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12 Na obra “O Juízo Moral na Criança”, publicada pela primeira vez em 1932, Piaget traz a proposta de tentar compreender o juízo moral do ponto de vista da criança, e descreve as regras morais que se estabelecem durante seu desenvolvimento. O estudo da moralidade é uma parte da obra piagetiana na qual o autor não aprofundou suas pesquisas. As razões podem ser várias: tempo e Resumo: : Este artigo é a adaptação de um capítulo da dissertação desenvolvida no Mestrado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da USP. Implica a visitação teórica das obras de Jean Piaget, Lawrence Kohlberg e Carol Gilligan sobre o desenvolvimento moral na perspectiva da Psicologia. As teorias são construídas a partir de uma concepção da moralidade por meio de fatores cognitivos e baseados na justiça, na opinião dos dois primeiros autores, até o desenvolvimento da ética do cuidado, na teoria da terceira autora. Tal caminho nos leva inevitavelmente a considerar que diversos elementos, não só a justiça, participam do juízo e da ação moral, entre eles, virtudes como a generosidade. Palavras-Chave: Desenvolvimento moral, virtudes, generosidade. Abstract: This article is an adaptation of a chapter from the USP Psychology Institute Master’s degree dissertation in School Psychology and Human Development. It involves the theoretical knowledge of Jean Piaget, Laurence Kohlberg and Carol Gilligan about the moral development in the perspective of Psychology. The theories are built based on a conception of morality through cognitive factors and based on justice, according to the two first authors, up to the development of the care ethic, according to the third author’s theory. This concept leads us, inevitably, to consider that several elements, not only justice, take part in sense and moral action, among them, virtues as generosity. Key Words: Moral development, virtues, generosity. De Piaget a Gilligan: Retrospectiva do Desenvolvimento Moral em Psicologia um Caminho para o Estudo das Virtudes Juízo Moral na Criança Segundo Jean Piaget Vanessa Aparecida Alves de Lima Psicóloga formada na Universidade Federal de Rondônia, Especialista em Metodologia do Ensino. Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP; doutoranda em Psicologia pela USP; docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Rondônia em Porto Velho (RO). From Piaget to Gilligan: moral development retrospective in Psychology A way to the virtues’study objetivo despendido pelo pesquisador com o problema epistemológico, preferência pessoal, ou até razões políticas, ligadas à delicada posição que ocupava no Instituto Jean Jacques Rousseau. Estudiosos piagetianos reconhecem que as idéias presentes em “Juízo Moral na Criança” permearam toda a obra de Piaget e já existiam desde 1916 ou 1917, quando escreveu Recherche: “um livro em PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2004, 24 (3), 12-23 Jupiterimages

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Na obra “O Juízo Moral na Criança”, publicadapela primeira vez em 1932, Piaget traz a propostade tentar compreender o juízo moral do ponto devista da criança, e descreve as regras morais que seestabelecem durante seu desenvolvimento.

O estudo da moralidade é uma parte da obrapiagetiana na qual o autor não aprofundou suaspesquisas. As razões podem ser várias: tempo e

Resumo::Este artigo é a adaptação de um capítulo da dissertação desenvolvida no Mestrado em Psicologia

Escolar e do Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da USP. Implica a visitação teórica dasobras de Jean Piaget, Lawrence Kohlberg e Carol Gilligan sobre o desenvolvimento moral na perspectiva daPsicologia. As teorias são construídas a partir de uma concepção da moralidade por meio de fatorescognitivos e baseados na justiça, na opinião dos dois primeiros autores, até o desenvolvimento da ética docuidado, na teoria da terceira autora. Tal caminho nos leva inevitavelmente a considerar que diversoselementos, não só a justiça, participam do juízo e da ação moral, entre eles, virtudes como a generosidade.Palavras-Chave: Desenvolvimento moral, virtudes, generosidade.

Abstract: This article is an adaptation of a chapter from the USP Psychology Institute Master’s degreedissertation in School Psychology and Human Development. It involves the theoretical knowledge of JeanPiaget, Laurence Kohlberg and Carol Gilligan about the moral development in the perspective of Psychology.The theories are built based on a conception of morality through cognitive factors and based on justice,according to the two first authors, up to the development of the care ethic, according to the third author’stheory. This concept leads us, inevitably, to consider that several elements, not only justice, take part insense and moral action, among them, virtues as generosity.Key Words: Moral development, virtues, generosity.

De Piaget a Gilligan:Retrospectiva do Desenvolvimento Moral em Psicologia

um Caminho para o Estudo das Virtudes

Juízo Moral na Criança Segundo Jean Piaget

VanessaAparecida

Alves de Lima

Psicóloga formada naUniversidade Federal de

Rondônia, Especialistaem Metodologia do

Ensino. Mestre emPsicologia Escolar e do

DesenvolvimentoHumano pela USP;

doutoranda emPsicologia pela USP;

docente doDepartamento de

Psicologia daUniversidade Federal de

Rondônia em PortoVelho (RO).

From Piaget to Gilligan: moral development retrospective in PsychologyA way to the virtues’study

objetivo despendido pelo pesquisador com oproblema epistemológico, preferência pessoal, ouaté razões políticas, ligadas à delicada posição queocupava no Instituto Jean Jacques Rousseau.

Estudiosos piagetianos reconhecem que as idéiaspresentes em “Juízo Moral na Criança” permearamtoda a obra de Piaget e já existiam desde 1916 ou1917, quando escreveu Recherche: “um livro em

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2004, 24 (3), 12-23

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parte autobiográfico, em parte um ensaio deelaboração de suas leituras (...) sob a forma deromance filosófico (...) para não se comprometerno campo da ciência” (Freitas, 1997, pp. 66-67).Em “Juízo Moral na Criança”, traçou estratégiaspara estudar o jogo de bolinhas de gude, comumentre os meninos da região pesquisada, e os jogosde pique e amarelinha com as meninas,procurando comprovar a relação entre respeito emoralidade. Formulou às crianças de 6 a 12 anosquestões morais em forma de dilemas ouperguntando-lhes livremente sobre o tema. Éfundamental esclarecer que Piaget achavaimportantíssimo o inquérito que se seguia ao teste.

