conhecimento e moralidade em david hume cesar louis kiraly

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  • 8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly

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    INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO

    CESAR LOUIS CUNHA KIRALY

    CONHECIMENTO E MORALIDADE EM DAVID HUME

    A POLÍTICA COMO TEORIA DAS INSTITUIÇÕES

    Rio de Janeiro

    2006

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    CESAR LOUIS CUNHA KIRALY

    CONHECIMENTO E MORALIDADE EM DAVID HUME

    A POLÍTICA COMO TEORIA DAS INSTITUIÇÕES

    Dissertação apresentada

    ao Instituto de Pesquisas

    do Rio de Janeiro como

    requisito parcial para a

    obtenção do título de

    Mestre em Ciências

    Humanas: Ciência Política.

    Rio de Janeiro

    2006

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    Dedicatória

    Quando ainda estudante de graduação, meio que por acaso, busquei assistir uma

    palestra sobre Camões no Instituto onde muito concorridamente buscava uma

    vaga para estudar, deparei-me com a cuidadosa voz de Fernando Gil, essa

    experiência me reconduziu aos caminhos da Filosofia e essas páginas são

    tributárias daquele momento. Por isso dedico esse esforço à memória de

    Fernando Gil. Às páginas que escreveu e as que nunca poderá escrever, desde

    hoje e para sempre.

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeço à feitura dessa dissertação à orientação do professor Renato Lessa,

    raramente no meio acadêmico podemos escutar homens que possuam

    comprometimento com paixões consistentes, contudo, no caso do professor

    Renato paixões consistentes são a sua dedicação e sina. Talvez o agradecimento

    que agora escrevo seja um tanto egoísta, pois agradeço ao fato de ter tido

    liberdade para pensar, acesso a uma infindável qualidade de títulos e autores que

    me foram oferecidos pelo meu orientador e pela escolha, hoje incontornável, de

    fazer das reflexões teóricas minha dedicação de vida. Devo isso à influência,

    orientação e suporte do professor Renato Lessa.

    Agradeço ao professor Paulo Tunhas da Universidade de Fernando Pessoa

    (Portugal) o semestre acadêmico em que estudamos juntos foi fundamental para a

    definição do corpo dessa dissertação.

    Agradeço a fabulosa estrutura institucional do IUPERJ sem a qual não poderia ter

    realizado a pesquisa à qual me destinei. A eficiência da biblioteca e da secretaria

    foram fundamentais para a busca dos livros e enfrentamento dos trâmites

    burocráticos. Agradeço a bolsa a mim concedida pelo CNPq sem a qual não teria

    a tranqüilidade para levar o meu intento a termo.

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    RESUMO

    A presente dissertação trata de três dimensões da obra filosófica de David Hume:

    a. os fundamentos de sua filosofia do conhecimento b. sua investigação sobre a

    moral c. a possibilidade de se pensar uma filosofia da política por intermédio de

    uma teoria da instituição. Em função dos princípios da filosofia humeana somos

    levados a pensar a natureza humana através do conceito de trauma, de modo a

    relacionar as experiências morais com as experiências políticas, contando, para

    tanto, com uma obra de Alsem Kiefer e um trecho de narrativa de Primo Levi.

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    SUMÁRIO 

    1 INTRODUÇÃO 8 

    2 O CONCEITO DE ENTEDIMENTO

    2.1 O ceticismo como atitude epistemológica 24

    2.2 Percepção: impressões e idéias 36

    2.3 Espaço e tempo 47

    2.4 A alucinação e as idéias abstratas 56

    2.5 Conhecimento e alucinação 67

    3 OS CONCEITOS DE MORAL E POLÍTICA

    3.1 A natureza humana e a moralidade 100

    3.2. Determinação moral: natureza e artifício 110

    3.3 A justiça como virtude artificial 126

    3.4 A política como teoria das instituições 148

    4 O CONCEITO DE CRÍTICA

    4.1 Aisthanomai: regime de sensações

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    4.1.1 Sensações e gosto: fundamentos da crítica 171

    4.1.2 O gosto crítico e a opção moral 174

    4.1.3 Moral e estética: o inexorável da sensação 189

    4.2 Traumatologia: a política e o ranger de ossos 197

    4.2.1 Trauma em política: o caramelo de gelo 204

    5 CONCLUSÃO 209 

    6 REFERÊNCIAS 216 

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    1 INTRODUÇÃO

    *

    Existe um célebre conto húngaro que narra a história de um ferreiro

    especializado em retirar cataratas com o uso de um canivete. Esse ferreiro atendia

    a todos que solicitavam os seus serviços, independendo da complexidade do

    caso, ele afiava o seu canivete na barra da calça, ordenava que o paciente fosse

    segurado e com habilidade ímpar removia todo o tecido que escurecia a vista.

    Sabendo desse magnífico ferreiro os doutos acadêmicos de Buda solicitaram em

    vê-lo, pois o procedimento realizado pelo ferreiro com absoluta precisão, quando

    feito por eles, cegava quatro em cinco pacientes. Recebendo o pedido de

    comparecimento na universidade o ferreiro logo se aprontou, economizou o

    dinheiro para a passagem de trem, enviado pelos doutos, para comprar uma

    refeição mais apetitosa e andou o dia inteiro até chegar na dita instituição.

    Chegando lá, esbaforido, perguntou quem era o paciente; os doutos logoindicaram que era o homem sentado à mesa, o ferreiro pegou o seu canivete, o

    afiou na barra da calça e quando foi iniciar o procedimento, foi interrompido por

    um dos médicos que lhe indagou se não gostaria de utilizar um bisturi

    especializado para o assunto. O ferreiro negou a oferta, dizendo que o instrumento

    correto já se encontrava em suas mãos, iniciou a operação, retirando, como quem

    descasca uma laranja a catarata bem madura. Os médicos ficaram atônitos e em

    coro começaram a explicar para o ferreiro a magnitude de seu feito, a

    complexidade do procedimento, o fato de que se tivesse desviado um pouco a

    mão, a cegueira seria certa, alardearam sobre o quão complexo é o olho, a

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    fragilidade de suas nervuras etc. O ferreiro após tamanho falatório começou a suar

    e a hesitar, suas mãos que antes eram firmes como os olhos de uma águia,

    começaram a ficar trêmulas e inseguras. Ele se aproximou do outro olho do

    paciente, olhou um pouco, mas se afastou. Um dos médicos se aproximou e

    perguntou para o ferreiro pálido se não repetiria o feito. O ferreiro deixou o

    canivete cair, tomado pelo medo e pelo terror. Em meios a médicos informados

    deixou escapar que jamais empunharia um canivete novamente, para retirar uma

    catarata, não queria, por medo, fazer cegar.

    Admitimos que o conto exposto é a história que temos conhecimento que

    melhor explana os princípios filosóficos que ansiamos por explicitar, se

    escrevemos as páginas que se seguem é para meter medo em todos os ferreiros

    bem intencionados que ousem empreender grandes feitos desconhecendo os

    princípios aqui presentes. Abandonando as ironias. A história narrada muito

    lembra a célebre passagem de Hume que ao se fatigar com o estudo da filosofia

    atirou seus livros à fogueira e prontamente atendeu o pedido de seus amigos para

    ir jogar gamão ou a carta de seu amigo Adam Smith a William Strahan narrando

    que o bon David  se aprazia, bem próximo da morte, com o Diálogo dos Mortos de

    Luciano e que não conseguia encontrar, dentre as desculpas apresentadas a

    Caronte nenhuma que lhe servisse para adiar sua entrada no barco, mas se

    divertindo em encontrar algum subterfúgio imaginou que poderia dizer:

    Bom Caronte, eu estou corrigindo minhas obras para uma nova edição. Conceda-

    me um pouco de tempo, para que eu possa ver como o público reage às

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    alterações. Mas Caronte responderia: “Quando você tiver visto os efeitos dessas

    alterações, irá querer fazer outras. Essas desculpas não terão fim; então amigo

    honesto, por favor entre no barco”. Mas eu ainda argumentaria: “Tenha um pouco

    de paciência, bom Caronte, es estou me empenhando para abrir os olhos do

    público. Se eu viver alguns anos mais, poderei ter a satisfação de ver o declínio de

    alguns sistemas de superstições que hoje vigoram”. Mas Caronte perderia então a

    paciência e a cordialidade. “Seu pândego enganador, isso não acontecerá em

    muitas centenas de anos. Você acha que eu posso lhe conceder um prazo tão

    longo? Entre no barco agora mesmo, seu pândego enganador e preguiçoso1”.

    As páginas que se seguem versarão sobre o sentido cético e empirista da

    política, no conto húngaro o cético se encontra no lugar do narrador da história,

    não está nem no corpo do ferreiro em sua habilidade cega, própria ao common

    sense   e nem do lado dos cegos doutos sabedores das leis da natureza e das

    razões últimas, mas incapazes de realizar um feito sequer. O cético está na mão

    do ferreiro e no conhecimento da natureza humana. A mão do ferreiro é capaz de

    realizar as mais delicadas incisões e o conhecimento da natureza humana permite

    que a mão não trema, ainda que aterrorizada pelas complexidades enciclopédicas,

    de modo a, além de empreender o feito, narrar os princípios da história.

    **

    Todo o conhecimento filosófico é uma investigação sobre a natureza

    humana, independentemente do espaço teórico onde se desenvolva; todas as

    1 Adam Smith. Carta de Adam Smith a William Strahan in: _ Ensaios. p. 84

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    questões colocadas sobre a realidade ou sobre o espírito, interrogam a natureza

    humana de alguma forma. Até o mesmo o pensamento positivo mais absoluto

    direciona uma determinada concepção de homem. O pensamento político,

    outrossim, não se organiza sem que haja interrogação sobre a natureza humana e

    sem uma determinada concepção de antropologia filosófica. O pensamento é um

    ato político, na medida em que interpela a natureza humana, em sua relação com

    o mundo.

