culturas e histórias dos povos indígenas

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MÓDULO 4 CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS Marcos conceituais referentes à diversidade sociocultural Vanderléia Paes Leite Mussi Antonio H. Aguilera Urquiza (org.) Vera Lucia F. Vargas Paulo Baltazar Ilda Bogado Campo Grande, MS 2011

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Marcos conceituais referentes à diversidade sociocultural

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Page 1: Culturas e Histórias dos Povos Indígenas

1CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo IV

MÓDULO 4

CULTURAS E HISTÓRIADOS POVOS INDÍGENAS

Marcos conceituais referentesà diversidade sociocultural

Vanderléia Paes Leite MussiAntonio H. Aguilera Urquiza (org.)

Vera Lucia F. VargasPaulo BaltazarIlda Bogado

Campo Grande, MS2011

Page 2: Culturas e Histórias dos Povos Indígenas

COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS2

PRESIDENTE DA REPÚBLICALuiz Inácio Lula da Silva

MINISTRO DA EDUCAÇÃOFernando Haddad

SECRETÁRIO EXECUTIVOJairo Jorge

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO, ALFABETIZAÇÃO E DIVERSIDADEAndré Lázaro

SECRETÁRIO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIACarlos Eduardo Bielschowsky

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL

REITORACélia Maria da Silva Oliveira

VICE-REITORJoão Ricardo Filgueiras Tognini

COORDENADORA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA - UFMSCOORDENADORA DA UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL - UFMS

Angela Maria Zanon

COORDENADOR ADJUNTO DA UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL - UFMSJoão Ricardo Viola dos Santos

COORDENADOR DO CURSO DE CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENASAntonio Hilario Aguilera Urquiza

CÂMARA EDITORIAL

SÉRIE

Angela Maria ZanonDario de Oliveira Lima FilhoDamaris Pereira Santana LimaJacira Helena do Valle Pereira

Magda Cristina Junqueira Godinho Mongelli

Obra aprovada pelo Conselho Editorial da UFMS

CONSELHO EDITORIAL UFMS

Dercir Pedro de Oliveira (Presidente)Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento

Claudete Cameschi de SouzaEdgar Aparecido da Costa.

Edgar Cézar NolascoElcia Esnarriaga de Arruda

Gilberto MaiaJosé Francisco Ferrari

Maria Rita MarquesMaria Tereza Ferreira Duenhas Monreal

Rosana Cristina Zanelatto SantosSonia Regina JuradoYnes da Silva Felix

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)

C968 Culturas e história dos povos indígenas, módulo 4 : marcos conceituaisreferentes à diversidade sociocultural / Antônio H. Aguilera Urquiza,(org.)...[et al.].– Campo Grande, MS : Ed. UFMS, 2010.

110 p. : il. ; 30 cm.

ISBN 978-85-7613-317-9

1. Ensino a distância. 2. Professores – Formação. 3. Educaçãomulticultural. 4. Nativos – Brasil – História. I. Urquiza, Antônio H.Aguilera.

CDD (22) 371.3944

Page 3: Culturas e Histórias dos Povos Indígenas

3CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo IV

SUMÁRIO

Apresentação ____________________________________________________ 5

CAPÍTULO I

Conceitos de Cultura e Relações Interétnicas _______________________ 9

1.1 Cultura – Um Conceito Polissêmico _______________________________ 9

1.2 Dinâmicas Sociais em Contexto de Relações Interétnicas ____________ 14

1.3 Mato Grosso do Sul:

Um Histórico de Negação da Presença Indígena ______________________ 17

1.4 Considerações Finais __________________________________________ 23

CAPÍTULO II

Poder e Desigualdade

- Assimetria nas Relações Interétnicas ____________________________ 27

2.1 Noções de Poder e Desigualdade ________________________________ 28

2.2 Relações de Contato e os Conceitos da Antropologia _______________ 32

2.3 As Teorias de Etnicidade e os Povos Indígenas _____________________ 39

2.4 Considerações Finais __________________________________________ 42

CAPÍTULO III

História e Histórias dos Povos Indígenas __________________________ 45

3.1 Lições do Passado: Antes de 1500... ______________________________ 45

3.2 Lições do Passado: Depois de 1500... ____________________________ 47

3.3 Lições do Passado: A Rota das Minas

e as Resistências Indígenas na América ______________________________ 48

3.4 Lições do Passado: A Rota das Minas

e as Resistências Indígenas no Brasil _________________________________ 52

3.5 Os Povos Indígenas e as Monções... ______________________________ 55

CAPÍTULO IV

Práticas Socioculturais dos Povos Indígenas _______________________ 63

4.1 Local de Residência: Produção e Reprodução Cultural ______________ 64

4.2 Organizações Sociais: Oralidades e os

Processos Próprios de Aprendizagem Socioculturais ____________________ 66

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COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS4

4.3 Saberes Indígenas:

Sistemas Econômicos e Meio Ambiente ______________________________ 68

4.4 Saberes Tradicionais: Saúde e Medicina... ________________________ 71

CAPÍTULO V

Movimentos Indígenas __________________________________________ 81

5.1 Dinâmicas Sociais em Contexto de Relações Interétnicas ____________ 81

5.2 Movimento Indígena __________________________________________ 83

5.3 Política Indigenista ____________________________________________ 88

CAPÍTULO VI

A Lei Nº 11.645 e sua Aplicação na Educação Básica ________________ 93

6.1 Dinâmicas Sociais em Contexto de Relações Interétnicas ____________ 93

6.2 A Lei 11.645/2008 ____________________________________________ 93

6.3 Aplicação da Lei 11.645/2008___________________________________ 99

6.4 Multiculturalismo e Interculturalidade ___________________________101

6.5 Índios, Esses Nossos Desconhecidos Irmãos Brasileiros _____________105

6.6 Considerações Finais _________________________________________106

Page 5: Culturas e Histórias dos Povos Indígenas

5CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo IV

APRESENTAÇÃO

O curso de Formação de Professores na temática CULTURAS E HISTÓ-RIA DOS POVOS INDÍGENAS insere-se no processo de consolidação da Redede Educação para a Diversidade (REDE), uma iniciativa de várias instituiçõesdo Governo Federal: Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Di-versidade (SECAD/MEC), em parceria com a Universidade Aberta do Brasil (UAB)e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES).O objetivo da Rede de Educação para a Diversidade (REDE) é estabelecer umgrupo permanente de formação inicial e continuada a distância para a dissemi-nação e desenvolvimento de metodologias educacionais de inserção dos temasdas áreas da diversidade, quais sejam: educação de jovens e adultos, educaçãodo campo, educação indígena, educação ambiental, educação patrimonial, edu-cação para os Direitos Humanos, educação das relações étnico-raciais, de gêne-ro e orientação sexual e temas da atualidade no cotidiano das práticas das redesde ensino pública e privada de educação básica no Brasil.

Culturas e História dos Povos Indígenas é um curso de formação conti-nuada de professores de educação básica, com carga horária de 240h distribuí-do em módulos, o qual se insere na Rede de Educação para a Diversidade(REDE). Ofertado na modalidade semipresencial, por meio do sistema da Uni-versidade Aberta do Brasil (UAB), o curso visa formar professores e profissionaisda educação capazes de compreender os temas da diversidade e, dentre eles, atemática das “culturas e história dos povos indígenas no Brasil”, e introduzi-losentre os conteúdos pedagógicos e no cotidiano da escola.

O propósito mais amplo deste curso é a formação continuada de professo-res, como forma de procurar responder de maneira dinâmica a uma educaçãoinserida em uma sociedade cada vez mais dinâmica. Desta forma, o objetivomais amplo é promover o debate sobre a educação como um direito fundamen-tal, que precisa ser garantido a todos e todas sem qualquer distinção, promoven-do a cidadania, a igualdade de direitos e o respeito à diversidade sociocultural,étnico-racial, etária e geracional, de gênero e orientação afetivo-sexual e àspessoas com necessidades especiais. Os professores e profissionais da educaçãotêm como principal desafio garantir a efetividade do direito à educação a todose cada um dos brasileiros, estabelecendo políticas e mecanismos de participa-ção e controle social que assegurem aos grupos historicamente desfavorecidos

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COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS6

condições para sua emancipação e afirmação cidadã. Neste sentido, a temáticadeste curso insere-se neste contexto, que é o de trazer à luz dos conteúdoscurriculares a temática das “culturas e história dos povos indígenas no Brasil”,temática silenciada durante tanto tempo e responsável pelo desconhecimentodeste importante seguimento do povo brasileiro na atualidade.

Este curso de formação continuada propõe módulos temáticos que abran-gem um largo espectro dos temas das “culturas e história dos povos indígenas”,visando formar professores e outros profissionais da educação da rede de ensinode educação básica para a promoção e compreensão da educação como direitofundamental e estratégia para a promoção do desenvolvimento humano das di-versas populações, para a inclusão de saberes diversos e enfrentamento de todoo tipo de discriminação e preconceito, particularmente contra os povos indíge-nas. O curso visa também proporcionar o estabelecimento de uma rede de co-laboração virtual para a discussão e compartilhamento de informações e apren-dizagens sobre práticas pedagógicas inclusivas na escola.

Nos últimos anos, principalmente após a Constituição Federal de 1988 e aLDB (lei nº 9394/96), percebemos a emergência de uma nova legislação queinsere nos currículos da Educação Básica a proposta de temas referentes à histó-ria e cultura afro-brasileira e, ultimamente, à história e cultura dos povos indíge-nas (Lei nº 11.645/2008). Trata-se de elementos constitutivos de nosso substratocultural, mas, que por motivos históricos, foi ideologicamente relegado ao quaseesquecimento e, quando trazido à tona, foi feito com um viés etnocêntrico erepleto de preconceitos.

Educar hoje, para a diversidade e a cidadania, é tratar desta histórica dívidapara com os grupos historicamente desfavorecidos e, dentre eles, os povos indí-genas e negros de forma objetiva, proporcionando o debate construtivo atravésdo acesso às informações relegadas às novas gerações. Quanto à nossa realidaderegional específica, podemos dizer que Mato Grosso do Sul caracteriza-se porser uma região de fronteiras, de acolhida e, ao mesmo tempo de trânsito. É, naatualidade, o segundo Estado brasileiro em população indígena, contando ofici-almente, com 08 etnias, destacando-se dentre elas, os Guarani e Kaiowá comquase 40 mil pessoas, os Terena com 20 mil e os Kadiwéu com 1.500 pessoas.Todos estes povos possuem suas particularidades históricas e convivem com asproblemáticas atuais de conflitos agrários, subsistência, preconceitos de todos ostipos, violências, etc.

Mato Grosso do Sul é, também, uma porta que está aberta aos circuitosilegais que integram lugares e economias e desintegram estruturas sociais. OEstado é, na verdade, um laboratório onde acontecem processos fronteiriços edinâmicos de integração de toda natureza, sejam eles aparentes, dissimulados,legais, funcionais, ilícitos, construtivos, históricos, estruturais ou conjunturais,espaço privilegiado para a discussão dos temas da diversidade e, dentre eles,especialmente o que diz respeito à trajetória histórica e cultural dos povos indí-genas.

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7CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo IV

A partir deste conjunto de elementos que conformam nosso contexto regi-onal serão conjugados, de forma dialógica, os conteúdos teórico-práticos pro-postos pelo curso em seus seis módulos (Módulo 01- Conceitos de EAD e ferra-menta Moodle; 02- Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo;03- Reconhecendo preconceitos sobre os povos indígenas; 04- Marcos conceituaisreferentes à diversidade sociocultural; 5- Projeto pedagógico sobre a temática;6- Seminário de encerramento), além da avaliação.

Quanto ao presente texto, referente ao 4º Módulo – Marcos conceituaisreferentes à diversidade sociocultural dos povos indígenas, é compostopor seis sub-temas, desenvolvidos na sequência:

I) Conceitos de cultura e relações interétnicas

• Cultura – um conceito polissêmico

• Dinâmicas sociais em contexto de relações interétnicas

II) Poder e desigualdade – assimetria nas relações interétnicas

• Noções de poder e desigualdade

• Relações e contato e os conceitos da Antropologia

III) História e histórias dos povos indígenas

IV) Práticas socioculturais dos povos indígenas

V) Movimentos Indígenas e Indigenista

VI) Aplicação da Lei 11.645/2008

Diante de uma sociedade cada vez mais caracterizada pela diversidade eseus imensos desafios lançados cotidianamente aos educadores, desejamos atodos/as que estes conteúdos sejam úteis para embasar reflexões e práticas cria-tivas sobre os aspectos da diversidade e a necessidade da introdução do temadas Culturas e História dos povos indígenas nas práticas pedagógicas, sem-pre em vista da construção de uma sociedade cada vez mais plural e participativa.

Prof. Antonio H. Aguilera UrquizaCampo Grande, janeiro de 2011

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9CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo IV

CAPÍTULO I

Antonio H. Aguilera Urquiza – UFMSVera Lúcia F. Vargas – UFMS

A pessoa humana é um ser de cultura.Em nossos corpos trazemos marcas de cultura.

(LARAIA, 2009)

Talvez o conceito de cultura seja um dos mais polissêmicos nos últimos doisséculos, no seio das Ciências Sociais. Um termo que mereceu muitos estudos edebates, além de um caudal de publicações, especialmente na área da antropo-logia. Mesmo assim, trata-se de um conceito que, por ter caído no linguajarcomum, acabou, em muitos casos, esvaziando-se de elementos importantes deseu conteúdo dado pelas ciências sociais.

Neste texto, buscaremos uma aproximação aos conceitos de cultura e, so-bretudo, sua importância e significado para nossa vida cotidiana e para o campoda educação. Afinal, para tratar do tema da diversidade é fundamental a com-preensão do conceito de cultura.

Logo no início de seu livro, Cultura, um conceito antropológico (LARAIA,2009), hoje uma publicação utilizada na maioria dos cursos de introdução à antro-pologia, o autor afirma que os seres humanos são seres de cultura. Podemos com-parar metaforicamente da seguinte forma: a cultura é para os seres humanos oque é a água para os peixes, ou seja, de fundamental importância, mesmo quequase sempre não tenhamos consciência de que estamos imersos nela.

Após tratar dos conceitos de cultura, abordaremos, mais concretamente, a ques-tão das dinâmicas sociais em contexto de relações interétnicas, uma vez que,conforme a concepção de cultura defini-se a forma de como compreender as dinâ-micas relações sociais entre as minorias e a sociedade hegemônica em nosso país.

1.1 Cultura – Um Conceito PolissêmicoComo dissemos antes, veremos neste texto uma ampla introdução aos con-

ceitos de cultura, para melhor entender nossa própria cultura e a dos grupos

Conceitos de Cultura eRelações Interétnicas

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COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS10

com os quais convivemos e, ainda mais, compreender as sociedades mais dis-tantes da nossa cultura. Neste sentido, podemos dizer que desde que o ser hu-mano iniciou a saga do registro de sua história, observamos, no tempo e noespaço, a distinção entre tipos de sociedades: extrativista, caçadora, agrícola,guerreira, comerciante, conquistadora, colonizadora... Essas formas de socieda-des, historicamente, configuraram diferentes categorias culturais, de acordo coma conformação específica de cada uma delas.

Desde os tempos primitivos, pela necessidade de sobreviver, o ser humanomodificou e recriou a natureza, descobrindo e utilizando, de variadas maneiras,os materiais que nela se encontravam. Assim, desde muito cedo, esta ação sobrea natureza, foi produzindo cultura, e este mesmo processo também foi inscre-vendo no ser humano, novos elementos, na medida em que, ao transformar anatureza o ser humano transforma a si mesmo. Em outras palavras, o ser humanofaz a cultura e, de certa forma, também é feito por ela.

Como uma primeira definição etimológica, podemos dizer que o termocultura deriva do verbo latino colere, cultivar, e estava originariamente relacio-nado ao cultivo da terra. Provavelmente, a relação com a natureza comoparâmetro para a compreensão do mundo fez com que o termo agrícola passas-se a traduzir, também, os padrões de comportamento e de relacionamento daspessoas. Este conceito ainda hoje é utilizado no sentido de indicar as culturas(plantações) no meio rural, e mesmo se entende, também, como aquelas pesso-as que possuem um acúmulo de informações (erudição) – “que pessoa culta”,pois “cultivou” o espírito. Nesta acepção anterior do termo cultura, tínhamos adicotomia entre cultura erudita (alta cultura) e cultura popular (baixa cultura),com a primeira sobrepondo-se sobre a segunda.

Pode-se afirmar que o conceito tradicional de cultura, como sendo o “efei-to de cultivar os conhecimentos humanos e de afirmar-se por meio do exercíciodas faculdades intelectuais do ser humano”, ainda permanece no senso comum.Deste conceito tradicional vem a contraposição de uma pessoa culta, diante doinculto ou ignorante. Neste sentido, o termo cultura será reconhecido por títu-

los, diplomas e um lugar destacado na esca-la social (AGUILERA URQUIZA, 2006).

Segundo Laraia (2009), são velhas epersistentes as teorias que atribuem capaci-dades específicas inatas a “raças” ou a ou-tros grupos humanos. Muita gente aindaacredita que os nórdicos são mais inteligen-tes do que os negros; que os alemães têmmais habilidade para a mecânica; os judeussão avarentos e negociantes; que os portu-gueses são muito trabalhadores e pouco in-teligentes; que os índios são preguiçosos;que os brasileiros herdaram a preguiça dos

ATIVIDADE:

A música “FUNK”, geralmente relacionada à perife-ria das grandes metrópoles, nesta acepção anterior,pertenceria à categoria de “alta cultura” ou de “bai-xa cultura”? Explique.

Porque na concepção atual tanto a música FUNKcomo a música erudita são consideradas legítimasmanifestações culturais?

Desconsiderar as manifestações culturais das cama-das sociais mais pobres e marginalizadas é uma for-ma de preconceito? Fale sobre isso.

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11CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo IV

negros, a imprevidência dos índios (não pensar no futuro) e a luxúria dos portu-gueses. Diante disso, os antropólogos estão totalmente convencidos de que asdiferenças genéticas não são determinantes das diferenças culturais. Qualquercriança pode ser educada em qualquer cultura, se for colocada, desde o início,em situação conveniente de aprendizado.

Assim, chegamos à conclusão de que nossas maiores diferenças são cultu-rais e não genéticas (as diferenças genéticas entre os seres humanos, na verda-de, são mínimas). A antropologia tem demonstrado, por exemplo, que muitasatividades atribuídas às mulheres em uma cultura podem ser atribuídas aos ho-mens em outra. Ou seja, as culturas vão “conformando” os seres humanos ediferenciando suas práticas sociais e simbólicas.

Originalmente, e a partir de uma visão positivista, a cultura foi entendida,sobretudo na primeira metade do século XX, como um conjunto de restrições,pressões e condicionamentos externos ao ser humano (as formas de comporta-mento e outras aprendizagens durante a socialização da criança), que fixavam oudeterminavam suas pautas de conduta como adulto, onde a cultura era vista comoum determinante do comportamento. Segundo esta forma de ver, a cultura foicompreendida como controle social que se exercia através das normas, que servi-ria como meios de pressão e obrigação imposta sobre as pessoas para adaptar-seaos costumes e tradições sem resistir e sem dar-se conta; enquanto que os mitos eas crenças representavam essas mesmas imposições a partir da religião, à qual osseres humanos se submetiam docilmente. A universalidade destes fenômenos eraestudada comparando culturas de diversas partes do mundo, por esse motivo al-guns antropólogos a denominavam como tradição ou paradigma comparativo daAntropologia sociocultural (cf. AGUILERA URQUIZA, 2006, p. 60-62).

Esta forma de entender a cultura era a dominante até a década de 1950 noscentros de estudos de Antropologia, realizando um amplo estudo do que nosune e nos torna comuns como seres humanos, ao mesmo tempo em que pro-porcionava uma grande quantidade de informação sobre as sociedades peque-nas e médias do mundo, fundamentalmente comunidades humanas minoritáriase “não complexas”, utilizando a terminologia de Lévi-Strauss.

Atualmente, passou-se a designar de cultura tudo que alude a normas, re-gras e conteúdos sociais cultivados pelo homem. Neste sentido, comenta o an-tropólogo DaMatta (1986, p. 123), que cultura pode ser:

A maneira de viver total de um grupo, sociedade, país ou pessoa. [...] Um

mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de um dado

grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmos.É justamente porque compartilham parcelas importantes deste código (o

da cultura) que um conjunto de indivíduos com interesses e capacidades

distintas e até mesmo opostas transforma-se num grupo onde podem viverjuntos, sentindo-se parte da mesma totalidade.

Neste comentário sobre a noção de cultura apresentado por DaMatta im-porta no sentido que atribui à cultura a capacidade de instância modificadora

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COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS12

do homem, ou seja, é por ele criada. É uma idéia compartilhada com a deGeertz (1989, p. 103), o qual afirma que é por meio de sua cultura que o ho-mem define seu mundo. Assim, cultura seria um

Padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em sím-

bolos, um sistema de concepções expressas em formas simbólicas pormeio das quais os homens se comunicam, perpetuam e desenvolvem seu

conhecimento em relação à vida. (GEERTZ, 1989, p. 103)

Cultura, nesse sentido, é a maneira mesma como o homem se coloca nomundo. Assim, podemos dizer que não há indivíduo humano sem cultura, excetoo recém-nascido, pois passará pelo processo de endoculturação (processo desocialização / aquisição de sua cultura).