Para demonstrar como observou e comprovou aconstrução dessa moralidade, vamos seguir ospassos de Piaget em “Juízo Moral na Criança”.

Os Estágios e Regras na Prática do Jogo deBolinhas de Gude

Quanto ao estudo das regras do jogo de bolinhasde gude, variação do quadrado (“traça-se no chãoum quadrado, dentro do qual se colocam algumasbolinhas; o jogo consiste em atingi-las de longe efazê-las sair desse quadrado”( Piaget, 1932/1994,p. 5), Piaget chegou à conclusão de que há quatroestágios, do ponto de vista da prática das regras.

1° estágio (até os 2 anos): motor e individual,quando a criança simplesmente manipula asbolinhas para sua própria exploração e utiliza-ascomo objetos diversos para estabelecer algumaritualização, processo de adaptação efetiva.

2° estágio (entre 2 e 5, 6 anos): caracterizado peloegocentrismo infantil. A criança aceita as regrasque recebe do exterior, dos adultos ou dosmeninos mais velhos (no caso do jogo). Consideraas regras sagradas e imutáveis e é completamenteavessa à sua alteração. Há uma característica quedeve ser detalhada: é o fato de haver umadesorganização da memória da criançaaproximadamente até os 7 anos de idade, quandoela crê que sempre soube o que acabou deaprender. Assim, quando Piaget joga com ascrianças, logo que modifica as regras, elas nãoaceitam, para, em seguida, concordar. SegundoPiaget, elas não se apercebem da mudança. Jogamcom os outros, imitando-os. Crêem que estejamem interação com os demais, enquanto jogam sópara si e modificam as regras sem perceber.

3° estágio (entre 7, 8 anos e 11, 12 anos):caracterizado por uma cooperação que começaa surgir; a criança já conhece as regras e já aceitasuas mudanças, desde que o grupo esteja deacordo com elas. No entanto, o que o observador

De Piaget a Gilligan:Retrospectiva do Desenvolvimento Moral em Psicologia. um Caminho para o Estudo das Virtudes

das crianças pôde coletar a respeito é que, naverdade, elas jogam juntas, mas com umainfinidade de regras concomitantes.

4° estágio (11, 12 anos): finalmente, a organizaçãodo pensamento e a autonomia. As crianças jogampelo prazer da disputa, mas procuram interagirquanto às regras, que jamais são fixas e dispõemde possibilidade de mudanças, decididas pelogrupo. Somente a partir destas os procedimentosdo grupo podem ser julgados.

Piaget surpreende-se com a organização que osmeninos desenvolvem para compreender epraticar as regras do jogo, a ponto de assinalar estacomo uma diferença básica entre meninos emeninas.

Ao estudar o pique com o grupo de meninas,percebeu basicamente o mesmo desenvolvimentona estruturação das regras, evoluindo de um estágioegocêntrico, por tomar as regras como imutáveis,ao momento de discutir as regras com o grupo edecidir os procedimentos da situação. Faz a ressalvade que as meninas têm um “espírito jurídico” menosdesenvolvido que os meninos.

À parte qualquer reclamação do gênero feministaque se possa bradar, na verdade, Piaget julgouque todos os brinquedos das meninas eram muitosimples e não possibilitavam as codificações dajurisprudência que construíram os meninos emseu jogo de bolinhas.

Relacionando a questão moral com o estudo dojogo de bolinhas, pôde chegar à conclusão daexistência de três regras:

● regra motora: faz parte da fase pré-verbal,quando a criança ritualiza sua ação sobre osobjetos e os elabora;

● regra coercitiva: caracterizada por ser uma fasena qual a criança compreende as regras comosagradas e imutáveis, porque considera aquele queas informa, o adulto, como superior e inatingível.

● regra racional: em que, quase adolescente, asregras não são mais aceitas como dadas, a menosque atendam às necessidades e/ou desejos dooutro. Podem ser modificadas, desde que haja umadecisão e aceitação grupal.

Provavelmente, partindo das observações de que,principalmente nos 2° e 3° estágios, a criançaverbaliza um juízo, mas comporta-se de outraforma, Piaget questiona a oposição do juízo moralteórico e o juízo moral da experiência.

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Anna E. B. Costa e Angela M. B. Biaggio (1996)procuram, de certa forma, abordar esses aspectoscontraditórios entre o julgamento moral e as açõesmorais de cada indivíduo, colocando a afetividadecomo um tema determinante de atos (a)morais.

Noção de responsabilidade objetiva e subjetiva

Para Piaget, essa noção distingue-se pelo fato deque, em seus julgamentos morais, a criança maisnova aplica uma responsabilidade objetiva, e acriança mais velha aplica uma responsabilidadesubjetiva. A primeira é fruto da coação moral(adulta) e a segunda, fruto da cooperação (entrepares).

A Responsabilidade Objetiva é o Momento emque:

● O indivíduo julga os atos pelas suasconseqüências, e não por sua intenção; quantomaior o resultado, o “estrago” da ação, tanto maisa criança responsabiliza o agente, embora possadistinguir se ele tinha intenção ou não de praticá-lo.

● Prevalece na criança a questão da obediênciaou não às regras estabelecidas pelo adulto: “acriança não dissocia o elemento deresponsabilidade civil, por assim dizer, e o elementopenal”

(Piaget, 1932/1994, p.106). O mais

importante é obedecer aos mais velhos, seragradável e aceita por eles.

● A consciência da regra e da moral, por extensão,dá-se exteriormente ao indivíduo, como que“colada” a ele, mas não dentro, introjetada. Ele“assume” essas regras e se culpa, em sua ausência,por considerar seu estrito dever segui-las, pois sãodadas por um adulto a quem a criança atribuiautoridade (por ser “maior” e prover-lhe asnecessidades).

A responsabilidade subjetiva é o momento em que:

● Descentrada de seu egocentrismo, a criançacomeça a perceber a intencionalidade dos atos.Dá-se conta das conseqüências distintas que asações possuem.

