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EXCELENTÍSSIMO (A) SENHOR (A) JUIZ (A) FEDERAL DA 2ª VARA DA SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE SANTARÉM/PA Processo nº 2010.3902.000249-0 Processo nº 2091-80.2010.4.01.3902 (em apenso) O Ministério Público Federal , oficiando no feito o Procurador da República signatário, irresignado com a sentença proferida às fls. 734/839, que reconheceu a improcedência dos pedidos formulados por este Órgão Ministerial e parcialmente procedente os pedidos das associações (1) AINORMA - Associação Intercomunitária de Trabalhadores Agro-extrativistas das Comunidades de prainha e Vista Alegre do Rio Maró; (2) AMGLO - Associação Intercomunitária de Moradores e Trabalhadores Rurais e Agro-extrativistas das comunidades de São Luiz; São Francisco e n. paraíso; (3) ASCOMFE - associação dos moradores das comunidades fé em deus agroflorestal e extrativista da Gleba Nova Olinda; (4) ASSERVE - associação dos moradores da comunidade sempre serve agroflorestal e extrativista; (5) AMREP - associação dos moradores da comunidade repartimento agroflorestal e extrativista; (6) AMOVIT - associação dos moradores vista alegre parintins agroflorestal e extrativista e (7) ASMOCOP - associação dos moradores da comunidade dos parentes, agroflorestal e extrativista; e, que têm como assistentes litisconsorciais o ESTADO DO PARÁ e o MUNICÍPIO DE SANTARÉM-PA, vem, com fundamento no art. 513 e seguintes do Código de Processo Civil, bem como na farta documentação já juntada aos autos pelo Parquet e a que acompanha a presente manifestação, interpor recurso de APELAÇÃO COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA RECURSAL, nos termos que seguem em apartado, pugnando pelo seu recebimento no duplo efeito (devolutivo e suspensivo ) e regular processamento, com remessa ao Eg. Tribunal Regional Federal da 1ª Região, para apreciação e reforma. Ressalta-se que a sentença não se enquadra em nenhuma das causas previstas no art. 520, do CPC, em relação às quais não será atribuído o efeito suspensivo. Ademais, insta consignar o clima de tensão instaurado na região em face da decisão ora recorrida, tendo como atores sociais, de um lado, os indígenas, e de outro, as madeireiras, que tiveram seus Planos de Manejo Florestais incidentes na área

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EXCELENTÍSSIMO (A) SENHOR (A) JUIZ (A) FEDERAL DA 2ª VARA DA

SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE SANTARÉM/PA

Processo nº 2010.3902.000249-0

Processo nº 2091-80.2010.4.01.3902 (em apenso)

O Ministério Público Federal, oficiando no feito o Procurador da

República signatário, irresignado com a sentença proferida às fls. 734/839, que

reconheceu a improcedência dos pedidos formulados por este Órgão Ministerial e

parcialmente procedente os pedidos das associações (1) AINORMA - Associação

Intercomunitária de Trabalhadores Agro-extrativistas das Comunidades de prainha e

Vista Alegre do Rio Maró; (2) AMGLO - Associação Intercomunitária de Moradores e

Trabalhadores Rurais e Agro-extrativistas das comunidades de São Luiz; São Francisco

e n. paraíso; (3) ASCOMFE - associação dos moradores das comunidades fé em deus

agroflorestal e extrativista da Gleba Nova Olinda; (4) ASSERVE - associação dos

moradores da comunidade sempre serve agroflorestal e extrativista; (5) AMREP -

associação dos moradores da comunidade repartimento agroflorestal e extrativista; (6)

AMOVIT - associação dos moradores vista alegre parintins agroflorestal e extrativista e

(7) ASMOCOP - associação dos moradores da comunidade dos parentes, agroflorestal e

extrativista; e, que têm como assistentes litisconsorciais o ESTADO DO PARÁ e o

MUNICÍPIO DE SANTARÉM-PA, vem, com fundamento no art. 513 e seguintes do

Código de Processo Civil, bem como na farta documentação já juntada aos autos pelo

Parquet e a que acompanha a presente manifestação, interpor recurso de APELAÇÃO

COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA RECURSAL, nos termos que seguem

em apartado, pugnando pelo seu recebimento no duplo efeito (devolutivo e suspensivo )

e regular processamento, com remessa ao Eg. Tribunal Regional Federal da 1ª Região,

para apreciação e reforma.

Ressalta-se que a sentença não se enquadra em nenhuma das causas

previstas no art. 520, do CPC, em relação às quais não será atribuído o efeito

suspensivo. Ademais, insta consignar o clima de tensão instaurado na região em face da

decisão ora recorrida, tendo como atores sociais, de um lado, os indígenas, e de outro, as

madeireiras, que tiveram seus Planos de Manejo Florestais incidentes na área

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embargados pelo IBAMA em recente operação de fiscalização realizada em Novembro

de 2014, impossibilitando-as de explorar ilegalmente a área. A sentença majora, ainda,

os riscos à integridade física de algumas lideranças indígenas. A propósito, acerca disso

importa destacar que Odair José Souza Alves (cacique Dadá Borari), uma das principais

vozes entre os indígenas em defesa dos direitos constitucionalmente assegurados dessas

populações, está inserido no Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos

Humanos, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, justamente

em face das constantes ameaças que sofre em virtude de sua luta contra a exploração

ilegal de madeira da área da TI Maró. A sentença, por óbvio, compromete a aludida

proteção.

Revela-se da mesma forma importante mencionar a possibilidade

iminente, caso não recebida a presente apelação em seu efeito legal suspensivo, do

desembargo administrativo das atividades madeireiras na área, já que o substrato

primacial para a manutenção dos resultados da operação fiscalizatória, qual seja, a

incidência de exploração florestal em território indígena (o que viola o art. 231, §2º, da

CF/88 – usufruto exclusivo dos recursos naturais), não mais subsistirá. A propósito,

cumpre salientar, desde logo, que, conforme sobejamente demonstrado nos Embargos

de Declaração manejados pelo MPF e em manifestações ministeriais anteriores, as

comunidades que compõem as Associações autoras estão de todo manipuladas por

empresas do setor madeireiro.

Ante o exposto, pugna-se pelo recebimento da apelação ora interposta no

seu duplo efeito, a teor do artigo 14 da Lei nº 7.437/85, tendo em vista que a

manutenção da eficácia plena da sentença antes mesmo do pronunciamento do Tribunal

Regional Federal da 1ª Região, além de fragilizar o princípio do duplo grau de

jurisdição, pode causar danos irreparáveis às populações indígenas diretamente

interessadas.

Santarém, 04 de fevereiro de 2015.

LUÍS DE CAMÕES LIMA BOAVENTURA

Procurador da República

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EGRÉGIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO

Processos nº 2010.3902.000249-0 / 2091-80.2010.4.01.3902

RAZÕES DE APELAÇÃO

Apelante: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Apeladas: AINORMA - Associação Intercomunitária de Trabalhadores Agro-extrativistas das

Comunidades de prainha e Vista Alegre do Rio Maró; AMGLO - Associação Intercomunitária

de Moradores e Trabalhadores Rurais e Agro-extrativistas das comunidades de São Luiz; São

Francisco e n. paraíso; ASCOMFE - associação dos moradores das comunidades fé em deus

agroflorestal e extrativista da Gleba Nova Olinda; ASSERVE - associação dos moradores da

comunidade sempre serve agroflorestal e extrativista; AMREP - associação dos moradores da

comunidade repartimento agroflorestal e extrativista e AMOVIT - associação dos moradores

vista alegre parintins agroflorestal e extrativista; ASMOCOP - associação dos moradores da

comunidade dos parentes, agroflorestal e extrativista; e, que tem como assistentes

litisconsorciais o ESTADO DO PARÁ e o MUNICÍPIO DE SANTARÉM-PA.

Colenda Turma,

Nobres Julgadores:

O Ministério Público Federal, oficiando no feito o Procurador da

República signatário, no uso de suas prerrogativas legais e constitucionais, com

fundamento no art. 513 e seguintes do Código de Processo Civil, bem como na farta

documentação já juntada aos autos pelo Parquet e a que acompanha a presente

manifestação, interpõe o tempestivo recurso de APELAÇÃO COM PEDIDO DE

TUTELA ANTECIPADA RECURSAL, em face da sentença do Juízo de 1º grau da

Subseção Judiciária de Santarém/PA, proferida às fls. 734/839, que reconheceu a

improcedência dos pedidos formulados por este Órgão Ministerial apelante e

parcialmente procedente os pedidos das apeladas de forma a declarar: não preenchidos

os requisitos da tradicionalidade, originalidade e permanência, implementados até 05 de

outubro de 1988, conforme exigido pelo art. 231, da CF; não atendidos dois dos três

requisitos indispensáveis para que a condição jurídica de indígena seja reconhecida

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(origem e ascendência pré-colombiana e ser identificado como pertencente a um grupo

étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional); declarar

inválidos todos os atos praticados no processo administrativo 08620.000294/10 (TI

Maró), negando juridicidade ao Relatório Circunstanciado de Identificação e

Delimitação (RCID) da Terra Indígena Maró; determinar que a União e a FUNAI se

abstenham de praticar quaisquer atos previstos ou não pelo Decreto nº 1.775/1996;

determinar que a União e a FUNAI não oponham qualquer embaraço à regularização

das frações de terras da Gleba Nova Olinda pelo Estado do Pará; que não oponham

qualquer empecilho à livre circulação de moradores tradicionais nas áreas que tocarem a

cada família, assim como em relação às vias que lhes dão acesso; solicitar que o

ESTADO DO PARÁ pratique medidas asseguradoras da liberdade de ir e vir na região

da Gleba Nova Olinda, bem como adote as medidas urgentes e imediatas no sentido de

regularização fundiária da região do Rio Arapiuns e prestação de assistência técnica e

financeira para que as comunidades ali localizadas possam desenvolver suas

potencialidades sócio-econômicas.

I. DO OBJETO DA DEMANDA

Tratam-se de duas Ações Civis Públicas, a saber: de um lado, a ação nº

2010.3902.000249-0, movida pelo MPF, visando simplesmente a compelir a Fundação

Nacional do Índio - FUNAI a cumprir o rito legal previsto no Decreto nº 1.775/1996 e

promover o andamento normal do processo administrativo de delimitação e demarcação

da Terra Indígena Maró. Em sentido contrário, a ação nº 2091-80.2010.4.01.3902, de

Anulação de Processo Administrativo c/c declaratória de inexistência de etnia e posse

indígena, manejada pelas apeladas em face da FUNAI e de ODAIR JOSÉ SOUZA

ALVES. Ressalta-se que esta última demanda foi convertida em ACP através do

despacho de fls. 493/495.

II. DO CABIMENTO E TEMPESTIVIDADE DO RECURSO

De fato, o Ministério Público Federal apela da sentença de fls. 734/839.

Convém advertir que a outrora oposição de seus tempestivos Embargos

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de Declaração (fls. 841/940) contra a mesma sentença interrompeu o prazo para o

Recurso de Apelação para todas as partes, a teor do Art. 538 do CPC: “Os embargos de

declaração interrompem o prazo para a interposição de outros recursos, por qualquer

das partes”. Desta feita, após conhecidos e julgados os embargos (fls. 942/945), o

Órgão Ministerial recorrente teve de volta o prazo inicial para a apelação.

Feitas tais considerações, observa-se que estão presentes os pressupostos

intrínsecos e extrínsecos do apelo, destacando-se dentre os intrínsecos o cabimento, o

que se dá por determinação do art. 513 do CPC.

De igual maneira, põe-se em destaque o pressuposto recursal extrínseco

da tempestividade. Com efeito, a intimação do Ministério Público é implementada

sempre por vista pessoal dos autos, sendo computado em dobro o prazo recursal, mesmo

nos feitos em que o órgão intervém como custos legis. É o que se extrai dos arts. 236,

§2º e 188 do CPC, bem como do entendimento consolidado no Superior Tribunal de

Justiça, verbis:

PROCESSO CIVIL - APELAÇÃO INTERPOSTA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO

COMO FISCAL DA LEI - TERMOS A QUO E AD QUEM DO PRAZO RECURSAL

– INSPEÇÃO NA VARA DE ORIGEM - HIPÓTESE DE PRORROGAÇÃO E NÃO

SUSPENSÃO DE PRAZO - ART. 184 DO CPC - PRAZO EM DOBRO -

TEMPESTIVIDADE DO APELO.

1. A intimação do Ministério Público dá-se com o recebimento dos autos pelo

Procurador responsável e não da data da sua entrega no protocolo do órgão. Ressalva

do ponto de vista da Relatora. Precedente da Segunda Turma no REsp 337.052/SP.

2. As hipóteses de suspensão do prazo recursal são taxativas, dentre as quais não se

inclui a inspeção na Vara de origem. Fica prorrogado o prazo, no entanto, de acordo

com o disposto no art. 184 do CPC, para o primeiro dia útil seguinte ao fechamento do

fórum.

3. O Ministério Público, seja na condição de parte, seja na condição de custos legis,

goza do benefício do prazo em dobro para recorrer de que trata o art. 188 do CPC.

4. Recurso especial conhecido, mas improvido. (grifo do MPF)

(STJ, REsp nº 509.885/SP, Relatora Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ de

09/06/2003, página 261).

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Destarte, o prazo para a interposição da apelação é de trinta dias,

contados a partir do primeiro dia subsequente à intimação do Parquet – pois exclui-se

do cômputo o dia do começo, art. 184 do CPC.

No caso vertente, a intimação deu-se em 18/12/2014 (fl. 947). Iniciada a

contagem no dia útil subsequente, 19/12/2014, porém, suspensa em virtude do recesso

forense (de 20/12/2014 a 06/01/2015), retomada a contagem em 07/01/2015, e

encontrando termo ad quem a 04/02/2015, quarta-feira.

Assim, restam demonstrados o cabimento e a tempestividade do recurso.

III. DAS RAZÕES RECURSAIS

III.A - DO ERROR IN PROCEDENDO - nulidade da decisão que reuniu as Ações e

converteu a Ação Anulatória em Ação Civil Pública, bem como de todos os atos

subsequentes – Ação nº 2091-80.2010.4.01.3902

Antes de adentrar no mérito da ação (error in judicando), imperioso é a

análise do verdadeiro error in procedendo levado a efeito pelo Juízo a quo. O error in

procedendo consiste no erro do juiz ao proceder. É um erro de forma. O Juízo a quo

inobservou os requisitos formais necessários para a prática do ato, culminando num

decisório nulo. Vejamos:

RECURSO ESPECIAL. ARTIGO 512 DO CPC. ERROR IN JUDICANDO. PEDIDO

DE REFORMA DA DECISÃO. EFEITO SUBSTITUTIVO DOS RECURSOS.

APLICAÇÃO. ERROR IN PROCEDENDO. ANULAÇÃO DO JULGADO.

INAPLICABILIDADE DO EFEITO SUBSTITUTIVO. NECESSIDADE DE

PROLAÇÃO DE NOVA DECISÃO. 1. O efeito substitutivo previsto no artigo 512 do

CPC implica a prevalência da decisão proferida pelo órgão superior ao julgar recurso

interposto contra o decisório da instância inferior. Somente um julgamento pode

prevalecer no processo, e, por isso, o proferido pelo órgão ad quem sobrepuja-se,

substituindo a decisão recorrida nos limites da impugnação. 2. Para que haja a

substituição, é necessário que o recurso esteja fundado em error in judicando e tenha

sido conhecido e julgado no mérito. Caso a decisão recorrida tenha apreciado de forma

equivocada os fatos ou tenha realizado interpretação jurídica errada sobre a questão

discutida, é necessária a sua reforma, havendo a substituição do julgado recorrido pela

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decisão do recurso. 3. Não se aplica o efeito substitutivo quando o recurso funda-se

em error in procedendo , com vício na atividade judicante e desrespeito às regras

processuais, pois, nesse caso, o julgado recorrido é anulado para que outro seja

proferido na instância de origem. Em casos assim, a instância recursal não

substitui, mas desconstitui a decisão acoimada de vício. 4. Recurso especial

conhecido em parte e desprovido. (REsp 963.220/BA, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO

DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 07/04/2011, DJe 15/04/2011)

(destacado).

Basta uma simples análise dos autos para verificar-se pelo menos duas

situações que configuraram error in procedendo. Uma é a decisão que reuniu ambas as

ações nº 2010.3902.000249-0 e nº 2091-80.2010.4.01.3902, sem oitiva das partes, para

julgamento conjunto, sob o fundamento de se "evitar decisões conflitantes" (fls.

493/495). A outra é a conversão voluntária, e sem oitiva das partes, da Ação Anulatória

nº 2091-80.2010.4.01.3902 em Ação Civil Pública (na mesma decisão), em ambos os

casos violando os princípios do devido processo legal, do contraditório e da inércia

judicial.

O devido processo legal está insculpido no art. 5º, LIV, da Carta Magna,

vértice da Ordem Democrática e Justa, fundamentado no direito deferido a todos de não

serem privados de sua liberdade e de seus bens sem a garantia que supõe a tramitação de

um processo desenvolvido na forma que estabelece a Lei. O Supremo Tribunal Federal

se refere a ele usando a expressão FAIR TRIAL para indicar o procedimento justo,

correto. Dele decorrem inúmeros outros princípios, dentre os quais o do contraditório,

pois para ser devido o processo deve obedecê-lo.

Por sua vez, o princípio do contraditório possui duas dimensões. A

primeira é conhecida como dimensão formal, consistente no direito que têm as partes

em serem ouvidas. Possibilidade de participar da produção das provas. De outro

quadrante, imperiosa a observância da segunda dimensão substancial, consistente em

dar às partes meios que permitam influenciar a decisão. Não basta o contraditório

formal, com a produção de provas, imprescindível que seja garantido que os argumentos

serão examinados. Desta digressão, tem-se que a autorização para que o Juiz pratique

determinado ato de ofício não implica a prerrogativa de tomar a decisão sem possibilitar

o contraditório, sem ouvir as partes. A título de exemplo, a boa prática ensina que apesar

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da possibilidade de o Juiz declarar de ofício a prescrição, necessário proferir despacho,

dando oportunidade das partes se manifestarem acerca da questão, antes de sua decisão.

Semelhante raciocínio aplica-se ao caso vertente. Pensando na

praticidade da decisão de 1º Grau, esqueceu-se o Juízo a quo de um dos princípios mais

basilares do Processo Civil: a ampla defesa.

A reunião dos processos trouxe significativos prejuízos, já que ao proferir

a sentença recorrida o Magistrado ateu-se tão somente à Ação nº 2091-

80.2010.4.01.3902, olvidando-se em apreciar os pedidos formulados pelo Ministério

Público Federal, formulados na ação nº 2010.3902.000249-0.

Essa situação é enfrentada mesmo após a sentença, já que causa

embaraços às razões do presente apelo, forçando o recorrente a manejá-lo tomando

razões de impugnação ora em relação a um processo ora em relação a outro, em virtude

do "mix" promovido pelo Magistrado a quo, prejudicando o direito de revisão das

partes.

O mesmo se diga em relação à conversão de uma ação em outra

totalmente diversa, uma vez que se tivesse oportunizado o contraditório, teriam sido

alegadas matérias de grande relevância, como a ilegitimidade ad causam das

Associações para promoverem Ação Civil Pública (que será pormenorizado em tópico

específico), evitando-se a continuidade de uma ação sem os requisitos mínimos exigidos

em Lei.