Alguns elementos sobre o conceito de cultura:

Tratando de resolver o problema da falta de uma definição comum, em1952, Kroeber e Kluckhon (1952; apud AGUILERA URQUIZA, 2006, p. 64),revisara todas as definições de cultura conhecidas até este período (em inglês, éóbvio); encontraram nada menos que 160 definições. Finalmente formularamuma definição que mesmo extensa leva em conta todas as particularidades equalidades da cultura, que a seu juízo satisfaziam as necessidades conceituais daAntropologia Cultural norte americana de sua época:

A cultura consiste em pautas de comportamento, explícitas ou implícitas,adquiridas e transmitidas mediante símbolos e constitui o patrimônio

• EDWARD TYLOR (1832-1917) – Trata-se da 1ª definição antropológica decultura – Tomado em seu amplo sentido etnográfico, cultura é este todocomplexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ouqualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como mem-bro de uma sociedade (BOHANNAN & GLAZER, 1993, p. 64; apudAGUILERA URQUIZA, 2006, p. 63).

• FRANZ BOAS – A cultura inclui todas as manifestações dos hábitos sociaisde uma comunidade, as reações do individuo na medida em que se vêafetado pelos costumes do grupo em que vive e os produtos das atividadeshumanas na medida em que se vêm determinadas por estes costumes (BOAS,1964, p. 166; apud AGUILERA URQUIZA, 2006, p. 63).

• MALINOWSKI - “La cultura incluye los artefactos, bienes, procedimientostécnicos, ideas, hábitos y valores heredados. Esta herencia social es elconcepto clave de la antropología cultural” (MALINOWSKI, 1931, p. 85;apud AGUILERA URQUIZA, 2006, p. 63).

• LÉVI-STRAUSS – “(...) A cultura não é nem simplesmente justaposta, nemtampouco superposta à vida. Em certo sentido, substitui à vida, em outro autiliza e transforma para realizar uma síntese de uma nova ordem” (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 42; apud AGUILERA URQUIZA, 2006, p. 64).

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13CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo IV

singularizador dos grupos humanos, incluída sua concretização em obje-tos; o núcleo essencial da cultura são as ideias tradicionais (quer dizer,

historicamente geradas e selecionadas) e, especialmente, os valores vincu-

lados a elas; os sistemas de culturas, podem ser considerados, por umaparte, como produtos da ação, e por outra, como elementos

condicionantes da ação futura (KROEBER e KLUCKHON, 1952, p. 283;

apud AGUILERA URQUIZA, 2006, p. 64).

Em outro caminho teórico, a cultura é entendida como um processo (rede,trama) de significados em um ato de comunicação, objetivo e subjetivo, entreos processos mentais que criam os significados (a cultura no interior da mente) eum meio ambiente ou contexto significativo (o ambiente cultural exterior damente, que se converte em significativo para a cultura interior). A partir desteponto de vista é possível compreender Clifford Geertz quando propõe seu con-ceito de cultura:

O conceito de cultura que propugno... é essencialmente um conceito

semiótico. Crendo como Max Weber que o homem é um animal inseridoem tramas de significados que ele mesmo teceu, considero que a cultura é

essa trama e que a análise da cultura há de ser, portanto, não uma ciência

experimental em busca de leis, mas sim uma ciência interpretativa embusca de significações (GEERTZ, 1989, p.9).

Seguindo esta linha de raciocínio, podemos dizer que para Geertz, a cultu-ra é como a rede ou a trama de sentidos com que damos significados aos fenô-menos ou eventos da vida cotidiana. O importante, nesse caso, é compreendera cultura como produção de sentidos, de maneira que também podemos enten-der a cultura como o sentido que têm os fenômenos e eventos da vida cotidianapara um grupo humano determinado.

Percebemos, dessa forma, que o mundo compõe-se de sociedades carac-terizadas por culturas cada vez mais distintas. As raízes dessas culturas, geral-mente com fundamento religioso, são tão antigas quanto o processo de forma-ção dessas sociedades. Os seres humanos ao se associarem a seus iguais buscamestabelecer critérios de convivência, de ritualização e de significação que tor-nam suas sociedades um mundo próprio, com suas marcas, cultivado, construídoe consolidado na mente das gerações. Assim a cultura torna-se expressão docaráter de um povo. Este processo é lento e longo, onde conta a preservação detradições, o incremento dos saberes e a transmissão dessa tradição sempre acres-cida, mas sempre construída dentro de parâmetros aceitos socialmente e regula-dos pelo corpo da própria cultura.

Finalizando este primeiro tema de nossa reflexão, podemos dizer que oconceito de cultura é importante, não somente para as ciências sociais, mas,sobretudo, para compreendermos o contexto e os significados das relaçõesque tramamos no nosso cotidiano, especialmente no mundo da educação.Sendo assim, podemos reafirmar com a UNESCO (2002), em seu artigo pri-meiro que a diversidade cultural é um patrimônio comum da humani-dade:

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COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS14

A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diver-sidade se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que

caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade.

Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultu-ral é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica

para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humani-

dade e deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das geraçõespresentes e futuras. (UNESCO, 2002)

Reafirmamos que compreendemos cultura no seu sentido plural, muito pró-ximo do que afirmou Geertz (1989), ou seja,

A compreensão da cultura e de que vivemos em meio à diversidade cultu-ral, abre possibilidade de novos conhecimentos, de aprendizados, de constru-ção de formas pacíficas e colaborativas de viver. A diversidade cultural, em níveldo vivido e do pensado, promove a experiência de pluralidade, de convivência,de diálogo, de tolerância. Neste sentido, o não reconhecimento da existênciade culturas distintas, ou da perda da diversidade, seja ela biológica ou cultural, éuma perda irrecuperável de potencial de expressão humana e da vida em sen-tido mais amplo.

1.2 Dinâmicas Sociaisem Contexto de Relações Interétnicas

Vimos anteriormente, o conceito de cultura e o quanto é importante para acompreensão da nossa realidade e dos significados que vamos construindo natrama do nosso cotidiano. Veremos, na sequência, o que significa pertencer auma determinada cultura e como este pertencimento influencia, ou mesmodefine, as formas de relação que estabelecemos com as demais pessoas, grupossociais, ou mesmo, pessoas de outras sociedades e culturas mais distantes daminha. Em outras palavras, a cultura torna-se uma marca do pertencimento decada um e do grupo, o que na ciência antropológica, chamamos de identidadecultural, ou simplesmente, identidade.

Pertencer a uma cultura significa, dessa forma, ter uma identidade própria,frente ao outro – qualquer – e, sobretudo, compartilhar, com aqueles perten-centes à mesma cultura, um grau de igualdade tal que se permita, a cada indiví-

As culturas são redes de significados com os quais os humanos sem envolvemem sua trama e os distingue a partir do conjunto de comportamentos espiritu-ais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam as diversas sociedadesou grupos sociais, o que abrange para além das letras e das artes; os modos devida; as maneiras de viver e conviver; os sistemas políticos, jurídicos, religio-sos, econômicos e sociais; as tradições; os valores e as crenças. (GEERTZ,1989)

Page 15: Culturas e Histórias dos Povos Indígenas

15CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo IV

duo, ser, ao mesmo tempo, livre e igual, já que o que torna os homens iguais emuma cultura subjaz à própria consciência de identidade que o torna livre em suamanifestação dessa cultura. Sentimo-nos bem entre os iguais (o mesmo), assimcomo também é verdade que nos sentimos incômodos diante do diferente (ooutro).

Segundo Stuart Hall (2002. Cap. I; apud FRÓIS, 2004), a identidade culturalapresenta-se sob dois focos. O primeiro refere-se à cultura compartilhada emsociedade ou nação, aquela que reflete experiências históricas comuns consoli-dadas em códigos e referências, conforme o já citado conceito de Geertz. Essescódigos e referências dão sentido à pertinência a uma sociedade ou nação,representando o corpo estável da cultura. O segundo foco refere-se, comple-mentarmente ao primeiro, à experiência individual que agrega valores e refe-rências a uma cultura, tornando-se mecanismo de transformação, mudança eadaptação dessa mesma cultura.

Dessa forma, podemos afirmar que o contato entre povos de diferentesculturas, sobretudo após a aceleração do processo de globalização verificadonas últimas décadas, tornou-se, em especial, um processo de contínuahibridização e aumento das trocas culturais entre pessoas, grupos sociais e na-ções. Mesmo assim, a ênfase está na pessoa, pois a base das novas formas cultu-rais verificadas não são as nações, mas os indivíduos. A eliminação de barreirasnacionais – da qual a queda do muro de Berlim é o ícone mais enfático – fezcom que as barreiras ideológicas se concentrassem em atores sócio-políticos,econômicos e culturais.

Nesse contexto, a capacidade de disseminação da informação, da dissemi-nação do meio e da mensagem, passa a ser a medida do poder de tais ideologi-as. Assim, contemporaneamente, verifica-se a primazia da cultura ocidental -nem sempre representada por seus mais altos valores – como referente valorativo(cf. FRÓIS, 2004). Constatamos que no passado também aconteceu essa prima-zia dos valores e ideologias da cultura ocidental.

A história da relação entre nativos e portugueses no Brasil colonial, porexemplo, revelou-se bastante dinâmica e contraditória. Apesar da violência,percebemos que políticas de alianças e dissensões perpassaram os contatosinterétnicos como formas de reação e expressão à colonização ibérica. Em todoo período colonial e até poucas décadas atrás, o Estado Brasileiro recomendavaa incorporação dos índios à sociedade colonial por meio do trabalho. De acordocom o pensamento da época, os índios deveriam se estabelecer em aldeamentos,de tal forma que fossem úteis à agricultura, à mineração e ocupação dos vazios,particularmente nas regiões de fronteira. No entanto, caso houvesse manifesta-ção de resistência, ordenava-se a escravização ou extermínio de grupos indíge-nas considerados hostis.

Podemos dizer que a consequência imediata da chegada dos europeusna América foi o fato da rápida depopulação destes grupos e conseqüentedesaparecimento de muitas sociedades ameríndias. Outro elemento: os gru-

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pos indígenas passaram a ter sua circulação controlada e limitada dentro deterritórios demarcados pelas coroas, inicialmente com a construção de fortese formação de aldeias, que desorganizaram e enfraqueceram os movimen-tos de resistência dos ameríndios e, posteriormente, pelos Estados nacionais,com a agressiva ocupação dos territórios indígenas, concebidos como áreasde vazio demográfico, através do incentivo das frentes de ocupaçãoagropastoris.

Todas as regiões brasileiras passaram por este processo, em períodos distin-tos e, em alguns casos com mais ou menos violência. O período das bandeiras,por exemplo, foi um tempo de extrema violência contra os povos ameríndios dointerior do Brasil, tendo em vista que os objetivos principais destes grupos era abusca por minérios e prear índios, ou seja, caçá-los como animais e levá-los parao litoral para serem vendidos como escravos.

Desde o período colonial os povos nativos, no Brasil, são vistos como umacondição transitória: ou irão morrer – o que ocorreu em grande parte do pro-cesso – ou vão tornar-se brasileiros, ou seja, caboclos, bugres ou sertanejos. Opróprio SPI ao ser criado em 1910, como primeira política pública do Estado emfavor dos povos indígenas, fazia parte inicialmente do Ministério da Indústria echamava-se Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos TrabalhadoresNacionais (SPILTN). A noção era a de que os índios, mais cedo ou mais tarde,seriam absorvidos (assimilados) pela sociedade brasileira.

Durante todo este período de contatos interétnicos, entre os povos indíge-nas e a população não indígena, muitos preconceitos foram produzidos no ima-ginário e nas práticas sociais das várias regiões desse imenso país, conformevimos no 3º Módulo deste curso. Cada sociedade indígena e cada região, com otempo, foram escrevendo suas histórias de particularidades, nesta questão dasambivalentes e críticas relações entre povos tão diversos.

Quando falamos, aqui, de dinâmicas sociais em contexto de relaçõesinterétnicas, sabemos que falamos de povos que trazem na bagagem uma longahistória de confrontação, negação e negociação com o colonizador de ontem ehoje. Trata-se, na verdade, de povos com culturas muito diversas, porém, todoscom uma longa experiência de enfrentamento com o não-índio, sempre emtorno de seus territórios. Suas trajetórias históricas são, de um lado, muito pare-cidas e, de outro, muito distintas no tempo e, também, no que se refere à inten-sidade e interesses das diversas frentes de colonização, bem como das estratégi-as adotadas por cada povo para enfrentá-las.

No caso do atual sul de Mato Grosso, a história nos conta que os primeiroscontatos mais intensos com os povos indígenas deram-se no início do séculoXVIII, quando da chegada dos primeiros aventureiros (bandeirantes) na regiãode Cuiabá, em busca de ouro. Os conflitos se deram contra o povo Bororo,daquela região e com os povos da região pantaneira, por onde passavam: Paiaguá,Guató, Guaicuru, entre outros.

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Na região sul do então Estado de MatoGrosso, atualmente Mato Grosso do Sul,veremos que esta história das relaçõesinterétnicas não foi diferente, conforme se-gue abaixo. Vários desses povos origináriosdesapareceram, ou deles restaram algunspoucos remanescentes, dispersos pelas fa-zendas do Estado, e se perguntados se sãoíndios, certamente irão negar tal evidência,tamanha a pressão sofrida na pele, desdegerações passadas, em uma região com for-tes sentimentos anti-indígenas.

1.3 Mato Grosso do Sul:Um Histórico deNegação da Presença Indígena1

Na sequência, veremos uma breve incursão pela história de cada um dosprincipais povos indígenas do Estado de Mato Grosso do Sul, até a atualidade.Não é difícil perceber que apesar das diferenças culturais e históricas entre es-tes povos, quase todos passaram por situações de violentas perdas de seus terri-tórios e relações interétnicas de negação de suas identidades

No caso específico do povo terena, sabemos que eles se confrontaramcom os colonizadores mais cedo do que os Kaiowá e Guarani e com frentesde colonização mais diversificadas. Analisando a história regional percebe-mos que os povos localizados ao longo dos rios foram os primeiros a serematingidos pelas frentes de colonização – caso dos Paiaguá, conhecidos como“os senhores do Rio Paraguai”, hoje considerados extintos e o povo Guató,conhecidos como índios canoeiros do pantanal, que ocupavam, tradicional-mente, os rios pantaneiros, em especial o Rio Paraguai e São Lourenço, nafronteira com a Bolívia, em pleno pantanal, dos quais um pequeno gruposegue vivendo nesta região. Os Guató dividem atualmente a Ilha Ínsua como Exército Brasileiro e ainda vivem de pequenas roças de subsistência e apesca nas baías pantaneiras.

Após o choque com os povos localizados ao longo das bacias dos rios nave-gáveis, os interesses e as tecnologias do colonizador, buscaram, a seguir, as regi-ões dos campos naturais e dos cerrados, que foram rapidamente ocupados pelapecuária. No território de Mato Grosso do Sul esses espaços eram ocupadospelo povo Ofaié, entre outros, povo que também resultou, praticamente, extin-

CONCEITO DE TERRITÓRIO

Segundo Little (2003, p. 3), território é um “produ-to” resultante do “esforço coletivo de um grupo so-cial para ocupar, usar, controlar e se identificar” comdeterminada parcela do ambiente físico. A noção deterra indígena ou de território não remete para atemporalidade da ocupação ou para a imemoria-lidade. O território como algo construído e constan-temente reconstruído de acordo com a dinâmicaprópria de cada população, torna-o inseparável dahistória de um povo indígena. Remete, portanto, paraas “contingências históricas”, vivenciadas por deter-minada população indígena.

1 Este item é baseado em texto: BRAND, A. J. (Et. al.) A Relevância do Patrimônio Cultural naAfirmação Étnica dos Acadêmicos Índios nas Cidades. Apresentado no GT 1 do Semináriosobre Povos Indígenas e Patrimônio na América. Cidade do México. 2009.

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to, sendo encontrados hoje ao redor de apenas 70 indivíduos. A exemplo dopovo Guató este povo acabou rapidamente sem terra. Atualmente vivem emuma porção minúscula de terra no Município de Brasilândia.

Nesta sequência de avanço das frentes de expansão, no Estado, ocorreu,em período muito mais recente, a ocupação das regiões de mata, avanço queacabou atingindo em cheio os “povos da mata”, no caso, os Kaiowá e Guarani,no extremo sul do Estado.

Cabe destacar, ainda, a profunda interferência de conflitos envolvendo adefinição de fronteiras nacionais e interesses regionais, na vida de determina-dos povos indígenas, como foi o caso do povo Terena e Kadiwéu, cujas históriasrecentes vêm marcadas, em especial, pela Guerra da Tríplice Aliança, mais co-nhecida pelos livros históricos e didáticos, como Guerra do Paraguai (1864), oua “Grande Guerra”.

Temos, atualmente, no Estado de Mato Grosso do Sul a seguinte populaçãoindígena:

Após essa introdução geral sobre a história recente dos povos indígenas emMato Grosso do Sul, cabe um breve detalhamento da situação do povo Terena edos Kaiowá e Guarani, povos indígenas dos mais numerosos do Estado e do país.

O povo Terena é descendente dos Txané-Guaná, que se distinguiam entresi em vários povos, os quais viviam, inicialmente, na região do Chaco Bolivianoe Paraguaio. É o povo da família lingüística ARUAK mais ao sul em sua migraçãodo norte da América do Sul (Região das Guianas) para o sul do continente ame-ricano.

Já é consenso na historiografia regional e, particularmente deste grupo, ofato de que nas últimas décadas do século XVIII iniciou um processo de desloca-mento para a banda oriental do Rio Paraguai, ou seja, estes índios atravessaramo Rio Paraguai para o lado brasileiro. Pela sua localização foram fortemente en-volvidos na Guerra do Paraguai (1864), que contribuiu para a sua dispersão efragilização dos laços de parentesco. Desde a chegada dos primeiros colonos,como estes precisavam dos produtos agrícolas dos Terena, não havia hostilização

ETNIAS POPULAÇÃO

KAIOWÁ/GUARANI 42.409

TERENA 23.234

KADIWÉU 1.358

OFAIE 61

GUATÓ 175

KINIKINAU 141

ATIKUM 55

TOTAL 67.433Fonte: FUNASA/2007

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nas relações. No entanto, no pós-guerra uma nova estrutura fundiária se implan-ta na região, a qual excluiu os Terena, obrigando-os a venderem sua mão-de-obra a troco de comida e/ou a migrarem para as periferias das cidades. Esteperíodo é chamado pelo próprio povo Terena, como o período da servidão.

Conseguem a demarcação de uma primeira reserva de terras para seu usu-fruto - Cachoeirinha, localizada no município de Miranda/MS - em 1905, poriniciativa da Comissão Rondon. Hoje, o povo Terena possui onze pequenas re-servas de terra, que somam um total de 19.017 hectares2, onde reside umapopulação aldeada de cerca de 19.000 pessoas. Em conseqüência desse proces-so histórico de negociação, trocas e confronto com os colonizadores de ontem,uma parcela importante da população terena ocupa espaços urbanos e está for-temente inserida no contexto regional.

O território tradicional do povo Kaiowá e Guarani, como sabemos, locali-za-se na região sul do Estado de Mato Grosso do Sul. Encontram-se distribuídosem 26 áreas indígenas. Autodenomina-se Guarani os integrantes do subgrupoÑandeva, sendo tratados desta forma. Embora em menor número, os Guarani-Ñandeva constituem a população majoritária em quatro áreas indígenas, estan-do, porém, presentes conjuntamente em diversas áreas Kaiowá. Por esta razãousa-se a designação Kaiowá e Guarani para referir-se aos dois grupos: Guarani-Ñandeva e Guarani-Kaiowá.

Os Kaiowá e Guarani são mais conhecidos, na etnologia, como povos damata, pois preferiam para a construção de suas aldeias, locais próximos às regi-ões de mata, ou matas ciliares. Ocupavam, desde o período colonial, um amploterritório em ambos os lados da fronteira do Brasil com o Paraguai. No ladobrasileiro, o Governo Federal arrendou, a partir de 1882, o território indígenapara a Cia Matte Larangeira3, que iniciou a exploração da erva-mate nativa.Ainda em pleno domínio desta Companhia, o Serviço de Proteção aos Índios,SPI4, demarcou, em 1915, a primeira reserva de terras para usufruto dos Kaiowáe Guarani, com 3.600 hectares. Outras sete terras são reconhecidas como deusufruto indígena pelo Governo até 1928, totalizando 18.297 ha. Inicia-se, en-tão, com o apoio direto dos órgãos oficiais, um processo sistemático e relativa-mente violento de confinamento da população kaiowá e guarani dentro dessasreservas de terra, processo que seguiu inexorável, à revelia da legislação deproteção dos direitos indígenas a terra, até o final da década de 1970.

2 Nos últimos anos conseguiram retomar uma significativa parte do território, próximo a área deCachoeirinha, denominada Mãe Terra, onde acontece interessante experiência de produçãoagrícola diversifica. No final de 2010 saiu a Portaria da FUNAI declarando Terra Indígena os 17mil hectares reivindicados pelo povo Terena da Terra Indígena de Dois Irmãos do Buriti, paraampliação do seu território.3 A Cia Matte Larangeira instala-se em todo o território ocupado pelos Kaiowá e Guarani, noMato Grosso do Sul, a partir da década de 1880, tendo em vista a exploração dos ervais nativos,abundantes em toda a região.4 Criado em 1910, pelo Decreto nº 8.072, subordinado ao Ministério da Agricultura, Indústriae Comércio – MAIC.

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A demarcação das reservas por parte do SPI para aí confinar os povos indí-genas constituiu-se em fundamental estratégia e política governamental, com aintenção de liberar as terras para a colonização e conseqüente submissão dapopulação indígena aos projetos de ocupação e exploração dos recursos natu-rais por frentes não-indígenas (cf. LIMA, 1995). Na implantação desta política, ogoverno ignorou completamente, os padrões indígenas de relacionamento como território e seus recursos naturais e, principalmente, a sua organização social.Esse processo histórico de confinamento em reservas constitui-se em fato deci-sivo para a compreensão da situação e do contexto atual dos povos indígenas noEstado de Mato Grosso do Sul.