● Surge o sentimento do dever preciso de nãomentir, mas não porque as regras (adultas) sejam“sagradas” e a coação mais forte que a autonomia,mas pela necessidade de cooperação.

● Acontece a relação estreita de interdependênciaentre o desenvolvimento da inteligência psicológicae uma crescente cooperação. Fatos como a mentirae outros atos de enganar são proscritos da relaçãoentre as crianças pela própria necessidade decooperação.

A noção objetiva e a noção subjetiva daresponsabilidade não caracterizam dois estágios, maso segundo é decorrência do primeiro, num processode desenvolvimento do juízo moral, já que a criançase desvencilha da coação adulta e penetra, cada vezmais, na cooperação.

A existência do realismo moral, um verbalismo dojulgamento moral que a criança faz completamentecondicionada à coação (influência da autoridade)adulta, irá dando passagem a um julgamento moralmais autônomo.

Quanto à Noção de Justiça, Piaget Percebeu TrêsTipos:

● justiça retributiva: completamente ligada à idéiade sanção. O ato deve ser corrigido com umapunição correspondente da mesma monta.

● justiça distributiva: ligada à idéia contrária à dasanção. O importante é repor, ao ofendido ouprejudicado, a perda. Levam-se em conta ascondições e intenções.

● justiça imanente: novamente em presença dacoação adulta, a criança acredita haver, na justiçadeclarada por este, algo de sagrado e imutável. Éatribuída à natureza como um todo, inclusive aoadulto, o poder de tudo saber.

Essas três noções de justiça estão presentes nodesenvolvimento do juízo moral da criança ediferenciam-se, hierárquica e cronologicamente,nas crianças mais novas e nas mais velhas, podendoser definidas como as “duas morais”.

As duas morais

Embora o “Juízo Moral na Criança” só viesse a sereditado em 1932, a idéia das “duas morais” dacriança já era divulgada por Piaget em 1930, comono “V Congresso Internacional de EducaçãoMoral”, em Paris, quando falou sobre “OsProcedimentos da Educação Moral”.

A pesquisa de Piaget em “Juízo Moral na Criança”definiu a existência de dois períodos da experiênciado indivíduo com a moralidade.

Inicialmente, o adulto exerce um controle externosobre o juízo moral da criança. São as coisasexteriores, a ordem dada pelo adulto, os exemplosdos mais velhos nas brincadeiras, as cópias, osmodelos, que “obrigam” o indivíduo a selecionarseus comportamentos em face de sua aceitação/participação no grupo. É a moral heterônoma.

À medida que uma série de condições psicológicasse estabelece, como a capacidade de raciocínio

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lógico e reversível, as estruturas do indivíduopossibilitam uma tomada de consciência sobre aforma como as regras são construídas e sobre apossibilidade de mudá-las. É chegada a moralautônoma.

“Cremos que podemos afirmar que existem entreas crianças, senão no geral, duas “morais” (...) Essasduas morais que se combinam entre si mais oumenos intimamente, ao menos em nossassociedades civilizadas, são muito distintas durantea infância e reconciliam-se, mais tarde, no cursoda adolescência” (Piaget, 1930/1996, pp. 03-04).

Por si só, o indivíduo não é capaz dessa tomada deconsciência e também não estabelece normas semum parâmetro. Estas se darão, com segurança, naconvivência entre os indivíduos, na discussão quefazem da validade das normas existentes, do quelevam em conta para estabelecer novas regras.

É devido a esse encadeamento que a moral parasua realização (normativa e factual) depende dacoletividade, e esta, do desenvolvimento dainteligência. “O ato moral, como ato de um sujeitoreal que pertence a uma comunidade humana,historicamente determinada, não pode serqualificado senão em relação com o código moralque nela vigora” (Sánchez Vázquez, 1998, p. 63).

O que leva o indivíduo, inicialmente, a acatar asregras de seu grupo social é a heteronomia, frutoda coação do adulto sobre a criança e dos aspectosexternos sobre os internos.

O desenvolvimento da inteligência dá-lhe umacondição de socialização que, na cooperação,ao discutir a moral de seu grupo, desenvolve certaautonomia, uma consciência, e passa a regular-selivremente (conforme seus motivos).

É a cooperação entre os indivíduos que nos leva aum tipo de regulamentação moral, que colaborapara o progresso moral dos grupos sociais e dosindivíduos e, em seu desenvolvimento, caracteriza-se, entre outras coisas, por um aumento do graude consciência e de liberdade, a tal ponto que oindivíduo, para chegar a isso, precisa do grupo eda cooperação. Se abandonados à heteronomia,ao egocentrismo, os indivíduos jamais chegam àautonomia e a uma consciência de seu papel namoral do seu grupo. “Ora, a crítica nasce dadiscussão, e a discussão só é possível entre iguais:portanto, só a cooperação realizará o que a coaçãointelectual é incapaz de realizar” (Piaget, 1932/1994, pp. 298-299).

O objetivo é que o indivíduo, ao agir moralmente,o faça pela consciência e liberdade; este, sim, seráum “homem moral”, homem, aqui, referenciadopela consciência de sua moralidade.

Para definir a consciência que deve ter umindivíduo para atingir a moralidade plenamente,citaremos Puig (1996): “Portanto, entendemos aconsciência moral como a faculdade de julgar aretidão de juízos ou ações morais. (...) Dizemos,portanto, que um sujeito é autônomo quando écapaz de agir de acordo com sua própria vontade(...) No entanto, isso não impede que se possa agircomo juiz de si mesmo, mas por delegação deuma instância alheia: pode-se usar a consciênciamoral de modo heteronômico” (p. 80).

Obviamente, o desejo a que nos impelem ossentimentos mais dignos de solidariedade é de quetodos atinjam essa autonomia, mas muitosindivíduos comportam-se heteronomamente atémesmo na fase adulta.

O Juízo Moral Segundo LawrenceKohlberg

“Essays on Moral Development” (1981), com suasraízes na experiência de L. Kohlberg, nasce comoteoria em sua tese de doutorado, em 1955.