Desta forma, a decisão que reuniu as ações, bem como converteu de

ofício a Ação Anulatória em Ação Civil Pública (fls. 493/495) deve ser anulada, diante

da ofensa a uma das dimensões do contraditório e da inércia jurisdicional, bem como

todos os atos decisórios subsequentes que delas dependam, para que os processos sigam

de forma a não prejudicar as partes, dando-se oportunidade prévia de fazerem as

alegações pertinentes.

III.B- DA SENTENÇA CITRA PETITA- Ação nº 2010.3902.000249-0

A finalidade da sentença é solucionar determinado litígio. Sabendo-se

que o ato processual inválido é aquele que não alcança sua finalidade, temos que a

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sentença citra petita é invalida, na medida que deixa pendente de julgamento pedido

feito pela parte. Logo, o não alcance da finalidade do ato reflete na existência de

prejuízo.

A sentença proferida citra petita padece de error in procedendo. Se não

suprida a falha mediante embargos de declaração, o caso é de anulação pelo tribunal,

com devolução ao órgão a quo, para novo pronunciamento.

As preliminares suscitadas no presente recurso - e que serão objeto dos

tópicos seguintes – foram, em sua maioria, omissões inequívocas da sentença em

relação aos pedidos formulados na Ação Civil Pública manejada pelo Ministério Público

Federal, malgrado terem sido opostos Embargos de Declaração. Ademais, conforme dito

anteriormente, a sentença tão somente apreciou os pedidos e fundamentos constantes na

demanda apresentada pelas Associações. Nada, nenhum pedido ou fundamento sequer

ventilado pelo Parquet (seja na ACP por ele manejada, seja nas manifestações

posteriores, inclusive na ação das Associações) foi apreciado pelo douto juízo prolator

da sentença.

Uma dessas omissões, por exemplo, remete ao princípio do

autorreconhecimento (art. 1º da Convenção nº 169/OIT). O Juízo decidiu que: "Quanto

ao autorreconhecimento, tendo em vista que a sentença tratou do ponto no item 1.3,

rejeito a alegação de omissão (...)". (fl. 944)

Ocorre que o Juízo, apesar de abrir tópico específico, na verdade,

discorreu perfunctoriamente o tema, falando basicamente da etnogênese, confundindo

os institutos e deixando a matéria em aberto. Portanto, apesar dos Embargos de

Declaração opostos, a sentença permanece citra petita, devendo ser anulada.

III.C – PRELIMINARES

Salta aos olhos que a presente causa deveria ter sido julgada extinta sem

resolução do mérito, por inúmeros motivos descritos no art. 267, do CPC. Assim,

irresignado com a decisão proferida nos Embargos de Declaração, requer-se análise

proficiente das seguintes questões, sem prejuízo de outras acrescentadas. Vejamos:

• reconhecimento da desistência da ação nº 2091-80.2010.4.01.3902,

expressamente requerida pelas Associações autoras, fato este que gerou a

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manifestação da FUNAI aduzindo que não fazia oposição à desistência desde

que renunciassem ao direito em que se funda a ação, culminando com a decisão

do Juízo pelo não acolhimento da desistência sob o argumento de que a FUNAI

teria oferecido oposição. Ressalta-se que, mesmo diante do esclarecimento da

FUNAI, mediante petição, de que não se opunha ao pedido, mas que solicitava

que as autoras renunciassem ao direito, o Juízo não se manifestou. Limitou-se a

repetir em folhas seguintes que a FUNAI se opôs ao pedido;

• Abandono de causa em relação às autoras da ação 2091-80.2010.4.01.3902;

• reconhecimento da ilegitimidade das partes autoras da ação nº 2091-

80.2010.4.01.3902 (pedido constante às fls. 126/136, autos movidos pelo MPF)

em proporem-na, já que as associações estão sendo manipuladas por madeireiros

que na verdade vêm na causa uma forma de alcançar seus objetivo de continuar

explorando a terra e os recursos florestais nela existentes. Evidente que se trata

de legitimidade extraordinária ilegal: as comunidades ribeirinhas pedindo em

nome das madeireiras. Há, ainda, vícios formais de legitimação, a teor do art. 5º,

inciso V, da Lei nº 7.347/1985, conforme se observará;

• falta de interesse processual: não há qualquer comprovação de que a TI Maró se

sobrepõe às áreas ocupadas pelas comunidades ribeirinhas que compõem as

Associações, o que impossibilita qualquer decisão do Juízo em face da ausência

das condições da ação, que, por seu turno, importa em extinção do processo sem

julgamento do mérito (art. 267, VI, do CPC).

a) Desistência/abandono da causa pelas Associações autoras- Ação nº 2091-

80.2010.4.01.3902

O Código de Processo Civil prevê, dentre as causas de extinção do

processo sem resolução do mérito, a desistência da ação e o abandono de causa. No

presente caso ocorreram ambas as situações previstas em Lei, senão vejamos.

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As autoras da ação nº 2091-80.2010.4.01.3902, Associações nominadas

ao norte (apeladas), valendo-se da prerrogativa prevista no art. 267, VIII, do CPC,

peticionaram desistindo da mesma, conforme se observa à fl. 368.

Tendo em vista que a parte contrária já havia apresentado contestação, o

Juízo determinou que a FUNAI se manifestasse acerca do pleito. Por seu turno, a

representação judicial da autarquia indigenista aduziu que concordava com a

desistência, desde que as partes renunciassem expressamente ao direito sobre o qual se

fundava a ação (fl. 406).

O Juízo a quo, equivocadamente, decidiu à fl. 410: “Deixo de homologar

o pedido de desistência de fl. 368, tendo em vista que a Ré, fundamentadamente (art. 3º,

da Lei 9469/97), opôs-se ao pedido, nos termos em que formulado”.

Publicada a decisão, a FUNAI peticionou esclarecendo que não se opôs

ao pedido de desistência, desde que as autoras expressamente desistissem do direito em

que se funda a ação, nos termos do art. 3º, da Lei nº 9.469/97 (fl. 413). O Juízo então

emanou despacho determinando a intimação das Associações autoras a fim de que

declarassem expressamente se renunciavam ao direito discutido (fls. 415). As autoras

permaneceram inertes (fls. 145/v). O Juízo, à fl. 493, repetiu o contido à fl. 410.

Da análise dos autos, constata-se que as autoras expressamente

desistiram da ação, tanto que após referida publicação nem sequer manifestaram-se nos

autos novamente, permanecendo inerte em relação à causa, sendo que deveria o Juízo a

quo ter proferido decisão de homologação da desistência, tendo inclusive tido a

oportunidade de fazê-lo em sede de Embargos de Declaração e não o fez. Pelo que

requer-se a reapreciação da matéria.

Caso não seja este o entendimento dos nobres julgadores, há que se

verificar verdadeiro abandono de causa que nada mais é do que a presunção de

desistência da ação. Equivale ao desaparecimento do interesse, que é condição para o

regular exercício do direito de ação.

Isto ocorre quando há inércia das partes diante de deveres e ônus

processuais, acarretando a paralisação do processo. Presume-se, legalmente, essa

desistência quando o autor não promover os atos ou diligências que lhe competir,

abandonando a causa por mais de 30 dias.

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Foi isto o que aconteceu. Apesar de devidamente intimadas, através de

seus advogados, por publicação no diário oficial, as autoras não promoveram o ato a

que lhes competia: manifestarem-se acerca da renúncia ou não do direito em que se

funda a ação.

É bem verdade que a presunção de abandono da causa é relativa. No

entanto, na hipótese dos autos, conforme depreendido do relato acima, houve

precedência de pedido expresso de desistência, razão pela qual se apresenta verossímil o

abandono.

Ademais, conforme será oportunamente demonstrado, a ação nº 2091-

80.2010.4.01.3902 foi manejada pelas Associações antes mesmo que houvesse a

publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da

Terra Indígena Maró, documento através do qual foram explicitados os limites

geográficos com as respectivas coordenadas da TI. Após a aludida publicação, tiveram

as Associações a clara percepção que as áreas ocupadas pelas comunidades que a

compunham não se sobrepunham, em nenhuma medida, com a área da TI Maró. Dessa

maneira, mais do que justificável a formulação do pedido de desistência da ação.

Não obstante, apesar de não haver nenhuma outra manifestação posterior

das autoras da ação, prosseguiu-se o feito e encartou-se sentença de mérito de uma

pretensão deduzida em Juízo, mesmo a desinteresse das promoventes. O escorreito

seria, indubitavelmente, a prolação de sentença extintiva do processo sem resolução do

mérito.

Destarte, diante destas premissas, necessária reapreciação da matéria,

com fito de declarar extinto o processo, sem resolução do mérito, seja pela desistência

da ação, seja pelo abandono de causa, com fulcro nos art. 267, III e VIII, do CPC.

b) Ilegitimidade ativa e ausência de interesse processual das Associações autoras–

Ação nº 2091-80.2010.4.01.3902

Segundo a teoria da asserção, as condições da ação devem ser analisadas

com base apenas nas afirmações das partes, desde que haja um mínimo de amparo

fático. Não há que se falar em produção de provas para sua análise. Desta forma, se com

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o que foi alegado pelo autor as condições estiverem presentes, posterior análise sobre

sua veracidade será considerada em decisão de mérito.

A questão é de grande relevância na medida em que inicialmente

tínhamos uma Ação Anulatória de processo administrativo c/c declaratória de

inexistência de etnia e posse indígena que, posteriormente, foi convertida em Ação Civil

Pública pelo Juízo a quo voluntariamente e sem qualquer oitiva das partes (fls.

493/495).

A legitimidade ad causam difere da legitimidade processual. A primeira é

a aptidão para conduzir validamente um processo em que se discute determinada relação

jurídica. É analisada tendo sempre como referencial a relação jurídica discutida.

Depende de um processo específico. Por seu turno, a legitimidade processual é

pressuposto de validade do processo, é a capacidade que tem o indivíduo de praticar

atos por si só, independentemente de representação. Confunde-se com a capacidade de

exercício.

Aqui estamos a discutir a legitimidade ad causam que se refere aos

sujeitos da lide. Se, via de regra, o processo busca pacificar conflitos resistidos (lide),

autor e réu devem ser os titulares dos interesses em conflito. Assim, a legitimação ativa

caberá ao titular do interesse afirmado na pretensão.

Disso, extrai-se que, para promover a Ação Anulatória, as Associações

deveriam ter como associados pessoas que possuíam terras que seriam abrangidas pela

delimitação/demarcação da Terra Indígena Maró. O que não ocorreu, corroborando que

o presente feito já deveria ter sido extinto, por carência de ação.

Há total descompasso entre o afirmado na inicial e a verdade dos fatos. A

presente ação se fundou no temor das comunidades, representadas pelas autoras, de que

o reconhecimento da etnia e a consequente demarcação de terras indígenas iria "(...)

restringir ilegalmente situações jurídicas asseguradas ao Estado do Pará, no exercício

do jus domini das terras devolutas e públicas estaduais aos reais e regulares

proprietários das áreas atingidas, assim configuradas por negócios jurídicos legítimo

com o Estado, como será oportunamente demonstrado".

Contudo, à época da distribuição da Ação Anulatória (processo nº 2091-

80.2010.4.01.3902) ainda não havia sido divulgado o Relatório Circunstanciado de

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Identificação e Delimitação (RCID), produzido pela equipe técnica da FUNAI.

Portanto, não havia comprovação de que a área da TI Maró se sobreporia às áreas das

demais comunidades, o que seria de demostração necessária, a fim de não se instaurar

um processo sem que preenchesse os requisitos mínimos. Tal demonstração seria

requisito da petição inicial, proclamado no art. 283, do CPC, diante da natureza da lide.

O mapa da TI Maró/2012 (fls. 927 e ss), constante no Diagnóstico

Rápido Participativo feito pelo Projeto Saúde e Alegria, contratado pela empresa

madeireira LN Guerra (fl. 903/940), demostra que a área delimitada como Terra

Indígena não se sobrepõe às áreas das comunidades que compõem as Associações

autoras, mas apenas à porção de terras disputada pelos madeireiros.

Tanto é verdade que no ofício nº 64/CTL-STM/CRT/FUNAI/2014, que

requer a fiscalização do IBAMA na Terra Indígena em questão, consta que foram

concedidos Cadastros Ambientais Rurais para madeireiras nas área referidas (fl.

881/882).

Em Relatório de Fiscalização do Ibama (Gerência Executiva de

Santarém), datado em 03.11.2014, relativo à uma recente operação realizada pelo órgão

ambiental na Gleba Nova Olinda, em 24.10.2014, consta a identificação de 12 (doze)

Cadastros Ambientais Rurais sobrepostos à área delimitada da TI Maró, 05 (cinco) deles

relacionados com Autorizações para Exploração Florestal (AUTEFs), com

movimentação ativa e recente no sistema de controle ambiental SISFLORA5 (PMFS

Marlon Sauer Christopholi, Fazenda Jabuti; PMFS Rondonbel Indústria Madeireira

Ltda; PMFS Augusto Braun, Fazenda Gianezine; PMFS Lemos e Neto e Cia Ltda, Lote

10; e PMFS Fazenda Curitiba).

Impende destacar, ainda, que após a publicação do RCID da TI Maró no

DOE do Estado do Pará, no final do ano de 2011 (fl. 517/520), foram interpostas quatro

contestações administrativas ao procedimento, que se encontram sob a guarda da

Coordenação-Geral de Identificação e Delimitação da Diretoria de Proteção Territorial

da FUNAI (CGID/DPT) para análise, que estava prevista para ocorrer no primeiro

semestre de 2015. São elas: 1.PROCESSO/FUNAI/BSB/08620.0003 80/2010-77,

interposta pela Rondobel Madeiras LTDA; 2.

PROCESSO/FUNAJJBSB/08620.002297/20 12-02, interposta pelo Estado do Pará; 3.

PROCESSO/FUNAI/BSB/08620.0023 74/2012-16, interposta pela Mundo Verde

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Empreendimentos Sustentáveis Madeireira Ltda;

4.PROCESSO/FUNAIIBSB/08620.002300/20 12-80, interposta por Vítor Pereira Lopes

e outros.

Vejamos: nenhuma das Associações autoras da ação nº 2091-

80.2010.4.01.3902 apresentou qualquer impugnação na esfera administrativa em virtude

da delimitação da TI, o que corrobora a desistência da ação e abandono de causa, e

sobretudo demonstra que as únicas interessadas na anulação do processo demarcatório

são empresas que atuam no setor madeireiro.

A empresa Rondobel Madeiras LTDA é citada no Relatório Técnico de

vistoria na Gleba Nova Olinda, realizado pelo IBAMA em parceria com o ITERPA,

INCRA e SEMA, no ano 2007 (fl. 871 e ss), quando reporta-se à Vistoria do PMF de

José Ramos de Oliveira. Verifica-se que, "em que pese o PMF's está em nome de José

Ramos de Oliveira, o mesmo pertence à empresa RONDOBEL INDUSTRIA E

COMÉCIO DE MADEIRAS LTDA, com sede em Icaraci Belém-PA, segundo

informações prestadas pelo Sr. Fernando Belusso, um dos diretores da mesma".

Ressalta-se que durante a vistoria, além da verificação de várias

irregularidades, o Sr. Fernando Belusso repassou à equipe várias cópias de Escrituras

Públicas de Permuta entre o Estado do Pará, representado pelo Núcleo Administrativo

Financeiro, em conjunto com o ITERPA, em cumprimento ao Decreto Estadual nº

2.472, de 29/09/2006, pelo qual ficaram permutados lotes de terras titulados,

originalmente na Gleba de Terras Altamira VI, pelo Lotes de terras na Gleba Nova

Olinda, em decorrência da interdição de Glebas de Terras Altamira VI pelo Governo

Federal através do Decreto nº 98.865 de 23.01.1990 e da Portaria FUNAI nº 220 de

13.03.1990. Vê-se que os supostos proprietários dos lotes, reunidos na Associação dos

Proprietários do Projeto Integrado Trairão- ASPIT, organizaram o condomínio florestal

do Japurá, onde fizeram diversas parcerias com outros interessados na Gleba Nova

Olinda, tais como cooperados da COOEPA, organizados por Alvadi Christopholli e

também com a empresa Rondobel.

À fl. 874 do citado relatório consta resumo das escrituras públicas

apresentadas, sendo que dentre elas aparece Vítor Pereira Lopes como um dos

permutantes, o qual também contestou o procedimento administrativo de demarcação da

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Terra Indígena Maró. A somatória das áreas dos imóveis chegam ao número de 46.000

ha, apontando que a quase totalidade da Gleba Nova Olinda estaria totalmente "loteada"

entre os participantes destas duas organizações Condomínio Agroflorestal de Japurá e

COOEPA.

Depreende-se do anexo II do processo nº 2010.3902.000249-0 (fls.

660/708) que a maioria dos lotes permutados está registrada no Cartório de Registro de

Imóveis de Santarém no nome de pessoas e/ou empresas de uma única família,

identificada pelo sobrenome "BRAUN". O que também se comprova através da tabela

de fl.874.

O próprio recorrente juntou documentos, nos autos nº

2010.3902.000249-0, comprovando que o causídico subscritor da inicial nº 2091-

80.2010.4.01.3902 é advogado de diversos empreendimentos madeireiros da região,

dentre eles a empresa Rondobel (fl. 142/ 177-203/204-221), Marlise Braun (fl.

144/176/221), que aparecem nas escrituras juntadas aos autos como principais

possuidores das áreas da Gleba Nova Olinda.

Disto resulta a existência, de fato, de uma única lide, tendo de um lado os

indígenas e de outro os madeireiros que não medem esforços para alcançar seus

intentos. A situação salta aos olhos no Relatório de Viagem em campo do GT da FUNAI

(fl. 652/654, do anexo II da ação nº 2010.3902.000249-0), onde a equipe, formada por

índios e servidores, foi ameaçada de morte por madeireiros:

(...) Quando cheguei a Santarém, tentei falar com a Coordenadora da CGID, a Sr` Leila Sotto, não sendo possível. No dia seguinte consegui me comunicar com ela e relatei sobre a mudança do período da missão, informei-a que o servidor do ITERPA não poderia ficar. Narrei sobre as ameaças de morte aos índios e servidores. (Mas como eu estava num hotel utilizado por muitos madeireiros não pude falar tudo o que estava acontecendo à Si , Leila, e como estava sendo assediada pelos mesmos, resolvi mudar de hotel (...)

Neste contexto, é possível verificar que há verdadeira legitimação

extraordinária ilegal. As Associações pleiteiam em nome próprio inequívoco interesse

dos madeireiros, na medida em que somente eles estariam/poderiam ser atingidos pela

demarcação da Terra Indígena. O que nos leva a refletir por que eles próprios não

deduziram a ação em Juízo!?

É muito mais conveniente utilizar como longa manus comunidade

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tradicionais, humildes, que, supostamente, viam "seus direitos", objeto de negócio com

o Estado do Pará, serem "arrancados", a pretexto de, em seus dizeres, reconhecer os

direitos dos "falsos índios", fato que mobiliza toda a sociedade para a causa,

sensibilizando e colocando na pauta do dia das famílias. Trazer à lume

MADEIREIROS, de poder aquisitivo elevado, que se motivam tão somente pelo lucro e

vislumbram na área uma forma de fazerem fortuna não desperta o mesmo sentimento.

