-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
1/228
INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO
CESAR LOUIS CUNHA KIRALY
CONHECIMENTO E MORALIDADE EM DAVID HUME
A POLÍTICA COMO TEORIA DAS INSTITUIÇÕES
Rio de Janeiro
2006
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
2/228
2
CESAR LOUIS CUNHA KIRALY
CONHECIMENTO E MORALIDADE EM DAVID HUME
A POLÍTICA COMO TEORIA DAS INSTITUIÇÕES
Dissertação apresentada
ao Instituto de Pesquisas
do Rio de Janeiro como
requisito parcial para a
obtenção do título de
Mestre em Ciências
Humanas: Ciência Política.
Rio de Janeiro
2006
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
3/228
3
Dedicatória
Quando ainda estudante de graduação, meio que por acaso, busquei assistir uma
palestra sobre Camões no Instituto onde muito concorridamente buscava uma
vaga para estudar, deparei-me com a cuidadosa voz de Fernando Gil, essa
experiência me reconduziu aos caminhos da Filosofia e essas páginas são
tributárias daquele momento. Por isso dedico esse esforço à memória de
Fernando Gil. Às páginas que escreveu e as que nunca poderá escrever, desde
hoje e para sempre.
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
4/228
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço à feitura dessa dissertação à orientação do professor Renato Lessa,
raramente no meio acadêmico podemos escutar homens que possuam
comprometimento com paixões consistentes, contudo, no caso do professor
Renato paixões consistentes são a sua dedicação e sina. Talvez o agradecimento
que agora escrevo seja um tanto egoísta, pois agradeço ao fato de ter tido
liberdade para pensar, acesso a uma infindável qualidade de títulos e autores que
me foram oferecidos pelo meu orientador e pela escolha, hoje incontornável, de
fazer das reflexões teóricas minha dedicação de vida. Devo isso à influência,
orientação e suporte do professor Renato Lessa.
Agradeço ao professor Paulo Tunhas da Universidade de Fernando Pessoa
(Portugal) o semestre acadêmico em que estudamos juntos foi fundamental para a
definição do corpo dessa dissertação.
Agradeço a fabulosa estrutura institucional do IUPERJ sem a qual não poderia ter
realizado a pesquisa à qual me destinei. A eficiência da biblioteca e da secretaria
foram fundamentais para a busca dos livros e enfrentamento dos trâmites
burocráticos. Agradeço a bolsa a mim concedida pelo CNPq sem a qual não teria
a tranqüilidade para levar o meu intento a termo.
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
5/228
5
RESUMO
A presente dissertação trata de três dimensões da obra filosófica de David Hume:
a. os fundamentos de sua filosofia do conhecimento b. sua investigação sobre a
moral c. a possibilidade de se pensar uma filosofia da política por intermédio de
uma teoria da instituição. Em função dos princípios da filosofia humeana somos
levados a pensar a natureza humana através do conceito de trauma, de modo a
relacionar as experiências morais com as experiências políticas, contando, para
tanto, com uma obra de Alsem Kiefer e um trecho de narrativa de Primo Levi.
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
6/228
6
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 8
2 O CONCEITO DE ENTEDIMENTO
2.1 O ceticismo como atitude epistemológica 24
2.2 Percepção: impressões e idéias 36
2.3 Espaço e tempo 47
2.4 A alucinação e as idéias abstratas 56
2.5 Conhecimento e alucinação 67
3 OS CONCEITOS DE MORAL E POLÍTICA
3.1 A natureza humana e a moralidade 100
3.2. Determinação moral: natureza e artifício 110
3.3 A justiça como virtude artificial 126
3.4 A política como teoria das instituições 148
4 O CONCEITO DE CRÍTICA
4.1 Aisthanomai: regime de sensações
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
7/228
7
4.1.1 Sensações e gosto: fundamentos da crítica 171
4.1.2 O gosto crítico e a opção moral 174
4.1.3 Moral e estética: o inexorável da sensação 189
4.2 Traumatologia: a política e o ranger de ossos 197
4.2.1 Trauma em política: o caramelo de gelo 204
5 CONCLUSÃO 209
6 REFERÊNCIAS 216
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
8/228
8
1 INTRODUÇÃO
*
Existe um célebre conto húngaro que narra a história de um ferreiro
especializado em retirar cataratas com o uso de um canivete. Esse ferreiro atendia
a todos que solicitavam os seus serviços, independendo da complexidade do
caso, ele afiava o seu canivete na barra da calça, ordenava que o paciente fosse
segurado e com habilidade ímpar removia todo o tecido que escurecia a vista.
Sabendo desse magnífico ferreiro os doutos acadêmicos de Buda solicitaram em
vê-lo, pois o procedimento realizado pelo ferreiro com absoluta precisão, quando
feito por eles, cegava quatro em cinco pacientes. Recebendo o pedido de
comparecimento na universidade o ferreiro logo se aprontou, economizou o
dinheiro para a passagem de trem, enviado pelos doutos, para comprar uma
refeição mais apetitosa e andou o dia inteiro até chegar na dita instituição.
Chegando lá, esbaforido, perguntou quem era o paciente; os doutos logoindicaram que era o homem sentado à mesa, o ferreiro pegou o seu canivete, o
afiou na barra da calça e quando foi iniciar o procedimento, foi interrompido por
um dos médicos que lhe indagou se não gostaria de utilizar um bisturi
especializado para o assunto. O ferreiro negou a oferta, dizendo que o instrumento
correto já se encontrava em suas mãos, iniciou a operação, retirando, como quem
descasca uma laranja a catarata bem madura. Os médicos ficaram atônitos e em
coro começaram a explicar para o ferreiro a magnitude de seu feito, a
complexidade do procedimento, o fato de que se tivesse desviado um pouco a
mão, a cegueira seria certa, alardearam sobre o quão complexo é o olho, a
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
9/228
9
fragilidade de suas nervuras etc. O ferreiro após tamanho falatório começou a suar
e a hesitar, suas mãos que antes eram firmes como os olhos de uma águia,
começaram a ficar trêmulas e inseguras. Ele se aproximou do outro olho do
paciente, olhou um pouco, mas se afastou. Um dos médicos se aproximou e
perguntou para o ferreiro pálido se não repetiria o feito. O ferreiro deixou o
canivete cair, tomado pelo medo e pelo terror. Em meios a médicos informados
deixou escapar que jamais empunharia um canivete novamente, para retirar uma
catarata, não queria, por medo, fazer cegar.
Admitimos que o conto exposto é a história que temos conhecimento que
melhor explana os princípios filosóficos que ansiamos por explicitar, se
escrevemos as páginas que se seguem é para meter medo em todos os ferreiros
bem intencionados que ousem empreender grandes feitos desconhecendo os
princípios aqui presentes. Abandonando as ironias. A história narrada muito
lembra a célebre passagem de Hume que ao se fatigar com o estudo da filosofia
atirou seus livros à fogueira e prontamente atendeu o pedido de seus amigos para
ir jogar gamão ou a carta de seu amigo Adam Smith a William Strahan narrando
que o bon David se aprazia, bem próximo da morte, com o Diálogo dos Mortos de
Luciano e que não conseguia encontrar, dentre as desculpas apresentadas a
Caronte nenhuma que lhe servisse para adiar sua entrada no barco, mas se
divertindo em encontrar algum subterfúgio imaginou que poderia dizer:
Bom Caronte, eu estou corrigindo minhas obras para uma nova edição. Conceda-
me um pouco de tempo, para que eu possa ver como o público reage às
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
10/228
10
alterações. Mas Caronte responderia: “Quando você tiver visto os efeitos dessas
alterações, irá querer fazer outras. Essas desculpas não terão fim; então amigo
honesto, por favor entre no barco”. Mas eu ainda argumentaria: “Tenha um pouco
de paciência, bom Caronte, es estou me empenhando para abrir os olhos do
público. Se eu viver alguns anos mais, poderei ter a satisfação de ver o declínio de
alguns sistemas de superstições que hoje vigoram”. Mas Caronte perderia então a
paciência e a cordialidade. “Seu pândego enganador, isso não acontecerá em
muitas centenas de anos. Você acha que eu posso lhe conceder um prazo tão
longo? Entre no barco agora mesmo, seu pândego enganador e preguiçoso1”.
As páginas que se seguem versarão sobre o sentido cético e empirista da
política, no conto húngaro o cético se encontra no lugar do narrador da história,
não está nem no corpo do ferreiro em sua habilidade cega, própria ao common
sense e nem do lado dos cegos doutos sabedores das leis da natureza e das
razões últimas, mas incapazes de realizar um feito sequer. O cético está na mão
do ferreiro e no conhecimento da natureza humana. A mão do ferreiro é capaz de
realizar as mais delicadas incisões e o conhecimento da natureza humana permite
que a mão não trema, ainda que aterrorizada pelas complexidades enciclopédicas,
de modo a, além de empreender o feito, narrar os princípios da história.
**
Todo o conhecimento filosófico é uma investigação sobre a natureza
humana, independentemente do espaço teórico onde se desenvolva; todas as
1 Adam Smith. Carta de Adam Smith a William Strahan in: _ Ensaios. p. 84
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
11/228
11
questões colocadas sobre a realidade ou sobre o espírito, interrogam a natureza
humana de alguma forma. Até o mesmo o pensamento positivo mais absoluto
direciona uma determinada concepção de homem. O pensamento político,
outrossim, não se organiza sem que haja interrogação sobre a natureza humana e
sem uma determinada concepção de antropologia filosófica. O pensamento é um
ato político, na medida em que interpela a natureza humana, em sua relação com
o mundo.
