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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ ALEX SANDRO ALBUQUERQUE DE OLIVEIRA DA RESPONSABILIDADE CIVIL EM DECORRÊNCIA DA INOBSERVÂNCIA DA BOA-FÉ NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS CURITIBA 2016

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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ

ALEX SANDRO ALBUQUERQUE DE OLIVEIRA

DA RESPONSABILIDADE CIVIL EM DECORRÊNCIA DA

INOBSERVÂNCIA DA BOA-FÉ NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS

CURITIBA

2016

ALEX SANDRO ALBUQUERQUE DE OLIVEIRA

DA RESPONSABILIDADE CIVIL EM DECORRÊNCIA DA

INOBSERVÂNCIA DA BOA-FÉ NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná, como requisito parcial à obtenção de título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Said Staut Júnior

CURITIBA

2016

TERMO DE APROVAÇÃO

ALEX SANDRO ALBUQUERQUE DE OLIVEIRA

DA RESPONSABILIDADE CIVIL EM DECORRÊNCIA DA

INOBSERVÂNCIA DA BOA-FÉ NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS

Esta monografia foi julgada e aprovada para a obtenção do título de Bacharel no Curso de Direito da

Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná.

Curitiba, 31 de maio de 2016.

_________________________________________________________________________________

Bacharelado em Direito

Universidade Tuiuti do Paraná

Orientador: Prof. Dr. Sérgio Said Staut Júnior

Universidade Tuiuti do Paraná

Prof.:

Universidade Tuiuti do Paraná

Prof.:

Universidade Tuiuti do Paraná

Dedico este trabalho a minha namorada e aos

meus pais, por terem estado comigo durante

todo o percurso, na caminhada que me trouxe

até aqui.

AGRADECIMENTOS

A Deus, por ter me dado saúde e força para suportar as dificuldades.

À minha namorada Laura Cazarotto Ferreira pela contribuição durante toda a

realização deste trabalho, desde a elaboração do projeto até a sua conclusão.

À professora Suely Cazarotto pelo apoio, compreensão е pela amizade. Ao amigo,

professor e orientador Dr. Sérgio Said Staut Júnior, pelo apoio e atenção na jornada do meu

curso de Direito, que se concretiza na realização deste trabalho.

E por fim, a minha família em especial aos meus pais que sempre me motivaram a

lutar pelos meus estudos e ideais, durante toda a minha vida.

Muito obrigado!!!

RESUMO

Este trabalho trata da responsabilidade civil decorrente da inobservância da boa–fé. Primeiramente estudar-se-á o instituto da responsabilidade civil a partir dos aspectos históricos, bem como as definições contratuais, pressupostos e finalidades. Posteriormente, o estudo será destinado aos contratos em geral, partindo das definições de contrato, princípios e fundamentos do direito contratual, classificação dos contratos, requisitos de validade, extinção contratual, boa-fé, boa-fé como cláusula geral e funções da boa-fé. Traça um panorama geral das funções da boa-fé objetiva, considerando os institutos inerentes à sua existência tu

quoque, surrectio, supressio e venire contra factum proprium. E, com o intuito de uma melhor explanação acerca dos temas, far-se-á uma análise doutrinária a fim de contextualizar o assunto e buscar a real compreensão da responsabilidade civil e da boa-fé nos termos atuais. Por fim, evidencia a importância da boa-fé objetiva nas relações contratuais, momento em que se esclarece a necessidade de utilizar-se mecanismos capazes de suprimir e coibir condutas não idôneas do indivíduo frente a outrem.

Palavras-chave: Boa-fé. Contratos. Funções. Responsabilidade.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................... 8

2 INTRODUÇÃO À RESPONSABILIDADE CIVIL ................................ 9

2.1 ASPECTOS HISTÓRICOS .......................................................................... 9

2.1.1 Direito romano .............................................................................................. 9

2.1.2 Direito francês ............................................................................................... 11

2.1.3 Direito brasileiro ........................................................................................... 11

2.2 FINALIDADE .............................................................................................. 14

2.2.1 Pressupostos da responsabilidade civil ......................................................... 15

2.2.2 Ação ou omissão do agente .......................................................................... 15

2.2.3 Culpa do agente ........................................................................................ 16

2.2.4 Dano .............................................................................................................................................. 16

2.2.5 Nexo causal ............................................................................................................. 17

2.2.6 Modalidades de responsabilidade civil ......................................................... 18

2.2.7 Responsabilidade contratual e extracontratual ............................................. 18

2.2.8 Responsabilidade subjetiva ou teoria da culpa ............................................. 20

2.2.9 Responsabilidade objetiva ou teoria do risco ............................................... 21

2.2.10 Responsabilidade direta e indireta ................................................................ 24

3 CONTRATOS EM GERAL ...................................................................... 25

3.1 DEFINIÇÕES DE CONTRATO .................................................................. 25

3.1.1 Princípios fundamentais contratuais ............................................................. 25

3.1.2 Princípio da autonomia da vontade .............................................................. 26

3.1.3 Princípio da supremacia da ordem pública ................................................... 26

3.1.4 Princípio do Consensualismo ....................................................................... 26

3.1.5 Princípios de relatividade dos efeitos do contrato ........................................ 26

3.1.6 Princípio da obrigatoriedade de contrato ...................................................... 26

3.1.7 Princípio da revisão dos contratos ou da onerosidade excessiva ................. 27

3.1.8 Princípio da boa-fé e da probidade ............................................................... 27

4 ELEMENTOS ESSENCIAIS .................................................................... 28

4.1 CONDIÇÕES DE VALIDADE ................................................................... 28

4.2 DA CAPACIDADE DAS PARTES ............................................................. 28

4.3 OBJETO LÍCITO, POSSÍVEL, DETERMINADO OU DETERMINÁVEL 29

4.4 FORMA PRESCRITA OU NÃO DEFESA DA LEI ................................... 29

4.5 CONSENTIMENTO RECÍPROCO ............................................................. 30

4.6 DA EXTINÇÃO CONTRATUAL ............................................................... 30

5 A BOA-FÉ E SEUS EFEITOS NOS CONTRATOS ............................... 33

5.1 O DIREITO ROMANO ................................................................................ 33

5.2 O DIREITO CANÔNICO ............................................................................ 34

5.3 O DIREITO GERMÂNICO ......................................................................... 35

5.4 O DIREITO BRASILEIRO .......................................................................... 38

5.5 BOA-FÉ SUBJETIVA X BOA-FÉ OBJETIVA .......................................... 40

5.6 AS FUNÇÕES DA BOA-FÉ OBJETIVA DESCRITAS NOS ARTIGOS 113,

182 E 422 DO CÓDIGO CIVIL − LEI Nº 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002 43

5.7 A FUNÇÃO LIMITADORA DA BOA-FÉ OBJETIVA ............................. 46

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................... 51

REFERÊNCIAS .................................................................................................... 52

8

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objeto o estudo da responsabilidade civil nas

relações contratuais dada à inobservância de normas de conduta em especial da boa-fé

objetiva.

No decorrer deste estudo iremos rever conceitos e teorias estudadas ao longo

do curso de Direito. Uma vez que a análise e aplicação dos princípios, bem como das

cláusulas gerais, sofreu, ao longo do tempo, mudanças não somente conceituais, mas

especialmente filosóficas, dada a diversidade sociocultural na qual estamos inseridos.

Ademais, as partes que compõem a relação contratual submetem-se ao

princípio da boa-fé objetiva enquanto regra de conduta balizadora de tais relações e

sua violação constitui ilícito contratual passível de reparação pelo contratante que

agiu de forma diversa ante os ditames da boa-fé objetiva, já que os danos decorrentes

de tal inobservância podem acarretar ruptura da relação contratual. Importante a

análise do instituto da responsabilidade civil mediante a inobservância da boa-fé

objetiva nas relações contratuais, tanto na fase normativa quanto na fase resolutiva,

assim, ao desenvolver este trabalho, nos propusemos a esta análise.

Por fim, esta pesquisa tem como objetivo empregar os conceitos examinados

durante o trabalho de forma crítica, a fim de contribuir para o debate acadêmico sobre

os aspectos que envolvem a responsabilidade civil decorrente das relações

contratuais.

9

2 INTRODUÇÃO À RESPONSABILIDADE CIVIL

2.1 ASPECTOS HISTÓRICOS

Em se tratando de cultura jurídica ocidental, todo estudo sobre aspectos

históricos de um instituto, ainda que breve, tem como ponto de partida o Direito

Romano. Assim, para o estudo da responsabilidade civil, em particular nas relações

contratuais, faremos uma breve análise do instituto e de seus princípios a partir do

Direito Romano. Tal análise se faz necessária, pois tem como finalidade facilitar a

compreensão da presente pesquisa. Importante destacar que os momentos históricos

relativos ao instituto não se dividem em períodos exatos e tampouco estanques, essa

divisão se mostra necessária apenas para indicar as alterações históricas.

2.1.1 Direito romano

Para a compreensão da mentalidade que imperava no Direito Romano, acerca

da responsabilidade e sua origem, assinale-se que, nos primórdios da humanidade, não

se cogitava de modo algum o fator culpa. O dano desencadeava uma reação imediata,

involuntária e, por vezes, brutal do ofendido, uma vez que inexistiam regras e ou

limitações.

Segundo Diniz (2002, p. 9), “historicamente, nos primórdios da civilização

humana, dominava a vingança coletiva, que se caracterizava pela reação conjunta do

grupo pelo agressor, pela ofensa a um de seus componentes”. E, ainda segundo a

mesma autora (2002, p. 10), “o comportamento social evoluiu para uma reação

individual, ou seja, a vingança privada, em que homens faziam justiça pelas próprias

mãos, sob a égide da Lei de Talião, da reparação do mal pelo mal”.

Nesse período o poder público estabelecia os ditames relativos a quando e como

a vítima poderia exercer o direito de retaliação, causando no lesante dano idêntico aos

que lhe foram produzidos. Assim, tem-se que neste período a Responsabilidade Civil

era objetiva, pois independia de culpa, demonstrando-se apenas como uma reação do

ofendido para com o ofensor.

10

Após este período tem-se a fase da compensação dos danos quando, de acordo

com Gonçalves (1995, p. 4), “o prejudicado passa a perceber as vantagens e

conveniências da substituição da vindita, que gera a vindita, pela compensação

econômica”. O que também é percebido na assertiva de Lima (1938, p. 10), quando

esse expõe que “a vingança é substituída pela composição a critério da vítima, mas

subsiste como fundamento ou forma de reintegração do dano sofrido”. Considerando-se

para o período descrito que ainda não se cogitava a culpa.

Ainda com relação ao período da compensação, Gonçalves (1995, p. 5), assevera

que:

É na Lei Aquília que se esboça, afinal, um princípio geral regulador da reparação do dano. Embora se reconheça que não continha ainda uma regra de conjunto, nos moldes do direito moderno, era, sem nenhuma dúvida, o germe da jurisprudência clássica com relação à injúria, e fonte direta da moderna concepção da culpa aquiliana, que tomou da Lei Aquília o seu nome característico.

Igualmente pertinentes são os apontamentos de Diniz (2002, p. 10),

considerando que:

A Lex Aquilia veio a cristalizar a ideia de reparação pecuniária do dano, impondo que o patrimônio do lesante suportasse os ônus da reparação, em razão do valor da res, esboçando-se a noção de culpa como fundamento da responsabilidade, de tal sorte que o agente se isentaria de qualquer responsabilidade se tivesse procedido sem culpa. Passou-se a atribuir o dano à conduta culposa do agente.

De acordo com a menção de Gonçalves (1995, p. 5), entende-se que “injúria”, a

que se referia a Lex Aquilia, no damnun injuria datum, é, sem dúvida, o “elemento

caracterizador da culpa, inexistindo dúvidas sobre a influência dos pretores e da

jurisprudência da época quanto à noção de culpa”.