A situação é comprovada através Relatório Técnico de vistoria na Gleba

Nova Olinda, realizado pelo IBAMA em parceria com o ITERPA, INCRA e SEMA com

o objetivo de fazer um levantamento ocupacional e fundiário da área. No decorrer do

relatório fica claro a coabitação de três atores sociais: os indígenas, as comunidades

tradicionais e madeireiros que “dirigiram-se para área em questão, apossando-se, de

diversas formas, de grandes lotes (...)” e que têm a “ocupação facilitada, ainda por

algumas lideranças comunitárias cooptadas pelos empresários, em troca de algumas

facilidades, como equipamentos, grupos de motor gerador, material de consumo, como

combustível, para utilização pessoal ou comunitária”.

Segundo o relatório em epígrafe, “Há, ainda, uma tática que nos parece

clara, por parte dos empresários, de desqualificação das lideranças que se opõem aos

interesses dos mesmos, cuja face mais visível é a das lideranças dos auto-declarados

povos indígenas. Essa tática inclui matérias, aparentemente pagas, na imprensa, onde

essas lideranças são chamados de 'falsos índios', em discurso que é disseminado na

região, e que começa a ser assumido pelas lideranças comunitárias favoráveis aos

recém-chegados, além de contaminar de maneira sub-receptícia, o discurso daqueles que

deveriam tratar a questão com o máximo de distanciamento possível.”

Para garantir o apoio das comunidades e convencê-las que deviam se

opor utilizaram instigante argumento: a sobrevivência. Por serem comunidades

imensamente dependentes economicamente da atividade madeireira desenvolvida na

área, alardeou-se que seriam fortemente afetadas na medida em que, havendo

sobreposição de terra indígena às áreas arrecadadas pelo Estado do Pará e negociadas

pelos madeireiros, seus títulos seriam nulos e obrigados a desocupar a área levando

consigo o negócio que representa o "ganha-pão".

É o que se infere do RCID da TI Maró, que informa que desde o ano de

2005 a atuação da COOEPA, anteriormente denominada ACOUTAM, tem se

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caracterizado pela cooptação das comunidades da Gleba Nova Olinda. Utilizando-se de

manobras que incluíam promessas de emprego, de construção de estradas e de escolas,

ofertas de geradores de luz e de televisores. Inclusive, a COOEPA conseguiu o

consentimento de algumas comunidades locais para construir um porto destinado ao

transporte de madeiras, que resultou na implosão de uma cachoeira que dificultava a

passagem (fls. 497). Maiores informações verificar fls. 481/505 do anexo II, do

processo nº 2010.3902.000249-0.

Imperioso ainda observar que, apesar de ação anulatória ter sido

convertida em Ação Civil Pública, a decisão também deveria ter passado por um Juízo

de legitimidade, levando-se em consideração o art. 5º, IV, "a" e "b", da Lei nº 7.347/85.

Ou seja, para o prosseguimento da ação, agora como ACP, imperiosa a verificação da

legitimidade das Associações, que deveriam preencher, concomitantemente, dois

requisitos: estar constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil e incluir,

entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio

ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de

grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico,

turístico e paisagístico.

Da análise do art. 5º da Lei nº 7.347/85, verifica-se que apesar da

Constituição Federal (art. 5º, XXI, da CF) autorizar as associações defenderem em Juízo

interesses de seus associados, no âmbito das Ações Civis Públicas, estão legitimadas a

demandar nas causas correlatas às suas finalidades institucionais, sendo dever do

judiciário o controle desta questão.

Depreende-se dos documentos carreados aos autos, especialmente dos

atos constitutivos, que não há pertinência temática por parte das Associações autoras em

relação à proteção de quaisquer aspectos descritos na alínea "a", do art. 5º da Lei nº

7.347/85. Ou seja, não incluem entre suas finalidades a proteção do patrimônio público

e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência,

aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético,

histórico, turístico e paisagístico, que as legitimariam a figurar no polo ativo de presente

ação.

A ASCOMFE possui finalidades econômicas, buscando o

desenvolvimento agroflorestal e extrativista das comunidades conforme se infere do art.

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2º de seu Estatuto (fls. 75 e ss). Ademais, na data da distribuição da ação não contava

com 01 ano de constituída (foi constituída em 12.09.2009- fls.73/82). A Associação

ASSERVE, também não contava com um ano de constituição (fl. 112) quando a ação foi

ajuizada (18.06.2010). No tocante à AMREP, diga-se o mesmo, tendo em vista que,

conforme fls. 122/ 131, foi constituída em 11.11.2009. A mesma constatação se faz da

AMOVIP (fls. 132/141) e ASMOCOP (FLS. 142/151. A AINORMA E AMGLO não

possui as finalidades especificadas em Lei para o ajuizamento da ação.

Neste ponto, a aplicabilidade da teoria da asserção se revela

preponderante: se ultrapassada a análise inicial - caso V. Exas entendam não ser mais

possível a verificação da legitimidade após sentença sem adentrar no próprio mérito - a

verificação da legitimidade ad causam confunde-se com o próprio mérito da questão, se

não for reconhecida aquela, deve-se proferir sentença de total improcedência dos

pedidos, haja vista não haver lide a ser dirimida entre as partes.

Dessa maneira, seja pela análise do mérito, seja como preliminar, o

Parquet federal requer seja declarada a ilegitimidade das Associações autoras para

propor a ação Anulatória e posteriormente para Ação Civil Pública debatida.

Do mesmo modo, carecem as Associações autoras de interesse

processual, que também deve ser compreendido como um dos requisitos de condição da

ação. O próprio art. 3º do CPC aduz que "Para propor ou contestar ação é necessário ter

interesse e legitimidade". O interesse processual caracteriza-se, portanto, quando o

provimento jurisdicional postulado possa ser útil ao demandante. Deve haver a

demonstração de que é necessário ingressar em juízo para obter determinada pretensão.

Na hipótese dos autos, restou devidamente comprovado que as áreas

ocupadas pelas comunidades que compõem as Associações autoras não se sobrepõem à

Terra Indígena Maró, demostrando-se que tudo não passa de artifícios utilizados por

empresas de exploração madeireira que utilizam as Associações como longa manus

para disfarçar seus interesses diametralmente opostos aos dos indígenas. Conclui-se,

portanto, que as Associações autoras não demonstram qualquer interesse no deslinde da

causa.

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III.D – DO MÉRITO

III.D.1 – DOS FUNDAMENTOS ESTRITAMENTE JURÍDICOS

a) A violação ao princípio constitucional da separação dos poderes (Exacerbação

da função judicante / Invasão do mérito administrativo)

As linhas-mestras do processo administrativo de demarcação das terras

indígenas estão definidas no Decreto nº 1.775, de 08/01/1996. Tal legislação atribui à

FUNAI o papel de tomar a iniciativa, orientar e executar a demarcação dessas terras. Ao

Judiciário cabe apenas determinar ao órgão indigenista, caso verificada inércia – tal

como a que sucede no caso da TI Maró, que observe a legislação correlata e a

razoabilidade na duração do procedimento administrativo demarcatório. Jamais poderia

o Estado-juiz se imiscuir no papel da autarquia e decidir se um território é ou não

indígena, muito menos se as pessoas que habitam e utilizam a área são ou não

indígenas 1 .

Essa assertiva é corroborada inclusive pela FUNAI, através da

Informação Técnica nº 12/DPT/2015, a qual teve acesso este Procurador da República

signatário pelas mãos do Diretor de Proteção Territorial, Aluízio Ladeira Azanha:

34. Cabe ainda esclarecer que os estudos de identificação e delimitação de terras

indígenas não são realizados de forma arbitrária como, por descuido ou

desconhecimento, pretendem fazer crer as afirmações do juízo da Segunda Vara

da Subseção Judiciária de Santarém. De maneira bastante criteriosa, esses

estudos são coordenados por antropólogo de competência e qualificação

reconhecidas e realizados por Grupos Técnicos especializados, de caráter

multidisciplinar e oficialmente constituídos mediante publicação de Portaria do

Presidente da Funai em Diário Oficial da União. Tais estudos, ainda, são

regulamentados por normativas específicas, quais sejam: a norma constitucional

(Artigo 231 da CF/88), o Decreto Presidencial no 1775/96, que dispõe sobre o

procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, a Portaria n°

1 O próprio Juiz Federal José Airton de Aguiar Portela, que proferiu a sentença ora recorrida, reconheceu, em entrevista concedida posteriormente, que não cabe ao Judiciário dizer quem é ou não é indígena. Vide reportagem publicada no periódico O Estado do Tapajós (em anexo).

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14/MJ/96, que estabelece os critérios para a elaboração do Relatório

Circunstanciado de Identificação e Delimitação de Terras Indígenas e a Portaria

n° 2498/MJ/11, que dispõe sobre a participação dos entes federados nos

procedimentos de identificação e delimitação de Terras Indígenas.

35. Por meio desses estudos restou comprovada a tradicionalidade da ocupação

indígena sobre uma área de 42.373 ha, denominada Terra Indígena Maró,

considerada necessária à sobrevivência física e cultural dos grupos indígenas

Borari e Arapiuns. Nesse sentido, resta incabível a argumentação judicial de

que tais estudos não teriam observado os critérios da "originariedade" e

"ancestralidade", inexistentes na legislação aplicada aos procedimentos

administrativos de demarcação de terras indígenas, o que revela

obscuridade na sentença em análise. Ao realizar um estudo de identificação e

delimitação de uma terra indígena, são observados os seguintes critérios,

estabelecidos pela norma constitucional (art. 231) e pela Portaria n° 14/96 do

Ministério da Justiça: a) áreas habitadas em caráter permanente pelo grupo

indígena; b) áreas necessárias às suas atividades produtivas; e) áreas que

oferecem as condições ambientais imprescindíveis a seu bem-estar e; d) áreas

necessárias à sua reprodução fisica e cultural, de acordo com seus usos,

costumes e tradições.

(…)

116. Cabe destacar que, segundo a legislação vigente, o Relatório

Circunstanciado de Identificação e Delimitação de terras indígenas, nos termos

do art. 2°, caput e §6º do Decreto n.° 1775/96, é a peça técnica que fundamenta

todo procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas,

constituindo-se como o principal instrumento a amparar e reconhecer o direito

dos povos indígenas a suas terras de ocupação tradicional. O RCID, por sua vez,

é fruto da realização de estudos técnicos multidisciplinares, coordenado por

antropólogo de qualificação reconhecida:

Art. 2° A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será

fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação

reconhecida, que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação

baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo

antropológico de identificação.

§ 6° Concluídos os trabalhos de identificação e delimitação, o grupo técnico

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apresentará relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio,

caracterizando a terra indígena a ser demarcada.

117. Da leitura da legislação vigente que fundamenta o reconhecimento dos

direitos territoriais indígenas, percebe-se que não caberia ao juízo produzir

interpretação sobre o Relatório Circunstanciado de Identificação e

Delimitação da Terra Indígena Maró, uma vez que se trata de peça técnica,

produzida por equipe técnica multidisciplinar de qualificação reconhecida.

Não existe, pois, laudo ou perícia elaborados por outro profissional da

antropologia refutando a peça técnica elaborada pela equipe coordenada

pela antropóloga competente, analisada tecnicamente pelo setor

responsável da Fundação Nacional do índio e acolhida pela presidência do

órgão para a delimitação da Terra Indígena Maró.

118. Desta forma, a sentença exarada desrespeita a atuação profissional de

antropólogos brasileiros, "formados pelos mais rigorosos cânones científicos e

regidos por estritas diretrizes éticas, teóricas, epistemológicas e metodológicas,

reconhecidas internacionalmente e avaliadas por pares da mais elevada

estatura científica, bem como por autoridades de áreas afins" (ABA, 2010),

como bem afirmou a Associação Brasileira de Antropologia, em nota emitida

em decorrência da famigerada reportagem da revista Veja intitulada "A farra da

antropologia oportunista ".

119. Ressalta-se que o RCID e demais peças juntadas aos autos do processo de

identificação e delimitação da Terra Indígena Maró demostram que os Borari e

Arapiuns ocupam a área delimitada de modo diferenciado e seu conhecimento

ecológico atesta a presença antiga e contínua dessa coletividade indígena no

local, caracterizando-se, portanto, o vínculo indissolúvel que esse povo

estabeleceu com a terra indígena.

120. Comprovou-se que a terra ocupada em caráter permanente e tradicional

pelos índios Borari e Arapium reúne as áreas utilizadas por eles para suas

atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais

necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural,

segundo seus usos, costumes e tradições. A segurança técnica e administrativa

que caracteriza o procedimento em pauta é demonstrada, dentre outros, pelos

seguintes fatos: os trabalhos de identificação e delimitação da referida terra

indígena foram coordenados por antropóloga de qualificação reconhecida, os

resultados do trabalho foram integralmente acolhidos pela Diretoria de

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Proteção Territorial, aprovados pelo Senhor Presidente da Funai e publicados

em Diário Oficial; o direito ao contraditório e à ampla defesa foi plenamente

respeitado. Dessa maneira, reafirmamos que os estudos de identificação e

delimitação da TI Maró foram conduzidos em perfeita conformidade com a

legislação vigente.

121. A Funai executou, portanto, a atribuição que lhe foi outorgada pela

Constituição Federal de 1988. Além disso, como se verificou, a peça técnica

elaborada pelo GT de identificação e delimitação da referida terra indígena

mostra-se plenamente consistente para subsidiar as etapas subsequentes do

procedimento demarcatório, previstas no Decreto n°. 1.775/96.

O procedimento atual para a identificação e delimitação, demarcação

física, homologação e registro de terras indígenas está, portanto, estabelecido e balizado

no Decreto nº 1.775/96, que “dispõe sobre o procedimento administrativo de

demarcação das terras indígenas”, definindo claramente o papel do órgão federal

indigenista, as diferentes fases e subfases do processo, bem como assegurando

transparência ao procedimento, por meio de sua publicidade.

Note-se que as regras do Decreto nº 1.775/96 já foram “declaradas

constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal no Mandado de Segurança nº 24.045, da

relatoria do ministro Joaquim Barbosa”, como ressaltado no caso da Terra Indígena

Raposa Serra do Sol (Pet 3388 / RR, Min. Carlos Britto, 19/03/2009).

Os critérios para se identificar e delimitar uma terra indígena, o que é

realizado por um grupo de técnicos especializados, estão definidos no Decreto nº

1.775/96 e na Portaria nº 14/MJ, de 09/01/1996, a qual estabelece “regras sobre a

elaboração do relatório circunstanciado de identificação e delimitação de Terras

Indígenas”.

O início do processo demarcatório se dá por meio da identificação e

delimitação, quando é constituído um grupo técnico de trabalho, composto por técnicos

da FUNAI. A comunidade indígena é envolvida diretamente em todas as subfases da

identificação e delimitação da terra indígena a ser administrativamente reconhecida. O

grupo de técnicos faz os estudos e levantamentos em campo, centros de documentação,

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órgãos fundiários municipais, estaduais e federais, e em cartórios de registros de

imóveis, para a elaboração do relatório circunstanciado de identificação e delimitação

da área estudada, resultado que servirá de base a todos os passos subsequentes. O

resumo do relatório é publicado no Diário Oficial da União e no Diário Oficial do

Estado federado de localização da área, sendo cópia da publicação afixada na sede

municipal da comarca da situação da terra estudada.

Os estudos antropológicos e os complementares de natureza etno-

histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental, bem como o levantamento

fundiário, deverão caracterizar e fundamentar a terra como tradicionalmente ocupada

pelos índios, conforme os preceitos constitucionais, e apresentar elementos visando à

concretização das fases subsequentes à regularização total da terra. É com base nestes

estudos, que são aprovados pelo Presidente da FUNAI, que a área será declarada de

ocupação tradicional do grupo indígena a que se refere, por ato do Ministro da Justiça –

Portaria Declaratória publicada no Diário Oficial da União – reconhecendo-se, assim,

formal e objetivamente, o direito originário indígena sobre uma determinada extensão

do território brasileiro.

Em sequência, deve ser dado cumprimento à Portaria Declaratória, com a

demarcação administrativa (física) de limites pela FUNAI, seguida da homologação

do(a) Presidente da República e registro em cartório imobiliário e Secretaria do

Patrimônio da União do Ministério da Fazenda, tal como dispõem os artigos 19, caput e

§1º, da Lei nº 6.001/76, c/c artigos 5º e 6º do Decreto nº 1.775/96, in verbis:

Art. 19. As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de

assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo

estabelecido em decreto do Poder Executivo.

§ 1º A demarcação promovida nos termos deste artigo, homologada pelo Presidente da

República, será registrada em livro próprio do Serviço do Patrimônio da União (SPU) e

do registro imobiliário da comarca da situação das terras.

Art. 5° A demarcação das terras indígenas, obedecido o procedimento administrativo

deste Decreto, será homologada mediante decreto.

Art. 6° Em até trinta dias após a publicação do decreto de homologação, o órgão federal

de assistência ao índio promoverá o respectivo registro em cartório imobiliário da

comarca correspondente e na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da

Fazenda.

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Da análise do regramento acima exposto, em conjunto com as

disposições constitucionais aplicáveis, é possível extrair não apenas a importância vital

dos territórios para os povos indígenas, como o dever estatal de demarcá-los de modo

célere.

A Constituição é inequívoca. Primeiro quando, de modo genérico,

estabelece a duração razoável do processo como direito fundamental:

Art. 5. LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a

razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

E, especificamente no contexto de proteção da diversidade cultural e de

reconhecimento dos direitos dos povos indígenas sobre suas terras, quando prioriza a

demarcação, fixando prazo para que a União conclua os trabalhos. Quanto a isto,

destaca-se o artigo 67 das Disposições Constitucionais Transitórias, estabelecendo

prazo de cinco anos, contados da promulgação da Constituição, para que a União

conclua a demarcação das terras indígenas.

Deste modo, a eternização de qualquer processo de demarcação de terras

indígenas dá-se à margem da legalidade.

No caso da Terra Indígena Maró, além do descumprimento dos prazos

estabelecidos no Decreto nº 1.775/96 para as fases subsequentes do procedimento, tendo

em vista que o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação já foi

devidamente confeccionado e publicado , no Diário Oficial da União nº 195, de

10/10/2011, na seção 1, às págs. 36/39, e também no Diário Oficial do Estado do Pará

de 16/11/2011, caderno 4, págs. 12/15, verifica-se o decurso de mais de 4 (quatro) anos

sem que ocorra impulso oficial em relação às fases ulteriores, impossibilitando o

prosseguimento do processo demarcatório, notadamente o cumprimento das

predisposições previstas nos §§8º e 9º do art. 2º do Decreto nº 1.775/96, in verbis:

§ 8° Desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação

de que trata o parágrafo anterior, poderão os Estados e municípios em que se localize a

área sob demarcação e demais interessados manifestar-se, apresentando ao órgão

federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais

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como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas,

fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais

ou parciais, do relatório de que trata o parágrafo anterior.

