da condição jurídica dos entes despersonalizados

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    DA CONDIO JURDICA DOS ENTES DESPERSONALIZADOS

    Alcio Martins Sena1

    Os entes despersonalizados esto elecandos no artigo 12 do

    Cdigo de Processo Civil Brasileiro, sendo eles a massa falida, o esplio, a

    herana jacente, a herana vacante, a sociedade irregular e o condomnio edilcio.

    Entretanto, tais entes no receberam qualquer denominao legal.

    A expresso entes despersonalizados criao doutrinria, sendo a mais usual

    e conhecida. Contudo, no unnime, havendo ainda vrias outras terminologias.

    Dentre elas, entes atpicos, sujeitos de personalidade reduzida, grupos de

    personificao anmala.

    O artigo 12 do CPC conferiu ao condomnio, massa falida, ao

    esplio, herana vacante e jacente e s sociedades irregulares a faculdade de

    figurarem como partes na relao processual, tornando evidente o problema dos

    entes despersonalizados no ordenamento brasileiro. Isso porque, os entes, que

    anteriormente no eram enquadrados como sujeitos de direitos, passaram a ter afaculdade de participarem da relao processual.

    Alm desse direito de postular a prestao jurisdicional,

    independentemente da existncia de um direito material, alguns entes, como as

    sociedades irregulares e os condomnios, so titulares de uma srie de outras

    faculdades, participando ativamente do cenrio jurdico, na condio de sujeitos

    das mais variadas relaes. De fato, tais entes contratam empregados, emitemcheques, compram, vendem, emprestam e realizam uma srie de outros negcios

    jurdicos.

    1Advogado em Belo Horizonte.

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    Entretanto, todas essas faculdades conferidas aos entes

    despersonalizados no vieram acompanhas da insero desses seres na

    categoria de pessoa jurdica. Da a grande indagao que se estabelece na

    doutrina brasileira: seriam eles dotados de personalidade ou no? Em outras

    palavras, a faculdade que a lei lhes conferiu de figurarem como sujeito de direitos

    no os tornariam pessoas?

    Vrios juristas negam que tais entes tenham personalidade, uma

    vez que a lei no os enquadrou na categoria das pessoas jurdicas, sendo certo

    que no atendem aos requisitos legais impostos para a constituio destas.

    As pessoas jurdicas, ao contrrio das pessoas naturais, socriadas tecnicamente pelo direito, se constituindo num agrupamento de pessoas

    ou de bens, aos quais o ordenamento jurdico atribui a aptido para ser titular de

    direitos e obrigaes.

    No direito positivo brasileiro, o artigo 44 do Cdigo Civil traz o rol

    das pessoas jurdicas de direito privado. Assim, somente os entes referidos na

    disposio do artigo retro mencionado (sociedades, associaes e fundaes)

    podem ser reputados pessoas jurdicas privadas no direito ptrio.

    Para que um ente atinja a condio de pessoa jurdica,

    enquadrando-se numa das trs categorias j mencionadas, necessrio o

    cumprimento de alguns requisitos, que, na lio de CAIO MRIO, so os

    seguintes: vontade humana criadora, a observncia das condies legais de sua

    formao e a liceidade de seus propsitos.2

    Contudo, o esplio no se identifica com a figura de uma

    sociedade, ou de uma associao ou fundao. O mesmo ocorre com outros

    entes despersonalizados como a herana vacante e jacente, o condomnio e o

    2PEREIRA, Caio Mrio da Silva. Instituies... cit., p. 200.

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    consrcio. Mesmo as sociedades irregulares (sem registro) no se identificam com

    as sociedades s quais se atribuiu personalidade jurdica, uma vez que ausente o

    ato de sua constituio (registro).

    Desta forma, os entes despersonalizados no podem ser

    enquadrados como pessoas jurdicas, pois no atendem as prescries legais

    para que atinjam essa condio.

    Contudo, conforme j ressaltado, a lei confere esses entes a

    faculdade de participarem como sujeitos de direitos em certas relaes jurdicas,

    como, por exemplo, na relao jurdica processual (art. 12 do CPC).

    Surge, ento, a seguinte indagao: h a possibilidade deenquadrar um ser como sujeito de direitos sem que esse ser seja conferida

    personalidade. Seria possvel dissociar-se a personalidade do sujeito de direito?

    Nesse caso, qual seria a natureza dos seres, qual seria o enquadramento jurdico

    adequado para esses entes despersonalizados?

    Para o desenvolvimento dessa discusso, h necessidade de

    anlise dos seguintes conceitos jurdicos: pessoa, personalidade, capacidade e

    sujeito de direito. A partir da delimitao desses conceitos, poder ser apontada

    uma sugesto para o enquadramento dos entes despersonalizados no mundo

    jurdico.

    A noo de pessoa confundida, muitas vezes, com sujeito de

    direitos. Contudo, essa identidade de conceitos no ocorre.

    O sujeito de direitos, assim como o objeto e o vnculo de

    atributividade, um dos elementos da relao jurdica.