Posteriormente, com a existência de uma autoridade soberana, o poder público

impede a vítima de fazer justiça pelas próprias mãos e a composição econômica, de

voluntária que era, torna-se obrigatória e, por vezes, tarifada.

11

2.1.2 Direito francês

O direito francês, aperfeiçoando pouco a pouco as ideias românicas, de acordo

com Gonçalves (2010, p. 26), estabeleceu nitidamente um princípio geral da

responsabilidade civil, abandonando o critério de enumerar os casos de composição

obrigatória e, aos poucos, foram sendo estabelecidos certos princípios que exerceram

sensível influência nos outros povos: direito à reparação sempre que houvesse culpa,

ainda que leve, separando-se a responsabilidade civil (perante a vítima) da

responsabilidade penal (perante o Estado); a existência de uma culpa contratual (a das

pessoas que descumprem as obrigações) e que não se liga nem a crime nem a delito,

mas se origina da negligência ou da imprudência.

Era a generalização do princípio aquiliano: in lege Aquilia et levissima culpa

venit, ou seja, o de que a culpa, ainda que levíssima, obriga a indenizar.

A noção da culpa in abstracto e a distinção entre culpa delitual e culpa

contratual foram inseridas no Código Napoleão, inspirando a redação dos arts. 1.382 e

1.383. A responsabilidade civil se funda na culpa - foi a definição que partiu daí para

inserir-se na legislação de todo o mundo. Daí por diante observou-se a extraordinária

tarefa dos tribunais franceses, atualizando os textos e estabelecendo um a

jurisprudência digna dos maiores encômios (GONÇALVES, 2010, p. 26).

2.1.3 Direito brasileiro

Ao comentar sobre os aspectos históricos da responsabilidade civil no direito

brasileiro, Gonçalves (2010, p. 27) destaca que:

O Código Criminal de 1830, atendendo às determinações da Constituição do Império, transformou-se em um código civil e criminal fundado nas sólidas bases da justiça e da equidade, prevendo a reparação natural, quando possível, ou a indenização; a integridade da reparação, até onde possível; a previsão dos juros reparatórios; a solidariedade, a transmissibilidade do dever de reparar e do crédito de indenização aos herdeiros, etc.

12

Diante do exposto é possível concluir que, numa primeira fase, a reparação era

condicionada à condenação criminal e, posteriormente, foi adotado o princípio da

independência da jurisdição civil e da criminal.

Importante destacar, ainda, os apontamentos de Gonçalves (2010, p. 27) em

relação ao Código Civil de 1916, pois, segundo esse autor, “o Código Civil de 1916

filiou-se à teoria subjetiva, que exige prova de culpa ou dolo do causador do dano para

que seja obrigado a repará-lo. Em alguns poucos casos, porém, presumia a culpa do

lesante”, considerando-se os artigos 1.527, 1.528, 1.529, dentre outros.

Com o advento da Revolução Industrial, bem como da multiplicação dos danos,

tem-se o surgimento de novas teorias, cuja tendência seria uma maior proteção às

vítimas, como pode ser observado no excerto que segue:

Nos últimos tempos ganhou terreno a chamada teoria do risco, que, sem substituir a teoria da culpa, cobre muitas hipóteses em que o apelo às concepções tradicionais se revela insuficiente para a proteção da vítima. A responsabilidade é encarada sob o aspecto objetivo: o operário, vítima de acidente do trabalho, tem sempre direito à indenização, haja ou não culpa do patrão ou do acidentado. O patrão indeniza, não porque tenha culpa, mas porque é o dono da maquinaria ou dos instrumentos de trabalho que provocaram o infortúnio. (GONÇALVES, 2010, p. 27).

De acordo com essa teoria, o fundamento da responsabilidade civil encontra-se

subordinado ao exercício da atividade que, por ventura, possa oferecer ou apresentar

algum perigo a terceiro. Assim, ao explorar a atividade, o agente tem a obrigação de

ressarcir outrem acerca dos danos decorrentes da exploração da atividade. Para

exonerar-se de tal responsabilidade, o agente deve provar a adoção de todas as medidas

possíveis para evitar o dano.

Também de acordo com Gonçalves (2010, p. 28), tem-se que “a

responsabilidade objetiva funda-se no princípio de equidade, existente desde o direito

romano: ubi emolumentum, ibi onus; ubi commoda, ibi incommod, ou seja, “aquele que

lucra com um a situação deve responder pelo risco ou pelas desvantagens dela

resultantes”, ou, ainda, “quem aufere os cômodos (ou lucros), deve suportar os

incômodos (ou riscos)”.

13

Sobre a responsabilidade objetiva, o mesmo autor citado no parágrafo anterior

(2010, p. 28) salienta que, “no direito moderno, a teoria da responsabilidade objetiva

apresenta-se sob duas faces: a teoria do risco e a teoria do dano objetivo”. Assim,

mediante o exposto, deve-se considerar que, desde que exista um dano, deve haver

ressarcimento, independentemente da ideia de culpa. Uma e outra consagram, em

última análise, a responsabilidade sem culpa, a responsabilidade objetiva. Afirmativa

ratificada por Ripert (p. 331-333 apud MONTEIRO, curso, cit. v. 5), quando esse

expõe que a tendência atual do direito manifesta-se no sentido de substituir a ideia da

responsabilidade pela ideia da reparação, a ideia da culpa pela ideia do risco, a

responsabilidade subjetiva pela responsabilidade objetiva.

No entanto:

A realidade, entretanto, é que se tem procurado fundamentar a responsabilidade na ideia de culpa, mas, sendo esta insuficiente para atender às imposições do progresso, tem o legislador fixado os casos especiais em que deve ocorrer a obrigação de reparar, independentemente daquela noção. É o que acontece no direito brasileiro, que se manteve fiel à teoria subjetiva nos arts. 186 e 927 do Código Civil. Para que haja responsabilidade, é preciso que haja culpa. A reparação do dano tem com o pressuposto a prática de um ato ilícito. Sem prova de culpa, inexiste a obrigação de reparar o dano. (GONÇALVES, 2010, p. 29).

Contudo, ainda é possível constatar em leis esparsas, bem como em outros

dispositivos, o uso dos princípios norteadores da responsabilidade objetiva. Tal

constatação é notória nos arts. 936 e 937 do Código Civil. Nota-se que a utilização dos

respectivos princípios nos arts. 927, parágrafo único, 933, 938 e 1.299, quando da

responsabilização do habitante da casa de onde caírem ou forem lançadas coisas em

lugar indevido, como também em relação aquele que assume o risco do exercício de

atividade potencialmente perigosa, dos pais, empregadores e outros, e dos proprietários

em geral por danos causados a vizinhos.

Assim, tem-se o Código Brasileiro de Aeronáutica, a Lei de Acidentes do

Trabalho e outros diplomas, os quais mostram a nítida adoção, pelo legislador, da

responsabilidade objetiva.

De acordo com Gonçalves (2010, p. 29):

14

O Código Civil de 2002 mantém o princípio da responsabilidade com base na culpa (art. 927), definindo o ato ilícito no art. 186, verbis: Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. No art. 927, depois de estabelecer, no caput, que "aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, é obrigado a repará-lo", dispõe, refletindo a moderna tendência, no parágrafo único, verbis: Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Adota, com isso, solução mais avançada e mais rigorosa que a do direito

italiano, também acolhendo a teoria do exercício de atividade perigosa e o princípio da

responsabilidade independentemente de culpa nos casos especificados em lei, a par da

responsabilidade subjetiva como regra geral, não prevendo, porém, a possibilidade de o

agente, mediante a inversão do ônus da prova, exonerar-se da responsabilidade se

provar que adotou todas as medidas aptas a evitar o dano.

No regime anterior, as atividades perigosas eram somente aquelas assim

definidas em lei especial. As que não o fossem enquadravam-se na norma geral do

Código Civil, que consagrava a responsabilidade subjetiva. O referido Parágrafo Único,

do art. 927, do novo diploma, além de não revogar as leis especiais existentes e de

ressalvar as que vierem a ser promulgadas, permite que a jurisprudência considere

determinadas atividades já existentes, ou que vierem a existir, como perigosas ou de

risco.

Essa é, sem dúvida, a principal inovação do Código Civil de 2002, no campo da

responsabilidade civil.

2.2 FINALIDADE

A responsabilidade civil sustenta-se em um princípio contemporâneo é o da

restitutio in integrum, isto é, da reposição do prejudicado ao status quo ante. Nesta

diapasão, a responsabilidade civil possui dupla função na esfera jurídica do

prejudicado: a) mantenedora da segurança jurídica em relação ao lesado; b) sanção

civil de natureza compensatória. Sobre esse assunto, Maria Helena Diniz afirma que:

15

Grande é a importância da responsabilidade civil, nos tempos atuais, por se dirigir à restauração de um equilíbrio moral e patrimonial desfeito e à redistribuição da riqueza de conformidade com os ditames da justiça, tutelando a pertinência de um bem, com todas as suas utilidades, presentes e futuras, a um sujeito determinado. (...). Por isso, há em nosso, ordenamento jurídico a responsabilidade civil não só abrangida pela ideia do ato ilícito, mas também o ressarcimento de prejuízos em que não se cogita da ilicitude da ação do agente ou até da ocorrência do ato ilícito, o que se garante pela Teoria do Risco, haja vista a ideia de reparação ser mais ampla do que meramente ato ilícito (DINIZ, 2002, p. 6).

2.2.1 Pressupostos da responsabilidade civil

Para que ocorra a obrigação de indenizar, é necessária a existência de

determinados fatores, denominados pressupostos ou elementos da responsabilidade

civil Quanto a isso, Diniz (2008, p. 36) preceitua que “bastante difícil é a

caracterização dos pressupostos necessários à configuração da responsabilidade civil,

ante à grande imprecisão doutrinária a respeito”.

Assim, dada à indeterminação doutrinária a optar-se-á pela seguinte

classificação dos pressupostos da responsabilidade civil: A) ação ou omissão do

agente; B) culpa do agente; C) Dano experimentado pela vítima; D) nexo de

causalidade.

Desta feita, passa-se a fazer um breve estudo acerca destes pressupostos.

2.2.2 Ação ou omissão do agente

Maria Helena Diniz afirma que:

Ação é ato humano, comissivo ou omissivo, licito ou ilícito, voluntário e objetivamente imputável, do próprio agente ou de terceiro ou fato de animal ou coisa inanimada, que cause dano a outrem, gerando o dever de satisfazer os direitos do lesado. A comissão vem a ser a prática de um ato que não se deveria efetivar e a omissão, a não observância de um dever de agir ou da prática de certo ato que deveria realizar-se (DINIZ, 2002, p. 35).

16

Nota-se que a ação ou omissão do agente, para que constitua ato ilícito e

consequentemente gere o direito à indenização, envolve a infração de um dever legal,

contratual ou social.

Necessário enfatizar que, a determinação de indenizar dano causado a outrem

pode advir de determinação legal, sem que a pessoa obrigada a repará-lo de fato tenha

cometido qualquer ato ilícito. Tem-se que a responsabilidade neste caso, se funda no

risco, conforme visto anteriormente.

2.2.3 Culpa do agente

Em nosso ordenamento jurídico impera a regra geral da culpa como

fundamento da responsabilidade civil, embora existam alguns casos de

responsabilidade sem que haja culpa.

Importante destacar que a culpa, para a responsabilidade civil, é tomada pelo

seu vocábulo latu sensu, englobando, também o dolo, isto é, todas as espécies de

comportamento contrárias ao direito, sejam estes intencionais ou não, sempre

imputáveis ao causador do dano.