    O empirismo filosófico humeano se pretende a ciência da natureza humana,

    sendo anterior as ciências positivas e instaurador do pensamento moral. No início

    das suas Investigações sobre os princípios da moral  fala de que a filosofia moral

    ou ciência da natureza humana pode ser feita de duas formas: a. a primeira delas

    considera o homem como nascido para a ação, não para valores específicos da

    ação, sendo influenciado pelo sentimento e pelo gosto, buscando alguns objetos e

    evitando outros. Como a virtude é o bem mais importante para o homem de

    espírito, esses filósofos “a pintam com as cores mais agradáveis, tomando de

    empréstimo toda a ajuda da poesia e da eloqüência, e tratando seu assunto de

    maneira simples e acessível, como é mais adequado para agradar a imaginação e

    cativar os afetos2”. Buscam a diferença de sentir entre vício e virtude, de modo a

    encontrar alguma objetividade, mas compreendem o quão singulares são essas

    compreensões e a fragilidade da objetividade. b. o outro modo de empreender aciência da natureza humana é fazê-lo a maneira dos dogmáticos, realizando

    generalizações acerca dos preceitos morais, estabelecendo parâmetros de

    2 Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. p. 19

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    verdade e falsidade para as ações. Não é demais indicar que a filosofia moral de

    Hume se coloca no primeiro tipo, contra o segundo, não existindo, para ele,

    qualquer distinção entre um filósofo ou um plebeu quanto à atividade de sentir,

    sendo abstruso encontrar distinções de natureza para os sentimentos. “Os

    sentimentos de nosso coração, a agitação de nossas paixões, a veemência de

    nossos afetos dissipam todas as suas conclusões e reduzem o filósofo profundo a

    um mero plebeu”. O   empirismo filosófico de David Hume é uma atitude

    epistemológica que se vincula a uma determinada concepção de política. Tanto

    entre os gregos como entre os modernos, o empirismo esteve ligado à recusa do

    racionalismo e refutação às compreensões teleológicas acerca da realidade3.

    Quando recusamos o racionalismo, dizemos que os conceitos que nortearão a

    nossa vivência pública devem estar fundados na experiência, quando recusamos

    a teleologia, indicamos que não nortearemos os rumos de nossas sociedades, por

    algum ponto dado a priori, mas que observaremos as estratégias das instituições,

    para, então, fixar rumos. O pensamento de David Hume se filia a uma

    compreensão de moral que parte de uma teoria do conhecimento, não dogmática

    e atomística, para fundamentar uma teoria política que não faz predições sobre o

    fenômeno institucional, mas o analisa do ponto de vista das crenças estruturantes.

    As instituições, não são racionais em si, mas são observáveis sob o ponto de vista

    de seus valores e funcionalidade.

    É errônea a compreensão que qualifica o empirismo humeano como um

    modo de filosofar que se prende aos fatos, ou, que é uma maneira de pensar que

    3 J. B. Schneewind. The invention of autonomy. p. 404

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    busca a realidade dos objetos4. O empirismo filosófico é identificado como um

    modo de investigação que privilegia a experiência. Quando falamos experiência,

    tanto estamos expondo a apreensão pelas percepções, quanto o estudo das

    sensações, essas não sendo empíricas. Dizer experiência para Hume é indicar a

    investigação do percebido e também do sentido, do sentimento e da crença; e por

    isso esse tipo de empirismo é tão interessante para a investigação moral e

    política5.

    4  Por certo que na história da filosofia podemos notar muitas formas de empirismo. Desde o

    empirismo de Aristóteles contraposto ao racionalismo de Platão; até a contraposição entre

    empiristas e racionalistas, estabelecida por Hegel, com efeito, a distinção entre racionalistas e

    empiristas não acrescenta em muito à história da filosofia, sendo, em larga medida, um

    despropósito, na medida em que nem os ditos racionalistas se afastam de um certo empirismo,

    como os empiristas de um determinado racionalismo. Contudo, o fato de assumirmos

    copiosamente o termo empirista denota o nosso interesse em assumir um determinado modo de

    filosofar inaugurado pela filosofia de língua inglesa, que pode ter sua genealogia remontada pelas

    figuras de Bacon, Locke e Hume. Dos três pensadores citados nenhum pode ser reduzido a

    imagem de um filósofo que trata de fatos, contudo, julgo importante denominá-los empiristas, ainda

    que por motivos diferentes, na medida em que filosofam, em especial no caso de Hume, com as

    sensações e com a interrogação das crenças.

    5 Para uma compreensão mais tradicional do empirismo indicamos: Johannes Hessen. Teoria do

    Conhecimento. p. 59 “A importância do empirismo para a história do problema do conhecimento

    consiste em que, em oposição à negligência racionalista com respeito à experiência, ele apontou

    enfaticamente a importância desse fator de conhecimento”. Concordamos no que tange a

    importância da experiência para o conhecimento, mas discordamos com relação à dimensão do

    conceito de experiência.

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    Os gregos, pelo termo empeiría,  denominavam uma sabedoria que era

    marcada pelo conhecimento prático, se opondo ao insulamento do conhecimento

    teórico. Assim, partindo da experiência, o filósofo empirista é capaz de teorizar o

    mundo, não enquanto substância, mas enquanto possibilidade; a teoria para o

    empirismo não é um ato de enunciação da verdade, mas uma atividade de

    estabelecimento de critérios aos modos percepção, para, assim, alçar a

    compreensão do mundo.

    Hume antes de Kant já conhecia a distinção entre juízos analíticos e juízos

    sintéticos, por intermédio da distinção entre matters of facts  e relations of ideas . As

    relações entre idéias, como os juízos analíticos, grosso modo, não dependeriam

    da experiência para a realização de critérios de verdade, na medida em que os

    termos do raciocínio seriam verdadeiros em si mesmos, Hume e Kant evidenciam

    que as verdades da matemática e algumas leis da natureza não precisam de

    qualquer comprovação para a constituição de seu estatuto de validade. Por outro

    lado às relações entre fatos, tal como os juízos sintéticos, demandariam o contato

    com objetos e a verificação factual das proposições feitas com relação a eles. Não

    examinaremos o fato de Kant conceber a existência de juízos sintéticos a priori , na

    medida em que nos interessamos para a questão de Hume já perceber que a

    distinção entre relações de fatos e relações entre idéias não é rigorosa. Quando

    insere o método experimental nos assuntos morais enseja contaminação recíprocaentre o raciocínio abstrato e a investigação de fatos. Willard Van Orman Quine em

    artigo intitulado Two Dogmas of Empiricism   defende que o empirismo moderno

    possui comprometimento com duas teses fundamentais: a. existe uma separação

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    rigorosa entre verdades da razão e fatos da vida pública b. tudo aquilo que é

    conhecido, em última instância, possui relação com alguma experiência imediata.

    As linhas que direcionam esse trabalho afastam esses dois dogmas da teoria do

    conhecimento e da filosofia moral de Hume, tendo em vista que já percebia que a

    validade dos enunciados demanda construção efetiva dos seus termos lógicos, e

    esses não possuem relação de essência, mas são estabelecidos em função de

    sistemas dados a serem construídos pelo entendimento. Por certo que não é fácil

    escapar da identidade ou da não contradição, assim como não é simples escapar

    das determinações das leis da física, contudo, ensejamos que a filosofia de Hume

     já adianta a compreensão que sistemas lógicos não são organizados de modo

    auto-referenciado, eles demandam, antes de atingirem o cume dogmático, de

    crenças específicas que demandam tal ou qual organização sistêmica do mundo.

    Concordamos com as conclusões de Quine, como por exemplo, que “a totalidade

    daquilo a que chamamos de nossos conhecimentos ou crenças, das mais casuais

    questões de geografia e história, às mais profundas leis da física atômica ou

    mesmo da matemática pura e da lógica, é uma construção humana que está em

    contato com a experiência apenas em suas extremidades6”. Contudo, pensamos

    que já podemos fazer essa assertiva sobre a filosofia humeana, principalmente

    quando investigamos a sua filosofia política e a relação que essa filosofia possui

    com sua teoria do conhecimento. Quando interpelamos o papel da imaginação no

    Treatise   dificilmente restaremos convencidos pela separação estrita entre juízos

    abstratos e determinações de fato. O ceticismo de Hume aliado ao seu empirismo

    6 Willard Van Orman Quine. Two dogmas of empiricism. p. 252

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    nos auxilia a compreender, como salienta Quine, que a validade dos enunciados

    não possui relação de essência, mas de uso, de modo que a sistematicidade

    lógica deve atender a alguma crença de sistematicidade, gerando vínculos

    graduais nas muitas esferas das crenças e das evidências. Pensamos que a

    citação de Quine que reproduziremos, se interpretada à luz da necessidade de

    segurança para as instituições políticas, pode servir com um bom prelúdio para as

    questões que enfrentaremos a seguir:

    Como empirista, continuo a pensar no esquema conceitual da ciência como uma

    ferramenta, em última instância, para prever a futura experiência à luz da

    experiência passada. Os objetos físicos são introduzidos conceitualmente na

    situação de intermediários convenientes – não pela definição em termos de

    experiência, mas simplesmente como supostos irredutíveis, comparáveis,

    epistemologicamente, aos deuses de Homero. Por minha parte, entretanto, como

    físico leigo que sou, acredito nos objetos físicos e não nos deuses de Homero; e

    considero um erro científico acreditar diversamente. Mas na questão do

    embasamento epistemológico, os objetos físicos e os deuses diferem apenas em

    grau, não em espécie. Ambos os tipos de entidade integram nossa concepção

    apenas como supostos culturais. O mito dos objetos físicos é epistemologicamente

    superior à maior parte dos outros mitos porque provou ser mais eficiente que os

    demais como expediente para introduzir uma estrutura manipulável no fluxo da

    experiência7.

