se que, em composi~oes narrativas, os acontecimentos ou a~oes que o escritor relata devem estar conectados por algum vfn-culo ou liame. Eles devem relacionar-se uns aos outros na

    imagina~ao e formar uma especie de unidade, que permite sub-sumi-los a urn unico plano ou perspectiva, e que pode ser 0 objetivo ou fim visado pelo escritor em seu esfor~o inicial.

    7 Esse prindpio de conexao dos diversos acontecimentos que formam o assunto de urn poema ou hist6ria pode variar em muito, conforme os diferentes objetivos do poeta ou his-toriador. Ovfdio baseou seu plano no prindpio de conexao por semelhan~a. Todas as fabulosas transforma~oes produzi-das pelo poder milagroso dos deuses 'caem sob o escopo de seu trabalho. Basta esta {mica circunstincia, em qualquer acontecimento, para subsumi-lo ao plano ou inten~ao origi-nal do escritor.

    8 Urn analista ou historiador que se propusesse a escrever a hist6ria da Europa em urn determinado seculo seria influen-ciado pela conexao de contigi.iidade em tempo e lugar. Todos os eventos ocorridos naquela por~ao de espa~o e naquele pe-rfodo de tempo farao parte de seu projeto, mesmo que sob oti-tros aspectos sejam distintos e desconectados. Em meio a toda sua diversidade, ha urn tipo de unidade que eles preservam.

    9 Mas a especie mais usual de conexao entre os diferentes acontecimentos que figuram em qualquer composi~ao narra tiva e a de causae efeito, pela qual o historiador tra~a a sequen-cia de a~oes de acordo com sua ordem natural, remonta a suas molas e prindpios secretos, e delineia suas mais remotas con-seqi.iencias. Ele escolhe como seu assunto uma certa por~ao dessa grande cadeia de eventos que compoem a hist6ria da

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    Uma investigll{iO solwe o entendimento humano

    humanidade e, em sua narrativa, esfor~a-se por abordar cada elo dessa cadeia. Algumas vezes, uma inevitavel ignodincia torna infrudferos todos os seus esfor~os; outras vezes, ele supre conjeturalmente o que falta em conhecimento, e esta sempre consciente de que quanta mais coesa e a cadeia que apresenta a seu leitor, mais perfeito e 0 trabalho que produ-ziu. Ele ve que o conhecimento das causas e nao apenas o mais satisfat6rio, ja que essa rela~ao ou conexao e a mais for-te de todas, mas tambem 0 mais instrutivo, pais esse e 0 uni-co conhecimento que nos capacita a controlar eventos e go-vernar o futuro.

    10 Aqui, portanto, podemos formar uma certa ideia des sa uni-dade de a{iio, da qual todos os crfticos, seguindo Arist6teles, tanto tern falado, e talvez com pouco proveito, ao nao guia-rem seu gosto ou sentimento pela exatidao da filosofia. Pa-rece que, em todas as produ~oes, assim como nos generos epico e tragico, uma certa unidade e requerida, e que em ne-nhum momenta se pode permitir que nossos pensamentos corram a salta, se quisermos produzir urn trabalho capaz de proporcionar urn entretenimento duradouro para a humani-

    d~de. Parece tambem que mesmo urn bi6grafo que fosse es-crever a vida de Aquiles iria conectar os acontecimentos, mostrando suas rela~oes e dependencia mutuas, tanto quan-ta urn poeta que fosse fazer da ira desse her6i o assunto de sua narrativa.4 As a~oes de urn homem mantem entre si uma

    4 Contrariamente aArist6teles: Mu9oc; o'qttV Eic;, oux 000'1tEp ttvtc; o{ovtat, v 1tEpt EV

  • n-;JHume

    dependencia mutua nao apenas em uma certa por~ao limitada de sua vida, mas em todo o perfodo de sua dura~ao, do ber~o a sepultura, e nao e possfvel remover urn unico elo, por minus-culo que seja, dessa cadeia regular sem afetar toda a serie sub-seqiiente de eventos. Assim, a unidade de a~ao encontrada nas biografias ou na hist6ria nao difere em especie da que se en-contra na poesia epica, mas apenas em grau. Na poesia epica, a conexao entre os eventos e mais cerrada e percepdvel; a narra-tiva nao se estende por uma dura~ao tao longa; e os atores apressam-se rumo a urn momenta extraordinario que satisfaz a expectativa do leitor. Esta conduta do poeta epico depende do estado particular da imaginarao e das paixoes que aquela pro-

    du~ao supoe. A imagina~ao, tanto do escritor como do leitor, e mais ati~ada, e as paixoes se inflamam mais que em hist6ria, biografia ou toda outra especie de narrativas que se confinam a estrita verdade e realidade. Consideremos o efeito dessas duas circunstancias: uma imagina~ao avivada e paixoes infla-madas; circunstancias que sao mais caractedsticas da poesia, particularmente do tipo epico, do que de qualquer outro ge-nera de composi~ao, e examinemos a razao pela qual elas re-querem uma unidade mais estrita e cerrada em seu enredo.

