entendimento humano david hume

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Investigação Acerca do Entedimento Humano David Hume Tradução: Anoar Aiex Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia) Homepage do grupo: http://br.egroups.com/group/acropolis/

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Investigao Acerca do Entedimento Humano

David Hume

Traduo: Anoar Aiex

Crditos da digitalizao: Membros do grupo de discusso Acrpolis (Filosofia)

Homepage do grupo: http://br.egroups.com/group/acropolis/SEO I

DAS DIFERENTES CLASSES DE FILOSOFIA1A FILOSOFIA MORAL, ou cincia da natureza humana2, pode ser tratada de duas maneiras diferentes; cada uma delas tem seu mrito peculiar e pode contribuir para o entretenimento, instruo e reforma da humanidade. A primeira considera o homem como nascido principalmente para a ao; como influenciado em suas avaliaes pelo gosto e pelo sentimento; perseguindo um objeto e evitando outro, segundo o valor que esses objetos parecem possuir e de acordo com a luz sob a qual eles prprios se apresentam. Como se admite que a virtude o mais valioso dos objetos, os filsofos desta classe pintam-na com as mais agradveis cores e, valendo-se da poesia e da eloquncia, discorrem acerca do assunto de maneira fcil e clara: o mais adequado para agradar a imaginao e cativar as inclinaes. Escolhem, na vida cotidiana, as observaes e exemplos mais notveis, colocam os caracteres opostos num contraste adequado e, atraindo-nos para os caminhos da virtude com vises de glria e de felicidade, dirigem nossos passos nestes caminhos com os mais sadios preceitos e os mais ilustres exemplos. Fazem-nos sentir a diferena entre o vcio e a virtude; excitam e regulam nossos sentimentos; e se eles podem dirigir nossos coraes para o amor da probidade e da verdadeira honra, pensam que atingiram plenamente o fim de todos os seus esforos.

Os filsofos da outra classe consideram o homem mais um ser racional que um ser ativo, e procuram formar seu entendimento em lugar de melhorar-lhe os costumes. Consideram a natureza humana objeto de especulao e examinam-na com rigoroso cuidado a fim de encontrar os princpios que regulam nosso entendimento, excitam nossos sentimentos e fazem-nos aprovar ou censurar qualquer objeto particular, ao ou conduta. Julgam uma desgraa para toda a literatura que a filosofia no tenha estabelecido, alm da controvrsia, o fundamento da moral, do raciocnio e da crtica; e que sempre tenha que falar da verdade e da falsidade, do vcio e da virtude, da beleza e da fealdade, sem ser capaz de determinar a fonte destas distines. Enquanto tentam realizar esta rdua tarefa, nenhuma dificuldade os desencoraja; passam de casos particulares para princpios gerais, e conduzem ainda mais suas investigaes para princpios mais gerais, e no ficam satisfeitos at chegar queles princpios primitivos que, em toda cincia, devem limitar toda curiosidade humana. Embora suas especulaes paream abstratas e mesmo ininteligveis aos leitores comuns, aspiram aprovao dos eruditos e dos sbios e consideram-se suficientemente compensados pelo esforo de toda a existncia se puderem descobrir algumas verdades ocultas que possam contribuir para o esclarecimento da posteridade.

Certamente, a filosofia fcil e dada ter sempre preferncia, para a maioria dos homens, sobre a filosofia exata e abstrusa; e por muitos ser recomendada, no apenas como a mais agradvel, mas tambm como mais til do que a outra. Ela penetra mais na vida cotidiana, molda o corao e os afetos, e ao atingir os princpios que impulsionam os homens, reforma-lhes a conduta e aproxima-os mais do modelo de perfeio que ela descreve. Ao contrrio, a filosofia abstrusa, alicerada numa concepo que no pode penetrar na vida prtica e na ao, desvanece quando o filsofo sai da sombra e penetra no dia claro, nem seus princpios podem manter facilmente qualquer influncia sobre nossa conduta e nossos costumes. Os sentimentos de nosso corao, a perturbao de nossas paixes e a impetuosidade de nossas emoes, dissipam todas as suas concluses e reduzem o filsofo profundo a um simples plebeu.

preciso tambm reconhecer que a filosofia fcil adquiriu a mais durvel como tambm a mais justa fama, e que os raciocinadores abstratos tm apenas, at aqui, gozado de uma reputao momentnea, nascida do capricho ou da ignorncia de sua prpria poca, mas eles no tm sido capazes de manter sua fama ante o juzo eqitativo da posteridade. Um filsofo profundo pode facilmente cometer um erro em seus raciocnios sutis, e um erro necessariamente gerado de um outro, visto que ele o desenvolve at suas conseqncias e no dissuadido em adotar uma concluso de aspecto incomum ou por ser contrria opinio popular. Mas um filsofo que apenas se prope representar o sentimento comum da humanidade nas cores mais belas e mais agradveis, se por acidente cai em erro, recorre novamente ao senso comum e aos sentimentos naturais do esprito e assim volta ao caminho certo e se protege de iluses perigosas. A fama de Ccero floresce no presente, mas a de Aristteles est completamente decadente. La Bruyre ultrapassou os mares e ainda mantm sua reputao; todavia, a glria de Malebranche est limitada sua prpria nao e sua prpria poca. Addison, talvez, ser lido com prazer quando Locke estiver completamente esquecido.3O mero filsofo geralmente uma personalidade pouco admissvel no mundo, pois supe-se que ele em nada contribui para o benefcio ou para o prazer da sociedade, porquanto vive distante de toda comunicao com os homens e envolto em princpios e noes igualmente distantes de sua compreenso. Por outro lado, o mero ignorante ainda mais desprezado, pois no h sinal mais seguro de um esprito grosseiro, numa poca e uma nao em que as cincias florescem, do que permanecer inteiramente destitudo de toda espcie de gosto por estes nobres entretenimentos. Supe-se que o carter mais perfeito se encontra entre estes dois extremos: conserva igual capacidade e gosto para os livros, para a sociedade e para os negcios; mantm na conversao discernimento e delicadeza que nascem da cultura literria; nos negcios, a probidade e a exatido que resultam naturalmente de uma filosofia conveniente. Para difundir e cultivar um carter to aperfeioado, nada pode ser mais til do que as composies de estilo e modalidade fceis, que no se afastam em demasia da vida, que no requerem, para ser compreendidas, profunda aplicao ou retraimento e que devolvem o estudante para o meio de homens plenos de nobres sentimentos e de sbios preceitos, aplicveis em qualquer situao da vida humana. Por meio de tais composies, a virtude toma-se amvel, a cincia agradvel, a companhia instrutiva e a solido um divertimento.

O homem um ser racional e, como tal, recebe da cincia sua adequada nutrio e alimento. Mas os limites do entendimento humano so to estreitos que pouca satisfao se pode esperar neste particular, tanto pela extenso como pela segurana de suas aquisies.

O homem um ser socivel do mesmo modo que racional. No entanto, nem sempre pode usufruir de uma companhia agradvel e divertida ou conservar o gosto adequado para ela. O homem tambm um ser ativo, e esta tendncia, bem como as vrias necessidades da vida humana, o submete necessariamente aos negcios e s ocupaes; todavia, o esprito precisa de algum repouso, j que no pode manter sempre sua inclinao para o cuidado e o trabalho. Parece, pois, que a Natureza indicou um gnero misto de vida como o mais apropriado raa humana, e que ela secretamente advertiu aos homens de no permitirem a nenhuma destas tendncias arrast-los em demasia, de tal modo que os torne incapazes para outras ocupaes e entretenimentos. Tolero vossa paixo pela cincia, diz ela, mas fazei com que vossa cincia seja humana de tal modo que possa ter uma relao direta com a ao e a sociedade. Probo-vos o pensamento abstruso e as pesquisas profundas; punir-vos-ei severamente pela melancolia que eles introduzem, pela incerteza sem fim na qual vos envolvem e pela fria recepo que vossos supostos descobrimentos encontraro quando comunicados. Sede um filsofo, mas, no meio de toda vossa filosofia, sede sempre um homem.4Se, em geral, os homens se contentassem em preferir a filosofia fcil abstrata e profunda, sem censurar ou desprezar a ltima, no seria, talvez, inadequado, concordar com esta opinio geral e permitir a cada homem o direito de desfrutar livremente de seu prprio gosto e sentimento. Mas, como a questo , freqentemente, levada mais longe, at a completa rejeio de todo raciocnio profundo, ou o que geralmente denominado de metafsica, passaremos a examinar o que se pode considerar razovel pleitear em seu favor.

Podemos comear observando que uma vantagem considervel que resulta da filosofia abstrata e exata consiste em sua utilidade para a filosofia fcil e humana, a qual, sem a primeira, nunca poderia alcanar um grau suficiente de exatido em suas opinies, preceitos ou raciocnios. As belas-letras no so outra coisa seno pinturas da vida humana em diversas atitudes e situaes, que nos infundem diferentes sentimentos de louvor ou de censura, de admirao ou de zombaria, de acordo com as qualidades dos objetos que elas colocam diante de ns. Um artista estar mais bem qualificado para triunfar em seu empreendimento se possui, alm de gosto delicado e de rpida compreenso, um conhecimento exato da estrutura interna do corpo, das operaes do entendimento, do funcionamento das paixes e das diversas espcies de sentimentos que distinguem o vcio e a virtude. Por mais rdua que possa parecer esta pesquisa ou investigao interna, ela se toma, em certa medida, indispensvel queles que quiserem descrever com sucesso as aparncias exteriores e patentes da vida e dos costumes. O anatomista apresenta aos olhos os objetos mais hediondos e desagradveis, porm sua cincia til ao pintor, quando desenha at mesmo uma Vnus ou uma Helena. Enquanto o pintor emprega as cores mais ricas de sua arte e d s suas figuras o aspecto mais gracioso e o mais atraente, deve ainda dirigir sua ateno para a estrutura interna do corpo humano: a posio dos msculos, o sistema sseo e a forma e funo de cada parte ou rgo. A exatido e, em todos os casos, vantajosa beleza, e o raciocnio justo ao sentimento delicado. Em vo exaltaramos uma desvalorizando a outra.

Alm disso, podemos observar em todas as artes ou profisses, mesmo as que mais se relacionam com a vida ou com a ao, que um esprito de exatido, por qualquer meio adquirido, as conduz mais perto da perfeio e as torna mais teis aos interesses da sociedade. Embora um filsofo possa viver longe dos negcios, o esprito da filosofia, se cuidadosamente cultivado por alguns, difunde-se gradualmente atravs de toda a sociedade e confere a todas as artes e profisses semelhante correo. O poltico adquirir maior previso e sutileza na diviso e no equilbrio do poder, o advogado, mais mtodo e princpios mais sutis em seus raciocnios, o general, mais regularidade em sua disciplina, mais cautela em seus planos e em suas manobras. A maior estabilidade dos governos modernos sobre os antigos e a exatido da filosofia moderna tm melhorado, e provavelmente melhoraro ainda mais, por gradaes semelhantes.