    7 Willard Van Orman Quine. Two dogmas of empiricism. p. 253

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    Acreditar nos objetos, para a política, é similar ao ato de acreditar nas

    instituições, na justiça, na verdade política e na beleza da virtude. Por certo que o

    fundamento epistemológico dessas questões é bastante discutível; ainda mais se

    formos bastante pirrônicos, contudo essas crenças mostram-se na história,

    fundamentais para a constituição de um espaço público minimamente tolerável do

    ponto de vista moral e estético. Paulo Tunhas esclarece que os atos de crença

    possuem estatutos de adesão distintos, sendo que acreditar na verdade, demanda

    um alcance maior da verificação do que acreditar na justiça; que demanda um

    vínculo maior com a argumentação e acreditar no Belo que demanda apego ao

    prazer desencadeado pela experiência de contemplação. Contudo, todos os atos

    formadores de crenças envolvem sistemas com logicidade, entendendo que a

    criação de uma crença não está relacionada com qualquer voluntarismo, mas com

    uma determinada dinâmica social, o que faz com que nem toda crença seja capaz

    de produzir sentido, quando deslocada de seu eixo particular.8  Com isso

    desejamos indicar que a interação entre crenças, demanda a mobilização de

    regras concernentes a essas crenças, ocasionando a necessidade da crença

    possuir uma determinada lógica de interação. Vemos essa necessidade com mais

    clareza no tema das instituições políticas; as crenças públicas demandam uma

    certa lógica particular para que seja produtora de sentido, quando deslocada de

    seu cenário a crença perde sua validade imediata.

    A compreensão atomística da realidade, parte da imagem do mundo feito

    em pequenos fragmentos apreensíveis pela percepção, assim para cada

    8 Paulo Tunhas. Três tipos de crenças. p. 121

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    impressão captada pela percepção teremos uma idéia correspondente, essa

    imagem filosófica do mundo permite que a política seja interpretada enquanto uma

    questão de pluralidade de mundos9. Não se trata aqui de ressaltar a contenta

    filosófica que contrapõe o Uno ao Múltiplo, mas de assumir o mundo enquanto

    pluralidade, por certo que perceber o mundo enquanto uma unidade ou enquanto

    pluralidade; depende, em larga medida do ponto de observação, pois toda

    multiplicidade poderá ser agrupada em uma unidade e toda unidade poderá ser

    decomposta em elementos constitutivos, contudo a assunção da imaginação em

    política e a imaginação enquanto ponto fundador da vivência da natureza humana

    em instituições depende da noção de que podemos, por intermédio da ação e do

    intelecto, perceber que o mundo institucional é composto por uma pluralidade de

    mundos10, ora conflitantes, ora convergentes, sendo que o estudo da ciência da

    política de modo empirista e cético, e, portanto, não dogmático, demanda que

    9 Devemos a compreensão da possibilidade de se perceber o mundo político enquanto pluralidade

    atomística à leitura da tese de doutoramento de Renato Lessa em seu primeiro volume, em Vox

    Sextus explicita a idéia atomista de desvio, a qual pode ser interpretada, no terreno das

    instituições, com a necessidade de quebra, modificação, fundamento para a noção de que

    diferentes crenças produzem diferentes mundos. As discussões do Laboratório de Estudos

    Hum(e)anos no semestre 2005/1 circundaram essa temática quando da leitura do Tratado da

    Natureza Humana. Indicamos também o artigo Filosofia Política e Pluralidade dos Mundos também

    de Renato Lessa.

    10  Renato Lessa. Filosofia Política e Pluralidade dos Mundos. p. 63-68 Sobre essa temática

    indicamos também Nelson Goodman. Modos de Fazer Mundos. p. 46

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    interpelemos o papel constitutivo na crença na pluralidade de mundos políticos

    que ensejamos investigar11.

    ***

    Esta dissertação está dividida em três partes. Na primeira parte

    investigamos o problema do entendimento e os modos como a natureza humana

    estabelece matizes para o conhecimento. Para tanto, partimos da compreensão

    de que o ceticismo de Hume se distingue do ceticismo tradicional, tal como foi

    sistematizado por Sextus Empíricus, pelo fato de ser um ceticismo criativo que se

    estrutura na assunção da pluralidade de opiniões e crenças. Extraindo dessa lida

    as noções de que: a. a falibilidade deve ser um elemento constitutivo no

    estabelecimento de princípios racionais e b. o acaso é o fundamento último para a

    atitude cética. Seguimos com a exposição da epistemologia da percepção

    enunciada por Hume no primeiro livro do Tratado da Natureza Humana ,

    enfatizando a relação entre percepções, impressões e idéias e correlacionando

    com o conceito de patchwork  de William James, para a explicitação da noção de

    associação de idéias na imaginação. Nesse sentido, expomos a doutrina do

    espaço e tempo particular ao ceticismo e empirismo humeano. Para lançarmos a

    aproximação entre teoria do conhecimento e pensamento político, invocamos o

    conceito de alucinação desenvolvido por Fernando Gil em A convicção para

    11 Renato Lessa. Filosofia Política e Pluralidade dos Mundos. p. 69 “Creio que esse campo pode

    ser representado pó meio da metáfora da pluralidade dos mundos. O que resulta dessa aplicação

    metafórica é a visão da emergência de uma pluralidade de sistemas de interpretação e de

    figuração da vida social”.

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    complementar a nossa argumentação. Defendemos que a relação de necessidade

    entre uma crença e sua atualização pública depende de um salto alucinatório que

    precipita a instabilidade da crença na estabilidade da instituição. Da mesma forma

    como nosso entendimento necessita compor idéias para gerar conceitos,

    necessitamos da alucinação para confiar nos conceitos. Ensejamos que a

    alucinação é distinta do delírio, de modo que a ciência da política se aproxima da

    investigação sobre a alucinação e na crítica ao delírio. Esse sendo compreendido

    como a composição de sistematicidades que não possuem referente na

    experiência ou em matéria política não possui referente na história dos homens e

    das instituições. A sentença de Tertuliano: “creio no que absurdo”   possui larga

    aplicação no campo de relações entre o entendimento e a vida pública, pois os

    resultados das combinações entre idéias demandam uma espécie de confiança

    absurda para gerar efeitos na vida ordinária. Nesse primeiro capítulo tentamos ser

    exaustivo com a teoria do conhecimento de Hume, mas não fomos exaustivos no

    exame da obra de Fernando Gil: utilizada apenas de modo subsidiário e por vezes

    pouco fiel aos pressupostos do autor. De modo que a apropriação do conceito de

    alucinação para o estudo da obra de Hume, para além de tentar demonstrar

    alguma afinidade absurda entre esses dois autores, procura mostrar

    complementaridade com relação ao exame da relação entendimento com a vida

    política.

    A segunda parte desta dissertação versa sobre o conceito de moralidade e

    de política. Com relação à moralidade ensejamos o conteúdo do livro terceiro da

    Tratado da Natureza humana   e da Investigação sobre os princípios da moral  

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    precipuamente a distinção entre virtudes naturais e virtudes artificiais. Por certo

    que para empreender essa discussão tivemos que importar os temas relacionados

    às dinâmicas da paixão da natureza humana, aclarando a diferença entre paixões

    diretas e indiretas e explorando o tema da intensidade das paixões enquanto

    desencadeador de sentimentos morais. Damos bastante ênfase no tema da

    artificialidade, o que julgamos central para a leitura da teoria moral de Hume de

    modo a encaminhar para uma teoria das instituições subjacente às suas

    discussões sobre a política. A nossa investigação sobre a moral encontra ápice na

    discussão sobre a justiça onde encontramos na moralidade os elementos

    constitutivos para a discussão sobre a interação entre paixões e crenças no

    núcleo das instituições. A segunda parte da dissertação adentra, pois, no tema da

    teoria política dando ênfase ao tratamento às questões abordadas por Hume em

    seus Ensaios . Realizamos estudo sistemático dos ensaios: Que a política pode ser

    reduzida a uma ciência, Dos primeiros princípios do governo, Da origem do

    governo e Da superstição e do Entusiasmo . Dessa leitura extraímos a máxima de

    que o estudo da política deve ser empreendido enquanto uma investigação de

    princípios calcados da constituição originária da falibilidade, na investigação da

    natureza humana e na descrição do funcionamento das crenças. De modo que

    evidenciamos que na obra política de Hume deve ser enunciada uma teoria das

    instituições que possui como objeto precípuo à investigação e descrição da

    dinâmica das crenças que se cristalizam na vida pública12.

    12 A idéia de que a política deve ser estudada enquanto uma atividade experimental já é enunciada

    em A Invenção Republicana. p. 14-15 de Renato Lessa traçando inclusive o aporte da filosofia de

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    A terceira parte desta dissertação visa demonstrar a importância do

    conceito de crítica na filosofia humeana – devendo ser indicado que para Hume o

    termo crítica possui conotação de estudo sobre as sensações desencadeadas

    pela apreciação artística, sendo uma investigação sobre temas que se relacionam

    com o gosto – de maneira a relacionar a determinação do Belo com a

    determinação do Bem, aproximando, dessa forma, as discussões sobre a

    moralidade com as investigações sobre as obras de arte. O tratamento que damos

    aos ensaios: Da delicadeza do gosto e da paixão, Do refinamento nas artes e Do

    padrão do gosto ; encaminha para a discussão sobre o sentido da moralidade e da

    arte, de modo a indicar que podemos, através da investigação crítica, abordar

    questões relativas ao Bem e ao justo.

