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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global 1 Crise Estrutural do Capital, Trabalho Imaterial e Modelo da Competência - Notas dialéticas Giovanni Alves O objetivo deste ensaio é apresentar algumas notas teórico-analiticas sobre as mutações estruturais do sistema do capital nos últimos trinta anos e tratar, de modo breve, dos impactos destas mutações sobre a educação profissional (isto é, educação para o trabalho), tratando mais especificamente, do denominado modelo de competência. Iremos apresentar a título de hipóteses de trabalho as seguintes teses que buscam apreender a nova fenomenologia do capitalismo global e do que denominamos de terceira modernidade do capital 1 . É a partir delas que iremos elaborar, mais adiante, 1 Por terceira modernidade do capital entendemos o período histórico de sua crise estrutural, que se desenvolve a partir de meados da década de 1970 e que se caracteriza pela terceira revolução industrial, pelo desenvolvimento do toyotismo e da produção flexível, pela crise do imperialismo e globalização; pelo neoliberalismo e financeirização da riqueza capitalista; e pelo sócio-metabolismo da barbárie e pós- modernismo como lógica cultural do capitalismo tardio. A primeira modernidade transcorreu na época histórica de constituição do mundo burguês ocidental, que vai do século XVI ao século XVIII e caracteriza-se pela expansão do mercantilismo, pelo capitalismo comercial e produção manufatureira; pelas revoluções burguesas e constituição do Estado-nação; e a segunda modernidade do capital ou modernidade propriamente dita, que vai dos primórdios do século XIX a última metade do século XX, é marcada pela emergência da grande indústria, da primeira e segunda revolução industrial, do taylorismo e fordismo; pela constituição do mercado mundial e do imperialismo, aparecimento das utopias sociais clássicas e das revoluções sociais e pelo surgimento e desenvolvimento do modernismo como fenômeno cultural.

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

1

Crise Estrutural do Capital, Trabalho Imaterial e

Modelo da Competência - Notas dialéticas

Giovanni Alves

O objetivo deste ensaio é apresentar algumas notas teórico-analiticas sobre as

mutações estruturais do sistema do capital nos últimos trinta anos e tratar, de modo

breve, dos impactos destas mutações sobre a educação profissional (isto é, educação

para o trabalho), tratando mais especificamente, do denominado modelo de

competência.

Iremos apresentar a título de hipóteses de trabalho as seguintes teses que buscam

apreender a nova fenomenologia do capitalismo global e do que denominamos de

terceira modernidade do capital1. É a partir delas que iremos elaborar, mais adiante,

1 Por terceira modernidade do capital entendemos o período histórico de sua crise estrutural, que se desenvolve a partir de meados da década de 1970 e que se caracteriza pela terceira revolução industrial, pelo desenvolvimento do toyotismo e da produção flexível, pela crise do imperialismo e globalização; pelo neoliberalismo e financeirização da riqueza capitalista; e pelo sócio-metabolismo da barbárie e pós-modernismo como lógica cultural do capitalismo tardio. A primeira modernidade transcorreu na época histórica de constituição do mundo burguês ocidental, que vai do século XVI ao século XVIII e caracteriza-se pela expansão do mercantilismo, pelo capitalismo comercial e produção manufatureira; pelas revoluções burguesas e constituição do Estado-nação; e a segunda modernidade do capital ou modernidade propriamente dita, que vai dos primórdios do século XIX a última metade do século XX, é marcada pela emergência da grande indústria, da primeira e segunda revolução industrial, do taylorismo e fordismo; pela constituição do mercado mundial e do imperialismo, aparecimento das utopias sociais clássicas e das revoluções sociais e pelo surgimento e desenvolvimento do modernismo como fenômeno cultural.

Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

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algumas breves reflexões criticas, de caráter meramente introdutório, sobre o sentido da

nova pedagogia do capital expressa através do modelo de competência:

Tese 1

A crise estrutural do capital que ocorre a partir de meados da década de 1970,

não significa incapacidade de crescimento (e expansão) da economia capitalista e do

sistema sócio-metabólico do capital. Pelo contrário, apesar da crise estrutural, o capital

tem-se expandido nos últimos trinta anos, apresentado, na passagem para o século XXI,

índices significativos de crescimento da economia nas fronteiras da modernização do

capital, como Índia, China e Sudeste Asiático. Na verdade, o que denominamos crise

estrutural do capital significa a incapacidade da forma social do capital em conter (e

realizar) as novas possibilidades de desenvolvimento do ser genérico do homem, dada

pela nova materialidade sócio-técnica. Sob a etapa do capitalismo global e da terceira

modernidade, isto é, sob a fase da crise estrutural do capital, tendem a se acirrar, num

grau qualitativamente novo, as contradições entre relações sociais de produção e forças

produtivas sociais, com manifestações agudas de estranhamento e fetichismos sociais,

colocando, deste modo, obstáculos estruturais ao desenvolvimento social sustentável.

Tese 2

As mutações estruturais do capital nesta etapa do capitalismo global tendem a

explicitar, por um lado, como seu desdobramento essencial, a desmedida do valor,

provocada, entre outras determinações complexas, pela nova base de produção de

mercadorias, que, nos centros mais dinâmicos de acumulação de capital, articulam, cada

vez mais, elementos do trabalho imaterial a partir de uma nova base sócio-técnica. Por

outro lado, as mutações estruturais do capitalismo global tendem a expor, de modo

pleno, a aguda contradição entre forças produtivas sociais, isto é, forma material em

expansão, e forma social do capital, com impactos significativos, nesse caso, na

instância sócio-reprodutiva da educação, principalmente da educação profissional.

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Tese 3

A disseminação da ideologia das competências, a partir da década de 1970, é

explicada, por um lado, pela crise da organização taylorista de trabalho e por outro lado,

pelo novo regime de acumulação flexível, cuja nova base técnica, nas condições

históricas da desmedida do valor e da luta de classes, tende a exigir uma nova

implicação subjetiva do trabalho assalariado, ou seja, a captura da subjetividade do

trabalho vivo pela lógica do capital. Deste modo, ela expõe uma necessidade sistêmica

intrinsecamente contraditória do sistema sócio-metabólico do capital que se expressa

através do discurso (e prática) da nova pedagogia das empresas.

Antes de tratarmos, de modo breve, das teses acima, iremos fazer uma

apresentação geral de aspectos contingentes das mutações estruturais do capital, que

ocorreram sob a etapa do capitalismo global e da terceira modernidade do capital, e se

manifestaram, por exemplo, através do surgimento da economia global, da produção

toyotista, do neoliberalismo, do pós-modernismo e do sócio-metabolismo da barbárie.

1. Expansão capitalista e mutações estruturais do capital (1973-2003)

A grande crise da economia capitalista mundial, em meados da década de 1970,

considerada, por Ernest Mandel, a primeira recessão generalizada da economia mundial,

tendeu a impulsionar o complexo de reestruturação capitalista, seja na produção e

tecnologia, seja na política e na cultura. Ele surge no centro dinâmico e núcleo orgânico

do sistema mundial – Japão, EUA e Europa Ocidental – assumindo depois, nas décadas

seguintes, dimensões planetárias, acompanhando as linhas-mestras do mercado mundial

(MANDEL, 1995).

Para David Harvey, por exemplo, o ano de 1973 é o marco histórico do

surgimento do novo regime de acumulação flexível. A partir daí entramos numa nova

dimensão sócio-histórica de desenvolvimento do sistema mundial do capital (é o que

temos considerado como terceira modernidade do capital). François Chesnais apontaria

o surgimento de um regime de acumulação predominantemente financeiro. István

Meszáros indicaria as determinações ontológicas de crise estrutural do capital. Robert

Brenner caracterizaria uma crise persistente de superprodução. Enfim, vários autores

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concordam que meados da década de 1970 é um marco histórico significativo de

inflexão estrutural da dinâmica do sistema mundial do capital (HARVEY, 1993;

CHESNAIS, 1995; MÉSZÁROS, 2002; BRENNER, 2003).