Se no houvesse nenhuma vantagem a ser colhida destes estudos alm da satisfao de uma curiosidade ingnua, mesmo assim este resultado no devia ser desprezado, pois ele se acrescenta aos poucos prazeres seguros e inofensivos que so conferidos raa humana. O caminho da vida, o mais agradvel e o mais inofensivo, passa pelas avenidas da cincia e do saber; e, quem quer que possa remover quaisquer obstculos desta via ou abrir uma nova perspectiva, deve ser considerado um benfeitor da humanidade. Embora estas pesquisas possam parecer rduas e fatigantes, ocorre aqui como com certos espritos ou com certos corpos que, por estarem dotados de grande vitalidade, necessitam de exerccios severos e colhem prazer daquilo que, para a maioria dos homens, parece penoso e laborioso. A obscuridade , de fato, penosa tanto para o esprito como para os olhos; todavia, trazer luz da obscuridade, por mais trabalhoso que seja, deve ser agradvel e regozijador.

Mas, objeta-se, a obscuridade da filosofia profunda e abstrata no apenas penosa e fatigante, como tambm uma fonte inevitvel de incerteza e de erro. Na verdade, esta a objeo mais justa e mais plausvel contra uma parte considervel da metafsica, que no constitui propriamente uma cincia, mas nasce tanto pelos esforos estreis da vaidade humana que queria penetrar em recintos completamente inacessveis ao entendimento humano, como pelos artifcios das supersties populares que, incapazes de se defenderem lealmente, constrem estas saras emaranhadas para cobrir e proteger suas fraquezas. Perseguidos em campo aberto, estes salteadores correm para a floresta e pem-se de emboscada para surpreender toda avenida desguarnecida do esprito, a fim de domin-lo com temores e preconceitos religiosos. O antagonista mais valente subjugado se, por um momento, suspende sua guarda. Muitos por covardia e tolice abrem os portes para os inimigos e voluntariamente os recebem com reverncia e submisso como se fossem seus soberanos legtimos.

Mas esta uma razo suficiente para que os filsofos desistam de tais pesquisas e deixem a superstio para sempre em posse de seu refgio? No mais conveniente tirar uma concluso contrria e perceber a necessidade de conduzir a guerra no mais secreto abrigo do inimigo? Em vo esperamos que os homens, em virtude de freqentes decepes, abandonem finalmente estas cincias etreas e descubram o verdadeiro campo da razo humana. De fato, alm de muitas pessoas empenharem-se sensatamente em sempre repetir semelhantes ponderaes, alm disso, digo eu, nas cincias nunca h razo para desesperar; embora os esforos anteriores tenham fracassado, h ainda esperana de que a diligncia, a boa sorte ou a sagacidade aperfeioada de geraes sucessivas possam alcanar descobertas desconhecidas das pocas anteriores. Todo esprito aventureiro se lanar para a conquista do difcil prmio e se ver mais estimulado do que desencorajado pelas falhas de seus predecessores, porquanto espera que a glria de terminar uma aventura to difcil lhe reservada. O nico mtodo para libertar de vez o saber destas questes abstrusas consiste em examinar seriamente a natureza do entendimento humano e mostrar, por meio de uma anlise exata de suas faculdades e capacidades, que ela no , de nenhuma maneira, adequada a assuntos to remotos e abstrusos. Devemos submeter-nos a esta fadiga a fim de viver tranqilos todo o resto do tempo, e devemos cultivar a verdadeira metafsica com cuidado para destruir a metafsica falsa e adulterada. A indolncia que, para algumas pessoas, oferece proteo contra esta filosofia enganadora para outras superada pela curiosidade; e o desespero que em alguns momentos prevalece pode ser seguido de grandes esperanas e de expectativas otimistas. O raciocnio exato e justo o nico remdio universal adequado a todas as pessoas e aptides, o nico capaz de destruir a filosofia abstrusa e o jargo metafsico que, mesclados com a superstio popular, se tomam, por assim dizer, impenetrveis aos pensadores descuidados e se afiguram como cincia e sabedoria.5Alm das vantagens de rejeitar, aps a investigao deliberada, o aspecto mais incerto e desagradvel do conhecimento, h muitas vantagens que resultam de uma inquirio exata dos poderes e das faculdades da natureza humana. curioso que as operaes do esprito, no obstante mais intimamente ligadas a ns, surjam envoltas em obscuridade todas as vezes que se tornam objeto da reflexo e a viso incapaz de discernir com facilidade as linhas e os limites que as separam e as distinguem. Os objetos so muito tnues para permanecer por muito tempo sob o mesmo aspecto ou situao e devem ser apreendidos num instante, por uma perspiccia superior recebida da natureza e desenvolvida pelo hbito e pela reflexo. Deste modo, apenas conhecer as diferentes operaes do esprito, sua separao, sua classificao em categorias apropriadas e a correo da aparente desordem em que se encontram constituem uma parte considervel da cincia, quando elas so tomadas como objeto da reflexo e da pesquisa. Esta tarefa de organizao e de distino, que no tem mrito quando feita em relao aos corpos externos que so os objetos de nossos sentidos, aumenta de valor quando se dirige s operaes do esprito, em proporo dificuldade e ao esforo que encontramos ao realiz-la. Se no pudermos ir alm desta geografia mental ou do delineamento das distintas partes e faculdades do esprito, ao menos ser satisfatrio chegar at l; por mais evidente que possa parecer esta cincia e de nenhum modo o mais desprezvel ainda deve ser considerada sua ignorncia por todos aqueles que pretendem alcanar o saber e a filosofia.

Nenhuma dvida pode subsistir de que esta cincia incerta e quimrica, a no ser que nos nutramos de um tal ceticismo que destrua inteiramente toda especulao e mesmo toda ao. No h dvidas de que o esprito est dotado de diversos poderes e faculdades, que esses poderes so distintos uns dos outros, que o que realmente diferente de imediato para a percepo pode ser discernido pela reflexo e, por conseguinte, em todas as proposies que se referem a este tema h uma verdade e uma falsidade que no esto fora do alcance do entendimento humano. H muitas distines evidentes deste gnero, como aquelas entre a vontade e o entendimento, a imaginao e as paixes, que podem ser compreendidas por toda criatura humana. As distines mais sutis e mais filosficas no so menos reais e certas, embora mais difceis de ser compreendidas. Alguns exemplos, especialmente recentes, de xitos obtidos nestas investigaes podem dar-nos uma noo mais justa da certeza e da solidez deste ramo do saber. Ora, estimaremos valioso o esforo de um filsofo que nos d um verdadeiro sistema dos planetas e estabelece a posio e a ordem daqueles corpos remotos, enquanto afetamos desdenhar aqueles que, com igual xito, determinam as partes do esprito que nos dizem respeito to de perto?6Mas no podemos esperar que a filosofia, se cuidadosamente cultivada e encorajada pela ateno do pblico, possa levar suas indagaes ainda mais longe e descubra, pelo menos em parte, as fontes e os princpios secretos que impulsionam o esprito humano em suas operaes? Os astrnomos contentaram-se durante muito tempo em provar, a partir dos fenmenos, o movimento verdadeiro, a ordem e a grandeza dos corpos celestes at que surgiu um filsofo7 que, mediante um feliz raciocnio, parece haver determinado tambm as leis e foras que dirigem e governam as revolues dos planetas. E no h razo para temer que no tenhamos o mesmo xito em nossas investigaes acerca da organizao e das faculdades mentais, se realizadas com o mesmo talento e cautela. E provvel que uma operao e um princpio do esprito dependam de uma outra operao e de um outro princpio que, por seu turno, possam reduzir-se a uma outra operao e a um outro princpio mais geral e mais universal. E ser-nos- muito difcil determinar exatamente at onde possvel levar nossas investigaes, antes e mesmo depois de um cuidadoso exame. verdade que tentativas deste tipo so feitas todos os dias, mesmo por aqueles que filosofam de maneira mais negligente. E nada pode ser mais necessrio que ingressar no empreendimento com o mximo cuidado e ateno, de modo que, se est ao alcance do entendimento humano, pode ser levado a cabo com felicidade, e, se no est, pode ser rejeitado com alguma confiana e segurana. Esta ltima concluso, certamente, no desejvel e no se deveria aceit-la com muita precipitao. Porque, se assim fosse, em quanto deveramos diminuir a beleza e o valor desta classe de filosofia? At agora, os moralistas esto habituados, quando consideram a multiplicidade e a diversidade das aes que despertam nossa aprovao ou nossa repulsa, a procurar um princpio comum do qual poderia depender esta variedade de opinies. E, embora tenham s vezes levado o assunto demasiado longe devido sua paixo por algum princpio geral, preciso reconhecer que, sem dvida, so desculpveis quando esperam encontrar alguns princpios gerais, aos quais com justia se poderiam reduzir todos os vcios e virtudes. Anlogos tm sido os esforos dos crticos, dos lgicos e mesmo dos polticos; nem tm sido suas tentativas completamente malogradas, embora com o correr do tempo, com maior exatido e aplicao mais zelosa, possam aproximar ainda mais essas cincias de sua perfeio. Renunciar de imediato a todas as pretenses desse tipo pode ser justamente julgado uma conduta mais impetuosa, mais precipitada e mais dogmtica do que a mais confiante e a mais afirmativa das filosofias, que jamais tentou impor aos homens seus preceitos e princpios incompletos.

Que importa se estes raciocnios sobre a natureza humana paream abstratos e de difcil compreenso? Isto no nos induz a nenhuma pressuposio acerca de sua falsidade. Pelo contrrio, parece impossvel que o que at agora tem escapado a tantos sbios e profundos filsofos seja muito fcil e evidente. Sejam quais forem os sofrimentos que estas pesquisas possam custar-nos, podemos considerar-nos suficientemente recompensados, no apenas em matria de utilidade mas por puro prazer, se pudermos assim aumentar nosso acervo de conhecimento acerca de assuntos de to indiscutivel importncia.

Mas como, finalmente, o carter abstrato destas especulaes no as recomendam mas lhes so desvantajosas, e como esta dificuldade pode talvez superar-se com engenho e arte, por evitar todo pormenor desnecessrio, ns temos tentado, na investigao que segue, lanar alguma luz sobre temas a propsito dos quais se tm mostrado os sbios, at agora, desanimados pela incerteza, e os ignorantes, pela obscuridade. Ficaramos felizes se pudssemos unir as fronteiras das diferentes correntes de filosofia, reconciliando a investigao profunda com a clareza e a verdade com a originalidade. E mais felizes ainda se, raciocinando desta maneira fcil, pudssemos destruir os fundamentos da filosofia abstrusa, que at agora apenas parece haver servido de refgio superstio e de abrigo ao erro e ao absurdo.

NOTAS:

1Nesta seo, Hume apresenta os principais objetivos desta Investigao. Por este motivo, ela corresponde, como muito bem observa Flew, parte introdutria do Tratado, em que Hume mostra que a discrepncia existente entre filosofia e cincia decorre do fato de elas no se fundamentarem em base comum. A seguir, revela que o caminho mais indicado para solucionar o problema consiste em principiar estudando a cincia do homem, j que todas as cincias tm uma relao, maior ou menor, com a natureza humana.