Ao tratar ação ou omissão voluntária à luz do artigo 186 do Código Civil, o

legislador traz a questão do dolo na Responsabilidade Civil e logo em seguida faz

referência à culpa ao mencionar negligência ou imprudência.

Nesta toada, Carlos Roberto Gonçalves ensina que "para obter a reparação do

dano, a vítima geralmente tem de provar dolo ou culpa strictu senso do agente".

Contudo o legislador, prevendo que em muitas ocasiões a comprovação do

dolo e ou da culpa por parte da vítima seria impossível, elaborou as hipóteses

específicas nas quais poderão ocorrer a responsabilização sem culpa, a

responsabilidade objetiva, com base na teoria do risco, incluindo também os casos de

culpa presumida.

2.2.4 Dano

Como fora anteriormente mencionado, o dano é um pressuposto da

17

responsabilidade civil, contratual ou extracontratual, visto que não poderá haver ação

de indenização sem a existência de um prejuízo.

Verifica-se, assim, que há o dano moral (lesão a um bem extrapatrimonial) e o

material (lesão a um bem patrimonial).

O Código Civil em seu art. 402 menciona os danos emergentes (o que a

vítima efetivamente perdeu) e os lucros cessantes (o que a vítima razoavelmente

deixou de ganhar).

Art. 402. Salvo arts. exceções expressamente previstas em lei, as perdas e

danos devidos ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que

razoavelmente deixou de lucrar.

Para que exista dano indenizável, é imprescindível a ocorrência dos seguintes

requisitos: a) diminuição ou destruição de um bem jurídico, patrimonial ou moral

pertencente a uma pessoa; b) efetividade ou certeza do dano; c) causalidade; d)

subsistência do dano no momento da reclamação do lesado; e) legitimidade; f)

ausência das causas excludentes de responsabilidade.

Deste modo, percebe-se que o dano é essencial para a configuração de

qualquer modalidade de responsabilidade, seja ela subjetiva ou objetiva. E para que

o dano seja caracterizado, é preciso à observância de alguns requisitos, citados

acima.

2.2.5 Nexo causal

Para responsabilizar alguém por ato danoso, faz-se necessário demonstrar a

relação de causalidade, isto é, comprovar que devido à atitude culposa ou dolosa do

agente surge um dano a vítima.

“O vínculo entre o prejuízo e a ação, designa-se nexo causal, de modo que o

fato lesivo deverá ser oriundo da ação, diretamente ou como sua consequência

previsível”.

Orlando Gomes leciona que “para o ilícito ser fonte da obrigação de

indenizar, é preciso urna relação de causa e efeito entre o fato e o dano. A essa

relação chama-se nexo causal”.

18

Todavia, há fatos que rompem o nexo causal, quais sejam: o estado de

necessidade, a legítima defesa, a culpa da vítima, o fato de terceiro, a cláusula de não

indenizar e o caso fortuito ou força maior. Tais fatos recebem denominação de

excludentes da responsabilidade civil.

Assim, tem-se que não se pode falar em responsabilidade civil sem que esteja

presente o nexo causal, pressuposto indispensável para a caracterização dia

responsabilidade civil.

Desta feita, para que se estabeleça a responsabilidade civil é necessário que

exista uma ação, comissiva ou omissiva, juridicamente qualificada, isto é, que se

apresente como um ato ilícito ou lícito, eis que ao lado da culpa serve de fundamento

da responsabilidade. Tendo em vista que inexistindo ação ou omissão do agente

lesante não há caracterização do dano, de modo que, não há que se falar em

responsabilização civil daquele que não gerou o dano.

2.2.6 Modalidades de responsabilidade civil

A Responsabilidade Civil pode apresentar-se sob diferentes aspectos, de acordo

com a concepção em que se analisa. E, neste sentido, Diniz (2002, p. 115) oferece a

seguinte classificação:

1) Quanto ao fato gerador, hipótese em que se terá: a) responsabilidade contratual, se oriunda de inexecução de negócio jurídico bilateral ou unilateral (...); b) responsabilidade extracontratual ou aquiliana, se resultante do inadimplemento normativo, ou melhor, da prática de um ato ilícito por pessoa capaz ou incapaz: (CC, art. 927), visto que não há vínculo anterior entre as partes, por não estarem ligadas por uma relação obrigacional ou contratual. (...). 2) Em relação ao seu fundamento, caso em que se apresentará como: a) responsabilidade subjetiva, se encontrar sua justificativa na culpa ou dolo por ação ou omissão, lesiva a determinada pessoa (...); b) responsabilidade objetiva, se fundada no risco, que explica essa responsabilidade no fato de ter o agente causado prejuízo à vítima ou a seus bens. (...). 3) Relativamente ao agente, isto é, a pessoa que pratica a ação. Assim a responsabilidade será: a) responsabilidade direta, se proveniente da própria pessoa imputada (...); b) responsabilidade indireta, se promanada de ato de terceiro, vinculado ao agente, de fato animal ou de coisa inanimada sob sua guarda.

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Desta feita, passa-se a estudar as classificações supracitadas de forma individual

e com maior propriedade.

2.2.7 Responsabilidade contratual e extracontratual

É comum a distinção doutrinária entre responsabilidade contratual − aquela

derivada própria relação contratual − e responsabilidade extracontratual, ou delitual,

− aquela que não deriva da relação contratual, mas da inobservância do dever de

conduta, imposição legal imposta genericamente. A primeira tem seu fundamento no

artigo 389 do Código Civil:

Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.

A segunda, no artigo 186, também no referido legal:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligencia ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Nota-se que a responsabilidade contratual é decorrente do descumprimento ou

inadimplemento contratual, ocasionando prejuízo aos outros contratantes,

estabelecendo o artigo 399 do Código Civil que:

Art. 399. Não cumprindo a obrigação ou deixando de cumpri-la pelo modo e tempo devido, responde o devedor por perdas e danos.

Já, a responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, refere-se àquele que

por ação ou omissão voluntária, negligencia ou imprudência violar direito ou, ainda,

causar prejuízo a outrem, ficando obrigado a reparar o dano, uma vez que o artigo 186

do Código Civil, supracitado, disciplina, de forma genérica, as consequências

derivadas da responsabilidade aquiliana.

20

De modo que a responsabilidade nasce quando surge o descumprimento de um

dever legal (violação da lei ou princípio geral do direito) ou, até mesmo, pela quebra

do vínculo contratual.

Entende-se que na responsabilidade contratual, antes de existir a obrigação de

indenizar, tem-se um vínculo jurídico entre o inadimplente e o seu contratante, vínculo

esse derivado da convenção.

Já em se tratando de responsabilidade aquiliana antes da indenização, inexiste

qualquer liame jurídico entre aquele que causa o dano e a vítima, este liame só existirá

a partir do momento que o ato for praticado, originando uma ação que, a princípio,

gera obrigação de indenizar.

2.2.8 Responsabilidade subjetiva ou teoria da culpa

Considerações acerca da "culpa" podem ser observadas em Rizzardo (2005, p.

28), quando esse expõe que:

A culpa no sentido estrito equivale à ação ou omissão involuntária que causa danos, e que se dá por negligência ou imprudência, no que se expande em sentidos equivalentes, como descuido, imperícia, distração, indolência, desatenção e leviandade. No sentido lato, abrange o dolo, isto é, a ação ou omissão voluntária, pretendida, procurada, almejada, que também traz danos em ambas às dimensões, desrespeita-se a ordem legal estabelecida pelo direito positivo.

Uma vez conceituada, a culpa pode ser dividida em três graus: grave, leve e

levíssima, sobre os quais Gonçalves (2003, p. 31), assevera que:

A teoria subjetiva desce várias distinções sobre a natureza e a extensão da culpa. Culpa lata ou grave é a falta imprópria ao comum dos homens, é a modalidade que mais avizinha do dolo. Culpa leve é a falta evitável com atenção ordinária. Culpa levíssima é a falta evitável com atenção extraordinária, com especial habilidade ou conhecimento singular.

Ainda sobre o mesmo tema, Venosa (2002, p. 22) assim se posiciona:

A culpa grave, por quase se aproximar do dolo pode ser entendida como consciente, pois "(...) o agente assume o risco de que o evento danoso e

21

previsível não ocorrerá". Isto é, a culpa grave é a culpa com previsão do resultado que se assemelha ao dolo eventual. No que tange a culpa leve tem-se que esta é decorrente de infração ou de um dever de conduta cabível a todos, é a aquela que pode ser evitada, ao passo que a culpa levíssima é a que provém da falta de atenção que somente uma pessoa muito atenta ou muito perita, detentora de conhecimento especial para o caso concreto.

Sobre a responsabilidade subjetiva tem-se que, consoante a sua teoria, para que

haja a obrigação de indenizar é necessário demonstrar a culpa do agente causador ou

suposto violador do direito da vítima, sendo que nesta última há o dever de provar tal

situação para que se tenha direito à indenização e reparação. Essa teoria, também

conhecida como teoria da culpa, pressupõe a culpa como elemento fundamental da

responsabilidade civil. Se não há culpa, não há responsabilidade. Dessa forma,

Cavalieri (2003, p. 41):

Explica ser a culpa, de acordo com a teoria clássica, o principal pressuposto da responsabilidade civil subjetiva. Assim, pode-se concluir que na responsabilidade subjetiva, a vítima apenas terá o direito à indenização, nos casos em que demonstrar comprovar a culpa do agente.

Por sua vez, Lisboa (2004, p. 566) esclarece que:

Na responsabilidade Subjetiva, via de regra cabe à vítima, provar a existência de todos os pressupostos da responsabilidade civil, inclusive a culpa, exceção feita à presunção de culpa, na qual a vítima irá provar apenas o dano e o nexo causal ficando ao agente provar que não agiu com culpa, sendo que não haverá responsabilidade caso não consiga provar isso ou verifique-se a ausência de nexo de causalidade, ou haja alguma excludente de culpabilidade. Pode-se verificar pela exposição supramencionada, que a responsabilidade baseada na culpa do autor do ilícito é denominada de responsabilidade subjetiva.

2.2.9 Responsabilidade objetiva ou teoria do risco

A responsabilidade objetiva, também denominada de teoria do risco, prevê que

todo dano deve ser indenizável, independente do nexo de causalidade entre dano e

culpa. Nesta modalidade de responsabilidade, o elemento culpa não é analisado. Logo,

a teoria do risco, que exige tão somente o nexo causal e o efetivo dano sofrido, foi

22

adotada no direito brasileiro apenas nas circunstâncias previstas em lei, trata-se da

exceção da teoria da culpa.

Para esta teoria, toda pessoa que exerce alguma atividade cria um risco de dano para terceiros. E deve ser obrigada a repará-lo, ainda que sua conduta seja isenta de culpa. A responsabilidade civil desloca-se toda noção de culpa para a ideia de risco, ora encarada como 'risco-proveito', que se funda no princípio segundo o qual é reparável o dano causado a outrem em consequência de uma atividade realizada em benefício do responsável (ubi

emolumentum, ibi onus) (GONÇALVES, 2003, p. 29).

De acordo com essa teoria, o dever de indenizar não se encontra amparado no

caráter da conduta do agente causador do dano, e sim no risco que o exercício de sua

atividade cause para terceiros, em função do rendimento econômico decorrente da

atividade. O parágrafo único do art. 927 do Código Civil estabelece que:

Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, riscos para o direito de outrem.

Ao se analisar este dispositivo legal, verifica-se que a responsabilidade não

mais deriva da culpabilidade, passando a derivar da causalidade material. O Código

Civil também prevê outros casos nos quais o agente responde independentemente de

ser demonstrada a sua culpa, como no art. 931 que estabelece que: “Ressalvados

outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas

respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos

em circulação”.