Nos últimos trinta anos (1973-2003), que poderíamos considerar os “trinta anos

perversos”, a economia (e a política) mundial demonstraram instabilidade persistente,

oscilando, no caso dos paises da OCDE, países industriais mais desenvolvidos, ciclos

recessivos com taxas medíocres de crescimento não-sustentável. O que se constata é

que, o eixo de expansão capitalista tendeu a deslocar-se, no decorrer dos últimos trinta

anos, para a Ásia, com taxas exuberantes de crescimento na Coréia do Sul e Japão (pelo

menos na década de 1980) e, nas décadas de 1990 e 2000, Índia e China, onde, é

importante salientar, tendem a ser maiores as taxas de exploração da força de trabalho e

extração de mais-valia (ARRIGHI, 1995).

É a partir desta inflexão estrutural da conjuntura de desenvolvimento capitalista

na última metade do século XX, que se adotaram, na gestão macroeconômica

capitalista, políticas neoliberais, seja no centro orgânico (principalmente nos governos

Margaret Thatcher, na Grã-Bretanha, e Ronald Reagan, nos EUA), seja na borda

periférica industrializada do sistema mundial (no decorrer da década de 1980 e

principalmente década de 1990, com destaque para América Latina e Leste Europeu). A

hegemonia neoliberal surge no centro capitalista, primeiro, no bojo da inconsistência

das políticas keynesianas, ao tratar da conjuntura de recessão persistente; segundo, da

necessidade sistêmica do capital quebrar as amarras do Welfare State e das conquistas

trabalhistas das décadas anteriores e terceiro, da derrota eleitoral (e política) dos

governos trabalhistas e do movimento sindical insurgente no decorrer da década de

1970 (SADER E GENTILI, 1995; PETRAS, 1995).

Por outro lado, ocorreram no decorrer da década de 1980, alterações

significativas na instância sócio-produtiva do capital, visando a retomada dos níveis de

lucratividade e de acumulação do capital. É sob o período da mundialização do capital

que ocorrem agudas reorganizações da produção capitalistas, através de inovações

organizacionais, sob o espírito do toyotismo, e inovações tecnológicas, por conta da III

Revolução Tecnológica, com a incorporação de tecnologias microeletrônicas flexíveis e

de rede na produção e circulação de mercadorias. Sob a liderança das corporações

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transnacionais, inovações na produção e no produto contribuíram para um salto

qualitativamente novo nas relações de trabalho e nas relações de consumo (SANTOS,

2003; DREIFUSS, 2003). Na verdade, o impacto das mutações da produção do capital

no mercado do trabalho foram significativas, precarizando estatutos salariais e

constituindo novas formas de relações de trabalho precárias – além, é claro, de criar a

miragem ideológica de um fim do trabalho (ANTUNES, 2005; VASOPOLLO, 2004,

2005; ALVES, 2000).

É neste contexto sócio-histórico que surge, nos pólos não-desenvolvidos (e

desenvolvidos) da civilização do capital, o que podemos denominar de sócio-

metabolismo da barbárie, ou seja, formas de “regressão” social, a partir dos elementos

de desemprego de massa, crise do Welfare State e da capacidade de regulação estatal,

precarização e constituição de uma nova precariedade da força de trabalho (que

possuem agudos conteúdos de dessocialização), novas formas de estranhamento social,

incremento do fetichismo da mercadoria e crise sócio-ecológica que minam as próprias

bases da reprodução social.

É no bojo das transformações estruturais da economia e da política capitalista no

centro dinâmico do sistema mundial do capital que se constituiu uma nova lógica

cultural sob o capitalismo tardio (o pós-modernismo) (JAMESON, 1996; ANDERSON,

1999). O cenário de instabilidade sistêmica, por conta da financeirização da dinâmica

capitalista, e inclusive, da nova lógica da organização da produção capitalista, sob o

signo do toyotismo, contribuiu sobremaneira para o incremento intensivo e extensivo

dos dispositivos de manipulação da subjetividade do trabalho vivo. É neste período que

se intensifica o poder da ideologia e agudiza-se processos de estranhamento social e

fetichismo da mercadoria e suas derivações sistêmicas (ALVES, 2001; MESZÁROS,

2001).

As mutações do capital que ocorreram nos últimos trinta anos, e que prosseguem

hoje, atingem uma dimensão planetária. O desenvolvimento dos meios de comunicação

e transporte, a constituição da “sociedade em rede”, a integração dos fluxos financeiros

sob o mercado mundial, o surgimento da produção global de mercadorias, constituíram

nos últimos trinta anos, o sentido impressionista da noção de globalização

(CASTELLS, 1999). Na verdade, o sentido da globalização como mundialização do

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capital é ser a ofensiva persistente da lógica de mercado e da valorização do valor sobre

as instâncias do ser social.

Por outro lado, na medida em que avança, o processo histórico da globalização

tende a instigar a luta de classes, fazendo avançar forças políticas anti-capitalistas,

principalmente nas áreas de experiências do neoliberalismo e de agudo desmonte dos

projetos de desenvolvimento do capitalismo periférico – os “elos mais fracos” do

sistema imperial do capital (nos últimos dez anos surgiram, por exemplo, o Fórum

Social Mundial, que agrega os movimentos anti-globalização e na América Latina, de

forma inédita, uma série de governos de inspiração anti-imperialista, de centro-esquerda

e de esquerda). Na virada para o século XXI, observa-se o momento de crise da

globalização (que se desenvolve a partir de 1997). Entretanto, a globalização como

mundialização do capital coloca obstáculos, ainda a serem discernidos, às

transformações sociais mais incisivas que atingem interesses dos conglomerados

financeiros internacionais (os verdadeiros players da mundialização financeira e

produtiva do capital).

Ora, a globalização é um dos elementos da crise estrutural do capital, que

segundo Mészáros caracteriza a fase de decadência histórica do capital. Ela deve ser

apreendida não apenas como momento de incapacidade de crescimento da economia

capitalista e do sistema do capital como sistema produtor de mercadorias. É importante

salientar que, nas últimas décadas, a crise de acumulação de capital se verificou com

mais intensidade no velho “centro” desenvolvido do sistema mundial, onde o Welfare

State tendeu a constituir uma série de obstáculos político-sociais à exploração vigorosa

do capital, mas não na borda periférica capitalista oriental, a nova fronteira de

modernização capitalista, com as economias da Índia e China atingindo, nas últimas

décadas, elevadas taxas de crescimento e de acumulação de valor.

Na verdade, a crise estrutural do capital é o momento histórico de metamorfose

sistêmica do capital, buscando constituir uma nova forma social adequada à sua

reprodução sócio-metabólica (entretanto, o que se vislumbra são os limites estruturais

da reprodução social em si, demonstrado pelos sinais de barbárie social e cataclismo

sócio-ecológico).

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. Se por um lado, são perceptíveis sinais de crise da hegemonia dos EUA como

centro dinâmico e núcleo orgânico do sistema capitalista, crise de hegemonia que não

significa ainda o surgimento de novo pólo hegemônico, tendo em vista a inconsistência

político-militar da União Européia e mesmo do Japão, por outro lado, surgem, como

salientamos acima, novos pólos de exploração e acumulação de valor no cenário

mundial, como a China e a Índia no contexto asiático.

Os movimentos de contestação política à ordem capitalista global, no contexto

da crise da globalização e do pós-neoliberalismo, surgem e se desenvolvem sob novas

condições históricas herdadas de um sistema mundial cuja base sócio-produtiva,

principalmente nos centros dinâmicos da economia capitalista, seja no âmbito do

sistema mundial, seja no âmbito subnacional, teve, nos últimos trinta anos, alterações

significativas que merecem ser destacadas, pois é sob tais condições herdadas que

ocorre (e ocorrerão) as lutas sociais de classe.