A. Flew, Humes Philosophy of Belief, Routlege & Kegan Paul, Londres, 1961, pp. 1-7.

2Ao identificar sua filosofia com a filosofia moral, ou cincia da natureza humana, Hume est indicando que o termo filosofia, como era entendido no sculo XVIII, tinha um amplo significado.

3Nas edies K e L, aparecia a seguinte nota: No se intenciona de nenhum modo depreciar o mrito de Locke, que foi realmente um grande filsofo, pois raciocina com correo e modstia. Pretende-se apenas mostrar o destino comum deste gnero de filosofia abstrata.

4A filosofia fcil considera seu tema adequado as aes humanas (ela visualiza o homem como nascido para a ao), e tem como fim inculcar a virtude. Seu mtodo consiste no uso de exemplos que permitem inculcar a virtude. A filosofia difcil considera seu tema apropriado as especulaes metafsicas acerca da natureza (isto , das essncias ocultas) do homem e do mundo externo, pois o homem considerado um ser racional que pode desvendar a natureza das coisas. Seu fim a verdade absoluta acerca desta natureza imutvel. Seu mtodo a instruo ou a apreenso do conhecimento atravs de uma longa cadeia de raciocnios. Uma filosofia adequada, sustenta Hume, deve combinar o tema, o mtodo e o fim dessas duas classes de filosofia, pois a dualidade da natureza humana parece ser um dos principais objetivos da Investigao. Desta maneira, o tema adequado o entendimento humano em suas operaes racionais e volitivas, j que o entendimento humano pode ser entendido como aquilo que capaz de conhecer-se a si mesmo como centro do pensamento e da ao. O fim adequado diz respeito a um contnuo desenvolvimento reflexivo de nossa compreenso do entendimento humano e de suas operaes (veja-se seo III). E o mtodo apropriado aquele que possibilita esta continua auto-reformao (veja-se seo II, nota 11). E assim que o entendimento humano chega a descobrir o que pode ser conhecido e o que pode ser feito, ou melhor, o objeto apropriado sobre o qual o entendimento humano pode e deve operar e os princpios adequados que devem conduzir os homens aos atos corretos. (R. Sternfeld, The Unity of Humes Enquiry concerning Human Understanding, The Review of Metaphysics, vol. III, 2, Dez., 1949, n. 10 pp. 167-188) [N. do T.].

5A nfase dada por Hume aos problemas da natureza e limites do entendimento humano reflete projeto semelhante ao de Locke, que no An Essay concerning the Human linderstanding, relata que seu livro nasceu quando ele, com mais cinco ou seis amigos, discorria sobre um tpico bem remoto deste (isto , Essay): ficamos logo inertes, pelas dificuldades advindas de todas as partes. Depois de algum tempo de hesitao, sem nenhuma soluo vivel acerca das dvidas que nos haviam deixado perplexos, conaiderei que havamos iniciado pelo caminho errado e que, antes de nos empenharmos em investigaes desta natureza, devemos examinar nossas prprias habilidades para averiguar com quais objetos nossos entendimentos podem, ou no, tratar adequadamente (edio Frazer, Great Books, chicago, 1952, p. 87). E preciso, todavia, observar que o texto de Hume deixa bem clara a inteno de empregar o mesmo descobrimento de maneira bem mais agressiva e mais categrica do que foi utilizado por Locke [N. do T.].

6Nas edies K e L havia a seguinte nota: Esta faculdade que nos permite discernir o verdadeiro do falso e aquela que nos faz perceber a diferena entre o vcio e a virtude tm sido por muito tempo confundidas uma com a outra. Supunha-se, deste modo, que toda temtica moral estivesse construda sobre relaes eternas e imutveis, as quais, observadas por qualquer esprito inteligente, eram consideradas to invariveis como qualquer proposio acerca da quantidade e do nmero. H pouco tempo um filsofo [Francis Hutcheson, citado em nota de rodap] esclareceu-nos, mediante os mais convincentes argumentos, que a moral no nada quando encarada do ponto de vista abstrato, sendo completamente relativa ao sentimento ou ao gosto de cada ser particular; do mesmo modo que as diferenas entre doce e amargo, quente e frio nascem do sentimento derivado de cada sentido ou de cada rgo. Convm, portanto, classificar as percepes morais, no com as operaes do entendimento, mas com os gostos ou sentimentos. Os filsofos tinham o habito de dividir todas as paixes do esprito em duas classes, as egostas e as altrustas, e supunham que elas estivessem em constante oposio e contradio. Pensavam, ainda, que as ltimas jamais pudessem abarcar seu objeto apropriado sem referncia s primeiras. Entre as paixes egostas classificavam a avareza, a ambio e o esprito de vingana; entre as altrustas a afeio natural, a amizade e o esprito pblico. Os filsofos j podem averiguar [vejam-se os Sermes de Butler] a inexatido desta classificao. Ficou provado, de modo indubitvel, que mesmo as paixes geralmente julgadas egostas extravasam o prprio esprito na direo do objeto; que, embora a satisfao destas paixes nos d prazer, sua antecipao no , todavia, a causa da paixo; ao contrrio, a paixo precede o prazer e sem a primeira o ltimo jamais teria podido existir; que esta precisamente a situao das paixes denominadas altrustas e que, por conseguinte, um homem no est mais interessado quando aspira sua prpria glria do que quando a felicidade de seu amigo o objeto de seus desejos; que ele no est mais desinteressado quando sacrifica sua tranquilidade e seu repouso ao bem pblico do que quando trabalha para satisfazer sua avareza ou ambio. Eis, portanto. um ajuste considervel entre as fronteiras das paixes, que tm sido confundidas pela negligncia ou inexatido dos filsofos precedentes. Estes dois exemplos podem servir para nos mostrar a natureza e a importncia desta classe de filosofia. E provvel que Hume excluiu esta nota por consider-la suprflua depois da publicao de sua An Enquiry concerning the Principies of Morais, em 1751. Parece-nos, todavia, que ela pode esclarecer, especialmente pela meno de Hutcheson, o projeto humiano. A influncia de Hutcheson sobre Hume, como mostra com acerto Smith, mais considervel do que se supunha. O ncleo da teoria hutchesoniana consiste, segundo Smith, em considerar que o ltimo fundamento de nossos juzos de valor, tanto morais como estticos, no a razo, mas o sentimento ou feeling. Hume no apenas adotou este ponto de vista, mas ampliou seu mbito ao aplic-lo a todas as questes de fato e de existncia (Investiga o, seo IV). Hume antecipa, deste modo, a distino entre conhecimento (nascido das relaes de idias e restrito aos objetos matemticos) e crena (inferida das relaes de fatos e englobando todos os outros objetos). Esta distino , em verdade, discutida com pormenores na seo IV desta Investigao. (Vejam-se de N. Kemp Smith, The Philosophy of David Hume, Macmillan, 1949, captulos I e II; de E. C. Mossner, The Life of David Hume, Nelson, 1954, pp. 76-7; de F. Hutcheson, Inquiry into the Original of our Ideas os Beauhj and Virtue, 1725, e Essay on the Nature and Conduct of the Passions and Affections, 1728.) [N. do T.]

7A analogia com a astronomia antes e depois de Newton indica quais os resultados que podem ser obtidos da pesquisa acerca das operaes do entendimento humano. A aspirao manifestada por Hume no subttulo do Tratado (tentativa para introduzir o mtodo do raciocnio experimental em objetos morais) aluso evidente ao mtodo de Newton e que lhe valeu o epteto de ser o Newton das cincias morais agora reduzida pela aspirao mais modesta de fazer apenas uma geometria mental. Em verdade, a Investigao caracteriza-se pela maior nfase dada aos problemas que dizem respeito natureza, pressupostos e limitaes de vrios tipos de pesquisas. (Flew, obra citada, p. 14.) [N. do T.]

SEO II

DA ORIGEM DAS IDIAS

Cada um admitir prontamente que h uma diferena considervel entre as percepes1 do esprito, quando uma pessoa sente a dor do calor excessivo ou o prazer do calor moderado, e quando depois recorda em sua memria esta sensao ou a antecipa por meio de sua imaginao. Estas faculdades podem imitar ou copiar as percepes dos sentidos, porm nunca podem alcanar integralmente a fora e a vivacidade da sensao original. O mximo que podemos dizer delas, mesmo quando atuam com seu maior vigor, que representam seu objeto de um modo to vivo que quase podemos dizer que o vemos ou que o sentimos. Mas, a menos que o esprito esteja perturbado por doena ou loucura, nunca chegam a tal grau de vivacidade que no seja possvel discernir as percepes dos objetos. Todas as cores da poesia, apesar de esplndidas, nunca podem pintar os objetos naturais de tal modo que se tome a descrio pela paisagem real. O pensamento mais vivo sempre inferior sensao mais embaada.

Podemos observar uma distino semelhante em todas as outras percepes do esprito. Um homem merc dum ataque de clera estimulado de maneira muito diferente da de um outro que apenas pensa nessa emoo. Se vs me dizeis que certa pessoa est amando, compreendo facilmente o que quereis dizer-me e formo uma concepo precisa de sua situao, porm nunca posso confundir esta idia com as desordens e as agitaes reais da paixo. Quando refletimos sobre nossas sensaes e impresses passadas, nosso pensamento um reflexo fiel e copia seus objetos com veracidade, porm as cores que emprega so fracas e embaadas em comparao com aquelas que revestiam nossas percepes originais. No necessrio possuir discernimento sutil nem predisposio metafsica para assinalar a diferena que h entre elas. Podemos, por conseguinte, dividir todas as percepes do esprito em duas classes ou espcies, que se distinguem por seus diferentes graus de fora e de vivacidade. As menos fortes e menos vivas so geralmente denominadas pensamentos ou idias. A outra espcie no possui um nome em nosso idioma e na maioria dos outros, porque, suponho, somente com fins filosficos era necessrio compreend-las sob um termo ou nomenclatura geral. Deixe-nos, portanto, usar um pouco de liberdade e denomin-las impresses, empregando esta palavra num sentido de algum modo diferente do usual. Pelo termo impresso entendo, pois, todas as nossas percepes mais vivas, quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos. E as impresses diferenciam-se das idias, que so as percepes menos vivas, das quais temos conscincia, quando refletimos sobre quaisquer das sensaes ou dos movimentos acima mencionados.2A primeira vista, nada pode parecer mais ilimitado do que o pensamento humano, que no apenas escapa a toda autoridade e a todo poder do homem, mas tambm nem sempre reprimido dentro dos limites da natureza e da realidade. Formar monstros e juntar formas e aparncias incongruentes no causam imaginao mais embarao do que conceber os objetos mais naturais e mais familiares. Apesar de o corpo confinar-se num s planeta, sobre o qual se arrasta com sofrimento e dificuldade, o pensamento pode transportar-nos num instante s regies mais distantes do Universo, ou mesmo, alm do Universo, para o caos indeterminado, onde se supe que a Natureza se encontra em total confuso. Pode-se conceber o que ainda no foi visto ou ouvido, porque no h nada que esteja fora do poder do pensamento, exceto o que implica absoluta contradio.