    Contudo a relação de necessidade entre os juízos morais e os juízos

    críticos não é absolutamente imperiosa se não for constituído um vínculo na

    natureza humana que conjugue ambas as questões. Supomos que o melhor

    vínculo para demonstrar essa indissociabilidade é o conceito de trauma presente

    na teoria psicanalítica. Por certo que a leitura entre a filosofia de Hume e os temas

    da psicanálise não possuem qualquer vínculo imediato, contudo, de forma mediata

     julgamos que a estrutura do trauma, enquanto quebra e rompimento de alguma

    cadeia causal, evidencia que nos temas morais e nos temas críticos existe uma

    contigüidade habitante da noção de sensação. Tanto nas experiências morais

    Hume para nos aproximarmos dessa questão; o que faço aqui é dialogar com essa idéia,

    aprofundá-la em alguns sentidos e apresentar algumas conseqüências. As intuições aqui

    apresentadas foram desenvolvidas nas discussões do Laboratório de Estudos Hum(e)anos 2006/2.

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    quanto nas experiências críticas lidamos com uma sorte de sensações

    particulares, as quais quando sistematizadas fornecem origem aos conceitos

    próprios de cada disciplina. Todavia, quando analisamos o conceito de trauma,

    percebemos que na vida pública, as sensações não se encontram em divisões

    disciplinares, de modo que o rompimento da cadeia causal das instituições aclara

    que as sensações sejam elas políticas ou morais, reagem, conjuntamente, de

    modo negativo, o que significa imprevisibilidade e dor. Se o vínculo entre

    moralidade e crítica pode ser evidenciado pelo conceito de trauma, o conceito que

    diz a relação entre a quebra da causalidade e dor ainda carece de exemplificação

    e contigüidade com a teoria política. A exemplificação é conseguida pela análise

    de uma obra de Alsem Kiefer e de um trecho dos relatos de Primo Levi13.

    13  As idéias desenvolvidas na terceira parte dessa dissertação são resultado das discussões do

    Laboratório de Estudos Hum(e)anos 2005/2 no curso organizado por Renato Lessa sob a ementa:

    Trauma, testemunho e arte: explorações sobre os temas da estética e da representação. As

    indicações de se pensar o trauma através da literatura de testemunho advêm das intuições de

    Renato Lessa muito mais aprofundadas e abrangentes do que as apresentadas em nosso terceiro

    capítulo. Kiefer e Levi foram autores presentes quando do curso e o que fazemos aqui é apenas

    apresentar uma determinada leitura do problema, partindo da filosofia crítica de Hume.

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    2. O CONCEITO DE ENTENDIMENTO

    2.1 O ceticismo como atitude epistemológica

    Vamos defender nas linhas que se seguem a tese de que o ceticismo

    humeano é uma nova atitude epistemológica. Atitude essa ligada à recusa de

    sistemas metafísicos abstrusos e postura de conhecimento que beneficia a

    criatividade. Sistemas metafísicos abstrusos devem ser entendidos pelos castelosde conceitos que possuem pouca ou nenhuma relação com a experiência.

    Denominaremos esse tipo de ceticismo, portanto, de ceticismo criativo.

    O ceticismo criativo de Hume dialoga diretamente com a tradição da

    filosofia cética. Aponta onde se filia a essa tradição e onde se desvia

    propositadamente. Veremos, após recuperarmos essa tradição, os argumentos

    que montam uma abertura especial ao conhecimento, para depois, engendrarmos

    uma leitura de Hume que concilia abertura epistemológica cética, naturalismo

    moral e mobilidade institucional.

    Seguindo a orientação histórica dada por C. B. Schmitt vemos que o

    ceticismo acontece no período tardio Grego principalmente com a figura de Pirro

    de Elis (360-270 a.C.), passando pelos acadêmicos, continuando até a

    sistematização empreendida pelo pós-acadêmico Sextus Empíricus. A

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    originalidade se encontra do lado de Pirro e do lado de Sextus encontramos a

    fabulosa sistematização14.

    Após o período de criação conceitual do ceticismo Grego, temos a

    consolidação e amenização de alguns princípios pela corrente filosófica conhecida

    como Academica , despontada pela figura de Cícero cuja tese cética principal era a

    de que a verdade é alguma coisa de que podemos nos aproximar através de

    argumentos prováveis. Tanto que no Livro II, parte iii, dos Academica   traz a

    formulação de que devemos sempre argumentar em favor de todos os lados in

    utramque partem dicendo   para assim alcançar um resultado verdadeiro ou

    próximo a isso. Com Sextus Empíricus tivemos o ressurgimento do pirronismo.

    Hume, profundo conhecedor da tradição clássica, escreve um ensaio chamado O

    Cético   em seus Ensaios Morais, Políticos e Literários , nesse inicia o seu

    argumento dizendo que os filósofos sofrem de limitações pessoais, todavia

    insistem em estender as suas limitações à natureza, explicando-a por princípios

    que são falhos e limitados. A pretensão de abarcar toda a natureza num sistema

    desperta desconfiança para o cético. Esse princípio de reserva acerca das

    explicações “verdadeiras” Hume retira de Sextus Empíricus e o reformula. Como

    todos os homens o filósofo possui limitações e preferências. O erro do filósofo,

    principalmente o moralista, é considerar o seu gosto como algo que pode ser

    erigido a um princípio válido para todos15

    .

    14 C. B. Schmitt. The rediscovery of ancient skepticism in modern times. p. 226

    15 David Hume. O cético. Ensaios morais, político e literários. p. 286

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    A reação ao ceticismo é sempre muito violenta. Tanto autores céticos como

    não céticos optaram pela oposição de um cético imaginário em seus escritos.

    Agostinho escreve contra Cícero. Grotius escreve contra Carneades. Até mesmo

    Descartes, visto como um cético por alguns, opta por vencer o ceticismo por

    intermédio do “correto uso da razão”. O fato é que o ceticismo renasceu com força

    estrondosa na idade moderna. Tese que é desenvolvida por Richard Popkin16. O

    século XVI é marcado por um cristianismo cético, vendo o exemplo de Pico della

    Mirandolla, segundo o qual, já que o conhecimento é sempre duvidoso devemos

    acreditar na revelação. Assim como um Montaigne, sendo mais influente,

    populariza a figura dos Ensaios e aborda pelo método cético uma série de temas

    duvidosos. O ressurgimento do ceticismo por intermédio da inspiração religiosa é

    comumente denominado fideísmo. Esse, aparentemente, apresenta duas faces: a

    primeira busca uma fundamentação radical da verdade revelada, utilizando o

    método cético pra conseguir um estado de ausência de dúvida acerca da fé. Um

    segundo fideísmo comportaria uma certa indiferença a assuntos da fé, tendo em

    vista que em tal terreno não podem ter qualquer pretensão racional.

    Para o nosso interesse em Hume é necessário remontar somente algumas

    teses do ceticismo pirrônico, tarefa que passaremos a empreender a partir desse

    ponto. A leitura será atravessada por apresentações do posicionamento humeano

    acerca de algumas teses políticas, para, por fim, trazermos o que pode serentendido como um ceticismo criativo.

    16 Richard Popkin. História do ceticismo de Erasmo a Spinoza. p. 49-59

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    Sextus Empíricus descreve-nos o cético com um filósofo que, na esperança de

    obter a quietude e a imperturbabilidade, saiu a campo para investigar o que é

    verdadeiro e o que é falso nas coisas, porque perturbado pelas anomalias e

    contradições que nelas encontrava e pela dúvida sobre a que alternativas dar ao

    seu assentimento18.

    Contudo, o cético não suprime as aparências, mas realiza a epoché  visando

    os argumentos que se relacionam às aparências, pois, para o cético, a aparência

    deve ser assumida de modo radical, na medida em que repousa em assentimento

    involuntário, em confiança na relação ordinária com o mundo. O fenômeno não é

    discutido, mas a interpretação que a razão pode dar ao fenômeno, essa sim é

    problemática, pois uma interpretação abre um universo de prismas sobre questões

    que sempre se abrem em novas perspectivas. Tal hiperbolização prismática é

    insuportável para o cético. O exemplo largamente citado sobre essa questão é o

    do mel: esse não pode ser dito como doce, mas que parece doce, isso com

    certeza19. Pois duvidoso não é o fenômeno, mas o logos . Com efeito, se nos

    indagássemos o princípio fundamental do ceticismo, deveríamos indicar que esse

    só pode ser a prática de opor proposições, de modo a evidenciar as suas

    18 Oswaldo Porchat Pereira. Ceticismo e mundo exterior. p. 126

    19 Sextus Empíricus. Outlines of Pyrrhonism. p. 38

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    equivalências e demonstrar que é impossível decidir acerca de uma sentença que

    tenha a validade como predicado20.