Este processo histórico de confinamento em pequenas reservas, além deinviabilizar a economia, comprometeu, de forma crescente, a autonomia inter-na desses povos, por reduzir suas possibilidades de decisão sobre seu futuro,deixando consequentemente, um espaço, cada vez mais reduzido para a nego-ciação a partir de suas pautas culturais (cf. LITTLE, 2003). O objetivo desta polí-tica era colocar as populações indígenas sob a égide do Estado, por meio doinstituto da tutela (LIMA, 1995), prometendo assegurar-lhes assistência e prote-ção e, dessa forma, tornar efetiva e segura a expansão capitalista nas áreas ondehavia conflito entre índios e fazendeiros.

O avanço sistemático da colonização sobre os territórios indígenas e seusrecursos naturais, em todo o Estado de Mato Grosso do Sul, é conseqüência daimposição histórica de um projeto de desenvolvimento monocultural, no âmbi-to dos Estados Nacionais. Podemos dizer de outra maneira, que esse mesmoprojeto de desenvolvimento caracterizou-se, também, pela sistemática e plane-jada busca de superação da sociodiversidade, igualmente percebida como umestorvo e uma excrescência para a realidade brasileira. Na perspectiva dos Esta-dos Nacionais, a persistência dos povos indígenas, além de sinal de atraso, re-presentava, ainda, o risco de futuras fragmentações políticas. Ainda na atualida-de nos deparamos com estas questões na grande imprensa, sobretudo por oca-sião dos grandes projetos governamentais, como as hidrelétricas que atingemterritórios indígenas. O governo se acha no direito de levar avante estas obrasde grande impacto ambiental e sobre as sociedades de povos tradicionais (indí-

CONCEITO DE CONFINAMENTO

Conforme estudos de Brand (1993, 1997), entendemos por confinamentocompulsório a transferência sistemática e forçada da população das diversasaldeias Kaiowá e Guarani tradicionais para dentro das oito Reservas demarcadaspelo governo entre 1915 e 1928.

Este conceito pode ser aplicado a outras situações similares sofridas por outrospovos indígenas no Brasil. Com o aumento populacional, vivem literalmenteespremidos em minúsculos territórios.

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genas, ribeirinhos, entre outros), sem consultar os principais envolvidos nasconsequências.

O destino dos povos indígenas era o seu desaparecimento, mediante aintegração na sociedade ocidental, o que, na perspectiva dos povos indígenas,se traduzia em desintegração de seus territórios, modos de vida, organizaçãosocial, economias, religiões e cosmovisões. Seus conhecimentos, tecnologias demanejo ambiental, medicina e agricultura eram considerados imprestáveis esinal de atraso e de não civilização.

Dessa forma, podemos concluir que a visão subjacente à política indigenistado Brasil, durante quase 500 anos, era de que se tratava de povos “passageiros”ou “transitórios” (LIMA, 1995), cujo destino era “insumir-se” ou integrar-se atra-vés da superação de sua identificação étnica, caminhando em direção a um“índio genérico” ou se quisermos, a um brasileiro “sem identidade”.

É importante destacar que junto com a perda do território, instalam-se, nascomunidades indígenas, escolas e igrejas evangélicas - a Missão Kaiowá entre osKaiowá e Guarani, a partir de 1928, e as Igrejas Neopentecostais, a partir dadécada de 1970, e entre o povo Terena, a Igreja Católica, desde antes da Guer-ra do Paraguai e diversas Igrejas Evangélicas, a partir de 1913 (MOURA, 2009),coincidindo com a radicalização do processo de confinamento, todas preocupa-das em “ajudar os índios” a viverem, ou melhor, a sobreviverem em um cenáriono qual o seu modo de vida e seus saberes historicamente construídos tornaram-se supérfluos e “imprestáveis”.

DICA DE LIVRO

Noêmia dos S. P. Moura. O Processo de Terenização do Cristianismo naTerra IndígenaTaunay/Ipegue no Século XX. Tese de Doutorado – Campinas:UNICAMP, 2009.

Acima está a indicação de leitura da tese de doutorado da professora Noêmiados S. P. Moura (UFGD), exatamente sobre a influência da religião entre o povoTerena, estudo que pode ser aplicado à realidade histórica de grande parte dospovos indígenas do país.

Um elemento importante a ser considerado neste longo processo históricode relações interétnicas entre os povos indígenas e os demais seguimentos dasociedade nacional foi a tentativa de “apagamento da história” e da importânciadestes povos para a constituição da identidade nacional. Diante disto, vem aimportância dos bens culturais, como marcos da memória destes povos,que precisam ser novamente valorizados a partir de novas concepções de rela-ção entre estes povos e o próprio Estado Brasileiro.

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Segundo Bosi (1998, p. 442-443), os espaços e a paisagem são fundamen-tais para o seguimento das tradições e da memória coletiva, pois se estabelececom eles uma “comunicação silenciosa que marca nossas relações mais pro-fundas”. Destaca essa autora, o “desenraizamento”, como “condiçãodesagregadora da memória”, que provoca a “espoliação das lembranças”. Se-gundo a mesma autora (BOSI, 1998, p. 19), “nossa” sociedade, ocidental ecapitalista, “bloqueou os caminhos da lembrança, arrancou seus marcos e apa-gou seus rastros” e mais adiante segue concluindo que isso acontece não sóporque “o velho foi reduzido à monotonia da repetição”, mas devido a umaoutra ação, especialmente “daninha e sinistra (...), a história oficial celebrativa,cujo triunfalismo é a vitória do vencedor a pisotear a tradição dos vencidos”.Para Todorov (2002, p. 135), às vezes as tentativas de controlar a memória depovos dominados “resultaram em fracasso, mas é certo que em outros casos,os vestígios do passado foram eliminados com sucesso”. E, entre os “procedi-mentos mais comuns” para controlar a memória, vem, em primeiro lugar, a“supressão dos vestígios”, ou, se quisermos, o apagamento da memória e dosdemais bens culturais. Não é por acaso que durante tantas décadas e mesmoséculos, constatamos esta tentativa do apagamento da memória dos povos in-dígenas, primeiramente nos registros históricos, depois nos livros didáticos e,finalmente, nas novas gerações.

Canclini (2003, p. 160), ao referir-se ao patrimônio cultural, reconheceque este é o “lugar onde melhor sobrevive hoje a ideologia dos setoresoligárquicos...”, entendendo o museu como “sede cerimonial do patrimônio,lugar em que é guardado e celebrado” e onde “se reproduz o regime semióticocom que os grupos hegemônicos o organizaram”. O autor destaca a violênciaque se exerce sobre os bens culturais ao “arrancá-los de seu contexto originárioe reorganizá-los sob a visão espetacular da vida” (2003, p. 170), como acontecenos museus. E no caso dos povos indígenas, excluindo, ocultando ou silenciandosobre os processos históricos e conflitos sociais que “os dizimaram e foram mo-dificando sua vida” (cf. CANCLINI, 2003, p. 188).

Referindo-se às contradições e complexidades verificadas nas socieda-des modernas e pós-modernas do continente latino-americano, Canclini(2003, p. 150-151) destaca que essas se manifestam, também, quando setrata de apreciar o “patrimônio” de bens culturais. Sua leitura está “infestadade espaços em branco, silêncios, interstícios” nos quais atua o expectador ese verifica “o conflito pela consagração da leitura legítima” (idem, 2003,p. 152).

Ao serem arrancados de seus espaços e terem seu território tradicionaldescaracterizado e ocupado pelos colonos, as sociedades indígenas tiveram,como que “arrancados”, também, seus marcos - seus bens culturais, destruídos,descaracterizados ou apagados os rastros de apoio à sua memória (cf.TODOROV, 2002). Para isso, os “novos colonizadores”, os que ocuparam oterritório indígena, utilizaram, amplamente, o argumento de que se tratava de

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povos atrasados e sem cultura, ainda seguindo o paradigma da teoriaevolucionista.

Esse longo processo histórico de relacionamento com os colonizadores deontem e de hoje, ao mesmo tempo em que provocou uma enorme gama deperdas: perda da terra, perda de vidas e povos, perda da autonomia e da quali-dade de vida, permitiu aos povos indígenas construírem inéditas experiênciasde resistência, de negociação, tradução ou hibridação, apoiados na “centrali-dade” de sua cultura (HALL, 2003). É, certamente, nessa perspectiva que sedeve entender a discussão e as demandas dos povos indígenas por políticas quegerem autonomia, na gestão de seus territórios e nas áreas da saúde, educaçãoe subsistência.

1.4 Considerações FinaisA tentativa, neste item, foi desenvolver, de forma didática e acessível, os

conceitos de cultura e, ao mesmo tempo, destacar a importância desta noçãopara nosso cotidiano, particularmente quando estamos inseridos em espaçosescolares, onde a diversidade é a grande marca no contexto atual.

Outro elemento importante foi a reflexão acerca das dinâmicas sociais emcontexto de relações interétnicas. Como vimos, historicamente os povos indíge-nas foram considerados como elementos transitórios, confirmando a tendênciados Estados Nacionais em negar a diversidade, buscando implantar políticas dehomogeneização.

Dessa forma, os povos indígenas em geral, e os do Estado de Mato Grossodo Sul, em particular, passaram por processos de embates culturais, com asfrentes de colonização, significativas perdas de seus territórios, em meio aprocessos de violentas expropriações. Nesse contexto, os povos indígenas denossa região, particularmente o povo Terena e os Kaiowá e Guarani, sofreramcom a Guerra do Paraguai, com a expansão do agronegócio e a consequenteperda de seus territórios e o comprometimento das formas próprias de organi-zação social.

Na atualidade, estes povos demandam por políticas que gerem autonomia,sobretudo na gestão de seus territórios, com a produção de alimentos, novasdinâmicas socioculturais, somadas às conquistas no campo da educaçãointercultural.

Temos o direito a sermos iguais quando a diferença nos inferioriza. Temos odireito a sermos diferentes quando a igualdade nos descaracteriza. As pesso-as querem ser iguais, mas querem respeitadas suas diferenças. Ou seja, que-rem participar, mas querem também que suas diferenças sejam reconheci-das e respeitadas.

Boaventura de Souza Santos

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FILME

O filme “A Missão” (THE MISSION, 1986), dirigido por Roland Joffé, comRobert de Niro, Jeremy Irons, Lian Neeson, no elenco, ilustra a mentalidadeda época (igreja e sociedade) acerca dos povos indígenas na América do Sul.

É um filme de base histórica que se passa no século XVIII, na América do Sul.Um violento mercador de escravos indígenas, arrependido pelo assassinatode seu irmão, realiza uma auto-penitência e acaba se convertendo comomissionário jesuíta em Sete Povos das Missões, região da América do Sulreivindicada por portugueses e espanhóis, e que será palco das “GuerrasGuaraníticas”.

Palma de Ouro em Cannes e Oscar de fotografia.

DICA DE LIVRO

O livro “CULTURA, um conceito antropológico” do autor ROQUE DE BAR-ROS LARAIA, mostra claramente a importância do conceito de cultura, nãosó para a Antropologia ou as Ciências Sociais, mas para todas as pessoas. Oautor utiliza muitos exemplos práticos da história e do nosso cotidiano.

Na primeira parte trada da transição dinâmica da natureza à cultura, ou seja,nascemos “puramente natureza” e aos poucos, vamos adquirindo cultura,em um processo chamado de endoculturação.

NA INTERNET

Veja a página sobre o tema da cultura na internet. Disponível em: http://www.grupoescolar.com/materia/cultura:_um_conceito_antropologico.html

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25CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo IV

AQUILERA URQUIZA, A. H. Educación e Identidad en el contexto de La Globalización. Laeducación indígena Bororo frente a los retos de la interculturalidad. Tese Doutoral. Universidadde Salamanca / Espanha. 2006.

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BRAND, A. J.; NASCIMENTO, A. C.; AGUILERA URQUIZA, A. H. A Relevância do PatrimônioCultural na Afirmação Étnica dos Acadêmicos Índios nas Cidades. Apresentado no GT 1 doSeminário sobre Povos Indígenas e Patrimônio na América. Cidade do México. 2009.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS26

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27CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo IV

Poder e DesigualdadeAssimetria nas

Relações Interétnicas

CAPÍTULO II

Antonio H. Aguilera Urquiza (UFMS)

O problema indígena não pode ser compreendido fora dos quadros da

sociedade brasileira, mesmo porque só existe onde e quando índio enão-índio entram em contacto. É, pois um problema de interação entre

etnias tribais e a sociedade nacional (...) (RIBEIRO, 1970; apud. OLIVEI-

RA, 1995, p. 64).

Se considerarmos detidamente o processo histórico e o contexto das rela-ções interculturais e interétnicas entre os povos indígenas e os demais segmen-tos populacionais latinoamericanos e, particularmente, no Brasil, constatamosque as práticas políticas privilegiaram o ethos da cultura ocidental, em detri-mento das particularidades dos demais grupos minoritários. Essa relaçãoassimétrica, para além das práticas de extermínio físico e cultural, de tentativasde dominação e integração forçada, se expressa mais fortemente no campo dedisputa nas relações simbólicas de poder, muitas vezes expressas nas relaçõesdestes povos com o Estado.

Veremos neste item que as relações entre os povos indígenas e os demaisseguimentos da sociedade nacional, sempre foram pautadas pela desigualdade,em uma situação de relação assimétrica, onde o poder ora exercido diretamen-te pelo Estado, ora através das missões religiosas, ou de arcabouços jurídicos, osquais, sistematicamente desconsideravam a presença destes povos em territórionacional.

Este estudo, na área da Antropologia, teve seu auge a partir de meados doséculo XX, quando proliferaram as pesquisas e publicações sobre as relaçõesentre índios e a chamada sociedade nacional, no Brasil. Atualmente, este campode estudos da Antropologia leva o nome de estudo das relações interétnicas,contando ainda com importantes centros de pesquisas no país.

Para compreender a noção da assimetria nas relações interétnicas, vere-mos a importância da compreensão destes estudos no âmbito da Antropologia eda prática indigenista no Brasil, os quais passam pela noção do que seja a cor-rente do evolucionismo, funcionalismo e a partir deste, as noções de assimila-ção e aculturação.

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Iniciamos, na sequência deste texto a reflexão acerca das noções de podere desigualdade, pois elas incidem diretamente nas relações sociais e culturaisassimétricas.

2.1 Noções de Podere Desigualdade

Normalmente quando falamos em poder, logo nos vem na mente a noçãode alguém forte e que tem a capacidade de mandar nas outras pessoas, ou seja,uma espécie de dominação que pode ser através da força física, através da pala-vra, através do dinheiro, etc. A palavra poder geralmente “se revestiu do senti-do, a um só tempo vago e maléfico, que possui em nossa fala cotidiana, e issograças a deslocamentos conceituais por vezes surpreendentes” (LEBRUN, 1984,p. 8).

Ao contrário do que normalmente se pensa, ao se relacionar a palavrapoder com o exercício da força, ou a posse de meios violentos, podemos dizerque nem sempre é assim. “Força não significa necessariamente a posse demeios violentos de coerção, mas de meios que me permitam influir no com-portamento de outra pessoa” (LEBRUN, 1984, p. 12). A força, neste caso émais uma canalização da potência, como capacidade de determinação deuma ação.

Existe uma íntima relação entre potência e poder. Para Weber (apudLEBRUN, 1984, p. 12), “potência significa toda oportunidade de impor sua pró-pria vontade, no interior de uma relação social, até mesmo contra resistências,pouco importando em que repouse tal oportunidade”. Dessa forma, podería-mos perguntar: então porque não usamos o conceito de potência ao invés depoder?

É que poder inclui elemento suplementar, que está ausente de potência.

Existe poder quando a potência, determinada por uma certa força, se

explicita de uma maneira muito precisa. Não sob o modo de ameaça, dachantagem, etc., mas sob o modo da ordem dirigida a alguém que presu-

me-se, deve cumpri-la. (...) A dominação é, segundo Max Weber, “a proba-

bilidade de que uma ordem com um determinado conteúdo específicoseja seguida por um dado grupo de pessoas”. (LEBRUN, 1984, 12-13).

Como percebemos por estas primeiras aproximações, poder é uma palavrapolissêmica, que envolve desde noções de uso violento da força para coagiralguém, até o poder psicológico exercido como forma e dominação, passandopelo poder delegado politicamente a líderes para governar determinadas parce-las das sociedades-estado. Por isso, não podemos, aqui, identificar poder comautoridade. Trata-se de um conceito que vai muito mais além, perpassando to-das as relações sociais.

Antes de entrarmos na teoria de Michel de Foucault, seria interessante veroutra reflexão teórica sobre o conceito de poder, mais conhecida como soma

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zero, ou seja, “se X tem poder, é preciso que em algum lugar um ou vários Ysejam desprovidos de tal poder” (LEBRUN, 1984, p. 18). Em outras palavras, opoder é uma soma fixa, tal que o poder de A, implica o não poder de B.

Se por um lado, vários autores defenderam esta tese – desde Marx,Nietzsche, Max Weber, até Raymond Aron – por outro lado, alguns se opuse-ram, entre eles, Michel Foucault.

Por que reduzir a dominação à proibição, à censura, à repressão es-

cancarada? Por que só pensar no poder enquanto limitador, dotadoapenas do “poder do não”, produzindo exclusivamente a “forma nega-

tiva do interdito”? O poder é menos o controlador de forças que seu

produtor e organizador. Desde o fim do Século XVIII, o poder políticoé, antes de mais nada, a instância que constitui os súditos sujeitos ao

dobrá-los a suas pedagogias disciplinares (ensino, exército, etc.)

(LEBRUN, 1984, p. 19-20).

Em outro momento o próprio Foucault reafirma que “o poder é instauradorde normas, mais que de leis (...). Na verdade, encontramos as relações de poderfuncionando em relações muito distintas na aparência: nos processos econômi-cos, nas relações de conhecimento, no intercurso sexual...” (apud LEBRUN, 1984,p. 20). Dessa forma, fica claro que nem sempre nas relações de poder deverãoter a matriz de oposição binária entre dominantes e dominados.

Após estas reflexões sobre a noção de poder, entendida aqui não na frágiloposição binária de dominante e dominado, mas na sua concepção mais dinâ-

DOMINANTE DOMINADO

PODER

É o nome atribuído a um conjunto de relações que perpassam por toda aparte da espessura do corpo social (poder pedagógico, pátrio poder, poderdo policial, poder do contra-mestre, poder do psicanalista, poder do padre,etc. (LEBRUN, 1984, p. 20)

• O conceito de poder é central dentro da obra de Michel Foucault. Para oautor, como vimos, o poder não é algo que se possa possuir. Portanto, nãoexiste em nenhuma sociedade divisão entre os que têm e os que não têmpoder. Pode-se dizer que poder se exerce ou se pratica.

• O poder, segundo Foucault, não existe. O que há são relações, práticas depoder.

• O poder circula. Para Foucault, ao contrário das teses althusserianas – se-gundo as quais todo poder emana do Estado para os Aparelhos Ideológicos –há as chamadas micropráticas do poder.

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mica ressaltada por Michel Foucault, quando afirma que o poder está perpassan-do todas as tramas do tecido das relações sociais (veja seu livro: FOUCAULT, M.Microfísica do Poder. 23º Ed. São Paulo: Ed. Graal, 2009.) veremos agoraalgo sobre a desigualdade.

Quanto à noção de desigualdade, podemos afirmar, logo de início que tam-bém, trata-se de um conceito carregado de significados, porém, com elementosmais próximos do senso comum, quando se diz que “vivemos em uma socieda-de desigual”; logo todos compreendem tratar-se de uma sociedade em quealguns têm mais privilégios que outros, ou vivem com maior poder aquisitivoque outros, ou...

Sabemos que as desigualdades são construções históricas e sociais, ou seja,constructos que sempre existiram na história das sociedades humanas, desde asprimeiras disputas por territórios de caça e de coleta de alimentos.

Na verdade, deslocando a discussão para o âmbito político brasileiro, po-demos afirmar que há tempos convivemos com os fenômenos da desigualdadee da exclusão social. Tais fenômenos têm em comum o fato de serem, ambos,“sistemas de hierarquização social”, ou seja, fruto das relações desiguais. Noentanto, existem entre elas diferentes características: enquanto a desigualdade,que tem como o seu grande teórico Karl Marx, é predominantemente um fenô-meno sócio-econômico e se caracteriza pela “integração subordinada”, os pro-cessos e as situações de exclusão, teorizados por Foucault, acontecem quandohá decisões de afastamento, de expulsão e de eliminação dos grupos minoritários,sendo “freqüentemente informada por características sócio-culturais” (cf. STOER& CORTESÃO, 1999, p. 15).

Por outro lado, observamos que, enquanto a desigualdade integra e subme-te, pois os seus mecanismos permitem a coexistência do dominante com o gru-po submetido no mesmo espaço/tempo, desde que este último seja dócil e si-lencioso (...) a exclusão vai sendo construída através do estabelecimento de li-mites e de regras que não poderão ser transgredidas e a partir das quais, arbitra-riamente, será estabelecido o que é normal e o que é aceitável e também o queé desviante, portanto proibido. (...) Assim, será eliminado quem não se situadentro do estabelecido como sendo normal, e quem transgride os limites doaceitável (STOER & CORTESÃO, 1999, p. 15).

No caso dos povos indígenas, no Brasil, desde sempre as relações entre elese os europeus que chegavam, foram relações perpassadas por caráter de desi-gualdade e de tentativas de submetimento. Estas relações foram construídas aolongo deste período de história recente do país, através de um poder político,mas, sobretudo, simbólico, que foi produzindo sujeitos desiguais, fora, portanto,da normalidade preconizada pela cultura européia: branca, católica, individua-lista, empreendedora, etc.