A teoria kohlberiana é uma busca da definiçãocientífica e filosófica da moralidade, ondequalquer descrição da forma ou modelo deestrutura social é necessariamente dependente deestruturas cognitivas, assim como os afetos e asatitudes dos indivíduos também não podem serdistinguidos dessa estrutura. Os motivos de umaação moral têm também um elemento cognitivoformal.

As descobertas na área da moral, para Kohlberg,estruturam-se em estágios e são construçõestipológicas ideais que delimitam diferençasqualitativas nas organizações psicológicas daevolução do indivíduo, sendo seqüencialmenteprevisíveis em uma escala ordinal.

Kohlberg acreditava que uma parte essencial daestrutura de cada estágio era sua perspectivasociomoral, pois isso confrontava a perspectivacognitivo-evolutiva com a perspectiva dasocialização no desenvolvimento moral.

A estrutura madura e elaborada de sua teoria sãoos três níveis de desenvolvimento sociomoral,divididos em seis estágios :

Nível pré-convencional

● moralidade heterônoma;● individualismo, intenção instrumental e troca;

“Cremos quepodemos afirmarque existem entre ascrianças, senão nogeral, duas “morais”(...) Essas duas moraisque se combinamentre si mais oumenos intimamente,ao menos em nossassociedadescivilizadas, são muitodistintas durante ainfância ereconciliam-se, maistarde, no curso daadolescência”(Piaget, 1930/1996,pp. 03-04).

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Nível convencional

● expectativas interpessoais, mútuas relações e conformidade interpessoal;

● sistema social e consciência;

Nível pós-convencional

● contrato social ou utilidade e direitosIndividuais;

● princípios éticos universais.

Seus estudos apontavam para o fato de que, emtodas as culturas, classes sociais, grupos de sexo esubculturas estudados:

● com a idade, aumenta a discriminação daintencionalidade;

● essa tendência relaciona-se com odesenvolvimento mental da inteligência;

● o desenvolvimento mental, nessas culturas,diferencia-se pela quantidade de estimulaçãocognitiva.

Essas afirmações só se tornaram possíveis porqueos estudos kohlberianos, além de estudostransversais, usando os dilemas morais, tambémimplicaram estudos longitudinais durante 12 anos,com um grupo de 70 sujeitos, entrevistados a cadatrês anos, além dos estudos interculturaisdesenvolvidos em várias partes do mundo por suaequipe, como México, Israel, Turquia, Taiwan,Canadá.

A teoria da moral de Kohlberg é a teoria da justiçamoral. Ao aplicar seus dilemas nas pesquisas,considerava que há, certamente, uma relação entreas perspectivas de nível social e as perspectivas denível moral: “Os estágios do juízo moral sãoestruturas de pensamento sobre a prescrição dasregras e dos princípios que obrigam os indivíduosa agir por formas consideradas moralmentecorretas” (Kohlberg, 1981/1992, p. 571).

Ao descrever os estágios do juízo moral emKohlberg, também iremos detalhar sua análisequanto ao raciocínio da moralidade.

Estágios Morais

Nível pré-convencional

O nível pré-convencional é aquele em que se localizaa maioria das crianças abaixo de 9 anos, alguns

adolescentes e muitos adolescentes e adultosdelinqüentes.

O indivíduo ainda não compreende as regras enormas de seu grupo social e, portanto, não podecolaborar com sua manutenção. As normas eexpectativas sociais são exteriores ao indivíduo.Subdividem-se em:

● Moralidade heterônoma;● Individualismo, intenção instrumental e troca.● Moralidade heterônoma

O ponto de vista egocêntrico do indivíduo nãoconsidera os interesses dos outros, nem reconheceque sejam diferentes dos seus, não relacionando osdois pontos de vista. Considera os fatos pelas suasconseqüências, e não por suas intenções. Evitaromper as normas, não por reconhecê-las, mas paraevitar ser castigado.

Quanto ao raciocínio moral, ocorre um realismomoral ingênuo, ou seja, no significado moral de umaação, a sua qualidade é vista como “boa” ou “má”,inerente e imutável; a aplicação das regras é literal.Não existem, ainda, os conceitos de intenção emerecimento.

Individualismo, Intenção Instrumental e Troca

A perspectiva é individualista e concreta. O sujeitotem consciência de que todos possuem objetivos aalcançar, e isso o leva a um conflito entre o correto eo relativo.

Segue as normas somente quando há um interesseimediato próprio. Cada um deve seguir seus interessese necessidades e deixar que os outros façam o mesmo.O correto é o que é justo, o que é uma troca, umtrato. Procura atender suas próprias necessidadesenquanto convive com o grupo e compreende queos outros também têm seus interesses.

Quanto ao raciocínio moral, com a compreensãode que diferentes pessoas têm diferentes interessespelas mesmas questões, ainda que igualmente válidasna sua reclamação de justiça, passa a desenvolveruma relatividade moral, embora o indivíduo nãotenha meios de solucionar satisfatoriamente oproblema.

Nível moral convencional

É o nível em que se localiza a maioria dosadolescentes e adultos de nossa sociedade e de outras.O termo convencional designa conformidade emanutenção das regras sociais, é baseado naautoridade. Há expectativas ou acordos da sociedade.Nesse nível, o indivíduo identifica-se com as regras eexpectativas dos outros, principalmente dasautoridades. O nível acha-se subdividido em:

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● Expectativas interpessoais mútuas, relações econformidade interpessoal;

● Sistema social e consciência.

● Expectativas interpessoais mútuas, relações econformidade interpessoal

A perspectiva do indivíduo está nos outros à suavolta. Compreende agora que muitos sentimentose expectativas coletivas têm, além dos interessesindividuais, interesses e, às vezes, até preferênciasde partilha com os demais. Embora ainda não hajauma perspectiva generalizada do sistema, já regulaseus pontos de vista através dos pontos de vista dooutro, ou o que se denominou regra de ouro:“Faça aos outros o que você desejaria que lhefizessem

”.