O empirismo filosófico humeano se pretende a ciência da natureza humana,
sendo anterior as ciências positivas e instaurador do pensamento moral. No início
das suas Investigações sobre os princípios da moral fala de que a filosofia moral
ou ciência da natureza humana pode ser feita de duas formas: a. a primeira delas
considera o homem como nascido para a ação, não para valores específicos da
ação, sendo influenciado pelo sentimento e pelo gosto, buscando alguns objetos e
evitando outros. Como a virtude é o bem mais importante para o homem de
espírito, esses filósofos “a pintam com as cores mais agradáveis, tomando de
empréstimo toda a ajuda da poesia e da eloqüência, e tratando seu assunto de
maneira simples e acessível, como é mais adequado para agradar a imaginação e
cativar os afetos2”. Buscam a diferença de sentir entre vício e virtude, de modo a
encontrar alguma objetividade, mas compreendem o quão singulares são essas
compreensões e a fragilidade da objetividade. b. o outro modo de empreender aciência da natureza humana é fazê-lo a maneira dos dogmáticos, realizando
generalizações acerca dos preceitos morais, estabelecendo parâmetros de
2 Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. p. 19
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
12/228
12
verdade e falsidade para as ações. Não é demais indicar que a filosofia moral de
Hume se coloca no primeiro tipo, contra o segundo, não existindo, para ele,
qualquer distinção entre um filósofo ou um plebeu quanto à atividade de sentir,
sendo abstruso encontrar distinções de natureza para os sentimentos. “Os
sentimentos de nosso coração, a agitação de nossas paixões, a veemência de
nossos afetos dissipam todas as suas conclusões e reduzem o filósofo profundo a
um mero plebeu”. O empirismo filosófico de David Hume é uma atitude
epistemológica que se vincula a uma determinada concepção de política. Tanto
entre os gregos como entre os modernos, o empirismo esteve ligado à recusa do
racionalismo e refutação às compreensões teleológicas acerca da realidade3.
Quando recusamos o racionalismo, dizemos que os conceitos que nortearão a
nossa vivência pública devem estar fundados na experiência, quando recusamos
a teleologia, indicamos que não nortearemos os rumos de nossas sociedades, por
algum ponto dado a priori, mas que observaremos as estratégias das instituições,
para, então, fixar rumos. O pensamento de David Hume se filia a uma
compreensão de moral que parte de uma teoria do conhecimento, não dogmática
e atomística, para fundamentar uma teoria política que não faz predições sobre o
fenômeno institucional, mas o analisa do ponto de vista das crenças estruturantes.
As instituições, não são racionais em si, mas são observáveis sob o ponto de vista
de seus valores e funcionalidade.
É errônea a compreensão que qualifica o empirismo humeano como um
modo de filosofar que se prende aos fatos, ou, que é uma maneira de pensar que
3 J. B. Schneewind. The invention of autonomy. p. 404
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
13/228
13
busca a realidade dos objetos4. O empirismo filosófico é identificado como um
modo de investigação que privilegia a experiência. Quando falamos experiência,
tanto estamos expondo a apreensão pelas percepções, quanto o estudo das
sensações, essas não sendo empíricas. Dizer experiência para Hume é indicar a
investigação do percebido e também do sentido, do sentimento e da crença; e por
isso esse tipo de empirismo é tão interessante para a investigação moral e
política5.
4 Por certo que na história da filosofia podemos notar muitas formas de empirismo. Desde o
empirismo de Aristóteles contraposto ao racionalismo de Platão; até a contraposição entre
empiristas e racionalistas, estabelecida por Hegel, com efeito, a distinção entre racionalistas e
empiristas não acrescenta em muito à história da filosofia, sendo, em larga medida, um
despropósito, na medida em que nem os ditos racionalistas se afastam de um certo empirismo,
como os empiristas de um determinado racionalismo. Contudo, o fato de assumirmos
copiosamente o termo empirista denota o nosso interesse em assumir um determinado modo de
filosofar inaugurado pela filosofia de língua inglesa, que pode ter sua genealogia remontada pelas
figuras de Bacon, Locke e Hume. Dos três pensadores citados nenhum pode ser reduzido a
imagem de um filósofo que trata de fatos, contudo, julgo importante denominá-los empiristas, ainda
que por motivos diferentes, na medida em que filosofam, em especial no caso de Hume, com as
sensações e com a interrogação das crenças.
5 Para uma compreensão mais tradicional do empirismo indicamos: Johannes Hessen. Teoria do
Conhecimento. p. 59 “A importância do empirismo para a história do problema do conhecimento
consiste em que, em oposição à negligência racionalista com respeito à experiência, ele apontou
enfaticamente a importância desse fator de conhecimento”. Concordamos no que tange a
importância da experiência para o conhecimento, mas discordamos com relação à dimensão do
conceito de experiência.
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
14/228
14
Os gregos, pelo termo empeiría, denominavam uma sabedoria que era
marcada pelo conhecimento prático, se opondo ao insulamento do conhecimento
teórico. Assim, partindo da experiência, o filósofo empirista é capaz de teorizar o
mundo, não enquanto substância, mas enquanto possibilidade; a teoria para o
empirismo não é um ato de enunciação da verdade, mas uma atividade de
estabelecimento de critérios aos modos percepção, para, assim, alçar a
compreensão do mundo.
Hume antes de Kant já conhecia a distinção entre juízos analíticos e juízos
sintéticos, por intermédio da distinção entre matters of facts e relations of ideas . As
relações entre idéias, como os juízos analíticos, grosso modo, não dependeriam
da experiência para a realização de critérios de verdade, na medida em que os
termos do raciocínio seriam verdadeiros em si mesmos, Hume e Kant evidenciam
que as verdades da matemática e algumas leis da natureza não precisam de
qualquer comprovação para a constituição de seu estatuto de validade. Por outro
lado às relações entre fatos, tal como os juízos sintéticos, demandariam o contato
com objetos e a verificação factual das proposições feitas com relação a eles. Não
examinaremos o fato de Kant conceber a existência de juízos sintéticos a priori , na
medida em que nos interessamos para a questão de Hume já perceber que a
distinção entre relações de fatos e relações entre idéias não é rigorosa. Quando
insere o método experimental nos assuntos morais enseja contaminação recíprocaentre o raciocínio abstrato e a investigação de fatos. Willard Van Orman Quine em
artigo intitulado Two Dogmas of Empiricism defende que o empirismo moderno
possui comprometimento com duas teses fundamentais: a. existe uma separação
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
15/228
15
rigorosa entre verdades da razão e fatos da vida pública b. tudo aquilo que é
conhecido, em última instância, possui relação com alguma experiência imediata.
As linhas que direcionam esse trabalho afastam esses dois dogmas da teoria do
conhecimento e da filosofia moral de Hume, tendo em vista que já percebia que a
validade dos enunciados demanda construção efetiva dos seus termos lógicos, e
esses não possuem relação de essência, mas são estabelecidos em função de
sistemas dados a serem construídos pelo entendimento. Por certo que não é fácil
escapar da identidade ou da não contradição, assim como não é simples escapar
das determinações das leis da física, contudo, ensejamos que a filosofia de Hume
já adianta a compreensão que sistemas lógicos não são organizados de modo
auto-referenciado, eles demandam, antes de atingirem o cume dogmático, de
crenças específicas que demandam tal ou qual organização sistêmica do mundo.
Concordamos com as conclusões de Quine, como por exemplo, que “a totalidade
daquilo a que chamamos de nossos conhecimentos ou crenças, das mais casuais
questões de geografia e história, às mais profundas leis da física atômica ou
mesmo da matemática pura e da lógica, é uma construção humana que está em
contato com a experiência apenas em suas extremidades6”. Contudo, pensamos
que já podemos fazer essa assertiva sobre a filosofia humeana, principalmente
quando investigamos a sua filosofia política e a relação que essa filosofia possui
com sua teoria do conhecimento. Quando interpelamos o papel da imaginação no
Treatise dificilmente restaremos convencidos pela separação estrita entre juízos
abstratos e determinações de fato. O ceticismo de Hume aliado ao seu empirismo
6 Willard Van Orman Quine. Two dogmas of empiricism. p. 252
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
16/228
16
nos auxilia a compreender, como salienta Quine, que a validade dos enunciados
não possui relação de essência, mas de uso, de modo que a sistematicidade
lógica deve atender a alguma crença de sistematicidade, gerando vínculos
graduais nas muitas esferas das crenças e das evidências. Pensamos que a
citação de Quine que reproduziremos, se interpretada à luz da necessidade de
segurança para as instituições políticas, pode servir com um bom prelúdio para as
questões que enfrentaremos a seguir:
Como empirista, continuo a pensar no esquema conceitual da ciência como uma
ferramenta, em última instância, para prever a futura experiência à luz da
experiência passada. Os objetos físicos são introduzidos conceitualmente na
situação de intermediários convenientes – não pela definição em termos de
experiência, mas simplesmente como supostos irredutíveis, comparáveis,
epistemologicamente, aos deuses de Homero. Por minha parte, entretanto, como
físico leigo que sou, acredito nos objetos físicos e não nos deuses de Homero; e
considero um erro científico acreditar diversamente. Mas na questão do
embasamento epistemológico, os objetos físicos e os deuses diferem apenas em
grau, não em espécie. Ambos os tipos de entidade integram nossa concepção
apenas como supostos culturais. O mito dos objetos físicos é epistemologicamente
superior à maior parte dos outros mitos porque provou ser mais eficiente que os
demais como expediente para introduzir uma estrutura manipulável no fluxo da
experiência7.