    O ceticismo de Sextus Empíricus possui uma finalidade (telos ) precípua, o

    alcance necessário da ataraxia   com relação às crenças (doxam)  e aos

    sentimentos moderados (metriopatheian ). Devendo ficar claro que Sextus entende

    telos como sendo o objeto último do desejo, todavia, devemos ressaltar que a

    ataraxia  pode ser objeto de um desejo, mas não é alcançada pelo desejo. Ainda

    que a suspensão do juízo seja um ato exclusivamente intelectual, a ataraxia surge

    como que por acaso, não sendo motivada pela vontade. A assertiva de Sextus:

    Is that the Skeptic’s end, where matters of opinion are concerned, is mental

    tranquility; in the realm of things unavoidable, moderation of feeling is the end. His

    initial purpose in philosophizing was to pronounce judgment on appearances. He

    whished to find out which are true and which false, so as to attain mental

    tranquility. In doing so, he met with contradicting alternatives of equal force. Since

    he could not decide between then, he withheld judgment. Upon his suspension of

     judgment there followed, by chance, mental tranquility in matters of opinion21.

    A afirmação de que os eventos morais podem ser interpretados pelo crivo

    da natureza é absolutamente criticável para o cético, a consideração de que

    existem predicados bons ou maus para os eventos, por natureza, é para Sextus a

    20 Sextus Empíricus. Outlines of Pyrrhonism. p. 38

    21 Sextus Empíricus. Outlines of Pyrrhonism. p. 41

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    marca da perturbação que o cético procura evitar. Quando considera eventos bons

    ou maus por natureza, o homem que assim o faz sofre quando os elementos que

    considera bons são substituídos por outros, e vive na expectativa de que o mal

    seja passageiro22. A prescrição cética é a de que o homem seja ataraktei , ou seja,

    que não persiga obstinadamente alguma coisa. A melhor descrição de Sextus de

    um homem ataraktei que alcança a diminuição de seu sofrimento pela extinção da

    expectativa e da crença é a do pintor Appeles. Esse bastante perturbado acerca

    do detalhe da espuma do nariz do cavalo que estava pintando, abandonando a

    inglória tarefa de atingir o detalhe, arremessa, por sobre a tela, a esponja com a

    qual limpava os seus pincéis, a marca da esponja fez exatamente o efeito

    desejado. Com efeito, o cético não é imperturbável de modo absoluto, o que

    diferencia um cético de um dogmático é que o cético é capaz de suspender o juízo

    frente a sofrimentos aparentemente incontornáveis. Aquilo que perturba de modo

    inevitável, também atinge o cético, mas como esse não interpreta os eventos por

    relações de natureza consegue estabelecer a virtude de um sentimento moderado

    22  A recusa do conceito de natureza como sendo análogo ao sentido de essência é um tema

    recorrente da obra de Hume, ao contrário da tradição aristotélico-tomista Hume vai indicar que,

    tendo em vista não podermos ter experiência da essência (entendamos qualquer tipo de

    experiência, quais sejam, sensação ou intelecção) dos objetos é filosoficamente mais crível

    assumir os fenômenos. A passagem que reproduziremos a seguir ilustra a recusa da concepção de

    essência. David Hume. O cético in: _ Ensaios. p. 286 “Se podemos confiar em algum princípio que

    aprendemos da filosofia, este, acredito, pode ser considerado como certo e inquestionável: Que

    nada existe que seja, em si, valioso ou desprezível, desejável ou odioso, belo ou disforme; pois

    esses atributos resultam da estrutura e da constituição peculiares dos afetos e sentimentos

    humanos”.

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    (metriopatheian) e no que pode ser contornado realiza a epoché 23 . A atividade

    cética não anula a faculdade do sofrimento, contudo, por intermédio da

    compreensão de que os eventos não possuem um valor determinado, consegue

    suprimir a carga de sofrimento acrescentada pelo conteúdo da crença. O sofrer

    cético é um tanto diferente, pois se compõe com a relativização dos valores que

    potencializam a dor.

    Mas no que o ceticismo pirrônico descrito por Sextus difere do ceticismo

    apregoado por Hume? Em um primeiro momento podemos aventar que o

    ceticismo humeano é uma atitude epistemológica que não utiliza as categorias de

    epoché  e de ataraxia . De modo que assume a isosthenia como locus  próprio para

    a realização dos argumentos, de maneira que o pensador não deve se abster da

    pluralidade de argumentos para que possa pensar, mas ao se lançar sobre a

    pluralidade das crenças, pelo largo convívio e aprofundamento pela experiência,

    possui manancial para encontrar regime discursivo mais consistente, mas que não

    se pretende a imagem única do mundo social. Um primeiro elemento do ceticismo

    humeano, o caracterizando enquanto atitude epistemológica; pode ser encontrado

    na sentença que passaremos a reproduzir, nela Hume observa a atividade dos

    filósofos em encontrar princípios válidos para determinados objetos e salienta o

    erro que comentem ao transformar um princípio em hipérbole, empreendendo

    interpretação de todo o universo por uma única causa. Para Hume se possuímosum entendimento limitado, também nossos princípios devem ser limitados.

    Vejamos:

    23 Sextus Empíricus. Outlines of Pyrrhonism. p. 41-42

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    Existe um erro ao qual todos parecem sujeitos, quase sem exceção: eles limitam

    em demasia os seus princípios, tornando-se incapazes de dar conta da imensa

    variedade que a natureza sempre manifesta em suas operações. Uma vez que um

    filósofo consegue estabelecer um princípio fundamental, capaz talvez de explicar

    um grande número de fenômenos naturais, ele passa aplicar o mesmo princípio ao

    universo inteiro, reduzindo todos os fenômenos a esse princípio, mesmo que seja

    por meio do raciocínio mais absurdo e violento24.

    O cético criativo habita a isosthenia , aceitando a pluralidade dos

    argumentos, não admitindo a existência de essências – enquanto recurso para

    evitar a pluralidade das contendas – e enuncia que a atividade da elaboração de

    princípios é bastante salutar, contudo dever ser marcada pela falibilidade, de

    modo que os enunciados devem ser constantemente interpelados, além de

    possuírem campo de aplicação limitado. Da mesma forma ocorre com as

    qualidades morais investigadas na interação da natureza humana com a vida

    pública. O cético admite a existência de sentimentos morais, mas esses não

    decorrem de essências e nem se relacionam com objetos estritos de

    conhecimento. Os sentimentos de bondade e de beleza devem ser interpretados

    sob esse princípio, ainda que imaginemos que a bondade está em uma

    determinada ação universalmente boa, o cético criativo enseja que a bondade se

    estabelece na relação entre o espírito e as ações, de modo que o sentimento

    24 David Hume. O cético in: _ Ensaios. p. 286

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    moral desencadeado pela reviravolta das paixões em relação a um determinado

    feito, denota os limites do conceito e do princípio da bondade. Por isso indaga

    Hume: “Quem não percebe que o poder, a glória e a vingança não são desejáveis

    em si mesmos, mas extraem todo o seu valor da estrutura das paixões

    humanas?25” A mesma coisa acontece com a beleza, os objetos não são belos

    por natureza, de modo que não podemos encontrar elementos intrínsecos que

    denotam características universais, tal como na observação moral, a observação

    crítica26 é notadamente a expressão de um sentimento. O cético criativo concebe,

    dessa forma, que os objetos visados por indivíduos, morais ou críticos, devem ser

    explicados pelos sentimentos que tais experiências desencadeiam, no sentido de

    perceber quais as paixões são despertadas em tal situação. De maneira, que os

    objetos não possuem qualidade intrínsecas, mas as qualidades fornecidas no trato

    com a paixão27.

    O cético criativo ao invés de apagar as crenças de seu espírito para

    interromper o ciclo de desconforto das paixões procura fazer de suas próprias

    paixões um instrumento moderado, muito embora nunca consiga levar a cabo seu

    25 David Hume. O cético in: _ Ensaios. p. 290

    26 Devemos perceber que Hume não utiliza o termo “estética” para pensar a sistematização dos

     juízos sobre o belo, mas sim o termo crítica, através dos qual interpela quais são as sensações

    desencadeadas no sujeito que podem ser sistematizadas enquanto matizes do belo. Faremos

    estudo sistemático sobre o conceito de crítica em David Hume em nosso último capítulo, de

    maneira a aproximá-lo do conceito de moral.

    27 David Hume. O cético in: _ Ensaios. p. 290

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    intento, percebendo que a humanidade é governada por temperamentos28 e que a

    filosofia29 possui influência pífia em seu objetivo de ensinar a virtude ou abrir os

    olhos para as desgraças do dogmatismo. O cético criativo possui uma atitude

    epistemológica distinta do cético pirrônico na medida em que assume as crenças

    mundanas enquanto objeto privilegiado de suas investigações. O trato com as

    instituições e a possibilidade de engendrar uma teoria das instituições só é

    possível segundo a atitude epistemológica do cético criativo, no sentido de que ao

    mesmo tempo em que duvida da consolidação das crenças, percebe que é

    apenas na crença que consegue manancial para a interrogação da natureza

    humana.

    Se contrapusermos o entendimento ao acaso , compreendendo por

    entendimento o domínio absoluto da causalidade e por acaso o domínio parcial

    28  David Hume. O cético in: _ Ensaios. p. 296 “Quem considerar, sem preconceito, o curso das

    ações humanas observará que a humanidade é quase inteiramente guiada por sua constituição e

    por seu temperamento, e que máximas gerais têm pouca influência ou só a têm na medida em que

    afetam nosso gosto ou sentimento”. Por certo que devemos interpretar a postura do cético criativo

    enquanto um posicionamento que guerreia contra o dogmatismo e consegue sempre poucas

    vitórias com relação aos preconceitos morais, ainda que possua vigor em suas investidas céticas.

    Podemos também observar a passagem: David Hume. O cético in: _ Ensaios. p. 300 “As reflexões

    da filosofia são demasiado sutis e distantes para que possam ter influência na vida cotidiana ou

    erradicar qualquer afeição. O ar é rarefeito demais para se respirar quando está acima dos ventos

    e das nuvens da atmosfera”.