Quanto ao raciocínio moral, as diferentesperspectivas do indivíduo coordenam-se com asperspectivas de terceiros, representadas pelo grupoe pelas normas morais, desde que se suponhasejam compartilhadas entre os seus. Essas normasmorais são discutíveis e transcendentes diante dassituações particulares, como a “intenção”, os“bons” e “maus” motivos.

Sistema Social e Consciência

Nesse ponto, o indivíduo já é capaz de fazerdistinção entre o ponto de vista da sociedade edos acordos ou motivos interpessoais. Assume oponto de vista da sociedade, que define as normase os papéis, e considera as relações individuaisconforme o lugar que ocupam no sistema.

O objetivo desse comportamento é manter ofuncionamento do sistema. Há um imperativo daconsciência para que se cumpram todas asobrigações, assim como para cumprir as regrasacordadas. É correto dedicar-se ao grupo,instituição e sociedade.

Quanto ao raciocínio moral, o indivíduo agoraconsidera-se um membro da sociedade, que sebaseia em um sistema social, o conjunto consistentede códigos e procedimentos, aplicadosimparcialmente a todos os membros. Perseguirinteresses individuais só é legítimo quandobeneficiar todo o grupo e a manutenção do sistemasociomoral.

Nível Pós-Convencional

Nele, localiza-se, somente depois dos 20 anos, umaminoria de adultos.

O indivíduo, baseado em sua própria elaboraçãosobre os princípios morais, sobre as regras e normas

da sociedade, aceita-as e não distingue entre o eue as normas ou expectativas do outro, porque defineseus valores segundo princípios auto-escolhidos.Esse nível subdivide-se em:

● Contrato social ou utilidade e direitosindividuais;

● Princípios éticos universais.

● Contrato social ou utilidade e direitos individuais

A perspectiva do indivíduo já não dá mais tantapreponderância ao social. O individual começa aser consideravelmente respeitado, portanto, nasquestões que envolvem a legalidade e amoralidade, e suas perspectivas são reguladas porcontratos e outros mecanismos formais.

Como continua considerando a razão para agirmoralmente, na obrigação à lei há umapreocupação em compreendê-la: no princípio:“o maior bem para o maior número de pessoas”estão regulados os sentimentos de compromissocontratual ao qual se aderiu espontaneamente.

Quanto ao raciocínio moral, é a ação do agentehumano, moral e racional, que, embora conscientedos direitos universalizantes, considera as leisválidas somente na medida em que preservam eprotegem os direitos humanos fundamentais. O“bem- estar” de todos os membros é o resultadode um contrato social livremente aceito pelosindivíduos.

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Princípios Éticos Universais

Nesse estágio, a que só chega uma minoria depessoas, a natureza da moralidade está assentadano fato de que as pessoas são fins em si mesmas eprecisam ser tratadas como tal. Isso é dado pelacrença de que há princípios morais universais eque os indivíduos estabelecem compromissos comesses princípios.

Busca-se seguir princípios éticos universais, comoa justiça, a igualdade, a dignidade dos sereshumanos; portanto, mesmo os princípios auto-selecionados, leis particulares e acordos sociaisestão baseados nesses princípios. Até mesmoquando as leis são violadas, seguem-se essesprincípios.

Quanto ao raciocínio moral, é uma forma idealque, nas relações entre os seres humanos, devemos indivíduos considerar a si mesmo e aos outrospessoas livres e autônomas, ou seja, respeitarconsideravelmente os interesses e pontos de vistado outro ou de todo aquele que sofreráconseqüências a partir da decisão de uma açãomoral. Governam essa fase a justiça, aimparcialidade e a reversibilidade.

Os múltiplos princípios de justiça, nessa fase,incluem o máximo de qualidade de vida para cadaum, a liberdade compatível entre os indivíduos, aequidade na distribuição de bens e o respeito entre“irmãos e irmãs”.

A universalidade está implícita em toda acaracterística do estágio. É o reconhecimento dosindivíduos enquanto seres humanos e de seusdireitos; pode ser resumido em uma questão: “Eugostaria que alguém, em meu lugar, escolhesse aforma que escolhi?”

O Desenvolvimento do Juízo MoralSegundo Carol Gilligan

As pesquisas de Carol Gilligan, demonstradas nolivro “In a Different Voice”, reúnem os resultadosobtidos com três grupos: 1

º estudantes

universitários; 2º mulheres encaminhadas pelo

serviço de orientação numa clínica de aborto; 3º

estudo sobre direitos e responsabilidades. Osresultados corroboram a chamada “ética docuidado”. Essa obra é a referência teórica queusaremos para defender a idéia da autora.

O primeiro e o terceiro grupo de estudos têmparticipantes homens e mulheres. O primeiro estádesigualmente distribuído entre os sexos porquetrata-se de alunos inscritos num curso de moral epolítica a partir do segundo ano de faculdade. Já o

terceiro grupo se preocupa com essa divisãosistematicamente, pois a amostra total de 144indivíduos está dividida em 11 faixas etárias – entre6 e 60 anos – 8 homens e 8 mulheres em cadafaixa .

A autora justifica sua preocupação em exaustivasrevisões na ausência da voz das mulheres nabibliografia sobre o desenvolvimento psicológicodo ser humano. Freud, Erikson, Kohlberg ,Levinson, Vaillant ou leituras do cinema e teatroda época demonstram-nos o quanto a voz dasmulheres esteve subordinada ao auto-sacrifício enão era ouvida ou respeitada.

Por outro lado, Gilligan traz vários autores quecomeçaram a abrir perspectivas destinadas a tentarperceber que há uma forma diferente de raciocinarpor trás das atitudes das mulheres, como MartinaHorner, Nancy Chodorow e Janet Lever, que ampliaas descobertas de Chodorow, David McClelland,Georgia Sassen (1980) e outros.

Das conclusões dos estudos de Horner com o TAT,Gilligan utilizou o raciocínio e selecionou algumasfiguras que demonstravam situações de realizaçãoe afiliação; realização, a fim de comprovar que omedo manifestado pelas mulheres em situaçõesde competição e de disputas pelo sucesso não serelaciona à sua incapacidade, mas à preocupaçãocom os relacionamentos e sua condição após;afiliação, para demonstrar que os homens, emsituações de intimidade, projetam mais violênciaque as mulheres, vendo na intimidade umaameaça pessoal, uma perda da liberdade.