Do mesmo modo, no art. 932, I a V c/c o 933, do mesmo diploma legal, existe a

previsão de responsabilidade objetiva em diversos casos, como exemplo, os pais pelos

seus filhos que estiverem sob a sua guarda, ipsis litteris: Art. 932.

São também responsáveis pela reparação civil:

I - Os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua

companhia;

II - O tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas

condições;

23

III - O empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos,

no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;

IV - Os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se

albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e

educandos;

V - Os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a

concorrente quantia.

E, ainda, de acordo com o Artigo 933 do Código Civil: “As pessoas indicadas

nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte,

responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos”.

Com relação à responsabilidade pelo fato da coisa, prevista nos arts. 937 e 938

do Código Civil, e a responsabilidade por fato de animais, do art. 936 do mesmo

diploma legal, as mesmas são objetivas.

Os arts. 929 e 930, que tratam da responsabilidade civil por ato lícito, e os arts.

939 e 940, que preveem a responsabilidade do credor que demanda o devedor antes de

vencida a dívida ou por dívidas já pagas, tratam de responsabilidade civil objetiva,

como se analisará a seguir:

Art. 929. Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art.

188, não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo

que sofreram.

Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de

terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância que

tiver ressarcido ao lesado.

Art. 939. O credor que demandar o devedor antes de vencida a dívida, fora dos

casos em que a lei o permita, ficará obrigado a esperar o tempo que faltava para o

vencimento, a descontar os juros correspondentes, embora estipulados, e a pagar as

custas em dobro.

Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem

ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a

pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o

equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.

24

É necessário ainda ressaltar que não se pode confundir a responsabilidade

objetiva com aquela em que a culpa é presumida, pois, neste caso, a responsabilidade

também é subjetiva, ou seja, fundada na culpa, entretanto há uma presunção da

existência da culpa, conforme verificado no item anterior. Deste modo, verifica-se que

o Código Civil adotou como regra a responsabilidade civil subjetiva, aquela baseada

na culpa. Entretanto, em vários dos seus artigos previu a responsabilidade objetiva, na

qual não se faz necessária a presença do elemento culpa.

2.2.10 Responsabilidade direta e indireta

A responsabilidade em reação ao agente será direta, se proveniente da própria

pessoa imputada, onde o agente responderá, então, por fato próprio, será indireta, se

oriunda de ato de terceiro, vinculado ao agente, de fato animal ou de coisa inanimada

sob sua guarda. A responsabilidade direta é a obrigação de indenizar decorrente de

ação ou omissão culposa do agente, provado o nexo de causalidade e o dano, tendo por

fundamento legal os arts. 186 e 927 do Código Civil.

Já a responsabilidade indireta, por sua vez, só poderá ser vinculada

indiretamente ao responsável, e só poderá ser analisada dentro dos termos legais, não

admitindo interpretação extensiva ou ampliativa. Compreende duas modalidades:

a) responsabilidade por fato de terceiro, desde que o causador do dano esteja sob a direção de outrem, que então responderá pelo ato ou evento lesivo, por disposição legal do art. 932 do Código Civil; b) responsabilidade pelo fato das coisas animadas ou inanimadas, que estiverem sob guarda de alguém, que se responsabilizará pelos prejuízos causados por disposição legal dos arts. 936, 937 e 938 do Código Civil.

25

3 CONTRATOS EM GERAL

3.1 DEFINIÇÕES DE CONTRATO

A palavra contrato origina-se do latim contractu, significando convenção,

ajuste, pacto. Comumente contrato é um vínculo entre duas ou mais partes, podendo

ser estabelecidos direitos e deveres de ambas as partes. No entanto, o conceito

contratual é diversificado na doutrina jurídica.

A respeito de “contrato”, Maria Helena Diniz (2005, p. 24) afirma que se trata

de um “acordo de duas ou mais vontades, na conformidade da ordem jurídica,

destinado a estabelecer uma regulamentação de interesses entre as partes, com o

escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial”.

Por sua vez, Orlando Gomes (1997, p. 11) define contrato da seguinte maneira:

Contrato pode ser definido como uma espécie de negócio jurídico, de natureza bilateral ou plurilateral, dependente, para sua formação, do encontro da vontade de pelo menos duas partes, que criam, entre si, uma norma jurídica individual reguladora de interesses privados. Nesse contexto, o contrato tem por fundamento o concurso da vontade humana, limitada pela ordem jurídica, capaz de estabelecer direitos e obrigações, em regra, entre as partes contratantes.

3.1.1 Princípios fundamentais contratuais

O direito contratual tem como base diversos princípios considerados

tradicionais, outros vistos como mais atuais. Os princípios de maior relevância no

direito contratual são: da autonomia da vontade, da supremacia da ordem pública, do

consensualismo, da relatividade dos efeitos, da obrigatoriedade, da revisão ou

onerosidade excessiva e da boa-fé. A seguir abordaremos superficialmente cada um

dos princípios citados acima.

26

3.1.2 Princípio da autonomia da vontade

O princípio da autonomia da vontade se alicerça exatamente na ampla liberdade contratual, no poder dos contratantes de disciplinar os seus interesses mediante acordo de vontades, suscitando efeitos tutelados pela orem jurídica, têm as partes a faculdade de celebrar ou não contratos sem qualquer interferência do Estado (GONÇALVES, 2010, p. 41).

3.1.3 Princípio da supremacia da ordem pública

O princípio da autonomia da vontade, não é absoluto. É limitado pelo princípio da suprema ordem pública, que resultou da constatação, feita no único do século passado e em face da crescente indústria ligação, de que a ampla liberdade de contratar provoca desequilíbrios e a exploração do economicamente mais fraco. Compreendeu-se que, se a ordem jurídica prometia a igualdade política, não estava assegurando a igualdade econômica. Em alguns setores fazia-se mister a intervenção do Estado, para restabelecer e assegurar a igualdade dos contratantes. (GONÇALVES, 2008, p. 28).

3.1.4 Princípio do Consensualismo

De acordo com o princípio do consensualismo, basta, para o aperfeiçoamento

do contrato, o acordo de vontades, contrapondo-se ao formalismo e ao simbolismo que

vigoram em tempos primitivos. Decorre da moderna concepção de que o contrato

resulta do consenso, do acordo de vontades, independente da entrega da coisa.

3.1.5 Princípios de relatividade dos efeitos do contrato

Mostra-se coerente com o modelo clássico de contrato, que objetivava

exclusivamente a satisfação das necessidades individuais e que, portanto, só produzia

efeitos entre aqueles que o perfil não se poderia conceber que o ajuste estendes os seus

efeitos a terceiros, vinculando-os a convenção.

3.1.6 Princípio da obrigatoriedade de contrato

27

Pelo princípio da autonomia da vontade, ninguém é obrigado a contratar. A

ordem jurídica concede a cada um a liberdade de contratar e definir os termos e objeto

da avença. Os que o fizeram, porém, sendo o contrato válido e eficaz, deve cumpri-lo,

não podendo se forrarem as suas consequências, a não ser com a anuência do outro

contratante. Como foram as partes que escolheram os termos do ajuste e a ele se

vinculam, não cabe ao juiz preocupar-se com a severidade das cláusulas, que não

podem ser atacadas sob a invocação dos princípios de equidade. O princípio da força

obrigatória do contrato significa, em essência a irreversibilidade da palavra empenhada

(GONÇALVES, 2010, p. 48).

3.1.7 Princípio da revisão dos contratos ou da onerosidade excessiva

Opõe-se tal princípio ao da obrigatoriedade, pois permite aos contratantes recorrem ao judiciário, para obterem alterações da convenção e condições mais humanas, em determinadas situações. Originou-se na Idade Média, mediante a constatação, atribuída a Neratius, de que fatores externos podem gerar, quando da execução da avença, uma situação muito diversa da que existia nos momentos da celebração, onerando excessivamente o devedor (GONÇALVES, 2010, p. 51).

3.1.8 Princípio da boa-fé e da probidade

Preceitua o art. 422 de código Civil que: “Os contratantes são obrigados a

guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de

probidade e boa-fé”, o que, de acordo com Gonçalves (2010, p. 54):

O princípio da boa-fé exige que as partes se comportem de forma correta não só durante as atrativas, como também durante a formação e o cumprimento do contrato. Guarda relação com o princípio de direito segundo o qual ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza. Recomenda ao juiz que presuma a boa-fé, devendo a má-fé, ao contrário, ser provado por quem a alega. Deve este, ao julgar demanda na qual se discuta a relação contratual dar por pressuposto a boa-fé objetiva, que impõe ao contratante um padrão de conduta, de agir com retidão, ou seja, com probidade, honestidade e lealdade, nos moldes do homem comum tendidas as peculiaridades dos usos e costumes do lugar.

28

4 ELEMENTOS ESSENCIAIS

4.1 CONDIÇÕES DE VALIDADE

De acordo com o mencionado anteriormente, contratos são considerados

negócios jurídicos e, como tal, devem atender a alguns requisitos sem os quais não

poderão ser juridicamente considerados como válidos. De modo que, para que um

contrato seja validado não basta simplesmente a vontade das partes, é essencial que

estejam presentes os requisitos: de ordem geral e de ordem especial.

A seguir transcrevemos, ipsis litteris, os contratos de ordem geral, que

são comuns a todos os atos e negócios jurídicos (CC, art. 104):

Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I - agente capaz; 11 - objeto

lícito, possível, determinado ou determinável; 111 - forma prescrita ou não defesa em

lei.

De ordem especial - específico dos contratos: o consentimento recíproco ou

acordo de vontades.

Nos parágrafos seguintes, traçaremos breves considerações acerca de cada um

dos requisitos concernentes aos contratos de ordem geral.

4.2 DA CAPACIDADE DAS PARTES

As partes envolvidas em uma contratação devem ter capacidade para praticar os

atos da vida civil, significando que as pessoas relacionadas nos artigos 3º e 4º do

Código Civil Brasileiro - tidos como absolutamente incapazes e relativamente

incapazes - não podem figurar como parte contratante, sob pena de o contrato ser

considerado nulo ou anulável, como bem dispõe os seguintes artigos do Código Civil:

Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:

I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz; (...).

Art.171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio

jurídico: I - por incapacidade relativa do agente; (...).

29

Outro requisito fundamentalmente importante, referente à parte, é o da

legitimação, ou seja, da aptidão para atuar em negócio jurídico. Importada do Direito

Processual, a legitimação é uma qualidade circunstancial que não diz: respeito à

qualidade intrínseca da pessoa, mas à posição desta face ao objeto elo contrato. Assim,

além de ser agente capaz, a parte contratante deve ter legitimidade, ou seja, possuir

uma relação de legítimo interesse com o objeto do contrato.

4.3 OBJETO LÍCITO, POSSÍVEL, DETERMINADO OU DETERMINÁVEL

Para ser considerado válido o contrato, seu objeto deve ser lícito, possível,

determinável e idôneo.

Conforme o já expresso, "o objeto sobre o qual versa a contratação não pode ser

contrário à lei, à moral, aos princípios da ordem pública e nem aos bons costumes", e

isso significa que todo o objeto deve ser sempre lícito, conforme as disposições legais

e morais, os princípios da ordem pública e os bons costumes.

Também é fundamental que haja a possibilidade física e jurídica do objeto e

que este seja determinado ou, ao menos, determinável, além de suscetível de valoração

econômica.

4.4 FORMA PRESCRITA OU NÃO DEFESA DA LEI

O presente trabalho traz que o Código Civil estabelece a ‘liberdade de forma’

como regra geral e o formalismo como exceção, sendo relevante o elemento formal

apenas quando a lei o exigir. Sendo que "a exigência de forma especial tem muitas

finalidades, dentre elas, facilitar a prova, garantir a autenticidade do ato e dificultar o

vício de vontade por dolo ou coação" (RODRIGUES, 2002, p. 16).