Entretanto, embora nosso pensamento parea possuir esta liberdade ilimitada, verificaremos, atravs de um exame mais minucioso, que ele est realmente confinado dentro de limites muito reduzidos e que todo poder criador do esprito no ultrapassa a faculdade de combinar, de transpor, aumentar ou de diminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos sentidos e pela experincia. Quando pensamos numa montanha de ouro, apenas unimos duas idias compatveis, ouro e montanha, que outrora conhecramos. Podemos conceber um cavalo virtuoso, pois o sentimento que temos de ns mesmos nos permite conceber a virtude e podemos uni-la figura e forma de um cavalo, que um animal bem conhecido. Em resumo, todos os materiais do pensamento derivam de nossas sensaes externas ou internas; mas a mistura e composio deles dependem do esprito e da vontade. Ou melhor, para expressar-me em linguagem filosfica: todas as nossas idias ou percepes mais fracas so cpias de nossas impresses ou percepes mais vivas.

Para prov-lo, espero que sero suficientes os dois argumentos seguintes. Primeiro, se analisamos nossos pensamentos ou idias, por mais compostos ou sublimes que sejam, sempre verificamos que se reduzem a idias to simples como eram as cpias de sensaes precedentes. Mesmo as idias que, primeira vista, parecem mais distantes desta origem mostram-se, sob um escrutnio minucioso, derivadas dela. A idia de Deus, significando o Ser infinitamente inteligente, sbio e bom, nasce da reflexo sobre as operaes de nosso prprio esprito, quando aumentamos indefinidamente as qualidades de bondade e de sabedoria. Podemos continuar esta investigao at a extenso que quisermos, e acharemos sempre que cada idia que examinamos cpia de uma impresso semelhante. Aqueles que dizem que esta afirmao no universalmente verdadeira, nem sem exceo, tm apenas um mtodo, e em verdade fcil, para refut-la: mostrar uma idia que, em sua opinio, no deriva desta fonte. Incumbir-nos-ia ento, se quisssemos preservar nossa doutrina, de mostrar a impresso ou percepo mais viva que lhe corresponde.

Segundo, se ocorre que o defeito de um rgo prive uma pessoa de uma classe de sensao, notamos que ela tem a mesma incapacidade para formar idias correspondentes. Assim, um cego no pode ter noo das cores nem um surdo dos sons. Restaurai a um deles um dos sentidos de que carecem: ao abrirdes as portas s sensaes, possibilitais tambm a entrada das idias, e a pessoa no ter mais dificuldade para conceber aqueles objetos. O mesmo fenmeno ocorre quando o objeto apropriado para estimular qualquer sensao nunca foi aplicado ao rgo do sentido. Um lapo ou um negro, por exemplo, no tm nenhuma noo do sabor do vinho. Apesar de haver poucos ou nenhum caso de semelhante deficincia no esprito, em que uma pessoa nunca sentiu ou que completamente incapaz de um sentimento ou paixo prprios de sua espcie, constatamos, todavia, que a mesma observao ocorre em menor grau. Um homem de modos brandos no pode formar uma idia de vingana ou de crueldade obstinada, nem um corao egosta pode conceber facilmente os pices da amizade e da generosidade. Em verdade, admitimos que outros seres podem possuir muitos sentidos dos quais no temos noo, porque as idias destes sentidos nunca nos foram apresentadas pela nica maneira por que uma idia pode ter acesso ao esprito, isto , mediante o sentimento e a sensao reais.

H, no entanto, um fenmeno contraditrio que pode provar que no absolutamente impossvel que as idias nasam independentes de suas impresses correspondentes. Acredito que se concordaria facilmente que as vrias idias de cores diferentes que penetram pelos olhos, ou aquelas de sons conduzidas pelo ouvido, so realmente diferentes umas das outras, embora, ao mesmo tempo, parecidas. Ora, se isto verdadeiro a respeito das diferentes cores, deve s-lo igualmente para os diversos matizes da mesma cor; e cada matiz produz uma idia diversa, independente das outras. Pois, se se negasse isto, seria possvel, por contnua gradao dos matizes, passar insensivelmente de uma cor a outra completamente distante de srie; se vs no admitis a distino entre os intermedirios, no podeis, sem absurdo, negar a identidade dos extremos. Suponde, ento, uma pessoa que gozou do uso de sua viso durante trinta anos e se tornou perfeitamente familiarizada com cores de todos os gneros, exceto com um matiz particular do azul, por exemplo, que nunca teve a sorte de ver. Colocai todos os diferentes matizes daquela cor, exceto aquele nico, defronte daquela pessoa, decrescendo gradualmente do mais escuro ao mais claro. Certamente, ela perceber um vazio onde falta este matiz, ter o sentimento de que h uma grande distncia naquele lugar, entre as cores contguas, mais do que em qualquer outro. Ora, pergunto se lhe seria possvel, atravs de sua imaginao, preencher este vazio e dar nascimento idia deste matiz particular que, todavia, seus sentidos nunca lhe forneceram? Poucos leitores, creio eu, sero de opinio que ela no pode; e isto pode servir de prova que as idias simples nem sempre derivam das impresses correspondentes, mas esse caso to singular apenas digno de observao e no merece que, unicamente por ele, modifiquemos nossa mxima geral.

Eis, portanto, uma proposio que no apenas parece simples e inteligvel em si mesma, mas que, se se fizer dela o uso apropriado, pode tornar toda discusso igualmente inteligvel e eliminar todo jargo, que h muito tempo se apossou dos raciocnios metafsicos e os desacreditou. Todas as idias, especialmente as abstratas, so naturalmente fracas e obscuras; o esprito tem sobre elas um escasso controle; elas so apropriadas para serem confundidas com outras idias semelhantes, e somos levados a imaginar que uma idia determinada est a anexada se, o que ocorre com freqncia, empregamos qualquer termo sem lhe dar significado exato. Pelo contrrio, todas as impresses, isto , todas as sensaes, externas ou internas, so fortes e vivas; seus limites so determinados com mais exatido e no to fcil confundi-las e equivocar-nos. Portanto, quando suspeitamos que um termo filosfico est sendo empregado sem nenhum significado ou idia o que muito freqente devemos apenas perguntar: de que impresso derivada aquela suposta idia?3 E, se for, impossvel designar urna, isto servir para confirmar nossa suspeita. E razovel, portanto, esperar que, ao trazer as idias a uma luz to clara, removeremos toda discusso que pode surgir sobre sua natureza e realidade.4

NOTAS:

1O termo "percepes" utilizado por Hume para designar a totalidade dos fatos mentais e das operaes volitivas. Mais adiante, nesta seo (p. 70), ele escreve que as percepes constituem todos os materiais do pensamento. (vejam-se tambm: Tratado, I. ii, 6, p. 67 -II i, 1 p. 456.) Hume difere assim de Locke, que emprega o termo idia (veja-se nota 12 desta seo) com aquele sentido genrico. [N. do T.]

2As percepes originais, isto , os elementos primitivos da experincia, so, escreve Hume, as impresses. As idias, por seu turno, que afloram conscincia, quando pensamos ou raciocinamos, so fracas imagens das impresses. As idias no so, portanto, como para os platnicos, os arqutipos de tudo que existe e nem, como para os cartesianos, inatas, pois unicamente as impresses so inatas (veja-se O. Brunet, Philosophie et esthtique chez David Hume, Nizet, Paris, 1965, pp. 292-295.). Como as idias so fracas imagens de impresses correspondentes, podemos dizer que as percepes do esprito, assumindo dupla forma, como impresses e como idias, distinguem-se em grau e no em natureza. Ou melhor, as duas facetas de uma nica percepo discriminam-se entre si do mesmo modo como um modelo se diferencia de sua cpia. [N. do T.]

3O mtodo filosfico adequado aquele que permite a contnua reforma de nossas idias acerca das operaes do entendimento humano. E as idias so reformadas por estarem relacionadas com suas impresses correspondentes. Esta relao dupla: a) as idias so similares s impresses, ou melhor, so cpias ou imagens das impresses (em concordncia com o mtodo baseado no exemplo), e b) as idias esto necessariamente unidas s impresses, ou melhor, as idias no so descobertas sem impresses correspondentes (do mesmo modo que a filosofia difcil admite que a concluso no pode ser levada a cabo sem as premissas adequadas). (Sternfeld, artigo citado, pp. 173-174.) [N. do T]

4 provvel que todos aqueles que negaram as idias inatas queriam apenas dizer que todas as nossas idias eram cpias de nossas impresses, embora seja preciso confessar que os termos por eles empregados nem sempre foram escolhidos com precauo nem definidos com exatido, a fim de evitar equvocos sobre suas doutrinas. O que se entende por inato? Se inato equivalente a natural, ento se deve conceder que todas as percepes e idias do esprito so inatas ou naturais, em qualquer sentido que tomemos este ltimo termo, seja em oposio ao que inslito, artificial ou miraculoso. Se inato significa contemporneo ao nosso nascimento, a discusso parece frvola, pois no vale a pena averiguar em que momento se comea a pensar: se antes, no, ou depois de nosso nascimento. Demais, parece-me que Locke e outros tomam o termo idia em sentido muito vago, tanto indicando nossas percepes, sensaes e paixes, como nossos pensamentos. Ora, neste sentido eu gostaria de saber o que que se quer dizer quando se afirma que o amor-prprio ou ressentimento por injrias sofridas ou a paixo entre os sexos no inata?

Mas admitindo-se os termos impresses e idias no sentido exposto acima e entendendo por inato o que primitivo ou no copiado de nenhuma percepo precedente, podemos ento afirmar que todas as nossas impresses so inatas e que nossas idias no o so.

Para ser franco, devo confessar que em minha opinio Locke foi enganado sobre esta questo pelos escolsticos, que, utilizando termos definidos sem rigor, prolongavam cansativamente as discusses sem jamais atingir o ncleo da questo. Semelhante ambigidade e circunlocuo parecem estar presentes nos raciocnios deste filsofo acerca deste tema como tambm da maioria de outras questes (Hume).

SEO III

DA ASSOCIAO DE IDIAS1 evidente que h um princpio de conexo entre os diferentes pensamentos ou idias do esprito humano e que, ao se apresentarem memria ou imaginao, se introduzem mutuamente com certo mtodo e regularidade. E isto to visvel em nossos pensamentos ou conversas mais srias que qualquer pensamento particular que interrompe a seqencia regular ou o encadeamento das idias imediatamente notado e rejeitado. At mesmo em nossos mais desordenados e errantes devaneios, como tambm em nossos sonhos, notaremos, se refletimos, que a imaginao no vagou inteiramente a esmo, porm havia sempre uma conexo entre as diferentes idias que se sucediam. Se se transcrevesse a conversa mais solta e mais livre, notar-se-ia imediatamente alguma coisa que a ligou em todas as suas transies. E se este princpio faltasse, quem quebrou o fio da conversa poderia ainda informar-vos que havia secretamente esclarecido em seu esprito uma sucesso de pensamentos, os quais o tinham desviado gradualmente do tema da conversa. Entre os idiomas mais diferentes, mesmo naqueles em que no podemos supor a menor conexo ou comunicao, encontramos que as palavras que exprimem as idias mais complexas quase se correspondem entre si, o que uma prova segura de que as idias simples, compreendidas nas idias complexas, foram ligadas por algum princpio universal que tinha igual influncia sobre todos os homens.2Embora o fato de que as idias diferentes estejam conectadas seja to evidente para no ser percebido pela observao, creio que nenhum filsofo3 tentou enumerar ou classificar todos os princpios de associao, assunto que, todavia, parece digno de ateno. Para mim, apenas h trs princpios de conexo entre as idias, a saber: de semelhana, de contigidade no tempo e no espao e de causa ou efeito.