Refletir e analisar uma ética do cuidado é pensaressa “voz diferente” que se inicia na concepçãode separação, na diferente visão que homens emulheres têm dessa experiência, opondoseparação/conexão. A necessidade de separar-seé apresentada, para o homem, como a condiçãonecessária ao estabelecimento de suamasculinidade, enquanto a identidade femininasó se estabelece na conexão definitiva com a figuramaterna.

Os homens seguem a vida associando aindependência a não estabelecer conexões queos prendam em suas atitudes. A preocupaçãofeminina direciona-se ao cuidado e à preservaçãodos relacionamentos.

“A masculinidade define-se através da separação,enquanto a feminilidade define-se através doapego; a identidade de gênero masculina éameaçada pela intimidade, ao passo que aidentidade de gênero feminina é ameaçada pelaseparação” (Gilligan, 1982).

Vanessa Aparecida Alves de Lima

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Para Gilligan, a “voz diferente” que as mulherespossuem é a voz do “cuidado”, em contraposiçãoà voz da “justiça” presente nos homens. Os estudosde Gilligan demonstram que, nas mulheres, ocaminho do desenvolvimento moral e a evoluçãodo conceito de moralidade são os mesmos.

As mulheres, durante muito tempo de suas vidas,acreditam que o cuidado seja o mais importante.No respeito pelo outro, há sempre a procura de“arrumar” as coisas para que ninguém sejamagoado. Contudo, uma crise vivenciada pelamulher deflagra a necessidade de garantir a própriasobrevivência, de fato ou simbolicamente (pelasobrevivência da personalidade da mulher).

Os sentimentos vividos por ela, nessa fase, são deegoísmo, de estar sendo injusta com aqueles queama. Ela procura, incessantemente, uma soluçãoque contemple os dois lados, para terminar por seconvencer de que essa solução não existe. As partesenvolvidas estão definitivamente afetadas poraquela experiência, seja de que extensão for.Precisa, então, procurar uma solução na qual osprejuízos sejam menores, mas o grande peso ficasobre os resultados que a ação tende a causar nosrelacionamentos. As crises também criam o caráter,colaboram no desenvolvimento daresponsabilidade com uma seqüência coerentede sentimentos e pensamentos.

A crença de que haja uma única verdade, de queo “bom” e o “certo” saltarão à sua percepção,começa a se desanuviar. Ela precisa fazer escolhas,e isso coloca em pauta os relacionamentos e osresultados dessas escolhas.

Claire, uma entrevistada, veterana no grupo deuniversitários, aos 27 anos, define a pessoa moralcomo sendo alguém que, ao agir, “consideraseriamente as conseqüências para todas as pessoasenvolvidas”, ainda que “chegue ao ponto em quepenso que não posso ser boa para ninguém amenos que eu saiba quem sou”.

Considerar seriamente as conseqüências queenvolvem moralmente todos os indivíduos numrelacionamento é considerar mais que os direitose deveres de cada um, é considerar o que se querdar a cada um pela ética do cuidado, dagenerosidade.

No dilema de Heinz1, o direito à justiça sobrepõe-

se, para os homens, ao direito à propriedade. Paraas mulheres, há uma preocupação em observartodos os lados da questão, inclusive ofarmacêutico, onde ele não tem o direito de senegar, e o do marido, que, se for preso, deixará aesposa desamparada.

Sobre Amy, 11 anos, Gilligan nos diz:

“Incapaz de perceber o dilema como umproblema, em si, de lógica moral, ela não discernea estrutura interna da sua solução; (...) vendo omundo constituído de relacionamentos e não depessoas isoladas, um mundo compatível comconexões humanas em vez de um sistema de regras(...), para ela, a solução do dilema consiste emtornar a solução da mulher mais saliente aofarmacêutico” (p. 40).

As mulheres possuem sensibilidade para asnecessidades dos outros, e a crença de que sejamresponsáveis por terceiros leva-as a incluir pontosde vista alheios em seus julgamentos. Por essesmotivos, as mulheres foram definidas como “fracasmoralmente”, confusas e imaturas em seusjulgamentos. Contudo, a sua grande força moral, aforça da ética do cuidado, reside nos mesmosaspectos que foram usados para criticá-las.

Os movimentos feministas pelos direitos dasmulheres, principalmente nas décadas de 60 e 70,fizeram irromper uma crise, para muitas mulheres,semelhante àquela que viveram as universitáriasao se formarem e começarem a disputar seu lugarno mercado de trabalho ou ao terem queconsiderar seriamente a necessidade/possibilidadede um aborto, pela primeira, segunda ou terceiravez.

A defesa dos direitos das mulheres levou-as a pensarem si. A abnegação e o auto-sacrifício não maiseram valorizados pelas feministas e pelos novosdireitos como necessários às suas virtudes.

Ao pensar que poderiam, então, dizer “não” aospais ou maridos, elas inicialmente se viam comoegoístas, tentavam recuperar aquele alto senso decuidado com o outro e justificavam-se por estaremprejudicando ou magoando ao outro mais do quea si próprias.

As mudanças no ponto de vista de uma mulhersobre seus direitos, ou seja, que pode levar emconsideração também as próprias necessidades, enão somente as dos outros, deflagram umdesenvolvimento que pode ser relacionado aosseguintes pontos:

● Percepção da auto-exclusão;

● Ampliação da obrigação de não se prejudicarao ter responsabilidade nos relacionamentos;

● Compreensão dos relacionamentos como umafonte de força moral;

“Incapaz deperceber o dilemacomo um problema,em si, de lógicamoral, ela nãodiscerne a estruturainterna da suasolução; (...) vendo omundo constituído derelacionamentos enão de pessoasisoladas, um mundocompatível comconexões humanasem vez de umsistema de regras (...),para ela, a soluçãodo dilema consisteem tornar a soluçãoda mulher maissaliente aofarmacêutico” (p. 40).