    11 Em primeiro Iugar, toda poesia, sendo uma especie de pin-tura, aproxima-nos mais dos objetos que qualquer outra es-pecie de narra~ao, lan~a sabre eles uma luz mais intensa e de lineia mais distintamente os pormenores que, embora pare~am superfluos ao historiador, atuam poderosamente para tornar

    supoem, em virtude de versar sobre urn unico indivfduo. Pois muitas, na verdade inconcaveis, coisas acontecem ao indivfduo das quais nao ha urn resultado unico. Do mesmo modo, muitas sao as a~oes de urn indi-vi'duo das quais nao decorre nenhuma a~ao unicaria."]

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    Umtl investigtfflo so6tw mtmJimento bumano

    as imagens mais vfvidas e satisfazer a fantasia. Se nao e neces-saria, como na [/{ada, informar-nos de cada vez que 0 her6i afivela o cal~ado ou ata a jarreteira, requer-se, talvez, que se entre em mais detalhes que em La Henriade, * na qual os even-tos sucedem-se com tal rapidez que quase nao temos oportu-nidade de nos familiarizar com o cenario ou a a~ao. Assim, se urn poeta quisesse abarcar em seu tema urn Iongo perfodo de tempo ou uma longa serie de acontecimentos, remontando a morte de Heitor a suas causas remotas, ao rapto de Helena ou o julgamento de Paris, deveria dar a seu poema uma exten-sao desmesurada, para preencher essa grande tela apenas com imagens e figuras. A imagina~ao do leitor, inflamada por tama-nha serie de descri~oes poeticas, e suas paixoes agitadas por uma continua simpatia para com os atores devem fatigar-se muito antes do termino da narra~ao, cedendo ao cansa~o e des-conforto pela violencia incessante dos mesmos movimentos.

    12 Em segundo Iugar, ficara clara, adicionalmente, que o poe-ta nao deve ir muito lange no delineamento das causas por uma outra razao derivada de uma propriedade ainda mais no-tavel e singular das paixoes. E evidente que, em uma compo-

    si~ao equilibrada, todas as afec~oes excitadas pelos diversos acontecimentos, ao serem descritas e representadas, refor-

    ~am-se mutuamente, e que, estando os her6is todos envolvi-dos em uma cena comum, cada a~ao fortemente conectada com o todo, a aten~ao mantem-se continuamente desperta e as paixoes transitam facilmente de urn objeto para outro. A forte conexao entre os acontecimentos, ao facilitar a passa-

    * Poema epico de Voltaire, sobre epis6dios na vida de Henrique deNa-varra. (N. T.)

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    DavidHume

    gem do pensamento ou imagina~ao de urn para outro, tam-bern facilita a transi~ao das paixoes e mantem as afec~oes no mesmo canal e dire~ao. N ossa simpatia e preocupa~ao por Eva prepara o caminho para uma simpatia semelhante por Adao: a afec~ao se preserva quase inteiramente na transi~ao e a mente apreende imediatamente o novo objeto como forte-mente relacionado ao que anteriormente atrafa sua aten~ao. Mas, se o poeta fizesse uma completa digressao de seu assun-to e introduzisse urn novo ator sem nenhuma liga~ao com os personagens, a imagina~ao, percebendo uma lacuna na transi-

    ~ao, adentraria com frieza a nova cena, so se estimulando mui-to lentamente, e, quando retornasse ao assunto central do poe-rna, estaria por assim dizer em solo estranho, necessitando ter sua aten~ao novamente estimulada para poder acompanhar os atores principais. 0 mesmo inconveniente segue-seem grau menor quando o poeta remonta seus acontecimentos a urn perfodo muito distante e emparelha a~oes que, embora nao inteiramente disjuntas, nao apresentam uma conexao forte 0 bastante para favorecer a transi~ao das paixoes. Surge daf o artiffcio da narrativa oblfqua, empregada na Odisseia e na Enei-da, em que 0 heroi e inicialmente apresentado proximo a con-

    secu~ao de seus desfgnios e posteriormente nos revela, como que em perspectiva, as causas e eventos mais distantes. Com esse metoda excita-se de imediato a curiosidade do leitor: OS eventos seguem-se com rapidez e em estreita conexao, a aten-

    ~ao mantem-se viva e, por meio da rela~ao proxima dos obje-tos, cresce continuamente do come~o ao fim da narrativa.