Que estes princpios servem para ligar idias, no ser, creio eu, muito duvidoso. Um quadro conduz naturalmente nossos pensamentos para o original;4 quando se menciona um apartamento de um edifcio, naturalmente se introduz uma investigao ou uma conversa acerca dos outros.5 E, se pensamos acerca de um ferimento, quase no podemos furtar-nos a refletir sobre a dor que o acompanha.6 Entretanto, difcil provar tanto para nossa como para a satisfao do leitor que esta enumerao completa e que no h outros princpios de associao. Cabe-nos, portanto, em tal situao, recapitular vrios exemplos e examinar cuidadosamente o princpio que liga mutuamente os diferentes pensamentos, e apenas detendo-nos quando tornarmos o princpio to geral quanto possvel.7 E, medida que examinarmos outros exemplos e o fizermos com o mximo cuidado, adquiriremos a certeza de que a enumerao, estabelecida a partir de um conjunto de observaes, completa e inteira.

[Nas edies K, L, e N, esta seo continuava da seguinte maneira: Em vez de entrar num pormenor deste gnero, o que nos conduziria a vrias e inteis sutilezas, consideraremos alguns dos efeitos desta conexo sobre as paixes e a imaginao; poderemos principiar assim um campo de especulao mais interessante e talvez mais instrutivo do que o outro.]

Como o homem um ser racional e est continuamente procura da felicidade, que espera alcanar para a satisfao de alguma paixo ou afeio, raramente age, pensa ou fala sem propsito ou inteno. Sempre tem algum objeto em vista; embora s vezes sejam inadequados os meios que escolhe para alcanar seu fim, jamais o perde de vista e nem desperdia seus pensamentos ou reflexes quando no espera obter nenhuma satisfao deles.

Em todas as composies geniais , portanto, necessrio que o autor tenha algum plano ou objeto; e embora possa ser desviado deste plano pela impetuosidade de seu pensamento, como numa ode, ou omiti-lo descuidadamente, como numa epstola ou num ensaio, deve aparecer algum fim ou inteno em sua primeira composio, seno na composio completa da obra. Uma obra sem um desgnio se assemelha mais a extravagncias de um louco do que aos sbrios esforos do gnio e do sbio.

Como esta regra no admite exceo, conclui-se que nas composies narrativas os eventos ou atos que o escritor relata devem estar unidos por algum elo ou lao; preciso que estejam unidos uns aos outros na imaginao e formem uma espcie de unidade que possa situ-los em um nico plano, em um nico ponto de vista, e que possa ser o objeto e o fim do autor em seu primeiro empreendimento.

Este princpio de conexo entre vrios eventos, formando o tema de um poema ou de uma histria, pode ser diferente segundo os distintos planos de um poeta ou de um historiador. Ovdio modelou seu plano sobre o princpio conectivo de semelhana. Toda transformao fabulosa produzida pelo poder miraculoso dos deuses aparece em sua obra. No preciso seno esta condio para que um evento convirja para seu plano original ou inteno.

Um analista ou historiador que tentasse escrever a histria da Europa durante um sculo seria influenciado pela conexo de contigidade no tempo e no espao. Todos os eventos que aconteceram nesta poro do espao e neste perodo do tempo esto compreendidos em seu desgnio, embora em outros aspectos sejam diferentes e sem relao uns com os outros. Ainda assim tm uma espcie de unidade entre toda diversidade.

Entretanto, a espcie mais habitual de relao entre os diferentes eventos que fazem parte de uma composio narrativa a de causa e efeito; quando um historiador segue a srie de aes segundo sua ordem natural, remonta s suas fontes e princpios secretos e descreve suas mais remotas conseqncias. Escolhe como tema certa poro desta grande cadeia de acontecimentos que constitui a histria da humanidade; tenta tocar em sua narrativa cada elo desta cadeia. s vezes, uma inevitvel ignorncia torna inteis todos os seus esforos; s vezes preenche por conjeturas o que deficiente em seu conhecimento; e sempre tem conscincia de que sua obra mais perfeita em funo da maior continuidade de cadeia de acontecimentos que apresenta ao leitor. Ele sabe que o conhecimento de causas no apenas o mais satisfatrio, j que esta relao ou conexo mais forte do que todas as outras, mas tambm mais instrutivo, pois unicamente por este conhecimento que somos capazes de controlar eventos e governar o futuro.

Podemos agora, portanto, ter uma idia desta unidade de ao, que tem sido bastante discutida por todos os crticos depois de Aristteles sem muito xito, talvez porque no controlavam seus gostos e sentimentos por uma filosofia rigorosa. Parece que em todas as obras, tanto picas como trgicas, preciso certa unidade, e que em nenhum momento podemos permitir aos nossos pensamentos de vagarem a esmo, se quisermos produzir uma obra de interesse durvel humanidade. Parece tambm que mesmo um bigrafo que escrevesse a vida de Aquiles tentaria relacionar os eventos para mostrar sua mtua dependncia e relao, do mesmo modo que um poeta que fizesse da clera deste o tema de sua narrativa.8 No apenas numa determinada parcela da vida que as aes de um homem dependem umas das outras, mas durante toda a sua existncia, ou seja, do bero ao tmulo; impossvel quebrar um nico elo, embora diminuto, desta cadeia regular sem afetar toda a srie de eventos. A unidade de ao, portanto, que pode ser encontrada na biografia ou na histria difere da poesia pica no em gnero, mas em grau. Na poesia pica, a conexo entre os eventos mais prxima e mais sensvel; a narrativa no abrange to grande extenso temporal; os atores dirigem-se s pressas para uma situao notvel para satisfazer curiosidade dos leitores. Esta conduta do poeta pico conta com a situao particular da imaginao e das paixes que se verificam nesta produo. Tanto a imaginao do escritor como a do leitor mais avivada, e as paixes so mais estimuladas do que na histria, na biografia ou em todo tipo de narrao confinada estritamente verdade e realidade. Consideremos o efeito destas circunstncias imaginao avivada e paixes estimuladas que pertencem poesia e, especialmente, ao gnero pico mais do que qualquer outra espcie de composio; e examinemos a razo pela qual elas exigem unidade mais prxima e mais estrita em sua fabulao.

Em primeiro lugar, toda poesia, que uma espcie de pintura, nos coloca mais perto do objeto do que qualquer outro tipo de narrativa, o ilumina com mais fora e delineia com mais distino as menores circunstncias que, embora paream suprfluas ao historiador, servem vigorosamente para avivar as imagens e satisfazer imaginao. Se no necessrio, como na Ilada, nos informar toda vez que o heri afivela seus sapatos e amarra sua jarreteira, ser preciso, talvez, entrar em maiores mincias que na Henriade, em que os eventos se processam com tal rapidez, que mal temos tempo para nos familiarizar com a cena ou com a ao. Destarte, se um poeta quisesse abranger em seu tema grande extenso temporal ou uma longa srie de eventos e remontasse da morte de Heitor s duas causas mais remotas, tais como o rapto de Helena ou o julgamento de Pris, necessitaria estender em demasia seu poema para preencher esta enorme tela com pinturas e imagens convenientes. A imaginao do leitor, estimulada por tal seqencia de descries poticas, e suas paixes inflamadas por uma contnua simpatia para com os atores devem enfraquecer bem antes do fim do relato e cair em lassido e averso pela repetio dos mesmos movimentos violentos.

Em segundo lugar, que um poeta pico no deve descrever uma longa srie de causas, aparecer mais adiante se considerarmos uma outra razo derivada de uma propriedade ainda mais notvel e mais singular das paixes. evidente que numa composio correta todas as emoes estimuladas pelos diferentes eventos descritos e representados adicionam suas foras mutuamente; alm disso, enquanto os heris esto todos empenhados numa cena comum e cada ao est fortemente ligada ao conjunto, o interesse permanece sempre vivo e as paixes passam facilmente de um objeto a outro. A forte conexo de eventos facilita, ao mesmo tempo, a passagem do pensamento ou da imaginao de um a outro e a transfuso das paixes, e mantm as emoes sempre no mesmo canal e na mesma direo. Nossa simpatia e nosso interesse por Eva preparam o caminho para semelhante simpatia por Ado: a emoo mantida quase intacta na transio, e o esprito apreende imediatamente o novo objeto como fortemente unido quele que de incio atraa sua ateno. Mas se o poeta quisesse fazer uma completa digresso em seu tema e se introduzisse uma nova personagem sem nenhuma ligao com as anteriores, a imaginao sentiria uma ruptura na transio, penetraria friamente na nova cena e se animaria lentamente; quando retornasse ao tema central do poema, passaria, por assim dizer, sobre um terreno estranho e seu interesse despertaria novamente para colaborar com os principais atores. O mesmo inconveniente aparece em menor grau quando o poeta descreve seus eventos a uma longa distncia e liga entre si aes que, embora no sejam completamente separadas, no tm uma conexo to forte como necessrio para propiciar a transio das paixes. Esta a origem do relato indireto empregado na Odissia e na Eneida: o heri inicialmente introduzido, antes de ter sido estabelecida sua finalidade, e a seguir nos so mostrados, de modo perspectivo, os mais distantes eventos e causas. Deste modo, a curiosidade do leitor imediatamente estimulada; os eventos se desenvolvem com rapidez e em conexo muito prxima; o interesse se mantm bastante vivo e, com o auxlio da relao prxima com os objetos, cresce sem cessar do comeo ao fim da narrativa.

A mesma regra se verifica na poesia dramtica; jamais permitido introduzir, numa composio regular, um ator sem conexo ou que tem apenas fraca conexo com as principais personagens do relato. O interesse do espectador no pode ser desviado por cenas desarticuladas e separadas das outras. Isto quebra o curso das paixes e impede a comunicao de vrias emoes, pelas quais uma cena adiciona fora a outra e transfere a piedade e o terror que cada uma desperta cena seguinte, at que em sua totalidade produz a rapidez de movimento peculiar ao teatro. Como preciso extinguir este calor afetivo para iluminar de repente uma nova cena e novas personagens sem nenhuma relao com as precedentes; como preciso localizar uma ruptura, um hiato deveras sensvel no curso das paixes pelo efeito desta ruptura no curso das idias; e, em lugar de dirigir a simpatia de uma cena seguinte, ser obrigado em todo momento a despertar um novo interesse e a participar de uma nova cena de ao?