7 Willard Van Orman Quine. Two dogmas of empiricism. p. 253
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
17/228
17
Acreditar nos objetos, para a política, é similar ao ato de acreditar nas
instituições, na justiça, na verdade política e na beleza da virtude. Por certo que o
fundamento epistemológico dessas questões é bastante discutível; ainda mais se
formos bastante pirrônicos, contudo essas crenças mostram-se na história,
fundamentais para a constituição de um espaço público minimamente tolerável do
ponto de vista moral e estético. Paulo Tunhas esclarece que os atos de crença
possuem estatutos de adesão distintos, sendo que acreditar na verdade, demanda
um alcance maior da verificação do que acreditar na justiça; que demanda um
vínculo maior com a argumentação e acreditar no Belo que demanda apego ao
prazer desencadeado pela experiência de contemplação. Contudo, todos os atos
formadores de crenças envolvem sistemas com logicidade, entendendo que a
criação de uma crença não está relacionada com qualquer voluntarismo, mas com
uma determinada dinâmica social, o que faz com que nem toda crença seja capaz
de produzir sentido, quando deslocada de seu eixo particular.8 Com isso
desejamos indicar que a interação entre crenças, demanda a mobilização de
regras concernentes a essas crenças, ocasionando a necessidade da crença
possuir uma determinada lógica de interação. Vemos essa necessidade com mais
clareza no tema das instituições políticas; as crenças públicas demandam uma
certa lógica particular para que seja produtora de sentido, quando deslocada de
seu cenário a crença perde sua validade imediata.
A compreensão atomística da realidade, parte da imagem do mundo feito
em pequenos fragmentos apreensíveis pela percepção, assim para cada
8 Paulo Tunhas. Três tipos de crenças. p. 121
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
18/228
18
impressão captada pela percepção teremos uma idéia correspondente, essa
imagem filosófica do mundo permite que a política seja interpretada enquanto uma
questão de pluralidade de mundos9. Não se trata aqui de ressaltar a contenta
filosófica que contrapõe o Uno ao Múltiplo, mas de assumir o mundo enquanto
pluralidade, por certo que perceber o mundo enquanto uma unidade ou enquanto
pluralidade; depende, em larga medida do ponto de observação, pois toda
multiplicidade poderá ser agrupada em uma unidade e toda unidade poderá ser
decomposta em elementos constitutivos, contudo a assunção da imaginação em
política e a imaginação enquanto ponto fundador da vivência da natureza humana
em instituições depende da noção de que podemos, por intermédio da ação e do
intelecto, perceber que o mundo institucional é composto por uma pluralidade de
mundos10, ora conflitantes, ora convergentes, sendo que o estudo da ciência da
política de modo empirista e cético, e, portanto, não dogmático, demanda que
9 Devemos a compreensão da possibilidade de se perceber o mundo político enquanto pluralidade
atomística à leitura da tese de doutoramento de Renato Lessa em seu primeiro volume, em Vox
Sextus explicita a idéia atomista de desvio, a qual pode ser interpretada, no terreno das
instituições, com a necessidade de quebra, modificação, fundamento para a noção de que
diferentes crenças produzem diferentes mundos. As discussões do Laboratório de Estudos
Hum(e)anos no semestre 2005/1 circundaram essa temática quando da leitura do Tratado da
Natureza Humana. Indicamos também o artigo Filosofia Política e Pluralidade dos Mundos também
de Renato Lessa.
10 Renato Lessa. Filosofia Política e Pluralidade dos Mundos. p. 63-68 Sobre essa temática
indicamos também Nelson Goodman. Modos de Fazer Mundos. p. 46
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
19/228
19
interpelemos o papel constitutivo na crença na pluralidade de mundos políticos
que ensejamos investigar11.
***
Esta dissertação está dividida em três partes. Na primeira parte
investigamos o problema do entendimento e os modos como a natureza humana
estabelece matizes para o conhecimento. Para tanto, partimos da compreensão
de que o ceticismo de Hume se distingue do ceticismo tradicional, tal como foi
sistematizado por Sextus Empíricus, pelo fato de ser um ceticismo criativo que se
estrutura na assunção da pluralidade de opiniões e crenças. Extraindo dessa lida
as noções de que: a. a falibilidade deve ser um elemento constitutivo no
estabelecimento de princípios racionais e b. o acaso é o fundamento último para a
atitude cética. Seguimos com a exposição da epistemologia da percepção
enunciada por Hume no primeiro livro do Tratado da Natureza Humana ,
enfatizando a relação entre percepções, impressões e idéias e correlacionando
com o conceito de patchwork de William James, para a explicitação da noção de
associação de idéias na imaginação. Nesse sentido, expomos a doutrina do
espaço e tempo particular ao ceticismo e empirismo humeano. Para lançarmos a
aproximação entre teoria do conhecimento e pensamento político, invocamos o
conceito de alucinação desenvolvido por Fernando Gil em A convicção para
11 Renato Lessa. Filosofia Política e Pluralidade dos Mundos. p. 69 “Creio que esse campo pode
ser representado pó meio da metáfora da pluralidade dos mundos. O que resulta dessa aplicação
metafórica é a visão da emergência de uma pluralidade de sistemas de interpretação e de
figuração da vida social”.
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
20/228
20
complementar a nossa argumentação. Defendemos que a relação de necessidade
entre uma crença e sua atualização pública depende de um salto alucinatório que
precipita a instabilidade da crença na estabilidade da instituição. Da mesma forma
como nosso entendimento necessita compor idéias para gerar conceitos,
necessitamos da alucinação para confiar nos conceitos. Ensejamos que a
alucinação é distinta do delírio, de modo que a ciência da política se aproxima da
investigação sobre a alucinação e na crítica ao delírio. Esse sendo compreendido
como a composição de sistematicidades que não possuem referente na
experiência ou em matéria política não possui referente na história dos homens e
das instituições. A sentença de Tertuliano: “creio no que absurdo” possui larga
aplicação no campo de relações entre o entendimento e a vida pública, pois os
resultados das combinações entre idéias demandam uma espécie de confiança
absurda para gerar efeitos na vida ordinária. Nesse primeiro capítulo tentamos ser
exaustivo com a teoria do conhecimento de Hume, mas não fomos exaustivos no
exame da obra de Fernando Gil: utilizada apenas de modo subsidiário e por vezes
pouco fiel aos pressupostos do autor. De modo que a apropriação do conceito de
alucinação para o estudo da obra de Hume, para além de tentar demonstrar
alguma afinidade absurda entre esses dois autores, procura mostrar
complementaridade com relação ao exame da relação entendimento com a vida
política.
A segunda parte desta dissertação versa sobre o conceito de moralidade e
de política. Com relação à moralidade ensejamos o conteúdo do livro terceiro da
Tratado da Natureza humana e da Investigação sobre os princípios da moral
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
21/228
21
precipuamente a distinção entre virtudes naturais e virtudes artificiais. Por certo
que para empreender essa discussão tivemos que importar os temas relacionados
às dinâmicas da paixão da natureza humana, aclarando a diferença entre paixões
diretas e indiretas e explorando o tema da intensidade das paixões enquanto
desencadeador de sentimentos morais. Damos bastante ênfase no tema da
artificialidade, o que julgamos central para a leitura da teoria moral de Hume de
modo a encaminhar para uma teoria das instituições subjacente às suas
discussões sobre a política. A nossa investigação sobre a moral encontra ápice na
discussão sobre a justiça onde encontramos na moralidade os elementos
constitutivos para a discussão sobre a interação entre paixões e crenças no
núcleo das instituições. A segunda parte da dissertação adentra, pois, no tema da
teoria política dando ênfase ao tratamento às questões abordadas por Hume em
seus Ensaios . Realizamos estudo sistemático dos ensaios: Que a política pode ser
reduzida a uma ciência, Dos primeiros princípios do governo, Da origem do
governo e Da superstição e do Entusiasmo . Dessa leitura extraímos a máxima de
que o estudo da política deve ser empreendido enquanto uma investigação de
princípios calcados da constituição originária da falibilidade, na investigação da
natureza humana e na descrição do funcionamento das crenças. De modo que
evidenciamos que na obra política de Hume deve ser enunciada uma teoria das
instituições que possui como objeto precípuo à investigação e descrição da
dinâmica das crenças que se cristalizam na vida pública12.
12 A idéia de que a política deve ser estudada enquanto uma atividade experimental já é enunciada
em A Invenção Republicana. p. 14-15 de Renato Lessa traçando inclusive o aporte da filosofia de
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
22/228
22
A terceira parte desta dissertação visa demonstrar a importância do
conceito de crítica na filosofia humeana – devendo ser indicado que para Hume o
termo crítica possui conotação de estudo sobre as sensações desencadeadas
pela apreciação artística, sendo uma investigação sobre temas que se relacionam
com o gosto – de maneira a relacionar a determinação do Belo com a
determinação do Bem, aproximando, dessa forma, as discussões sobre a
moralidade com as investigações sobre as obras de arte. O tratamento que damos
aos ensaios: Da delicadeza do gosto e da paixão, Do refinamento nas artes e Do
padrão do gosto ; encaminha para a discussão sobre o sentido da moralidade e da
arte, de modo a indicar que podemos, através da investigação crítica, abordar
questões relativas ao Bem e ao justo.