Na história do nosso país, quando falamos dos dilemas da desigualdade, dadiversidade e da diferença, a questão das diferenças étnicas, das relações de

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gênero, as diferenças geracionais, a questão das diferenças mentais e físicasentre as pessoas, sobretudo aquelas geralmente identificadas como deficientes,excepcionais ou, mais recentemente, pessoas com necessidades educacionaisespeciais ou, simplesmente, de direitos especiais, passam a ser tratadas comoquestões de segunda categoria. As políticas públicas, na atualidade mais do quea preocupação com a integração deveria preocupar-se urgentemente com ainclusão.

Mesmo a inclusão pode ser desigual, quando não está atenta aos direitosindividuais e, sobretudo coletivos, especialmente quando se trata de direitos decoletividades, como é o caso dos povos indígenas, que procedem de outrasmatrizes culturais, que não a nossa ocidental.

Como vemos, ao falar de desigualdade, estamos em outro nível se relacio-namos com os conceitos de diversidade e diferença, mais próximos dos teóricosdos chamados Estudos Culturais. Geralmente o conceito de desigualdade vematrelado com um adjetivo: social, econômica, racial, etc.

O conceito de desigualdade social é um guarda-chuva que compreendediversos tipos de desigualdades, desde desigualdade de oportunidade, resulta-do, etc., até desigualdade de escolaridade, de renda, de gênero, etc. De modogeral, a desigualdade econômica – a mais conhecida – é chamada imprecisa-mente de desigualdade social, dada pela distribuição desigual de renda. No Bra-sil, a desigualdade social tem sido um cartão de visita para o mundo, pois é umdos países mais desiguais. Segundo dados da ONU, em 2005 o Brasil era a 8ºnação mais desigual do mundo.

No caso da desigualdade social, ela acontece quando a distribuição de ren-da é feita de forma diferente sendo que a maior parte fica nas mãos de poucos.No Brasil a desigualdade social é uma das maiores do mundo. Quando falamosdos povos indígenas, que historicamente foram tratados como desiguais, estaequação torna-se ainda, mais perversa.

Somente com a Constituição Federal de 1988, os povos indígenas do Brasilforam considerados cidadãos com os mesmos direitos que qualquer cidadãobrasileiro e, além disso, com alguns direitos a mais, por serem povos autóctones,diferenciados cultural e socialmente. Ver, neste sentido o artigo 231 da Consti-tuição Federal.

Ficamos, assim, com a constatação de que a desigualdade não é natural,ao contrário, ela é social e historicamente “naturalizada”, para justificar o pro-cesso de construção / constituição desses sujeitos sociais desiguais. Na Antro-pologia, quando falamos da comparação entre culturas, na ótica do relativismocultural, afirmamos que as culturas são diferentes, mas não desiguais, ou seja,não há um juízo de valor classificatório, e sim a constatação da diversidadeentre as culturas.

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2.2 Relações de Contatoe os Conceitos da Antropologia

Como veremos, as questões do contato entre índios e a sociedade nacionalpassam pela constituição das fronteiras nacionais (geopolítica) e fronteiras cultu-rais, reelaboradas com a aquisição dos novos elementos gerados pela própriadinâmica deste contato entre índio, não-índio e as formas de atuação do Estadobrasileiro.

A discriminação com relação aos povos indígenas e a falta de respeito aseus direitos são fatos mais que comprovados através da história do contato,colonização e expansão dos Estados nacionais, e isto não se configurou de outramaneira no caso do Brasil: cabe ao estudo antropológico estar ciente da formacomo essa relação índio – não-índio se dá nas sociedades, ou seja, quase sem-pre foi um processo histórico onde predominou a assimetria. A subjugação foiuma prática realizada pelo Estado brasileiro contra os povos autóctones no de-correr do processo de colonização, no Brasil Império e, particularmente, noperíodo de formação das fronteiras entre os Estados Nacionais.

As relações entre índios, negros e europeus, na constituição da sociedadebrasileira, foram estudadas ao longo deste período, especialmente a partir dadécada de 1930, quando grandes cientistas sociais, na época, buscaram umacompreensão totalizante do Brasil. Neste período temos o primeiro estudo de

CONCEITOS DE DESIGUALDADE:

ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL: a divisão sócio-econômica da população emcamadas ou estratos. Quando falamos em estratificação social, chamamosatenção para as posições desiguais ocupadas pelos indivíduos na sociedade.Nas sociedades tradicionais de grande porte e nos países industrializados dehoje, há estratificação em termos de riqueza, propriedade e acesso aos bensmateriais e produtos culturais.

RAÇA: um grupo humano que se define e/ou é definido por outros gruposcomo diferente... em virtude de características físicas inatas e imutáveis. Umgrupo socialmente definido com base em critérios físicos.

ETNIA: práticas culturais e pontos de vista de uma determinada comunida-de, pelos quais se diferenciam de outras. Os membros de grupos étnicosvêem a si mesmos como culturalmente distintos de outros grupos da socie-dade e são vistos como tal pelos outros grupos. Muitas características dife-rentes podem distinguir os grupos étnicos uns dos outros, porém, as maiscomuns são a linguagem, a história ou a ancestralidade – real ou imaginada,a religião e os estilos de vestuário. As diferenças étnicas são completamenteadquiridas.

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Gilberto Freire (Casa Grande e Senzala), seguido por Sérgio Buarque de Holanda,com Raízes do Brasil, clássicos que merecem ser lidos, sobretudo pela riquezadas descrições das relações interétnicas.

Anterior a este período, ou seja, final do século XIX e início do século XX,há uma predominância Alemã na Etnologia brasileira. Segundo Melatti (1984),nesse primeiro período, os etnólogos estrangeiros que procuravam o Brasil eramprincipalmente alemães e estavam mais voltados para as culturas indígenas. Ha-via os que organizaram grandes expedições de pesquisa (O mais famoso delesfoi Karl von den Steinen, que fez sua primeira expedição ao Brasil em 1884descobrindo os grupos indígenas xinguanos). Com formação evolucionista eleprocurava desvendar no estudo dos xinguanos a origem de uma série de técni-cas e costumes, e outros que privilegiaram o trabalho de gabinete.

Entretanto, a Antropologia passou a ser fundamental no estudo das relaçõesde contato dos povos indígenas com seguimentos da sociedade nacional. Estaciência, a partir das influências das teorias evolucionistas, difusionistas e, sobre-tudo a partir do funcionalismo, começa a tecer seus estudos na tentativa decompreensão do que estava ocorrendo no país no século XX.

Eduardo Galvão e outros adeptos do difusionismo ou evolucionismo, pro-duziram importantes estudos no Brasil, mas foi o funcionalismo que produziu osprimeiros e mais importantes estudos teóricos sobre as relações de contato entreíndios e não-índios. É desse período noções como aculturação e assimilação,de clara influência do movimento culturalista americano, e de base funcionalista.

O ponto de partida para estes estudos é a noção de cultura como algo como qual se nasce, ou que se adquire. Uma noção estática que leva à conclusão de

EVOLUCIONISMO

Aplicação da teoria geral da evolução das espécies ao fenômeno cultural.“Os fenômenos culturais são sistematicamente organizados sofrendo mu-danças, uma forma ou estágio sucedendo o outro”. Principais representan-tes: Spencer (1820-1903), Tylor (1832-1917), Frazer (1854-1941), Morgan(1818-1881).

DIFUSIONISMO:

Corrente da antropologia que procurava explicar o desenvolvimento cultu-ral através do processo de difusão de elementos culturais de uma culturapara outra, enfatizando a relativa raridade de novas invenções e a importân-cia dos constantes empréstimos culturais na história da humanidade. (princi-pal representante no Brasil:Eduardo Galvão)

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que a mudança de práticas culturais equivale a perdas: perda de cultura, perdada língua, etc.

Juntamente com a noção de aculturação, surge o conceito de assimilação,amplamente utilizado pelos pesquisadores em meados do século XX, noção quepermanece no senso comum de jornalistas, juristas e, da população em geral.Quando um indígena, ou grupo de famílias migra para a cidade, muitos afirmamsuperficialmente, que depois de certo tempo, “foram assimilados”, ou que “dei-xaram de ser índios”.

Segundo Melatti (1984), nos anos de 1930 têm início os estudos de mudan-ça social, mudança cultural ou aculturação, termos usados segundo as prefe-rências de cada autor e não exatamente intercambiáveis. Herbert Baldus talveztenha sido o primeiro a tratar dos estudos de contato interétnico. Nos anos 1950alguns pesquisadores brasileiros, como Eduardo Galvão, Darcy Ribeiro e RobertoCardoso de Oliveira começam a repensar a orientação que vinha sendo tomadanos estudos de aculturação, sem, porém, abandonar o uso desse termo.

CONCEITO DE ACULTURAÇÃO

Foi durante muito tempo utilizado para se avaliar o processo de contato entreduas diferentes culturas, em que uma delas passa a sofrer o processo de perdasculturais e aquisição de elementos da cultura dominante. No entanto, a utili-zação desse conceito vem sendo cada vez mais criticada e combatida porantropólogos e outros especialistas das ciências sociais. Em geral, a crítica rea-lizada a esse conceito combate a noção de que uma cultura desaparece nomomento em que entra em contato com os valores de outras culturas.

Nesta concepção a cultura seria um conjunto de valores, práticas e signosimutáveis no interior de uma sociedade. Estudos de natureza histórica eantropológica, principalmente a partir da segunda metade do século XX, de-monstraram que as sociedades humanas estão constantemente reorganizan-do suas formas de compreender e lidar com o mundo. Assim, a cultura nãopode ser vista de uma forma estática.

Um dos mais claros exemplos desse processo pode ser visto com relação àscomunidades indígenas brasileiras. No começo do século XX, as autoridadesoficiais acreditavam que a ampliação do contato entre brancos e índios po-deria, em questão de décadas, extinguir as comunidades indígenas. Contu-do, o crescimento das comunidades indígenas – a partir da década de 1950– negou o prognóstico do início daquele século.

Se entendermos a cultura como um processo dinâmico e aberto em quehábitos e valores são sistematicamente ressignificados, a ideia de aculturaçãonão pode ser vista como o fim de uma cultura, pois não há como pensar queum mesmo grupo social irá preservar os mesmos costumes durante décadas,séculos ou milênios.

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Conforme afirmado anteriormente, acontece neste período uma forte pre-dominância do Funcionalismo no Estudo das Culturas e Sociedades Indígenas.Dentre os trabalhos desse período, segundo Melatti (1984) destaca-se o texto deFlorestan Fernandes sobre A Organização Social dos Tupinambá.

Outro grande antropólogo que começa a pesquisar e escrever nesta mes-ma época é Darcy Ribeiro, o qual indica explicitamente sua reflexão como umaabordagem funcionalista. Apesar da hegemonia da abordagem funcionalistaneste período, demorou-se a se estabelecer nas pesquisas com povos indígenasdo Brasil o longo e intensivo trabalho de campo. Vários pesquisadores (Baldus,Galvão, Egon Schaden) preferem viagens curtas (cf. MELATTI, 1984).

Na década de 1950 ficaram famosas as pesquisas de Roberto Cardoso deOliveira, inicialmente entre o povo Terena (Mato Grosso do Sul) e na sequência,com o povo Tikuna no Alto Rio Solimões / AM. Estes estudos de Roberto Cardosode Oliveira, particularmente entre os Terena, publicado posteriormente em seulivro Do Índio ao Bugre – o processo de assimilação do povo Terena (1976), sãorealizados a partir do paradigma do funcionalismo, basta ver no próprio subtítulode seu livro.

FUNCIONALISMO

Ao estudar a cultura, a preocupação não era mais com as origens ou história,mas com a lógica do sistema focalizado, ou seja, a visão sincrônica (um mo-mento dado – fotografia) e a visão sistêmica, que é a relação da sociedadecom um organismo, um todo organizado. Qualquer traço cultural tem fun-ções específicas e mantém relações com cada um dos outros aspectos dacultura para a manutenção do seu modo de vida total.

Bronislau Malinowski, seu grande formulador teórico/metodológico. Este autorpublica em 1922 seu clássico Argonautas do Pacífico Ocidental, onde ficoufamosa a descrição e sistematização da prática da ETNOGRAFIA, ressaltandoa importância da observação participante, e com algumas regras básicas parao pesquisador: aprender a língua do nativo; conviver de 2 a 3 anos com ogrupo pesquisado; fazer a transposição psicológica, ou seja, que o eles setransforme no “nós”.

Representantes: B. Malinowski (1884-1942), Radcliffe-Brown (1881-1955).

Aculturação, neste contexto teórico da an-tropologia, seria um conceito relacionado aestudos das mudanças culturais com ênfase naadaptação entre culturas, prevalecendo a cul-tura dominante.

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Roberto Cardoso de Oliveira (1976) faz a relação entre os dois conceitos –aculturação e assimilação – definindo-os e utilizando como suporte para suapesquisa de campo entre os índios em contexto urbano, nas cidades deAquidauana, Sidrolândia e, principalmente, Campo Grande / MS.

CONCEITO DE FRICÇÃO INTERÉTNICA

A. A expressão fricção interétnica indica uma das linhas primordiais deinvestigação existentes na etnologia brasileira. Os pesquisadoresenfatizam a necessidade de se entender os grupos indígenas em suarelação de incorporação à sociedade brasileira. Esta conceituação sur-ge como uma abordagem alternativa aos estudos de aculturação, na ten-tativa de um modelo analítico mais adequado ao estudo da realidadeindígena brasileira.

B. Dois aspectos são enfatizados por Roberto Cardoso de Oliveira comocruciais na definição de fricção Interétnica, permitindo contrastar essaanálise com a abordagem em termos de aculturação. 1. A própria palavrafricção sugere que as relações entre os grupos étnicos não podem serpensadas unicamente como uma transmissão consensual de elementosde cultura, mas como um processo primordialmente conflitivo, que en-volve muitas vezes interesses e valores contraditórios; 2. Substitui a ênfa-se excessiva na cultura por uma visão mais sociológica e observa que emsua perspectiva “o fulcro da análise não deve ser o aludido patrimôniocultural, mas relações que tem lugar entre as populações ou sociedadesem causa” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1972).

C. Da noção de fricção Interétnica o autor passa à definição do sistemainterétnico como formado pelas relações entre “duas populaçõesdialeticamente “unificadas” através de interesses diametralmente opos-tos, ainda que interdependentes, por paradoxal que pareça” (CARDOSODE OLIVEIRA, 1962, p.84-5).

D. Mais recentemente, Cardoso de Oliveira (1976) procura associar à noçãode fricção Interétnica uma problemática nova, derivada principalmentede pesquisas atuais sobre o fenômeno de construção das identidades ét-nicas, como um capítulo do estabelecimento de identidades sociais emgeral. Para isso utiliza-se das contribuições de autores como F. BARTH(1998).

E. Surgiram sobre este conceito algumas avaliações críticas, como a de J.Pacheco de Oliveira, que procura explicitar as diferentes posturas teóri-cas que sustentam as teorias de Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso deOliveira sobre o contato interétnico, adotando uma posição metodológicaprocessualista, pondo em destaque o conceito de “situação histórica”.Concluindo: mais do que um conjunto de conceitos e teorias, a fricção

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Quanto ao conceito de Assimilação, podemos dizer que seriam processossociais através dos quais os indivíduos e grupos de indivíduos diferentes assu-mem padrões comportamentais, tradições, sentimentos e atitudes de outra cul-tura. É um ajustamento interno do próprio indivíduo ou grupo e constitui umindício da integração sócio-cultural, ocorrendo geralmente nos espaços de aco-lhida de populações provenientes de grupos diferentes, como é o caso dos po-vos indígenas.

A partir da década de 1960 o próprio Roberto Cardoso de Oliveira, a partirde novos estudos e acompanhando algumas reflexões de novas teorias antropo-lógicas, passa a fazer a transição do paradigma do funcionalismo, para outrascompreensões da dinâmica das relações interétnicas. Contemporânea com ateoria de Fredrik Barth (Grupos Étnicos e suas Fronteiras, 1969), Roberto Car-doso de Oliveira desenvolve sua teoria da Fricção Interétnica, onde coloca aênfase não mais no núcleo da cultura, mas nas relações e interações entre asculturas, ou seja, nas fronteiras onde as culturas estão em processo de fricção,negociação e disputas.

Os estudos de contato interétnico, segundo Melatti (1984), antes voltadospara as modificações culturais, atentam agora mais para o conflito entre interes-ses, regras e valores das sociedades em confronto. Preocupações de caráter es-truturalista1 e etnocientífico substituem as interpretações funcionalistas.

Historicamente, a partir do projeto “Estudo de Áreas de Fricção Interétnicano Brasil”, de Roberto Cardoso de Oliveira, iniciou-se uma nova maneira deabordar, no Brasil, as relações entre as sociedades indígenas e os civilizados.Esse projeto nasce de um crescente descontentamento com a noção deaculturação, sobretudo por não levar em conta as posições de dominação e desubordinação que tomam os membros das sociedades em contato, nem o con-flito entre as técnicas, regras, valores, das mesmas sociedades. Os estudos defricção também se voltaram para o exame do conflito de interesses entre de-terminadas populações indígenas e certas “frentes” não propriamente de ca-ráter econômico, como missões e escolas. Se os estudos de fricção Interétnicafocalizam, sobretudo os aspectos econômicos, sociais e políticos do contato, aface ideológica do mesmo passou a ser examinada segundo as noções de iden-

Interétnica e constituiu em uma das linhas fundamentais de pesquisa naetnologia brasileira, aquela que orientou de forma integrada um vastoconjunto de pesquisas sobre grupos tribais brasileiros.

Fonte: SILVA, Benedicto. (org.) Dicionário de Ciências Sociais. RJ: FGV, 1986.

1 Corrente que teve seu apogeu nas décadas de 40 e 50. Tem pontos em comum com o “funci-onalismo”: visão sincrônica da cultura; visão sistêmica e globalizante do fenômeno cultural;adoção do termo estrutura; influências da escola francesa. Claude Lévi-Strauss (1908 - 2009) éconsiderado o mentor da teoria estruturalista.

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tidade étnica2. Os anos 70 foram marcados pelo esforço, que continua a vigo-rar, de alguns etnólogos em colaborarem com os povos indígenas pelos quaisse interessam academicamente na obtenção de soluções para seus problemasmais urgentes, como demarcação de terras, assistência médica, instrução, ad-ministração direta pelos índios de sua produção, etc. (cf. MELATTI, 1984).

O processo de mudanças culturais é determinado pela própria dinâmicadas relações sociais e da forma como essas relações ocorrem no âmbito do siste-ma interétnico, que podem ser percebidas pela análise dos níveis econômico,social e político. Cardoso de Oliveira, em seu trabalho intitulado Povos indíge-nas e mudança sócio-cultural na Amazônia, desmistifica a análise que deve serfeita e afirma que “Não se trata de mudança por empréstimo de tais ou quaistraços culturais, como pretendem explicar as teorias da aculturação” (CARDO-SO DE OLIVEIRA, 1972, p. 4), pois a situação de contato é marcada por relaçõesassimétricas de dominação por parte dos não-índios e sujeição dos índios.

O sistema interétnico se constitui a partir do momento em que se cria umainterdependência, “e se cristaliza quando tal interdependência se tornairreversível”, como Roberto Cardoso de Oliveira descreve em 1962 e 1964, nosestudos referentes ao processo de fricção Interétnica, reafirmados em 1972:

(...) Para o estudo do índio e de sua situação de fricção, essa sua depen-

dência – que também retrata uma interdependência índio/branco – temespecial poder explicativo por estar voltada para a satisfação de necessi-

dades que inexistiam anteriormente ao contato interétnico. Satisfeitas

essas necessidades, o grupo indígena fica acorrentado à sociedade tecni-camente mais poderosa; esta, por sua vez, tendo investido seus recursos

nos territórios indígenas, deles também não pode abrir mão. Está consti-

tuído, o que chamarei, da base do sistema interétnico (CARDOSO DEOLIVEIRA, 1972, p. 3).

Cardoso de Oliveira deixa claro que o sistema de relações interétnicas sedá a partir do paradigma da dependência, seja das frentes de expansão(extrativismo, pecuária extensiva, mineração, etc.), seja das políticasassistencialistas do Estado brasileiro. Na sequência, o mesmo autor reforça estanoção das frentes de expansão da sociedade nacional e, conforme sua intensi-dade, destaca a relevância da incidência perversa sobre os povos indígenas.

Qualquer estudo sobre índios no Brasil que objetive revelar a sua verda-

deira situação não poderá deixar de focalizar o caráter das frentes desbra-vadoras que os alcançam, hoje, nos seus mais distantes redutos. O papel

variado, desempenhado por essas frentes de expansão da sociedade naci-

onal, segundo a intensidade e a qualificação do contato entre índios ebrancos, torna relevantes quaisquer dados que permitam traçar um perfil

2 Os membros de um grupo étnico compartem certas crenças, valores, hábitos, costumes enormas, devido a seu substrato comum. Definem-se a si mesmos como diferentes e especiaisdevido às características culturais. Etnicidade significa identificar-se com, e sentir-se parte de umgrupo étnico e exclusão de outros devido a esta filiação. Normalmente os indivíduos costumamter mais de uma identidade grupal.

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compreensivo – pois fundado em evidências estratégicas – das formas deocupação civilizada e das modalidades de exploração do trabalho indíge-

na e não-indígena regional (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1981, p. 31).