Embora esta regra da unidade de ao seja comum poesia dramtica e pica, podemos ainda observar que h entre elas uma diferena digna de curiosidade. Nestas duas espcies de composio indispensvel a unidade e a simplicidade de ao para manter intacto e sem distrao o interesse e a simpatia; mas, na poesia pica ou narrativa, esta regra se estabelece sobre um outro fundamento: a necessidade que se impe a todo escritor de ter um plano ou desgnio antes de principiar qualquer dissertao ou relato e de compreender seu tema sob um aspecto geral ou uma viso unificadora que possa ser o objeto constante de sua ateno. Como o autor est completamente esquecido nas composies dramticas, e o espectador supe consigo mesmo estar realmente presente nas aes representadas, esta razo no intervm no palco; e pode-se introduzir um dilogo ou uma conversao que teria podido passar nesta parte do espao representado pela cena. Por este motivo, em todas as comdias inglesas, inclusive as de Congreve, a unidade de ao no estritamente observada; mas o poeta pensa que suficiente relacionar de qualquer maneira suas personagens, quer pelo sangue, quer pelo fato de elas pertencerem a uma mesma famiia; a seguir as introduz em determinadas cenas em que mostram seus temperamentos e seus caracteres sem avanar em muito a ao principal. As duplas intrigas de Terncio so liberdades do mesmo gnero, embora em grau menor. Apesar de este procedimento no ser inteiramente regular, no completamente incompatvel com a natureza da comdia, em que os mecanismos das paixes no atingem to alto como na tragdia; ao mesmo tempo, a fico e a representao atenuam, at certo ponto, tais liberdades. Em um poema narrativo, a primeira proposio, o primeiro desgnio, limita o autor a um tema; recusar-se-iam imediatamente as digresses desta natureza como obscuras e monstruosas. Nem Boccaccio, nem La Fontaine, nem qualquer outro autor deste gnero jamais se deixaram cair em digresses, embora seu principal objetivo tenha sido a graa.

Retomando a comparao entre a histria e a poesia pica, podemos concluir dos raciocnios precedentes que certa unidade necessria em todas as produes, e esta no pode ser deficiente tanto na histria como em qualquer outra; que na histria, a conexo que une os diferentes eventos num s corpo a relao de causa e efeito, a mesma que aparece na poesia pica; e que, nesta ltima composio, preciso que esta conexo seja mais prxima e mais sensvel em virtude da vivacidade da imaginao e da fora das paixes que o poeta deve abarcar em sua narrativa. A guerra do Peloponeso um tema apropriado histria, o cerco de Atenas, a um poema pico, e a morte de Alcibades, a uma tragdia.

Destarte, como a diferena entre a histria e a poesia pica consiste apenas nos graus de conexo que une entre si os vrios eventos que compem seu tema, ser difcil, seno impossvel, determinar com exatido as fronteiras que separam um do outro. E mais uma questo de gosto que de raciocnio; podemos, talvez, desvendar com freqencia esta unidade em um tema que, primeira vista e segundo consideraes abstratas, esperamos ao menos encontrar.

evidente que Homero ultrapassa, no curso de sua narrativa, a primeira proposio de seu tema, e que a clera de Aquiles, causa da morte de Heitor, no a mesma que ocasionou tantos males aos gregos. Mas a fora da relao que une estes dois movimentos, a rapidez de transio de um ao outro, o contraste9 entre os efeitos da concrdia e da discrdia entre os princpios e a curiosidade natural que temos para ver Aquiles em ao depois de to longo repouso este conjunto de causas no cessa de exercer influncia sobre o leitor e d ao tema suficiente unidade.

Pode-se objetar a Milton o fato de ele ter buscado suas causas numa longa distncia e que a revolta dos anjos produziu a queda do homem por um encadeamento de eventos que , ao mesmo tempo, muito longo e muito fortuito. Sem mencionar que a criao do mundo, relatada em toda a sua extenso, no mais causa desta catstrofe que a batalha de Farslia, ou qualquer outro acontecimento que sempre tem acontecido. Alm disso, se considerarmos que todos estes eventos (a revolta dos anjos, a criao do mundo e a queda do homem) so semelhantes, pois todos so miraculosos e apartados do curso ordinrio da natureza; que so supostos contguos no tempo; que se separam de todos os outros eventos e so os nicos fatos originais revelados, eles impressionam de imediato a viso e naturalmente evocam uns aos outros no pensamento e na imaginao. Se considerarmos tais circunstncias em sua totalidade, verificaremos que todas estas aes parceladas tm unidade suficiente para serem compreendidas num nico relato ou narrativa. Acrescentemos a estas razes que a revolta dos anjos e a queda do homem tm uma semelhana determinada, porque so correlatas e apresentam ao leitor a mesma moral de obedincia ao nosso Criador.

Apresento estas sugestes desconexas com o fim de despertar a curiosidade dos filsofos e com a suposio, seno a firme persuaso, de que um tema bastante prolixo, e que as numerosas operaes do esprito humano dependem da conexo ou da associao de idias aqui explicadas. Especialmente a simpatia entre as paixes e a imaginao mostrar-se- talvez notvel, quando observamos que as emoes despertadas por um objeto passam facilmente a um outro unido a ele, mas se misturam com dificuldade, ou de nenhum modo, com objetos diferentes e sem nenhuma conexo. Ao introduzir numa composio personagens e aes estranhas umas s outras, um autor imprevidente destri esta comunicao de emoes, que o nico meio de interessar ao corao e despertar as paixes no grau desejado e no momento apropriado. A explicao completa destes princpios e de todas as suas conseqncias nos conduziria a raciocnios muito profundos e prolixos para esta investigao. -nos suficiente presentemente ter estabelecido esta concluso: os trs princpios de todas as idias so as relaes de semelhana, de contiguidade e causalidade.]NOTAS:

1Nas edies K e L o ttulo era: Conexo de idias.2 Hume afirma no Abstract que se alguma coisa pode designar o autor [isto , Hume] pelo glorioso ttulo de inventor, consiste na maneira por que ele emprega o princpio de associao de idias, que aparece em quase toda a sua filosofia. Hume no se considera o inventor da teoria associativa, mas apenas admite ter descoberto uma nova maneira de utiliz-la. (veja-se J. Passmore, Humes Intentions, segunda edio, Basic Books, Nova York, 1968, p. 105.) Com efeito, Locke afirma que algumas de nossas idias tm uma natural correspondncia e conexo entre si; constitui tarefa e qualidade da razo deline-las... H, ademais, outra conexo de idias devida totalmente ao acaso ou costume. Idias que em si mesmas no so em nada aparentadas, tornam-se de tal modo unidas em alguns espritos humanos, que muito difcil separ-las(Essay, edio citada, cap. XXXIII, 5, pp. 248-9). De acordo com a teoria de Locke, portanto, apenas as relaes reflexivas (isto , necessrias) revelam um pensamento ordenado, ao passo que a associao de idias (isto , relao costumeira) um princpio de conexo errnea (Idem, 9, p. 249) ou de aberraes mentais. (veja-se A. L. Leroy, David Hume, Paris, 1953, p. 47.) Ora, para Hume, o termo relao, como entendido na linguagem comum, designa esta qualidade (ou principio) pela qual duas idias esto unidas na imaginao, e uma introduz naturalmente a outra (Tratado, I, v, pp. 13-4). Denominando este processo de relao natural, Hume acrescenta que, quando o esprito faz, de modo constante e uniforme, e sem qualquer base racional, a transio entre percepes, acha-se influenciado por este tipo de relao. Sugere-nos, assim, que a relao natural consiste na transio irrefletida, habitual e associativa entre idias. Daqui, podemos concluir que para Hume: 1) os princpios associativos baseiam-se na relao natural, pois decorrem da propenso da imaginao de efetuar a fcil transio de uma impresso para uma idia, ou de uma idia para outra idia, e 2) com excluso apenas das relaes matemticas (em parte concorda com Locke, que excluia tambm as relaes morais), todas as outras conexes consistem na constatao de que nossas idias esto habitualmente unidas e que a conexo costumeira de idias o caso tpico, e no uma ocasional aberrao mental como supe Locke. (Passmore, ob. cit., p. 67.) [N. do T.]

3Hume esqueceu de mencionar que Aristteles j havia distinguido os princpios de semelhana, de contraste e de contiguidade (On Memory and Reminiscense, edio Ross, Great Books, 1952, 451b, pp. 692-3). Hume elimina o principio de contraste, embora na nota 7, desta seo, ele considere o contraste uma mistura de semelhana e de causalidade. [N. do T.]

4Semelhana (Hume).

5Contiguidade (Hume).

6Causa e efeito (Hume).

7Por exemplo, o contraste ou a contrariedade tambm uma conexo entre idias, mas podemos sem dvida consider-la uma mistura de causalidade e semelhana. Quando dois objetos so contrrios, um destri o outro, isto , constitui a causa de sua aniquilao, e a idia de aniquilao de um objeto implica a idia de sua existncia anterior (Hume). Esta nota a transcrio da nota 21, p. 76, operada por Hume, quando ele suprimiu o fim desta seo. [N. do T.]

8 Ao contrrio de Aristteles, a fbula no una, como alguns pensam, pelo fato de no haver seno um heri, pois a vida de um mesmo homem compreende um grande nmero, uma infinidade de eventos que no formam uma unidade. E, do mesmo modo, um mesmo homem realiza vrias aes que no constituem uma ao nica etc. Captulo VIII (Hume). Potica, 1451 a, pp. 16-19; a traduo citada a de M. J. Hardy. veja-se Hume, Enqute sur lentendement humain, trad. Leroy, 1948, p. 63, nota 1. [N. do T.1

9Veja-se nota 7, desta seo. [N. do T.]SEO IV

DVIDAS CTICAS SOBRE AS OPERAES DO ENTENDIMENTO

PRIMEIRA PARTE

Todos os objetos da razo ou da investigao humanas podem dividir-se naturalmente em dois gneros, a saber: relaes de idias e de fatos. Ao primeiro pertencem as cincias da geometria, da lgebra e da aritmtica1 e, numa palavra, toda afirmao que intuitivamente ou demonstrativamente certa. Que o quadrado da hipotenusa igual soma do quadrado dos dois lados, uma proposio que exprime uma relao entre estas figuras. Que trs vezes cinco igual metade de trinta exprime uma relao entre estes nmeros. As proposies deste gnero podem descobrir-se pela simples operao do pensamento e no dependem de algo existente em alguma parte do universo. Embora nunca tenha havido na natureza um crculo ou um tringulo, as verdades demonstradas por Euclides conservaro para sempre sua certeza e evidncia.

Os fatos, que so os segundos objetos da razo humana, no so determinados da mesma maneira, nem nossa evidncia de sua verdade, por maior que seja, de natureza igual precedente. O contrrio de um fato qualquer sempre possvel, pois, alm de jamais implicar uma contradio, o esprito o concebe com a mesma facilidade e distino como se ele estivesse em completo acordo com a realidade. Que o sol no nascer amanh to inteligvel e no implica mais contradio do que a afirmao que ele nascer. Podemos em vo, todavia, tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse demonstrativamente falsa, implicaria uma contradio e o esprito nunca poderia conceb-la distintamente.2

Portanto, deve ser assunto digno de nossa ateno investigar qual a natureza desta evidncia que nos d segurana acerca da realidade de uma existncia e de um fato que no esto ao alcance do testemunho atual de nossos sentidos ou do registro de nossa memria. E preciso frisar que este aspecto da filosofia tem sido pouco cultivado tanto pelos antigos como pelos modernos; e, portanto, nossas dvidas e nossos erros ao realizar esta investigao to importante so certamente os mais desculpveis, j que marchamos atravs de to difceis caminhos sem nenhum guia ou direo.3 Na realidade, podem revelar-se teis ao excitar a curiosidade e ao destruir esta f cega e a segurana que so a runa de todo raciocnio e de toda investigao livre. Suponho que descobrir defeitos na filosofia comum, se os h, no motivo de desnimo mas, pelo contrrio, como de costume, um incentivo para se tentar alguma coisa mais completa e mais satisfatria do que aquela que tem sido at agora proposta ao pblico.