Assim, a forma só é requisito para os atos formais e solenes, definidos pelo

ordenamento.

30

4.5 CONSENTIMENTO RECÍPROCO

Conforme mencionado anteriormente, o contrato consiste na união de duas ou

mais declarações de vontade, ainda que distintas, e convergem para determinado

objeto.

É importante observar que a simples troca de declarações é suficiente para a

formação do contrato, "é imprescindível que estas se integrem e sejam coincidentes em

relação aos direitos e deveres criados, modificados ou extinguidos pelo instrumento

contratual".

Ao comentar sobre o requisito de ordem especial próprio dos contratos,

Gonçalves (2002, p. 7) expõe que “o consentimento recíproco ou acordo de vontades

deve ser livre e espontâneo, sob pena de ter a sua validade afetada pelos vícios ou

defeitos do negócio jurídico: erro, dolo, coação, simulação, fraude e lesão”.

Diniz (2005, p. 29), por seu turno, argumenta que:

Deve haver coincidência de vontades, porque cada contraente tem determinado interesse e porque o acordo volitivo é força propulsora do contrato: é ele que cria a relação jurídica que vincula os contratantes sobre determinado objeto.

Ressalta-se ainda que a declaração de vontade não prescinde de um formalismo

rigoroso para ser feita. A regra é a informalidade. Basta que o consentimento seja

expresso por quaisquer meios inequívocos, capazes de assegurar à outra parte o intuito

de contratar.

4.6 DA EXTINÇÃO CONTRATUAL

Desde a formação do contrato, as partes aguardam o cumprimento das

obrigações pactuadas, como consequência natural do vínculo jurídico estabelecido

pelas declarações de vontades.

De acordo com Maria Helena Diniz (2005, p. 175), “extingue-se normalmente o

contrato pela sua execução e o credor atestará o pagamento por meio de quitação

regular (CC, Arts. 319, 320, 322 e 323)”.

31

Rezam os artigos supracitados:

Art. 319. O devedor que paga tem direito a quitação regular, e pode reter o pagamento, enquanto não lhe seja dada. Art. 320. A quitação, que sempre poderá ser dada por instrumento particular, designará o valor e a espécie da dívida quitada, o nome do devedor, ou quem por este pagou, o tempo e o lugar do pagamento, com a assinatura do credor, ou do seu representante. Art. 322. Quando o pagamento forem quotas periódicas, a quitação da última estabelece, até prova em contrário, à presunção de estarem solvidas as anteriores. Art. 323. Sendo a quitação do capital sem reserva dos juros, estes presumem-se pagos.

Ainda segundo Maria Helena Diniz (2005, p. 161), “a quitação é o ato pela qual

se atesta o pagamento, provando-o, exonerando-se, então, o devedor da obrigação

cumprida”. Ainda sabe-se que pode a execução ocorrer no momento da formação

contratual, a chamada ‘execução instantânea’, bem como em um momento

previamente determinado, conhecida como ‘execução diferida, ou durante todo o

tempo de vigência do contrato, tida como ‘execução continuada’.

Entretanto, nem sempre o contrato atinge o seu objetivo por meio do

cumprimento das obrigações geradas. Há situações em que o vínculo contratual se

extingue antes que as partes venham a atingir os fins desejados. Em decorrência de tais

situações, Rogério Sampaio (2002, p. 57), esclarece que:

Causas anteriores ou contemporâneas à formação do contrato. Hipóteses que levam à invalidação do contrato quer, por nulidade relativa (anulação) ou por nulidade absoluta (declaração de nulidade). Causas supervenientes à formação dos contratos. Hipóteses que levam a dissolução do vínculo. Elas se classificam em: resolução, resilição e rescisão.

Para Orlando Gomes (1987, p. 172) o contrato padece de nulidade absoluta

quando:

Praticado por agente absolutamente incapaz; quando seu objeto for ilícito ou impossível; se não revestir a forma prevista em lei ou for preterida alguma solenidade essencial exigida pela norma para a sua validade; a lei taxativamente o declarar nulo ou lhe negar efeito.

32

O mesmo autor acima citado (1987, p. 173), segue argumentando que o contrato

sofre de nulidade relativa “quando celebrado por pessoas relativamente incapazes com

vício resultante de erro, dolo, coação, simulação ou fraude”.

No que tange às causas supervenientes, a extinção nesses casos verifica-se sobre

os três aspectos:

• Resolução - a forma de extinção contratual que ocorre em virtude do

inadimplemento de uma das partes contratantes. A inexecução pode ser culposa ou

não.

• Resilição - resilir significa extinguir o contrato por vontade de uma ou de

ambas as partes. Etimologicamente, advém do latim resilire, que significa 'voltar

atrás'. A resilição pode ser bilateral ou unilateral. A bilateral realiza-se por mútuo

consenso dos contratantes em extinguir o vínculo contratual e a unilateral pode ocorrer

nos contratos por tempo indeterminado, nos de execução continuada e nos contratos

em geral, cuja execução não tenha começado. Produz efeitos para o futuro.

• Rescisão é a ruptura do vínculo contratual em que houve lesão. A lesão

determina a dissolução do contrato e pode ser obtida mediante ação judicial.

Os vícios redibitórios autorizam a rescisão contratual em virtude do

desequilíbrio entre as prestações do contrato comutativo. Requer a conjunção de dois

elementos: lesão grave, capaz de ocasionar desbalanceamento das prestações do

contrato, como manifesta desvantagem para uma das partes; exercício do direito dentro

do prazo legal.

O assunto carece de exames mais profundos, entretanto, por não ser o tema

principal do presente estudo, fez-se um comentário sintético acerca dos contratos em

geral, passando o capítulo seguinte a se abordar assuntos mais atrelados ao tema

principal.

33

5 A BOA-FÉ E SEUS EFEITOS NOS CONTRATOS

Para que se compreenda o instituto da boa-fé é necessário fazer um retrospecto

temporal, perpassando a história, (re)visitando as várias concepções do Direito,

compreendendo, dentre essas várias concepções, o Direito Romano, o Direito

Canônico e o Direito Germânico, e destacando, inclusive, as mudanças que não

decorrem exatamente da fundamentação da boa-fé, mas da maneira como ela é

interpretada e aplicada.

5.1 O DIREITO ROMANO

Direito romano é um termo histórico-jurídico que se refere, originalmente, ao

conjunto de regras jurídicas observadas na cidade de Roma e, mais tarde, ao corpo

de direito aplicado ao território do Império Romano. Mesmo após 476, o Direito

Romano continuou a influenciar a produção jurídica dos reinos ocidentais resultantes

das invasões bárbaras, embora um seu estudo sistemático no ocidente pós-romano

esperaria a chamada redescoberta do Corpo de Direito Civil pelos juristas italianos

no século XI. Em termos gerais, a história do direito romano abarca mais de mil anos,

desde a Lei das Doze Tábuas (Lex Duodecim Tabularum; 449 a.C.) até o Corpo de

Direito Civil, por Justiniano I (c. 530 d.C.).1

A influência do Direito Romano sobre os direitos nacionais europeus é imensa e

perdura até hoje. Uma das grandes divisões do direito comparado é o sistema romano-

germânico, adotado por diversos Estados continentais europeus e baseado no direito

romano. O mesmo acontece com o sistema jurídico em vigor em todos os países

latino-americanos.

Sobre a boa-fé considerada no Direito Romano, este conceituava-a com uma

perspectiva diferente da apregoada na atualidade, sendo que, em Roma, era conhecida

como fides e possuía vários significados, compreendidos desde o culto à deusa Fides

até os pressupostos de dever e garantia. Ainda no decorrer do Direito Romano, à boa-

fé (fides) é acrescido o qualificativo bona e, a partir disso, caracteriza-se como uma 1 Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Direito_romano>. Acesso em: 21 jan. 2016.

34

obrigação de ‘honrar a palavra dada’, ou seja, que a promessa feita seja efetivamente

cumprida.

A esse respeito, Martins Costa (1999, p. 111) assevera que importa registrar

duas esferas concernentes à aplicação da boa-fé, sendo o das relações de clientela, que

implicavam no dever de cumprir a promessa feita, e o dos negócios contratuais,

incidindo no direito obrigacional, considerado como núcleo normativo, quer dos

tratados entre cidades ou dos contratos de direito privado.

5.2 O DIREITO CANÔNICO

O Direito Canônico é proveniente da lei da Igreja Católica e da Anglicana. A

vida da comunidade eclesial é diretamente regulada pelos chamados Direitos

Canônicos, os quais se relacionam com os católicos espalhados pelo mundo. Todas as

suas características estão regulamentadas no Código do Direito Canônico e a Igreja

Católica mantém um Tribunal Eclesiástico que faz julgamentos baseados no mesmo.

Foi o papa João Paulo II que, em janeiro de 1983, revisou e promulgou as diretrizes do

Direito Canônico que, hoje, é vigente no mundo católico e, alguns anos mais tarde,

este mesmo Papa também promulgou o código que deveria ser utilizado para as igrejas

católicas do Oriente, intitulando-o de “Código dos Cânones das Igrejas Orientais”.

A Igreja Anglicana, por sua vez, mantém suas diretrizes determinadas por

jurisdição própria, proveniente da Idade Média, e possui liberdade para julgar de

acordo com seu próprio código.

Para o mundo cristão submetido aos Direitos Canônicos, há três grupos de

elementos que o constituem, sendo que o primeiro refere-se ao que se atribui

diretamente a Deus e, portanto, são propostos somente pela Igreja; o segundo grupo é

decorrente do que é elaborado pelos dirigentes das Igrejas, considerando-se que são

dotados de um poder legislativo para implementar as Constituições Apostólicas e o

terceiro elemento é proveniente de ordenamentos jurídicos estatais aprovados pela

Igreja.

De forma geral, o Direito Canônico é semelhante ao modelo legislativo e

judicial vigente no Ocidente, no entanto, apresenta diferenças, uma vez que as regras

35

definidas pelas Igrejas Católica e Anglicana são frutos de um Concílio Ecumênico, ou

seja, trata-se de um direito forjado completamente no âmbito da religião.2

Portanto, na Idade Média, sob influência do Direito Canônico, atribuía-se à boa-

fé uma considerável carga ética, pois sua manifestação era considerada ‘ausência de

pecado’ e só poderia invocá-la aquele tivesse sido norteado, do princípio ao fim do

contrato, pelo seu instituto. Ou seja, agir de boa-fé, no âmbito obrigacional, significava

respeitar fielmente o pactuado, cumprir exatamente com a palavra dada, sob pena de,

agindo em má-fé, estar em pecado.

5.3 O DIREITO GERMÂNICO

A expressão Direito Germânico indica as instituições e os sistemas jurídicos

existentes nas diversas nações bárbaras de origem teutônica que se apossaram da

Europa após a queda do Império Romano do Ocidente. Predominava entre os

invasores o direito de origem costumeira, particularista, rudimentarmente

desenvolvido e fortemente impregnado de sentido comunitário. Os usos da tribo

ascendiam à categoria de lei mediante sua definição pelo órgão judicial, a Assembleia,

no julgamento dos casos concretos. As decisões constituíam precedentes e se

aplicavam com força legal. O direito era, ao mesmo tempo, de origem popular e

judicial, conservado pela tradição oral.

Importante característica do direito germânico era a chamada ‘personalidade

das leis’. O direito romano, pelo menos depois que o império atingiu a expansão

máxima, no século II, consagrava, ainda que com exceções, o princípio da

territorialidade, segundo o qual o direito aplicável às pessoas que se acham no

território do estado é o direito do próprio estado, independentemente da condição

nacional ou da origem étnica de seus habitantes. O direito germânico, ao contrário,

principalmente depois que se generalizou a convivência com a população romana, nos

séculos IV e V, considerava que o estatuto legal da pessoa era uma prerrogativa desta,

determinada por sua procedência ou nacionalidade.