No caso concreto do Estado de Mato Grosso do Sul, particularmente, nasituação histórica dos povos Guarani e Kaiowá, constatamos que desde a im-plantação da Cia Mate Larangeira, inicia-se a prática de ocupação do territórioe o consequente assalariamento dos índios. Esta situação histórica caracteriza-secomo um processo de intrusão e desestabilização sociopolítica sofrida pela vio-lenta ocupação de seu território, particularmente no período da implantação daColônia Agrícola da Grande Dourados (CAND), nos anos de 1940 e 1950.

Podemos observar, no entanto, que a teoria sobre as áreas de “fricçãoInterétnica”, referem-se sempre a povos inseridos em outras dinâmicas territoriais,econômicas, sociais e políticas, que inevitavelmente com o contato acabarampor ter de se reorganizar em função das novas relações estabelecidas. Assim,pode-se dizer, segundo esta teoria, que os povos indígenas sempre acabarampor ficar em posições inferiorizadas em relação à população regional, e que asações do Estado acabam por ser essenciais no rumo dessas relações até entãodíspares, principalmente durantes os ciclos de exploração da erva-mate, depoisda derrubada das matas para os pastos (pecuária), na sequência a lavoura da sojae, na atualidade, as usinas sucroalcooleiras.

Mesmo que a teoria da fricção Interétnica tenha perdido parte de seu po-der heurístico (capacidade de explicação/compreensão do fenômeno das rela-ções entre culturas), continua sendo uma grande e autêntica teoria antropológi-ca, importante para o período de transição para as novas noções de relaçõesinterétnicas ou teorias de etnicidade.

2.3 As teorias de etnicidadee os povos indígenas

O tema da identidade e, sobretudo o tema da etnicidade, tem sido impostoultimamente pela emergência de conflitos nacionalistas e pelos movimentos so-ciais e migratórios, que têm tomado como pretexto a identidade de um grupo(étnico, regional, etc.) ou de uma categoria social (movimentos feministas, porexemplo) para questionar uma relação assimétrica e de dominação ou reivindi-car uma autonomia.

Além do avanço das frentes de expansão, nos meados do século XX, confor-me vimos acima, o fenômeno da globalização, que por diferentes razões estárelacionado ao ressurgir das questões étnicas. Destacamos, também, outras ra-zões, específicas para o caso Latinoamericano. Por um lado, se percebe que aincidência de novos tipos de lideranças sobre a tradicional consciência de sin-gularidade cultural das populações indígenas põe em marcha processos de re-construção e redefinição das identidades étnicas destes povos. Dessa forma, seproduz um discurso com renovada auto-representação do “nós” indígena com a

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intenção de conseguir sua veracidade mediante a simultânea referência ao quecada povo conserva de distintivamente “índio” e ao que vem adquirindo e trans-formando como resultado de suas, forçadas ou voluntárias, relações culturais eeconômicas com o ocidente (cf. AGUILERA URQUIZA, 2006).

Por outro lado, as culturas indígenas latinoamericanas contemporâneasmostram, de maneira geral em sua estrutura e seus traços, que não são senãoresultado de um duro confronto histórico com as culturas européias. A recons-trução de suas identidades é inevitavelmente, alusiva a esse confronto históricoque tem se mantido, com diversos rostos, até o presente. Uma das questõesdeste texto é entender o sentido das profundas transformações que as socieda-des indígenas estão experimentando em um passado próximo, como vimos atéagora, e na atualidade. O futuro para estes povos indígenas se apresenta comocaracterizado por um “pos-nacionalismo”, que em suas diversas manifestações– construção de um tempo único universal, desterritorialização cultural,mestiçagem, hibridismo, etc. – produzem um esvaziamento da referênciaidentificatória do aspecto nacional com tendência a ser preenchido pelas iden-tidades locais e étnicas (cf. AGUILERA URQUIZA, 2006).

Por tudo isso, a partir do que vimos até aqui, nos propomos seguir as linhascentrais da teoria da etnicidade, a partir do seu aspecto de ser essencialmenteinterdisciplinar, buscando apoio especialmente nas teses de Fredrik Barth (1998).

A partir dos novos estudos de Fredrik Barth (2000), sobre o tema étnico,podemos compreender alguns elementos atuais sobre as relações interétnicasem nossa região, especialmente no caso de povos indígenas recorrerem à me-mória coletiva (reconstrução - reavivamento da língua, os rituais e tradições).Neste movimento, tem-se enfatizado seu caráter primordial, o qual tende a tiraraos povos “originários” da história e localizá-los onde o tempo se encontra “con-gelado”, no sentido de “recuperar” algo que estava perdido. Segundo Poutignate Streiff-Fenart (1998), a crítica ao “primordialismo” segue até hoje como ne-cessária para uma nova reelaboração teórica da noção de etnicidade.

É certo que alguns autores defendem a existência de um conjunto de traçose elementos culturais de “larga duração”, porém, sob o ponto de vista de Barth(1998), preferimos analisar a etnicidade em suas transformações através do tem-po e as identidades étnicas como identidades fluidas que se constroem, se re-constroem, se ocultam e se mostram, de acordo com as circunstâncias históricas,políticas, sociais e culturais determinadas.

Fredrik Barth (1998) inicia sua análise ordenando o que geralmente se en-tende por ‘grupo étnico’ na literatura antropológica. Uma comunidade que:

Perpetua-se principalmente por meio biológico; Comparte valores cultu-

rais fundamentais; Integra um campo de comunicação e interação; osmembros se identificam a si mesmos e são identificados pelos demais

(BARTH, 1998).

Aprofundando essa temática, Barth (1998) chega à conclusão de queetnicidade é um processo subjetivo. Os ‘grupos étnicos’ são formados na medida

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em que os autores utilizam identidades étnicas para categorizar a si mesmos eaos outros, tendo como propósito a interação. Assim, pode-se dizer que é o‘grupo social’ o que determina a cultura e não o contrário. Desse modo, as dife-renças culturais podem persistir, apesar do contato interétnico e dainterdependência.

A etnicidade é uma entidade relacional, pois está sempre em construção,em uma forma predominantemente contrastiva. O que significa que estáconstruída no contexto de relações e conflitos intergrupais. A forma contrastivaque caracteriza a natureza do grupo étnico resulta de um processo de con-frontação e diferenciação. Tudo isso acentua a natureza dinâmica da identida-de étnica que se constrói no jogo destas confrontações, oposições, resistênci-as, como também e, sobretudo, no jogo da dominação e submissão. É nestejogo dialético da dominação e da sujeição, onde se encontra a dimensão maiscrítica do problema da identidade étnica (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1981, p.58). Barth (1998) também assinala que o caráter contraditório da relação entregrupos étnicos aparece mais claramente quando se trata de minorias em suasrelações de submissão para com as sociedades que estão no entorno (cf.AGUILERA URQUIZA, 2006).

Como vimos acima, no Brasil, Roberto Cardoso de Oliveira (1976), comsua teoria da fricção Interétnica – a afirmação de um determinado grupo seprocessa na distinção e contraste, diante dos demais, quando uma pessoa ou umgrupo se afirma como tal, o faz como meio de diferenciação em relação comalguma pessoa ou grupo com que se confronta (cf. CARDOSO DE OLIVEIRA,1976, p. 05-06) e posteriormente Oliveira Filho, (1977, 1988) – noções de ‘camposocial’ e ‘situação histórica’ – são os principais representantes atuais dessa refle-xão, em continuidade aos trabalhos de Fredrik Barth.

Nós nos perguntamos, na atualidade, como os povos indígenas constituemsua identidade em meio às relações que estabelecem com a ‘sociedade nacio-nal’ e quais são os efeitos, ou como lhes afeta o tema das vertiginosas mudançassociais no mundo atual? Sabemos que estas questões de identidades interétnicas,têm sua origem justamente nas relações estabelecidas entre sociedades indíge-nas e setores da sociedade nacional, marcadas simultaneamente por conflitividadepor um lado e interdependência por outro.

Cardoso de Oliveira (1976), confrontado por este contexto, afirma que anoção de ‘identidade contrastiva’,

Parece constituir-se na essência da identidade étnica, ou seja, a base naqual esta se define. Implica a afirmação do ‘nós ante os outros’. Quando

uma pessoa ou um grupo se afirma como tal, o faz como meio de diferen-

ciação com relação a alguma pessoa ou grupo com que se confronta.Trata-se de uma identidade que surge por oposição. Não se afirma isolada-

mente. No caso da identidade étnica, se afirma ‘negando’ a outra identida-

de, ‘etnocentricamente’ visualizada por ela (CARDOSO DE OLIVEIRA,1976, p. 05-06).

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Pode-se dizer, segundo o argumento do autor, que cada vez se torna maisnecessário descobrir e reafirmar – ou incluso criar – suas semelhanças, poisisoladamente assim, em uma situação de confrontação e de minoria, terá condi-ções de reivindicar para si um espaço social e político de atuação.

Participando, dessa maneira, de um ‘grupo étnico’ (BARTH, 1998, p. 15),como forma de organização social, articulados basicamente por si mesmos, ospovos indígenas, recorrem a sinais externos de identificação que eles mesmosse constituem como tais, organizando um processo de interação com outrosgrupos, que inclui articulações e interdições, com o fim de garantir sua sobrevi-vência como unidade (grupo) social. Estes sinais de identificação não são dadospreviamente e estabelecidos, mas se constituem dinamicamente, no próprioprocesso de organização das relações interétnicas, respondendo à circunstânci-as históricas, assim como aos interesses dos atores relacionados.

Em outros termos, poderíamos dizer que a identidade étnica e a etnicidadesão frutos, também, do processo de ocidentalização do mundo. Implica sistemasde classificação e auto-classificação, de identidade / alteridade, presentes nasrelações entre sociedades hegemônicas e dominadas, onde estas, quase sempresão os atores (minorias) que participam do movimento histórico como desiguaise diferentes (classe e etnia), o que chamamos de relações assimétricas.

2.4 Considerações finaisEssas relações interétnicas, como vimos, historicamente foram e são pauta-

das por relações assimétricas, ou seja, relações pautadas pela desigualdade.

Quando os europeus aportaram na América, encontraram uma surpreen-dente diversidade de povos e línguas – no Brasil estima-se terem encontradoum total de mil povos distintos e uma população em torno de cinco milhões depessoas, que, segundo o lingüista Aryon Rodrigues (RODRIGUES, 1994), fala-vam 1.273 línguas.

Passados 500 anos de colonização, o Brasil possui, ainda, cerca de 700 milindígenas, de 215 povos distintos, que representam cerca de 0,4% da popula-ção brasileira e falam 180 línguas distintas. Por isso, apesar de uma perda decerca de 85% das línguas nativas, o Brasil segue, ainda, entre as maiores diversi-dades lingüísticas do mundo.

O maior desafio enfrentado pelos povos indígenas na atualidade, no Brasil,segue sendo a posse dos territórios tradicionais, base necessária para a suasustentabilidade e autonomia e um dos fatores mais relevantes para explicar apersistência de elevados índices de pobreza e precárias condições de vidaverificada entre muitos povos. O avanço sistemático da colonização sobre osterritórios indígenas e seus recursos naturais é conseqüência da imposição his-tórica de um projeto de desenvolvimento monocultural, no âmbito dos EstadosNacionais.

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Entendemos que a situação dos povos indígenas hoje, não só no Brasil, masem diversos países da América Latina, traz marcas profundas desse mesmo pro-jeto de desenvolvimento que se caracterizou, também, pela sistemática e pla-nejada busca de superação da sociodiversidade, percebida, inclusive, pelos Es-tados Nacionais que aqui se implantaram, como um estorvo, e a presença dospovos indígenas, além de sinal de atraso, significando o risco de futuras fragmen-tações políticas.

O destino dos povos indígenas, sob a ótica dos Estados Nacionais, era o seudesaparecimento, mediante a integração na sociedade ocidental, o que, na pers-pectiva dos povos indígenas, se traduziu em desintegração de seus territórios,modos de vida, organização social, economias, religiões e cosmovisões. Seusconhecimentos, tecnologias de manejo ambiental, medicina e agricultura, sob aótica das elites latinoamericanas, eram (e são, ainda, em amplos setores dessasmesmas elites) considerados imprestáveis e sinal de atraso e de não civilização.

Essa era, de certa forma, a visão subjacente à política indigenista do Brasil,durante quase 500 anos. Os povos indígenas eram, efetivamente, consideradoscomo povos “passageiros” ou “transitórios” (LIMA, 1995), cujo destino era“insumir-se” ou integrar-se através da superação de sua identificação étnica,caminhando em direção a um “índio genérico” ou um brasileiro sem identida-de específica (caboclo e bugre são alguns dos termos utilizados para designargrupos que resultaram desse processo de miscigenação).

Os objetivos que nortearam a criação, em 1910, do Serviço de Proteçãoaos Índios (SPI), órgão subordinado ao Ministério da Agricultura, eram colocar aspopulações indígenas sob a égide do Estado, por meio do instituto da tutela3,prometendo assegurar-lhes assistência e proteção, enquanto tal integração nãose efetivasse. No entanto, o objetivo principal da política indigenista oficial erapermitir a efetiva e segura expansão capitalista nas áreas ocupadas por popula-ções indígenas.

No caso específico de Mato Grosso do Sul, dentro dessa lógica, o SPI de-marcou, entre os anos de 1915 a 1928, oito reservas de terra, destinadas aosKaiowá e Guarani, no sul do Estado, perfazendo um total de 18.124 há. A de-marcação desses espaços e o decorrente aldeamento dos Kaiowá e Guaranidesempenhou um papel fundamental no processo de liberação e disponibilizaçãode terras para a colonização, criando os almejados espaços livres para a empresaprivada (LIMA, 1995). Com esse procedimento, o SPI logrou, ainda, progressiva-mente, desarticular as bases da economia indígena, mediante a restrição territorialou confinamento, interferindo, ainda, profundamente na organização social decada povo. Esta situação repetiu-se, como já vimos durante este curso, comoutros povos indígenas, apenas com pequenas variações históricas.

3 O Decreto n° 5484/1928 previa a incapacidade dos índios “enquanto não se incorporaremeles à sociedade civilizada” (ver LIMA, 1995, p. 207).

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CAPÍTULO III

História e Históriasdos Povos Indígenas

Vanderléia Paes L. Mussi

Ao retornarmos no tempo, por meio dos livros de História ou pelos escritosliterários, podemos ver a imagem dos povos indígenas sendo construída de múl-tiplas formas: como dóceis, passivos, gentis, ou como silvícolas, selvagens,indômitos, insolentes, preguiçosos. Seja qual for a imagem construída em deter-minado tempo e diferente contexto histórico, os povos indígenas nunca se apre-sentaram como sujeitos de nossa História, ou como parte integrante de nossaidentidade: são apresentados como seres que estão à margem, aqueles que au-xiliam e nunca constroem; e dependendo das circunstâncias, são apenas figu-rantes na construção da história brasileira, atuando como coadjuvantes de suaprópria história.

3.1 Lições do passado:Antes de 1500...

A história do descobrimento da América é marcada por uma trajetória degrandes acontecimentos. Assim como Cristovão Colombo, uma das figuras cen-trais, navegou por mares distantes rumo às “Índias Ocidentais” em busca deterras desconhecidas e especiarias tão apreciadas, por que não podemos nave-gar pela história a partir dos movimentos indígenas, ou seja, a partir da trajetóriahistórica dos povos indígenas? Vamos viajar?

No dia 12 de outubro de 1492, Cristóvão Colombo, navegando a serviçode Castela, encontra para os lados do Ocidente algumas ilhas desconhecidas. Ébom lembrar que antes da descoberta, quando ainda se preparava para a grandeaventura, consultou o rei de Portugal que se negou a financiar aviagem. Diante da recusa de Dom João II, resolve dirigir-se aCastela, o reino espanhol. Quando soube das descobertas ultra-marinas de Colombo, Dom João II começa a organizar expedi-ções de reconhecimento, convencido de que as ilhas recém-descobertas lhe pertenciam de direito. Não foi possível realizara expedição e, na sequência, três bulas do Papa Alexandre VI

BULA: são determinações im-postas pela Igreja, por intermé-dio do Papa, que já era umaautoridade muito respeitadanaquela época, nas decisõesreligiosas e políticas.

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concediam à Espanha o direito sobre as novas terras encontradas pelos seusnavegadores a ocidente do meridiano traçado a 100 léguas rumo oeste das Ilhasde Açores e de Cabo Verde.

Observe que estamos lidando com duas linhas de demarcação: meridianose paralelos. Para os espanhóis, protegidos pela decisão papal, o mundo seriadividido por um meridiano, ou seja, uma linha imaginária vertical que cortaria omundo em Leste e Oeste, a 100 léguas rumo oeste dos Açores; isso lhes garan-tiria a posse das terras recém descobertas. Já a pretensão de Portugal era dife-rente: que o mundo fosse dividido por uma linha paralela, ou seja, uma linhahorizontal, a partir das Ilhas Canárias, que cortaria imaginariamente o mundoem duas partes também, só que em Norte e Sul. E por que os portugueses que-riam assim a divisão? Ora, para resguardar o seu caminho para as Índias, contor-nando a África em direção ao sul.

Bem, os debates em torno dessa divisão das novas terras do mundo se pro-longaram; assim, após sucessivas averiguações e iniciativas dos poderosos domundo daquela época, as duas coroas – Portugal e Espanha- chegaram a umacordo que resultou na assinatura do Tratado de Tordesilhas, em 7 de junho de1494. O tratado feito entre Fernando e Isabel, reis de Castela, e D. João II, rei dePortugal, dispunha sobre a divisão do que iria pertencer a cada nação, referenteàs terras e ilhas que viessem a ser descobertas, ou que tinham acabado de des-cobrir, como as ilhas das Antilhas, que hoje também chamamos de AméricaCentral.

Assim sendo, em conformidade com os acordos estabelecidos entre a Igre-ja e os reinos ibéricos – Portugal e Espanha- um meridiano separaria o setor lusodo espanhol, demarcando imaginariamente o globo terrestre. Traçado agora a370 léguas – cerca de 1.700 quilômetros - a oeste das Ilhas de Cabo Verde, aocidente estariam as terras espanholas e a oriente, as portuguesas. Com essadivisão, Portugal garantiria as regiões das especiarias, que se encontravam noOriente e, portanto, a leste dessa divisão e a Espanha, as terras americanas re-cém descobertas.

Espanha e Portugal, portanto, dividiram o mundo, sob a aprovação da Igreja,em duas partes: as ilhas e terras firmes já descobertas ou que viessem a ser desco-bertas no hemisfério oriental, pertenceriam a Portugal; as terras do hemisférioocidental caberiam à Espanha. É lógico que as demais nações do mundo ficaraminsatisfeitas com essa preferência na divisão do Novo Mundo, mas isso será discu-tido depois. O certo é que essa demarcação cortava o litoral brasileiro por meiodo meridiano que passa por Belém, ao norte, e Laguna, ao sul, dando a Portugal odomínio de quase todo Atlântico Sul e parte da terra firme que fica a leste destalinha. Estava demarcada, praticamente, metade do que conhecemos hoje comoterritório brasileiro que, na época do Tratado de Tordesilhas não havia sido ainda“descoberto”, mas cuja existência sabiamente já era suspeitada.

Também é bom lembrar que muitos anos depois essa linha foi forçada pelosbandeirantes, que acabaram empurrando as fronteiras do Brasil para onde está,

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hoje em dia. E aí vem a pergunta: em que isso interessa para compreendermosos “movimentos e a História indígena”? No fundo, todo esse esforço político dedemarcação de terras foi uma ação administrativa provocada pelos interessesmateriais de dois reinos católicos, que contavam com a autoridade do papa,chefe supremo da Igreja Católica, para ampliar seus domínios. Fica também evi-dente que Portugal e Espanha não queriam mais territórios para povoar e civili-zar, e sim, para dali retirar as suas lendárias riquezas, principalmente metaispreciosos e especiarias. É o que veremos no decorrer deste capítulo.

Podemos concluir, então, que o Tratado de Tordesilhas constitui-se no pri-meiro indício da existência do Brasil, ainda não declarada pelos interessadosdiretos: os portugueses. Logo, o afastamento da frota de doze caravelas capita-neadas por Pedro Álvares Cabral, para Oeste, seria intencional; ou seja, Cabralpossivelmente estava incumbido pelo rei português de se desviar de propósitoda rota marítima para as Índias, de modo que pudesse reconhecer o território enele plantar os marcos reais. Ficavam assim conhecidas e reconhecidas as novasterras do Ocidente, depois batizadas de Brasil.

3.2 Lições do passado:depois de 1500...

Após Cristóvão Colombo ter descoberto terra firme na região que hojeconhecemos como as Antilhas, na América Central, a “descoberta” do Brasil porCabral, representava uma virada nos acontecimentos daquela época; e a cha-mada “captura” das especiarias asiáticas pelos portugueses também modificouprofundamente a evolução do mundo ocidental.

Descoberto o Novo Mundo, os interesses europeus misturaram estrategi-camente a fé com a colonização, e se ambas deveriam caminhar juntas, estariaaí, então, uma justificativa adequada para a cristianização dos habitantes da ter-ra recém descoberta, de maneira que não oferecessem resistência aos seus in-teresses exploratórios. Desqualificados como seres humanos, vistos como ani-mais sem alma, bárbaros, demônios... estava justificada não só a necessidade desua cristianização, como de sua sujeição à civilização redentora do conquista-dor.

Reconhecido o território, Colombo se converteria em um caçador de es-cravos e ávido garimpador de ouro; afinal, eram bens para serem vendidos outrocados na Espanha, por finas mercadorias. Se o ouro é maleável às mãos docolonizador, os indígenas, entretanto, apesar de considerados bens de uso etroca, não eram totalmente desprovidos de vontade e de resistência a quem lhesferia o corpo e a alma.