Por isso, torna-se importante, apreendermos metamorfoses estruturais que estão

ocorrendo na base sócio-produtiva do sistema, buscando identificar, na miséria do

presente, as riquezas de possibilidades para o desenvolvimento para além do capital.

Deste modo, nossa análise se desloca do mundo da contingência política para o mundo

das determinações sócio-estruturais que colocam, não apenas limites candentes à

teleologia política, mas abrem novas possibilidades para seu desenvolvimento crítico.

2. O significado da categoria crise estrutural do capital

Nossa primeira tese salienta que a crise estrutural do capital, que ocorre a partir

de meados da década de 1970, não significa incapacidade de crescimento (e expansão)

da economia capitalista e do sistema sócio-metabólico do capital. O que evita, deste

modo, em nossa análise, um viés catastrofista de colapso da economia capitalista. Pelo

contrário, apesar da crise estrutural, o capital tem-se expandido com vigor nas últimas

décadas do século XX (com destaque para o notável crescimento da acumulação de

valor nas fronteiras da modernização do capital na Ásia).

Deste modo, o crescimento exuberante do PIB da China e da Índia, por exemplo,

expõe que a crise estrutural não significa necessariamente impossibilidade de

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acumulação de valor. Na verdade, o que se denomina crise de valorização pode ser

considerado uma valorização problemática, por conta da necessidade de reprodução

ampliada do capital a partir de um patamar superior - o patamar do mercado global. É a

valorização problemática que explica a ofensiva do capital contra os direitos dos

trabalhadores nos paises capitalistas industrializados, buscando incrementar a taxa de

exploração global da força de trabalho. Por outro lado, o crescimento exuberante dos

pólos avançados de acumulação do capital (Índia e China) tendem a ocultar a

valorização problemática no bojo do sistema global como um todo, que se expressa, de

certo modo, através de uma persistente instabilidade financeira (o que consideramos

valorização problemática contém elementos de desmedida do valor, que salientaremos

adiante).

Mas a crise estrutural do capital não se expressa tão-somente no plano da

produção de valor, mas principalmente nas instâncias de reprodução social, o que

significa que ela se manifesta através da crescente agudização do estranhamento e das

formas de fetichismo social (não podemos esquecer que o capital é um sistema sócio-

metabólico). O crescimento da economia produtora de mercadorias não significa, no

plano da reprodução social, desenvolvimento social. Pelo contrário, desemprego e

precarização da força de trabalho tenderam a aumentar nas últimas décadas no mundo

capitalista, expondo o aprofundamento da desigualdade social e de classe sob a

mundialização neoliberal. Surge o que alguns autores apresentam como uma “nova

questão social”, marcada pela desfiliação salarial (CASTELL, 1988). Nos pólos de

expansão da acumulação de valor, contingentes massivos de trabalhadores indianos e

chineses vislumbram a condição de precariedade de classe em sua forma aguda, alguns

em regime de trabalho semi-escravo, submetidos à exploração intensiva e extensiva da

força de trabalho nos moldes da I Revolução Industrial no Ocidente capitalista no século

XIX. Por outro lado, o impacto sócio-ecológico do “novo industrialismo” na Índia e

China é perverso, pois implica no crescimento intenso da emissão de gases, poluição de

rios, destruição de ecossistema, com impactos globais (entre 1990 e 2001, as emissões

tóxicas cresceram 61%e as da China, 111%). Ao adotarem o padrão de industrialização

do Ocidente capitalista, Índia e China ameaçam a Terra com um cataclismo sócio-

ecológico de largas proporções.

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Observa o Worldwatch Institute, uma das principais organizações não-

governamentais ligada ao movimento ecológico, que “os modelos chinês e indiano, por

ora, não contemplam a hipótese de crescimento com baixo consumo de recursos e

poluição ambiental reduzida.” E concluem: “Quando atingirem o estágio econômico dos

Estados Unidos, o que não está longe, serão necessários dois planetas Terra para manter

as duas economias” (Apud CartaCapital, 25 de janeiro de 2006, No. 377, p.15). É

provável que a perspectiva de uma hecatombe ecológica comparável à hecatombe

nuclear, não esteja no horizonte de percepção dos agentes sistêmicos do capital, tendo

em vista que sua estrutura de temporalidade reativa e retrospectiva os impede de

vislumbrar impactos de longo prazo. Como diria Mészáros, para o capital “o único

‘futuro’ admissível já chegou, na forma dos parâmetros existentes da ordem

estabelecida bem antes de ser levantada a questão sobre ‘o que deve ser feito’”

(MESZAROS, 2001). De certo modo, eis um elemento compositivo daquilo que

denominamos de barbárie social, que coloca, com certeza, limites estruturais à sócio-

reprodutibilidade do sistema produtor de mercadorias.

É nesta perspectiva que se pode dizer que o sistema mundial do capital em sua

etapa de crise estrutural é capaz tão-somente de evoluir (ou crescer), mas não de se

desenvolver, no sentido próprio de “modernização” (a própria idéia de desenvolvimento

no sentido clássico do economics burguês, ou mesmo a idéia de “desenvolvimento

sustentável”, a rigor, tornou-se problemática na ótica do capital). Assim, admitir um

“colapso da modernização”, como diria Robert Kurz, implica em considerar a

modernização, se quisermos ir além do viés catastrofista, como significando a posição

de promessas civilizatórias (ou pelo menos, promessas) (KURZ, 1990). O que significa

que o conteúdo da terceira modernidade (e da modernização) sob a crise estrutural do

capital é qualitativamente outro. Diríamos que, sob o etapa de decadência histórica do

capital, vislumbra-se, com ironia, a tragédia (e farsa) do futurismo orwelliano (de

George Orwell, no seu romance 1984): paz é guerra, liberdade é escravidão e

desenvolvimento é não-desenvolvimento. Deste modo, a burguesia tornou-se até mesmo

incapaz de promessas que não sejam meras farsas.

Portanto, nossa tese é que a crise estrutural do capital se caracteriza, menos pela

impossibilidade de expansão da produção do capital, e mais pela incapacidade da forma

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social do sistema sócio-metabólico do capital conter (e realizar) as novas

possibilidades de desenvolvimento do ser genérico do homem, abertas pela nova

materialidade sócio-técnica e pela paulatina “redução dos limites naturais”. Mais do

que nunca, a produtividade do trabalho social significa a possibilidade concreta do

homem como espécie em sua maioria resolver, de vez, o problema da escassez social.

Entretanto, o que se observa, após os “trinta anos perversos” é o contrário – 2/3 da

humanidade está imersa na pobreza e na luta pela existência.

4. O capital e suas contradições

Nossa segunda tese expõe o seguinte: as mutações estruturais do capital tendem

a contribuir, por um lado, para o desenvolvimento da desmedida do valor, a partir da

nova base sócio-técnica de produção de mercadorias, que utiliza em si, cada vez mais,

elementos do trabalho imaterial (é tal desmedida de valor que contribui, de certo modo,

com a instabilidade sistêmica da economia mundial, apesar da exuberância expansão do

capital), e, por outro lado, para a crescente (e contraditória) incongruência entre matéria

e forma social (nesse caso, com impactos na instância sócio-reprodutiva da educação,

principalmente da educação profissional, o que trataremos adiante).

4.1 Desmedida do valor e trabalho imaterial

No tocante ao aspecto da desmedida do valor, verificamos que, nos últimos

trinta anos, o sistema produtor de mercadorias é atingido por candentes contradições

intrínsecas à própria forma-mercadoria. Na verdade, na célula-mater da sociedade

burguesa, a mercadoria, está contido a virtualidade das suas crises incisivas, sejam elas

crises cíclicas, crise orgânica ou crise estrutural. Na medida em que atinge seu pleno

desenvolvimento sócio-histórico, sob a terceira modernidade do capital, a forma-

mercadoria explicita, ampla e intensamente, suas determinidades negativas. Na verdade,

o sistema sócio-metabólico do capital tende a ser “afetado de negações” no interior do

próprio capitalismo (FAUSTO, 1987).