§ 9° Nos sessenta dias subseqüentes ao encerramento do prazo de que trata o parágrafo

anterior, o órgão federal de assistência ao índio encaminhará o respectivo procedimento

ao Ministro de Estado da Justiça, juntamente com pareceres relativos às razões e provas

apresentadas.

O caso trazido à análise é de grave omissão, a demandar a presença

enérgica e célere do Poder Judiciário com a finalidade de assegurar a soberania da

Constituição com a plena efetividade do seu conteúdo aos grupos indígenas em questão.

Mas o socorro ao Judiciário, frise-se, não é para que substitua o papel da autarquia

indigenista, seja para efetivamente demarcar terras indígenas como se FUNAI fosse,

seja para eliminar o trabalhado desenvolvido pela autarquia, tal como ocorreu na

hipótese vertente.

A conduta mostra-se, portanto, ilegal, ferindo, neste aspecto, não apenas

o princípio correlato da legalidade, mas também os princípios da moralidade, eficiência

e publicidade, pois o injustificado silêncio administrativo em lapso temporal tão

dilatado estampa a inoperância estatal, a falta de lealdade para com os interessados e a

inobservância dos princípios éticos que devem pautar toda a atuação de todo e qualquer

agente público.

A violação ao princípio da finalidade também é evidente. Afinal, se o fim

colimado pelo procedimento administrativo é a demarcação da terra indígena, que, por

sua vez, visa justamente oportunizar à comunidade beneficiária vida digna conforme os

costumes e tradições de um povo cultural e etnicamente diferenciado, a mora estatal,

nessas circunstâncias, conflita diretamente com a finalidade estabelecida pelo legislador

constituinte originário, notadamente quando este estabeleceu prazo quinquenal para a

ultimação das demarcações, nos termos do acima referido artigo 67 do ADCT. Deste

modo, a eternização de qualquer processo de demarcação de terras indígenas dá-se à

margem da legalidade.

Neste contexto, é importante observar a síntese das fases do

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procedimento demarcatório:

1. o Estudo antropológico de identificação deve respeitar o prazo

fixado na Portaria de nomeação do Perito;

2. após a apresentação de relatório circunstanciado pelo grupo técnico

especializado à FUNAI, é de 15 dias o prazo para publicação da aprovação no Diário

Oficial da União (art, 2º, §§ 6º e 7º, do Decreto nº 1.775/96);

3. passados 90 dias da publicação do relatório resumido, a FUNAI

teria 60 dias para encaminhar o procedimento ao Ministro da Justiça, (art. 2º, §§ 8º e 9º,

do Decreto nº 1.775/96) e;

4. o Ministro da Justiça tem o prazo de 30 dias para manifestar sua

decisão (art. 2º, § 10, do Decreto nº 1.775/96).

Note-se que o Ministério Público Federal, em momento algum, pretende

ingressar no mérito administrativo, na conveniência e oportunidade afetas ao crivo tão-

somente do administrador. Isto porque trata-se de Terra Indígena já declarada em

Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação lavrado por Grupo Técnico

constituído pela própria FUNAI sob os moldes legais, restando apenas a prática de atos

materiais que a efetivem.

Invasão indevida do mérito administrativo houve com a prolação da

sentença ora recorrida. Senão vejamos:

..EMEN: DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – DEMARCAÇÃO

DE TERRAS INDÍGENAS – AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC –

ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO – TEORIA DA ASSERÇÃO –

NECESSIDADE DE ANÁLISE DO CASO CONCRETO PARA AFERIR O GRAU

DE DISCRICIONARIEDADE CONFERIDO AO ADMINISTRADOR PÚBLICO

– POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. 1. Não viola o artigo 535 do CPC

quando o julgado decide de modo claro e objetivo na medida da pretensão deduzida,

contudo de forma contrária à pretensão do recorrente. 2. Nos termos da teoria da

asserção, o momento de verificação das condições da ação se dá no primeiro contato

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que o julgador tem com a petição inicial, ou seja, no instante da prolação do juízo de

admissibilidade inicial do procedimento. 3. Para que se reconheça a impossibilidade

jurídica do pedido, é preciso que o julgador, no primeiro olhar, perceba que o petitum

jamais poderá ser atendido, independentemente do fato e das circunstâncias do caso

concreto. 4. A discricionariedade administrativa é um dever posto ao administrador para

que, na multiplicidade das situações fáticas, seja encontrada, dentre as diversas soluções

possíveis, a que melhor atenda à finalidade legal. 5. O grau de liberdade inicialmente

conferido em abstrato pela norma pode afunilar-se diante do caso concreto, ou até

mesmo desaparecer, de modo que o ato administrativo, que inicialmente

demandaria um juízo discricionário, pode se reverter em ato cuja atuação do

administrador esteja vinculada. Neste caso, a interferência do Poder Judiciário

não resultará em ofensa ao princípio da separação dos Poderes, mas restauração

da ordem jurídica. 6. Para se chegar ao mérito do ato administrativo, não basta a

análise in abstrato da norma jurídica, é preciso o confronto desta com as situações

fáticas para se aferir se a prática do ato enseja dúvida sobre qual a melhor decisão

possível. É na dúvida que compete ao administrador, e somente a ele, escolher a

melhor forma de agir. 7. Em face da teoria da asserção no exame das condições da

ação e da necessidade de dilação probatória para a análise dos fatos que circundam o

caso concreto, a ação que visa a um controle de atividade discricionária da

administração pública não contém pedido juridicamente impossível. 8. A influência que

uma decisão liminar concedida em processo conexo pode gerar no caso dos autos pode

recair sobre o julgamento do mérito da causa, mas em nada modifica a presença das

condições da ação quando do oferecimento da petição inicial. Recurso especial

improvido. ..EMEN:

(STJ; Segunda Turma; Rel. Min. HUMBERTO MARTINS; RESP 200601863236; DJE

DATA:02/06/2009)

Na hipótese dos autos, frise-se, já resta confeccionado e publicado o

Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) por corpo técnico

devidamente constituído. Tal documento contempla diversos estudos nos mais variados

campos de conhecimento (antropológico, étnico, histórico, cultural, ambiental,

cartográfico e fundiário), necessários à comprovação de que a área objeto de

demarcação constitui terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.

No caso em comento, o RCID, conforme sobejamente demonstrado

acima, demonstrou inequivocamente que a área proposta é de ocupação tradicional dos

povos Borari e Arapium, reunindo, a um só tempo, as condições necessárias e

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indispensáveis à reprodução física e cultural desses grupos, observados seus usos,

costumes e tradições.

A irrazoabilidade do prazo já decorrido é evidente, desmerecendo ilações

maiores. Mais irrazoável ainda é o fato do Poder Judiciário malferir normas

constitucionais, tratados internacionais e a legislação infraconstitucional e arvorar-se no

papel da Fundação Nacional do Índio e das próprias populações indígenas diretamente

interessadas e afirmar, de modo absurdo, que não se tratam de índios e desconstituir,

sem a realização sequer de perícia judicial, um documento em que se contém

conhecimentos técnicos e específicos que obviamente o magistrado sozinho não dispõe.

Hely Lopes Meirelles sustenta que a omissão administrativa que ofende

direito individual ou coletivo dos administrados “sujeita-se à correição judicial e à

reparação decorrente de sua inércia.” Ainda segundo o autor, “a inércia da

Administração, retardando ato ou fato que deva praticar, caracteriza, também, abuso de

poder, que enseja correção judicial e indenização ao prejudicado.”2

Com efeito, a mora estatal verificada na presente demanda constitui razão

bastante para que o Poder Judiciário apenas determine que a FUNAI proceda no avanço

normal do procedimento administrativo de demarcação da Terra Indígena Maró, que não

pode perdurar indefinidamente, consoante o livre arbítrio do administrador.

É a reiteração do ilícito (mora), portanto, que alicerça o pedido do

Ministério Público Federal, a fim de que o órgão indigenista cumpra seu dever legal de

movimentar adequadamente o procedimento administrativo, que, frise-se, arrasta-se há

anos.

Ressalte-se que outro não é o entendimento do Superior Tribunal de

Justiça que, ao encampar toda a tese supracitada, fixou o prazo razoável de 24 (vinte e

quatro) meses para a conclusão geral do procedimento administrativo de demarcação de

terras indígenas:

“RECURSO ESPECIAL Nº 1.114.012 - SC (2009/0082547-8)

RELATORA : MINISTRA DENISE ARRUDA

RECORRENTE : UNIÃO

2 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 27. ed. São Paulo: Editora Malheiros, p. 110.

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RECORRENTE : FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI

PROCURADOR : EDUARDO DE MOURA MENUZZI E OUTRO(S)

RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSOS ESPECIAIS.

DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. VIOLA-

ÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA. FIXAÇÃO DE PRAZO RAZO-

ÁVEL PARA O ENCERRAMENTO DO PROCEDIMENTO DEMARCATÓRIO.

POSSIBILIDADE.

(...)

2. O aresto atacado abordou todas as questões necessárias à integral solução da lide,

concluindo, no entanto, que é possível a fixação, pelo Poder Judiciário, de prazo razoá-

vel para que o Poder Executivo proceda à demarcação de todas as terras indígenas dos

índios Guarani.

3. A demarcação de terras indígenas é precedida de processo administrativo, por inter-

médio do qual são realizados diversos estudos de natureza etno-histórica, antropológica,

sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental, necessários à comprovação de que a área

a ser demarcada constitui terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. O procedimen-

to de demarcação de terras indígenas é constituído de diversas fases, definidas, atual-

mente, no art. 2º do Decreto 1.775/96.

4. Trata-se de procedimento de alta complexidade, que demanda considerável

quantidade de tempo e recursos diversos para atingir os seus objetivos. Entretanto,

as autoridades envolvidas no processo de demarcação, conquanto não estejam es-

tritamente vinculadas aos prazos definidos na referida norma, não podem permitir

que o excesso de tempo para o seu desfecho acabe por restringir o direito que se

busca assegurar.

5. Ademais, o inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal, incluído pela EC

45/2004, garante a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração

do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

6. Hipótese em que a demora excessiva na conclusão do procedimento de demarca-

ção da Terra Indígena Guarani está bem evidenciada, tendo em vista que já se

passaram mais de dez anos do início do processo de demarcação, não havendo, no

entanto, segundo a documentação existente nos autos, nenhuma perspectiva para

o seu encerramento.

7. Em tais circunstâncias, tem-se admitido a intervenção do Poder Judiciário, ain-

da que se trate de ato administrativo discricionário relacionado à implementação

de políticas públicas.

8. "A discricionariedade administrativa é um dever posto ao administrador para que, na

multiplicidade das situações fáticas, seja encontrada, dentre as diversas soluções possí-

veis, a que melhor atenda à finalidade legal. O grau de liberdade inicialmente conferido

em abstrato pela norma pode afunilar-se diante do caso concreto, ou até mesmo desapa-

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recer, de modo que o ato administrativo, que inicialmente demandaria um juízo discri-

cionário, pode se reverter em ato cuja atuação do administrador esteja vinculada. Neste

caso, a interferência do Poder Judiciário não resultará em ofensa ao princípio da separa-

ção dos Poderes, mas restauração da ordem jurídica." (REsp 879.188/RS, 2ª Turma,

Rel. Min. Humberto Martins, DJe de 2.6.2009)

9. Registra-se, ainda, que é por demais razoável o prazo concedido pelo magistrado de

primeiro grau de jurisdição para o cumprimento da obrigação de fazer — consistente

em identificar e demarcar todas as terras indígenas dos índios Guarani situadas nos mu-

nicípios pertencentes à jurisdição da Subseção Judiciária de Joinville/SC, nos termos

do Decreto 1.775/96, ou, na eventualidade de se concluir pela inexistência de tradicio-

nalidade das terras atualmente ocupadas pelas comunidades de índios Guarani na refe-

rida região, em criar reservas indígenas, na forma dos arts. 26 e 27 da Lei 6.001/73 —,

sobretudo se se considerar que tal prazo (vinte e quatro meses) somente começará a ser

contado a partir do trânsito em julgado da sentença proferida no presente feito.

10. A questão envolvendo eventual violação de preceitos contidos na Lei de Responsa-

bilidade Fiscal (LC 101/2000), a despeito da oposição de embargos declaratórios, não

foi examinada pela Corte de origem, carecendo a matéria, portanto, do indispensável

prequestionamento.” (grifos apostos)

No caso em tela, como já ressaltado, transcorreram quase 04 (quatro)

anos de paralisação indevida do procedimento, o que é significativamente superior ao

prazo de 24 (vinte e quatro) meses considerados suficientes pelo Superior Tribunal de

Justiça para a conclusão de todo o procedimento. É, portanto, inquestionável a excessiva

demora em sua conclusão.

Outrossim, balizar a identificação de um grupo etnicamente diferenciado

a partir de notícias extraídas de artigos e/ou reportagens da rede mundial de

computadores (internet), tal como fez o douto juízo de 1ª instância, não se compatibiliza

com as normas supramencionadas.

Pior ainda, é basear-se em meras ilações, derivadas sobretudo de seu

posicionamento ideológico, assim como de “retalhos” descontextualizados de alguns

laudos e depoimentos, este últimos nem sequer comprovadamente existentes, pois são

escritos manualmente sem reconhecimento de firma em cartório, ou documento que

comprove que determinada pessoa existe e/ou que vive nas comunidades que alegam.

Documentos vindos aos autos sem fé pública, produzidos ao arreio da legislação, pois o

próprio Código de Processo Civil, aos dispor acerca das provas, aduz em seu art. 369

que "Reputa-se autêntico o documento, quando o tabelião reconhecer a firma do

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signatário, declarando que foi aposta em sua presença".

Impende destacar, nessa entoada, que em boa parte dos depoimentos -

colhidos em supostas entrevistas - utilizados pelo magistrado para fundamentar sua

decisão, além da dúvida da existência e legitimidade dos entrevistados, o entrevistador

não é sequer identificado, o que lança inequívocas dúvidas acerca da verossimilhança de

tais alegações.

Repise-se, o próprio órgão indigenista (FUNAI) reconheceu, por meio

do principal documento em um procedimento demarcatório de Terra Indígena,

qual seja, o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID), que

a porção territorial ora em comento é sim de ocupação tradicional das etnias

Borari e Arapium.

Com a devida vênia, não é tarefa do Judiciário brasileiro avaliar se um

território é ou não de ocupação tradicional indígena. A uma, porque existe órgão

específico para cumprir tal mister, qual seja, a FUNAI. A duas, o Judiciário não dispõe

de corpo técnico devidamente habilitado (algo que a autarquia federal acima citada

dispõe) a realizar estudos de cunho antropológico, etno-histórico, sociológico,

cartográfico, cultural, ambiental e fundiário.

O dever do Judiciário (e é isso que se pugna nessa demanda) é que se

faça cumprir a legislação, in casu, a Constituição Federal de 1988 (art. 231), o Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias (art. 67), a Convenção nº 169 da Organização

Internacional do Trabalho (arts. 1º, 2º e 13 a 19), o Estatuto do Índio – Lei nº 6.001/73,

e sobretudo o Decreto nº 1.775/96, que estabelece o rito procedimental (inclusive com

prazos bem definidos) da atividade administrativa de demarcação de terras indígenas

no Brasil.

Vejam Excelências, face a publicação do Relatório Circunstanciado de

Identificação e Delimitação da Terra Indígena Maró3 (destaque-se, o único documento

que atesta a ocupação tradicional de um território por um ou mais povos indígenas), não

mais se discute nesta lide se a área perquirida pelos Borari e Arapium é ou não de

ocupação tradicional indígena, tampouco se tais grupos são ou não indígenas. O que se

reclama é apenas que o Judiciário cumpra o seu mister constitucional e exija por parte

3 Vide documentos de fls. 516/520 destes autos.

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da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) o cumprimento da legislação correlata,

especificamente aquela que estabelece os prazos para a consecução de simples atos

formais/procedimentais ao prosseguimento do processo demarcatório (art. 2º, §§8º e 9º,

do Decreto nº 1.775/96).

Ao negar-se a existência das etnias e de seus vínculos territoriais nega-se,

simultaneamente, outros direitos derivados, tais como saúde e educação diferenciados,

preservação da cultura e garantia de políticas públicas previstas na legislação específica.

A propósito, o Estado brasileiro, diferentemente do que entendeu o juízo a quo, já

reconheceu, reiteradas vezes, a existência das etnias Borari e Arapium habitando o baixo

Tapajós. Vejamos, por exemplo, que o Ministério da Educação / Secretaria de Educação

Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão - SECADI, reconheceu,

oficialmente, através da Portaria nº 614/MEC, de 21 de julho de 2014, o Território

Etnoeducacional Tapajós Arapiuns (TEE – TA). Em apertada síntese, os Territórios

Etnoeducacionais é uma especificidade normativa e instrumental aplicável tão somente

às populações indígenas em matéria educacional.

Ao abrigo dessas considerações, fica fácil perceber que o juiz, na

sentença, a um só tempo, violou frontalmente o princípio constitucional da separação

dos poderes e exacerbou, em larga escala, os limites de sua função judicante, na medida

em que nitidamente invadiu o mérito administrativo e substituiu o papel legalmente

atribuído à FUNAI. Aliás, foi além! Invalidou importante documento cuja confecção

cabe apenas ao órgão indigenista e que reúne elementos e aspectos de todo estranhos à

função judicial.

Em suma, não cabe ao Judiciário validar estudos técnicos como o RCID,

devidamente elaborado pelo órgão competente. Nem mesmo invalidá-lo, pois não

dispõe de conhecimentos específicos que a análise da questão requer. Mostra-se

irrazoável refutá-lo sem qualquer contraprova equivalente, pois nem sequer foi

determinada a realização de estudos por outro Grupo Técnico, com habilidade para

tanto, inexistindo provas cabais que pudessem infirmar a higidez dos estudos

apresentados. Pior: não foi determinada sequer perícia técnica judicial, conforme já

salientado.

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b) O caráter supralegal e vinculante da Convenção nº 169/OIT

A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)

dispõe sobre os “Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes”. Trata-se de um

dos instrumentos jurídicos do Direito Internacional mais avançados no tratamento das

relações entre os Estados e os povos indígenas em todo o mundo, promulgada no Brasil

através do Decreto Legislativo nº 5.051, de 19/04/2004.

Contrariando a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal, o

Juízo a quo afastou a incidência da aludida Convenção, assentando que a identificação

de povos indígenas seria traçada por uma Lei infraconstitucional, no caso o Estatuto do

Índio (Lei nº 6.001/1973). Fundamentou sua decisão, neste ponto, aduzindo que "o STF,

ao julgar o paradigmático processo Raposa Serra do Sol (Pet 3388/RR), por conduto do

voto do Ministro Menezes Direito (incorporado pelo voto vencedor), concluiu que a

Convenção OIT nº 169, assim como as demais resoluções da Assembleia Geral da ONU

"são recomendatórias e não diretamente vinculantes". Segundo o Juízo prolator da

sentença, "nas palavras do próprio Ministro Menezes Direito ao referir-se à Convenção

da OIT nº 169:

“Assim, seja pela ausência de integração, seja porque baldia de força

vinculante, por si só, como fonte do direito internacional, não se há de aplicar

a Declaração no plano da positividade jurídica interna. Com isso pode-se

afirmar que não repercute no caso sob julgamento.” (fls. 50/51)

Ocorre que o Ministro Menezes Direito, em seu voto, reportou-se à

Declaração da ONU sobre o Direito dos Povos Indígenas, esta sim, sem força

vinculante, possuidora de caráter meramente recomendatório, segundo o entendimento

predominante. Ressalta-se que os documentos têm naturezas jurídicas diversas: a

Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas deve ser reconhecida como

reflexo de norma de costumes internacionais de proteção dos direitos humanos dos

povos indígenas e, ainda, elemento de interpretação dos demais documentos

internacionais de proteção a tais direitos. Ao passo que a Convenção nº 169 da OIT é

verdadeiro tratado (para aqueles que não vêm - como de fato não há - diferença entre

convenção e tratado sendo considerados sinônimos). Este ingressa no ordenamento

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jurídico dele fazendo parte com força vinculante (cogente/imperativa), seja com status

supralegal ou com força de Emenda à Constituição.