    13 A mesma regra vale para a poesia dramatica, nao se permi-tindo, em uma composi~ao regular, a introdu~ao de urn ator que tenha pouca ou nenhuma rela~ao com os personagens

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    Uma investiga{iio solwe o entendimento bumano

    principais do enredo. A aten~ao do espectador nao deve ser desviada por cenas disjuntas e separadas das demais; isso in-terrompe o curso das paixoes e impede aquela comunica~ao de diferentes emo~oes que faz que uma cena reforce outra e transmita a piedade eo terror por ela excitados para cada uma das cenas subseqiientes, ate que o todo exiba aquele rapido fluxo de emo~oes tao caractedstico do teatro. Esse ardor dos afetos seria extinto se deparassemos subitamente com uma nova a~ao e novas personagens de nenhum modo relaciona-dos aos anteriores; se encontdssemos uma brecha ou vazio tao percepdveis no curso das paixoes, resultante daquela bre-cha na conexao de ideias; e se, em vez de conduzir a simpatia de uma cena a seguinte, fossemos obrigados, a cada instante, a convocar urn novo interesse e a participar de uma nova si-tua~ao dramatica.

    14 Para voltar a compara~ao da historia com a poesia epica, OS raciodnios precedentes permitem-nos concluir que, como uma certa unidade e requerida em todas as produ~oes, ela nao pode, menos ainda que em qualquer outro caso, estar ausente da historia; que a conexao entre os diversos acontecimentos que os une em urn so corpo e a rela~ao de causa e efeito, a mesma conexao que tern lugar na poesia epica; e que, nesta ul-tima especie de composi~ao, essa conexao deve ser mais estre-ita e mais percepdvel apenas em fun~ao da imagina~ao vfvida e das fortes paixoes que devem ser estimuladas pelo poeta em sua narra~ao. A guerra do Peloponeso e urn assunto adequado para a historia, o cerco de Atenas, para urn poema epico, e a morte de Alcebfades, para uma tragedia.

    15 Como a diferen~a, portanto, entre historia e poesia epica consiste apenas nos graus de conexao que aglutinam os diver-

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  • DavidHume

    sos acontecimentos que compoem seu assunto, sera diffcil, se nao mesmo impossfvel, determinar verbalmente de maneira exata as fronteiras que separam esses dais generos. Esta e uma questao de gosto, mais que de raciodnio, e talvez essa unidade possa muitas vezes revelar-se em uma tematica na qual, a primeira vista, e por uma considera~ao abstrata, me-nos esperarfamos encontra-la.

    16 E evidente que Homero, no curso de sua narrativa, foi alem do tema que tinha inicialmente proposto, e que a ira de Aquiles que causou a morte de Heitor nao e a rnesma que trouxe tantos males aos gregos. Mas a forte liga~ao entre es-sas duas emo~oes, a ripida transi~ao de uma a outra, o con-traste5 entre OS efeitos da COncordia e da discordia entre OS prfncipes, e a curiosidade natural que ternos de ver Aquiles em a~ao depois de urn repouso tao prolongado, todas essas causas atuam no leitor e criarn uma suficiente unidade no ass unto.

    17 Pode-se objetar a Milton que ele foi muito lange no tra~a-do de suas causas, e que a rebeliao dos anjos produz a queda do homern por uma sucessao de eventos que e ao mesrno tem-po muito longa e muito fortuita, para nao rnencionar que a

    cria~ao do mundo, da qual ele da urn extenso relata, nao e a causa dessa catistrofe mais do que da batalha de Farsalia ou de qualquer outro evento ja ocorrido. Mas se considerarmos, por outro lado, que esses eventos todos: a rebeliao dos anjos,

    5 Contraste, ou oposi~ao, e uma conexao entre ideias que pode talvez ser considerada como uma mistura de causa~ao e semelhan~a. Quando dois objetos sao contrarios, urn destr6i 0 outro; is toe, e a causa de sua aniquila~ao, e a ideia da aniquila~ao de urn objeto implica a ideia de sua existencia anterior.

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    Uma investigaiio sobre o entendimento bumano

    a cria~ao do mundo e a queda do homem assemelham-se uns aos outros por serem miraculosos e estarern fora do curso ordi-naria da natureza; que eles sao considerados contiguos no ten1-po; e que, estando desconectados de todos os outros eventos e sendo os unicos fatos originais dados a conhecer pela reve-la~ao, chamam de irnediato a aten~ao e evocarn-se natural-mente uns aos outros no pensamento ou na irnagina~ao; se considerarmos todas essas circunsrancias, eu dizia, descobri-remos que essas partes da a~ao exibern uma unidade suficien-te para que se possa subsumi-las a urn unico enredo ou narra-tiva. Ao que se poderia acrescentar que a rebeliao dos anjos e a queda do homern tern uma sernelhan~a peculiar, por serem a contrapartida uma da outra e por apresentarern ao leitor a mesma moral de obediencia a nosso Criador.