1 O Dilema de Heinz é umdilema clássico e muitoconhecido, que pode serencontrado nas obras deKohlberg e Gilligan aqui citadas.Um resumo mais completo estáno capítulo, com 43 páginas,da dissertação de mestrado quegerou este artigo, que pode serdisponibilizado pela autoraatravés do e-mail“[email protected]”.

De Piaget a Gilligan:Retrospectiva do Desenvolvimento Moral em Psicologia. um Caminho para o Estudo das Virtudes

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● Ampliação do julgamento moral, incluindo ofator da verdade psicológica e tornando-se maistolerante e menos absoluto;

● Egoísmo e auto-sacrifício são, agora, questão deinterpretação.

As considerações sobre esse auto-respeito nãopermitem ao seu agente, a mulher, voltar atrás,abnegar-se. A conclusão é definitiva: cuidar dos

outros é também cuidar de si. Não há uma únicaverdade, e muitas outras modificações se sucedem,descobrindo-se, afinal, que não há uma verdademonolítica. Ocorre a mudança final de perspectiva,através da qual ela não mais se esquiva dasacusações, identificando-se com a voz da primeirapessoa.

No desenvolvimento da moralidade entre homense mulheres, ambos consideram a responsabilidadee os direitos como necessários ao desenvolvimentointegrado do indivíduo. Contudo, homens emulheres justificam essa necessidade de formasmuito diferentes.

Embora as conclusões da autora durante grandeparte do livro dirijam-se somente às mulheres, oúltimo capítulo, “Versões da Maturidade”, lembraaos leitores que essa “voz do cuidado” tambémestá nos homens. O que temos é umapreponderância dessa voz nas mulheres, mas,

conquanto o desenvolvimento da moralidade sejadiferente num e noutro, ela também pode serouvida nos homens.

É por isso que, agora, podemos também ouvirdiferenças nas vozes dos homens, ouvir, ao ladode palavras de autodefinição que sempre forammarca da voz masculina, como: “lógico”,“disciplina”, “razoavelmente inteligente” e“arrogante”, ouvir palavras da voz feminina, como“conciliador”, “compreensivo”, “interessado”,“ardente”.

A teoria gilliginiana preocupa-se, principalmente,em identificar uma ética diferenciada daquela dajustiça de Piaget e Kohlberg, a ética do cuidado,uma concepção de moralidade que centra odesenvolvimento moral em torno da compreensãoda responsabilidade e dos relacionamentos.

Seus estudos em “Uma Voz Diferente” apontampara o fato de haver, nos homens, a preponderânciade uma voz de “justiça” e, nas mulheres, uma vozde “cuidado”. O fundamental é compreender quenão há apenas uma forma de identificar as éticasque coabitam a existência humana. Gilligan,portanto, abre a possibilidade de pensarmos sobreoutras. A virtude da generosidade é uma delas.

Em escritos mais recentes, com sua teoria maisamadurecida, a autora deixa definitivamente claroque as duas orientações estão presentes nos doissexos. Homens e mulheres possuem as duasorientações na resolução dos conflitos morais, tantoa orientação da justiça quanto a orientação docuidado. “Em essência, esta pesquisa sugere queas pessoas compreendem duas lógicas de soluçãodos problemas morais, e que, analiticamente,distinguem as orientações da justiça e do cuidado,apontando diferentes formas de perceber e resolverconflitos.” E, se a orientação de justiça ou cuidadopode ser mais expressiva nos homens ou mulheres,respectivamente, também é fato que ambos “sãocapazes de mudar de orientação considerando oconflito em questão” (Gilligan and Wiggins, 1988,pp. 118-119).

De Piaget para Além de Gilligan:Incluindo a Virtude daGenerosidade nas Teorias doDesenvolvimento Moral

A importância dos estudos de Piaget e Kohlbergnão pode ser negada. Como já descrevemos, “OJuízo Moral na Criança” tornou-se obra dereferência mundial para as pesquisas emmoralidade. O próprio Kohlberg desenvolve suateoria a partir do fundamento piagetiano dedesenvolvimento psicogenético e raciocínio moral.

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Muitos autores declararam a importância da obrade Piaget, e, para não nos estendermos muito,citaremos alguns escritores desta década, comoDe La Taille (1996), Freitag (1997), Araújo (1998),Vilarrassa, Marimón, Herrero e Pavon (1998), entreoutros.

Contudo, a obra piagetiana e kolhberiana émarcada por sua base teórica e seu ponto de vista,a saber, a influência kantiana e a ligação entre odesenvolvimento intelectual e o raciocínio moral.

Esses elementos, como era de se esperar,influenciaram muitas obras de psicologia moral,que se desenvolveu desde então, como reforçamVilarrassa, Marimón e Herrero: “Ambos (...) estãopresentes nos diversos trabalhos que, a partir deuma orientação piagetiana, se tem realizado nessaárea do conhecimento” (1998, p.156).

Enquanto em Piaget e Kohlberg se verifica uma“ética kantiana” (da justiça), na qual os princípiosse organizam hierarquicamente e se relativizamcom a idade, em Gilligan encontra-se a “ética docuidado”, da importância aos relacionamentos eàs conseqüências que as discussões ou açõesmorais possam trazer.

Em Piaget e Kolhberg, vê-se a preocupação com arazão e o conhecimento, em descobrir a lógica(da justiça) para os indivíduos pela desmistificaçãodos processos de raciocínio, em produzirconhecimento e ampliar as possibilidades do serhumano.

As limitações da obra foram apontadas pelopróprio Piaget, que sempre estabeleceu certarelatividade para os estágios do desenvolvimentocognitivo e também para os morais. Descreviacomo fases a heteronomia e a autonomia, e nãoas fechava rigidamente como estágios. Pode-seconsiderar que Kohlberg tenha regredido, nesseaspecto da teoria piagetiana. Apesar das reservasde Piaget, L. Kohlberg, seu primeiro continuadorno campo do pensamento moral, “propõe-sejustamente a estabelecer estágios morais claramentedelimitados e a analisar suas relações com osestádios do desenvolvimento intelectual” (Vilarrassaet. al., 1998, p.157).