2 Disponível em: <http://www.infoescola.com/direito/direito-canonico>. Acesso em: 21 jan. 2016.

36

A coexistência entre romanos e bárbaros tornou-se ameaçadora para as

instituições e os costumes jurídicos destes últimos, ante o impacto de uma civilização

mais avançada. Por outro lado, com o curso do tempo e a ocorrência de frequentes

migrações, com casamentos entre pessoas de nacionalidades diferentes e o nascimento

de descendentes dessas uniões, a aplicação do direito foi-se tornando problema dos

mais difíceis. Alguns reis bárbaros mandavam compilar os direitos de seu povo e os

dos povos vencidos, pelo sistema romano de codificação, o que contribuiu para que,

aos poucos, se firmasse o princípio da territorialidade das leis.

As leis bárbaras ordenaram os usos e costumes das tribos na forma escrita,

recolhendo a influência de princípios do direito romano, mediante compilações do

período pós-clássico, das constituições imperiais e da jurisprudência. Nessas

codificações, as leis ou a jurisprudência romana podiam aparecer justapostas, sem

modificações, ou resumidas, modificadas e intercaladas.3

A boa-fé, no Direito Germânico, recebe significados diversos daqueles adotados

no Direito Romano e Canônico, pois adquire conotações de confiança, lealdade, crença

e honra da fórmula Treu und Glauben, (boa-fé), a garantia do cumprimento da palavra

dada, que não está mais somente no indivíduo em si, mas considerado num

comportamento coletivo.

Ainda nesse período da história surge a corrente Humanista, composta de

grandes pensadores que objetivaram reunir diversas acepções da boa-fé, construir uma

concepção unitária deste princípio e transformá-la em um princípio geral do direito.

De acordo com Martins-Costa (1999, p. 133), ainda que os humanistas tenham

exercido pouca influência no direito, com a construção dos princípios gerais

proporcionaram a alavanca para a elaboração centralizada do sistema, tarefa que será

exercida pelos jusracionalistas.

Na Idade Moderna temos o racionalismo, nova forma de pensamento jurídico

que pretende formar um sistema fechado buscando assimilar o direito à lógica

matemática, considerando que o direito é feito de certezas racionais. Para os

racionalistas todo o passado deve ser ignorado, não podendo mais ser considerado base

3 Disponível em: <http://www.estudantedefilosofia.com.br/conceitos/direitogermanico.php>. Acesso em: 21/01/2016.

37

de validade do ordenamento jurídico existente. Este novo método de ver o direito dá

origem a uma das vertentes do positivismo jurídico, que está representado

especialmente pela ‘Escola da Exegese’4.

Com o ‘Código de Napoleão’5, a Escola da Exegese adotou a posição de que o

intérprete era apenas um mero aplicador da lei e combatia qualquer procedimento de

flexibilização da mesma. Para os defensores da Escola de Exegese, a lei era perfeita e,

ao analisá-la da forma correta, todos encontrariam uma única resposta. Por

conseguinte, para essa Escola, estavam destinados ao esquecimento princípios como o

da boa-fé, uma vez que esses eram dotados de ‘conceitos imprecisos’, destituídos da

clareza necessária para serem considerados. Todavia, no final do século XIX, surge e

se alastra uma nova forma de se pensar o direito: a Escola Histórica, da Alemanha,

impulsionada por Savigny6, que pensava o direito como fruto de uma evolução

histórica e valorizava os costumes e os princípios, porque esses seriam a expressão da

vontade do povo.

Ainda sobre a Escola Histórica, uma de suas vertentes foi a Pandectística7,

doutrina jurídica que acreditava num direito de jurisprudência e influenciou na

4 A ‘Escola da Exegese’ surgiu no início do século XIX em meio ao caos político e social da França revolucionária. Nessa época, as diversas trocas de governo no Estado Francês, principalmente durante o período do Terror, provocaram uma grande desordem no ordenamento jurídico deste país, o que causava grandes prejuízos aos negócios da classe social mais favorecida pela Revolução: a burguesia. Os defensores da Escola da Exegese não aceitavam a existência de lacunas na lei, pois, por ser fruto da razão, ela alcançaria todo o ordenamento jurídico. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/23137/a-escola-da-exegese-origem-caracteristicas-e-contribuicoes>. Acesso em: 21 jan. 2016. 5 Com a ascensão de Napoleão Bonaparte ao poder, a burguesia patrocinou a criação de um código civil que consolidou as conquistas burguesas da Revolução e que trouxe ordem e segurança ao ordenamento jurídico francês. Nascia, assim, o Código Napoleônico que foi o codex de leis mais sistematizado já produzido e influenciou a criação de outros códigos similares em outros países. Ele e as correntes hermenêuticas surgidas a partir dele foram tão importantes que influenciaram profundamente o direito da primeira metade do século XIX, somente vindo decair em popularidade entre os jusconsultos a partir do final daquele século. A principal escola criada a partir desse código foi a ‘Escola da Exegese’. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/23137/a-escola-da-exegese-origem-caracteristicas-e-contribuicoes>. Acesso em: 21 jan. 2016. 6 O principal representante da Escola Histórica é Friedrich Carl Von Savigny (1779-1861), um autor cuja importância vai muito além das questões historicistas. Deve notar-se que, ao lado referências ao espírito das pessoas, que tiveram uma relevância prática bastante limitada, Savigny oferece interessantes reflexões sobre o conceito de lei. Disponível em: <http://www.teoriadelderecho.es/2012/10/escuela-historica-pandectistas-positivismo-cientifico.html>. Acesso em: 22 jan. 2016. 7 La pandectística, o pandectismo, fue una doctrina jurídica europea posterior al humanismo jurídico y anterior a la codificación, que alcanzó su apogeo en Alemania en el siglo XIX. La escuela pandectística trataba de analizar los textos del derecho romano siguiendo el método de la dogmática

38

‘Codificação Alemã’, sendo que o Código Civil Alemão, de 1900, desenvolveu-se e

passou a influenciar as demais codificações modernas, pois “possui normas de elevado

nível de abstração e elasticidade, o que permite a jurisprudência adaptar seus

dispositivos a muitas e distintas situações de fato. (...) Do ponto de vista moral,

conferiu grande valor à boa-fé na interpretação dos contratos” (AMARAL NETO,

2006, p. 125).

5.4 O DIREITO BRASILEIRO

O Direito do Brasil foi influenciado, principalmente, pelos sistemas

legais romanos e pelo direito de países europeus, principalmente os

direitos português, francês, italiano e alemão. Nos últimos anos, novamente tem

havido um retorno da influência norte-americana no Direito Brasileiro, especialmente

com o ativismo judicial que tem ganhado destaque perante o Poder Judiciário

brasileiro. O sistema legal no Brasil é muito contestado na sua lógica no século XXI.

No Direito Brasileiro a boa-fé apareceu primeiramente no Código Comercial,

de 1850, em seu Artigo 131:

Art. 131 - Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: 1 - a inteligência simples e adequada, que for mais conforme a boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras.

Entretanto, o Artigo 131 não logrou êxito na prática, pois a doutrina e a

jurisprudência não obtiveram sucesso em aplicá-lo.

Mais tarde, em 1916, o Código Civil Brasileiro, elaborado por Clóvis

Beviláqua, traz consigo a preocupação com a segurança, a certeza e a clareza e não

permite a inclusão de cláusulas gerais e, por isso, a boa-fé fica restrita a matérias de

direito de família e de direitos reais. Ou seja, neste código a boa-fé aparece somente no

jurídica, es decir, buscando la extracción de principios, así como la deducción de conceptos nuevos, basados en la abstracción a partir de conceptos anteriores. Disponível em: <https://es.wikipedia.org/wiki/Pandectística>. Acesso em: 22 jan. 2016.

39

aspecto subjetivo. Mas, ainda na década de 90, com o advento do Código de Defesa do

Consumidor, a boa-fé começa a aparecer também em outro plano, configurando-se

como ‘boa-fé objetiva’ - ou ‘norma de comportamento’. Assim, a boa-fé surge não só

como método interpretativo, mas também como cláusula geral, como dever de agir

com lealdade e correção na conduta entre ambas as partes de uma relação de consumo,

como pode ser facilmente observável no Artigo 4º, inciso III, do Código de Defesa do

Consumidor:

A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.

Ainda no Código de Defesa do Consumidor, em seu Artigo 51, inciso IV,

encontra-se a definição das cláusulas abusivas concernentes à boa-fé, onde se lê que:

São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade.

Por sua vez, no Código Civil de 20028, a boa-fé passa a exercer grande

influência no Direito das Obrigações e no Direito Contratual, passando a funcionar

como um elo entre o direito contratual e os princípios constitucionais. Desse modo, a

boa-fé objetiva representa a valoração da pessoa humana em oposição à senhoria da

vontade expressa pelo individualismo jurídico. O contrato vem configurado com um

espaço de desenvolvimento da personalidade humana; uma relação econômico-jurídica

em que as partes devem colaboração umas com as outras com vistas à construção de

8 Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002, institui o Código Civil. (Nota do Autor)

40

uma sociedade livre, justa e solidária (MORAIS, 1998 apud TEPEDINO, 2009, p.

135).

Em síntese, no Código Civil de 2002 a boa-fé funciona como ponte entre os

princípios constitucionais e as diversas relações civis e passa a agir nos planos objetivo

e subjetivo, podendo se dizer que foi nesse momento que a boa-fé atingiu o seu

apogeu, uma vez que, no Código Civil de 1916, a boa-fé era reconhecida apenas por

seu plano subjetivo como regra para a interpretação de negócios jurídicos.

5.5 BOA-FÉ SUBJETIVA X BOA-FÉ OBJETIVA

Entende-se por ‘boa-fé subjetiva’ o conhecimento − ou desconhecimento −

do(s) fato(s) pela pessoa, situação considerada pelo direito, inclusive servindo de

proteção àquele que tem a consciência de estar agindo legalmente, apesar de a

realidade ser outra. Ainda pode-se dizer que se refere ao estado psicológico de um

determinado indivíduo que acredita estar agindo de forma correta de acordo com o

direito, sem perceber os vícios que rodeiam este comportamento (VOLANSKI, 2010).

Ou, ainda:

Tem-se que boa-fé subjetiva é a prática de determinado ato, por alguém, desprovida de malícia ou, até mesmo, ignorando a existência de vícios no mesmo, fazendo com que o agente acredite estar em consonância com o direito. Nas palavras de Judith Martins-Costa, “a boa-fé subjetiva denota,

portanto, primariamente, ideia de ignorância, de crença errônea, ainda que

escusável, acerca da existência de uma situação regular, crença (e

ignorância escusável) que repousam seja no próprio estado (subjetivo) de

ignorância (as hipóteses de casamento putativo, da aquisição da

propriedade alheia mediante usucapião), seja numa errônea aparência de

certo ato (mandato aparente, herdeiro aparente, etc.)”. Disto, infere-se que a boa-fé subjetiva está totalmente ligada ao estado psíquico do agente (TEPEDINO; SCHREIBER, 20059).

Por sua vez, traçando considerações sobre a boa-fé subjetiva, Nalin (1998, p.

194) esclarece que esta se enquadra perfeitamente na moldura clássica do

voluntarismo e do individualismo, “pois surge da crença, do estado de ignorância

9 Disponível em: <http://spqp-169.blogspot.com.br/2011/03/boa-fe-subjetiva-vs-boa-fe-objetiva.html>. Acesso em: 23 jan. 2016.

41

daquele que se julga titular de um direito, quando, em verdade, é titular

exclusivamente de seu juízo e imaginação”. Portanto, essa não seria a boa-fé adequada

para a matéria contratual e ao momento da execução contraída, pois os contratos

precisam de compreensão além do plano subjetivo para assegurar plena satisfação às

partes. Então, este seria o momento de a ‘boa-fé objetiva’ entrar em cena.