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    A relao jurdica essencialmente social, sendo que os seus

    sujeitos estabelecem laos entre si, na busca de variados objetivos. Essas

    ligaes entre os sujeitos, por seu turno, so reguladas por normas jurdicas

    anteriormente postas.

    Assim, sero consideradas relaes jurdicas aquelas

    estabelecidas entre duas ou mais pessoas e que o Direito previamente regule

    atravs de suas normas. Essa a lio de MIGUEL REALE:

    Dois requisitos so, portanto, necessrios, para que hajauma relao jurdica. Em primeiro lugar, uma relaointersubjetiva, ou seja, um vnculo entre duas ou maispessoas. Em segundo lugar, que esse vnculo corresponda auma hiptese normativa de tal maneira que derivemconseqncias obrigatrias no plano da experincia.3

    Deste modo, o sujeito de direito, bem como os demais elementos

    da relao jurdica (objeto e vnculo de atributividade), podem ser tomados como

    categorias abstratas, pois genericamente previstos em lei. Seu contedo, ou seja,

    quem vai ocupar a posio de sujeito (se uma pessoa natural, ou uma fundao,

    ou uma sociedade etc.), o que vai ocupar a posio de objeto (se um bem mvel,

    ou imvel, se infungvel, ou fungvel etc.) e qual o vnculo de atributividade (qual o

    negcio celebrado) apenas podero ser conhecidos em cada relao concreta,

    conforme ensina SIMONE EBERLE:

    Analisando-se o trip sobre o qual se assenta a relaojurdica, percebe-se que, no obstante sujeitos, vnculo deatributividade e objeto difiram quanto sua essncia, nodeixam de guardar um certo paralelismo no que concerne forma. Com efeito, os trs, por serem elementos estruturaisda ralao jurdica, apresentam-se necesssariamente comocategorias abstratas, cujo contedo apenas in concreto sepode precisar.4

    3REALE, Miguel.Lies preliminares..., cit., p.212.4EBERLE, Simone. A capacidade..., cit., p. 16-17.

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    Desta forma, fica bem claro que o sujeito de direito , realmente,

    uma categoria abstrata, prevista genericamente na lei como elemento da relao

    jurdica, cujo contedo ser conhecido apenas quando, efetivamente, ocorrer a

    relao. Esse contedo, ou seja, a posio de sujeito de direitos, ser ocupado

    por uma pessoa.

    Portanto, patente a distino entre pessoa e sujeito de direitos.

    Esta uma categoria abstrata, que compe a estrutura normativa da relao

    jurdica; aquela (pessoa) uma categoria concreta, que vai preencher o contedo

    do sujeito de direitos quando ocorrer a relao jurdica no mundo ftico.

    Fixada a distino entre pessoa (categoria concreta) e sujeito de

    direitos (categoria abstrata), cumpre estabelecer um conceito de pessoa.

    PONTES DE MIRANDA ensina que ser pessoa ser capaz de

    direitos e deveres.5

    PAULO NADER, por seu turno, diz que na acepo jurdica,

    pessoa o ser individual ou coletivo, dotado de direitos e deveres. 6

    Verifica-se, assim, que noo de pessoa est relacionada

    atribuio de direitos e deveres a um determinado ente. Ser pessoa traduz uma

    possibilidade de ser sujeito de direitos. Contudo, isso no significa que seja a

    mesma coisa do que ser sujeito de direitos, uma vez que so categorias diversas,

    conforme j ressaltado.

    A personalidade a aptido reconhecida pela ordem jurdica a

    algum, para exercer direitos e contrair obrigaes.7

    5MIRANDA, Pontes de. Tratado ..., cit., p. 288.6NADER, Paulo.Introduo ..., cit., p. 347.7BEVILQUA, Clvis. Cdigo Civil..., cit., p. _____.

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    A personalidade , portanto, uma potencialidade, uma qualidade

    que torna possvel ao ser humano ou a certos entes figurarem em relaes

    jurdicas na posio de sujeitos de direitos.

    MANUEL A. DOMINGUES ANDRADE ensina que a personalidade

    consiste na possibilidade ou suscetibilidade de ser sujeito de direitos e obrigaes

    (...), ou seja, de relaes jurdicas.8

    A personalidade no se confunde, pois, com o conceito de

    pessoa, sendo que aquela um atributo desta, mas no representam a mesma

    categoria jurdica.

    Ressalte-se, ainda, que a personalidade guarda um estreita

    relao com a capacidade de direito. Com efeito, a para que haja a capacidade

    deve existir, antes, a personalidade.

    A personalidade possui um carter qualitativo; a capacidade, por

    sua vez, revela um carter quantitativo, conforme lio do Professor CAIO MRIO

    DA SILVA PEREIRA:

    Personalidade e capacidade completam-se, de nada valeriaa personalidade sem a capacidade jurdica que se ajustamassim ao contedo da personalidade, na mesma e certamedida em que a utilizao do direito integra a idia dealgum titular dele.9

    Assim, enquanto a personalidade a suscetibilidade para ser

    sujeito de direitos e obrigaes, a capacidade representa a medida dessa aptido.