Os Tratados Internacionais acerca de direitos humanos ingressam no

ordenamento jurídico, portanto: (a) com status de Emenda Constitucional (CF, art. 5º, §

3º) ou (b) como Direito supralegal, com status materialmente constitucional; a depender

de como aprovados pelas casas do Congresso Nacional.

A esse respeito, o Ministro Gilmar Mendes manifestou que os tratados

Internacionais de Direitos Humanos, antes da EC 45/04, que não passaram pelo

processo especial previsto no art. 5º, § 3º, da CF (duas casas, dois turnos, 3/5 dos votos),

têm caráter supralegal, tornando inaplicável a legislação infraconstitucional com eles

conflitantes:

“(...) o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos

(o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana

sobre Direitos Humanos – Pacto de San José de Costa Rica) lhes reserva lugar

específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém

acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados

internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, dessa forma, torna

inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela

anterior ou posterior ao ato de ratificação”.( RE. 466.343-1 São Paulo. Rel.

Min. Cezar Peluso. Voto Vogal Ministro. Gilmar Mendes).

Portanto, os tratados internacionais de direitos humanos antes da EC/04

localizam-se acima das legislação infraconstitucional, devendo aqueles serem aplicados

quando em conflitos com esta, desde que não contrariem a Lei Maior.

Assim, quanto à identificação dos grupos como indígenas, cumpre

consignar, como já anteriormente feito pelo Ministério Público Federal às fls. 126/136,

que vigora no ordenamento jurídico brasileiro o princípio do autorreconhecimento,

cabendo à própria comunidade reconhecer-se como pertencente a um grupo com

características sociais, culturais e econômicas próprias. É isso que predispõe o artigo 1º

da Convenção nº 169 da OIT, in verbis:

1. A presente convenção aplica-se:

a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais

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e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial;

b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.

2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.

3. A utilização do termo "povos" na presente Convenção não deverá ser interpretada no sentido de ter implicação alguma no que se refere aos direitos que possam ser conferidos a esse termo no direito internacional.

(grifo nosso)

O critério do autorreconhecimento não merece reparos, na medida em

que parte da escorreita premissa de que, na definição de uma identidade étnica, é

fundamental levar em consideração as percepções dos próprios sujeitos que estão sendo

identificados, sob pena de se validarem percepções etnocêntricas ou essencialistas de

observadores externos, impregnados que são de preconceitos (prévios conceitos), dada a

vivência de uma cultura distinta. A noção primacial, e que deve ser compreendida a

partir do próprio princípio da dignidade da pessoa humana, é de que, na definição da

identidade, não há como ignorar a visão que o próprio sujeito de direito tem de si, sob

pena de se verificarem sérias arbitrariedades e violências, concretas ou simbólicas, tal

como a que presenciamos nestes autos.

Portanto, a Lei nº 6.001/1973, em seu art. 3º, I, ao conceituar índio como

sendo "todo indivíduo de origem e ascendência pré- colombiana que se identifica e é

identificado como pertencente a um grupo étnico cujas as caraterísticas culturais o

distinguem da sociedade nacional” incide em claro confronto com o art. 1º da

Convenção 169 da OIT.

Nessa entoada, cumpre observar que a aludida Lei nº 6.001/73 (Estatuto

do Índio) possui inequívoca inspiração ditatorial e opressora de direitos, haja vista o

regime de governo em vigor na época. Foi editada quando o olhar constitucional no

trato da questão indígena era outro, sustentando-se na teoria do assimilacionismo ou

integracionismo - não recepcionada pela Constituição Federal vigente. Tal fato é

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inclusive lembrado pelo Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (volume 2 –

texto 5 – item b.6), publicado em 10 de dezembro de 20144. Na oportunidade, a CNV

asseverou que o EI tornou “legais” (à época) práticas condenáveis de assimilacionismo

forçado de índios, em claro intuito de etnocídio e/ou descaracterização dessas

sociedades.

De outro norte, a Convenção nº 169 da OIT foi inserta em nosso

ordenamento jurídico em 2004, tratando a matéria de modo totalmente diverso,

inspirada na teoria da autodeterminação dos povos indígenas, ocorrendo verdadeira ab-

rogação do conceito anterior, devendo ser este o único parâmetro para o reconhecimento

dos povos indígenas.

Ademais, a decisão ora recorrida incide num claro etnocentrismo, na

medida em que deixa clara sua dificuldade em pensar as diferenças, de observar o

mundo com os olhos dos outros, nos caso, dos indígenas. A compreensão de

etnocentrismo pode ser extraída das lições do antropólogo, professor e filósofo francês

Claude Lévi-Strauss, sem dúvida alguma um dos maiores pensadores do século XX,

considerado o fundador da antropologia estruturalista e inspirador de muitos intelectuais

modernos. Segundo o filósofo, é equívoca a afirmação de igualdade natural para todos,

uma vez não ser possível abandonar-se as diversidades e identidades múltiplas.

Portanto, é errôneo contemplar-se a natureza humana em meio a uma abstração

igualitária. Conforme Lévi-Strauss, o homem se realiza em culturas tradicionais e as

modificações (que são inerentes e inevitáveis) explicam-se em função de circunstâncias

espaciotemporais, mas nem por isso elimina as identidades específicas.5

Nesse esteio, cumpre destacar que o fenômeno da etnogênese ou

emergência étnica não representa o surgimento de “novos ou falsos índios”, como

equivocadamente entende o Juiz na sentença ora recorrida. A etnogênese representa, a

bem da verdade, um movimento das minorias étnicas em busca de sua autoafirmação

enquanto grupos sociais diferenciados, face a necessidade de reavivamento dos laços

culturais e sociais próprios, em virtude da perniciosa e crescente ameaça que suportaram

(e continuam a suportar) a partir de condutas opressivas de outros agentes sociais e até

4 O aludido Relatório pode ser facilmente visualizado no link: http://www.cnv.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=571

5 Nesse diapasão, verificar o épico Ensaio Raça e História, de Claude Lévi-Strauss, facilmente encontrado na rede mundial de computadores.

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mesmo do Estado.

A propósito, à fl. 83 da sentença, o juízo prolator dá uma demonstração

clara de sua incompreensão técnica e terminológica acerca do que seja etnogênese e

autorreconhecimento, na medida em que equipara os conceitos, vislumbrando-os como

sinônimos.

A real definição de etnogênese ou emergência étnica pode ser melhor

depreendida a partir dos Pareceres Técnicos que acompanham este recurso. A fim de

evitar mera repetição, faz-se remissão a tais documentos, lavrados por cientistas da mais

elevada qualificação técnica

c) Tradicionalidade, permanência e “originariedade” das terras indígenas

A terra, para as sociedades indígenas, configura-se como importante

instrumento para a manutenção da união do grupo, possibilitando-se, assim, sua

continuidade ao longo do tempo, a preservação de sua cultura diferenciada, bem como

de seus valores e modos próprios de vida. Assim, privados de suas terras, os índios

tendem a se dispersarem. Nesse diapasão, “a perda da identidade coletiva para os

integrantes destes grupos costuma gerar crises profundas, intenso sofrimento e uma

sensação de desamparo e de desorientação, que dificilmente encontram paralelo entre

os integrantes da cultura capitalista de massas. Mutatis mutandis, romper os laços de

um índio ou de um quilombola com o seu grupo étnico e com território

tradicionalmente ocupado é muito mais do que impor o exílio do seu país para um

típico ocidental”6.

É bem verdade que o Supremo Tribunal Federal, através da Súmula nº

650, pacificou entendimento que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios não

alcançam as terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em

passado remoto.

Entretanto, tal entendimento sumulado, apesar de válido do ponto de

6 SARMENTO, Daniel Antônio de Moraes. A garantia do direito à posse dos remanescentes de quilombos antes da desapropriação. Artigo encontrado no sítio eletrônico da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal.

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vista jurídico, não se aplica ao caso da Terra Indígena Maró. Frise-se: trata-se de

território indígena devidamente delimitado pela Fundação Nacional do Índio, que,

mediante estudos técnicos legalmente realizados e devidamente publicados, atestou,

irretorquivelmente, que se trata de área de ocupação tradicional dos povos Borari e

Arapium. Se algum órgão está legalmente habilitado para afirmar o contrário, esse

órgão é a FUNAI, que, por meio da legislação nacional pertinente, especialmente do

Decreto nº 1.775/96, possui o papel de identificar e delimitar territórios de ocupação

tradicional indígena. Jamais o Judiciário poderia arvorar-se nesse mister, sob pena de

inequívoca violação ao princípio da separação constitucional dos poderes, conforme

restou sobejamente demonstrado acima.

A sentença aduz, ainda, que não teria ficado configurado o caráter de

permanência dos povos Borari e Arapium na área delimitada. Mais uma vez incide aqui

uma clara violação ao princípio da separação dos poderes. Tal papel incumbe ao órgão

indigenista. Ademais, confundiu o douto magistrado a época em que houve o levante

coletivo de auto-afirmação das identidades indígenas dos povos Borari e Arapium

(meados da década de 1990) com o marco inicial de ocupação do território por tais

populações, o que ocorreu em data substancialmente anterior. Este fato é reconhecido de

forma implícita pelo próprio juiz prolator da sentença, na medida em que ele atribui

identidade dos indígenas como ribeirinhos e afirma que eles estão ocupando a região de

modo secular. Ora, tratam-se das mesmas pessoas e gerações! Indígenas ou ribeirinhos,

o juiz reconhece: estão lá há séculos! Como pode, de modo claramente paradoxal,

afirmar a sentença que os auto-identificados indígenas (e com de acordo da FUNAI,

haja vista o RCID publicado) não estão lá quando da promulgação da atual Constituição

Federal? Eis um nítido contrassenso!

Outra atecnia cometida pela sentença é desvirtuar o conceito de

originariedade de terras indígenas. Segundo o juiz, “o laudo antropológico não

forneceu qualquer evidência de que os pretendentes à condição de indígenas sejam

descendentes das extintas etnias arapium e borari” (fl. 9 da sentença). Mais adiante, a

decisão ora recorrida assevera que inexistem traços distintivos das etnias acima citadas

das demais comunidades rurais amazônicas.

Ora nobre julgadores, quando a Constituição Federal de 1988, no caput

do seu artigo 231, assevera que são reconhecidos aos índios “os direitos originários

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sobre as terras que tradicionalmente ocupam” pretendeu a Carta Magna deixar claro

que os direitos territoriais das sociedades indígenas precedem à promulgação da própria

lei suprema. Precede, inclusive, a criação dos entes federativos brasileiros. É essa a

interpretação acerca do termo “originariedade” que o Supremo Tribunal Federal tem

feito sempre que se pronuncia sobre o tema. Jamais, em nenhum momento,

originariedade de terras indígenas está relacionada à identidade estigmatizada de um

grupo. Jamais, em nenhum momento, originariedade está vinculada a conceitos

compartimentalizados e etnocêntricos de identidades étnicas a partir de práticas

culturais exclusivas ou sincréticas. Percebe-se, portanto, que a noção de originariedade

trazida pelo douto juiz prolator da sentença não é a mesma que de forma pacífica e

reiterada traz à tona a Carta Magna de 1988 e a Suprema Corte deste país.

Por sua vez, a também expressão constitucional “terras tradicionalmente

ocupadas pelos índios” despossui qualquer vínculo com a questão temporal de sua

ocupação, mas sim com o modo tradicional que se efetiva a utilização do território,

devendo ser observada sua organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e

outros aspectos relevantes que demonstrem que a relação dos indígenas com a terra

ultrapassa qualquer compreensão privatista decorrente das normas de direito civil.

Afinal, não se trata de simples ocupação para fins de exploração. Trata-se de uma

relação sobretudo cosmológica com a terra, algo que poucos ocidentais consegue

mensurar.

A Constituição Federal estabelece que as terras tradicionalmente

ocupadas pelo índios constituem bens da União e que só a ela compete legislar sobre

populações indígenas (artigos 20, XI; e 22, XIV, da Carta da República). Transcreva-se,

por oportuno, mencionadas disposições constitucionais:

Art. 20. São bens da União: [...]

XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: [...]

XIV - populações indígenas;

A Lei Fundamental também conferiu proteção às manifestações das

culturas indígenas (artigo 215, § 1º), reconhecendo aos índios sua organização social,

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costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que

tradicionalmente ocupam. Nesse sentido, o constituinte atribuiu à União o poder-dever

de demarcar as terras indígenas, bem como protegê-las, inclusive seus bens,

esclarecendo:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,

crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente

ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter

permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à

preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua

reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse

permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos

lagos nelas existentes. […]

§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos

sobre elas, imprescritíveis.

§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum"

do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua

população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso

Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por

objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a

exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes,

ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei

complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações

contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de

boa fé.

O direito dos índios às suas terras é um direito constitucional

fundamental. O fundamento jurídico e histórico desse direito é a ocupação originária,

tradicional e imemorial de suas terras. As terras indígenas são bens públicos federais,

sendo reconhecida a posse permanente e o usufruto exclusivo dos índios sobre elas,

ficando a União como nua-proprietária (arts. 20, inc. XI, e 231, § 2º, CR). Nesse

sentido, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras

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indígenas são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos e não gerando

indenização, salvo quanto às benfeitorias derivadas de ocupação de boa-fé.

O traço da originalidade do direito dos índios foi apontado pelo Supremo

Tribunal Federal, que ressaltou sua anterioridade em relação a outros direitos, até

mesmo no tocante ao nascimento das unidades federadas:

Todas as "terras indígenas" são um bem público federal (inciso XI do art. 20 da CF), o

que não significa dizer que o ato em si da demarcação extinga ou amesquinhe qualquer

unidade federada. Primeiro, porque as unidades federadas pós-Constituição de 1988 já

nascem com seu território jungido ao regime constitucional de preexistência dos

direitos originários dos índios sobre as terras por eles "tradicionalmente ocupadas".

(...)

DIREITOS "ORIGINÁRIOS". Os direitos dos índios sobre as terras que

tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente "reconhecidos", e não

simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza

declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica

ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de "originários", a

traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre

pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos

de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição

declarou como "nulos e extintos" (§ 6º do art. 231 da CF). (Caso da Terra Indígena

Raposa Serra do Sol - Pet 3388 / RR, Min. Carlos Britto, 19/03/2009)

A posse e o usufruto dos índios sobre suas terras não se identificam com

os institutos tradicionais civilistas, não se aplicando a eles a disciplina comum dos

Direitos Reais do Código Civil e da proteção possessória do Código de Processo Civil.

Trata-se de posse e usufruto tradicionais, institutos de Direito Constitucional, como bem

fixou o Supremo Tribunal Federal:

O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de

Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Donde a clara

intelecção de que OS ARTIGOS 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

CONSTITUEM UM COMPLETO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA.

(Caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol - Pet 3388 / RR, Min. Carlos Britto,

19/03/2009)

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A demarcação de terras indígenas é encarada pelo Supremo Tribunal

Federal como “capítulo avançado do constitucionalismo fraternal”:

Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou

solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um

novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-

valor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens

historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações

afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure

meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua

identidade somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui

no convívio com os não-índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é

perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não uma

subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar

ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização constitucional do valor da

inclusão comunitária pela via da identidade étnica. (Caso da Terra Indígena Raposa

Serra do Sol - Pet 3388 / RR, Min. Carlos Britto, 19/03/2009)

Outrossim, relativamente ao domínio das terras indígenas, a Carta Magna

de 1988 asseverou sua inalienabilidade e a indisponibilidade, determinando, ademais, a

imprescritibilidade dos direitos que sobre elas recaem (artigo 231, §4º).

Verifica-se, portanto, que, tratando-se de direito indigenista, a relação

entre o índio e a terra não pode ser regida pelas normas do Código Civil, uma vez que

extrapola a esfera privada, pois não é uma utilização para simples exploração, mas para

a sobrevivência física e cultural. Assim, toda a área utilizada pelos índios em qualquer

manifestação cultural, os locais de caça, pesca e cultivo, ou seja, todas as atividades de

manutenção de sua organização social e econômica é que determinam a posse das terras.

Nesse sentido estabelecem os artigos 13 e 14 da Convenção OIT nº 169,

de 07/06/89, abaixo transcritos:

PARTE II – TERRA

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Artigo 13

Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão

respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos

povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com

ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e,

particularmente, os aspectos coletivos dessa relação.

A utilização do termo "terras" nos artigos 15 e 16 deverá incluir o conceito de

território, o que abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos

interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma.

Artigo 14

Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de

posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos

apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos

povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas

por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas

atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada

especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.

Os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar

as terras que os povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a

proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse.

Deverão ser instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema

jurídico nacional para solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos

povos interessados.

Observa-se, portanto, que o processo de demarcação é o meio

administrativo para explicitar os limites do território tradicionalmente ocupado pelos

povos indígenas. É dever da União Federal e da Fundação Nacional do Índio, que busca

com a demarcação de terras indígenas: 1) resgatar uma dívida histórica com os

primeiros habitantes destas terras; 2) propiciar as condições fundamentais para a

sobrevivência física e cultural desses povos; e 3) preservar a diversidade cultural

brasileira. Tudo isso em cumprimento ao que é determinado pelo caput do artigo 231 da

Constituição Federal.

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Sempre que uma comunidade indígena possuir direitos sobre uma

determinada área, nos termos do § 1º do artigo 231 da Constituição Federal, o poder

público terá o dever de identificá-la e delimitá-la, de realizar a demarcação física dos

seus limites, de registrá-la em cartórios de registro de imóveis e protegê-la. Tais atos

vinculam-se ao caput do artigo 231, não podendo a União e a FUNAI deixar de

promovê-los.

Nesse sentido, constata-se que as determinações legais existentes são per

se suficientes para garantir o reconhecimento dos direitos indígenas sobre as terras que

tradicionalmente ocupam, independentemente da sua demarcação física. Porém, a ação

demarcatória é fundamental e urgente enquanto ato governamental de reconhecimento,

objetivando definir a real extensão da posse indígena a fim de assegurar a proteção dos

limites demarcados e permitir o encaminhamento da questão fundiária nacional.

Em suma, é o processo de demarcação o meio administrativo para

explicitar os limites do território tradicionalmente ocupado pelos povos indígenas,

cabendo à União proceder à demarcação administrativa das referidas terras, mediante

iniciativa e orientação do órgão federal indigenista, a FUNAI.