    18 Reuni estas vagas indica~oes para estirnular a curiosidade dos fil6sofos e produzir, se nao urn plena convencimento, pelo menos a suspeita de que este e urn assunto muito vasto, e que muitas opera~oes da mente hurnana dependern da cone-xao ou associa~ao de ideias aqui explicada. Em especial, a afi-nidade entre as paixoes e a irnagina~ao pode aparecer como alga nod.vel, ao observarmos que as afec~oes excitadas por urn objeto passarn facilmente para outro objeto conectado ao prirneiro, mas nao se transferern, ou s6 com dificuldade, en-tre objetos distintos que nao estejam conectados de nenhurn modo. Ao introduzir em qualquer composi~ao personagens e

    a~oes estranhos uns aos outros, urn autor pouco judicioso poe a perder aquela cornunica~ao de emo~oes que e seu unico meio de cativar o cora~ao e de elevar as paixoes a seu nfvel e

    culrnina~ao apropriados. A explica~ao completa deste prin-dpio e de todas as suas conseqi.iencias levar-nos-ia a raciod-

    Jl

  • David Hume

    nios demasiado vastos e profundos para esta investiga~ao. E suficiente, por ora, ter estabelecido a conclusao de que os td~s prindpios que conectam todas as ideias sao as rela~oes de se-melhana, contiguidade e causaao. Se~ao 4

    Duvidas ceticas sobre as opera6es do entendimento

    Parte I

    1 Todos OS objetos da razao ou investiga~ao humanas po-dem ser naturalmente divididos em dois tipos, a saber, relai5es de idiias e questi5es de jato. Do primeiro tipo sao as ciencias da gee-metria, algebra e aritmetica, e, em suma, toda afirma~ao que e intuitiva ou demonstrativamente certa. Que o quadrado da hipo-tenusa i igual ao quadrado dos dois !ados e uma proposi~ao que ex-pressa uma rela~ao entre essas grandezas. Que tres veZ!s cinco i igual a metade de trinta expressa uma rela~ao entre esses nume-ros. Proposi~oes desse tipo podem ser descobertas pela sim-ples opera~ao do pensamento, independentemente do que possa existir em qualquer parte do universo. Mesmo que ja-mais houvesse existido urn drculo ou triangulo na natureza, as verdades demonstradas por Euclides conservariam para sempre sua certeza e evidencia.

    2 Questoes de fato, que sao o segundo tipo de objetos da ra-zao humana, nao sao apuradas da mesma maneira, e tam-pouco nossa evidencia de sua verdade, por grande que seja, e da

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  • mesma natureza que a precedente. 0 contrario de toda questao de fato permanece sendo possfvel, porque nao pode jamais im-plicar contradi~ao, e a mente o concebe com a mesma facilida-de e clareza, como algo perfeitamente ajustavel a realidade. Que 0 sol nao nascera amanha nao e uma proposi~ao menos inteligfvel nem implica mais contradi~ao que a afirma~ao de que ele nascera; e seria vao, portanto, tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse demonstrativamente falsa, implicaria uma contradi~ao e jamais poderia ser distintamente concebida pela mente.

    3 Assim, pode ser urn assunto digno de interesse investigar qual e a natureza dessa evidencia que nos da garantias quanta a qualquer existencia real de coisas e q~alquer questao de fato, para alem do testemunho presente de nossos sentidos ou dos registros de nossa memoria. Observe-se que tanto OS antigos como os modernos pouco cultivaram essa parte da filosofia, e isso torna mais desculpaveis nossos erros e hesita~oes ao em-preendermos uma investiga~ao tao importante, percorrendo trilhas tao diffceis sem nenhum guia ou orienta~ao. Esses erros podem ate mesmo revelar-se uteis, estimulando a curiosidade e abalando aquela fe e seguran~a irrefletidas que sao a rufna de todo raciodnio e de _toda investiga~ao imparcial. A descoberta de defeitos na filosofia ordin.aria, se os houver, nao atuara, pre-sumo, como urn desencorajamento, mas antes como urn estf-mulo, como e usual, para buscarmos algo mais pleno e satisfa-torio do que o que se tern ate agora proposto ao publico.

    4 T odos os raciodnios referentes a questoes de fato pare-cern fundar-se na rela~ao de causa e ifeito. E somente por meio dessa rela~ao que podemos ir alem da evidencia de nossa me-moria e. nossos sentidos. Se perguntassemos a urn hom em por que ele acredita em alguma afirma~ao factual acerca de

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    s

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    Uma inveslig~ao solm o mtmaimento bumano

    algo que esta ausente - por exemplo, que seu amigo acha-se no interior, ou na Fran~a -, ele nos apresentaria alguma ra-zao, e essa razao seria algum outro fato, como uma carta rece-bida desse amigo ou o conhecimento de seus anteriores com-promissos e resolu~oes. Urn homem que encontre urn relogio ou qualquer outra maquina em uma ilha deserta concluira que hom ens estiveram anteriormente ness a ilha. T odos os nossos raciodnios relatives a fatos sao da mesma natureza. E aqui se supoe invariavelmente que ha uma conexao entre o fato presente e o fato que dele se infere. Se nada houvesse que os ligasse, a inferencia seria completamente incerta. Por que a

    audi~ao de uma voz articulada e de urn discurso com sentido na escuridao nos assegura da presen~a de alguma pessoa? Porque esses sao os efeitos da constitui~ao e do feitio do ser humano~ e estao intimamente conectados a ele. Se dissecar~os todos os outros raciodnios dessa natureza, descobriremos que eles se fundam n~ rela~ao de causa e efeito, e que essa rela~ao se apresenta como proxima ou remota, direta ou colateral. Calor e luz sao efeitos colaterais do fogo, e urn dos efeitos pode ser legitimamente inferido do outro.