Convém observar que geralmente os livros de história apontam as especia-rias, a água em abundância, a mão-de-obra dócil e disponível, as safras agrícolasfartas e constantes como sendo os principais fatores que motivaram todo o pro-

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cesso de colonização e exploração concebido pela metrópole; no entanto, épreciso considerar, também, um outro fator que nem sempre é citado, mas foi acausa de muita luta e custou o sangue de milhares de pessoas espalhados pelosertão do Brasil: o ouro e, no rastro de sua cata, os nativos, ou seja, os indígenas.

3.3 Lições do passado:a rota das minas e as

resistências indígenas na AméricaSegundo o relato de cronistas e viajantes da época do descobrimento da

América, uma das ilhas do Caribe, chamada de La Española, era chefiada porCaonabo, conhecido como o senhor de Maguana e dotado de natural talentopara a guerra; havia nessa ilha, ricas minas de ouro. Ao se deparar com tamanhariqueza, Colombo determinou que os vizinhos das minas com mais de 14 nos deidade fossem obrigados a entregar, a cada três meses, uma grande quantidadede ouro. Já os que viviam longe das minas, tinham de pagar uma arroba dealgodão por pessoa. Os nativos estavam acostumados a tirar ouro dos rios, dassuperfícies, mas o trabalho nas minas lhes era insuportável, pois desconheciamos procedimentos para a exploração. (COOL, 1986, p. 16)

Para ampliar a dominação estrangeira, foi construído um forte na Ilha; em-bora a força fosse desigual, Caonabo decidiu sitiá-lo como forma de resistência.Afonso Ojeda, que chefiava o forte, estrategicamente resolveu neutralizar o ca-cique para dominar o restante do grupo; preparou, então, uma algema brilhan-te, de maneira que parecesse uma jóia preciosa, o que muito encantava aquelesnativos. Ao se apresentar ao cacique indígena, em um tom de paz, e muitoamigável, Ojeda ajoelhou-se diante do indígena, determinando que seus solda-dos fizessem o mesmo; beijou-lhe as mãos, dizendo que o presente era enviadopelo almirante (Colombo) e que os soberanos o usavam em ocasiões muito es-peciais, pois aquilo era uma joia valiosa. Caonabo distraiu-se com o objeto eacabaram por colocar-lhe as algemas, levando-o para a Espanha.

Na viagem, o barco foi destruído por uma tormenta e o primeiro grandechefe da resistência indígena, preso em algemas disfarçadas de jóia fina, mor-reu afogado. Vamos tomar esse relato pitoresco para as nossas reflexões e,também, como emblema da inocência indígena e da sagacidade do conquis-tador europeu. Uma inocência alentada pela fruição das coisas belas da vida euma sagacidade provocada pelo desejo imoderado de possessão e glória.(COOL, 1986. p, 18)

Mas há outros fatos emblemáticos nessa história de invasões e conquistasem solo americano. Por exemplo, os homens brancos lutavam, segundo os histo-riadores e estudiosos, cobertos de aço, ou seja, eram protegidos por armadurasreluzentes e armas de fogo, montados em cavalos ferozes; carregavam furiosose famintos cães que, ao serem soltos contra os indígenas, derrubavam-nos ao

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chão, pegavam-nos pela garganta e agindo com toda fúria partiam-nos em peda-ços. Com isto, a única alternativa possível aos indígenas era o refúgio nas mon-tanhas, em busca de proteção; antes, porém, destruíam as plantações na espe-rança de que os invasores espanhóis morressem de fome.

Teríamos aqui outro acontecimento emblemático? Sim, esse encontro en-tre povos de culturas tão distintas foi marcado pelo estranhamento e horror. Deum lado, a mansa resistência de quem se recolhe e bate em retirada para asregiões inacessíveis; do outro, a feroz caçada de quem parte no encalço dofugitivo.

Vamos continuar com nossos relatos “emblemáticos”. Procure agora verque sentido histórico nos apresenta esse outro caso: em outra Ilha do Caribe,conhecida por Boriquén, a que os espanhóis chamavam de San Juan, tambémhavia muito ouro. A Ilha era rica não somente em ouro, mas também em agricul-tura, pois a terra era muito fértil. Não era despovoada, e quem a governava eraum cacique chamado Agueibana. (COOL, 1986, p. 19)

Em todas essas ilhas do Caribe, os caciques se confederaram, fazendo umagrande aliança entre suas aldeias, para enfrentar os espanhóis. Tidos como imor-tais, segundo a crendice que circulava entre os nativos, os conquistadores figu-ravam como verdadeiros semideuses e, portanto, imbatíveis; apesar disso, erapreciso reagir contra a presença invasora.

Certo dia, os indígenas resolveram testar a lenda da imortalidade: o caci-que Uroyoán acompanhou um cristão em sua viagem e como era costume, aoatravessarem um rio, Uroyoán ofereceu-se para colocar o estrangeiro nas costas,a fim de evitar que se molhasse. Ao chegar à metade da travessia, jogou-o naágua e ficou observando a sua reação, para ver se aquele semideus conseguia selivrar do apuro. Como consequência inevitável, o estrangeiro espanhol se afo-gou e os companheiros de Uroyoán tiraram o corpo da água, aguardando trêsdias para ver se ressuscitava. Assim, ao começar a cheirar mal, convenceram-sede que era mesmo só uma lenda!

Com essa constatação oportuna da mortalidade dos conquistadores, os indí-genas daquelas ilhas resolveram que todos, cada um em sua terra, iriam atacar aomesmo tempo os espanhóis que se encontrassem nos povoados; para começar,decidiram queimar o povoado de Sotomayor, assim chamado em homenagem aocapitão espanhol que mantinha o cacique Aguebana como escravo. Em 1511, nãosó queimaram o povoado como atacaram e mataram a pauladas o próprioSotomayor. Constituíram-se, portanto, essas ações em uma forma de resistênciaao invasor indesejado, estabelecendo-se aí um movimento indígena deenfrentamento ao conquistador espanhol, insaciável em seus desejos de riquezasmateriais e de glória. Não teríamos nesse relato outro ponto emblemático dasrelações trágicas entre os povos da América e o europeu? (COOL, 1986, p. 20)

Mas os relatos não param por aqui, tampouco nossas reflexões sobre asemblemáticas relações iniciais entre a América e a Europa. Vamos falar do que

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ocorreu com Vasco Nuñez Balboa, também um conquistador espanhol daquelesanos longínquos do século XVI. Já em terra firme, Balboa chegou às margens doOceano Pacífico, com uma grande quantidade de homens e exigindo comida eouro. Foi bem recebido pelo cacique Careta, que deixou que por lá ficasse JuanAlonso, que acabara ficando hóspede do povoado. Nuñez simulou sua partida,atacou o povoado e prendeu o cacique para entregá-lo aos espanhóis.(WASSERMAN, 1996, p. 55)

Foi nesse povoado que os espanhóis viram pela primeira vez os corposdos antepassados indígenas embalsamados com ricos tecidos de algodão, eadornos com “pérolas e jóias de ouro, guardados em belos palácios”. O saqueaos corpos foi inevitável e a disputa na repartição do ouro foi feroz e sangren-ta. Ao ver a ação dos conquistadores, um dos nativos que servia como intér-prete os advertiu, dizendo que se era ouro o grande desejo daqueles estran-geiros, deveria seguir mais ao sul, em direção a uma terra distante dali, passan-do para o outro mar. Neste povoado, no atual Peru, iriam encontrar um caci-que tupinambá, que tinha barcos de velas e remos, e que bebia em taças deouro; entretanto, o intérprete os alertou de que seriam necessários cerca demil homens para conquistar aquelas terras. Foi inevitável a viagem de conquis-ta, como também os estragos que fizeram entre os incas, pilhando suas rique-zas e profanando seus templos. Novo emblema? Mais que um emblema, umacicatriz corrosiva tatuada na frágil, mas ao mesmo tempo requintada civiliza-ção andina. (COOL, 1986, p. 20)

Bem, falemos das aventuras do nosso esquecido Cristóvão Colombo, que láficou no começo deste capítulo. Consta das crônicas daquela época que quandoesse grande navegante italiano chegou a Cuba, encontrou uma terra próspera epovoada por índios que, em determinado momento, começaram a se enforcarnas árvores. Os cronistas relatam horrorizados a catástrofe: eram tantas as mortesque, em um mesmo dia, foram encontradas enforcadas cerca de 50 famílias;eram homens, mulheres, crianças, todos de um mesmo povoado.

Os relatos de resistência e servidão indígena não param por aqui: no Méxi-co, Francisco Hernández de Córdoba chegou pela primeira vez, em 1517, comuma expedição, cuja finalidade era a captura dos índios; o próprio Hernándesde Córdoba regressou a Cuba muito ferido, morrendo logo depois. Nesta re-gião, havia muita resistência por parte dos indígenas, contra os espanhóis. Deacordo com Josefina Coll, outro conquistador, o Cortez, chegou a levar cerca de“508 homens, 16 cavalos, 10 canhões e 4 calubrinas muita pólvora e pelotas”, eno conflito, morreram milhares de indígenas. (COOL, 1986, p. 22)

Em 1524, é fundada a cidade de Santiago de Guatemala, cuja mão-de-obracontava com a contribuição de cerca de 800 indígenas, sendo 400 homens e400 mulheres do povoado de Cakchiquel. Enfim, muitas outras cidades foramsurgindo em Honduras, Baixa Califórnia, Novo México, Flórida; na Venezuela eColômbia, no Equador, Peru, Bolívia, Parte do Chile e Argentina, sendo todasconstituídas por povoados indígenas e mantidas com o sacrifício de suas vidas e

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de seu legado cultural. Era o rastro deixado pela busca incansável de ouro e debraços para o trabalho servil.

Mais para o sul, nas terras do Prata, em 1534, Pedro Mendonza saiu daEspanha em direção ao novo continente e fundou Buenos Aires, terra dos índiosquerandus. Naquela ocasião, os indígenas queimavam seus próprios alimentos,roças inteiras, na tentativa de não serem seguidos. Nessa região, encontravam-se também os povos indígenas guarani, charruas e chana-timbués; como formade resistência e enfrentamento ao conquistador espanhol, atacaram Buenos Aires,queimaram navios e incendiaram a vila.

Os relatos daquela época contam, também, que os espanhóis atacavamem silêncio, enchendo a boca dos cavalos de erva para que eles não pudessemrelinchar. Acendiam tochas de fogo e quando os indígenas viam aquelas luzesacesas, saíam das matas para ver aquele espetáculo, para eles impressionante.Assim que os espanhóis os viam, era inevitável a chacina. Logo, os guaycurues,grupo indígena também da região do Prata, fogem para as montanhas, incendi-ando o povoado que acabara de ser construído. Esses índios guaycurues, anosdepois, lutaram contra os espanhóis no Rio da Prata, na defesa de seu território;sem que soubessem, acabaram garantindo geograficamente o território que,hoje, é conhecido como o Estado de Mato Grosso do Sul, tão estimado pelabeleza do Pantanal.

Os guarani, ou guarani m’bayá, tomados como intermediários entre ín-dios e conquistadores, desde os primeiros contatos, foram as vítimas mais co-muns, pois eram levados à frente das batalhas, todos paramentados, ou seja,com muita plumagem e brilho de metal, para servirem como distração aosinimigos. Segundo os relatos dos cronistas e viajantes, no final da batalha resta-vam milhares de indígenas mortos, para a satisfação bestial do conquistadorbranco.

Ainda na Região do Prata, navegando pelos caudalosos rios daquele imen-so território, estendem-se as terras do Paraguai, onde os colonizadores chega-ram até Porto de Los Reys, sempre em busca de riquezas minerais e índios parao trabalho forçado. Seus habitantes eram os xarayes, povos que até o século IXque habitavam o Pantanal e que viviam da agricultura e criação de animais. Ascheias do rio da Prata eram verdadeiras bênçãos da natureza, como ocorre comas terras inundadas do rio Nilo, ou do Amazonas, tudo vira um imenso útero,onde procriam peixes e toda sorte de animais da região!

Bem, muitos anos se passaram desde o inicio desta nossa viagem, até che-garmos à Região do Prata e adentrarmos as terras chaquenhas para, posterior-mente, chegarmos ao território brasileiro. Aqui, não eram somente os xarayesque viviam na região do Chaco; havia muitos grupos indígenas, como os chanéou guaná, por exemplo. Neste processo de expansão, vários grupos étnicos queviveram no Chaco, mais especificamente no Alto-Paraguai, criaram mecanismosde defesa que propiciaram não só a sua sobrevivência, como também permiti-ram sua reprodução cultural.

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O contato com os espanhóis e, posteriormente, com os portugueses, apartir do século XVI, foi marcado por uma relação interétnica entre os váriosgrupos indígenas da região, como, por exemplo, com os guarani m’bayá. Assim,tais contatos se intensificaram a partir do momento em que o Paraguai passou aser alvo de expedições em busca de riquezas minerais e de braços para o traba-lho escravo, entrando definitivamente na rota do ouro.

VOCÊS SABIA?

Que na jornada de Irala ao Peru, em 1542, ele buscava obter informações,através de alguns nativos, a respeito da existência do “Eldorado”? O viajantena busca do Eldorado passou pelo Chaco Paraguaio bem próximo do Brasil.

Mas, afinal, o que é o chamado “eldorado”, que instigava tanto a imagina-ção dos espanhóis e que virou inclusive tema de filme? O “Eldorado” é ummito espanhol que fala da existência de uma cidade toda em ouro.

Assim, muitos conquistadores, sendo um deles o próprio Irala, saíam em bus-ca desse ouro interrogando os índios, com o intuito de obter alguma infor-mação para que pudesse chegar a essa terra encantada.

De acordo com os relatos de Métraux, as terras chaquenhas, em si, nãoconstituíam um fator importante, mas o seu papel histórico se tornou decisi-vo à medida em que se tornou uma espécie de “portão de passagem para asfabulosas terras do oeste, das quais os Guarani receberam objetos de pratae ouro vistos pelos espanhóis da boca do rio da Prata ao Paraguai”.(MÉTRAUX, 1963; apud. MUSSI, 2000)

3.4 Lições do Passado:A Rota das Minas e as

Resistências Indígenas no BrasilOs tamoios começaram logo a fazer ciladas por terra e mar. Mas os nossos não

curavam, senão de cercar-se e fortalecer-se, percebendo-lhes que não fazi-

am pouco em se defender dentro da cerca. Mas Nosso Senhor, não querendo

que se contentassem com isso, permitiu que ao seis de março, viessem quatro

canoas dos tamoios e, fazendo uma cilada junto da cerca, tomassem um

índio, que se desmandou... (Padre José de Anchieta. Carta a Diogo Mirão,

seu superior jesuíta, em Portugal)

Mas que índios atrevidos eram esses tamoios que se acercavam das paliça-das portuguesas e punham em pânico soldados e padres? Como é possível per-ceber, o Padre Anchieta os toma como inimigos e eles agem de acordo com odesejo divino de provar a fé daqueles pobres cristãos; afinal, Nosso Senhor “per-mitiu” que os tamoios se acercassem com quatro canoas e fizessem uma ciladabem sucedida aos portugueses.

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Pelo relato do Apóstolo do Brasil, como é chamado o Padre Anchieta, ostamoios parecem predestinados pela providência divina a fazer crueldades: sãohomens sem vontade própria e nem é legítima a intenção de defenderem seusdomínios da invasão portuguesa; enfim, esses índios, pelo relato de Anchietasão a encarnação do mal! Seja como for, o que podemos perceber nessa carta, eem muitas outras que Anchieta escreveu aos seus superiores, é que os tamoiosnão se sujeitavam aos interesses da Coroa portuguesa e nem aos da Igreja, ambasdesejosas de sua pacificação e submissão. E foram, de tal forma, resistentes essesnativos que, no começo da colonização portuguesa, chegaram a formar umaConfederação de índios – tamoios e de outras nações vizinhas- para enfrentar ocolonizador português; esse enfrentamento de confederados perdurou por maisde dez anos de lutas e sacrifícios, entre 1556 e 1567. Tamanho foi o estrago doenfrentamento, que foi decisivo para que os portugueses começassem a pensarem braços escravos africanos para resolver o seu problema de mão-de-obra naColônia. (VIEIRA, 1949)

O historiador John Monteiro lembra que nos primeiros anos de colonização,antes desses desentendimentos entre portugueses e tamoios, os europeus procu-ravam resolver o problema criado pela mão-de-obra de trabalhadores nativos deduas formas: ou por meio de escambo (troca de produtos) ou por meio de comprade nativos (indígenas). Nenhuma das formas foi satisfatória, pois os indígenas serecusaram a atender às expectativas dos portugueses. Com o transcorrer do tem-po, lembra o historiador que a ação dos indígenas começou a “subverter o projetodos europeus”, pois a chamada “transformação das sociedades nativas não cami-nhava na mesma direção desejada pelos portugueses”. A resistência indígena le-vou ao fracasso o sistema de escambo, ou seja, das relações de trocas, pois elasaconteciam desde que não interferissem na realização das atividades tradicionais.Assim, os europeus certos dessa resistência, e diante do fracassado projeto inicialde colonização, submeteram os indígenas a um regime de trabalho forçado, ouseja, em forma de escravidão. (MONTEIRO, 2000, p. 32)

Mas seria bom lembrar que antes da colonização, os indígenas não conheci-am a escravidão; mesmo os prisioneiros de guerra, que os cronistas da épocadenominavam de “escravos”, não eram forçados a trabalhar mais do que os outrosintegrantes da comunidade; e se fosse considerado um bravo guerreiro, era costu-me que fosse abatido pelos inimigos, para que sua força e valor fossem assimiladospelos vencedores. Se você ler o poema I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, umgrande poeta do Romantismo brasileiro, vai perceber o quanto os prisioneirosvalentes eram tratados com distinção e honra. Para começar, o título do poemasignifica “Aquele que merece morrer”, ou seja, um prisioneiro de guerra que, detão valoroso, deve ter a honra de ser abatido pelos seus inimigos, de modo que oseu reconhecido espírito de guerreiro seja assimilado por todos e se perpetue namemória. Caso o prisioneiro demonstrasse temor perante a morte, era tido comoum ser insignificante, o que tornaria indigna a sua condição. Ser covarde era umadesonra que manchava toda uma nação indígena. Veja estes versos do Canto VIII,de I-Juca Pirama, em que o eu lírico adverte o cativo:

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“Tu choraste em presença da morte?Na presença de estranhos choraste?Não descende o covarde do forte...”

Bem, mas essa é uma longa discussão que os livros de história trabalhambem, não é mesmo? Por exemplo, eles devem ter falado das lutas contra a escra-vidão em que as comunidades nativas foram sendo dizimadas aos milhares;mesmo no período da escravidão negra, os indígenas foram perseguidos e dizi-mados.

Em resumo, os europeus fizeram de tudo para tomar pé na terra recémdescoberta: perseguiram os indígenas, escravizaram, dizimaram, criaram, como auxílio dos jesuítas, uma forma de fixá-los em um só lugar, na tentativa detransformá-los em cidadãos cristãos, batizados, catequizados, educados segundoos chamados bons costumes. Os aldeamentos indígenas constituíam-se em ver-dadeiros campos de concentração, de modo que houvesse maior controle evigilância de seus moradores residentes: o colonizador europeu consideravabárbaras as suas formas de sobrevivência material e espiritual, devendo, porisso, ser “civilizados”.

Tais aldeamentos eram formados por um missionário e um administrador,que muitas vezes era escolhido entre as próprias lideranças indígenas. A partirdos aldeamentos, criaram-se também as chamadas missões, cuja prática era a detornar os indígenas cidadãos da “polis”, ou seja, da cidade. É evidente que apreocupação em manter os indígenas nas missões não estava condicionada so-mente à prática da religião, mas também à possibilidade de povoamento, paragarantir o território, e à exploração das riquezas existentes no Brasil, fosse me-tais preciosos ou o pau-brasil, essências valiosas, entre os europeus, para otingimento de tecidos.

A busca dessas riquezas levou muitos colonos paulistas e portugueses, co-nhecidos como desbravadores, a se aventurarem pelo sertão brasileiro. Nos li-vros de história, você já deve ter ouvido falar nas grandes conquistas dos bandei-rantes, aqueles homens rudes e destemidos que recrutavam pessoas e organiza-vam as chamadas entradas, ou seja, expedições de reconhecimento e conquistade território, predando índios e minerando metais preciosos. Esses homens en-travam pelo sertão, em busca de terras misteriosas e desconhecidas; o grandeinteresse era o de encontrar minas de ouro e jazidas de pedras preciosas, mastambém iam em busca de índios para serem escravizados, podendo tambémsignificar um bem valioso, uma garantia de enriquecimento certo, em terras tãocarentes de mão-de-obra.

Seduzidos pela possibilidade do enriquecimento rápido, os bandeirantesdesbravavam o sertão brasileiro, ficando conhecidas essas iniciativas como “entra-das”; quando eram feitas pelos rios, essas expedições eram batizadas de “mon-ções”. Relata-nos o estudioso Sérgio Buarque de Holanda que, de certa forma, asmonções paulistas além de serem continuação das bandeiras paulistas em sua ex-pansão pelo Brasil Central, também resultaram nas monções de Cuiabá. Essa era

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mais uma das conhecidas rotas do ouro, naqueles tempos iniciais da colonizaçãodo território brasileiro, mais dirigidas à aventura da riqueza imediata do que àformação de uma nova civilização. (MOURA, 2008, p. 90 apud. HOLANDA, 1988).