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Deste modo, o que consideramos como sendo a crise estrutural do capital expõe

num sentido radical, os dilaceramentos intrínsecos à forma-mercadoria, ou seja, a aguda

contradição entre valor de troca (valor econômico) e valor de uso (valor humano), que

se expressam, por exemplo, na crescente incongruência entre forma e matéria social (o

que trataremos mais adiante).

A intensificação (e nova amplitude) da crise da forma-mercadoria, sob as

condições históricas da crise estrutural do capital, ocorre em virtude da crise estrutural

do trabalho abstrato, o trabalho produtor de valor, fundamento do valor de troca

(ANTUNES, 1995). É tal crise estrutural do trabalho abstrato, no sentido de sua

desmedida, e não necessariamente de sua produção expansiva, que tende a provocar

instabilidades sistêmicas na etapa de expansão do capitalismo global.

Alucinada pelo “desmanche” de seu fundamento (o valor, em virtude da crise do

trabalho abstrato), a forma-mercadoria se transfigura, perdendo tendencialmente o seu

estatuto mediativo na formula geral do capital (D-M-D’). Em seu lugar, se põe a

fórmula espúria D-D’, explicitação da reprodução hermafrodita da riqueza abstrata,

estigma da financeirziação, que representa, nesta nossa perspectiva critica, sintoma da

crise da forma-mercadoria e crise do trabalho abstrato.

Uma de nossas hipóteses, que iremos procurar apresentar neste pequeno ensaio,

é que, o trabalho imaterial tende a ser mera explicitação, ou seja, mais um elemento de

manifestação contingente da crise do trabalho abstrato. Não apreender o significado

sócio-ontológico do trabalho imaterial, como fazem, por exemplo, Maurizio Lazzaratto

e Antonio Negri (ou ainda André Gorz) é mistificar o que ele, de fato, representa: um

traço de “negação do capitalismo no interior do próprio capitalismo”, como diria Ruy

Fausto, e que atinge o sistema sócio-metabólico do capital em sua etapa de crise

estrutural (LAZZARATO E NEGRI, 2001; GORZ, 2005; FAUSTO, 1987).

Segundo alguns autores, trabalho imaterial diz respeito ao trabalho que produz

valores de uso imateriais e que requer por isso, comunicação e inteligência (GORZ,

2005; LAZZARATO E NEGRI, 2001). Deste modo, tende-se a contrapor trabalho

imaterial e trabalho material (que é reduzido a trabalho industrial propriamente dito).

Entretanto, o trabalho imaterial pode ser considerado não apenas trabalho em serviços

propriamente ditos, mas também trabalho reflexivo inserido no processo de produção de

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mercadorias ou no trabalho industrial que se utiliza de tais atributos da comunicação e

da inteligência. Por exemplo, o “trabalho em equipe” (ou em rede) na indústria tende a

exigir elementos de trabalho imaterial e o modo de organização toyotista do trabalho se

baseia na apropriação dos atributos de comunicação e inteligência para sustentação de

seus dispositivos organizacionais (just-in-time/kanban, kaizen, etc). (ALVES, 1999).

Deste modo, o trabalho imaterial se dissemina tanto nos serviços quanto na

indústria que incorpora a nova base sócio-tecnica e que incorpora os novos modos de

gestão toyotista. Além disso, trabalho imaterial tende a se articular irremediavelmente,

através da categoria de trabalhador coletivo, com o trabalho material (o que impede

uma falsa disjunção). Ou ainda, por conta das mutações sócio-técnica da grande

indústria, o trabalho material tende a ser afetado pelas determinações intrínsecas do

trabalho reflexivo nos serviços.

O conceito de trabalho imaterial pertence ao estatuto categorial do trabalho

concreto. É claro que, em se tratando de modo de produção capitalista, o que está posto

é trabalho abstrato, a forma dominante de trabalho produtor de valor. Entretanto, apesar

do trabalho concreto subsumir-se ao trabalho abstrato, ele não deixa de determinar, de

certo modo, a dinâmica da valorização. Na perspectiva dialética, o trabalho abstrato não

suprime o trabalho concreto (assim como o valor de troca não abole o valor de uso) –

pelo contrário, o incorpora (ou melhor, o subsume) de forma contraditória. O que

significa que, sob determinadas condições, o trabalho concreto tende a criar obstáculos

(e impor limites) à própria lógica do trabalho abstrato.

Por exemplo, a atividade de trabalho em serviços possui um estatuto concreto

que a torna não-adequada à valorização de capital, embora possamos ter produção de

valor no setor de serviços (é um dos casos do que consideramos valorização

problemática). Em seu ensaio intitulado “Trabalho como categoria sociológica

fundamental?”, de 1984, Claus Offe reconheceu a inadequação dos serviços à

exploração plena do capital. Diz ele: “Enquanto que a maior parte do trabalho realizado

no setor ‘secundário’, na produção industrial de bens, pode realmente ser levado ao

denominador comum abstrato, por ser regido pelo mesmo regime da produtividade

técnica e organizacional, assim como pela decisiva rentabilidade de cada unidade

econômica, tais critérios do processo de trabalho e da valorização perdem sua (relativa)

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nitidez quando o próprio trabalho torna-se reflexivo, isto é, na maior parte do setor

‘terciário’ do trabalho em serviços.” (OFFE, 1989).

Ora, o que Offe expõe é o exemplo de que, sob determinadas condições, o

trabalho concreto tende a criar obstáculos (e impor limites) à própria lógica do trabalho

abstrato. – ou seja, na sintaxe dialética, a forma material tende a obstruir (ou não-

adequar-se) à forma social. Segundo ele, o trabalho em serviços possui outra

racionalidade técnica (ou seja, material), isto é, “a crescente incapacidade de sua

normatização tem que ser compensada por virtudes como a capacidade de interação, o

senso de responsabilidade, a empatia e a experiência adquirida casuisticamente; e no

lugar dos critérios de racionalidade econômica e estratégica surgem estimativas de

demanda e das utilidades adquiridas por convenção, por consenso profissional ou de

forma política discricionária.” (OFFE, 1989)

Mais adiante, ele irá reconhecer a não-adequação plena da forma material dos

serviços à forma social do capital. Diz ele: “Por isso, o trabalho – público ou privado –

em serviços se entende como um ‘corpo estranho’ que, mesmo não sendo

‘emancipado’do regime de racionalidade econômica formal do trabalho, é delimitado

apenas externamente, sem ser estruturado internamente, permanecendo entretanto

funcionalmente imprescindível.” (OFFE, 1989)

Portanto, Offe reconhece, primeiro, que o trabalho reflexivo em serviços (ou o

que alguns autores irão denominar trabalho imaterial) aparece como um ‘corpo

estranho’ à lógica da valorização do capital, embora – e isto é importante – “não tenha

se ‘emancipado’ do regime de racionalidade econômica formal do trabalho” (o que, por

exemplo, Lazzarato e Negri e inclusive Gorz tendem a esquecer). O que significa que o

trabalho reflexivo em serviços não deixa de estar subsumido ao capital, embora

formalmente. Entretanto, por conta de sua forma material (ou racionalidade técnica),

existem limites à sua subsunção real ao capital (ou o que Offe, num linguajar weberiano

irá denominar “racionalidade econômica do trabalho”).

Na verdade, estamos diante de uma candente contradição no seio da produção

material (e imaterial) do capital, pois o que Gorz denomina de “novo saber”, ou o

trabalho reflexivo em serviços, ou trabalho imaterial, embora seja “funcionalmente

imprescindível” à reprodução sócio-metabólica da ordem industrial-capitalista, é

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14

delimitado pela lógica do valor apenas externamente, sem ser estruturado internamente.

Esta nova racionalidade técnica (ou material) do trabalho imaterial expressa tão-

somente a recalcitrância do “novo saber” à lógica do valor de troca ou do próprio valor

em movimento.