A boa-fé objetiva, instrumento inaugurado pelo Código de Defesa do

Consumidor, é a exigência de uma cooperação mútua, no âmbito contratual, entre as

partes, sem nenhuma tendência à proteção daquela que for hipossuficiente. Aludida

cooperação refere-se a lealdade, honestidade e equidade na prática de determinados

atos pelas partes de uma relação jurídica de modo a alcançarem os fins a que se

propuseram, como pode ser observado no artigo 422, CC/02, onde se lê: “os

contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua

execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

Por ter sido adotada primeiramente pelo Código de Defesa do Consumidor, a

boa-fé objetiva é utilizada na jurisprudência como um instrumento protetivo do

consumidor, quando, na realidade, obriga tanto ao último quanto a outra parte que

contrata. Contudo, por se tratarem de decisões sobre matéria de Direito do

Consumidor, estas não foram de todo errôneas, uma vez que objetivavam a busca de

uma decisão que protegesse o consumidor.

Ao ler a definição do que parece ser boa-fé objetiva é possível se chegar à

conclusão de que se trata de uma concepção vaga e de cunho exclusivamente moral,

no entanto, esse raciocínio não pode ser aplicado à boa-fé objetiva, pois apresenta três

funções, quais sejam, interpretativa de contratos, colocando em primeiro plano uma

interpretação das cláusulas de modo a promover a lealdade e honestidade entre as

partes, vedando que uma iluda a outra em seu benefício; restritiva do exercício

abusivo de direitos contratuais, servindo de critério de diferenciação entre o exercício

irregular e o regular de um determinado direito em relação à outra parte; e função

criadora de deveres anexos à prestação principal, prevendo, portanto, deveres além

daqueles já estabelecidos pelo contrato, como os de lealdade, proteção, de

esclarecimento ou informação.

42

Indubitavelmente, o princípio da boa-fé objetiva deve ter um limite que permita

dar efetividade a ele. Tal limite vem a ser a função econômica e social do contrato que

se está celebrando, não excedendo a vida privada das partes. Portanto, quando um

consumidor adquire um automóvel, o vendedor tem o dever de prestar informações

sobre o automóvel e o contrato.

Apesar de tudo, o princípio da boa-fé objetiva não deslegitima a possibilidade

de vantagens num determinado negócio jurídico; assim como o comprador quer

desconto, o vendedor pode querer obter um lucro maior, pois isto é da natureza

negocial e um não precisa fazer negócio com o outro; se o fizerem, segundo o

princípio da boa-fé objetiva, foi conhecendo as condições e a possibilidade de um ou

de outro obter vantagem. Obviamente que, se a vantagem prover de exercício abusivo

de direitos contratuais, o princípio da boa-fé objetiva atuará de forma protetiva a

qualquer que for a parte lesada, uma vez que probidade e lealdade é exigida de

ambas.10

Após o exposto, cabe registrar que é no Código Civil de 2002 que a boa-fé

passa a apresentar-se nos aspectos subjetivo e objetivo como “Cláusula Geral da Boa-

Fé Objetiva”, e, ainda, considerando-se que, por ‘Cláusulas Gerais’, compreende-se as

normas que nortearão o intérprete no momento de aplicar as demais normas no caso

concreto. E, por assim serem, pretendem flexibilizar o direito e fornecer maior

segurança jurídica, pois se moldam de acordo com a sociedade em que vivem. São

também conhecidas como ‘cláusulas abertas’ que englobam os comportamentos

diversos dos contratantes, quer positivos ou omissivos.

Assim, a cláusula geral da boa-fé objetiva, que vem inscrita no Código Civil de

2002 como regra de conduta, impõe aos contratantes que operem de forma correta,

fato ratificado por Gonçalves (2004, p. 33), quando o autor expõe que:

As partes se comportem de forma correta não só durante as tratativas, como também durante a formação e o cumprimento do contrato. (...) Recomenda ao juiz que presuma a boa-fé, devendo a má-fé, ao contrário, ser provada por

10 TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. A Boa-fé Objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no novo Código Civil. In: Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. ISBN: 8571475148. Disponível em: <http://spqp-169.blogspot.com.br/2011/03/boa-fe-subjetiva-vs-boa-fe-objetiva.html>. Acesso em: 23 jan. 2016.

43

quem a alega. Deve este, ao julgar a demanda na qual se discuta a relação contratual, dar por pressuposta a boa-fé objetiva, que impõe ao contratante um padrão de conduta, como agir com retidão (probidade), honestidade e lealdade, nos moldes do homem honesto, resguardando as peculiaridades dos usos e costumes do lugar.

Ainda de acordo com o Código Civil de 2002, a boa-fé objetiva está expressa

nos Artigos: i) 113 -“Os negócios devem ser interpretados conforme a boa-fé e os

usos do lugar de sua celebração”, ii) 187 - “Também comete ato ilícito o titular de um

direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim

econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”, e iii) 422 -“Os contratantes

são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os

princípios de probidade e boa-fé”.

Ratificando, leia-se:

A boa-fé objetiva possui caráter tridimensional (MARTINS-COSTA, 2002, p. 640; TEPEDINO; SCHREIBER, 2005, p. 222-224; NORONHA, 1994, p. 151), que se exterioriza através de três funções elencadas no Código Civil de 2002, quais sejam: a interpretativa (artigo 113), a de controle (artigo 187) e a integrativa (artigo 422). Destas, a função mais importante é a integrativa, pois a boa-fé objetiva integra qualquer relação obrigacional, e, por conseguinte, contratual, por meio dos deveres anexos de conduta (SILVA; MATOS, 2012.).

Sobre as funções da boa-fé objetiva, constantes do Código Civil de 2002,

traçaremos algumas considerações a seguir.

5.6 AS FUNÇÕES DA BOA-FÉ OBJETIVA DESCRITAS NOS ARTIGOS 113, 182

E 422 DO CÓDIGO CIVIL − LEI Nº 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002

Artigo 113 -“Os negócios devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos

do lugar de sua celebração”- A função interpretativa da boa-fé objetiva indica a

forma como o intérprete irá pautar-se para buscar o sentido adequado de examinar-se o

conteúdo contratual fundado na observância da boa-fé nas relações jurídicas

contratuais.

44

A boa-fé objetiva apresenta-se assim como cânone interpretativo, como

referencial hermenêutico, pautado no paradigma da eticidade, que na teoria dos

negócios jurídicos, possui papel essencial, na contemporaneidade.

[...] Destarte, a boa-fé servirá como parâmetro objetivo para orientar o julgador na eleição das condutas que guardem adequação com o acordado pelas partes, com correlação objetiva entre meios e fins. O juiz terá que se portar como um "homem de seu meio e tempo" para buscar o agir de uma pessoa de bem como forma de valoração das relações sociais. (FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 20 apud SILVA; MATOS, 2012).

Conforme pode ser observado, trata-se de uma norma de interpretação dos

negócios jurídicos, a partir da qual se interpretará "as declarações de vontade conforme

a confiança que hajam suscitado de acordo com a boa-fé" (OLIVEIRA, 2006, p. 218),

e demais circunstâncias apresentadas na relação jurídica contratual. Dessa forma, a

função interpretativa referência a boa-fé "como critério hermenêutico, exigindo que a

interpretação das cláusulas contratuais privilegie sempre o sentido mais (sic) conforme

à lealdade e à honestidade entre as partes." (TEPEDINO; SCHREIBER, 2005, p. 223).

Em Boa-fé Objetiva no Direito Contratual Contemporâneo, Silva e Matos

(2012) afirmam ser importante destacar também que “a previsão legal do artigo 113 é

norma cogente, que não pode ser afastada pela vontade das partes, pois é dever

jurídico imposto aos contratantes, que deverão comportar-se, obrigatoriamente, nos

negócios jurídicos segundo os ditames da boa-fé”.

Ainda sob o ponto de vista desses mesmos autores (SILVA; MATOS, 2012):

A função interpretativa impõe que o intérprete, ao analisar as relações jurídicas obrigacionais, não se aterá a uma interpretação literal do negócio jurídico, mas, precipuamente, deverá pautar-se por uma interpretação, fundada na observância do sentido pertinente às convenções sociais inerentes àquela dada comunidade política.

Pautando-se nessa perspectiva, tem-se a prevalência da teoria da confiança, que

se apresenta como um ecletismo da teoria da declaração (prevalência do texto em

detrimento do aspecto psíquico) e da teoria da vontade (predominância da vontade

interna das partes sobre a declaração), pela qual o intérprete buscará a vontade objetiva

45

do contrato (vontade aparente do negócio jurídico), pautado nos ideais orientadores da

boa-fé objetiva (ROSENVALD, 2005, p. 89; FARIAS; ROSENVALD, 2007b, p. 64).

Desse modo, é necessário que o intérprete analise as circunstâncias do caso

concreto e a finalidade econômico-social do contrato para determinar a solução

adequada ao caso, considerando os contornos estabelecidos pela boa-fé objetiva.

Artigo 187 - “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-

lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela

boa-fé ou pelos bons costumes” - A função de controle da boa-fé objetiva impõe

limites ao exercício abusivo do direito subjetivo dos contratantes, para determinar até

onde o mesmo é legítimo ou não, e, desta forma, obter o merecimento do ordenamento

jurídico (SILVA; MATOS, 2012).

A referida função implica em limitação de direitos subjetivos das partes, as

quais devem observar os preceitos estabelecidos pela boa-fé objetiva no

encaminhamento dos negócios jurídicos, com o objetivo claro de que o contrato

cumpra sua função social.

Desse modo, tem-se que a boa-fé objetiva caracteriza-se como pressuposto de

conduta ético-jurídica, que tem por objetivo coibir o abuso de direito subjetivo, uma

vez que esse é qualificado pelo ordenamento jurídico como ato ilícito, conforme

previsão legal do artigo 187 do Código Civil de 2002, de modo a garantir o

cumprimento estabelecido pelo contrato efetuado entre as partes.

Cabe acrescentar que "a boa-fé está diretamente relacionada à teoria do abuso

de direito nesta sua função de limitar ou mesmo impedir o exercício de direitos que

emergem da relação contratual." (NEGREIROS, 2006, p. 140 apud SILVA; MATOS,

2012).

Com isso:

Busca-se evitar o abuso de direito, reduzindo a liberdade de atuação dos contratantes, pois, determinados comportamentos, ainda que lícitos, não observam a eticidade preconizada pelo princípio da boa-fé objetiva, e assim, negligenciam os ditames da lealdade, honestidade e confiança mútua, que devem nortear a conduta das partes nas relações jurídicas, ferindo a legítima expectativa da outra parte (SILVA; MATOS, 2012).

46

Artigo 422 - “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do

contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé” - A função

integrativa da boa-fé objetiva é fonte criadora de novos deveres especiais de conduta a

serem observados pelas partes durante o vínculo obrigacional e são os chamados

‘deveres anexos, instrumentais ou colaterais de conduta’, que são observados em toda

e qualquer relação jurídica obrigacional.

É através da função integrativa (ou criadora) que se irradiam os deveres anexos de conduta, impostos pela boa-fé objetiva, os quais afluem para todo o Direito Obrigacional, e, por conseguinte, para os demais ramos do Direito. O contrato passa a ser entendido como relação jurídica complexa e

dinâmica (COUTO E SILVA, 1976, p. 10-11; MARTINS-COSTA, 2000, p. 382-409; MARQUES, 2006, p. 217-218; NORONHA, 2007, p. 75; FARIAS; ROSENVALD, 2007b, p. 39-42), compreendido pela obrigação principal acrescida dos deveres anexos da boa-fé objetiva, os quais devem ser observados pelas partes, alterando-se, o vínculo obrigacional estático outrora existente, restrito ao campo da prestação (SILVA; MATOS, 2012).