    Assim, se quisermos nos convencer quanta a natureza des-sa evidencia que nos assegura quanta a questoes de fato, de-vemos investigar como chegamos ao conhecimento de causas e efeitos.

    Arrisco-me a afirmar, a tftulo de uma proposta geral que nao admite exce~oes, que 0 conhecimento dessa rela~ao nao e, em nenhum caso, alcan~ado por meio de raciodnios a priori, mas provem inteiramente da experiencia, ao descobrirmos que certos objetos particulares acham-se constantemente conjugados uns aos outros. Apresente-se urn objeto a urn ho-

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    mem dotado das mais poderosas capacidades naturais de racio-dnio e percep~ao - se esse objeto for alga de inteiramente novo para ele, mesmo o exame mais minucioso de suas quali-dades sensfveis nao lhe permitira descobrir quaisquer de suas causas ou efeitos. Adao, ainda que supusessemos que suas fa-culdades racionais fossem inteiramente perfeitas desde o inf-cio, nao poderia ter inferido da fluidez e transparencia da agua que ela 0 sufocaria, nem da luminosidade e calor do fogo que este poderia consumi-lo. Nenhum objeto jamais revela, pelas qualidades que aparecem aos sentidos, nem as causas que o produziram, nem os efeitos que dele provirao; e tam-pouco nossa razao e capaz de extrair, sem auxflio da experien-cia, qualquer conclusao referente a e,xistencia efetiva de coi-sas ou questoes de fato.

    7 Essa proposi~ao de que causas e efeitos sao descobertos nao pela ra~ zao, mas pela experitncia sera facilmente aceita com rela~ao a ob-jetos de que temos a lembran~a de nos terem sido outrora completamente desconhecidos, dado que estamos com certe-za conscientes de nossa total inabilidade, na ocasiao, de pre-ver o que deles resultaria. Apresente a urn homem nao versa-do em filosofia natural duas pe~as lisas de marmore: ele jamais descobrira que elas irao aderir uma a outra de tal ma-neira que uma grande for~a e requerida para separa-las ao longo de uma linha perpendicular as superficies em contato, embora seja mfnima a resistencia que oferecem a uma pressao lateral. Tam bern se admite prontamente, no caso de fenome-nos que mostram pouca analogia com o curso ordinaria da natureza, que eles s6 podem ser conhecidos par meio da ex-periencia, e ninguem imaginaria que a explosao da p6lvora ou a atra~ao do magneto pudessem jamais ter sido descobertas par argumentos a priori. De maneira semelhante, quando se

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    Uma investiga{io solwe o entmaimento bumano

    supoe que urn efeito depende de urn complicado mecanisme ou estrutura secreta de partes, nao temos dificuldade em atri-buir a experiencia todo 0 conhecimento que temos dele. Quem se apresentara como capaz de fornecer a razao ultima pela qual pao e leite sao alimentos apropriados para urn ser humano, mas nao para urn leao ou tigre?

    s Mas essa mesma verdade pode nao parecer, a primeira vis-ta, dotada da mesma evidencia no caso de acontecimentos que nos sao familiares desde que viemos ao mundo, que apresen-tam uma fntima analogia como curse geral da natureza, e que supomos dependerem das qualidades simples de objetos sem nenhuma estrutura secreta de partes. No caso desses efeitos, tendemos a pensar que poderfamos descobri-los pela mera aplica~ao de nossa razao, sem recurso a experiencia. lmagina-mos que, se tivessemos sido trazidos de subito a este mundo, poderfamos ter inferido desde o in1cio que uma bola de bilhar iria comunicar movimento a uma outra por meio do impulse, e que nao precisarfamos ter aguardado o resultado para nos pronunciarmos com certeza acerca dele. Tal e a influencia do habito: quando ele e mais forte, nao apenas encobre nossa igno-rancia, mas chega a ocultar a si proprio, e parece nao estar presente simplesmente porque existe no mais alto grau.