    MIGUEL REALE, com preciso, traa a diferena dos conceitos:

    8ANDRADE, Manoel A. Domingues. Teoria geral da relao jurdica. V. 1, Coimbra, 1992, p. 30.9PEREIRA, Caio Mrio da Silva.Instituies ..., cit., p. 172.

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    O conceito de capacidade, em sentido estrito e prprio, nose confunde, porm, com o de personalidade. A palavracapacidade por si mesma est dizendo que ela indica umaextenso do exerccio da personalidade, como que a medidada personalidade em concreto.10

    Dessa forma, a capacidade a medida da aptido para contrair

    direitos e obrigaes. A personalidade, por sua vez, a qualidade atribuda

    pessoa que a habilita a ser sujeitos de direitos.

    Portanto no se concebe uma pessoa a que faltepersonalidade e capacidade jurdica, pois o s fato de o entedeter esse statusassegura-lhe ambos atributos. No menosexato o raciocnio inverso: o detectar-se a presena depersonalidade e capacidade de direito atribudas adeterminado ente significa, obrigatoriamente, que esse ser uma pessoa, visto que indissocivel o trinmio pessoa-personalidade-capacidade de direito.11

    Diante da distino dos conceitos jurdicos acima, possvel

    enquadrar os entes despersonalizados numa categoria jurdica.

    Conforme j assinalado, os entes despersonalizados so aqueles

    aos quais o direito atribui uma certa gama de direitos e deveres, apesar de noconferir-lhes expressamente a personalidade e a condio de pessoa jurdica. De

    fato, o direito apenas reconhece esses seres a faculdade de participarem de

    relaes jurdicas na condio de sujeitos de direitos.

    Na medida em que a lei reconhece a condio de sujeito de

    direitos aos entes despersonalizados, est conferindo aos mesmos a capacidade

    de direito esses seres para que possam titularizar direitos e obrigaes.

    10REALE, Miguel.Lies preliminares..., cit., p.228.11EBERLE, Simone. A capacidade..., cit., p. 44.

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    Na medida em que essa capacidade de direito reconhecida, no

    h como negar-lhes a personalidade, uma vez que, conforme demonstrado, tais

    institutos so indissociveis (a capacidade a medida da personalidade).

    Assim, esses entes, apesar de no estarem enquadrados na

    categoria de pessoas jurdicas, uma vez que no atendem os requisitos legais

    para tanto, so dotados de personalidade, pois efetivamente figuram na condio

    de sujeitos de direitos em diversas relaes jurdicas.

    Da mesma forma que as pessoas jurdicas (sociedades,

    associaes, fundaes), os entes despersonalizados se revelam como uma

    construo tcnica do direito, tendo existncia efetiva no mundo jurdico.

    Tal como as pessoas jurdicas e as pessoas naturais, os entes

    despersonalizados participam das relaes jurdicas, atuando como sujeitos

    (ativos ou passivos), possuindo capacidade de direito para titularizar certos

    direitos. Dessa forma, no h outra alternativa, seno consider-los pessoas.

    Os entes despersonalizados no podem, por certo, ser

    enquadrados no conceito estrito de pessoas jurdicas, uma vez que no figuram

    no rol legal, mas podem ser vistos como um terceiro gnero de pessoas12, diverso

    da jurdica e da natural.

    Conforme salientado, o ordenamento jurdico no atribuiu a

    personalidade de forma expressa aos entes despersonalizados. A personalidade

    desses entes deriva do fato de que a prpria lei os confere direitos e deveres, o

    que, em ltima anlise, seria a prpria atribuio de personalidade, pois invivel o

    exerccio de direitos sem esse atributo.

    12EBERLE, Simone. A capacidade... cit., p. 82.

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    A pessoa jurdica, por sua vez, tem personalidade jurdica, pois o

    direito lhe confere expressamente essa condio. Mas, ao mesmo tempo,

    determina quais os seres esto includos nessa categoria (sociedades,

    associaes, fundaes). As pessoas jurdicas, em sentido estrito, devem,

    portanto, atender s exigncias legais e se enquadrarem numa das trs categorias

    citadas para existirem como tal.

    Os entes despersonalizados apresentam caractersticas muito

    semelhantes s pessoas jurdicas, na medida em que ambos constituem um

    conjunto de pessoas ou bens buscando uma finalidade comum, sempre em

    benefcio do homem.

    Contudo, os referidos entes no possuem personalidadeexpressamente concedida pela lei. Sua personalidade decorre da atribuio de

    direitos, ou seja, da possibilidade que lhes conferida por lei de poderem ocupar a

    posio de sujeitos de direito nas relaes jurdicas, devendo, assim, serem

    reconhecidos como uma terceira classe de pessoas, permanecendo desta forma,

    at o que o legislador os atribua expressamente a qualidade de pessoas jurdicas.

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