Contudo a relação de necessidade entre os juízos morais e os juízos
críticos não é absolutamente imperiosa se não for constituído um vínculo na
natureza humana que conjugue ambas as questões. Supomos que o melhor
vínculo para demonstrar essa indissociabilidade é o conceito de trauma presente
na teoria psicanalítica. Por certo que a leitura entre a filosofia de Hume e os temas
da psicanálise não possuem qualquer vínculo imediato, contudo, de forma mediata
julgamos que a estrutura do trauma, enquanto quebra e rompimento de alguma
cadeia causal, evidencia que nos temas morais e nos temas críticos existe uma
contigüidade habitante da noção de sensação. Tanto nas experiências morais
Hume para nos aproximarmos dessa questão; o que faço aqui é dialogar com essa idéia,
aprofundá-la em alguns sentidos e apresentar algumas conseqüências. As intuições aqui
apresentadas foram desenvolvidas nas discussões do Laboratório de Estudos Hum(e)anos 2006/2.
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
23/228
23
quanto nas experiências críticas lidamos com uma sorte de sensações
particulares, as quais quando sistematizadas fornecem origem aos conceitos
próprios de cada disciplina. Todavia, quando analisamos o conceito de trauma,
percebemos que na vida pública, as sensações não se encontram em divisões
disciplinares, de modo que o rompimento da cadeia causal das instituições aclara
que as sensações sejam elas políticas ou morais, reagem, conjuntamente, de
modo negativo, o que significa imprevisibilidade e dor. Se o vínculo entre
moralidade e crítica pode ser evidenciado pelo conceito de trauma, o conceito que
diz a relação entre a quebra da causalidade e dor ainda carece de exemplificação
e contigüidade com a teoria política. A exemplificação é conseguida pela análise
de uma obra de Alsem Kiefer e de um trecho dos relatos de Primo Levi13.
13 As idéias desenvolvidas na terceira parte dessa dissertação são resultado das discussões do
Laboratório de Estudos Hum(e)anos 2005/2 no curso organizado por Renato Lessa sob a ementa:
Trauma, testemunho e arte: explorações sobre os temas da estética e da representação. As
indicações de se pensar o trauma através da literatura de testemunho advêm das intuições de
Renato Lessa muito mais aprofundadas e abrangentes do que as apresentadas em nosso terceiro
capítulo. Kiefer e Levi foram autores presentes quando do curso e o que fazemos aqui é apenas
apresentar uma determinada leitura do problema, partindo da filosofia crítica de Hume.
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
24/228
24
2. O CONCEITO DE ENTENDIMENTO
2.1 O ceticismo como atitude epistemológica
Vamos defender nas linhas que se seguem a tese de que o ceticismo
humeano é uma nova atitude epistemológica. Atitude essa ligada à recusa de
sistemas metafísicos abstrusos e postura de conhecimento que beneficia a
criatividade. Sistemas metafísicos abstrusos devem ser entendidos pelos castelosde conceitos que possuem pouca ou nenhuma relação com a experiência.
Denominaremos esse tipo de ceticismo, portanto, de ceticismo criativo.
O ceticismo criativo de Hume dialoga diretamente com a tradição da
filosofia cética. Aponta onde se filia a essa tradição e onde se desvia
propositadamente. Veremos, após recuperarmos essa tradição, os argumentos
que montam uma abertura especial ao conhecimento, para depois, engendrarmos
uma leitura de Hume que concilia abertura epistemológica cética, naturalismo
moral e mobilidade institucional.
Seguindo a orientação histórica dada por C. B. Schmitt vemos que o
ceticismo acontece no período tardio Grego principalmente com a figura de Pirro
de Elis (360-270 a.C.), passando pelos acadêmicos, continuando até a
sistematização empreendida pelo pós-acadêmico Sextus Empíricus. A
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
25/228
25
originalidade se encontra do lado de Pirro e do lado de Sextus encontramos a
fabulosa sistematização14.
Após o período de criação conceitual do ceticismo Grego, temos a
consolidação e amenização de alguns princípios pela corrente filosófica conhecida
como Academica , despontada pela figura de Cícero cuja tese cética principal era a
de que a verdade é alguma coisa de que podemos nos aproximar através de
argumentos prováveis. Tanto que no Livro II, parte iii, dos Academica traz a
formulação de que devemos sempre argumentar em favor de todos os lados in
utramque partem dicendo para assim alcançar um resultado verdadeiro ou
próximo a isso. Com Sextus Empíricus tivemos o ressurgimento do pirronismo.
Hume, profundo conhecedor da tradição clássica, escreve um ensaio chamado O
Cético em seus Ensaios Morais, Políticos e Literários , nesse inicia o seu
argumento dizendo que os filósofos sofrem de limitações pessoais, todavia
insistem em estender as suas limitações à natureza, explicando-a por princípios
que são falhos e limitados. A pretensão de abarcar toda a natureza num sistema
desperta desconfiança para o cético. Esse princípio de reserva acerca das
explicações “verdadeiras” Hume retira de Sextus Empíricus e o reformula. Como
todos os homens o filósofo possui limitações e preferências. O erro do filósofo,
principalmente o moralista, é considerar o seu gosto como algo que pode ser
erigido a um princípio válido para todos15
.
14 C. B. Schmitt. The rediscovery of ancient skepticism in modern times. p. 226
15 David Hume. O cético. Ensaios morais, político e literários. p. 286
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
26/228
26
A reação ao ceticismo é sempre muito violenta. Tanto autores céticos como
não céticos optaram pela oposição de um cético imaginário em seus escritos.
Agostinho escreve contra Cícero. Grotius escreve contra Carneades. Até mesmo
Descartes, visto como um cético por alguns, opta por vencer o ceticismo por
intermédio do “correto uso da razão”. O fato é que o ceticismo renasceu com força
estrondosa na idade moderna. Tese que é desenvolvida por Richard Popkin16. O
século XVI é marcado por um cristianismo cético, vendo o exemplo de Pico della
Mirandolla, segundo o qual, já que o conhecimento é sempre duvidoso devemos
acreditar na revelação. Assim como um Montaigne, sendo mais influente,
populariza a figura dos Ensaios e aborda pelo método cético uma série de temas
duvidosos. O ressurgimento do ceticismo por intermédio da inspiração religiosa é
comumente denominado fideísmo. Esse, aparentemente, apresenta duas faces: a
primeira busca uma fundamentação radical da verdade revelada, utilizando o
método cético pra conseguir um estado de ausência de dúvida acerca da fé. Um
segundo fideísmo comportaria uma certa indiferença a assuntos da fé, tendo em
vista que em tal terreno não podem ter qualquer pretensão racional.
Para o nosso interesse em Hume é necessário remontar somente algumas
teses do ceticismo pirrônico, tarefa que passaremos a empreender a partir desse
ponto. A leitura será atravessada por apresentações do posicionamento humeano
acerca de algumas teses políticas, para, por fim, trazermos o que pode serentendido como um ceticismo criativo.
16 Richard Popkin. História do ceticismo de Erasmo a Spinoza. p. 49-59
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
27/228
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
28/228
28
Sextus Empíricus descreve-nos o cético com um filósofo que, na esperança de
obter a quietude e a imperturbabilidade, saiu a campo para investigar o que é
verdadeiro e o que é falso nas coisas, porque perturbado pelas anomalias e
contradições que nelas encontrava e pela dúvida sobre a que alternativas dar ao
seu assentimento18.
Contudo, o cético não suprime as aparências, mas realiza a epoché visando
os argumentos que se relacionam às aparências, pois, para o cético, a aparência
deve ser assumida de modo radical, na medida em que repousa em assentimento
involuntário, em confiança na relação ordinária com o mundo. O fenômeno não é
discutido, mas a interpretação que a razão pode dar ao fenômeno, essa sim é
problemática, pois uma interpretação abre um universo de prismas sobre questões
que sempre se abrem em novas perspectivas. Tal hiperbolização prismática é
insuportável para o cético. O exemplo largamente citado sobre essa questão é o
do mel: esse não pode ser dito como doce, mas que parece doce, isso com
certeza19. Pois duvidoso não é o fenômeno, mas o logos . Com efeito, se nos
indagássemos o princípio fundamental do ceticismo, deveríamos indicar que esse
só pode ser a prática de opor proposições, de modo a evidenciar as suas
18 Oswaldo Porchat Pereira. Ceticismo e mundo exterior. p. 126
19 Sextus Empíricus. Outlines of Pyrrhonism. p. 38
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
29/228
29
equivalências e demonstrar que é impossível decidir acerca de uma sentença que
tenha a validade como predicado20.