Todos os raciocnios que se referem aos fatos parecem fundar-se na relao de causa e efeito. Apenas por meio desta relao ultrapassamos os dados de nossa memria e de nossos sentidos. Se tivsseis que perguntar a algum por que acredita na realidade de um fato que no constata efetivamente, por exemplo, que seu amigo est no campo ou na Frana, ele vos daria uma razo, e esta razo seria um outro fato: uma carta que recebeu ou o conhecimento de suas resolues e promessas anteriores. Um homem, ao encontrar um relgio ou qualquer outra mquina numa ilha deserta, concluiria que outrora havia homens na ilha. Todos os nossos raciocnios sobre os fatos so da mesma natureza. E constantemente supe-se que h uma conexo entre o fato presente e aquele que inferido dele. Se no houvesse nada que os ligasse, a inferncia seria inteiramente precria. A audio de uma voz articulada e de uma conversa racional na obscuridade nos d segurana sobre a presena de alguma pessoa. Por qu? Porque estes sons so os efeitos da constituio e da estrutura do homem e esto estreitamente ligados a ela. Se analisamos todos os outros raciocnios desta natureza, encontraremos que se fundam na relao de causa e de efeito e que esta relao se acha prxima ou distante, direta ou colateral. O calor e a luz so efeitos colaterais do fogo, e um dos efeitos pode ser inferido legitimamente do outro.

Portanto, se quisermos satisfazer-nos a respeito da natureza desta evidncia que nos d segurana acerca dos fatos, deveremos investigar como chegamos ao conhecimento da causa e do efeito.

Ousarei afirmar, como proposio geral, que no admite exceo, que o conhecimento desta relao no se obtm, em nenhum caso, por raciocnios a priori, porm nasce inteiramente da experincia quando vemos que quaisquer objetos particulares esto constantemente conjuntados entre si. Apresente-se um objeto a um homem dotado, por natureza, de razo e habilidades to fortes quanto possvel; se o objeto lhe completamente novo, no ser capaz, pelo exame mais minucioso de suas qualidades sensveis, de descobrir nenhuma de suas causas ou de seus efeitos. Mesmo supondo que as faculdades racionais de Ado fossem inteiramente perfeitas desde o primeiro momento, ele no poderia ter inferido da fluidez e da transparncia da gua que ela o afogaria, ou da luz e do calor do fogo, que este o consumiria. Nenhum objeto jamais revela, pelas qualidades que aparecem aos sentidos, tanto as causas que o produziram como os efeitos que surgiro dele; nem pode nossa razo, sem o auxlio da experincia, jamais tirar uma inferncia acerca da existncia real e de um fato.

A proposio que estabelece que as causas e os efeitos no so descobertos pela razo, mas pela experincia, ser prontamente admitida em relao queles objetos de que nos recordamos e que certa vez nos foram completamente desconhecidos, porquanto devemos ter conscincia de nossa absoluta incapacidade de predizer o que surgiria deles. Apresentai dois pedaos de mrmore polido a um homem sem nenhum conhecimento de filosofia natural; ele jamais descobrir que eles se aderiro de tal maneira que se requer grande fora para separ-los em linha reta, embora ofeream menor resistncia presso lateral. Considera-se tambm indiscutvel que o conhecimento dos eventos que tm pouca analogia com o curso corrente da natureza se obtm por meio da experincia; assim, ningum imagina que se teria descoberto a exploso da plvora ou a atrao da pedra-m por argumentos a priori. Da mesma maneira, quando se supe que um efeito depende de um mecanismo complicado ou de elementos de estrutura desconhecida, no temos dificuldade em atribuir todo o nosso conhecimento experincia. Quem ser capaz de afirmar que pode dar a razo ltima por que o leite e o po so alimentos apropriados ao homem e no a um leo ou a um tigre?

Mas, primeira vista, poderia parecer que esta mesma verdade no to evidente em relao aos eventos que nos so familiares desde o nosso nascimento, que tm estreita analogia com todo o curso da natureza e, como se supe, dependem das qualidades simples dos objetos, sem a interveno de elementos de estrutura desconhecida. Desta maneira, somos levados a imaginar que poderamos descobrir estes efeitos sem o auxlio da experincia, recorrendo apenas s operaes da razo. Imaginamos que, se fssemos repentinamente lanados neste mundo, poderamos de antemo inferir que uma bola de bilhar comunicaria movimento a outra ao impulsion-la, e que no teramos necessidade de observar o evento para nos pronunciarmos com certeza a seu respeito. E to grande a influncia do costume que, onde ela se apresenta com mais vigor, encobre, ao mesmo tempo, nossa natural ignorncia e a si mesma e, quando d a impresso de no intervir, unicamente porque se encontra em seu mais alto grau.

No entanto, para nos convencermos de que, sem exceo, todas as leis da natureza e todas as operaes dos corpos so conhecidas apenas pela experincia, as reflexes que seguem so sem dvida suficientes. Se qualquer objeto nos fosse mostrado, e se fssemos solicitados a pronunciar-nos sobre o efeito que resultar dele, sem consultar observaes anteriores; de que maneira, eu vos indago, deve o esprito proceder nesta operao? Ter de inventar ou imaginar algum evento que considera como efeito do objeto; e claro que esta inveno deve ser inteiramente arbitrria. O esprito nunca pode encontrar pela investigao e pelo mais minucioso exame o efeito na suposta causa. Porque o efeito totalmente diferente da causa e, por conseguinte, jamais pode ser descoberto nela. O movimento na segunda bola de bilhar um evento bem distinto do movimento na primeira, j que no h na primeira o menor indcio da outra. Uma pedra ou um pedao de metal levantados no ar e deixados sem nenhum suporte caem imediatamente. Mas, se consideramos o assunto a priori, descobrimos algo nesta situao que nos pode dar origem idia de um movimento descendente, em vez de ascendente, ou de qualquer outro movimento na pedra ou no metal?

Do mesmo modo que a imaginao inicial ou inveno de um efeito particular , em todas as operaes naturais, arbitrria se no consultamos a experincia, devemos igualmente supor como tal o lao ou a conexo entre a causa e o efeito, que une um ao outro e faz com que seja impossvel que qualquer outro efeito possa resultar da operao desta causa. Quando vejo, por exemplo, que uma bola de bilhar desliza em linha reta na direo de outra, mesmo se suponho que o movimento na segunda me seja acidentalmente sugerido como o resultado de seu contato ou impulso, no posso conceber que cem diferentes eventos poderiam igualmente resultar desta causa? No podem ambas as bolas permanecer em absoluto repouso? No pode a primeira bola voltar em linha reta ou ricochetear na segunda em qualquer linha ou direo? Todas estas suposies so compatveis e concebveis. Por que, ento, deveramos dar preferncia a uma que no mais compatvel ou concebvel que o resto? Todos os nossos raciocnios a priori nunca sero capazes de nos mostrar fundamento para esta preferncia.

Em uma palavra: todo efeito um evento distinto de sua causa. Portanto, no poderia ser descoberto na causa e deve ser inteiramente arbitrrio conceb-lo ou imagin-lo a priori. E mesmo depois que o efeito tenha sido sugerido, a conjuno do efeito com sua causa deve parecer igualmente arbitrria, visto que h sempre outros efeitos que para a razo devem parecer igualmente coerentes e naturais. Em vo, portanto, pretenderamos determinar qualquer evento particular ou inferir alguma causa ou efeito sem a ajuda da observao e da experincia.

Daqui, podemos descobrir o motivo pelo qual nenhum filsofo racional e modesto jamais pretendeu indicar a causa ltima de qualquer fenmeno natural, ou mostrar distintamente a ao do poder que produz qualquer efeito singular no universo. Concordar-se- que o esforo mximo da razo humana consiste em reduzir sua maior simplicidade os princpios que produzem os fenmenos naturais; e restringir os mltiplos efeitos particulares a um pequeno nmero de causas gerais, mediante raciocnios baseados na analogia, na experincia e na observao. No entanto, com referncia s causas das causas gerais, em vo tentaramos descobri-las, pois jamais ficaramos satisfeitos com qualquer explicao particular que lhes dssemos. Estas fontes e estes princpios ltimos esto totalmente vedados curiosidade e investigao humanas. A elasticidade, a gravidade, a coeso das partes, a comunicao de movimentos por impulso so provavelmente as causas e princpios ltimos que sempre descobriremos na natureza; e podemos considerar-nos suficientemente felizes se, mediante investigao e raciocnio exatos, podemos subir dos fenmenos particulares at, ou quase at, os princpios gerais. Enquanto a filosofia natural mais perfeita apenas diminui uma pequena parcela de nossa ignorncia, a filosofia mais perfeita do gnero moral ou metafsico revela-nos, talvez, que nossa ignorncia se estende a domnios mais vastos. Deste modo, resulta de toda a filosofia a constatao da cegueira e debilidade humanas que se nos apresentam em todo momento por mais que tentemos disfar-las.

Nem a geometria, com toda exatido dos raciocnios que a fez merecidamente clebre, capaz de remediar este defeito e de nos conduzir ao conhecimento das causas ltimas, quando solicitada para auxiliar a filosofia natural. Cada setor das matemticas aplicadas funciona sobre a suposio de que a natureza estabeleceu certas leis em seus procedimentos, e os raciocnios abstratos so usados tanto para auxiliar a experincia na descoberta dessas leis como para determinar a ao dessas leis em casos particulares, quando ela depende de graus exatos de distncia e de quantidade. Assim, por exemplo, uma lei de movimentos descoberta pela experincia a que diz que o momento ou a fora de um corpo em movimento est em razo ou proporo de sua massa e de sua velocidade, e, por conseguinte, que uma pequena fora pode remover os maiores obstculos ou levantar os maiores pesos se, mediante uma inveno ou mecanismo, pudermos aumentar a velocidade da fora at faz-la superar a fora antagnica. A geometria auxilia-nos a aplicar esta lei, dando-nos as dimenses exatas de todas as partes e de todas as figuras que fazem parte de qualquer tipo de mquinas, mas, ainda assim, a descoberta da prpria lei devida unicamente experincia; e todos os raciocnios abstratos do mundo no podero jamais nos levar a dar um passo para chegar a conhec-la. Quando raciocinamos a priori e consideramos um objeto ou uma causa, tal como aparece ao esprito, ou seja, independente de toda observao, jamais poderia sugerir-nos a idia de um objeto distinto, como por exemplo seu efeito, e menos ainda mostrar-nos a inseparvel e inviolvel conexo entre eles. preciso que um homem seja muito sagaz para poder descobrir atravs do raciocnio que o cristal o efeito do calor e o gelo o efeito do frio, sem estar previamente familiarizado com o funcionamento destes estados dos corpos.