No Encontro Continental dos Povos Indígenas ocorrido em 1990, em

Quito, reconheceu-se que o direito ao território é uma demanda fundamental dos povos

indígenas no continente americano.

Nesse mesmo sentido, a Carta Republicana de 1988, no cenário de

proteção da diversidade cultural e reconhecimento dos direitos dos povos indígenas

sobre suas terras, tomou como prioridade a demarcação desses territórios, fixando

inclusive prazo para que a União concluísse os trabalhos. Leia-se o art. 67 das

Disposições Constitucionais Transitórias:

Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo

de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.

Importante destacar, neste ponto, a posição do Supremo Tribunal Federal

acerca do dispositivo constitucional acima transcrito, in verbis: “Esta Corte possui

entendimento no sentido de que o marco temporal previsto no art. 67 do ADCT não é

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decadencial, mas que se trata de um prazo programático para conclusão de

demarcações de terras indígenas dentro de um período razoável. Precedentes.” (RMS

26212, Relator Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, julgado em 03/05/2011,

Dje-094, Divulgado em 18/05/2011, Publicado em 19/05/2011) (grifo aposto). A

propósito, lembremos do princípio da duração razoável do processo, o qual resta

expressamente previsto no art. 5º inciso LXXVIII, da Carta Magna. Nesse mesmo

sentido, a Lei nº 6.001/73 (Estatuto do Índio) também previu o prazo máximo de 05

(cinco) anos, contados de sua publicação, para que o Poder Executivo demarcasse as

terras indígenas ainda não demarcadas. Na hipótese dos autos, facilmente se percebe,

portanto, que todos os prazos razoáveis foram extrapolados, eis que ultrapassados mais

de 25 (vinte e cinco) anos desde a promulgação do atual texto constitucional.

d) Teoria do Indigenato X Teoria do “Fato Indígena”

Apesar de lavrada em 106 laudas, são raros os trechos em que a sentença

ora impugnada se debruça sobre aspectos eminentemente jurídicos válidos. E quando o

faz, reinterpreta, de modo um tanto quanto peculiar, conceitos e julgados. Basta uma

simples leitura da aludida manifestação judicial para que facilmente se perceba que se

trata de um arremedo de inúmeros “copia e cola” descontextualizados e desvirtuados (e

por vezes sem creditar a fonte respectiva) de alguns laudos e passagens literárias de

pseudo cunho histórico.

Num desses raros momentos de análise jurídica da demanda, o juízo a

quo assevera que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da PET 3.388/RR (Caso

Raposa Serra do Sol) teria firmado posicionamento definitivo de abandono da

denominada Teoria do Indigenato, tendo sido supostamente substituída pela tal Teoria

do “Fato Indígena”. Pois bem, vejamos se é isso mesmo que decidiu a Suprema Corte!

Mas vejamos inicialmente o que se depreende de cada uma dessas “teorias”.

Através do indigenato, assevera-se que as terras em que se situam e são

utilizadas pelos índios para a realização de atividades produtivas e imprescindíveis à

preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar e reprodução física e

cultural do grupo não dependem tão somente do lapso temporal de ocupação, mas

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sobretudo do modo tradicional em que se efetiva a referida utilização, observadas sua

organização social, costumes, crenças e tradições (art. 231, § 1º, CF/88).

Tal compreensão advém, segundo José Afonso da Silva, desde o Alvará

de 01 de abril de 1680, posteriormente confirmado pela Lei de 06.06.1755. Nas palavras

do citado e ilustre constitucionalista, in verbis:

“o indigenato não se confunde com a ocupação, com a mera posse. O

indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito

congênito, enquanto a ocupação é um título adquirido.

(…)

...em face do direito constitucional indigenista, relativamente aos índios com

habitação permanente, não há uma simples posse, mas um reconhecido direito

originário e preliminarmente reservado a eles.

(…)

…a relação entre o indígena e suas terras não se rege pelas normas de direito

civil. Sua posse extrapola a órbita puramente privada, porque não é e nunca foi

uma simples ocupação da terra para explorá-la, mas base de habitat, no sentido

ecológico de interação do conjunto de elementos naturais e culturais que

propiciam o desenvolvimento equilibrado da vida humana”.7

Outro importante constitucionalista, Uadi Lammêgo Bulos, leciona no

mesmo sentido:

“Chama-se indigenato a fonte primária da posse das terras originariamente

pertencentes aos índios.

Por seu intermédio, reservam-se aos índios as terras que lhes pertenciam, as

quais não são devolutas, mas originariamente reservadas, ou, como preferiu

João Mendes Júnior, terras congenitamente possuídas, na forma do Alvará de

1º de abril de 1680.

(…)

A previsão do indigenato na Constituição de 1988 demonstra que as relações

7 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 868/870.

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das comunidades indígenas com suas terras excede o âmbito privatístico. A

posse das glebas, tradicionalmente ocupadas pelos índios, vai muito além das

normas de Direito Civil, porque há um sentido cultural, ecológico, humano,

envolvido em tudo isso.

Ora, as terras dos índios não são fontes de negócios, nem negociatas, porque

constituem seu hábitat, seu modus vivendi, coisa que o individualismo das

normas civilísticas não consegue tutelar.

Daí a importância da tutela constitucional do indigenato, pois é nos preceitos

constitucionais que a matéria adquire o seu merecido lugar de destaque, a

começar pela previsão das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.”8

Dessa maneira, facilmente se percebe, a partir do que nos ensinam os

doutrinadores acima, bem como a partir do que se depreende de uma interpretação

quase que literal da Lei Maior em vigor, que o ordenamento jurídico brasileiro adota a

interpretação holística dos territórios indígenas, estando inequivocamente alheia ao

sistema correlato exigência idêntica a que aplicada a propriedades particulares, regidas

que são pelas normas privatistas e cujo marco temporal de ocupação ou posse se

apresenta relevante.

Mas frise-se, desde logo: no caso da Terra Indígena Maró nem mesmo o

juiz de 1ª instância lança dúvidas de que os indígenas (denominados por ele de

“ribeirinhos”) estão na área delimitada há séculos, razão pela qual o frágil esforço

argumentativo desenvolvido na sentença em tentar demonstrar que o Supremo teria

adotado a pseudo Teoria do “Fato Indígena” e consequentemente fixado eventual marco

temporal de 05.10.1988 (data de promulgação da atual Constituição) para aferir a

permanência da ocupação dos povos Borari e Arapium, não se sustenta, tampouco serve

à análise da hipótese dos autos. Pois, repise-se, não há questionamento se as gerações de

famílias que reivindicam a área da TI Maró estão lá de modo secular! Indígenas ou

ribeirinhas (como indevidamente questiona o juiz), tratam-se das mesmas pessoas e

gerações!

Olvida a sentença que no julgamento dos Embargos de Declaração na

PET 3.388/RR (o mesmo caso que foi utilizado pelo juiz prolator da sentença para

8 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 1339/1340.

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sustentar sua tese), cujo Relator foi o proeminente constitucionalista Luis Roberto

Barroso), o STF decidiu que as condicionantes e entendimentos fixados no Caso Raposa

Serra do Sol não possuem caráter vinculante, aplicando-se tão somente ao caso

específico. Em seu voto, que foi o voto condutor da corrente adotada, o Min. Barroso

afirmou, expressamente, que a decisão do STF, ao deliberar acerca de tais

condicionantes, foi atípica e deve estar longe de ser seguida como padrão. O Ministro

foi mais enfático: afirmou, categoricamente, que se trata de um padrão ruim de

julgamento, devendo ser interpretado, portanto, como um precedente a não ser seguido.

A propósito:

EMENTA: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AÇÃO POPULAR.

DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL.

54. Essa circunstância, porém, não produz uma transformação da coisa julgada

em ato normativo geral e abstrato, vinculante para outros eventuais processos

que discutam matéria similar. No atual estado da arte, as decisões do Supremo

Tribunal Federal não possuem, sempre e em todos os casos, caráter vinculante.

Não se aplica, no Brasil, o modelo de stare decisis em vigor nos países do

common law, no qual as razões de decidir adotadas pelos tribunais superiores

vinculam os órgãos inferiores. Embora essa regra admita exceções, entre elas

não se encontram as sentenças e acórdãos proferidos em sede de ação popular,

ainda que emanados deste Tribunal.

55. Dessa forma a decisão proferida na Pet 3.388/RR não vincula juízes e

tribunais quando do exame de outros processos, relativos a terras indígenas

diversas. Como destacou o Ministro Carlos Ayres Britto, “a presente ação tem

por objeto tão-somente a Terra Indígena Raposa Serra do Sol” (fl. 336). Vale

notar que essa linha já vem sendo observada pelo Tribunal: foram extintas

monocraticamente várias reclamações que pretendiam a extensão automática

da decisão a outras áreas demarcadas (Rcl 8.070 MC/MS, dec. Min. Carlos

Ayres Britto [RI/STF, art. 38, I], DJe 24.04.2009; Rcl 15.668/DF, Rel. Min.

Ricardo Lewandowski, DJe 13.05.2013; Rcl 15.051/DF, Rel. Min. Ricardo

Lewandowski, DJe 18.12.2012; Rcl 13.769/DF, Rel. Min. Ricardo

Lewandowski, DJe 28.05.2012). (Pet 3388 ED, julgado em 23/10/2013)

Ademais, ainda que se suponha que o STF venha a fixar o marco

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temporal de 05.10.1988, adotando a tal Teoria do “Fato Indígena”9, em abandono à

escorreita Teoria do Indigenato, é importante destacar que a suprema Corte entendeu

que a habitação permanente na data acima indicada é apenas um dos fatores a serem

identificados, devendo ser considerados, simultaneamente, parâmetros econômicos,

culturais, ecológicos, demográficos, etno-históricos, cosmológicos, todos esses

sopesados quando da realização do Relatório Circunstanciado de Identificação e

Delimitação, que, no caso da TI Maró, já havia sido devidamente confeccionado e

publicado no Diário Oficial da União e do Estado do Pará.

Além de tais fatores, segundo o STF, os estudos (RCID) devem também

observar o caráter de perdurabilidade no sentido anímico e psicológico que a

comunidade indígena possui com a terra, de modo que “a tradicionalidade da posse

nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988,

a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-

índios”. Em outros termos, ao avaliar provisoriamente a fixação do marco temporal de

05.10.1988, o STF fez constar ressalva inequívoca, qual seja, de que não se tem como

perdida a posse tradicional indígena quando a mesma tiver sido perdida, à época da

promulgação da Constituição, em decorrência de atos de expropriação territorial

praticados por não-índios.

Dessa maneira, pontuou a Colenda Corte que, se na data da promulgação

da Carta Política de 1988, a área objeto de demarcação não estivesse na posse exclusiva

dos índios em virtude de esbulho cometido por não-índios, e se os índios mantiveram-se

resistentes na luta pelo reconhecimento de seus direitos, a área questionada deve ser,

sim, reconhecida como indígena.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), inclusive, já se

manifestou, em diversos julgados que envolvem propriedades coletivas, no sentido de

que se mantidos os vínculos com o território, é irrelevante o fato de que dele tenham

sido afastados à força os povos indígenas ou tribais10.

9 Importante: a questão ainda não está totalmente definida, uma vez que ainda será levada a Plenário.

10 Vejamos como exemplo dessa assertiva o caso julgado em Agosto de 2010 pela CIDH: Comunidade indígena Xákmok Kásek vs. Paraguai. Facilmente lido na obra Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos / Secretaria Nacional de Justiça, Comissão de Anistia, Corte Interamericana de Direitos Humanos. Tradução da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Brasília: Ministério da Justiça, 2014, p. 361/427.

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Entretanto, mais uma vez se faz necessária a aproximação das recentes

decisões do Supremo e da CIDH e que acima foram avaliadas com a realidade do caso

concreto da Terra Indígena Maró. Não há registro nos autos (nem mesmo a sentença

questiona isso) de que as pessoas que formam parte dos povos Borari e Arapium (mas

que o juiz insiste em denominá-las de “ribeirinhas”) não residiam, em 05.10.1988, na

área devidamente delimitada pela FUNAI. O que o juiz faz, a bem da verdade, é uma

confusão conceitual e temporal, arguindo que a reivindicação coletiva desses grupos

pelo reconhecimento dos direitos assegurados às populações indígenas (que se deu em

meados da década de 1990) ocorreu na mesma época de reocupação territorial.

Ademais, basta uma simples leitura dos arts. 13 e 14 da Convenção nº

169/OIT, que, repise-se, goza de status supralegal no ordenamento jurídico nacional,

para que se depreenda que em nenhum momento é estabelecido qualquer marco

temporal para a caracterização das terras que são asseguradas aos povos indígenas.

Aliás, nem a Constituição estabelece. Ao contrário, rejeita, conforme fartamente

demonstrado acima.

Na realidade, a sentença ora recorrida incide na mesma prática que

tenciona historiar, qual seja, o etnocídio de povos indígenas. Trata-se de mais um

expediente de esbulho renitente que vêm sofrendo tais populações desde que as Cortes

européias invadiram o Brasil nos idos do século XVI. Afinal, invisibiliza etnias

indígenas existentes e os insere na massa da sociedade envolvente homogênea, tal como

fizeram os colonizadores.

Abre-se mão, com a sentença, da beleza e riqueza de vivermos todos

numa sociedade pluriétnica, em que as diferentes formas de viver, fazer e criar são

respeitadas e valorizadas, nos termos do que determina o art. 216, caput, e inciso II, da

Lei Maior.

e) Usufruto exclusivo dos recursos naturais existentes na área pelos povos

indígenas

A Terra Indígena Maró está localizada na margem esquerda do rio Maró,

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município de Santarém/PA. Com uma população aproximada de 239 (duzentos e trinta e

nove) habitantes, todos das etnias indígenas Borari e Arapium – uma vez que os

moradores que compõem as Associações autoras da outra demanda julgada pela

sentença ora recorrida residem fora dos limites da área delimitada como TI, conforme se

pode facilmente observar a partir da análise da documentação que fora anexada aos

autos pelo MPF quando da interposição dos Embargos de Declaração e da

fundamentação realizada em tópico específico acima. 43 (quarenta e três) famílias

constituem as aldeias Novo Lugar, Cachoeira do Maró e São José III, em uma área de

42.373 ha.

Encontra-se geograficamente sobreposta à Gleba Nova Olinda e tem sido

palco de intensos conflitos que perduram ao longo dos últimos anos, conflitos estes

motivados pela indefinição fundiária e sobretudo pela disputa dos recursos naturais.

Em 2000, o Instituto de Terras do Pará (ITERPA) deu início aos trabalhos

para a destinação e delimitação da região da Nova Olinda. Em meio às diligências,

restou claro que o governo do Pará priorizaria atividades econômicas, e não o interesse

das comunidades tradicionais lá existentes. Tanto que já se verificava a presença e a

movimentação de pessoas estranhas requerendo porções territoriais11.

Em meados de 2003, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos

Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) realizou fiscalizações na área e constatou

intensa grilagem de terras, desmatamento e exploração ilegal de madeira, violações dos

direitos das comunidades locais e dos trabalhadores, presença de grupos armados, bem

como cooptação de lideranças representativas. Ao invés de coibir tais práticas, o Estado

do Pará resolveu, em 2006, criar uma regularização fundiária provisória, concedendo na

área 4 (quatro) Autorizações de Imóvel Público (ADIP's) e 25 (vinte e cinco) lotes da

gleba a pessoas diversas dos antigos habitantes, sobrepondo áreas ocupadas pelas

antigas populações e de uso dos Borari e Arapium, acirrando ainda mais o conflito sobre

a titularidade das terras.

Simultaneamente a isso, a “criminalização” e a retaliação das lideranças

indígenas e das demais populações tradicionais que habitavam a área crescia a passos

11 Informação extraída da obra Casos emblemáticos e experiências de mediação: análise para uma cultura institucional de soluções alternativas de conflitos fundiários rurais / coordenadores Sérgio Sauer, Carlos Frederico Marés. - Brasília: Ministério da Justiça, secretaria de Reforma do Judiciário, 2013, p. 58.

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largos. Constante era a veiculação em mídia local de notícias que tentavam implantar o

senso comum de que havia a presença de “falsos índios” na região da gleba Nova

Olinda.

Conforme sobejamente demonstrado no tópico em que se argui a

ilegitimidade ativa das Associações e a ausência de interesse processual das mesmas

(evita-se a mera repetição), é inequívoco constatar que as únicas verdadeiramente

interessadas na não demarcação da TI Maró são empresas que atuam no ramo

madeireiro.

Atento a tais ilicitudes e aos aspectos factuais de todo escusos

denunciados acima, o IBAMA, contando com o apoio do Ministério Público Federal

(MPF) e da própria Fundação Nacional do Índio (FUNAI), realizou, em Novembro de

2014, importante operação fiscalizatória na área delimitada como TI Maró. Como

resultado, vários Planos de Manejo Florestais (PMFS)12 incidentes na área restaram

embargados administrativamente, justamente por violarem o art. 231, § 2º, da CF/88,

que estabelece o usufruto exclusivo dos recursos naturais existentes em território

indígena aos povos que nele habitam. Foi uma importante vitória dos Borari e Arapium

na luta que heroicamente empreendem pelo reconhecimento de seus direitos

constitucionalmente assegurados. A propósito, importante destacar que tal operação

concretizada pela autarquia federal ambiental foi precedida de sucessivas reclamações e

protestos dos indígenas, conforme se pode observar de algumas reportagens que seguem

anexo a esta manifestação.

Coincidentemente, semanas depois, a aludida operação restou

prejudicada, face justamente o advento da sentença ora impugnada, que,

indubitavelmente, colabora, em larga medida, para a violação do adrede mencionado

art. 231, § 2º, da Lei Maior.

Outrossim, a afirmação do juízo a quo de que os povos Borari e Arapium

apenas se auto-identificaram como indígenas por motivos tão somente ambientais

(estimulados que teriam sido por ONGs ambientalistas, segundo o juiz) é de todo

12 Tais Planos de Manejo estavam sendo autorizados pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Pará (SEMA/PA), em clara afronta a Lei Complementar nº 140/2011, que estabelece, em seu art. 7º, inciso XIV, alínea “c)”, o dever do IBAMA (órgão da União) de fiscalizar e licenciar eventuais empreendimentos e atividades que impactem terras indígenas. O descumprimento a tal preceito normativo também ensejou a operação acima citada.

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reducionista, incidindo numa imprecisão técnica patente, desconsiderando-se que a luta

pela valorização da identidade necessariamente perpassa pela necessidade de

manutenção e preservação dos recursos naturais indispensáveis à reprodução física e

cultural de um grupo étnico que possui relação intrínseca com a natureza.

f) Violação a princípios basilares de direito processual civil

A sentença, a um só tempo, malferiu vários princípios norteadores do

processo civil brasileiro, quais sejam: imparcialidade, contraditório, adstrição do juiz

aos pedidos das partes, livre convencimento motivado, devido processo legal e inércia

da jurisdição. Senão vejamos.

A todo instante, o juiz prolator da sentença deslegitimava a pretensão dos

povos Borari e Arapium em ver seus direitos territoriais devidamente reconhecidos, nos

termos do que determina a Constituição de 1988, sob o fundamento de que

Organizações Não Governamentais (ONGs) forjaram e fomentaram a auto-identificação

dos indígenas. Tal argumento não se sustenta. Não encontra qualquer respaldo nas

provas constantes dos autos, o que viola, inequivocamente, o princípio do livre

convencimento motivado do julgador. Viola, ainda, o princípio da imparcialidade,

uma vez que carrega consigo uma carga valorativa totalmente impregnada de prévios

conceitos sustentados apenas em ideologia própria e de todo refletida em um

pensamento hegemônico.