Embora Offe não o diga, o trabalho imaterial tende a prenunciar um dos

elementos de crise da valorização do capital na terceira modernidade – crise de

valorização no sentido de valorziação problemática e de desmedida de valor. É claro

que o sociólogo alemão não utiliza, em 1984, o conceito de trabalho imaterial.

Entretanto, está claro que a idéia de trabalho reflexivo em serviços possui o mesmo

significado de trabalho imaterial. Diz ele: “Uma característica essencial daquele

trabalho reflexivo em serviços me parece consistir em que ele mesmo elabora e mantém

o próprio trabalho, e produz a produção mental e organizatoriamente. Atividades como

o ensino, a cura, o planejamento, o organizar, a negociação, o controle, a administração,

a consultoria, etc – ou mesmo, em termos mais genéricos: a atividade de prevenção,

absorção e assimilação de riscos e desvios da normalidade – mesmo sendo por um lado,

como a produção de bens, atividades de ‘trabalho assalariado’ no bojo de organizações

privadas ou estatais, se diferenciam nitidamente destas...” (OFFE, 1989)

No sentido lógico-ontológico da dialética materialista, pode-se dizer que, a

forma social do capital tende a criar a forma material à sua própria imagem e

semelhança (como, por exemplo, o capital criou, ou melhor, se apropriou historicamente

da maquinaria como matéria adequada ao desenvolvimento da sua forma social).

Entretanto, existem limites materiais à imposição da forma social do capital (a distinção

entre obstáculo e limite é importante, pois enquanto o obstáculo é passível de superação,

o limite é tão-somente passível de reconhecimento (e incorporação) enquanto

necessidade ineliminável).

Por exemplo, Marx nos Grundrisse tende a identificar processo civilizatório

como o “recuo dos limites naturais” (Mészáros dirá que, por conta da grande melhoria

da produtividade, tende a ocorrer um “processo de liberação das restrições da auto-

suficiência”). Ora, trata-se, primeiro, de recuo tendencial e não mera abolição/supressão

dos limites naturais, e segundo, de limites naturais irremediáveis (e inelimináveis),

tendo em vista que, se fossem obstáculos, seriam passiveis de superação/supressão, o

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15

que não é o caso da dialética homem e natureza. Ou seja, o processo civilizatório não é

negação/supressão da natureza pelo homem, mas sim superação dialética (aufhebung,

superar/conservando), no sentido de sua incorporação social, através do reconhecimento

das legalidades ontológicas do ser orgânico e ser inorgânico. Como nos diz Lukács,

embora o ser social seja algo qualitativamente novo, cuja gênese não pode jamais ser

simplesmente “deduzida” da forma mais simples, não seremos capazes de captar sua

especificidade se não compreendermos que um ser social “só pode surgir e se

desenvolver sobre a base de um ser orgânico e que esse último pode fazer o mesmo

apenas sobre a base do ser inorgânico.” (LUKÁCS, 1978).

O que queremos salientar é que, existe uma homologia lógico-estrutural entre a

dialética homem e natureza e a dialética trabalho abstrato e trabalho concreto, tanto

quanto trabalho material e trabalho imaterial (o que significa que é ocioso contrapor,

numa perspectiva lógico-formal, tais determinações reflexivas). Sob o socio-

metabolismo do capital o que se constitui é uma mediação contraditória entre ser social

e natureza, que se expressa na determinação reflexiva estranhada trabalho abstrato e

trabalho concreto, ou mesmo, trabalho material e trabalho imaterial (ou trabalho

reflexivo em serviços, que na etapa desenvolvida da sócio-reprodutibilidade do capital

tende a se imiscuir no processo de produção de mercadorias – como observa Offe,

torna-se “funcionalmente imprescindível”).

Assim, o trabalho imaterial tende a ser um “novo saber” nas instâncias

dinâmicas de produção do capital, vinculado aos novos requisitos da base técnico-

produtiva, que tende a ser resistentes às determinações do trabalho abstrato. Enfim,

incorporando a lógica do trabalho reflexivo em serviços, como diria Offe, a produção

industrial tende a constituir em si, uma forma de trabalho concreto recalcitrante à lógica

do valor de troca (entretanto, como observou Offe, embora seja um “corpo estranho”, o

trabalho imaterial não se “emancipou” da racionalidade econômica formal do trabalho).

Por outro lado, o trabalho imaterial é um componente intrínseco da produção

material que tende a se ampliar por conta do desenvolvimento necessário das forças

produtivas do trabalho social e das mutações sócio-técnicas no conteúdo do trabalho.

Inclusive, é por conta da emergência do “novo saber”, ou do trabalho imaterial, trabalho

reflexivo em serviços (que tende a torna-se também trabalho reflexivo na indústria, na

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16

produção de bens, por conta das metamorfoses da base sócio-tecnica da produção de

mercadorias), que surge e desenvolve-se o “modelo da competência” (o que trataremos

mais adiante) (ZARIFIAN, 2001).

É importante salientar que o trabalho imaterial não é o único elemento de

negatividade que tende a “desmanchar” tendencialmente, através de sua própria

expansão alucinada, a forma-mercadoria. Na perspectiva marxista clássica, podemos

salientar, nos últimos trinta anos, o incremento da composição orgânica do capital, da

substituição progressiva de trabalho vivo por trabalho morto, que reduz o quantum de

força de trabalho na esfera da produção do capital, atingindo a produção de valor

(lembremos que só a força de trabalho produz mais-valia). É claro que atuam, no bojo

dessa lei geral da queda tendencial da taxa média de lucro, um complexo de tendências

e contra-tendências historicamente determinadas. Deste modo, o que se constata é que a

produção de valor sob a terceira modernidade é tão expansiva quanto problemática. Eis

o verdadeiro sentido da crise estrutural do capital.

Além disso, ao lado do trabalho imaterial e das pressões persistentes do aumento

da composição orgânica do capital, temos a expansão da exploração capitalista nas

atividades de trabalho em serviços, receptáculo primordial do “novo saber”, que tende a

ser, como salientamos acima, forma material de trabalho não-adequada à lógica da

valorização, isto é, recalcitrante à forma-mercadoria em virtude de determinados

atributos concretos (por exemplo, saúde e educação embora tenham se tornado áreas de

investimento de capital, a exploração da força de trabalho não pode ser organizada nos

moldes da indústria propriamente dita).

É claro que, na última metade do século XX, sob a III Revolução Científico-

Tecnológica, buscando recompor as bases de valorização, o capital avança no setor de

serviços (o que tende a se disseminar a ideologia da “sociedade de serviços” ou

“sociedade pós-industrial”). Apesar de formalizar (e mecanizar/automatizar) algumas

atividades de serviços, não consegue faze-lo com outras, detendo-se diante dos nichos

dos “novos saberes”. O fato de se deter não significa que não os incorpore como agência

de exploração de valor. Mas, na ótica do valor, o trabalho imaterial como trabalho

concreto tende a “sabotar” a produção de trabalho abstrato. Enfim, o setor de serviços é

um campo problemático para a expansão da valorização.

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É claro que há, sob o capitalismo global, expansão sistêmica da produção

capitalista, seja ampliando as atividades capitalistas nos serviços, seja incorporando os

novos saberes à atividade industrial. Entretanto, o que sugerimos é que, devido a

natureza das novas determinações da produção do capital, a produção de valor tende a

ser “negada” (superar/conservando) no interior de seu próprio movimento efetivo,

ocasionando crescente instabilidade sistêmica, apesar do avanço expansionista do modo

de produção capitalista.

Deste modo, em síntese, destacaríamos como determinações cruciais da crise do

trabalho abstrato e do desenvolvimento da valorização problemática e da desmedida do

valor, os seguintes elementos:

(1) a dinâmica estrutural intrínseca à produção do capital, que percorre a

passagem da manufatura para a grande indústria e a própria temporalidade da grande

indústria, isto é, a substituição progressiva de trabalho vivo por trabalho morto, a

passagem da subsunção formal para a subsunção real do trabalho ao capital, com

tendências e contra-tendências historicamente determinadas;

(2) o desenvolvimento e ampliação do setor de serviços com seu espectro de

valorização problemática (é curioso que o surgimento da “sociedade de serviços” ocorre

num momento de explicitação aguda de crise do trabalho abstrato. Na verdade, o que os

serviços ocultam é a própria desmedida do valor).