O ceticismo de Sextus Empíricus possui uma finalidade (telos ) precípua, o
alcance necessário da ataraxia com relação às crenças (doxam) e aos
sentimentos moderados (metriopatheian ). Devendo ficar claro que Sextus entende
telos como sendo o objeto último do desejo, todavia, devemos ressaltar que a
ataraxia pode ser objeto de um desejo, mas não é alcançada pelo desejo. Ainda
que a suspensão do juízo seja um ato exclusivamente intelectual, a ataraxia surge
como que por acaso, não sendo motivada pela vontade. A assertiva de Sextus:
Is that the Skeptic’s end, where matters of opinion are concerned, is mental
tranquility; in the realm of things unavoidable, moderation of feeling is the end. His
initial purpose in philosophizing was to pronounce judgment on appearances. He
whished to find out which are true and which false, so as to attain mental
tranquility. In doing so, he met with contradicting alternatives of equal force. Since
he could not decide between then, he withheld judgment. Upon his suspension of
judgment there followed, by chance, mental tranquility in matters of opinion21.
A afirmação de que os eventos morais podem ser interpretados pelo crivo
da natureza é absolutamente criticável para o cético, a consideração de que
existem predicados bons ou maus para os eventos, por natureza, é para Sextus a
20 Sextus Empíricus. Outlines of Pyrrhonism. p. 38
21 Sextus Empíricus. Outlines of Pyrrhonism. p. 41
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
30/228
30
marca da perturbação que o cético procura evitar. Quando considera eventos bons
ou maus por natureza, o homem que assim o faz sofre quando os elementos que
considera bons são substituídos por outros, e vive na expectativa de que o mal
seja passageiro22. A prescrição cética é a de que o homem seja ataraktei , ou seja,
que não persiga obstinadamente alguma coisa. A melhor descrição de Sextus de
um homem ataraktei que alcança a diminuição de seu sofrimento pela extinção da
expectativa e da crença é a do pintor Appeles. Esse bastante perturbado acerca
do detalhe da espuma do nariz do cavalo que estava pintando, abandonando a
inglória tarefa de atingir o detalhe, arremessa, por sobre a tela, a esponja com a
qual limpava os seus pincéis, a marca da esponja fez exatamente o efeito
desejado. Com efeito, o cético não é imperturbável de modo absoluto, o que
diferencia um cético de um dogmático é que o cético é capaz de suspender o juízo
frente a sofrimentos aparentemente incontornáveis. Aquilo que perturba de modo
inevitável, também atinge o cético, mas como esse não interpreta os eventos por
relações de natureza consegue estabelecer a virtude de um sentimento moderado
22 A recusa do conceito de natureza como sendo análogo ao sentido de essência é um tema
recorrente da obra de Hume, ao contrário da tradição aristotélico-tomista Hume vai indicar que,
tendo em vista não podermos ter experiência da essência (entendamos qualquer tipo de
experiência, quais sejam, sensação ou intelecção) dos objetos é filosoficamente mais crível
assumir os fenômenos. A passagem que reproduziremos a seguir ilustra a recusa da concepção de
essência. David Hume. O cético in: _ Ensaios. p. 286 “Se podemos confiar em algum princípio que
aprendemos da filosofia, este, acredito, pode ser considerado como certo e inquestionável: Que
nada existe que seja, em si, valioso ou desprezível, desejável ou odioso, belo ou disforme; pois
esses atributos resultam da estrutura e da constituição peculiares dos afetos e sentimentos
humanos”.
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
31/228
31
(metriopatheian) e no que pode ser contornado realiza a epoché 23 . A atividade
cética não anula a faculdade do sofrimento, contudo, por intermédio da
compreensão de que os eventos não possuem um valor determinado, consegue
suprimir a carga de sofrimento acrescentada pelo conteúdo da crença. O sofrer
cético é um tanto diferente, pois se compõe com a relativização dos valores que
potencializam a dor.
Mas no que o ceticismo pirrônico descrito por Sextus difere do ceticismo
apregoado por Hume? Em um primeiro momento podemos aventar que o
ceticismo humeano é uma atitude epistemológica que não utiliza as categorias de
epoché e de ataraxia . De modo que assume a isosthenia como locus próprio para
a realização dos argumentos, de maneira que o pensador não deve se abster da
pluralidade de argumentos para que possa pensar, mas ao se lançar sobre a
pluralidade das crenças, pelo largo convívio e aprofundamento pela experiência,
possui manancial para encontrar regime discursivo mais consistente, mas que não
se pretende a imagem única do mundo social. Um primeiro elemento do ceticismo
humeano, o caracterizando enquanto atitude epistemológica; pode ser encontrado
na sentença que passaremos a reproduzir, nela Hume observa a atividade dos
filósofos em encontrar princípios válidos para determinados objetos e salienta o
erro que comentem ao transformar um princípio em hipérbole, empreendendo
interpretação de todo o universo por uma única causa. Para Hume se possuímosum entendimento limitado, também nossos princípios devem ser limitados.
Vejamos:
23 Sextus Empíricus. Outlines of Pyrrhonism. p. 41-42
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
32/228
32
Existe um erro ao qual todos parecem sujeitos, quase sem exceção: eles limitam
em demasia os seus princípios, tornando-se incapazes de dar conta da imensa
variedade que a natureza sempre manifesta em suas operações. Uma vez que um
filósofo consegue estabelecer um princípio fundamental, capaz talvez de explicar
um grande número de fenômenos naturais, ele passa aplicar o mesmo princípio ao
universo inteiro, reduzindo todos os fenômenos a esse princípio, mesmo que seja
por meio do raciocínio mais absurdo e violento24.
O cético criativo habita a isosthenia , aceitando a pluralidade dos
argumentos, não admitindo a existência de essências – enquanto recurso para
evitar a pluralidade das contendas – e enuncia que a atividade da elaboração de
princípios é bastante salutar, contudo dever ser marcada pela falibilidade, de
modo que os enunciados devem ser constantemente interpelados, além de
possuírem campo de aplicação limitado. Da mesma forma ocorre com as
qualidades morais investigadas na interação da natureza humana com a vida
pública. O cético admite a existência de sentimentos morais, mas esses não
decorrem de essências e nem se relacionam com objetos estritos de
conhecimento. Os sentimentos de bondade e de beleza devem ser interpretados
sob esse princípio, ainda que imaginemos que a bondade está em uma
determinada ação universalmente boa, o cético criativo enseja que a bondade se
estabelece na relação entre o espírito e as ações, de modo que o sentimento
24 David Hume. O cético in: _ Ensaios. p. 286
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
33/228
33
moral desencadeado pela reviravolta das paixões em relação a um determinado
feito, denota os limites do conceito e do princípio da bondade. Por isso indaga
Hume: “Quem não percebe que o poder, a glória e a vingança não são desejáveis
em si mesmos, mas extraem todo o seu valor da estrutura das paixões
humanas?25” A mesma coisa acontece com a beleza, os objetos não são belos
por natureza, de modo que não podemos encontrar elementos intrínsecos que
denotam características universais, tal como na observação moral, a observação
crítica26 é notadamente a expressão de um sentimento. O cético criativo concebe,
dessa forma, que os objetos visados por indivíduos, morais ou críticos, devem ser
explicados pelos sentimentos que tais experiências desencadeiam, no sentido de
perceber quais as paixões são despertadas em tal situação. De maneira, que os
objetos não possuem qualidade intrínsecas, mas as qualidades fornecidas no trato
com a paixão27.
O cético criativo ao invés de apagar as crenças de seu espírito para
interromper o ciclo de desconforto das paixões procura fazer de suas próprias
paixões um instrumento moderado, muito embora nunca consiga levar a cabo seu
25 David Hume. O cético in: _ Ensaios. p. 290
26 Devemos perceber que Hume não utiliza o termo “estética” para pensar a sistematização dos
juízos sobre o belo, mas sim o termo crítica, através dos qual interpela quais são as sensações
desencadeadas no sujeito que podem ser sistematizadas enquanto matizes do belo. Faremos
estudo sistemático sobre o conceito de crítica em David Hume em nosso último capítulo, de
maneira a aproximá-lo do conceito de moral.
27 David Hume. O cético in: _ Ensaios. p. 290
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
34/228
34
intento, percebendo que a humanidade é governada por temperamentos28 e que a
filosofia29 possui influência pífia em seu objetivo de ensinar a virtude ou abrir os
olhos para as desgraças do dogmatismo. O cético criativo possui uma atitude
epistemológica distinta do cético pirrônico na medida em que assume as crenças
mundanas enquanto objeto privilegiado de suas investigações. O trato com as
instituições e a possibilidade de engendrar uma teoria das instituições só é
possível segundo a atitude epistemológica do cético criativo, no sentido de que ao
mesmo tempo em que duvida da consolidação das crenças, percebe que é
apenas na crença que consegue manancial para a interrogação da natureza
humana.
Se contrapusermos o entendimento ao acaso , compreendendo por
entendimento o domínio absoluto da causalidade e por acaso o domínio parcial
28 David Hume. O cético in: _ Ensaios. p. 296 “Quem considerar, sem preconceito, o curso das
ações humanas observará que a humanidade é quase inteiramente guiada por sua constituição e
por seu temperamento, e que máximas gerais têm pouca influência ou só a têm na medida em que
afetam nosso gosto ou sentimento”. Por certo que devemos interpretar a postura do cético criativo
enquanto um posicionamento que guerreia contra o dogmatismo e consegue sempre poucas
vitórias com relação aos preconceitos morais, ainda que possua vigor em suas investidas céticas.
Podemos também observar a passagem: David Hume. O cético in: _ Ensaios. p. 300 “As reflexões
da filosofia são demasiado sutis e distantes para que possam ter influência na vida cotidiana ou
erradicar qualquer afeição. O ar é rarefeito demais para se respirar quando está acima dos ventos
e das nuvens da atmosfera”.