NOTAS:

1A presente posio de Hume representa um aperfeioamento (veja-se Flew, ob. cit., p. 62) em comparao ao Tratado, que considera apenas a lgebra e a aritmtica como as nicas cincias em que podemos conduzir uma cadeia de raciocnios a qualquer grau de complicao, e ainda preservar perfeita exatido e certeza Ao passo que a geometria no dotada deste perfeito rigor e certeza, que so peculiares aritmtica e lgebra (Tratado, I, iii, 1, p. 71). [N. do T.]

2Locke divide o conhecimento em trs graus, a saber, intuitivo, demonstrativo e sensitivo, e afirma que as idias da quantidade no so as nicas capazes de demonstrao e de conhecimento... (Essay, edio citada, Book IV, p. 317). Ou melhor, Locke pensa que a cincia da moralidade, do mesmo modo que as cincias matemticas, passvel de demonstrao. Como exemplos de proposies to certas como quaisquer proposies matemticas ele cita: onde no h propriedade no h injustia e nenhum governo permite liberdade absoluta. (Idem, p. 318). Hume situa, de um lado, as relaes de idias, que devem ser entendidas como comparao de idias. O conhecimento consistiria precisamente em comparar idias, ou melhor, fundamenta-se em relaes de idias, as quais permanecem invariveis, contanto que as idias no se alterem (Tratado, I, iii, I, pp. 69-71). Daqui nascem determinadas proposies que so intuitivamente e demonstrativamente certas e evidentes, na medida em que, no entender de Hume, sua verdade, garantida pela lei da no-contradio, se revela pela simples operao do pensamento. Trata-se, segundo Hume, dos raciocnios demonstrativos (investigao, p. 82), empregados unicamente pelas cincias matemticas e no, como quer Locke, tambm pelas cincias morais. Hume coloca, de outro lado, as relaes de fatos, que podem modificar-se sem que haja qualquer alterao nas idias (Tratado, idem), pois o contrrio de um fato qualquer sempre possvel, e no encerra contradio afirmar que o sol no nascer amanh ou que ele nascer. Tanto uma como outra afirmativa so perfeitamente claras; entretanto, no podemos recorrer, a exemplo do que acontece nas relaes de idias, ao mtodo demonstrativo, pois apenas a experincia que possui jurisdio na esfera das relaes de fatos. Evidentemente, o ncleo do problema insito nas proposies o sol nascer ou no nascer, no diz respeito s dvidas de Hume quanto ao aparecimento do sol, mas apenas consiste na indicao de um tipo de certeza diferente da certeza absoluta. Trata-se, portanto, da caracterizao da crena, que reina na esfera da opinio, e, de acordo com Hume, que aqui diverge de Locke (veja-se N. K. Smith, ob. cit., pp. 63-70), estendida a todas as questes de fato e de existncia. E assim que Hume estabelece uma categrica dicotomia entre o conhecimento e a crena. [N. do T.]

3O caminho que Hume pretende seguir aqui pode, talvez, ser iluminado pela seguinte passagem do Abstract: o clebre Monsieur Leibniz observou, como um defeito comum dos sistemas de lgica, que eles so prolixos quando explicam as operaes do entendimento formando demonstraes, mas so bastante concisos quando tratam das probabilidades e das outras medidas de evidncia das quais a vida e a ao dependem inteiramente. (pp.. 7-8; citado tambm por Flew, oh. cit., p. 69). [N. do T.]

SEGUNDA PARTE

Entretanto, no chegamos ainda a nenhuma resposta satisfatria a respeito da primeira questo proposta. Cada soluo gera uma nova questo to difcil como a precedente e nos conduz a novas investigaes. Quando se pergunta: qual a natureza de todos os nossos raciocnios sobre os fatos? A resposta conveniente parece ser que eles se fundam na relao de causa e efeito. Quando se pergunta: qual o fundamento de todos os nossos raciocnios e concluses sobre essa relao? Pode-se replicar numa palavra: a experincia. Mas, se ainda continuarmos com a disposio de esmiuar o problema e insistirmos: qual o fundamento de todas as concluses derivadas da experincia? Esta pergunta implica uma nova questo que pode ser de soluo e explicao mais difceis. Os filsofos que se do ares de sabedoria superior e suficincia tm uma tarefa difcil quando se defrontam com pessoas com disposies inquisitivas, que os desalojam de todos os esconderijos em que se refugiam, e que esto seguras de lev-los finalmente a um perigoso dilema, O melhor recurso para evitar esta confuso consiste em ter modestas pretenses e descobrir ns mesmos as dificuldades antes que nos sejam objetadas. Desta maneira, faremos de nossa ignorncia uma virtude.

Contentar-me-ei nesta seo com uma tarefa fcil: pretenderei apenas dar uma resposta negativa questo aqui proposta. Digo, pois, que mesmo depois que temos experincia das operaes de causa e de efeito, nossas concluses desta experincia no esto fundadas sobre raciocnios ou sobre qualquer prcesso do entendimento. Devemos tratar de explicar e defender esta posio.

Certamente, deve-se admitir que a natureza nos tem mantido a uma grande distncia de todos os seus segredos, e que apenas nos tem concedido o conhecimento de algumas qualidades superficiais dos objetos, enquanto ela nos esconde os poderes e princpios dos quais depende inteiramente a ao desses objetos. Nossos sentidos nos informam a cor, o peso e a consistncia do po, porm, nem os sentidos e nem a razo jamais podem informar-nos sobre as qualidades que o fazem apropriado para alimentar e sustentar o corpo humano. A viso e o tato nos do uma idia do movimento real dos corpos, porm no podemos formar o mais remoto conceito da maravilhosa fora ou poder que capaz de manter indefinidamente em movimento um corpo, e que este nunca a perde, mas a comunica a outros. Mas, no obstante esta ignorncia dos poderes1 e princpios naturais, sempre presumimos quando vemos qualidades sensveis anlogas que elas tm poderes ocultos anlogos, e esperamos que a estas seguiro efeitos semelhantes queles que j temos experimentado. Se nos fosse mostrado um corpo de cor e consistncia anlogas s do po que havamos comido anteriormente, no teramos nenhum escrpulo em repetir o experimento, prevendo com certeza que ele nos alimentar e nos sustentar de maneira semelhante. Ora, eis um processo do esprito e do pensamento cujo fundamento gostaria de conhecer. Toda a gente est de acordo que no se conhece nenhuma conexo entre as qualidades sensveis e os poderes ocultos e, por conseguinte, o esprito no levado a tirar uma concluso sobre a conjuno constante e regular daquelas, tendo por base algo que possa conhecer na natureza destas. Pode-se admitir que a experincia passada d somente uma informao direta e segura sobre determinados objetos em determinados perodos do tempo, dos quais ela teve conhecimento. Todavia, esta a principal questo sobre a qual gostaria de insistir: porque esta experincia tem de ser estendida a tempos futuros e a outros objetos que, pelo que sabemos, unicamente so similares em aparncia. O po que outrora comi alimentou-me, isto , um corpo dotado de tais qualidades sensveis estava, a este tempo, dotado de tais poderes desconhecidos. Mas, segue-se da que este outro po deve tambm alimentar-me como ocorreu na outra vez, e que qualidades sensveis semelhantes devem sempre ser acompanhadas de poderes ocultos semelhantes? A conseqencia no parece de nenhum modo necessria. Pelo menos, deve-se reconhecer que aqui o esprito tira uma conseqencia; que deu um certo passo; que h um processo do pensamento e uma inferncia que necessitam de uma explicao. Estas duas proposies no so de nenhum modo iguais: encontrei que tal objeto sempre tem sido acompanhado por tal efeito, e prevejo que outros objetos que so em aparncia semelhantes, sero acompanhados por efeitos semelhantes. Concederei, se vs permitis, que uma das proposies pode ser legitimamente inferida da outra: sei, de fato, que ela sempre se infere. Mas, se vs insistis em que a inferncia feita por uma cadeia de raciocnios, desejaria que vs construsseis este raciocnio. A conexo entre estas proposies no intuitiva. Requer-se um termo mdio que permita ao esprito extrair tal inferncia, se que, verdadeiramente, extrada mediante raciocnio e argumentos. Qual o termo mdio? Devo confessar, algo que ultrapassa minha compreenso, e cabe mostr-lo por aqueles que afirmam que realmente existe e que a origem de todas as nossas concluses acerca dos fatos.

Certamente, este argumento negativo pode tornar-se inteiramente convincente no decorrer do tempo, se muitos filsofos hbeis e perspicazes dirigirem suas investigaes neste sentido, e se ningum for capaz de descobrir alguma proposio conectiva ou algum degrau intermedirio que apie o entendimento nesta concluso. Mas, como se trata de dificuldade recente, os leitores no devem confiar em demasia na sua prpria sagacidade a ponto de concluir que um argumento realmente no existe porque escapa investigao. Por esta razo, preciso empreender pesquisa mais difcil, e, por enumerao de todos os ramos de conhecimento humano, tratar de mostrar que nenhum deles pode proporcionar semelhante argumento.

Todos os raciocnios dividem-se em duas classes: raciocnios demonstrativos, que se referem s relaes de idias, e os raciocnios morais (ou provveis) que se referem s questes de fato e de existncia. Parece evidente que os ltimos no englobam argumentos demonstrativos, pois no contraditrio o fato de que o curso da natureza pode modificar-se e que um objeto, aparentemente semelhante aos j observados, possa ser acompanhado de efeitos diferentes ou contrrios. No posso conceber clara e distintamente que um corpo que tomba das nuvens semelhante em todos aspectos ao da neve tenha, todavia, sabor de sal e queime como o fogo? H proposio mais inteligvel do que esta: todas as rvores florescero em dezembro-janeiro e definharo em maio-junho? Portanto, considera-se inteligvel toda proposio concebida distintamente e sem contradio e, por conseguinte, jamais sua falsidade mostrada por argumento demonstrativo ou raciocnio abstrato a priori.

Entretanto, se os argumentos nos levarem a confiar na experincia e faz-la padro de nosso juzo futuro, deveremos consider-los apenas provveis, isto , referentes s questes de fato e de existncia real, de acordo com a diviso acima mencionada. Mas, se nossa explicao desta classe de raciocnio considerada slida e satisfatria, verificaremos que de fato no existe tal tipo de argumento. Temos dito que todos os argumentos referentes existncia se fundam na relao de causa e efeito; que nosso conhecimento daquela relao provm inteiramente da experincia; e que todas as nossas concluses experimentais decorrem da suposio que o futuro estar em conformidade com o passado. Portanto, tentar provar a ltima conjetura, por argumentos provveis, por argumentos referentes existncia, consiste, certamente, em girar num crculo e dar por admitido o que precisamente se problematiza.

Em verdade, todos os argumentos derivados da experincia se fundam na semelhana que constatamos entre objetos naturais e que nos induz a esperar efeitos semelhantes queles que temos visto resultar de tais objetos. Apesar de somente um bobo ou um louco e ningum mais! pretender discutir a autoridade da experincia ou rejeitar este grande guia da vida humana, lcito, contudo, admitir que um filsofo te