    29  David Hume. O cético in: _ Ensaios. p. 297 “... arrisco-me a afirmar que o principal benefício

    derivado da filosofia surja, talvez, de maneira indireta e resulte mais de sua influência secreta e

    imperceptível que da sua aplicação imediata”.

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    investigação e a falibilidade enquanto elementos constitutivos. Tanto ao buscar

    princípios para o entendimento, para a moral e para a crítica.

    2.2 Percepção: impressões e idéias

    O objeto do empirismo de Hume é claramente a investigação de como o

    método experimental pode ser aplicado aos assuntos morais, para tanto deve

    observar natureza humana e sua relação com a experiência. Com efeito, todas as

    ciências possuem uma convergência mais estreita ou mais distante com o modo

    como os homens se relacionam com o mundo e como as crenças. Para Hume

    alguns filósofos se ocupam com questões secundárias, pois afeitas a

    preconceitos, outros se ocupam com problemas menores, como a justificação da

    existência de elementos, dos quais não podemos remontar as impressões,

    todavia, o ponto axial do pensamento filosófico é a investigação da ciência

    primordial, a ciência da experiência e das crenças31. Tal afirmativa vai privilegiar o

    sentimento e a observação, em detrimento do procedimento especulativo e

    quimérico largamente utilizado pelos metafísicos32. As disciplinas principais, no

    estudo da natureza humana, são: a. a investigação sobre o entendimento humano

    b. a investigação sobre a moral e c. a investigação sobre o gosto.

    31 Ferrater Mora. Hume. p. 1396

    32 Os metafísicos que Hume têm em mente são de dois tipos: primeiro os filósofos de formação

    escolástica e segundo o racionalismo de tipo germânico, tal como os estudos de Woolf e Leibniz,

    ironicamente muito importantes para a leitura que Kant empreenderá de Hume.

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    Dessa maneira, para que seja possível falar de conhecimento, precisamos

    falar de mundo, para falar de mundo, precisamos falar de percepções. Dessa

    maneira, conhecer o mundo é justamente a capacidade de percebê-lo, e,

    posteriormente, dizê-lo por conceitos abstratos33. O conhecimento é organizado

    por fragmentos de mundo, uma vez apreendido e feito em idéias. Assim, a

    primeira distinção que devemos empreender para a compreensão do empirismo

    humeano é a existente entre impressões e idéias34.

    O Treatise em seu livro primeiro não possui qualquer ceticismo acerca da

    existência do mundo exterior, o problema para Hume é a determinação de como o

    fenômeno é percebido e o modo pelo qual o conhecimento se torna possível

    quando fundamentado do ponto de vista de impressões e idéias, a questão para

    Hume se apresenta em termos de como na natureza humana pode ser entendida

    enquanto marcada pela relevante distinção entre o sentir e o pensar35. Enquanto

    as impressões dizem respeito ao sentir, as idéias dizem respeito ao pensar.36 As

    idéias estão sempre ligadas às impressões, de modo que todas as nossas

    33 Tratado da Natureza Humana, p. 25 e 683

    34  Tratado da Natureza Humana, p. 25 “As percepções que entram com mais força e violência

    podem ser chamadas de impressões; sob esse termo incluo todas as nossas sensações, paixões e

    emoções, em sua primeira aparição à alma. Denomino idéias as pálidas imagens dessas

    impressões no pensamento e no raciocínio, como, por exemplo, todas as percepções despertadas

    pelo presente discurso, excetuando-se apenas as que derivam da visão e do tato, e excetuando-se

    igualmente o prazer ou o desprazer imediatos que esse mesmo discurso possa vir a ocasionar”.

    35 Tratado da Natureza Humana, p. 26

    36 Tratado da Natureza Humana, p. 25

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    percepções são, pelo menos, duplas. Assim, possuímos percepções simples,

    quando dizem respeito a uma única impressão ou uma única idéia e percepções

    complexas quando temos uma série de impressões e de idéias37. A distinção

    primordial entre impressões e idéias reside no fato de que aquelas são mais fortes

    e vívidas, enquanto essas são mais fracas e pálidas38. As idéias, inicialmente,

    derivam das impressões39.

    As impressões podem ser divididas em dois tipos. E tal divisão não é

    meramente metodológica, pois as conseqüências de cada tipo são importantes. A

    primeira impressão é a de sensação, aa qual, segundo Hume, nasce diretamente

    da alma, de causas desconhecidas40. A segunda é a impressão de reflexão, a qual

    37 Tratado da Natureza Humana. p. 26 “Convém observar ainda uma segunda divisão entre nossas

    percepções, que se aplica tanto às impressões como às idéias. Trata-se da divisão em SIMPLES e

    COMPLEXAS. Percepções simples, sejam elas impressões ou idéias, são aquelas que não

    admitem nenhuma distinção ou separação. As complexas são o contrário dessas, e podem ser

    distinguidas em partes”.

    38 Tratado da Natureza Humana. p. 27 e 683-687

    39 Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. p. 34 “Entendo pelo

    termo impressão, portanto, todas as nossas percepções mais vívidas, sempre que ouvimos, ou

    vemos, ou sentimos, ou amamos, ou odiamos, ou desejamos ou exercemos nossa vontade. E

    impressões são distintas de idéias, que são percepções menos vívidas, das quais estamos

    conscientes quando refletimos sobre quaisquer umas das sensações ou atividades já

    mencionadas.

    40 Tratado da Natureza Humana. p. 32 “As impressões podem ser divididas em duas espécies: de

    SENSAÇÃO e de REFLEXÃO. As da primeira espécie nascem originalmente na alma, de causas

    desconhecidas. As da segunda derivam em grande medida de nossas idéias, conforme a ordem

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    pelo mecanismo de remeter as impressões a um centro de atenção, as reverte em

    idéias, por fixação, por isso a impressão de reflexão, possui a capacidade de

    originar um número imenso de novas idéias. Existe, nesse segundo tipo, uma

    relação entre as impressões bastante específica, podendo gerar idéias que não

    necessariamente encontram referentes no mundo41. A memória e a imaginação

    irão operar segundo os princípios da impressão de reflexão42. A matéria prima da

    criatividade, podemos afirmar, é a incessante conexão entre as impressões,

    gerando multiplicidades de idéias, decorrentes da imaginação, constantemente

    resgatadas pela memória43. A conexão entre as impressões, a decorrência de

    essas impressões serem feitas em idéias e a sucessiva criação de idéias sem

    referentes, são conseqüências da incessante natureza da imaginação em buscar

    novas possibilidades associativas. Por isso, podemos dizer pela independência da

    imaginação44.

    seguinte. Primeiramente, uma impressão atinge os sentidos, fazendo-nos perceber o calor ou o

    frio, a sede ou a fome, o prazer ou a dor, de um tipo ou de outro. Em seguida, a mente faz uma

    cópia dessa impressão, que permanece mesmo depois que a impressão desaparece, e à qual

    denominamos idéia. Essa idéia de prazer ou dor, ao retornar à alma, produz novas impressões, de

    desejo ou aversão, esperança ou medo, que podemos chamar propriamente de impressões de

    reflexão...”

    41 Tratado da Natureza Humana, p. 32

    42 Tratado da Natureza Humana, p. 3343 Tratado da Natureza Humana, p. 33

    44 Tratado da Natureza Humana, p. 33 “... a imaginação não se restringe à mesma ordem e formas

    das impressões originais, ao passo que a memória está de certa maneira amarrada quanto a esse

    aspecto, sem nenhum poder de variação”.

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    A imaginação possui um papel importante no empirismo humeano.

    Percebamos que a noção de imaginação em Hume, não é tão somente fundada

    no percebido, mas enseja, da mesma forma, a sensação; noutras palavras:

    objetiva o sensível e a sensação, o empírico e o transcendental. Não sendo

    subordinada ao entendimento ou qualquer faculdade45.

    As impressões originais não direcionam o modo pelo qual a imaginação irá

    relacioná-las. A interação e a associação entre as idéias seguem o princípio

    caótico   da imaginação46. A caótica   sendo estabelecida por impossibilidade de

    previsão, sobre quais serão os tipos de associações geradas, pela capacidade da

    natureza humana, em fabular combinações possíveis entre idéias. Sobre a

    imaginação, podemos dizer que age de modo livre quanto ao uso associativo,

    todavia apenas arranja construções, entre elementos que já foram percebidos, não

    sendo absurdo classificar a imaginação em Hume como semi-transcendental, ela

    não está limitada à experiência para associar, mas apenas pode associar

    utilizando os átomos de experiência apreendidos47. Agora, quando tratamos da

    45 Trataremos da mesma questão no item 2.4

    46 Tratado da Natureza Humana, p. 33 “Embora nem as idéias da memória nem as da imaginação,

    nem as idéias vívidas nem as fracas possam surgir na mente antes que impressões

    correspondentes tenham vindo abrir-lhes o caminho, a imaginação não se restringe à mesma

    ordem e forma das impressões originais, ao passo que a memória este de certa maneira amarrada

    quanto a esse aspecto, sem nenhum poder de variação”.

    47 Chegamos a conclusão do termo semi-transcendental, quando de discussão com o Prof. Paulo

    Tunhas, em curso no IUPERJ, semestre letivo 2006/1, sendo uma aproximação possível entre o

    empirismo humeano e o pensamento da evidência do filósofo português Fernando Gil. A

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    memória, devemos entender que essa é o resultado da interação entre percepção

    e idéia, pois uma idéia é gravada na memória em decorrência da intensidade da

    percepção, por isso Hume indica que a impressão é mais violenta do que a idéia,

    pois é justamente essa violência que permite o gravar em memória de uma

    determinada idéia48.