29 David Hume. O cético in: _ Ensaios. p. 297 “... arrisco-me a afirmar que o principal benefício
derivado da filosofia surja, talvez, de maneira indireta e resulte mais de sua influência secreta e
imperceptível que da sua aplicação imediata”.
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
35/228
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
36/228
36
investigação e a falibilidade enquanto elementos constitutivos. Tanto ao buscar
princípios para o entendimento, para a moral e para a crítica.
2.2 Percepção: impressões e idéias
O objeto do empirismo de Hume é claramente a investigação de como o
método experimental pode ser aplicado aos assuntos morais, para tanto deve
observar natureza humana e sua relação com a experiência. Com efeito, todas as
ciências possuem uma convergência mais estreita ou mais distante com o modo
como os homens se relacionam com o mundo e como as crenças. Para Hume
alguns filósofos se ocupam com questões secundárias, pois afeitas a
preconceitos, outros se ocupam com problemas menores, como a justificação da
existência de elementos, dos quais não podemos remontar as impressões,
todavia, o ponto axial do pensamento filosófico é a investigação da ciência
primordial, a ciência da experiência e das crenças31. Tal afirmativa vai privilegiar o
sentimento e a observação, em detrimento do procedimento especulativo e
quimérico largamente utilizado pelos metafísicos32. As disciplinas principais, no
estudo da natureza humana, são: a. a investigação sobre o entendimento humano
b. a investigação sobre a moral e c. a investigação sobre o gosto.
31 Ferrater Mora. Hume. p. 1396
32 Os metafísicos que Hume têm em mente são de dois tipos: primeiro os filósofos de formação
escolástica e segundo o racionalismo de tipo germânico, tal como os estudos de Woolf e Leibniz,
ironicamente muito importantes para a leitura que Kant empreenderá de Hume.
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
37/228
37
Dessa maneira, para que seja possível falar de conhecimento, precisamos
falar de mundo, para falar de mundo, precisamos falar de percepções. Dessa
maneira, conhecer o mundo é justamente a capacidade de percebê-lo, e,
posteriormente, dizê-lo por conceitos abstratos33. O conhecimento é organizado
por fragmentos de mundo, uma vez apreendido e feito em idéias. Assim, a
primeira distinção que devemos empreender para a compreensão do empirismo
humeano é a existente entre impressões e idéias34.
O Treatise em seu livro primeiro não possui qualquer ceticismo acerca da
existência do mundo exterior, o problema para Hume é a determinação de como o
fenômeno é percebido e o modo pelo qual o conhecimento se torna possível
quando fundamentado do ponto de vista de impressões e idéias, a questão para
Hume se apresenta em termos de como na natureza humana pode ser entendida
enquanto marcada pela relevante distinção entre o sentir e o pensar35. Enquanto
as impressões dizem respeito ao sentir, as idéias dizem respeito ao pensar.36 As
idéias estão sempre ligadas às impressões, de modo que todas as nossas
33 Tratado da Natureza Humana, p. 25 e 683
34 Tratado da Natureza Humana, p. 25 “As percepções que entram com mais força e violência
podem ser chamadas de impressões; sob esse termo incluo todas as nossas sensações, paixões e
emoções, em sua primeira aparição à alma. Denomino idéias as pálidas imagens dessas
impressões no pensamento e no raciocínio, como, por exemplo, todas as percepções despertadas
pelo presente discurso, excetuando-se apenas as que derivam da visão e do tato, e excetuando-se
igualmente o prazer ou o desprazer imediatos que esse mesmo discurso possa vir a ocasionar”.
35 Tratado da Natureza Humana, p. 26
36 Tratado da Natureza Humana, p. 25
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
38/228
38
percepções são, pelo menos, duplas. Assim, possuímos percepções simples,
quando dizem respeito a uma única impressão ou uma única idéia e percepções
complexas quando temos uma série de impressões e de idéias37. A distinção
primordial entre impressões e idéias reside no fato de que aquelas são mais fortes
e vívidas, enquanto essas são mais fracas e pálidas38. As idéias, inicialmente,
derivam das impressões39.
As impressões podem ser divididas em dois tipos. E tal divisão não é
meramente metodológica, pois as conseqüências de cada tipo são importantes. A
primeira impressão é a de sensação, aa qual, segundo Hume, nasce diretamente
da alma, de causas desconhecidas40. A segunda é a impressão de reflexão, a qual
37 Tratado da Natureza Humana. p. 26 “Convém observar ainda uma segunda divisão entre nossas
percepções, que se aplica tanto às impressões como às idéias. Trata-se da divisão em SIMPLES e
COMPLEXAS. Percepções simples, sejam elas impressões ou idéias, são aquelas que não
admitem nenhuma distinção ou separação. As complexas são o contrário dessas, e podem ser
distinguidas em partes”.
38 Tratado da Natureza Humana. p. 27 e 683-687
39 Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. p. 34 “Entendo pelo
termo impressão, portanto, todas as nossas percepções mais vívidas, sempre que ouvimos, ou
vemos, ou sentimos, ou amamos, ou odiamos, ou desejamos ou exercemos nossa vontade. E
impressões são distintas de idéias, que são percepções menos vívidas, das quais estamos
conscientes quando refletimos sobre quaisquer umas das sensações ou atividades já
mencionadas.
40 Tratado da Natureza Humana. p. 32 “As impressões podem ser divididas em duas espécies: de
SENSAÇÃO e de REFLEXÃO. As da primeira espécie nascem originalmente na alma, de causas
desconhecidas. As da segunda derivam em grande medida de nossas idéias, conforme a ordem
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
39/228
39
pelo mecanismo de remeter as impressões a um centro de atenção, as reverte em
idéias, por fixação, por isso a impressão de reflexão, possui a capacidade de
originar um número imenso de novas idéias. Existe, nesse segundo tipo, uma
relação entre as impressões bastante específica, podendo gerar idéias que não
necessariamente encontram referentes no mundo41. A memória e a imaginação
irão operar segundo os princípios da impressão de reflexão42. A matéria prima da
criatividade, podemos afirmar, é a incessante conexão entre as impressões,
gerando multiplicidades de idéias, decorrentes da imaginação, constantemente
resgatadas pela memória43. A conexão entre as impressões, a decorrência de
essas impressões serem feitas em idéias e a sucessiva criação de idéias sem
referentes, são conseqüências da incessante natureza da imaginação em buscar
novas possibilidades associativas. Por isso, podemos dizer pela independência da
imaginação44.
seguinte. Primeiramente, uma impressão atinge os sentidos, fazendo-nos perceber o calor ou o
frio, a sede ou a fome, o prazer ou a dor, de um tipo ou de outro. Em seguida, a mente faz uma
cópia dessa impressão, que permanece mesmo depois que a impressão desaparece, e à qual
denominamos idéia. Essa idéia de prazer ou dor, ao retornar à alma, produz novas impressões, de
desejo ou aversão, esperança ou medo, que podemos chamar propriamente de impressões de
reflexão...”
41 Tratado da Natureza Humana, p. 32
42 Tratado da Natureza Humana, p. 3343 Tratado da Natureza Humana, p. 33
44 Tratado da Natureza Humana, p. 33 “... a imaginação não se restringe à mesma ordem e formas
das impressões originais, ao passo que a memória está de certa maneira amarrada quanto a esse
aspecto, sem nenhum poder de variação”.
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
40/228
40
A imaginação possui um papel importante no empirismo humeano.
Percebamos que a noção de imaginação em Hume, não é tão somente fundada
no percebido, mas enseja, da mesma forma, a sensação; noutras palavras:
objetiva o sensível e a sensação, o empírico e o transcendental. Não sendo
subordinada ao entendimento ou qualquer faculdade45.
As impressões originais não direcionam o modo pelo qual a imaginação irá
relacioná-las. A interação e a associação entre as idéias seguem o princípio
caótico da imaginação46. A caótica sendo estabelecida por impossibilidade de
previsão, sobre quais serão os tipos de associações geradas, pela capacidade da
natureza humana, em fabular combinações possíveis entre idéias. Sobre a
imaginação, podemos dizer que age de modo livre quanto ao uso associativo,
todavia apenas arranja construções, entre elementos que já foram percebidos, não
sendo absurdo classificar a imaginação em Hume como semi-transcendental, ela
não está limitada à experiência para associar, mas apenas pode associar
utilizando os átomos de experiência apreendidos47. Agora, quando tratamos da
45 Trataremos da mesma questão no item 2.4
46 Tratado da Natureza Humana, p. 33 “Embora nem as idéias da memória nem as da imaginação,
nem as idéias vívidas nem as fracas possam surgir na mente antes que impressões
correspondentes tenham vindo abrir-lhes o caminho, a imaginação não se restringe à mesma
ordem e forma das impressões originais, ao passo que a memória este de certa maneira amarrada
quanto a esse aspecto, sem nenhum poder de variação”.
47 Chegamos a conclusão do termo semi-transcendental, quando de discussão com o Prof. Paulo
Tunhas, em curso no IUPERJ, semestre letivo 2006/1, sendo uma aproximação possível entre o
empirismo humeano e o pensamento da evidência do filósofo português Fernando Gil. A
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
41/228
41
memória, devemos entender que essa é o resultado da interação entre percepção
e idéia, pois uma idéia é gravada na memória em decorrência da intensidade da
percepção, por isso Hume indica que a impressão é mais violenta do que a idéia,
pois é justamente essa violência que permite o gravar em memória de uma
determinada idéia48.