(3) A constituição de “novos saberes” nas instâncias dinâmicas de produção do

capital resistentes às determinações do trabalho abstrato. Os “novos saberes”, matriz do

trabalho imaterial ou do trabalho reflexivo na indústria, decorre do próprio

desenvolvimento da nova base técnica do sistema produtor de mercadorias, das novas

máquinas complexas que constituem o arcabouço da produção social. Entretanto,

embora tão necessário às novas condições de produção social, o “novo saber” tende a

não agregar, na produção do capital, valor de troca (valor econômico).

- Saberes e Conhecimentos

O surgimento (e desenvolvimento) dos “novos saberes” no processo de produção

social, por conta da nova base sócio-técnica da produção de mercadorias, sob o modo de

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organização toyotista do trabalho, é um elemento contraditório da relação-capital. Em

seu livro “O Imaterial”, André Gorz distingue saber (ou saberes) e conhecimento. Diz

ele: “O saber é, antes de tudo, uma capacidade prática, uma competência que não

implica necessariamente conhecimentos formalizáveis, codificáveis.” O saber, matriz do

trabalho imaterial, é aquilo que não se ensina, mas se aprende pela prática, pelo

costume, ou seja, quando alguém se exercita fazendo aquilo que se trata de aprender a

fazer. Sua transmissão, como observa Gorz, consiste em apelar à capacidade do sujeito

de produzir a si próprio. Enquanto o conhecimento é passível de formalização, sendo

transformados em conhecimentos homologados e profissionalizados, para se tornarem

serviços tarifados, o saber é recalcitrante à formalização. Enfim, o caminho do saber

não se aprende na escola.

Observa Gorz: “Os saberes comuns ativados pelo trabalho imaterial não existem

senão em sua prática viva e por ela. Eles não foram adquiridos e produzidos em vista de

trabalho que podem realizar ou do valor que podem assumir. Eles não podem ser

destacados dos indivíduos sociais que os praticam, nem avaliados em equivalente

monetário, nem comprados ou vendidos. Os saberes resulta da experiência comum da

vida em sociedade e não podem ser legitimamente assimilados ao capital fixo.” (GORZ,

2005)

Embora, o trabalho imaterial ou o receptáculo dos “novos saberes” estejam

subsumidos ao capital, como relação social de produção, ele, por suas qualidades

concretas intrínsecas, não consegue produzir trabalho abstrato, fonte de valor. Eis uma

das determinações da crise estrutural do capital. Os “novos saberes” como parte

integrante do patrimônio cultural, competências comuns da vida cotidiana, são

recalcitrantes à lógica do trabalho abstrato e da lei do valor, pois são, em si, irredutíveis

à quantificação pelo tempo de trabalho, o que significa que não é passível de ser

precificado (aliás, podem até ter preço, que aparecem como mero simulacro do valor):

“Thomas Jefferson já dizia que eles ‘não se prestam à apropriação privada’, nem à troca

comercial, pois é impossível reduzi-los a uma substância social comum mensurável que

permita determinar as relações de equivalência entre elas. Não podendo se exprimir em

unidades de valor, sua avaliação como capital resta problemática.” (GORZ, 2005)

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19

Deste modo, Por serem incapazes de ser formalizado, os novos saberes não

podem sere incorporados na máquina (o que ocorre, por exemplo, com o conhecimento

que, formalizado, tende a se interverter em máquina ou capital fixo). Entretanto, o

capital não poderia deixar de tratar e de fazer funcionar os novos saberes como se ele

fosse um capital, buscando capitaliza-lo, interverte-lo em conhecimento apropriavel,

inteligência artificial, submetido ao seu controle e a utilização que dele é feita. Enfim,

deve-se tornar propriedade exclusiva da firma que o valoriza incorporando-o nas

mercadorias com que eles se produzem. O capital exercita, deste modo, uma de suas

características ontológicas, isto é, ser usurpador perpetuo da potentia natural desperta

pelo trabalho vivo, seja das forças da natureza propriamente ditas, despertas pela ciência

e pela técnica como tecnologia; seja da cooperação social, força produtiva primordial,

produto natural do ser genérico do homem.

Na verdade, o trabalho imaterial tende a ser um nexo “estranho”, sempre

tensionado, na ordem produtiva do capital. Isto não significa que os novos saberes não

estejam “integrados” e não sejam parte compositiva imprescindível da produção do

capital. Pelo contrário, é parte do capital industrial e parte compositiva do processo de

trabalho material. Mais uma vez salientamos: o trabalho imaterial ativado pelos “novos

saberes” é determinação reflexiva ineliminável do trabalho material sob as novas

condições da produção do capital sob o trabalho complexo.

Além disso, é importante esclarecer, mais uma vez, que, o trabalhador coletivo,

produtor de valor, articula, em si, trabalho material e trabalho imaterial, articulando,

portanto, novos saberes e conhecimentos. O que se coloca é que, o trabalhador coletivo

tende a constituir-se, cada vez mais, em seus pólos dinâmicos, de locis de trabalho

imaterial, irredutíveis a uma substância comum mensurável (tempo de trabalho) que

permita determinar as relações de equivalência entre eles. Eis, portanto, a crise

tendencial da produção de valor no capitalismo global (é nesse sentido que Gorz

observa que “o capitalismo cognitivo é a crise do capitalismo em seu sentido mais

estrito”).

Ora, na medida em que predominam nos pólos dinâmicos da produção

capitalista, os novos saberes, o capital está diante de seu próprio limite intrínseco: a

natureza do trabalho vivo, sua dimensão intelectual-espiritual, intrinsecamente anímica,

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20

que compõe a vida cotidiana e as práticas concretas de homens e mulheres socializados.

Na medida em que os “novos saberes” assumem um papel estratégico na produção do

capital, abre-se um novo campo de luta, de tensão contraditória pela formalização do

trabalho vivo – isto é, pela “captura” da subjetividade da força de trabalho como

trabalho vivo.

Alguns autores, como Maurizio Lazzarato e Antonio Negri, destacam o processo

do trabalho imaterial como sendo produção de subjetividade (LAZARRATO E NEGRI,

2001). Primeiro, é um equivoco o conceito de “processo (ou ciclo) da produção

imaterial”. Na verdade, o que existe é processo de trabalho capitalista, um complexo

vivo de trabalho que articula, em si, trabalho material e trabalho imaterial. É mera

fantasia conceitual admitir um tipo puro de trabalho imaterial, ou mesmo a disjunção

trabalho imaterial/trabalho material. Nenhum empreendimento produtor de valor possui,

em si, tão-somente trabalho imaterial. Mesmo o trabalho reflexivo em serviços, embora

seja intensamente “afetado” pelo trabalho imaterial, tende a possuir elementos de

trabalho material, na medida em que ocorre como empreendimento capitalista que

articula uma complexa divisão social (e técnica) de trabalho.

Enfim, trabalho material não diz respeito ao conteúdo da atividade laboral (por

exemplo, confundir trabalho material com trabalho manual). Por exemplo, alguns

elementos do trabalho intelectual podem ser considerados trabalho material desde que

sejam passíveis de formalização e de procedimentos homologados e, portanto, de

redução, em alguns de seus elementos compositivos, à atividade abstrata (e mecânica).

Caso eles sejam passíveis de redução a conhecimentos formalizados, convertendo-se,

portanto, em capital fixo, separável de seu produtor (um software, por exemplo), podem

ser considerados trabalho material.