A propósito, vejamos a constatação da própria Fundação Nacional do

Índio, na Informação Técnica nº 12/CPT/2015:

54. Não merecem prosperar, portanto, argumentos que ressaltam a não

comprovação de uma ancestralidade, e que esta teria sido forjada a partir da

influência de indivíduos ou Organizações Não-Governamentais que teriam

persuadido as comunidades indígenas de Cachoeira do Maró, São José III e

Novo Lugar a se declararem indígenas. Tais argumentos, além de não terem

sido comprovados por elementos fáticos, incapazes de ultrapassar a mera

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suposição baseada em especulações e intrigas que perpassam os conflitos

fundiários observados na Gleba Nova Olinda, em nada ferem o direito das

referidas comunidades de se reconhecerem indígenas, dado o respaldo por elas

encontrado na legislação vigente.

55. Ademais, restam incabíveis as acusações trazidas nos autos de que Odair

José, o cacique Dadá, homenageado pelo Prêmio José Carlos Castro de Direitos

Humanos da OAB/Pará, versão 2007, estaria criando versões fantasiosas e

inverossímeis quanto a sua ancestralidade. Ao tentar desqualificar o cacique

com trechos de relatos fora de seu contexto original, citados entre as páginas 31

e 36 da sentença 3 , o juízo contribui para deslegitimar a luta das comunidades

indígenas do Rio Maró contra os grupos econômicos interessados na exploração

predatória da Gleba Nova Olinda.

56. Ressalte-se que o caos fundiário verificado na região da referida gleba se

deve menos ao reconhecimento das comunidades indígenas de Cachoeira do

Maró, São José III e Novo Lugar, do que à atuação predatória de grupos

madeireiros, interessados no apossamento das terras das referidas comunidades.

Ao se valerem da difamação, ameaças, criminalização de lideranças, torturas e

até mesmo tentativas de assassinato, tais grupos adotam estratégias seculares e

nefastas de organização fundiária que vêm sendo combatidas com afinco pela

edição de normativas que visam consolidar na República um direito que seja de

todos e não apenas de oligarquias, um direito que seja ligado aos diversos

modos de se relacionar com a terra e que vise não somente à sua exploração

econômica e esvazie o viés pluralista e fraternal de nossa Constituição Federal

de 1988.

Nas palavras de Rui Portanova, Desembargador do Tribunal de Justiça do

Rio Grande do Sul, professor adjunto da UFRS, e doutor em Direito e Letras, in verbis:

“A maior e mais importante limitação ao livre convencimento é a necessidade de

motivação das decisões. Aqui é que a doutrina e a jurisprudência devem exigir mais e

mais do julgador. Já que o subjetivismo do julgador é algo até desejável para que a

decisão atenda aos avanços democráticos que sepultaram a prova legal, é necessário

contar com outros mecanismos de controle do juiz. Quanto mais liberdade se der ao juiz,

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mais minuciosa deve ser sua sentença. Quanto mais responsabilidade se atribuir ao

julgador, mais clareza e publicidade há de se cobrar de quem julga”13

No que tange à imparcialidade, importa observar que a mesma não se

confunde com neutralidade, a qual é intangível de ser exigida de um magistrado, afinal

um juiz também é um ser social, e como tal possui suas visões gerais de mundo e

carrega em si valores pertinentes a sua formação, razão pela qual sempre cultivará

axiologias e ideologias que lhe são inerentes. O que se observa malferido na hipótese da

sentença ora impugnada é mesmo o princípio da imparcialidade, uma vez que não houve

equidistância mínima aos anseios das partes. Lembre-se, houve pedido de desistência

não aceito pelo juiz. Apenas laudos e provas carreados aos autos pelas “Associações”

foram sopesadas. Basta uma leitura sistêmica da sentença para que se perceba que o juiz

arvorou-se na condição até mesmo de parte, na medida em que defendeu (e não apenas

avaliou) as provas lançadas aos autos que, em tese, apresentavam-se contrárias aos

interesses dos indígenas.

Não se pode olvidar que o princípio da imparcialidade é, além de um

princípio de direito processual, um direito humano previsto no art. 10 da Declaração

Universal dos Direitos do Homem, contida na proclamação feita pela Assembleia Geral

das Nações Unidas, que, reunida em Paris, em 1948, fez constar:

“Toda pessoa tem direito, em condições de plena igualdade, de ser ouvida

publicamente e com justiça por um tribunal independente e imparcial, para

determinação de seus direitos e obrigações ou para exame de qualquer

acusação contra ela em matéria penal”

O citado professor Rui Portanova, oferta-nos, em lúcidas palavras, a

relevância de se observar, piamente, o princípio da imparcialidade do juízo:

“A imparcialidade é condição primordial para que um juiz atue. É questão inseparável e

inerente ao juiz não tomar partido, não favorecer qualquer parte, enfim, não ser a parte.

Em verdade, a expressão juiz imparcial é redundância e seria desnecessário falar em

imparcialidade, tal é a imanência existente entre juiz e imparcialidade. Quando o Estado

tirou do cidadão o direito à justiça privada e ao desforço pessoal, deu-lhe um terceiro

imparcial e independente para resolver seu conflito: o juiz. Assim, é direito fundamental

do cidadão um juiz imparcial e independente”14

13 PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 246/247.

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Nessa entoada, imperioso observar que a sentença (assim como faz em

relação a laudos antropológicos) incide num alongado expediente de “copia e cola” de

depoimentos de pessoas que reconhecidamente se contrapõem aos interesses dos

indígenas. A propósito, em tais entrevistas que são sobremaneira utilizadas como

fundamento na sentença não há a identificação do entrevistador, o que lança dúvidas

acerca da idoneidade de tais declarações. Já os próprios indígenas, principais

interessados no julgamento da lide? Nenhum deles teve voz e vez no processo,

tampouco na sentença ora atacada. Tal situação deixa clara a violação ao princípio do

contraditório, que também restou abrigado no art. 10 da Declaração Universal dos

Direitos do Homem, tal como se pôde depreender.

Assim como a imparcialidade, o contraditório é elemento inerente ao

processo. Não só! É inerente ao próprio modus democrático de se viver. Afinal, “está

implícita a participação do indivíduo na preparação do ato de poder”15. Lembremos:

os indígenas não foram sequer ouvidos previamente a um ato que “decide” (como se

isso fosse possível de suceder) suas identidades coletivas!

Outrossim, a sentença também viola o princípio da adstrição do juiz aos

fatos da causa e aos pedidos da parte, na medida em que, em nenhum momento (salvo

no relatório e em uma minúscula alínea do dispositivo), refere-se aos argumentos e

pedidos formulados pelo Ministério Público Federal, em especial a apreciação judicial

em relação à necessidade de observância do rito legal previsto no Decreto nº 1.775/96

(que disciplina o processo administrativo de demarcação de terras indígenas e

estabelece os prazos de tramitação), e sobretudo em relação à argumentação

(devidamente acompanhada de provas cabais) de que as “Associações” autoras

compreendem moradores de áreas situadas fora do perímetro delimitado como Terra

Indígena pela FUNAI e de que são manipuladas por empresas do ramo madeireiro

interessadas nos recursos florestais existentes na área. Repise-se: o juiz, no curso do

trâmite processual, reuniu as 2 demandas (a Ação Civil Pública manejada pelo MPF e a

Ação Anulatória manejada pelas Associações) sob a justificativa de julgá-las

simultaneamente. Entretanto, o que se observa é que apenas a Ação Anulatória das

Associações (a qual foi convertida, por vontade própria do julgador, em Ação Civil

14 PORTANOVA, Rui. Op. cit. p. 79.

15 PORTANOVA, Rui. Op. Cit. p. 161.

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Pública, o que mais uma vez demonstra a quebra da imparcialidade) foi tergiversada e

avaliada. Nenhum, sequer nenhum, pedido ou fundamento do Parquet federal, sejam os

constantes da petição inicial, sejam os constantes das manifestações posteriores,

inclusive os atravessados aos autos da Ação Anulatória, foram sopesados!

A propósito, é possível perceber, a partir da avaliação do andamento

processual de ambas as demandas, que o douto juiz prolator da sentença, desde que

assumiu a presidência dos feitos, os conduziu de modo a tornar possível (ou pelo menos

factível) o resultado final que ora se impugna. Vejamos, por exemplo, a revogação,

spont propria, da decisão liminar do Juiz Federal Francisco de Assis Garcês Castro

Júnior (fls. 237/239), que determinara o avanço do procedimento administrativo de

delimitação da TI, assim como a conversão, também por vontade própria, da Ação

Anulatória em Ação Civil Pública, e, por fim, o Despacho de conversão do feito em

diligência a fim de que fosse realizada pesquisa na internet acerca da suposta história de

inexistência de povos indígenas na região de Santarém/PA. Tais expedientes violam,

concomitantemente, o já citado princípio do contraditório assim como o princípio da

inércia da jurisdição.

g) Violação ao direito fundamental da liberdade de crença e convicção religiosa

A liberdade de culto foi introduzida no pensamento jurídico há bastante

tempo. Iniciou-se com a Declaração de Direitos da Virgínia (1776), o qual ditava que

“todos os homens têm igual direito ao livre exercício da religião, segundo os ditames da

consciência”. Logo depois, na França, em 1789, a Declaração de Direitos do Homem,

no seu artigo 10, determinava que “ninguém deve ser inquietado por suas opiniões

mesmo religiosas”.

No Brasil hodierno, a liberdade de crença e convicção religiosa resta de

todo assegurada na atual Constituição, que, em seu artigo 5º, estabelece, expressamente,

que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre

exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de

culto e a suas liturgias”.

Como decorrência lógica da liberdade de culto depreende-se que a

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externação espiritual de tal convicção reclama um espaço físico para tal manifestação,

que, no caso das populações indígenas, é, na grande maioria das vezes, o território que

tradicionalmente ocupam.

A propósito, vejamos o que lecionam os constitucionalistas Celso Ribeiro

Bastos e Ives Gandra da Silva Martins, in verbis:

“A religião não pode, como de resto acontece com as demais liberdades de pensamento,

contentar-se com a sua dimensão espiritual, isto é: enquanto realidade ínsita à alma do

indivíduo. Ela vai procurar necessariamente uma externação, que, diga-se de passagem,

demanda um aparato, um ritual, uma solenidade, mesmo que a manifestação do

pensamento não requer necessariamente”16

Outro importante doutrinador, Uadi Lammêgo Bulos, assevera:

“a liberdade de consciência é a liberdade de foro íntimo; igualmente o é a liberdade de

crença. Ambas logram o status de livre, porque ninguém pode obrigar outrem a pensar

deste ou daquele modo. É facultado a cada um conscientizar-se da concepção ou

diretriz de vida que melhor lhe aprouver. Também é inadmissível compelir alguém a

acreditar, piamente, nesta ou naquela religião, credo, teoria ou seita, porque a liberdade

de crença não permite. Tanto a liberdade de consciência como a liberdade de crença

situam-se no plano do intelecto, no recanto mais profundo da alma humana, e a

Constituição as declara invioláveis”17

Dessa maneira, resta fácil perceber que a sentença, ao se referir às

práticas culturais religiosas dos povos Borari e Arapium como “supostos rituais” (grifo

nosso), ofende frontalmente a liberdade de crença e de culto, na medida em que diminui

a relevância de tais práticas.

16 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 2 vol. 3 ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 54.

17 BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 5 ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 140.

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III.D.2 – DOS FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS E HISTÓRICOS

De antemão, cumpre destacar que a subdivisão ora proposta

(fundamentos estritamente jurídicos e fundamentos antropológicos e históricos) serve

apenas para fins didáticos. Na quadra atual, a interdisciplinariedade faz-se imperiosa,

sobretudo quando se estar a tratar de questões complexas como a destes autos. Em

hipótese alguma, a técnica jurídica estrita é capaz de resolver, sozinha, imbróglios tais

como os criados com a sentença ora recorrida. Deve-se recorrer, portanto, à

'metajuridicidade'.

Nesse diapasão, cabe-nos revelar que a sentença que aqui se impugna

causou um significativo mal estar na seio da ciência antropológica e histórica brasileira.

Tanto é verdade que a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), através da

Comissão de Assuntos Indígenas, veiculou Nota de Repúdio, intitulada de “A

(IN)JUSTIÇA E OS POVOS INDÍGENAS NO OESTE DO PARÁ: Nota sobre a sentença

judicial que nega a condição de indígenas ao povo Borari e Arapium” (em anexo).

A pedido do Ministério Público Federal, antropólogos e cientistas de

qualificações técnicas inquestionáveis debruçaram-se, imparcialmente, sobre o tema e

ofertaram seus conhecimentos no afã de proporcionar um melhor entendimento da

questão discutida nestes autos. Em apertada síntese, os Pareceres, além de apontarem

inúmeras impropriedades conceituais existentes na sentença, tergiversaram acerca da

relevância antropológica do princípio do autorreconhecimento, do conceito de

etnogênese ou emergência étnica, do histórico de ocupação da Terra Indígena

Maró, bem como da necessidade inequívoca de abandono de uma visão

estigmatizada acerca da etnicidade e práticas culturais das populações indígenas e

das demais minorias.

Os pareceristas foram: Eduardo Viveiros de Castro18, Jane Felipe

18Graduado em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestrado e doutorado em Antropologia Social pelo Museu Nacional-RJ. Professor-titular de Antropologia Social no Museu Nacional-RJ. Lecionou na École des Hautes Études em Sciences Sociales, na Universidade de Chicago e na Universidade de Cambridge. Autor de inúmeros artigos e livros que são considerados importantíssimos na antropologia brasileira e etnologia americanista. Idealizador de um conceito amplamente difundida nas academias nacionais e internacionais, qual seja, do perspectivismo ameríndio.

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Beltrão19 e Raphael Frederico Acioli Moreira da Silva20.

Importante também referenciar a Nota Técnica emitida por Gilberto

César Lopes Rodrigues21, que, de forma voluntária, procurou este órgão do Parquet a

fim de franquear sua percepção acerca dos fatos.

Não menos importante se apresenta a Informação Técnica nº

12/DPT/2015, da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), elaborada e assinada por 2

(duas) indigenistas especializadas (Sílvia Clímaco Mattos e Carolina Ribeiro Santana),

pela Coordenadora-Geral de Identificação e Delimitação Substituta (Nina Paiva

Almeida), e pelo Diretor de Proteção Territorial (Aluísio Ladeira Azanha), todos

servidores públicos do órgão indigenista. Tal Informação, além de nos ajudar a

compreender aspectos eminentemente antropológicos e históricos, estes últimos

sobretudo relativos à ocupação indígena na região da TI Maró, traz importantes

informações acerca da manipulação das Associações bem como do assédio constante

aos recursos naturais existentes pelas empresas do setor madeireiro.

Todos os documentos acima referidos seguirão em anexo a este recurso,

razão pela qual se evitará transcrições literais, sob pena de se incidir em mera repetição.

Entretanto, alerta-se que se faz necessária uma análise detida dos aludidos documentos,

que, indubitavelmente, contrariam, de forma científica, técnica e contextualizada, todos

os argumentos equivocadamente ventilados na sentença ora impugnada. Ademais, todas

as informações contidas nestes documentos são essenciais para a compreensão da

questão, motivo pelo qual qualquer fragmentação pra fins de transcrição representaria, a

19 Mestre em Antropologia pela Universidade de Brasília (UnB) e doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Docente associada, exercendo atividades junto à Universidade Federal do Pará (UFPA), lotada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, com atuação nos programas de pós-graduação em Antropologia e em Direito. Vice-presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) - biênio 2015/2016. Além do Parecer, segue em anexo a este recurso o artigo, também de autoria de Jane Felipe Beltrão, intitulado Pertenças, territórios e fronteiras entre os povos indígenas dos rios Tapajós e Arapiuns versus o Estado brasileiro, através do qual se depreende que a afirmação do juízo prolator da sentença de que inexistem populações indígenas nos rios Tapajós (baixo curso) e Arapiuns é inverossímil.

20 Analista do Ministério Público da União/Perito em Antropologia. Assim como Eduardo Viveiros de Castro, Rapahel Frederico Acioli teve, na sentença, seus posicionamentos completamente desvirtuados, o que claramente demonstra a falta de fidelidade científica do douto magistrado prolator da sentença.

21 Professor Assistente II do Programa de Educação da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), doutorando do PPG da Faculdade de Educação da Universidade de Campinas (UNICAMP), Mestre em Filosofia pelo PPG em Filosofia da Universidade Estadual Paulista.

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bem da verdade, em sombreamento de aspectos importantes.

Outrossim, conforme dito anteriormente, os povos Borari e Arapium

habitam tradicionalmente a área delimitada como Terra Indígena Maró de modo secular.

Isto não está em dúvida, afinal, o próprio juiz prolator da sentença confirma a assertiva,

na medida em que, de forma paradoxal, atribui aos indígenas a identidade de populações

ribeirinhas e afirma, em outro momento, que são famílias que residem na área há

séculos. Ademais, o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID),

devidamente confeccionado e publicado pela FUNAI, atesta, irretorquivelmente, que a

área é habitada de modo tradicional e permanente pelas etnias acima mencionadas.

Entretanto, ainda que não se admita isso como verdade (o que é de todo

improvável, dada a farta documentação já constante nos autos e que agora acompanha

este recurso), é importante não perder de vista que a sentença ora recorrida contribui,

em significativa medida, com um processo constante e pernicioso de esbulho renitente

(parafraseando o posicionamento do Supremo Tribunal Federal na PET n° 3.388/RR –

Caso Raposa Serra do Sol) que impacta diretamente as populações indígenas brasileiras.

Nessa entoada, importa pontuar: o passado é lição para refletir, não para

repetir, diria Mário de Andrade. Diante desta lúdica constatação, cumpre-nos, nesse

momento, mergulharmos na política indigenista do Brasil pretérita para

compreendermos e refletirmos sobre o atual momento da questão indígena, à luz da

CRFB de 1988, sobretudo e mais precisamente para alcançarmos a necessidade de

promoção da efetiva delimitação e demarcação da Terra Indígena Maró, na Gleba Nova

Olinda.

Considerando o fim almejado – ou seja, uma visão holística do contexto

expropriatório das terras indígenas – avulta a necessidade de compreensão do processo

de espoliação que há muito vem ocorrendo no Brasil.

Desde o século XVI, com a invasão das Cortes européias em terras

brasileiras, o país é inexoravelmente marcado pela questão fundiária. Nesse contexto, os

índios ocupam uma posição singular, já que têm de ser “legalmente”, senão

“legitimamente”, despossuídos de uma terra que sempre lhe foi, por direito,

reconhecida.

Como bem assinala a antropóloga luso-brasileira Maria Manuela Ligeti

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Carneiro da Cunha, professora da Universidade de São Paulo e da Universidade de

Chicago, esse processo de espoliação, eivado de irregularidades, é feito por etapas.

Tendo o índio e a terra como objetos de estudo, constatou a cientista que, desde os idos

de 1800, características comuns nesse inter expropriatório subsistem22.