Existe, pois, uma origem determinável para o conhecimento ou para as
idéias? Se observarmos a interação entre impressões e idéias, seremos incapazes
de dizer o porquê da conjunção de idéias, nesse momento, o empirismo humeano
se distancia radicalmente do racionalismo alemão, seu contemporâneo, pois a
relação entre idéias não possui uma essência explicável, mas uma dinâmica que
pode ser exposta segundo a imagem do associacionismo49. As relações do
pensamento são sempre exteriores aos seus termos. O que significa dizer que não
há relação de essência entre as idéias, mas relações possíveis50. Hume opera
improcedência do conceito é de inteira responsabilidade do autor, a procedência, se possível, devo
as aulas de Paulo Tunhas e a conferência sobre Camões e o Amor, ministrada pelo Professor
Fernando Gil.
48 Tratado da Natureza Humana, p. 34
49 Tratado da Natureza Humana, p. 36
50 Tratado da Natureza Humana, p. 37 “A palavra RELAÇÃO é comumente usada em dois sentidos
bem diferentes: para designar a qualidade pela qual duas idéias são conectadas na imaginação,
umas delas naturalmente introduzindo a outra... ou para designar a circunstância particular na qual,
ainda que a união de duas idéias na fantasia seja meramente arbitrária, podemos considerar
apropriado compará-las. Na linguagem corrente, usamos a palavra relação sempre no primeiro
sentido; apenas na filosofia estendemos esse sentido, fazendo-o significar qualquer objeto
particular de comparação que prescinda de um princípio de conexão”.
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
42/228
42
uma inovação extraordinária com essa afirmativa, uma vez que as idéias sempre
possuem - mesmo que de modo distante - correlação com as impressões
sensíveis, assim, constituem-se como verdadeiros átomos, esses átomos se
compõem em idéias mais complexas e originais, mas podem ser sempre
decompostas. O atomismo de Hume constitui-se nesses termos. Uma lógica
autônoma das relações, onde os termos se relacionam não pelo valor de essência,
mas pelo valor de uso51. As relações do pensamento são o resultado direito dos
princípios da natureza humana . Sendo estruturada pela contigüidade, semelhança
e causalidade que se apresentam como os movimentos de associação entre as
idéias. O que faz com que as idéias se aproximem? O princípio de associação 52
que opera por contigüidade, causalidade e semelhança. Associar é relacionar os
termos.
Natureza humana significa que o que é universal e constante no espírito
humano não é jamais tal ou qual idéia como termo, mas somente maneiras de
passar de uma a outra idéia particular... O problema não é o das causas, mas
51 Gilles Deleuze. Hume. p. 60
52 Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. p. 41 “É evidente
que há um princípio de conexão entre os diversos pensamentos ou idéias da mente, e que, ao
surgirem à memória ou à imaginação, eles se introduzem uns aos outros com um certo grau de
método e regularidade. Isso é tão marcante em nossos raciocínios e conversações mais sérios que
qualquer pensamento particular que interrompa o fluxo ou encadeamento regular de idéias é
imediatamente notado e rejeitado”.
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
43/228
43
o do funcionamento das relações como efeitos dessas causas e das condições
práticas desse funcionamento53.
Não existe uma essência estática que defina aquilo que o homem é. Tendo
em vista que não podemos dizer que o homem possa ser predicado, na medida
em que a associação de idéias opera sempre por conectivos, acrescentando
elementos por meio de relações54. Ligadura efetiva dos termos, os termos que se
aproximam incessantemente, formação de núcleos de composição específicos,
essa é a natureza humana para o bon David 55
.
Pela noção de contigüidade 56 Hume vai demonstrar que idéias se
relacionam por possuírem pontos semelhantes, esses pontos semelhantes fazem
com que as idéias se associem por esse elo, havendo, outrossim, interação e
correlação. Quando as idéias são contíguas, estabelece-se um continnum de
idéias, uma cadeia de idéias semelhantes57.
A semelhança estabelece associações de modo mais direto, podemos
dizer, para a semelhança não é necessário um elo, mas uma familiaridade
reconhecida. Assim, a imaginação pode, simplesmente, saltar de uma idéia a
53 Gilles Deleuze. Hume. p. 6254 Gilles Deleuze. Hume. p. 61
55 Gilles Deleuze. Hume. p. 62
56 Tratado da Natureza Humana, p. 35
57 Tratado da Natureza Humana, p. 35
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
44/228
44
outra quando opera pela semelhança58. Não há, portanto, o direcionamento por
cadeias que se unem, mas empilhamentos por similaridades.
Dos princípios de associação entre idéias a causalidade é o mais intrigante
do ponto de vista teórico. Primeiro porque refuta concepção dominante na filosofia,
desde a Grécia, de que a causalidade é inerente às coisas. Segundo porque a
causalidade envolve, em grande medida, a noção de crença59. Em terceiro lugar, a
idéia de crença nas instituições, e causalidade dos valores defendidos num
espaço institucional é fundamental para o pensamento político.
Para trazer algumas considerações preliminares devemos indicar que a
causalidade não está no mundo60. A causalidade é antes vista no mundo. Sendo
formada pela apreciação dos fenômenos. “Ela é especial porque não nos faz
apenas passar de um termo dado à idéia de alguma coisa que não é atualmente
dada. A causalidade me faz passar de alguma coisa que me foi dada à idéia de
alguma coisa que jamais me foi dada, ou mesmo que não é dável na
experiência61”.
A observação continuada de determinados fenômenos faz com que, pelo
hábito, sejamos capazes de dizer a regularidade apresentada, de modo a
58 Tratado da Natureza Humana, p. 35
59 A primeira discussão sobre o estatuto da crença, em Hume, é feita quando dos comentários
acerca da noção de causalidade. Veremos que a causalidade, assim como a crença, são termos
essenciais para pensarmos a contribuição humeana à política.
60 Voltaremos a essa questão no item 2.4.
61 Gilles Deleuze. Hume. p. 62
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
45/228
45
perceber o fenômeno anterior, a causa, e o fenômeno posterior, o efeito. Por
hábito devemos entender o sentimento que a causalidade desperta nos homens,
quando observamos a regularidade dos fenômenos, somos levados a esperar que
esses se repitam indeterminadamente no tempo e no espaço, a certeza de que a
causalidade, física e social, existe, faz com que o sentimento de hábito seja
desencadeado.
Por isso podemos afirmar que a distinção entre causas e efeitos, só é
possível porque temos o sentimento de hábito, pois através dessa sensação
especial produzida pela causação, seremos capazes de solidificar e distinguir: a.
os fenômenos que vêm antes b. dos fenômenos que vêm depois.
Indagar-nos-íamos, então, se a natureza humana pode prescindir da noção
de causalidade? Não, a natureza humana não é capaz de prescindir da
causalidade, mesmo que essa não seja evidente nas coisas, todavia a noção de
causação é constitutiva da natureza humana. Em suma, para a natureza humana
é inexorável observar pelo princípio de causalidade, esse sendo fruto de um
sentimento especial que advém da experiência, formando a noção de hábito, o
qual ao se vivificar, faz-se em crença62.
O princípio do hábito, enquanto fusão dos casos semelhantes na imaginação,
e o princípio da experiência, enquanto observação dos casos distintos no
entendimento, combinam-se portanto para produzir ao mesmo tempo a
62 Tratado da Natureza Humana, p. 125
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
46/228
46
relação, e a inferência segundo a relação (crença), em conformidade com as
quais funciona a causalidade63.
Para que um fenômeno possa, pelo hábito, buscar fixação na memória deve
contar com os operadores: repetição do evento e crença na continuidade dos
eventos64. Hume evidencia que o princípio associativo mais importante da
natureza humana é dotado de uma série de complicações, ao mesmo tempo em
que a dedução é um princípio dogmático, pois, pela imaginação produz idéias
abstratas sem correlação com a experiência, a indução65 precisa acreditar na
continuidade dos eventos, para, então, estabelecer a idéia de causação66.
Evidentemente que as idéias abstratas, mesmo que fundadas em dogmas, para
Hume serão sempre um modo de idéias particulares, ligadas a um termo geral67.
Essa noção advém da idéia de que todas as idéias devem ter um correspondente
em impressão, partindo do princípio atomístico de que todas as impressões
possuem qualidade e quantidade determinadas, o referente, deve,
63 Gilles Deleuze. Hume. p. 62
64 Tratado da Natureza Humana, p. 41
65 Alexander Rosenberg. Hume and the philosophy of science. p. 71-7766 Tratado da Natureza Humana, p. 41
67 Tratado da Natureza Humana, p. 41 “... as idéias gerais não passam de idéias particulares que
vinculamos a um certo termo, termo este que lhes dá um significado mais extenso e que, quando a
ocasião o exige, faz com que evoquem outros indivíduos semelhantes a elas”.
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
47/228
47
necessariamente ser quantitativamente e qualitativamente determinado, mesmo
que por esforço de decomposição68.
É interessante notar o papel do conceito de ficção na filosofia de Hume,
esse se distingue de uma crença, apenas em sua intensidade, tal como a distinção
entre impressões e idéias. As ficções são produzidas pela imaginação e com
relação a ela não possuímos a mesma adesão quanto com relação às crenças. As
crenças são obtidas pelo trato da continuidade dos eventos, mas depende da
imaginação para alinhavar os fenômenos anteriores com os posteriores.