É claro que, por outro lado, alguns elementos compositivos do trabalho

intelectual tendem a articular “novos saberes”, saber vivo e vivido, que conserva a

marca da pessoa que a exerce e não é passível de formalização e alienação (ser

separável do produtor, cristalizando-se num software, por exemplo). Deste modo, é o

que podemos denominar de trabalho imaterial.

Além disso, a categoria de trabalho material diz respeito ao trabalho estranhado,

subsumido à divisão hierárquica de trabalho. Por isso, Marx vai dizer que o

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21

estranhamento surge a partir da divisão entre trabalho material (materiellen Arbeit) e

trabalho espiritual (geistigen Arbeit), isto é, com o surgimento da divisão hierárquica do

trabalho. Nesse caso, ao dizer trabalho espiritual, Marx diz trabalho imaterial

propriamente dito, isto é, trabalho vivo recalcitrante à alienação e, portanto

incompatível (ou incongruente) com a lógica do capital (MARX E ENGELS, 1973).

Depois, o que ocorre, sob a nova materialidade crítica do capital, não é mera

produção de subjetividade, como sugere Lazzarato e Negri, mas, sim, um processo

contraditório, de luta intensa, pela “captura” da subjetividade do trabalho vivo, agente

dos novos saberes, pela lógica do trabalho abstrato (que é o nexo essencial da produção

toyotista, seja na indústria, seja nos serviços capitalizados). Essa tentativa perpétua de

formalização do trabalho vivo ou do trabalho imaterial, adequando-o à materialidade do

trabalho abstrato, é a busca recorrente de novas formas de gestão de pessoas nos locais

de trabalho (ou a base material da “ideologia da competência”).

- Trabalho Imaterial e Sistema de Máquinas

O processo de produção do capital, que é processo de produção do trabalho

abstrato, fundamento da forma-mercadoria, impõe um processo de transição da

manufatura para a grande indústria. É um processo de substituição irremediável de

trabalho vivo por trabalho morto (o que é componente intrínseco do próprio “recuo dos

limites naturais” – o que, sob a lógica do capital tende a significar irremediavelmente

estranhamento). Deste modo, sob o modo de produção capitalista, o processo de

industrialização universal contém em seu bojo, a apropriação pelo capital, do saber

tácito – saber-fazer e saber-ser - do mundo do trabalho vivo, e sua transformação (ou

formalização) em conhecimento, que através da ciência, tendem a serem transformados

em tecnologias, formas sociais da técnica.

Sob a civilização do capital, a forma-máquina tende a ser expressão da

cristalização tendencial dos saberes em conhecimentos fetichizados (nem todos os

saberes que os profissionais praticam podem ser cristalizados em máquina ou mesmo

homologados e formalizados). O trabalho vivo se defronta com a máquina como uma

coisa estranha a si própria, quando o objeto técnico é, na verdade, cristalização de um

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conhecimento apropriado pelo capital, de um saber tácito formalizado, que se

transfigura em capital fixo. Na verdade, o movimento de abstração do trabalho vivo em

trabalho morto é o próprio desenvolvimento do sistema de máquinas. Eis o cerne

essencial da categoria de estranhamento e de fetichismo da mercadoria.

Deste modo, a forma-máquina é expressão suprema do trabalho abstrato (aliás,

a forma-máquina é, em si, um ente abstrato). Mas, ela expõe, do mesmo modo, uma

suprema contradição do capital, tendo em vista que, ao “negar” trabalho vivo, a forma-

máquina tende a negar a si própria na medida em que nega/suprime a fonte de valor, a

força de trabalho. Ora, o trabalho abstrato ao ser posto, tende à auto-negação através de

seu próprio movimento (é impossível apreender o movimento do real capitalista sem a

sintaxe dialética). Assim, a lei do valor tende a ser abolida virtualmente ao tornar-se

efetiva.

O que significa que o surgimento e desenvolvimento da forma-máquina através

da grande indústria – o que se constatou no decorrer do século XX - expressa o ápice de

desenvolvimento contraditório da produção de mercadorias. Mas é importante

acompanhar o desenvolvimento do sistema de máquinas em sua dimensão concreta. As

máquinas adquirem formas tecnológicas historicamente determinadas. As novas

máquinas complexas do capitalismo global tendem a repor, nas condições da crise

estrutural (sendo elas o “fator tecnológico” da própria crise estrutural), o trabalho vivo

negado tendencialmente pelo movimento de subsunção real do trabalho ao capital (é o

que Ruy Fausto irá salientar como um novo desdobramento dialético da subsunção real,

que ele denomina de subordinação formal-material (em sentido próprio), em subsunção

formal-intelectual (espiritual) do trabalho ao capital) (FAUSTO, 1989).

Entretanto, o trabalho vivo que se põe através do trabalhador coletivo “afetado”

pelo trabalho imaterial, tende a repor “novos saberes”, não mais o saber artesanal,

tendo em vista que o saber artesanal pertencia a um estágio menos desenvolvido das

forças produtivas do trabalho social, mas sim, os saberes imateriais, produto de

subjetividade complexa, tensionalmente “integrada” à lógica do capital (inclusive parte

dele, como simulacro do capital variável), impassível à formalização, e irredutível à

uma substância social comum mensurável (o tempo e trabalho).

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Sob a grande indústria, a formalização do saberes em conhecimento compunha

o mote da educação técnica e profissional que adestrava homens e mulheres à linha de

produção, ao seu posto de trabalho, quase como máquinas vivas, logo substituídas por

capital fixo. No segundo momento, de crise da grande indústria, que prenuncia a pós-

grande indústria, os “novos saberes”, ativadas pelas subjetividades complexas,

obrigadas a lidar com novas máquinas complexas lastreadas nas tecnologias molecular-

digital (isto é, máquinas que exigem “afetos” e “envolvimento”), tendem a serem

resistentes à mera formalização abstrata, que tanto alimentou a lógica do trabalho

abstrato em sua odisséia mecânico-industrial. Deste modo, pode-se dizer que hoje, sob o

capitalismo global, temos a crise da educação técnica e profissional, cujo sintoma

estrutural é o surgimento do modelo de competência.

Enfim, sob a crise da grande indústria, que atravessa o século XX até hoje, o

que observamos não é um mero retorno do “saber artesanal”, como poderiam sugerir

Piore e Sabel, tendo em vista que os “novos saberes”, o trabalho imaterial, é bom

lembrar, é parte compositiva imprescindível da “máquina” capitalista (PIORE e

SABEL, 1986). Como trabalho imaterial, determinação reflexiva do trabalho material,

não é exterior à implicação do trabalho abstrato, sendo ele próprio expressão da

subsunção real do trabalho ao capital. Entretanto, o que os ideólogos entusiastas do

trabalho imaterial não salientam é sua interioridade tensa, convulsionada pela sua

própria natureza, que abre, hoje, nos locais de trabalho que são eixos dinâmicos de

acumulação de valor, um novo campo de luta de classes.

Portanto, o trabalho imaterial expressa, enquanto elemento compositivo

imprescindível do trabalhador coletivo complexo, subsumido à lógica do valor, o pleno

desenvolvimento da materialidade contraditória do trabalho abstrato. Ao invés de negar

o trabalho material, é expressão de sua própria expansividade contraditória.

4. 2 A incongruência contraditória entre matéria e forma social do capital

Além da desmedida do valor, que tratamos na seção acima, outra determinação

essencial da crise estrutural do capital é a aguda incongruência entre forma material e

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forma social do capital nas condições da grande indústria tardia. As mutações

estruturais do capital sob a terceira modernidade, caracterizada pelo desenvolvimento

das bases sócio-tecnicas da produção de mercadorias e da reprodução social, tendem a

agudizar a incongruência entre forma material e forma social (com impactos

significativos na instância sócio-reprodutiva da educação, principalmente da educação

técnica e profissional, o que trataremos adiante). Ela é uma manifestação fenomênica da

contradição entre valor de troca e valor de uso e está implícita na própria forma-

mercadoria. Além disso, está contida, por derivação, nas inadequações entre trabalho

imaterial e atividade de serviços e valor de troca, destacados acima.