Dessa maneira, é necessário que o contrato cumpra tanto a ‘obrigação de

prestar’ como também a ‘obrigação de conduta’ entre as partes envolvidas, com a

finalidade de garantir o cumprimento da obrigação assumida.

Por conseguinte, mediante todo o exposto considerando as funções da boa-fé

objetiva, entendemos que a função integrativa é a função mais importante do princípio

da boa-fé objetiva, “pois os referidos deveres que se originam deste passam,

obrigatoriamente, a integrar qualquer relação obrigacional, como obrigação

secundária, para que essa seja equilibrada, e permita não frustrar a confiança mútua e a

legítima expectativa dos contratantes” (SILVA; MATOS, 2012).

Todavia, em decorrência da crescente transformação da sociedade

contemporânea, o direito precisa cada vez mais se adequar aos comportamentos

sociais, dentre esses, o desenvolvimento socioeconômico, para garantir efetividade

jurídica aos interessados/necessitados. Assim, além das funções: i) interpretativa

(artigo 113), ii) de controle (artigo 187) e iii) integrativa (artigo 422), descritas no

Código Civil de 2002 para a boa-fé objetiva, existe ainda a função limitadora de

direitos subjetivos da boa-fé objetiva, cujo intuito é o de garantir que numa relação

47

contratual não haja a quebra da confiança, com o chamado ‘abuso de direito’. Sobre

essa função limitadora da boa-fé objetiva, discorremos a seguir.

5.7 A FUNÇÃO LIMITADORA DA BOA-FÉ OBJETIVA

A ‘teoria do abuso de direito’, no Direito Civil Brasileiro, não estava presente

no Código de 1916 e, durante muito tempo, procurou amparo na jurisprudência, no

entanto, suas origens remontam ao direito medieval. Somente com o Código de 2002 é

que esta foi positivada no artigo 187 com a seguinte redação: “Também comete ato

ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites

impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”

(VOLANSKI, 2010).

Assim, “o abuso de direito é constatado no instante da violação do elemento

axiológico da norma. Instala-se a contrariedade entre o comportamento comissivo ou

omissivo do indivíduo e o fundamento valorativo-material do preceito”

(ROSENVALD; FARIAS, 2008, p. 508).

O abuso de direito é valorado tanto pelos costumes e pela função social e

econômica dos direitos quanto pela boa-fé, uma vez que pressupõe um vínculo já

existente de confiança entre quem invoca este princípio e quem deve comportar-se

com submissão perante ele.

Desse modo, pode-se dizer que a boa-fé e o abuso de direito se complementam,

pois a boa-fé “serve como parâmetro de valoração de comportamento dos contratantes:

o exercício de um direito será irregular e, nesta medida, abusivo se consubstanciar

quebra de confiança e frustração de legítimas expectativas.” (NEGREIROS, 2006, p.

141apud VOLANSKI, 2010).

Estudiosos afirmam que a função limitadora estaria ligada a teoria dos atos

próprios, que pretende impedir que certa pessoa pratique conduta contrária a que havia

praticado anteriormente, utilizando-se da interpretação da lei, da boa-fé e dos

costumes. Ou seja, tenciona “impedir que a parte que tenha violado deveres contratuais

exija o cumprimento pela outra parte, ou valha-se de seu próprio incumprimento para

beneficiar-se de disposição contratual ou legal” (MARTINS-COSTA, 1999, p. 461).

48

Quando a boa-fé objetiva faz uso da ‘teoria dos atos próprios’, está invocando a

aplicação de algumas figuras importantes para o exercício da função limitadora, sendo

que, a primeira, denominada tu quoque11, prescreve situações em que uma das partes

venha a exigir algo que por ela também foi negligenciado ou descumprido.

Destarte:

Ocorre o tu quoque quando alguém viola uma determinada norma jurídica, e posteriormente, tenta tirar proveito da situação, com fito de se beneficiar. É possível encontrar nesta figura deslealdade e malícia, que geram a ruptura da confiança depositada por uma das partes no comportamento da outra (ROSENVALD; FARIAS, 2008, p. 523).

Ainda deverá se considerar que a regra do tu quoque estaria ligada à

característica principal dos contratos denominados bilaterais, que pretende manter o

equilíbrio entre as partes numa determinada relação jurídica.

Ou seja:

Aplicando-se tal ideia ao tu quoque jurídico, um fato que poderia ser considerado normal e legítimo ou mesmo o exercício de um direito passa a ser valorado negativamente em razão da presença de uma ação anterior ilegítima, capaz de contaminar a ação posterior, sendo-lhe então negada a proteção da norma. Ao revés, no esquema das proposições lógicas, da afirmação de um fato dir-se-á que é verdadeira ou falsa em si, não recaindo sobre ela a pecha de verdadeira ou falsa por que a sociedade aprecie ou não a realidade afirmada como positiva. Daí decorre no plano jurídico que, se a realidade afirmada for verdadeira, porém indesejável (por exemplo, a proposição “pessoas são roubadas todos os dias”), ser-lhe-á aposta uma sanção. (...) É por isso que, em verdade, a inconsistência vergastada pelo tu

quoque jurídico assemelha-se muito mais, em filosofia, à inconsistência reprovada pela filosofia moral. (...) Nestes casos que envolvem a conduta humana, esta inconsistência é ainda mais interessante, pois deixa a descoberto uma falha moral, um divórcio entre intelecto (a consciência do correto) e vontade (a qual está, no caso, perseguindo o erro). Do ponto de vista moral, o indivíduo não atua retamente, pois se utiliza de critérios valorativos díspares conforme esteja julgando sua própria práxis ou a práxis do outro (PEREIRA, 2012, p. 365-366).

11 Tu quoque é uma expressão latina que refere-se à quebra de confiança, ofensa a boa-fé objetiva. Essa expressão tem origem da célebre frase dita pelo imperador Julio César: "tu quoque Brutus fili

mi", que significa, literalmente, “Você também, Brutus, meu filho”. No Direito Civil, tem como figura representativa a exceção do contrato não cumprido, prevista no art. 476 do Código Civil. Quer-se com esse dispositivo evitar que aquele que não cumpre a sua obrigação, violando uma norma jurídica, venha a invocar essa mesma norma em seu favor, com isso, atentando contra o princípio da boa-fé objetiva (EDUARDO SALES, 2012). Disponível em: <http://pcjuridico.blogspot.com.br/2012/09/o-que-e-tu-quoque.html>. Acesso em: 23 jan. 2016.

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Portanto, o tu quoque não só evita que uma das partes se aproveite de algo que

por ele também foi descumprido, como também procura manter o equilíbrio contratual

entre as partes. Assim, a boa-fé objetiva, que também está presente no processo, não

permite que uma parte alegue contra o outro fato que ela não aceita e para o qual exige

prova judicializada.

Entendido o tu quoque, temos como segundo duas figuras que se contrapõem: a

supressio e a surrectio, que “tratam da inadmissibilidade do exercício de determinadas

situações jurídicas por seu retardamento, omissão, fazendo surgir para outra pessoa

uma expectativa” (ROSENVALD; FARIAS, 2008, p. 520).

A supressio é a perda de um direito que não foi exercido em um determinado

lapso temporal. Assemelha-se a prescrição e a decadência, por estar relacionada ao

transcurso do tempo. Porém, muito mais que tempo, a supressio precisa da confiança

da outra parte, como seu elemento caracterizador.

Por sua vez, a surrectio, ao contrário da supressio, caracteriza-se quando uma

das partes não exerce um direito próprio e, não podendo exercê-lo posteriormente,

oferece à outra parte uma vantagem indevida (VOLANSKI, 2010, p. 27-28).

Uma outra figura também importante no princípio da boa-fé objetiva é o

adimplemento substancial, hipótese em que o contratante executa grande parte de suas

obrigações e acaba por não executar uma pequena parte perante o todo, sendo que a

principal consequência deste instituto é impedir a resolução do contrato sob a alegação

de inadimplemento, ou seja, o descumprimento das regras contratuais por uma das

partes.

Por último fazemos referência ao venire contra factum proprium, importante

instituto jurídico que visa garantir que as partes, durante a relação obrigacional ou

contratual, não se comportem de maneira contraditória, evitando que uma prejudique à

outra. Ademais, o venire contra factum proprium pode resultar da prática ou não de

um determinado ato por uma das partes, quebrando a confiança depositada pela outra,

ou seja, “pode ocorrer tanto quando uma das partes cria a confiança de que

determinada conduta será adotada, e não o é, ou quando se espera que o

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comportamento não será adotado, mas termina sendo” (ROSENVALD; FARIAS,

2008, p. 520).

Ainda sobre o venire contra factum proprium, convém acrescentar que:

Trata-se de regra de profundo conteúdo ético que, por refletir princípio geral, independe de recepção legislativa, verificando-se nos mais diversos ordenamentos como uma vedação genérica à deslealdade. Na proibição do venire incorre quem exerce posição jurídica em contradição com o comportamento exercido anteriormente, verificando-se a ocorrência de dois comportamentos de uma mesma pessoa, diferidos no tempo, sendo o primeiro (o factum proprium) desmentido pelo segundo. (Agravo de Instrumento. Acórdão nº 17751, TJPR, 3ª Câmara Cível, Rel. Des. Noeval de Quadros, em 17.06.2003 apud VOLANSKI, 2010, p. 32-33).

Diante das considerações apresentadas é possível verificar, na decisão

transcrita, que a proibição do comportamento contraditório tem por objetivo garantir

que a confiança estabelecida nas relações contratuais não seja quebrada e que o dever

de lealdade seja efetivo não só numa relação jurídica no caso concreto, mas em todas

as relações sociais.

E, por fim, cabe assinalar que todos os institutos da função limitadora de

direitos subjetivos da boa-fé objetiva, apresentados neste estudo, visam garantir que

não haja abuso de direito e sim o verdadeiro respeito à confiança e à lealdade, que

asseguram às partes consideradas no contrato, satisfação derivada do equilíbrio havido

entre as relações jurídicas.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho, de modo geral, buscou trazer o percurso histórico da

responsabilidade civil e da cláusula geral de boa-fé, evidenciando a importância desses

no desenvolvimento da sociedade, ressaltando as diversas mudanças de pensamento e

de comportamento social que ocorreram ao longo da história.

Contextualmente, o reconhecimento de um dever de atuação ética, leal e

transparente de cooperação é imperativo da boa-fé objetiva. Este viés tem como

objetivo estabelecer a confiança apta a estimular as relações jurídicas e a própria

prosperidade social.

São, por estes motivos, a identificação do objeto das relações jurídicas,

sobretudo as contratuais, e das condutas devidas por cada um dos personagens deixou

de ser realizada de acordo com a simples literalidade dos ajustes, surgindo em

substituição à inadequada noção de autonomia da vontade, uma nova perspectiva que

exige que as relações se desenvolvam com vistas a um objetivo mais complexo: a

busca pela finalidade social e material, partindo do vínculo jurídico, ao redor do qual

há deveres anexos que merecem ser observados, em razão da boa-fé objetiva que deve

orientar, sempre, as condutas das pessoas nos seus relacionamentos.

Buscou-se destacar neste trabalho, ainda que limitado, a importância da

responsabilidade civil e da inobservância da boa-fé objetiva − não somente como

cláusula geral inerente ao direito obrigacional e contratual, mas como princípio geral

do direito a fixar diretrizes e preceitos a serem observados por todas as áreas da

ciência jurídica.

Deste modo, fica evidente a relevância da função limitadora da boa-fé objetiva,

pois esta, moldada de acordo com a sociedade brasileira, pretende manter o equilíbrio

nas relações jurídicas.

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