    Existe, pois, uma origem determinável para o conhecimento ou para as

    idéias? Se observarmos a interação entre impressões e idéias, seremos incapazes

    de dizer o porquê da conjunção de idéias, nesse momento, o empirismo humeano

    se distancia radicalmente do racionalismo alemão, seu contemporâneo, pois a

    relação entre idéias não possui uma essência explicável, mas uma dinâmica que

    pode ser exposta segundo a imagem do associacionismo49. As relações do

    pensamento são sempre exteriores aos seus termos. O que significa dizer que não

    há relação de essência entre as idéias, mas relações possíveis50. Hume opera

    improcedência do conceito é de inteira responsabilidade do autor, a procedência, se possível, devo

    as aulas de Paulo Tunhas e a conferência sobre Camões e o Amor, ministrada pelo Professor

    Fernando Gil.

    48 Tratado da Natureza Humana, p. 34

    49 Tratado da Natureza Humana, p. 36

    50 Tratado da Natureza Humana, p. 37 “A palavra RELAÇÃO é comumente usada em dois sentidos

    bem diferentes: para designar a qualidade pela qual duas idéias são conectadas na imaginação,

    umas delas naturalmente introduzindo a outra... ou para designar a circunstância particular na qual,

    ainda que a união de duas idéias na fantasia seja meramente arbitrária, podemos considerar

    apropriado compará-las. Na linguagem corrente, usamos a palavra relação sempre no primeiro

    sentido; apenas na filosofia estendemos esse sentido, fazendo-o significar qualquer objeto

    particular de comparação que prescinda de um princípio de conexão”.

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    uma inovação extraordinária com essa afirmativa, uma vez que as idéias sempre

    possuem - mesmo que de modo distante - correlação com as impressões

    sensíveis, assim, constituem-se como verdadeiros átomos, esses átomos se

    compõem em idéias mais complexas e originais, mas podem ser sempre

    decompostas. O atomismo de Hume constitui-se nesses termos. Uma lógica

    autônoma das relações, onde os termos se relacionam não pelo valor de essência,

    mas pelo valor de uso51. As relações do pensamento são o resultado direito dos

    princípios da natureza humana . Sendo estruturada pela contigüidade, semelhança

    e causalidade   que se apresentam como os movimentos de associação entre as

    idéias. O que faz com que as idéias se aproximem? O princípio de associação 52 

    que opera por contigüidade, causalidade e semelhança. Associar é relacionar os

    termos.

    Natureza humana significa que o que é universal e constante no espírito

    humano não é jamais tal ou qual idéia como termo, mas somente maneiras de

    passar de uma a outra idéia particular... O problema não é o das causas, mas

    51 Gilles Deleuze. Hume. p. 60

    52  Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. p. 41 “É evidente

    que há um princípio de conexão entre os diversos pensamentos ou idéias da mente, e que, ao

    surgirem à memória ou à imaginação, eles se introduzem uns aos outros com um certo grau de

    método e regularidade. Isso é tão marcante em nossos raciocínios e conversações mais sérios que

    qualquer pensamento particular que interrompa o fluxo ou encadeamento regular de idéias é

    imediatamente notado e rejeitado”.

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    o do funcionamento das relações como efeitos dessas causas e das condições

    práticas desse funcionamento53.

    Não existe uma essência estática que defina aquilo que o homem é. Tendo

    em vista que não podemos dizer que o homem possa ser predicado, na medida

    em que a associação de idéias opera sempre por conectivos, acrescentando

    elementos por meio de relações54. Ligadura efetiva dos termos, os termos que se

    aproximam incessantemente, formação de núcleos de composição específicos,

    essa é a natureza humana para o bon David 55 

    .

    Pela noção de contigüidade 56   Hume vai demonstrar que idéias se

    relacionam por possuírem pontos semelhantes, esses pontos semelhantes fazem

    com que as idéias se associem por esse elo, havendo, outrossim, interação e

    correlação. Quando as idéias são contíguas, estabelece-se um continnum   de

    idéias, uma cadeia de idéias semelhantes57.

    A semelhança   estabelece associações de modo mais direto, podemos

    dizer, para a semelhança não é necessário um elo, mas uma familiaridade

    reconhecida. Assim, a imaginação pode, simplesmente, saltar de uma idéia a

    53 Gilles Deleuze. Hume. p. 6254 Gilles Deleuze. Hume. p. 61

    55 Gilles Deleuze. Hume. p. 62

    56 Tratado da Natureza Humana, p. 35

    57 Tratado da Natureza Humana, p. 35

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    outra quando opera pela semelhança58. Não há, portanto, o direcionamento por

    cadeias que se unem, mas empilhamentos por similaridades.

    Dos princípios de associação entre idéias a causalidade  é o mais intrigante

    do ponto de vista teórico. Primeiro porque refuta concepção dominante na filosofia,

    desde a Grécia, de que a causalidade é inerente às coisas. Segundo porque a

    causalidade envolve, em grande medida, a noção de crença59. Em terceiro lugar, a

    idéia de crença nas instituições, e causalidade dos valores defendidos num

    espaço institucional é fundamental para o pensamento político.

    Para trazer algumas considerações preliminares devemos indicar que a

    causalidade não está no mundo60. A causalidade é antes vista no mundo. Sendo

    formada pela apreciação dos fenômenos. “Ela é especial porque não nos faz

    apenas passar de um termo dado à idéia de alguma coisa que não é atualmente

    dada. A causalidade me faz passar de alguma coisa que me foi dada à idéia de

    alguma coisa que jamais me foi dada, ou mesmo que não é dável na

    experiência61”.

    A observação continuada de determinados fenômenos faz com que, pelo

    hábito, sejamos capazes de dizer a regularidade apresentada, de modo a

    58 Tratado da Natureza Humana, p. 35

    59  A primeira discussão sobre o estatuto da crença, em Hume, é feita quando dos comentários

    acerca da noção de causalidade. Veremos que a causalidade, assim como a crença, são termos

    essenciais para pensarmos a contribuição humeana à política.

    60 Voltaremos a essa questão no item 2.4.

    61 Gilles Deleuze. Hume. p. 62

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    perceber o fenômeno anterior, a causa, e o fenômeno posterior, o efeito. Por

    hábito devemos entender o sentimento que a causalidade desperta nos homens,

    quando observamos a regularidade dos fenômenos, somos levados a esperar que

    esses se repitam indeterminadamente no tempo e no espaço, a certeza de que a

    causalidade, física e social, existe, faz com que o sentimento de hábito seja

    desencadeado.

    Por isso podemos afirmar que a distinção entre causas e efeitos, só é

    possível porque temos o sentimento de hábito, pois através dessa sensação

    especial produzida pela causação, seremos capazes de solidificar e distinguir: a.

    os fenômenos que vêm antes b. dos fenômenos que vêm depois.

    Indagar-nos-íamos, então, se a natureza humana pode prescindir da noção

    de causalidade? Não, a natureza humana não é capaz de prescindir da

    causalidade, mesmo que essa não seja evidente nas coisas, todavia a noção de

    causação é constitutiva da natureza humana. Em suma, para a natureza humana

    é inexorável observar pelo princípio de causalidade, esse sendo fruto de um

    sentimento especial que advém da experiência, formando a noção de hábito, o

    qual ao se vivificar, faz-se em crença62.

    O princípio do hábito, enquanto fusão dos casos semelhantes na imaginação,

    e o princípio da experiência, enquanto observação dos casos distintos no

    entendimento, combinam-se portanto para produzir ao mesmo tempo a

    62 Tratado da Natureza Humana, p. 125

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    relação, e a inferência segundo a relação (crença), em conformidade com as

    quais funciona a causalidade63.

    Para que um fenômeno possa, pelo hábito, buscar fixação na memória deve

    contar com os operadores: repetição do evento e crença na continuidade dos

    eventos64. Hume evidencia que o princípio associativo mais importante da

    natureza humana é dotado de uma série de complicações, ao mesmo tempo em

    que a dedução é um princípio dogmático, pois, pela imaginação produz idéias

    abstratas sem correlação com a experiência, a indução65  precisa acreditar na

    continuidade dos eventos, para, então, estabelecer a idéia de causação66.

    Evidentemente que as idéias abstratas, mesmo que fundadas em dogmas, para

    Hume serão sempre um modo de idéias particulares, ligadas a um termo geral67.

    Essa noção advém da idéia de que todas as idéias devem ter um correspondente

    em impressão, partindo do princípio atomístico de que todas as impressões

    possuem qualidade e quantidade determinadas, o referente, deve,

    63 Gilles Deleuze. Hume. p. 62

    64 Tratado da Natureza Humana, p. 41

    65 Alexander Rosenberg. Hume and the philosophy of science. p. 71-7766 Tratado da Natureza Humana, p. 41

    67 Tratado da Natureza Humana, p. 41 “... as idéias gerais não passam de idéias particulares que

    vinculamos a um certo termo, termo este que lhes dá um significado mais extenso e que, quando a

    ocasião o exige, faz com que evoquem outros indivíduos semelhantes a elas”.

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    necessariamente ser quantitativamente e qualitativamente determinado, mesmo

    que por esforço de decomposição68.

    É interessante notar o papel do conceito de ficção na filosofia de Hume,

    esse se distingue de uma crença, apenas em sua intensidade, tal como a distinção

    entre impressões e idéias. As ficções são produzidas pela imaginação e com

    relação a ela não possuímos a mesma adesão quanto com relação às crenças. As

    crenças são obtidas pelo trato da continuidade dos eventos, mas depende da

    imaginação para alinhavar os fenômenos anteriores com os posteriores.