    9 Para convencer-nos, entretanto, de que todas as leis dana-tureza e todas as opera~oes dos corpos, sem exce~ao, sao co-nhecidas apenas por meio da experiencia, bastarao talvez as seguintes reflexoes. Se urn objeto nos fosse apresentado e fos-semos solicitados a nos pronunciar, sem consulta a observa~ao passada, sabre o efeito que dele resultara, de que maneira, eu pergunto, deveria a mente proceder nessa opera~ao? Ela deve inventar ou imaginar algum resultado para atribuir ao objeto

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    David Hume

    como seu efeito, e e 6bvio que essa inven~ao ted de ser intei-ramente arbitdria. 0 mais atento exame e escrutinio nao per-mite a mente encontrar o efeito na suposta causa, pois o efeito e totalmente diferente da causae nao pode, conseqi..ientemen-te, revelar-se nela. 0 movimento da segunda bola de bilhar e um acontecimento completamente distinto do movimento da primeira, e nao ha nada em um deles que possa fornecer a menor pista acerca do outro. Uma pedra ou uma pe~a de me-tal, erguidas no are deixadas sem apoio, caem imediatamente; mas, considerando-se o assunto a priori, haveria porventura algo nessa situa~ao que pudessemos identificar como produ-zindo a ideia de um movimento para baixo e nao para cima, ou outro movimento qualquer dessa pedra ou pe~a de metal?

    10 E como em todas as opera~oes naturais a primeira imagi-tu~ao ou inven~ao de urn efeito particular e arbitdria quando nao se consulta a experiencia, devemos avaliar do mesmo modo o suposto elo ou conexao entre causa e efeito que os liga entre si e torna impossivel que algum outro efeito possa resultar da opera~ao daquela causa. Quando vejo, por exem-plo, uma bola de bilhar movendo-se em linha reta em dire~ao a outra, mesmo supondo-se que o movimento da segunda bola seja acidentalmente sugerido a minha imagina~ao como resultado de seu contato ou impulso, nao me seria porventu-ra possivel conceber uma centena de outros diferentes resul-tados que se seguem igualmente bern daquela causa? Nao po-deriam am bas as bolas permanecer em absoluto repouso? Nao poderia a primeira bola recuar em linha reta ou saltar para lange da segunda em qualquer cur so ou dire~ao? T odas essas suposi~oes sao consistentes e concebfveis. Por que, en-tao, deverfamos dar preferencia a uma suposi~ao que nao e rna is consistente ou concebfvel que as demais? T odos os nos-

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    Uma investigafiiO sobre o entendimento humano

    sos raciodnios a priori serao para sempre tncapazes de nos mostrar qualquer fundamento para essa preferencia.

    u Em uma palavra, portanto: todo efeito e um acontecimen-to distinto de sua causa. Ele nao poderia, por isso mesmo, ser descoberto na causa, e sua primeira inven~ao ou concep~ao a priori deve ser inteiramente arbitraria. E mesmo ap6s ter sido sugerido, sua conjun~ao com a causa deve parecer igualmente arbitraria, pais ha sempre muitos outros efeitos que, para a razao, surgem como tao perfeitamente consistentes e naturais quanta o primeiro. Em vao, portanto, pretenderfamos deter-minar qualquer ocorrencia individual, ou inferir qualquer cau-sa ou efeito, sem a assistencia da observa~ao e experiencia.

    12 Podemos, a partir disso, identificar a razao pela qual ne-nhum fil6sofo razoavel e comedido jamais pretendeu indicar a causa ultima de qualquer opera~ao natural, ou exibir preci-samente a a~ao do poder que produz qualquer um dos efeitos particulares no universo. Reconhece-se que a suprema con-quista da razao humana e reduzir OS princfpios produtivos dos fenomenos naturais a uma maior simplicidade, e subordi-nar OS multiplos efeitoS particulares a algumas poucas causas gerais, por meio de raciodnios baseados na analogia, expe-riencia e observa~ao. Quanta as causas dessas causas gerais, entretanto, sed em vao que procuraremos descobri-las; e ne-nhuma explica~ao particular delas sera jamais capaz de nos satisfazer. Esses m6veis princfpios fundamentais estao total-mente vedados a curiosidade e a investiga~ao humanas. Elas-ticidade, gravidade, coesao de partes, comunica~ao de movi-mento por impulso - essas sao provavelmente as ultimas causas e princfpios que nos sed dado descobrir na natureza, e devemos nos dar por satisfeitos se, por meio de urn cuidado-

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    so raciodnio e investiga~ao, pudermos reportar os fenome-nos particulares a esses prindpios gerais, ou aproxima-los deles. A mais perfeita filosofia da especie natural apenas de-tern por algum tempo nossa ignorancia, assim como a mais perfeita filosofia da especie moral ou metaffsica serve talvez apenas para descortinar por~oes mais vastas dessa mesma ignorancia. Assim, o resultado de toda filosofia e a consta-

    ta~ao da cegueira e debilidade humanas, com a qual depara-mos por toda parte apesar de nossos esfor~os para evid.-la ou dela nos esquivarmos.