Por outro lado, o próprio Kohlberg reconhece que,“se o desenvolvimento lógico é uma condiçãonecessária do desenvolvimento moral, não é umacondição suficiente”, deixando antever caminhosque Gilligan e outros, como R. L. Selman e E. Turiel,trilharam.

Gilligan não deixa dúvidas na relação das virtudescom a razão e o conhecimento, na medida emque nos leva a descobrir uma forma de raciocínio

que não tinha sido ainda discutida, ao sensibilizaras pessoas para a “ética do cuidado”.

Logicamente, na “ética do cuidado”, está oexercício de muitas virtudes, certamente a doamor, mas também a da tolerância, compaixão,fidelidade, temperança, e sem dúvida, a dagenerosidade.

Gilligan, definitivamente, considera importante agenerosidade como elemento da ética do cuidado:“a consciência de múltiplas verdades leva a umarelativização da igualdade no sentido da eqüidadee enseja uma ética da generosidade e do cuidado”(Gilligan, 1982, p.178). Cuidar do outro quasesempre nos convoca a dar mais do que lhe é dedireito, portanto, a sermos generosos.

No questionamento de obras bem fundamentadas,como a de Piaget e Kohlberg, foi possível pensarmuitas alternativas práticas. Assim, cada vez mais,as recentes obras na linha da moralidade têm-sequestionado quanto ao distanciamento que háentre um juízo moral expresso por um indivíduo esua ação (moral). Esse questionamento levou ospesquisadores a indicar outros elementos queintervêm no ato moral, em contraposição com oque expressa nos dilemas quanto aos seus juízos.

Em Puig (1996/1998), encontramos a valorizaçãoda autonomia, como em Piaget, mas também umagrande valorização da cultura em que está inseridoo indivíduo. A autonomia se dá pela consciênciamoral deste, que pode ser condicionada pormuitos fatores (sociais, é claro), mas que não podeser determinada por eles.

“só nos cabe uma alternativa: entendê-la (a moral)como uma tarefa de construção ou reconstruçãopessoal e coletiva de formas morais valiosas (...) amoral exige um trabalho de elaboração pessoal,social, cultural (...) é uma tarefa de cunho social,que conta também com precedentes e elementosculturais de valor que contribuem, sem dúvida,para configurar seus resultados” (p. 73).

A crítica de Puig (1998) aos modelos até entãoestudados dirigem-se à sua limitação como “sistemade formação moral democrática”, e a maispremente delas, certamente, refere-se à “dificuldadepara acomodar elementos da personalidade moral,tais como os sentimentos e as emoções” (p. 72).

As relações afetivas, apontadas por Biaggio (1996),a vergonha, apontada por Araújo (1998), aafetividade, humilhação, honra e vergonha,apontadas por De La Taille (1991, 1992, 1996),são alguns exemplos de autores de fácil acesso naliteratura acadêmica brasileira que declaram haveroutros fatores implicados na formação de um

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sujeito moral. Já que a moralidade de um indivíduonão é suficiente para seu juízo moral, é necessárioobservar suas ações.

“A nosso modo de ver, convém introduzir nastécnicas experimentais e, no enfoque teórico,modificações que, de um lado, permitamaprofundar a análise das relações entre o juízomoral e os contextos sociais e interpessoaisimplicados nos conflitos e que, por outro lado,permitam analisar e explicar como as pessoas vãodiscernindo, desenvolvendo e coordenandoaspectos que, no princípio, ou não haviamconsiderado ou os mantinham indissociados deoutros a que conferiam maior significação”(Vilarrassa et. al., 1998, p.159).

As pesquisas indicam que ligações afetivas como aamizade, o parentesco, a exposição de suaintimidade e o sentimento de vergonha sejamfatores de grande importância na determinaçãoda moralidade, inclusive na diferenciação entre ojuízo moral expresso e a ação correspondenterealizada em determinadas condições.

Outro fator fundamental é considerar onde selocaliza tal disposição para a moralidade em cadaindivíduo. Na formação da personalidade, umindivíduo pode, conforme sua vivência, ter comocentral em sua personalidade valores nãoexatamente considerados morais, e aqueles, osvalores morais, podem ser periféricos.

Essa proposição explica muitos questionamentosque nos fazemos acerca do porquê agirem dessaou daquela forma determinados indivíduos.Comportamentos (morais) que são inquestionáveispara um determinado indivíduo podem não fazer

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parte dos conteúdos mais valorizados por outros.Enquanto honestidade, fidelidade, honra e outrosvalores podem estar no centro da personalidadede alguns indivíduos, em outros pode estar anecessidade de sentir-se superior aos demais, deter tudo para si, do consumismo a qualquer preço.Essa inversão de valores considerada por umindivíduo tem causas, é claro, no tipo de grupocom o qual ele está convivendo.

De Freud a Piaget até os dias de hoje, nenhumautor desconsiderou a importância que tem aautovalorização a partir do outro (comoreferencial). A aprovação e aceitação docomportamento do indivíduo por seus pares éfundamental desde a infância.

Procuramos fundamentar, a partir de Piaget,Kolhberg e Gilligan, os pressupostos em evoluçãoda teoria sobre a moralidade, e, para reafirmar atendência das pesquisas nessa perspectiva,encerramos com as observações de Campbell eChristopher (1996), que ampliam criticamente osaspectos a serem abordados pelo desenvolvimentomoral. Para além do domínio da justiça, em Piagete Kohlberg, para além da ética do cuidado, emGilligan, imprimem uma preocupação com osobjetivos e todos os desdobramentos dos valoresdos indivíduos, expandindo sua preocupação dosvalores em geral para os valores auto-referenciados.

Sobre os valores “que são tradicionalmenteconsiderados virtudes — dignidade, coragem,integridade, bondade, justiça (...), produtividade,honra, prudência (...), todos têm um aspecto auto-referencial” (Campbell e Christopher, 1996, p. 38).E, nessa perspectiva, não tememos incluir aGenerosidade.

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Referências

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