    Percebemos, então que a relação primordial, tanto da crença quanto da ficção é

    com a imaginação, mas com graus de adesão distintos. Veremos mais adiante

    que Fernando Gil colocará crença e alucinação em um mesmo locus, esse, por

    sua vez, oposto à intuição aliada à convicção.

    2.3 Espaço e tempo

    Tudo o que é suscetível de ser infinitamente dividido contém um número infinito de

    partes; se assim não fosse, a divisão seria abruptamente interrompida pelas partes

    indivisíveis, a que logo chegaríamos. Portanto, se qualquer extensão finita é

    infinitamente divisível, não pode ser contraditório supor que uma extensão finita

    contém um número infinito de partes; e vice-versa, se for contraditório supor que

    68  Tratado da Natureza Humana, p. 43 “Uma idéia é uma impressão mais fraca; e, como uma

    impressão forte deve necessariamente ter uma quantidade e qualidade determinadas, o mesmo

    deve valer para sua cópia ou representante”.

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    uma extensão finita contém um número infinito de partes, nenhuma extensão finita

    pode ser infinitamente divisível. Ora, ao examinarmos minhas idéias claras,

    convenço-me facilmente de que tal suposição é absurda. Em primeiro lugar, tomo

    a menor idéia que consigo formar de uma parte de extensão; e, certo de que não

    existe nada menor que essa idéia, concluo que tudo que descubro por meio

    delatem de ser uma qualidade real da extensão69.

    A imaginação entregue a si mesma pode fazer qualquer associação que lhe

    seja possível, não há absurdidade que não possa ser engendrada pela nossa

    habilidade de ficcionar. A idéia humeana é a de que até mesmo o entendimento é

    uma espécie de invenção da imaginação. De outro lado temos a idéia de natureza

    com os princípios que norteiam o modo como as idéias irão se associar. Um

    conflito interessante passa a ocorrer. Têm-se a força gritante da imaginação em

    uma das pontas da natureza humana, e da outra temos a inexorabilidade da

    natureza em se associar por princípios.

    Abordemos, nessa monta, as noções de espaço e de tempo, e percebamos

    o quão salutares essas noções são para que possamos compreender a estrutura

    filosófica da ficção e seu caráter imprescindível para a natureza humana. Hume

    não distingue essencialmente a imaginação da capacidade de perceber,

    evidentemente que a imaginação possui dimensão de interioridade, enquanto a

    percepção é o acesso   aos estímulos desencadeados pelo mundo, mas não

    precisamos esperar a interioridade dos estímulos, para que esses sejam

    69 Tratado da Natureza Humana, p. 55

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    combinados, “o que se passa com as idéias da imaginação passa-se igualmente

    com as impressões dos sentidos70”, também os sentidos possuem liberdade para

    associar elementos.

    Quando observamos um mundo infinitamente divisível, não podemos dizer

    que a assertiva que fundamenta essa noção de mundo possui qualquer

    fundamento na experiência, mais ainda assim, uma determinada compreensão

    matemática de mundo, consegue compreender e estudar o mundo como se fosse

    escrito em caracteres matemáticos71. Diríamos, então, que as impressões que os

    matemáticos têm do mundo são diferentes das impressões que os filósofos

    empiristas possuem dos fenômenos? De certo que não, pois as impressões são a

    via de acesso da percepção, e, não algum tipo de modalidade que se altera com

    relação às crenças do observador. Evidentemente que os matemáticos buscam no

    mundo elementos que justifiquem a infinita divisibilidade euclidiana, mas não

    podem encontrá-la enquanto percepção, mas apenas enquanto idéia abstrata

    relacionada ao mundo72.

    Com efeito, quando Galileu diz que o mundo deve ser lido como se

    estivesse escrito em caracteres matemáticos, não está fazendo qualquer assertiva

    acerca do estatuto da existência da matemática, enquanto ciência empírica, mas

    está afirmando a realidade da matemática, antes mesmo das percepções. Por

    isso, tradicionalmente, compreende-se que a realidade do conhecimento

    70 Tratado da Natureza Humana, p. 53

    71 Tratado da Natureza Humana, p. 55

    72 Tratado da Natureza Humana, p. 56

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    matemático gera um certo constrangimento nos filósofos empiristas. Sendo

    explicada ou a maneira de John Stuart Mill como um conhecimento extremamente

    confirmado pelo raciocínio, mas sem verificação pela experiência ou a maneira de

    Hume, como sendo um critério estabelecido, com relação ao qual colocamos

    modulações apofânticas sem referentes73. Contudo, não concordamos com essa

    interpretação do pensamento humeano, na medida em que olvida da capacidade

    fictiva da imaginação, o matemático não está apenas estabelecendo critérios, mas

    está inventando um mundo, que não responde pelos critérios da percepção. A

    ficção do matemático é sustentada pela intuição e pela demonstração. Claro que

    não sustentamos essa tese enquanto matemáticos, pois não possuímos o domínio

    desse conglomerado teórico, mas defendemos essa noção, em relação a um

    determinado modo de interpretar o pensamento humeano.

    Dessa forma, para que possamos investigar o conceito de ficção devemos

    perceber os dois modos principais de associação, esses não são claramente

    explanados no Tratado da Natureza Humana , senão em pequenas referências,

    mas é explicitado nas Investigações sobre o entendimento humano . Assim, os

    objetos do entendimento podem ser descritos em termos de relações de idéias

    (relations of ideas)  e em questões de fato (matters of facts)74. A matemática,

    álgebra e a aritmética são descritas em termos de relações de idéias, na medida

    em que são descobertas por operações do pensamento, sem referência a um

    73 Alexander Rosenberg. Hume and the philosophy of science. p. 80

    74 Voltaremos a essa questão no item 2.1

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    do entendimento79. Rosenberg defende a noção de que as filosofias da

    matemática de Hume e Kant estão absolutamente obsoletas, na medida em que

    questões como o teorema de Gödel - sendo um teorema cuja incompletude lhe é

    constitutiva - não podem ser pensadas apenas em termos de definições e

    conseqüências ou juízos a priori 80 . Não entramos no mérito da obsolescência das

    teorias em questão, mas afirmamos que a teoria de Hume acerca do espaço e do

    tempo é fabulosamente contemporânea, por privilegiar o aspecto inventivo das

    conjecturas em ciências duras ou em ciências da humanidade.

    Dessa maneira, ainda nos resta cotejar o conceito de crença com o

    conceito de ficção, atentando para uma mesma origem ou, se for o caso,

    proveniências distintas, dessas duas formas de confiar no mundo e de inventá-lo.

    Uma primeira observação sobre as ficções e sobre as crenças poderia ser feita no

    sentido de indicar que enquanto a primeira é projetiva, a segunda é convicta. O

    que significa dizer: enquanto pela crença observamos o princípio de causalidade

    em funcionamento – de modo que ao percebemos, os fenômenos podem ser

    entendidos como causa e efeito; somos convictos – na ficção o que temos é a

    imaginação81 aglutinando elementos retirados das percepções, e os compondo da

    79 Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. p. 53

    80 Alexander Rosenberg. Hume and the philosophy of science. p. 82

    81 Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. p. 80 “Nada é mais

    livre que a imaginação humana, e, embora não possa ir além daquele inventário original de idéias

    fornecidas pelos sentidos internos e externos, ela dispõe de poder ilimitado para misturar,

    combinar, separar e dividir essas idéias em todas as variedades de ficção e miragens. É-lhe

    possível inventar uma série de acontecimentos que têm toda a aparência de realidade, atribuir-lhes

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    maneira como bem lhe aprouve. Assim, a crença diria   o mundo e a ficção

    colocaria combinações   no mundo. Por certo que a relação entre essas duas

    noções não é tão estanque. Porque as duas passam pela imaginação para serem

    constituídas.

    O vocabulário utilizado por Hume, para empreender essa distinção, é

    bastante interessante, diz que a diferença entre crenças e ficções é fundada em

    um determinado modo de sentir mais intenso no caso das crenças e menos

    intenso no caso das ficções. Modo de sentir esse que não depende da vontade, o

    que significa dizer, não optamos por crer em um determinado objeto ou

    escolhemos que será tomado como ficção. As crenças recebem esse estatuto,

    pois em relação a elas temos uma certa sorte de sensações desencadeadas, as

    quais denotam a estabilidade proveniente do ato de acreditar, assim, entendemos

    que as crenças permanecem e são mais estáveis do que as ficções. Para a

    crença “sempre que um objeto qualquer é apresentado à memória ou aos

    sentidos, ele imediatamente, pela força do hábito, leva a imaginação a conceber o

    objeto que lhe está usualmente associado, e essa concepção é acompanhada de

    uma sensação ou sentimento que difere dos devaneios soltos da fantasia82”, não

    existindo qualquer questão de fato, inscrita no mundo, que faça com que

    distingamos, por essência, o que será fundamentado por uma crença ou ficção.

    uma ocorrência em um local e momento precisos, concebê-los como existentes e pintá-los para

    sim mesma com todas as circunstâncias apropriadas a um fato histórico qualquer, no qual acredite

    com a máxima certeza”.

    82 Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. p. 81

  • 8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly

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    Hume se esforça em depositar um valor especial na crença, pela sua

    permanência, vividez e constância, jamais passíveis de serem obtidas apenas

    pela imaginação83, mas não é capaz de dissociar completamente o conceito de

    ficção e de crença, parece-nos que o