    13 Mesmo a geometria, quando chamada a auxiliar a filosofia natural, e incapaz de corrigir esse defeito ou de nos levar ao conhecimento das causas ultimas, apesar de toda precisao de raciodnio pela qual e tao justamente celebrada. Cada ramo da matematica aplicada procede a partir da suposi~ao de que cer-tas leis sao estabelecidas pela natureza em suas opera~oes, e o raciodnio abstrato e empregado ou para auxiliar a experiencia na descoberta dessas leis, ou para determinar sua influencia em casas particulares, nos quais essa influencia depende, em algum grau preciso, da disrancia e da quantidade. Assim, e uma lei do movimento, descoberta pela experiencia, que o mo-menta ou for~a de qualquer corpo em movimento e a razao composta, ou propor~ao, de seu conteudo solido e sua veloci-dade; e, consequentemente, que uma pequena for~a pode re-mover o maior obsd.culo ou erguer o maior peso se, por meio de algum dispositivo ou maquinario, pudermos aumentar a velocidade dessa for~a de modo a faze-la sobrepujar o antago-nista. A geometria nos ajuda a aplicar essa lei, fornecendo-nos as dimensoes corretas de todas as partes e grandezas que po-dem entrar em qualquer especie de maquina; mas a descoberta da propria lei continua devendo-se simplesmente a experien-

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    Uma investigarao sobre o entendimento bumano

    cia, e todos os raciodnios abstratos do mundo nunca poderiam nos levar a urn passo adiante na dire~ao de sua descoberta. Quando raciocinamos a priori e consideramos urn objeto ou causa apenas tal como aparece a mente, independente de toda

    observa~ao, ele jamais podera sugerir-nos a ideia de algum ob-jeto distinto, como seu efeito, e muito menos exibir-nos a co-nexao inseparavel e inviolavel entre eles. Seria muito sagaz o homem capaz de descobrir pelo simples raciodnio que o cris-ta! eo efeito do calor eo gelo o efeito do frio, sem estar previa-mente familiarizado com as opera~oes dessas qualidades.

    Parte 2

    14 Mas ainda nao chegamos a nenhuma conclusao satisfatoria com rela~ao a questao inicialmente proposta. Cada solu~ao da continuamente lugar a urria nova questao tao diffcil quan-ta a anterior, eleva-nos cada vez mais Ionge em nossas inves-tiga~oes. Quando se pergunta Qual i a natureza de todos os nossos raciodnios acerca de questoes de jato?, a resposta apropriada parece ser que eles se fundam na rela~ao de causa e efeito. Quando em seguida se pergunta Qual i o Jundamento de todos os nossos raciod-nios e conclusoes acerca dessa rela{tio?, pode-se dar a resposta em uma palavra: a experiencia. Mas, se ainda perseverarmos em nosso esp1rito esmiu~ador e perguntarmos Qual i o jundamento de todas as nossas conclusoes a partir da experiencia?, is so introduz uma questao nova que pode ser ainda mais diffcil de solucio-nar e esclarecer. Filosofos que se dao ares de superior sabedo-ria e confian~a passam por maus bocados quando se defron-tam com pessoas de indole inquisitiva que os expulsam de todos os cantos onde se refugiam e terminam inevitavelmente por faze-los cair em algum dilema perigoso. 0 melhor meio de

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    evitar essa confusao e sermos modestos em nossas preten-soes, inclusive apontando nos mesmos a dificuldade antes que ela seja levantada contra nos. Dessa forma, podemos con-verter nossa propria ignorancia em uma especie de merito.

    Contentar-me-ei, nesta se~ao, com uma tarefa facil, bus-cando dar apenas uma resposta negativa a questao aqui pro-pasta. Afirmo, portanto, que, mesmo apos termos experiencia das opera~oes de causa e efeito, as conclusoes que retiramos dessa experiencia nao estao baseadas no raciodnio ou em qualquer processo do entendimento. Devemos agora esfor-

    ~ar-nos para explicar e defender essa resposta. Deve-se certamente reconhecer que a natureza tern-nos

    mantido a uma boa distancia de todos os seus segredos, so nos concedendo o conhecimento de umas poucas qualidades superficiais dos objetos, enquanto mantem ocultos os pede-res e prindpios dos quais a influencia desses objetos depende inteiramente. Nossos sentidos informam-nos da cor, peso e consistencia do pao, mas nem os sentidos nem a razao podem jamais nos informar quanto as qualidades que 0 tornam apro-priado a nutri~ao e sustento do corpo humano. A visao, ou

    sensa~ao, transmite-nos uma ideia do movimento real dos corpos, mas quanta a admiravel for~a ou poder que faz que urn corpo em movimento persista para sempre em sua contf-nua mudan~a de lugar, e que os corpos nunca perdem a nao ser quando a comunicam a outros, desta nao somos capazes de formar a mais remota concep~ao. Mas, nao obstante essa ignorancia dos poderes 1 e prindpios naturais, sempre supo-

    A palavra poder esra sendo usada aqui em seu sentido vago e popular. Uma explica~_;ao mais acurada de seu sentido traria ainda uma eviden-cia adicional para este argumento. Veja-se a Se~_;ao 7.