Neste sentido, em terras brasileiras, a rota do ouro também é traçada àcusta de muita luta e sacrifício, passando por vários estágios de enfrentamentose conquistas. As rotas, tanto de bandeirantes como de índios, não eram traçadastodas de uma única forma e os grupos não se deslocavam de uma única vez eem direção a um mesmo lugar. Com relação às populações indígenas, há gruposque já estavam em território brasileiro quando os colonizadores chegaram, comoos tamoios, por exemplo; outros que acabaram se deslocando, posteriormente,como é o caso, dos próprios guaná, ou chané que viviam no Chaco ou a ociden-te do rio Paraguai.

Anos depois, já em 1722, além das terras mato-grossenses onde havia ouroa ser mariscado nas margens do rio Coxipó Mirim, esse precioso metal é encon-trado enfeitando os botoques e peças do vestuário dos índios daquela região;também em Goiás, a mineração do ouro marcou a economia regional, propici-ando o povoamento e a proliferação de vilas e cidades. Muitas minas de ouroforam descobertas em vários lugares do Brasil Central, inclusive nas regiões dosrios Araguaia e Tocantins. Assim sendo, o ataque aos índios ocorria principal-mente como forma de retirá-los dos caminhos de acesso às minas e rios; portan-to, a expulsão ou dizimação significava para os não-índios a liberação de novasterras para a procura do ouro.

A rota do ouro segue pelos rios e trilhas afora, com as descobertas de minase aluviões –pepitas encontradas na superfície dos cursos d’água- na recém capi-tania do povoado de São Paulo (1720) e na rica capitania de Minas Gerais; alémdo ouro, os olhos atentos dos desbravadores voltavam-se para pedras preciosas,como o diamante e a esmeralda.

Em 1726, o caminho é traçado pelo recém nomeado governador RodrigoCésar de Meneses, rumo às riquezas das minas de Cuiabá, no extremo oeste doBrasil. Com as canoas prontas e carregadas de mantimentos, reuniam os negrosremeiros, que serviam ao mesmo tempo de guerreiros e de pilotos, junto aosdemais tripulantes; não se pode esquecer, porém, dos indispensáveis missioná-rios, que também seguiam na expedição desbravadora. Essa rota, tão ambicio-nada pelos espanhóis, também vai resultar na constituição e, posteriormente, naformação de dois Estados brasileiros: Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. (GUI-MARÃES, 2000, p. 19)

3.5 Os Povos Indígenas e as Monções...As monções rumo às minas de Cuiabá foram demarcadas, de povoado a

povoado, por três roteiros principais: os rios Sorocaba, Piracicaba e Tietê. Pelorio Sorocaba deslocavam-se muitas monções, já pelo rio Piracicaba, no tempodas cheias, era mais fácil se chegar ao povoado de São Paulo, pois o Tietê, além

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de rumar para o interior, contrariamente à maioria dos rios, tornava-se muitoperigoso, por conta das corredeiras e obstáculos naturais. Dentre os obstáculosdo rio Tietê, que era a rota principal das minas de Cuiabá, dois basicamente sesobressaíam: o Avanhandava ou Avanhabá, conhecido como o “lugar onde cor-rem os homens”, cuja queda d’água era quase impossível de se vencer. Nesselocal, os negros colocavam os mantimentos das costas e arrastavam as canoaspara cortar mata adentro, até passar o trecho de perigo; com isto, chegavam alevar três dias de trabalho duro para atravessá-lo. A outra travessia devia ser feitatambém por terra: era a do salto de Itapura; tão difícil passagem levava os negrosremeiros e os indígenas à exaustão. Segundo os estudiosos da época, osmonçoeiros para chegar a Cuiabá deveriam vencer mais de 160 obstáculos en-tre quedas d’água, cachoeiras, corredeiras, enchentes, pedreiras, além dos ata-ques dos indígenas. (GUIMARÃES, 2000, p. 39)

Quem mora em São Paulo consegue imaginar o que foi feito do rio Tietê,antigamente conhecido como Anhembi; tão temido pelos perigos das quedasd’água, cachoeiras, pedras traiçoeiras destruindo canoas inteiras e ferindo mor-talmente muitos dos desbravadores que seguiam em busca de riquezas e expan-são dos territórios. Hoje, o Tietê é temido não mais pela força indomável danatureza, mas pela interferência do homem dito civilizado, que o poluiu tanto,que ninguém se atreve, sequer, a tocar suas águas oleosas e escuras. Mesmoassim, continua sendo homenageado em prosa e verso por muitos brasileiros,que o tomam como símbolo da conquista bandeirante e de expansão das fron-teiras do País.

Caminho natural das antigas expedições ao sertão do Brasil colonial, suaságuas caprichosamente nascem perto do mar, mas avançam interior adentro,

Gravura 01 - Cachoeira de Araraquara / SP

Fonte: http://historiografiamatogrossense.blogspot.com/2009_04_01_archive.html

Spix e Martius, Cachoeira de Araquara, Viagens pelo Brasil, 1817 - 1820

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até desaguar no majestoso rio Paraná, percorrendo cerca de 1.100 quilômetros.O poeta modernista Mário de Andrade dedica ao seu querido Tietê um de seusmais densos poemas, Meditação sobre o Tietê. Observe como o poeta dialogafilosoficamente com o Tietê:

Meu rio, meu Tietê, onde me levas?Sarcástico rio que contradizes o curso das águasE te afastas do mar e te adentras na terra dos homens,Onde me queres levar?...

Tal qual o rio sarcástico, os colonizadores também se afastaram do mar eadentraram a “terra dos homens”, empurrando, como já dissemos as fronteirasestabelecidas pelo Tratado de Tordesilhas.

Resumidamente podemos dizer que o roteiro das monções paulistas foibasicamente traçado pelos rios: Tietê, Piracicaba, Sorocaba, Grande (que era oRio Paraná), Pardo, Camapuã, Coxim, Jauru, Taquari, Paraguai-Mirim, que hojeé conhecido como Rio Paraguai, Rio São Lourenço e Rio Cuiabá, Iguatemi eParanapanema, conforme nos mostra o Mapa.

Vamos agora refazer imaginariamente uma expedição bandeirante e traçaro percurso de uma rota até chegar a Cuiabá. Saindo do povoado de São Paulopelo rio Tietê que, segundo o poeta Mário de Andrade, “se afasta do mar”,paramos em Porto Feliz, um lugar às margens do rio, conhecido, também, comoPorto de Araraitaguaba; mais à frente, já estamos navegando no rio Grande, noEstado do Paraná, por onde se pode seguir até chegar ao rio Pardo. Pelo rioPardo, chegamos, depois de uma longa jornada de sacrifícios, a um pequeno riochamado Sangue-Suga, já na fazenda de Camapuã, em terras do pantanal noMato Grosso do Sul; é interessante lembrar que naquele tempo ainda não exis-

Gravura 02 - Rota das Monções

Fonte: site http://prof.medeiros.zip.net/arch2009-03-29_2009-04-04.html

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tia o Estado de Mato Grosso do Sul: tudo era uma imensa planície semi-alagada.Dali, o rio Camapuã nos recebe e seguimos até o rio Coxim. Vá apontando nomapa a nossa jornada imaginária e veja o quanto nos afastamos do litoral e en-tramos sertão adentro; só mesmo aqueles homens destemidos –e cheios de co-biça por riquezas- para enfrentar tanto risco. Do rio Coxim, seguimos até o rioTaquari, rumo ao rio Itiquira. Dali toma-se o curso do caudaloso rio Paraguai, poronde chegamos ao rio São Lourenço e por ele, ao rio Cuiabá que, serpenteandopelo Pantanal Mato-grossense, nos leva ao povoado de Cuiabá. (GUIMARÃES,2000, p. 19)

Com tantos obstáculos, é preciso saber se todos chegaram ao destino, pois,nos tempos das monções, muitos ficavam pelo caminho mortos ou perdidos,mas os que sobreviviam, enfrentaram meses de viagem, sem dia certo de che-gada. Vocês podem imaginar quantos acidentes ocorriam durante toda essa jor-nada: doenças, falta de alimentos, picadas de mosquitos, ataque de animais fe-rozes; enfim, os desafios eram enormes, lembrando uma verdadeira caça aotesouro, ou melhor, às minas de ouro.

Mas e os povos indígenas onde ficaram nessa passagem? Como eles fazi-am as canoas? O que os monçoeiros levavam na viagem? Bem, eles faziamsuas canoas de grandes árvores encontradas principalmente nas matas doCapivari, que chegavam a medir cerca de quinze a dezesseis metros de com-primento; mas o normal era encontrar árvores de dez a doze metros. Dizemos estudiosos que algumas canoas chegavam a levar cerca de cinquenta indí-genas remeiros, quando não negros, a criadagem, além de alimentos. Havia

Gravura 03 - Representação de uma canoa das monções

Fonte: site de portotibirica.blogspot.com

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canoas somente para levar caças como antas, capivaras, aves etc. Na viagem,era indispensável o feijão, a farinha, o toucinho, o sal e também o fumo decorda. Já as canoas de pessoas importantes, carregavam, além desses alimen-tos, pedaços de presunto, vinho, biscoito, açúcar, queijo, e até doce, como amarmelada. Como é possível perceber, eram viagens longas que custavammuito, não só em esforço humano, como também em “prata” e alimentos.(GUIMARÃES, 2000, p. 24)

Com relação aos grupos indígenas, aqueles que não se aliavam aosmonçoeiros como forma de resistência, acabavam por atacá-los como é o caso,por exemplo, dos índios caiapós na passagem por Camapuã; para defenderemo seu território esses indígenas atacavam os monçoeiros com flechas veneno-sas.

Outro grande obstáculo aos desbravadores, frente à resistência indígena,eram as ofensivas dos temíveis índios Paiaguá. Quando conseguiam sobrevi-ver aos ataques desses hábeis canoeiros, os monçoeiros ainda enfrentavamoutras dificuldades de sobrevivência, em um meio tão hostil, como aquelessertões bravios. Não era raro morrerem de fome, ao perderem boa parte deseus alimentos para os animais selvagens ou em naufrágios. (GUIMARÃES, 2000,p. 35)

Valentes defensores do território também foram os índios cavaleirosguaicurus: na passagem do rio Taquari eram quase imbatíveis, utilizando-se deestratégias de ataque aos invasores que em nada ficariam a dever aos assaltos decavalaria de muitos exércitos daquela época.

O território dos caiapós era extenso, pois compreendia uma área locali-zada entre as margens do rio Paraná até a serra de Maracaju, em Mato Gros-so Sul. Viviam em Goiás, mais ao sul, e em Minas Gerais, no agora chamadoTriângulo Mineiro. Por serem indígenas andarilhos e inimigos dos brancos,foram aos poucos sendo expulsos de suas terras. Saindo do território dosPaiaguá, chegava-se à região dos índios guaicurus que percorriam toda aregião situada ao longo dos rios Taquari e Paraguai, em busca de caça epesca nos pantanais.

Os guaicurus era temidos e respeitados por todos, inclusive pelos seus anti-gos aliados, os guaranis. Relata um estudioso que o governador espanhol Cabezade Vaca, ao conhecer os hábitos dos guaicurus enviou alguns índios guarani,seus amigos, na companhia de um padre, aos seus aldeamentos: era uma missãode paz. O grande objetivo era que aceitassem o rei de Castela como o seusenhor absoluto. A missão não obteve êxito, pois foram recebidos em pé deguerra, fato que acabou por levar os guarani a se aliarem aos espanhóis e alutarem contra os guaicurus. Reunidos em aproximadamente duzentas canoas,partiram para a guerra contra os antigos amigos e aliados que, cientes da perse-guição armada, abandonaram os seus acampamentos e fugiram. Foram cercadosmais à frente e iniciada a luta: os guaranis recuaram, mas os guaicurus aprisio-nando um ou outro inimigo, suspendiam-no pelos cabelos e lhe cortavam o

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pescoço com o auxílio de mandíbulas de piranha. E para que não houvessedúvida da ferocidade do ataque, a cabeça dos inimigos era levada como troféu.(GUIMARÃES, 2000, p. 72)

Como você percebeu, a América foi sendo construída à custa de muitosangue e horror, que nem de longe se parece com aquela flechada que Irace-ma desferiu em Martim, o guerreiro português que pisava o sagrado solo dostabajaras, visto no Módulo anterior. Afinal o romance de José de Alencar nãotraz a história de todos esses combates sangrentos, com ações tão violentas ecruéis; entretanto, apesar desses relatos cheios de horror aos olhos dos cronis-tas europeus, o colonizador não foi superado em barbárie, regando fartamen-te o solo da terra recém descoberta com o sangue de seus primeiros habitan-tes. Mesmo resistindo bravamente, o confronto era desigual em força, cruel-dade e ambição.

Como todo ser humano, dotado de inteligência e cultura, os indígenas fo-ram se organizando e se apropriando de novas estratégias de luta, sempre sinto-nizados com o movimento da vida e atentos à necessidade permanente de ne-gociar sua sobrevivência com a dominante sociedade dos não-índios. É possíveldizer que as nações indígenas americanas, atualmente, estão com a história nacabeça e a negociação política na mão; mas não é raro que a negociação sejamal sucedida, não havendo acordo entre as partes em disputa. Quando issoocorre, percebemos que as lideranças indígenas têm lançado mão dos própriosmeios utilizados pelas sociedades não-indígenas na solução de seus conflitos: oDireito. O que será melhor abordado no capítulo que tratará do movimento deresistência dos indígenas.

Fonte: historiografiamatogrossense.blogspot.com/2009/04/atividades-de-historia-de-mato-grosso

Gravura 04 - Quadro de Régis Debret sobre os Guaicuru

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ATIVIDADES

1. Leia com atenção as duas cantigas abaixo, do povo guarani e, a seguir,procure responder as questões propostas:

1. Quando você leu este último capítulo que trata da herança indígena emnossa cultura brasileira, percebeu que somos um povo mestiço e que o índioestá em nossa alma e em nossa memória. Somos, portanto, um “tupi tangendoum alaúde”, como sugeriu o poeta Mário de Andrade. Sendo assim, depois deler as cantigas guaranis acima e entender o seu significado, procure explicar deque modo esses valores indígenas são também nossos valores.

2. Se você prestar bem a atenção, perceberá na 1ª cantiga certa tristeza.Qual a razão disso?

3. Com relação à 2ª cantiga, observe que os guarani estimam muito a suacoletividade. Para você, esses também são valores e sentimentos da sociedadenão indígena? Seria possível aprender alguma coisa com os guarani, sobre isso?

4 Baseado nos dois mitos dos índios Timbira e Kadiwéu, pesquise em suaregião ou cidade um mito indígena sobre a origem de um povo.

OREYVY PERAA VA’EKUE

(Rio Silveira)

Pem êe jevy pemêe jevy

Oreyvy peraa va’ekue

Roiko’i haguã

Peraa va’kue roiko’i haguã.

Tradução:

A NOSSA TERRA

Devolvam, devolvam

A nossa terra

Que vocês tomaram

Para que a gente continue vivendo.

PÃVÊ JAJEROJY

(Jaexaá Porã)

Pavê jajerojy

Pavê jajerojy

Tekoa porã py

Tekoa porã py

Javy’a, javy’a

Tradução:

TODOS REVERENCIANDO A DEUS

Todos nós reverenciando a Deus

Todos nós reverenciando a Deus

Na aldeia bonita

Na aldeia bonita

E se alegrando, e se alegrando.

Fonte: Extraído do Cd Nãnde Reko Anandu (Memória Viva Guarani) – São Paulo, Sem Data.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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63CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo IV

CAPÍTULO IV

Práticas Socioculturaisdos Povos Indígenas

Vanderléia Paes L. Mussi

Em que ordem de ideias descrever essas impressões profundas e confusasque assaltam o recém-chegado numa aldeia indígena cuja civilização per-

maneceu relativamente intacta? [...] Diante de uma sociedade ainda viva e

fiel à sua tradição, o choque é tão forte que desconcerta: nesse novelo demil cores, que fio se deve seguir em primeiro lugar e tentar desembaraçar?

A epígrafe que propõe a abertura desta discussão aponta para a complexi-dade das relações sociais que permeiam as comunidades indígenas. AlcindaRamos, ao tratar da Lógica das relações sociais das comunidades indígenas, reto-ma a passagem de Tristes Tópicos apontada por Lévi-Strauss no capítulo sobre osíndios Bororo de Mato Grosso, para chamar a atenção dos complexos sistemasde dinâmica de organização social assim como a importância do trabalho doetnólogo, que deve buscar a compreensão lógica das relações sociais. Para isso,estas sociedades devem começar pelos aspectos mais aparentes, ou seja, peladistribuição espacial dos habitantes do núcleo residencial que é a aldeia, ou ogrupo local, ou comunidade. (RAMOS, 1995, p.46 e 47)

Somos todos brasileiros! É correto afirmar... E também é correto dizer que,sob a nossa condição brasileira, somos diversos entre nós, diferentes uns dosoutros. Porém, como povo, pensamos, agimos e vemos o mundo de forma pecu-liar, pois cada sociedade tem um jeito próprio de se organizar e isso está demar-cado pelos contornos de cada cultura.

Como vimos em capítulos anteriores, a cultura não é determinada somen-te pela forma de construir as casas, pelos hábitos alimentares, pela forma de sevestir, cortar o cabelo; enfim, a cultura não pode ser determinada somente pelosdados objetivos, pois ela é mais do que isso: é símbolo, é emoção, é sentimentode pertença e construção social. Você conhece alguém especial que, por estarmuito próximo, sempre junto, deixa a impressão de que é seu irmão? Já tevealgum sentimento assim? Pois é esse sentimento de fazer parte do outro, oupertencer à mesma família, identificando-se com o jeito de ser do outro é querepresenta esse sentimento de pertença.

Para as sociedades indígenas, a terra é muito mais do que simples meio desubsistência; ela representa toda a base de vida social e está diretamente ligada

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ao sistema de crenças e conhecimentos tradicionais. Não se constituindo, ape-nas, em um recurso natural, mas sim em um recurso sociocultural, a terra para ospovos indígenas tem um sentido mítico, ou seja, está vinculada de forma espiri-tual e material a todos os aspectos da vida social. Assim compreendida e sentida,a terra não se resume aos limites materiais da propriedade privada, ela é usocomum a todos, ou seja, é de uso coletivo.

Nas aldeias indígenas, não existem muros separando uma casa da outra e,em algumas sociedades até as roças são coletivas; mas isso vai depender, comojá mencionamos, da forma como se organizam e como entendem o mundo, ouniverso, ou seja, segundo as concepções míticas que os orientam na vida mate-rial e espiritual.

Nas sociedades não-indígenas, conhecidas como ocidentais, a falta derecursos é mais um resultado de um sistema econômico vigente do que pro-priamente uma condição natural. A terra nessas sociedades, sendo de pro-priedade privada, isto é, particular, passou a ser escassa por se limitar so-mente às pessoas que possuem um poder aquisitivo razoável, dispondo dedinheiro suficiente para poder comprá-la. Logo, quem não tem dinheiro nãocompra terra e alguns nem conseguem comprar uma casa; isso já não ocorrenas sociedades indígenas, porque a terra é considerada de uso comum, em-bora tenha diferentes significados para cada nação, ou até mesmo para cadaaldeia.

4.1 Local de residência: produçãoe reprodução cultural

As práticas culturais das comunidades indígenas obedecem a uma ordemde organização cultural que é pautada pelo sistema: social, econômico, religio-so (ritualístico) em que os laços de consanguinidade e parentesco determinam oseu elo de ligação. Na ordem econômica a caça, a pesca, a coleta de sementese essências, ou a agricultura, podem ser coletivas ou individuais, dependendoda situação vivenciada. Seja qual for a situação, esta comunidade indígena esta-belece um profundo respeito à natureza, cujo bem coletivo se respalda no prin-cípio da solidariedade e da reciprocidade.

Entre as sociedades indígenas, o principio da reciprocidade determina todoo processo de distribuição e troca do que é produzido. Em algumas regiões,como é o caso do Alto Xingu, existe uma complexa rede de trocas: a partirdessas trocas de alimentos, utensílios domésticos e até ornamentos, são firmadasas boas relações sociais entre uma sociedade e outra; mas não é difícil ocorreruma negociação desvantajosa para uma das partes, trazendo desarmonia entreessas mesmas sociedades.

No geral, quase todas as comunidades indígenas da América do Sul prati-cam a agricultura. Algumas comunidades praticam de forma mais elaborada e

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outras de maneira mais elementar. Tal atividade econômica pode ser considera-da principal ou apenas complementar a um sistema produtivo mais dependenteda caça, da pesca ou coleta. O sistema é tão complexo e diversificado que,segundo aponta Alcinda Ramos, o que pode ser importante para uns, para outrosnão tem o menor sentido. Exemplo disso é o caso dos Xavante de Mato Grossoque embora a caça seja de grande importância, a coleta passa a ser imprescindí-vel uma vez que sem ela talvez eles não tivessem sobrevivido. Já para os Tiriyódo Suriname sem carne o grupo vive, mas sem o beiju não. (RAMOS, 1995.p, 30)

Entre as sociedades indígenas, enquanto a caça, a pesca e a coleta são tidascomo atividades coletivas e individuais, a lavoura é feita pelos membros da fa-mília nuclear. Há trabalhos que são coletivos e sofrem uma divisão de tarefasbem definidas por homens e mulheres. No entanto, quase todo trabalho agrícolaé familiar, cabendo ao homem, mulher e crianças se ocuparem das atividadesde roçados.

Há comunidades indígenas que possuem roças coletivas, sendo realizadascom mais de uma família nuclear. Entretanto, existem outras comunidades emque as roças são feitas pela família, individualmente, prevalecendo o respeitoentre os espaços. Entre os Terena, por exemplo, até meados do século XVIII asroças eram coletivas, realizadas em forma de mutirão. Já no início do séculopassado cada família passou a fazer o seu próprio roçado.