Primeiramente, reconhecem-se aos povos indígenas os direitos

originários sobre suas terras. Assim como a Constituição da República Federativa do

Brasil de 1988 (caput do art. 231) assegurou aos índios tais direitos sobre as terras que

tradicionalmente ocupam, a Carta Régia de 2.12.1808, exarada por d. João VI,

reconheceu, mesmo que implicitamente, a aludida originariedade, porquanto declarou

devolutas as terras conquistadas aos índios a quem havia declarado guerra justa.

Conforme visto anteriormente, antes mesmo da Carta Régia, o Alvará de 1º de abril de

1680, posicionou-se no mesmo sentido.

Ainda no campo normativo, a Lei da Terra de 1850, em seu art. 12,

estabeleceu que as terras destinadas à colonização indígena prescindiriam de qualquer

legitimação, diferenciando-as das terras devolutas.

Assim, de um modo ou de outro, vislumbravam-se os índios como

verdadeiros e legítimos donos de boa parte das terras brasileiras.

Posteriormente, inaugurou-se uma política de concentração fundiária, na

qual se buscou reunir e sedentarizar os índios em aldeias. Tal prática foi

corriqueiramente desempenhada pelas famigeradas catequizações jesuítas, que, a

pretexto de proporcionar uma pseudo “civilização” dos primitivos moradores dessa

terra, empreendiam um verdadeiro etnocídio.

Os colonizadores, por sua vez, desejavam os aldeamentos o mais

próximo possível de seus estabelecimentos, já que se abasteciam da mão de obra

indígena. A política oficial de se estabelecerem estranhos junto aos índios data da época

pombalina, a qual se buscava assimilar física e socialmente os índios ao resto da

população, integrando-os, à força bruta ou moral, à sociedade envolvente.

Essa política é muito bem explicitada no Regulamento das Missões de

22 CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. 1ª ed. São Paulo: Claro Enigma, 2012.

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1845 (art. 1º, §2 e 4)23.

Manuela Carneiro da Cunha24 elucida:

“(...) não demorou muito e as consequências começaram a vir à tona. Os

foreiros e arrendatários situados dentro dos aldeamentos começaram a pedir

Cartas de Sesmarias, o que, por diversas vezes, foram atendidos em seus

pleitos. (...) Demais disso, um mês após a promulgação da Lei da terra em

1850 (Lei 601), a mais assustadora medida espoliativa entrou em cena. Uma

decisão do Império mandou incorporar aos colonos as terras situadas em

aldeias onde os índios estiverem confundidos na massa da população

civilizada. Ou seja, após um século estimulando a convivência de estranhos

junto ou mesmo dentro das aldeias, o governo usa o duplo critério da

existência de população indígena e de uma aparente assimilação para despojar

os índios de suas terras.”

Vejamos, é o mesmo raciocínio que é utilizado na sentença ora

impugnada.

Em síntese, podemos sintetizar o processo de espoliação fundiária das

sociedades indígenas da seguinte forma: começa-se por concentrar em aldeamentos as

chamadas “hordas selvagens”, liberando-se vastas áreas, sobre as quais seus títulos eram

incontestes, e trocando-as por limitadas terras de aldeias; ao mesmo tempo, encoraja-se

o estabelecimento de estranhos em sua vizinhança; concedem-se terras inalienáveis às

aldeias, mas aforam-se áreas dentro delas para que o índio tire o seu sustento; deportam-

se aldeias e concentram-se grupos distintos; a seguir, extinguem-se aldeias a pretexto de

que os índios se acham “confundidos com a massa da população”; ignora-se o

dispositivo da lei que atribui aos índios a propriedade da terra das aldeias extintas e

concedem-se-lhes apenas lotes dentro delas; revertem-se as áreas restantes ao Império e

depois às províncias, que as repassam aos municípios para que as vendam aos foreiros

ou as utilizem para a criação de novos centros da população.

23 § 2º Indagar os recursos que offerecem para a lavoura, e commercio, os lugares em que estão collocadas as Aldêas; e informar ao Governo Imperial sobre a conveniencia de sua conservação, ou remoção, ou reunião de duas, ou mais, em uma só.

§ 3º Precaver que nas remoções não sejão violentados os Indios, que quizerem ficar nas mesmas terras, quando tenhão bem comportamento, e apresentem um modo de vida industrial, principalmente de agricultura. Neste ultimo caso, e emquanto bem se comportarem, lhes será mantido, e ás suas viuvas, o usufructo do terreno, que estejão na posse de cultivar.

§ 4º Indicar ao Governo Imperial o destino que se deve dar ás terras das Aldêas que tenhão sido abandonadas pelos Indios, ou que o sejão em virtude do § 2º deste artigo. O proveito, que se tirar da applicação dessas terras, será empregado em beneficio dos Indios da Provincia.

24 Op. cit, p. 81.

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Num passado não tão remoto, esse processo de espoliação das

populações indígenas ganhou conotações um tanto quanto mais violentas. É o que se

constata facilmente do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, publicado no

último dia 10 de dezembro de 2014. O aludido Relatório, em seu Volume 2, Texto 5,

traz um apanhado histórico acerca dos absurdos que foram cometidos contra os índios

durante o período investigado pela CNV (18 de setembro de 1946 a 05 de outubro de

1988).

O resultado dos trabalhos, de todo relevantes para resgatar a memória

dos tristes fatos que sucederam durante o período ditatorial brasileiro, traz um chocante

breviário de algumas remoções forçadas de povos indígenas de seus territórios, seja em

virtude da implantação de obras de infraestrutura, seja em benefício do viés

desenvolvimentista a qualquer custo existente na época e que, infelizmente, ainda se

reproduz na hodiernidade. Algumas sociedades indígenas foram dizimadas, outras

reduzidas drasticamente em termos populacionais.

Destaque especial ao item B.11, do Volume 2 – Texto 5, que trata da

emissão de “Certidões Negativas” fraudulentas acerca da existência de índios, mais

precisamente na Amazônia, como forma de comprovar, junto ao Governo federal, a

suposta inexistência de sociedades indígenas na área em que se pretendia a instalação de

empreendimentos. Tais “Certidões” eram exigência do governo como espécie de

garantia para a concessão de incetivos fiscais para investimentos na região.

A propósito, segue a transcrição literal do item mencionado:

11) Certidões negativas fraudulentas de existência de índios

Com o estímulo do governo para investimentos na Amazônia, em 1969, a

Sudam estipulou como pré-requisito para a concessão de incentivos fiscais

para empreendimentos na Amazônia Legal que os interessados solicitassem

junto à Funai uma “certidão negativa” para a existência de grupos indígenas

na área pleiteada. A CPI de 1977 constatou que várias certidões negativas

foram concedidas para áreas habitadas por populações indígenas. O próprio

presidente da Funai, General Ismarth Araújo de Oliveira, admitiu em

depoimento à CPI que o órgão não tinha total conhecimento das áreas

habitadas por populações indígenas e que, portanto, não havia condições de

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determinar com exatidão se havia ou não habitantes nas áreas pleiteadas por

investidores.

Assim, uma indagação se apresenta indeclinável: é razoável, justa, e,

principalmente, compatível com a história remota e recente brasileira, fixar-se, de modo

absurdo, um marco temporal para definição de permanência de sociedades indígenas em

seus territórios tradicionalmente ocupados? Cumpre-nos repisar: foi justamente a

Constituição Federal de 1988 que retirou da invisibilidade (do ponto de vista de

proteção normativa) as centenas de etnias indígenas que habitam as terras brasileiras. Só

a partir da atual Carta Magna que povos indígenas, que antes eram compelidos a se

esconderem e omitirem suas identidades, levantaram-se e buscaram resgatar seus traços

identitários. Vale frisar, a propósito, que os dispositivos constitucionais que estabelecem

direitos às populações indígenas não foram fruto de bondade dos legisladores

constituintes. Resultaram, a bem da verdade, de um intenso e constante processo de luta

dessas populações em busca do reconhecimento de seus direitos que vinham sendo

brutalmente sonegados.

É nesse contexto que os povos Borari e Arapium, muito embora

estejam habitando a área da TI Maró há séculos (conforme fartamente demonstrado

acima e nas provas carreadas aos autos), somente buscaram empunhar a bandeira de

suas identidades indígenas. Assim, neste momento, não houve conversão de ribeirinhos

em indígenas, como quer fazer crer o juiz prolator da sentença. O que houve, repita-se,

foi um legítimo processo de reavivamento de uma identidade coletiva específica,

sempre existente, mas que dormitava face os constantes processos de opressão e

sonegação de direitos.

Esse fato é atestado pela própria Fundação Nacional do Índio, que

através da Informação Técnica nº 12/DPT/2015, assevera:

93. Devido à especificidade da colonização na região, os habitantes nativos

tiveram receio de assumir a identidade indígena ao longo de todo o século

XX, uma vez que os estereótipos negativos associados ao indígena se

convertiam, na prática, em todo tipo de discriminação, cerceamento,

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usurpação e violência. Esta situação começou a se alterar após a

promulgação da Constituição Federal de 1988, quando o Estado brasileiro

passou a reconhecer o valor positivo da diversidade cultural, bem como

direitos e garantias específicos aos povos originários.

94. No ano 2000, em meio à articulação em torno da marcha nacional para as

comemorações dos 500 anos do "descobrimento" do Brasil, em Porto Seguro

(BA), os moradores tradicionais do Baixo Tapajós fundaram o Conselho

Indígena dos Rios Tapajós e Arapiuns (CITA). Na virada para o século XXI,

os poderes públicos na região, designadamente as prefeituras de Santarém,

Belterra e Aveiro, passaram a dar mais atenção à população indígena,

realizando ações especialmente na área da educação.

95. Como se conclui, o movimento de reafirmação étnica nasceu da

articulação política dos habitantes nativos para a defesa de um território que

começava a ser apropriado e organizado sob uma lógica totalmente distinta

daquela até então vigente. Os povos indígenas que ocupam tradicionalmente

o baixo Tapajós constituem, portanto, o fruto de várias gerações de pessoas

que nasceram e viveram na região, mantendo uma relação singular com o

território, desenvolvida no interior de um universo cosmológico Tupi.

96. O processo de reafirmação étnica ou 'reelaboração da identidade' que

estes povos vivenciam aponta para uma complexa realidade de etnogênese,

de fundo cultural Tupi, que apresenta diferentes formas de auto-percepção

quanto ao reconhecimento étnico, em que grande parte das comunidades

tidas como "não-indígenas" também reúne os elementos necessários para

reivindicar o reconhecimento de seu território como terra indígena. No

Brasil, observou-se que muitos desses processos foram iniciados e/ou

catalisados a partir da Constituição Federal de 1988 - e, portanto, o fato de

que estas etnias não tenham se manifestado antes no cenário nacional não

deriva de sua não-existência, mas de sua estigmatização.

Não pode, no entender do Ministério Público Federal, o Judiciário

brasileiro deslegitimar esse processo natural de pertencimento étnico.

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IV. DA ANTECIPAÇÃO DA TUTELA RECURSAL

A tutela antecipada integra o título VII, do CPC, denominado do

"Processo e do Procedimento", mais especificamente o Capítulo das "Disposições

Gerais". Dessa forma, como a apelação cível faz parte do sistema recursal, e como esse,

por sua vez, integra o processo cognitivo, nada mais natural do que a viabilidade de

estender-se àquele o instituto da antecipação de tutela. A tutela antecipada recursal irá

adiantar os efeitos que somente seriam produzidos com o julgamento da apelação25. É

este, senão, o entendimento da doutrina e jurisprudência. Nesse sentido:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. MEDIDA LIMINAR.

SUPERVENIÊNCIA DE SENTENÇA JULGANDO A CAUSA. PERDA DE OBJETO

DO RECURSO RELATIVO À MEDIDA ANTECIPATÓRIA.

[...]

2. O julgamento da causa esgota, portanto, a finalidade da medida liminar, fazendo

cessar a sua eficácia. Daí em diante, prevalece o comando da sentença, e as eventuais

medidas de urgência devem ser postuladas no âmbito do sistema de recursos, seja a

título de efeito suspensivo, seja a título de antecipação da tutela recursal,

providências cabíveis não apenas em agravo de instrumento (CPC, arts. 527, III e 558),

mas também em apelação (CPC, art. 558, § único) e em recursos especiais e

extraordinários (RI/STF, art. 21, IV; RI/STJ, art. 34, V). (grifo nosso)

[...]

6. Recurso especial não conhecido, por prejudicado. (REsp 818.169/CE, Rel. Ministro

TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 28/03/2006, DJ

15/05/2006, p. 181).

Ademais, com a universalização da tutela antecipada, possibilitou-se que

esta medida fosse utilizada em todo tipo de procedimento cognitivo, como é o caso dos

autos.

Assim, nos termos do art. 273, do CPC, existindo prova inequívoca e a

verossimilhança da alegação, a prestação jurisdicional será adiantada sempre que haja

fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.

25 DIDIER, Fredie, Curso de Direito Processual Civil, vol. 3, 2009, pág. 521.

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A verossimilhança da alegação é contundente, diante do farto material

probatório disponível nos autos e o que acompanha este recurso, bem como da

argumentação acima traçada, apta a demonstrar tanto a existência das etnias Borari e

Araipum, e por via de consequência, a ocupação tradicional e permanente do território

ocupado por tais populações, devendo ser reformada a sentença ora impugnada e

julgando procedente o direito pleiteado na ação nº 2010.3902.000249-0, movida pelo

MPF visando compelir a Fundação Nacional do Índio - FUNAI a promover os atos que

lhe caibam no processo de demarcação da Terra Indígena Maró, a teor do estabelecido

pelo Decreto nº 1.775/1996, não podendo ser olvidado que a publicação no DOU e

DOE/PA do resumo do Relatório de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Maró

já foi concretizada (o que de todo reforça o pleito).

O periculum in mora também desponta com clareza. O desembargo

administrativo das atividades madeireiras na área - considerando-se que apesar de

constar formalmente como partes do processo judicial as Associações de comunidades

tradicionais da região, há por trás o setor empresarial madeireiro, havendo patente

manipulação deste ramo empresarial em face das Associações em tela, - afeta

sobremaneira os direitos de usufruto exclusivo dos recursos naturais, reconhecidos

constitucionalmente (art. 231, § 2º, da CF), causando danos irreparáveis aos espaços

ocupados pelos indígenas. Do mesmo se apresenta irreparável a possibilidade de danos

à integridade física dos indígenas, com risco inclusive de morte de lideranças, haja vista

o tenso clima instaurado na região em virtude da sentença ora recorrida, tendo como

atores sociais, de um lado, os indígenas, e de outro, os madeireiros, interessados no

deslinde da causa.

Posto isso, diante do dano jurídico de difícil ou impossível reparação

acima exposto, requer-se a concessão da tutela antecipada recursal, nos do art. 272 e

273, do CPC, no sentido de que seja:

• determinado à União e à FUNAI que prossigam e cumpram todos os atos que

lhe caibam, referente à demarcação da Terra Indígena Maró, de acordo com o

Decreto nº 1.775/96;

• determinado que o Estado do Pará se abstenha de praticar qualquer ato de

regularização fundiária da Terra Indígena Maró;

• impedida a livre circulação de madeireiros e pessoas estranhas (sobretudo

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aquelas que apresentarem finalidade de exploração de recursos naturais) nos

limites territoriais que foram delimitados como TI Maró, sem o consentimento

dos povos Borari e Arapium;

• determinado que o IBAMA e a Secretaria Estadual de Meio Ambiente do

Pará/PA suspendam qualquer Plano de Manejo Florestal por ventura concedido

ou em trâmite, bem como se abstenham de conceder qualquer licença ou

autorização para exploração dos recursos naturais existentes na área da TI Maró,

mantendo-se hígidos os resultados da operação fiscalizatória realizada pela

autarquia ambiental federal em Novembro de 2014;

V. DOS PEDIDOS

Pelo exposto, requer o Ministério Público Federal:

I. Concessão liminar de antecipação da tutela recursal, objetivando que

seja:

a) determinado à União e à FUNAI que prossigam e cumpram todos os atos que lhe

caibam, referente à demarcação da Terra Indígena Maró, de acordo com o Decreto nº

1.775/96;

b) determinado que o Estado do Pará se abstenha de praticar qualquer ato de

regularização fundiária da Terra Indígena Maró;

c) impedida a livre circulação de madeireiros e pessoas estranhas (sobretudo

aquelas que apresentarem finalidade de exploração de recursos naturais) nos limites

territoriais que foram delimitados como TI Maró, sem o consentimento dos povos

Borari e Arapium;

d) determinado que o IBAMA e a Secretaria Estadual de Meio Ambiente do

Pará/PA suspendam qualquer Plano de Manejo Florestal por ventura concedido ou em

trâmite, bem como se abstenham de conceder qualquer licença ou autorização para

exploração dos recursos naturais existentes na área da TI Maró, mantendo-se hígidos os

resultados da operação fiscalizatória realizada pela autarquia ambiental federal em

Novembro de 2014.

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II – Anulação da sentença por error in procedendo, determinado-se o

retorno dos autos ao Juízo a quo, tendo em vista:

a) sentença citra petita, haja vista a ausência integral de apreciação das questões

deduzidas em juízo pelo Ministério Público Federal;

b) inobservância do devido processo legal, do contraditório e da inércia jurisdicional, ao

se decidir pela reunião das ações nº 2091-80.2010.4.01.3902 e 2010.3902.000249-0,

bem como ao converter a ação Anulatória nº 2091-80.2010.4.01.3902 em Ação civil

Pública, ambas sem oitiva prévia das partes litigantes.

III- Caso não seja o entendimento acima o mesmo de V.Exas., sejam

apreciadas e acolhidas as seguintes preliminares:

a) desistência da ação e/ou abandono de causa, com fulcro nos artigos, 267, III e VIII,

do CPC;

b) ilegitimidade ad causam e ausência de interesse processual das Associações autoras

da ação nº 2091-80.2010.4.01.3902, e por consequência reconhecimento de carência de

ação, com fulcro no art. 267, VI, do CPC.

IV- Ao final, o provimento do recurso de apelação, a fim de que seja

reformada a sentença e jugada procedente a Ação nº 2010.3902.000249-0 (manejada

pelo MPF), a fim de condenar a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) na obrigação de

fazer, consistente em cumprir todos os atos que lhe caibam referente à demarcação da

Terra Indígena Maró, de acordo com o Decreto nº 1.775/96. Como consequência, que se

julgue totalmente improcedente a ação nº 2091-80.2010.4.01.3902 (manejada pelas

Associações).

Nestes termos,

Pede deferimento.

Santarém, 04 de fevereiro de 2015.

LUÍS DE CAMÕES LIMA BOAVENTURA

Procurador da República

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* Documentação que acompanha este recurso:

- Informação Técnica nº 12/DPT/2015 (Diretoria de Proteção Territorial da FUNAI);

- Parecer Técnico de Eduardo Viveiros de Castro;

- Parecer Técnico de Jane Felipe Beltrão;

- Artigo de autoria de Jane Felipe Beltrão;

- Parecer Técnico de Raphael Frederico Acioli Moreira da Silva;

- Nota Técnica de Gilberto César Lopes Rodrigues;

- Nota da Associação Brasileira de Antropologia (ABA);

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