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    Uma investiga{iio sobre o entendimento humano

    mos, quando vemos qualidades sensfveis semelhantes, que elas tern poderes secretos semelhantes, e esperamos que delas se sigam efeitos semelhantes aos de que tivemos experiencia. Se nos for apresentado urn corpo de core consistencia seme-lhantes as do pao que anteriormente comemos, nao hesita-mos em repetir o experimento e antevemos com certeza a mesma nutri~ao e sustento. Ora, eis aqui urn processo mental ou intelectual do qual muito me agradaria saber o fundamen-to. Admite-se unanimemente que nao ha conexao conhecida entre qualidades sensfveis e poderes secretos, e, conseqi.iente-mente, que a mente, ao chegar a uma tal conclusao sobre sua

    conjun~ao constante e regular, nao e conduzida por nada que ela saiba acerca de suas naturezas. Quanta a experiencia passa-da, pode-se admitir que ela prove informa~ao imediata e segu-ra apenas acerca dos precisos objetos que lhe foram dados, e apenas durante aquele preciso perfodo de tempo; mas por que se deveria estender essa experiencia ao tempo futuro ou a ou-tros objetos que, por tudo que sabemos, podem ser seme-lhantes apenas em aparencia? Essa e a questao fundamental sohre a qual desejaria insistir. 0 pao que comi anteriormente alimentou-me, isto e, urn corpo de tais e tais qualidades sen-sfveis esteve, naquela ocasiao, dotado de tais e tais poderes se-cretos, mas segue-se porventura disso que outro pao deva

    . igualmente alimentar-me em outra ocasiao, e que qualidades sensfveis semelhantes devam estar sempre acompanhadas de poderes secretos semelhantes? Essa conseqi.iencia nao parece de nenhum modo necessaria. E preciso no mfnimo reconhe-cer que a mente extraiu aqui uma conseqi.iencia, que urn certo passo foi dado: urn percurso do pensamento e uma inferencia para o que se exige uma explica~ao. As duas proposi~oes se-guintes estao longe de serem a mesma: Constatei que tal objeto

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    DavidHume

    sempre esteve acompanhado de tal ifeito e Prevejo que outros objetosJ de aparencia semelhanteJ estarao acompanhados de efeitos semelhantes. Admi-tirei, se lhes agradar, que e correto inferir uma proposi~ao da outra; e sei, de fato, que essa inferencia sempre e feita. Mas, se alguem insistir em que ela se faz por meio de uma cadeia de raciodnio, eu gostaria que esse raciodnio me fosse apresen-tado. A conexao entre essas proposi~oes nao e intuitiva. Re-quer-se aqui urn termo media que possibilite a mente realizar uma tal inferencia, se e que ela e de fato realizada por meio de algum raciodnio ou argumento. Qual seria esse termo media, devo confessar que ultrapassa minha compreensao, e quem deve apresenta-lo SaO OS que afirmam que ele realmente existe e que e a fonte de todas as nossas conclusoes referentes a questoes de fato.

    17 Esse argumento negativo devera com certeza tornar-se plenamente convincente com o passar do tempo, se muitos fil6sofos habeis e perspicazes voltarem-se para ele em suas investiga~oes e nenhum deles for jamais capaz de descobrir qualquer proposi~ao ou passo intermediario que estabele~a a

    liga~ao e ap6ie o entendimento nessa conclusao. Mas, como a questao e ainda recente, pode ser que nem todos OS leitores confiem tanto em sua propria perspicacia a ponto de, pelo simples fato de urn argumento escapar a sua indaga~ao, con-cluir que ele realmente nao existe. Por essa razao, pode ser necessaria embrenharmo-nos em uma tarefa mais diflcil, e, enumerando todos os ramos do conhecimento humano, es-

    for~armo-nos para mostrar que nenhum deles pode dar apoio a urn tal argumento.

    18 T odos os raciodnios podem ser divididos em do is tipos, a saber, o raciodnio demonstrativo, que diz respeito a rela~oes

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    UmA investiga{ao sobre o entendimento humano

    de ideias, eo raciodnio moral, referente a questoes de fato e existencia. Parece evidente que argumentos demonstrativos nao esrao envolvidos neste caso, dado que nao e contradit6rio que o curso da natureza possa mudar, e que urn objeto apa-rentemente semelhante aos de que tivemos experiencia possa vir acompanhado de efeitos diferentes ou contrarios. Nao pas-so, porventura, conceber de forma clara e distinta que caia das nuvens urn corpo, em todos os outros aspectos assemelhado a neve, e que, contudo, apresente ao paladar o gosto de sal e ao tato a sensa~ao do fogo? Ha alguma afirma~ao mais inteliglvel do que dizer que todas as arvores vao florescer em dezembro e janeiro e perder as folhas em maio e junho? Ora, tudo o que e inteliglvel e pode ser distintamente concebido esti isento de contradi~ao, e nao pode ser provado como falso por nenhum argumento demonstrativo ou raciodnio abstrato a priori.

    19 Assim, se formos levados, por meio de argumentos, a de-positar confian~a na experiencia passada e torna-la o modelo de nossos julgamen