A incongruência contraditória entre forma material e forma social do capital

tende a se agudizar na medida em que se desenvolve o modo de produção de

mercadorias e a socialização da produção com sua nova base técnico-material. Ela

expressa a contradição essencial, destacada por Marx, entre o desenvolvimento da base

sócio-técnica que tende a propiciar a diminuição do tempo socialmente necessário à

reprodução dos homens, e o sócio-metabolismo do capital, baseado no trabalho

estranhado e na barbárie social (a aguda racionalização da produção de capital, como

atestam os novos métodos de gestão e organização da produção de mercadorias, e a

crescente irracionalidade social, como atestam os indicadores de desemprego,

marginalidade urbana e incapacidade de uma vida plena de sentido na civilização das

mercadorias).

No “Prefácio” da “Contribuição à Crítica da Economia Política”, em 1858, Karl

Marx destacou como princípio explicativo da “era de revolução social” (que

caracterizou o século XX) a incongruência contraditória entre forma material e forma

social do capital. Diz ele: “Em certa fase de seu desenvolvimento, as forças produtivas

da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que

não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade, no seio das quais

elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas, que

eram, essas relações convertem-se em seus entraves. Abre-se, então, uma era de

revolução social.” (MARX, 1983).

Pouco mais de um século e meio, conseguimos apreender o complexo de

contradições da vida material que decorrem da aguda incongruência contraditória entre

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forma material, isto é, as forças produtivas latu sensu (incluso, como elemento

compositivo ineliminavel essencial, o trabalho vivo e a subjetividade complexa) e a

forma social do capital, isto é, não apenas as relações sociais de produção capitalista

strictu sensu, mas a totalidade concreta do sócio-metabolismo do capital (a posição do

trabalho imaterial, que expusemos acima, é expressão desta nova base material, limitada

em seu desenvolvimento, pela forma social do capital).

O caráter ensaístico destas digressões impede uma exposição ampla e precisa das

múltiplas contradições da vida social, expostas por conta da aguda incongruência

contraditória entre matéria e forma social do capital. Por exemplo, o que nos interessa

tratar aqui é que, a incongruência contraditória em destaque tende a expor os limites

irremediáveis das promessas emancipatórias das novas formas de gestão pós-fordista e

pós-tayloristas. Inclusive a suposta nova lógica do “modelo de competência”, que

iremos tratar, de modo breve, a seguir, traduz em si, esta não-adequação radical entre

forma material, que exige uma nova lógica de gestão dos recursos humanos, e a forma

social do capital, baseada na divisão hierárquica do trabalho e na propriedade privada

dos meios de produção da vida material.

5. Breves digressões sobre o modelo da competência

Quais os impactos destas mutações estruturais do capital salientadas acima, isto

é, a desmedida do valor e a agudização da incongruência contraditória entre matéria e

forma social, na instância sócio-reprodutiva da educação profissional?

O que iremos indicar, a seguir, são meros apontamentos críticos, sugestões de

investigação teórico-critica no campo da sociologia da educação ou dos estudos de

trabalho e educação numa perspectiva dialética. Primeiro, a educação é a base da

reprodução social. É claro que utilizamos o termo “educação” não apenas no sentido de

educação escolar ou educação técnica ou educação profissional. Educação é todo o

sistema de internalização, com todas as suas dimensões visíveis e ocultas. Deste modo,

educação é o próprio sentido da reprodução social. Como observa István Meszáros,

parafraseando Jose Martí, “a aprendizagem é a nossa própria vida, desde a juventude até

a velhice” (MÉSZÁROS, 2005) Deste modo, ao se deter na crise da educação, tanto em

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seu livro clássico “Marx: Teoria da Alienação”, e mais tarde no pequeno livro

“Educação para Além do Capital”, István Meszáros se debruçou, de certo modo, sobre a

crise da sócio-reprodutibilidade do capital.

Mas a crise da educação possui um desdobramento no plano da educação

profissional e da relação trabalho e educação propriamente dita. É a crise do fordismo e

dos métodos de gestão taylorista da produção. Foi no contexto da crise estrutural do

capital, em meio ao debate sobre as mudanças no processo de trabalho e sobre as

necessidades de novos perfis de trabalhadores, que emerge o termo “competência”, que

aparece fazendo contraponto com a noção de qualificação profissional, sob o argumento

de que esta teria se tornado incapaz de dar conta da nova realidade, caracterizada pelo

trabalho flexível (não entraremos no referido debate, tratado com desenvoltura por

ARAUJO, 1999).

A noção de “competência” surge inspirada no modelo japonês de organização da

produção e passa a orientar uma nova forma de gestão, controle e organização do

trabalho. De certo modo, ela é a resposta capitalista à crise da educação profissional

como expressão particular da crise geral da educação ou da sócio-reprodutibilidade do

capital. Como observa Ronaldo Araújo, a idéia de competência ainda carece de uma

definição mais precisa. Diz ele: “De uma forma geral, designa a capacidade mobilizada

pelos indivíduos ao buscar a realização de uma atividade ou a resolução de problemas.”

E destaca: “É o recurso que faz da subjetividade dos trabalhadores um elemento central

e distintivo.” (ARAUJO, 2000)

Ora, o que podemos constatar é que a noção de “competência” é expressão

ideológica das mutações estruturais do capital, seja através da explicitação do trabalho

imaterial, que, enquanto trabalho reflexivo, busca “capturar” a subjetividade do

trabalho; seja da aguda incongruência contraditória entre matéria e forma social do

capital, tendo em vista que, as promessas de superação da desumanização fordista-

taylorista do posto e da linha de produção tendem a se frustrarem diante dos limites

sistêmicos da ordem capitalista.

Em poucas linhas, Zarifian em seu livro “Objetivo Competência” não deixou de

reconhecer en passant, as candentes contraditoriedades da lógica da competência no

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sistema do capital. Conclui ele, após fazer considerações sobre a emergência do modelo

de competência:

“No entanto, em meados dos anos 90, percebe-se certa falta de fôlego, e não é

pequeno o risco de ver os esforços desenvolvidos até aqui cessarem. A lógica

competência pode morrer devido ao fato de estar comprimida entre, de um lado, a

aparelhagem burocrática destinada mais a controlar que a animar uma nova lógica e, de

outro lado, uma interpretação estritamente individualizante. Em conseqüência disso, a

lógica competência não conquistou a dimensão de uma verdadeira construção social e,

sobretudo, não se percebe claramente o que fundamenta sua necessidade.”

(ZARAFIAN, 2001)

Ora, “aparelhagem burocrática de controle” e “interpretação individualizante” é

o próprio espírito sistêmico do capital que Zarifian parece não reconhecer (ele continua

no horizonte da economia política, não tendo, portanto, uma teoria crítica do capital).

Por isso, sua proposta da “lógica competência”, que busca conquistar a dimensão de

uma verdadeira construção social, tende a parecer mais com os ideais de um suposto

socialismo utópico do que com uma proposta exeqüível nas condições sistêmicas (e

constrangedoras) do capital.

É claro que a idéia de “competência” possui uma legalidade sócio-ontológica nas

condições da crise estrutural do capital e do capitalismo global. Isto é, ela possui uma

necessidade intrínseca vinculada à própria constituição do novo trabalhador coletivo

afetado de trabalho imaterial. Enfim, ela contém uma promessa emancipatório humano-

genérica que aparece como pressuposto negado pelo próprio sistema do capital.

Portanto, eis a suprema contradição: as relações sociais do capital, constituídas

pelo controle burocrático ineliminavel e pela apropriação privada da riqueza social,

tendem, como constatou acima o próprio Zarifian, a obstaculizar/inverter/perverter a

“lógica competência”. É claro que a “lógica competência” é acima de tudo uma

construção social. Entretanto, o que nos interrogamos é como uma sociedade da

irracionalidade social e do poder social estranhado pode propiciar o que se almeja

efetivamente com a ideologia da lógica competência.

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