Percebemos, então que a relação primordial, tanto da crença quanto da ficção é
com a imaginação, mas com graus de adesão distintos. Veremos mais adiante
que Fernando Gil colocará crença e alucinação em um mesmo locus, esse, por
sua vez, oposto à intuição aliada à convicção.
2.3 Espaço e tempo
Tudo o que é suscetível de ser infinitamente dividido contém um número infinito de
partes; se assim não fosse, a divisão seria abruptamente interrompida pelas partes
indivisíveis, a que logo chegaríamos. Portanto, se qualquer extensão finita é
infinitamente divisível, não pode ser contraditório supor que uma extensão finita
contém um número infinito de partes; e vice-versa, se for contraditório supor que
68 Tratado da Natureza Humana, p. 43 “Uma idéia é uma impressão mais fraca; e, como uma
impressão forte deve necessariamente ter uma quantidade e qualidade determinadas, o mesmo
deve valer para sua cópia ou representante”.
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
48/228
48
uma extensão finita contém um número infinito de partes, nenhuma extensão finita
pode ser infinitamente divisível. Ora, ao examinarmos minhas idéias claras,
convenço-me facilmente de que tal suposição é absurda. Em primeiro lugar, tomo
a menor idéia que consigo formar de uma parte de extensão; e, certo de que não
existe nada menor que essa idéia, concluo que tudo que descubro por meio
delatem de ser uma qualidade real da extensão69.
A imaginação entregue a si mesma pode fazer qualquer associação que lhe
seja possível, não há absurdidade que não possa ser engendrada pela nossa
habilidade de ficcionar. A idéia humeana é a de que até mesmo o entendimento é
uma espécie de invenção da imaginação. De outro lado temos a idéia de natureza
com os princípios que norteiam o modo como as idéias irão se associar. Um
conflito interessante passa a ocorrer. Têm-se a força gritante da imaginação em
uma das pontas da natureza humana, e da outra temos a inexorabilidade da
natureza em se associar por princípios.
Abordemos, nessa monta, as noções de espaço e de tempo, e percebamos
o quão salutares essas noções são para que possamos compreender a estrutura
filosófica da ficção e seu caráter imprescindível para a natureza humana. Hume
não distingue essencialmente a imaginação da capacidade de perceber,
evidentemente que a imaginação possui dimensão de interioridade, enquanto a
percepção é o acesso aos estímulos desencadeados pelo mundo, mas não
precisamos esperar a interioridade dos estímulos, para que esses sejam
69 Tratado da Natureza Humana, p. 55
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
49/228
49
combinados, “o que se passa com as idéias da imaginação passa-se igualmente
com as impressões dos sentidos70”, também os sentidos possuem liberdade para
associar elementos.
Quando observamos um mundo infinitamente divisível, não podemos dizer
que a assertiva que fundamenta essa noção de mundo possui qualquer
fundamento na experiência, mais ainda assim, uma determinada compreensão
matemática de mundo, consegue compreender e estudar o mundo como se fosse
escrito em caracteres matemáticos71. Diríamos, então, que as impressões que os
matemáticos têm do mundo são diferentes das impressões que os filósofos
empiristas possuem dos fenômenos? De certo que não, pois as impressões são a
via de acesso da percepção, e, não algum tipo de modalidade que se altera com
relação às crenças do observador. Evidentemente que os matemáticos buscam no
mundo elementos que justifiquem a infinita divisibilidade euclidiana, mas não
podem encontrá-la enquanto percepção, mas apenas enquanto idéia abstrata
relacionada ao mundo72.
Com efeito, quando Galileu diz que o mundo deve ser lido como se
estivesse escrito em caracteres matemáticos, não está fazendo qualquer assertiva
acerca do estatuto da existência da matemática, enquanto ciência empírica, mas
está afirmando a realidade da matemática, antes mesmo das percepções. Por
isso, tradicionalmente, compreende-se que a realidade do conhecimento
70 Tratado da Natureza Humana, p. 53
71 Tratado da Natureza Humana, p. 55
72 Tratado da Natureza Humana, p. 56
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
50/228
50
matemático gera um certo constrangimento nos filósofos empiristas. Sendo
explicada ou a maneira de John Stuart Mill como um conhecimento extremamente
confirmado pelo raciocínio, mas sem verificação pela experiência ou a maneira de
Hume, como sendo um critério estabelecido, com relação ao qual colocamos
modulações apofânticas sem referentes73. Contudo, não concordamos com essa
interpretação do pensamento humeano, na medida em que olvida da capacidade
fictiva da imaginação, o matemático não está apenas estabelecendo critérios, mas
está inventando um mundo, que não responde pelos critérios da percepção. A
ficção do matemático é sustentada pela intuição e pela demonstração. Claro que
não sustentamos essa tese enquanto matemáticos, pois não possuímos o domínio
desse conglomerado teórico, mas defendemos essa noção, em relação a um
determinado modo de interpretar o pensamento humeano.
Dessa forma, para que possamos investigar o conceito de ficção devemos
perceber os dois modos principais de associação, esses não são claramente
explanados no Tratado da Natureza Humana , senão em pequenas referências,
mas é explicitado nas Investigações sobre o entendimento humano . Assim, os
objetos do entendimento podem ser descritos em termos de relações de idéias
(relations of ideas) e em questões de fato (matters of facts)74. A matemática,
álgebra e a aritmética são descritas em termos de relações de idéias, na medida
em que são descobertas por operações do pensamento, sem referência a um
73 Alexander Rosenberg. Hume and the philosophy of science. p. 80
74 Voltaremos a essa questão no item 2.1
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
51/228
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
52/228
52
do entendimento79. Rosenberg defende a noção de que as filosofias da
matemática de Hume e Kant estão absolutamente obsoletas, na medida em que
questões como o teorema de Gödel - sendo um teorema cuja incompletude lhe é
constitutiva - não podem ser pensadas apenas em termos de definições e
conseqüências ou juízos a priori 80 . Não entramos no mérito da obsolescência das
teorias em questão, mas afirmamos que a teoria de Hume acerca do espaço e do
tempo é fabulosamente contemporânea, por privilegiar o aspecto inventivo das
conjecturas em ciências duras ou em ciências da humanidade.
Dessa maneira, ainda nos resta cotejar o conceito de crença com o
conceito de ficção, atentando para uma mesma origem ou, se for o caso,
proveniências distintas, dessas duas formas de confiar no mundo e de inventá-lo.
Uma primeira observação sobre as ficções e sobre as crenças poderia ser feita no
sentido de indicar que enquanto a primeira é projetiva, a segunda é convicta. O
que significa dizer: enquanto pela crença observamos o princípio de causalidade
em funcionamento – de modo que ao percebemos, os fenômenos podem ser
entendidos como causa e efeito; somos convictos – na ficção o que temos é a
imaginação81 aglutinando elementos retirados das percepções, e os compondo da
79 Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. p. 53
80 Alexander Rosenberg. Hume and the philosophy of science. p. 82
81 Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. p. 80 “Nada é mais
livre que a imaginação humana, e, embora não possa ir além daquele inventário original de idéias
fornecidas pelos sentidos internos e externos, ela dispõe de poder ilimitado para misturar,
combinar, separar e dividir essas idéias em todas as variedades de ficção e miragens. É-lhe
possível inventar uma série de acontecimentos que têm toda a aparência de realidade, atribuir-lhes
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
53/228
53
maneira como bem lhe aprouve. Assim, a crença diria o mundo e a ficção
colocaria combinações no mundo. Por certo que a relação entre essas duas
noções não é tão estanque. Porque as duas passam pela imaginação para serem
constituídas.
O vocabulário utilizado por Hume, para empreender essa distinção, é
bastante interessante, diz que a diferença entre crenças e ficções é fundada em
um determinado modo de sentir mais intenso no caso das crenças e menos
intenso no caso das ficções. Modo de sentir esse que não depende da vontade, o
que significa dizer, não optamos por crer em um determinado objeto ou
escolhemos que será tomado como ficção. As crenças recebem esse estatuto,
pois em relação a elas temos uma certa sorte de sensações desencadeadas, as
quais denotam a estabilidade proveniente do ato de acreditar, assim, entendemos
que as crenças permanecem e são mais estáveis do que as ficções. Para a
crença “sempre que um objeto qualquer é apresentado à memória ou aos
sentidos, ele imediatamente, pela força do hábito, leva a imaginação a conceber o
objeto que lhe está usualmente associado, e essa concepção é acompanhada de
uma sensação ou sentimento que difere dos devaneios soltos da fantasia82”, não
existindo qualquer questão de fato, inscrita no mundo, que faça com que
distingamos, por essência, o que será fundamentado por uma crença ou ficção.
uma ocorrência em um local e momento precisos, concebê-los como existentes e pintá-los para
sim mesma com todas as circunstâncias apropriadas a um fato histórico qualquer, no qual acredite
com a máxima certeza”.
82 Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. p. 81
-
8/19/2019 Conhecimento e Moralidade Em David Hume Cesar Louis Kiraly
54/228
54
Hume se esforça em depositar um valor especial na crença, pela sua
permanência, vividez e constância, jamais passíveis de serem obtidas apenas
pela imaginação83, mas não é capaz de dissociar completamente o conceito de
ficção e de crença, parece-nos que o