Entre os Sunumá, tirar algo da roça de alguém sem permissão significavabriga na certa! Chegavam a partir para agressão física. Isso não significava negarcomida a quem tinha fome; mas indicava um código de ética firmado de quemplantou era dono absoluto do produto. Caso alguém esteja passando necessida-des por falta de alimentos, o grupo pode compartilhar seus produtos; mas, paraisso deve ser convidado. Entretanto, há comunidades, como os Terena, que oexcedente é vendido nos mercados urbanos da região. Com relação os gruposmais afastados da sociedade envolvente, ou seja, mais isolados, como é o casodos Yanomami e dos Makú do Rio Negro, os excessos são divididos e ou troca-dos, pois praticam o sistema de reciprocidade entre famílias e comunidades.(RAMOS, 1995, p.35)

De acordo com a autora, o que é produzido em termos de alimentação oude utensílios domésticos, canoas e ou casas comunais, tem seus próprios meiosde distribuição, que, na maioria das vezes, são sempre formadas por meio derelações de parentescos: dentro ou entre comunidades. Com isto, a distribuiçãodo espaço, seja ele habitacional ou não, é estabelecida por direitos e obrigaçõesmútuos entre os seus ocupantes, quase sempre ligados entre si por laços deconsangüinidade e afinidade. (RAMOS, 1995, p.37)

Ora, se a relações sociais são múltiplas e complexas e se as formas dereciprocidade variam de acordo com cada grupo, a formação das casas comunaistambém podem variar de acordo com a sua dinâmica social. Por exemplo,entre os Yanomami a casa, seja cônica fechada ou circular aberta, são

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construídas pela família, (nuclear ou extensa),podendo variar entre dez, trintaou mais famílias.

4.2 Organizações Sociais:Oralidades e os processos próprios

de aprendizagem SocioculturaisDe acordo com os estudiosos, as cosmologias indígenas representam mo-

delos complexos, dos quais faz parte a sociedade humana. Os mitos são narrati-vas que procuram responder sobre a origem da própria existência; são veículosde informação sobre a concepção do Universo, ou seja, sobre a forma de cria-ção do mundo, a origem do surgimento do “homem branco”, os rituais da agri-cultura, as relações ecológicas entre animais, plantas e seres humanos; enfim,sobre a existência de todos os seres da face da terra.

As sociedades indígenas possuem sistemas próprios de aprendizagens emque por meio das cosmologias indígenas os ensinamentos são repassados degeração em geração. Na sociedade ocidental quando uma criança nasce é dadaa ela um nome, que pode ser em homenagem ao pai, ao jogador preferido, ouainda por conta da evidência de alguma celebridade. Há aqueles que buscamum significado do próprio nome. Já nas sociedades indígenas, o nascimento deuma criança é marcado por situações diversas, que vai da escolha do nome aforma de concebê-la. Retomando o exemplo da estudiosa, Alcinda Ramos, con-forme discutido no capitulo anterior, entre os povos indígenas Sanumá (Yanomami)que vivem no norte de Roraima, quando uma criança nasce fisicamente normal,

Imagem retirada do site: http://pensandomelhorgeo.blogspot.com/2009/05/como-o-homem-pode-aproveitar-os.htmlpensandomelhorgeo.blogspot.compensandomelhorgeo.blogspot.compensandomelhorgeo.blogspot.compensandomelhorgeo.blogspot.com

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dias depois do nascimento, seu pai vai caçar. O nome do animal que ele caçarserá dado à criança, isto é, se ele matar uma onça a criança será chamada deonça. Assim, o pai literalmente sai para caçar o nome do(a) filho(a); por contadisso, a caçada deve ser feita com muita atenção e cuidado, porque além donome, a criança também receberá do animal morto um certo espírito que, aomorrer, se instala em seu corpo. (RAMOS, 1995.p, 24 e 25)

Se fizermos uma interpretação desse “mito”, do ponto de vista material, oude um outro ponto de vista estranho à cosmologia dos Sanumá, essa caçadapoderia significar apenas uma forma comum e festiva de fornecer alimento àaldeia. Portanto, os Sanumá, quando vão caçar para o ritual de denominação deum recém-nascido, têm bem clara a sua responsabilidade familiar e tribal; aobrigação do pai não é só a de “caçar” um nome e um bom futuro para o seunovo filho, ele também tem um sério compromisso com os seus antepassados,que o ensinaram e continuam ensinando a ver o mundo, a entender o universo,a criar os filhos e a entender a própria existência.

Já entre os Bakairi, por exemplo, os nomes das crianças são originários deseus consangüíneos mortos, os quais só podem ser pronunciados depois deapresentados a todas as pessoas da comunidade, ou seja, quando recolocadosem circulação. No geral, são os avós maternos e paternos que nominam acriança. Cada um resgata, no mínimo, um nome de seus consangüíneos jáfalecidos sendo do mesmo sexo da criança. Desta forma, cada criança nascidaherda pelo menos quatro nomes de cada linhagem, sendo dois maternos edois paternos. Há indivíduos que acumulam até dez nomes, o que lhes confe-re um certo prestígio. É proibido ao pai e parentes do pai pronunciar os nomesoriginários da linha materna, da mesma forma em que também é proibida a

CRIANÇA SANUMA

Fonte: retirada do Site: HTTP://www.andromeda-news.blogspot.com

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linhagem materna pronunciar o os nomes paternos. Além desses nomes, osBakairi também possuem nomes em português. (http://pib.socioambiental.org/pt/povo/bakairi/230)

4.3 Saberes Indígenas:Sistemas Econômicos

e Meio AmbienteQuando falamos de sistema econômico, estamos nos referindo aos modos

de produção que os seres humanos desenvolvem para garantir sua sobrevivên-cia, por meio do trabalho, seja ele físico ou intelectual. Nas sociedades indíge-nas, foram desenvolvidos diferentes sistemas econômicos, de acordo com o meioem que vivem, o nível de seu conhecimento e a qualidade das experiênciasadquiridas nas dificuldades da vida. Sendo assim, cada cultura, cada etnia, cadanação indígena desenvolve uma economia própria que as diferencia das de-mais; entretanto, todo o conhecimento que acumularam durante séculos deexperiência, nas mais diversas formas de produção intelectual ou material, sejana caça, na pesca, na coleta ou na agricultura, tem um ponto em comum: aperfeita sintonia com o meio ambiente.

Em algumas sociedades, como a nossa, já temos mais do que o suficientepara garantir a sobrevivência; a nossa economia produz em excesso, e atémesmo o desnecessário para garantirmos a vida: a sociedade em que vive-mos, desenvolveu uma economia de coisas supérfluas, isto é, além do queprecisamos para sobreviver. Apesar de toda essa abundância, o que mais tempreocupado os economistas dos países desenvolvidos tecnologicamente é quenão sobrevivemos sem esses supérfluos e estamos abarrotando o mundo deinutilidades; ao mesmo tempo, porém, a maior parte do mundo chamado civi-lizado ainda luta contra a fome e diversas epidemias que estão dizimando suapopulação.

Apesar de cada sociedade indígena ter um jeito próprio de lidar com asmatas, os rios e os animais, todas demonstram práticas eficientes e respeitosas ànatureza; podemos afirmar que os diferentes sistemas econômicos praticadospelos povos indígenas não são dirigidos para a produção de supérfluos e, portan-to, não esgotam os recursos naturais, pois esperam o tempo necessário para asua renovação.

A sociedade não-indígena tem aprendido, aos poucos, essa lição de har-monia e respeito ao meio ambiente. Atualmente, nos empreendimentos da in-dústria extrativa de madeira, por exemplo, não se retiram todas as árvores, deuma vez só, de uma determinada área; seus técnicos planejam o corte, aguar-dam o tempo da “coleta”, preservam determinadas árvores para a produção desementes, tudo para não depredar e esgotar a floresta, a que chamam de maté-ria prima.

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Entre os indígenas, dificilmente se nota uma atitude de agressão desmotivadaaos seres vivos ou de depredação ao solo. Para eles, como a qualquer ser huma-no previdente, tudo o que se fizer de errado ao meio ambiente, retornará emprejuízo à sua própria vida e à de seus filhos. A recuperação das matas degrada-das, por exemplo, está intimamente relacionada à volta dos espíritos e das forçasvitais da natureza, que foram levadas com a devastação.

Assim, práticas como a caça, a pesca, a coleta de sementes e essências, oua agricultura, podem ser coletivas ou individuais, dependendo da situação. En-tretanto, serão sempre realizadas com um profundo respeito à natureza, que éum bem coletivo, e tendo por princípio a solidariedade e a reciprocidade. Sópara você não se confundir com os termos, ser solidário é estar atento às neces-sidades do outro, procurando ajudá-lo; já a reciprocidade é uma dupla ação, emque as pessoas se ajudam, umas às outras, certo? Sendo assim, o trabalho para oíndio tem uma função social e moral, de modo que possa ajudar e ser ajudado.

Os sistemas econômicos das sociedades indígenas, portanto, não visam aolucro, isto é, não trabalham para acumular bens materiais, ao estilo das socieda-des não-indígenas; mas também não se pode afirmar que trabalham apenas parase manterem vivos e nada mais. Os indígenas acumulam sua produção, sim;muitas vezes o fruto do trabalho é maior do que as suas necessidades básicas desobrevivência, mas esse excedente não é dirigido ao lucro e enriquecimentomaterial. Quando produzem mais do que precisam, o objetivo pode ser a parti-lha solidária entre as próprias famílias da aldeia, ou a realização de cerimônias erituais de iniciação e celebrações míticas.

É importante entender que a economia indígena exerce mais uma fun-ção social do que econômica, propriamente dita; ou seja, são as dinâmicassociais de cada sociedade que estabelecem o ritmo, o tempo desprendido e osentido das práticas econômicas e produtivas. Ao compreendermos essa di-mensão social da economia e do trabalho, desfaz-se a ideia incorreta de queas sociedades indígenas exercem suas atividades produtivas apenas para su-prir suas necessidades básicas de sobrevivência física; além dessa dimensãomaterial, vimos que o trabalho também possui uma dimensão pedagógica, es-piritual e moral.

Convém repetir, portanto, que a economia, entre os povos indígenas, nãoexerce apenas uma função material, mas social e moral. E mais, ainda, é precisorepetir: os povos indígenas têm uma compreensão muito peculiar do trabalho edo modo de garantir a sobrevivência, afastando-se do conceito de lucro e deacumulação de bens, próprio das sociedades não-indígenas. E mesmo essa com-preensão diferente de trabalho não é única para as diversas nações e etniasindígenas, pois cada sociedade particular elabora diferentes conceitos e dife-rentes práticas econômicas.

O que se tem percebido ao longo da nossa história de relacionamentosequivocados com os povos indígenas, é o quanto resiste aos séculos aquela con-duta que vimos já nos primeiros contatos entre nativos e “descobridores”: são

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seres ingênuos e primitivos que têm de ser libertos de sua ignorância de Deus eda civilização. E a iniciativa coube ao europeu que decidiu dar uma alma cristãao índio e braços que fossem mais afeitos ao trabalho produtivo, nos moldes dacivilização européia. Para isso, iniciou-se todo um esforço de educação e sujei-ção do índio a costumes e valores chamados de “redentores”, que não cessouaté os dias atuais.

Essa tentativa de se apresentarem modelos únicos e estranhos às comunida-des indígenas, sejam eles econômicos, culturais, políticos, sociais, e até mesmopedagógicos, para se adequarem às expectativas das sociedades não-indígenas,só podia resultar negativamente. Como você viu nas lições anteriores deste li-vro, nenhum desses modelos impostos foi bem sucedido em suas pretensões;não levaram em conta que os índios, à época do descobrimento do então cha-mado novo mundo, já tinham uma forte identidade cultural e havia uma enor-me diversidade entre as sociedades indígenas. Mesmo assim, há inúmeros exem-plos na história, de modelos impostos e mal sucedidos que, enquanto duraram –alguns durante décadas-, causaram grandes prejuízos para as comunidades indí-genas.

4.4 Saberes Tradicionais:Saúde e Medicina...

A questão da saúde indígena pode ser avaliada sob dois aspectos: um quese refere ao cuidado e à mudança de hábitos alimentares e, o outro, que tratado tipo de relação que se estabelece com as pessoas e com a natureza.

FAMÍLIA PROCESSANDO A MANDIOCA

Fonte: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/kaxinawa/401

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O cuidado com a alimentação para as sociedades indígenas não pode sercompreendido tomando por base o tipo de alimentação, o preparo e a formacomo a sociedade não-indígena lida com os alimentos. Geralmente a sociedadenão-indígena, quando cuida da alimentação, apesar de preocupar-se com a saú-de e o bem estar, busca também adequá-la a dietas que aperfeiçoem ou mante-nham a estética corporal, segundo a moda do momento. Ora, nas sociedadesindígenas, isso não ocorre, porque o cuidado com os alimentos vai muito alémdo plano material, não podendo ser dissociado de sua dimensão espiritual eritualística.

Você deve estar lembrado, ainda, do quarup que vimos no capítulo anteri-or, lá no Xingu. A festa não era só para satisfazer a fome dos participantes econvidados, era também para cultuar os deuses e reverenciar os mortos. Comopercebemos, alimento e espiritualidade estão muito entrelaçados e ambos me-recem muito cuidado na preparação e “interiorização”. É por isso que alimenta-ção, saúde e religião são aspectos inseparáveis na compreensão de vida dospovos indígenas.

Entre os povos Tenetehara essa dimensão quase religiosa assumida pelaalimentação fica evidenciada nas pesquisas de estudiosos, como CláudioZannoni: ao acompanhar o ritual de iniciação feminina, entre esses indígenas,trouxe exemplos para explicar o modo como o alimento torna-se sagrado eritualístico.

Vamos acompanhar o ritual que sacramenta a primeira menstruação deuma adolescente Tenetehara, que tem entre dez e doze anos. A menina, aoperceber que menstruou, avisa um menino, ou menina, que está brincandocom ela, ou tomando banho no rio, ou lavando roupa. Esse menino, ou meni-na, corre e avisa a mãe da menina menstruada que, por sua vez, avisa o pai,seu marido, que passa a notícia para todos os membros da comunidade. Assimque ficam sabendo da notícia, os parentes da menina coletam jenipapo, umaplanta típica do cerrado, para a avó preparar uma espécie de suco para pintara moça.

Todos já sabem do acontecido, quando a menina chega em sua casa; ela écolocada em uma rede, enquanto espera que o pai e o avô preparem a “tocaia”,isto é, uma espécie de casinha pequena, dentro de um dos quarto da casa. Asparedes e porta de entrada da casinha são feitas com palha de anajá, uma espé-cie de palmeira, que, permanecendo verde por muito tempo, demonstra que amenina é moça. (ZANNONI, 1999, p. 21)

Ao colocar a menina na “tocaia”, a avó corta a franja de seus cabelos umdedo acima dos olhos, deixando-os longos atrás. Toda a roupa da menina é reti-rada e ela é pintada do rosto até os pés com sumo de jenipapo, uma fruta daregião. Em seguida, a família inteira também se pinta com o jenipapo.

Como a “tocaia” é muito escura, os familiares procuram iluminá-la comuma pequena fogueira que permanece acesa durante o tempo todo. Segundo o

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autor, esse período é cercado por muito tabus, pois eles acreditam que a meni-na está vulnerável a todo e qualquer tipo de perigo; por conta disso, toda acomunidade a cerca de cuidados, enquanto ela permanece na “tocaia” de cin-co a sete dias. Durante esse tempo, ela não pode tomar banho, porque o espíri-to da água, “Iwán”, gosta de moça pintada, e assim pode carregá-la, para sem-pre. Somente a partir do segundo dia, a menina poderá ser banhada por sua avócom água morna, mas somente da cintura para baixo.

A avó, após quebrar a frieza da água (aquecer a água no fogo), para “matara força da água”, estende uma esteira no chão, sobre a qual a menina fica senta-da. Também é colocada sobre a esteira uma cuia, com essa água, e sua avó lhedá banho, sentada de frente para a menina; além da avó, as mulheres maisvelhas da aldeia podem visitá-la.

Outras recomendações são feitas à menina: uma de ordemcomportamental e outra de ordem alimentar. Com relação ao comportamento,a menina deve ficar sempre de cabeça baixa, para não ficar muito “saliente,muito ativa”, e deve ficar deitada na rede com os pés juntos, até a hora dedormir. Quando as visitas chegarem, a menina não deve conversar alto, nemfuxicar e muito menos rir, do contrário, fica uma mulher “gaiata”.(ZANNONI,1999, p.22)

Quanto à alimentação, é prescrita uma dieta diária, isto é, enquanto estiverna “tocaia”, ela só poderá comer farinha de puba, sem água, e pipoca de milho;no segundo dia, pode comer caranguejo do brejo. Somente depois do quartodia, ela poderá comer arroz; se não respeitar a prescrição alimentar e comer oarroz antes do tempo devido, ela poderá ter muita coceira. Da mesma forma,também não poderá comer galinha, nem pato ou galinha -d’angola, pois, casoisso ocorra antes do tempo devido, poderá ter complicações no parto, quandovier a ficar grávida, ou, após o parto, correrá o risco de ficar muito inchada e atémesmo enlouquecer.

A comida deve sempre ser aquecida para não fazer mal, durante esseperíodo de reclusão (resguardo). Embora o alimento seja mais ritualístico, asmulheres Tenetehara, neste período, também não estão totalmente despro-vidas de cuidados com a estética, pois elas costumam colocar um beiju quente(comida feita à base de polvilho de mandioca) na cabeça, a fim de que nãocriem cabelos brancos, não fiquem manchadas ou com a pele toda enru-gada.

No sexto dia, a aldeia toda é comunicada de que o resguardo da moça estáprestes a terminar. Então, à noite, os cantores da aldeia se reúnem para cantarem frente à casa onde a moça está de resguardo. A mãe e a avó preparam omingau de tapioca e de mandioca, com sal e sem gordura, para dar aos canto-res; se tiver caça (veado, caititu ou queixada), é assada e servida aos cantores,durante a noite. Assim, antes do amanhecer, por volta das quatro horas da ma-nhã, a moça é convidada a sair da “tocaia”, como se fosse um pássaro ou umanimal preso que vai ser solto.

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Na noite do dia anterior, enche-se um balde com água com folhas demacaxeira (mandioca). O balde deve ser colocado cerca de cem metros da casaonde a moça está recolhida. No percurso que a menina faz para chegar ao baldede água, foram colocadas tochas ou lamparinas para clarear o seu caminho.

Ao se aproximar o momento de sair, um idoso grita para toda a aldeia,convidando a comunidade para participar do evento. As pessoas vão se aproxi-mando, alguns armados de espingarda, outros de foguetes, atirando para cimapara comemorar. Os meninos de doze a quinze anos batem nas paredes datocaia, com palhas, convidando a menina para sair da casinha. Quando sai da“tocaia”, encontra umas tripas de cutia atravessadas na porta, a fim de cortar omal que possa ter pela vida, e corre em direção ao balde de água. Ao correr nãopode tropeçar no caminho, para evitar problemas futuros. Atrás da menina, osjovens da aldeia a seguem gritando.

No local onde o balde de água está, sua avó já se encontra à espera, paralhe dar um banho com folhas de macaxeira. Durante o banho ritual, a avó pedeà mãe-d’água para proteger a menina e para que ela continue a ser “formosa,musculosa, forte e sadia”. Terminado o banho ritual de purificação, a meninaveste uma pequena saia e volta para casa.

Já em casa, ela serve o mingau para os participantes do ritual; depois, pegaum “pacará” (uma espécie de ralador) e começa a ralar a mandioca para tirar agoma (tapioca), demonstrando que já é capaz de realizar tarefas de mulher adul-ta. Ao amanhecer do dia, ela continua com os demais afazeres domésticos deresponsabilidade das mulheres da aldeia, como, por exemplo, varrer a casa,preparar comidas simples, etc. Após este ritual é possível verificar que a Educa-ção indígena, não institucionalizada, além de ser pautada nos saberes tradicio-nais é transmitida por meio da oralidade. Com isto, se estabelece uma relaçãomuito estreita, e não há como separar, entre: meio ambiente, natureza, saúde.(ZANNONI,1999, p.21 a 23)

Com essa demonstração de capacidade para tarefas de adultos, o ritual éencerrado. Nos sete dias seguintes ao término do ritual da primeira menstrua-

SAIBA MAIS

RITUAIS DE INICIAÇÃO ENTRE OSTENETEHARA A MANDIOCABA

Terminado o período de reclusão a menina-moça passa por um período deiniciação durante o qual é instruída sobre sua vida futura e seu corpo épreparado para a maternidade. Para tanto ela deve seguir uma dieta alimen-

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ção, a menina não poderá tomar banho no riacho ou na fonte, porque ela aindacontinua pintada com tinta de jenipapo e “Iwán”, o espírito d’água, ainda estáatento e poderá carregá-la. Somente quando o jenipapo tiver saído totalmentede seu corpo, estará “curada” definitivamente. (ZANNONI, 1999, p.23)

tar especial até o dia em que será apresentada definitivamente à sociedade,período este que pode durar até um ano.

Depois de um mês que a moça saiu da tocaia acontece um pequeno ritualmuito reservado que serve para preparar a moça para ser, fisicamente, umafutura mãe: a mandiocaba.

A moça é pintada novamente com jenipapo através de um carimbo, prepa-rado pela avó, com o pecíolo da folha de buriti. Enquanto isso, a mandiocabaestá fumegando, pronta para ser servida.

A preparação da mandiocaba passa por um processo de cozimento especial.A avó vai à roça, no dia anterior, para arrancar a mandiocaba . Esse tubérculoé ralado e espremido para tirar dele o suco, que é cozido até formar-se emmingau. Depois acrescenta-se tapioca para que fique mais consistente.

A moça levanta-se da esteira para que ali se coloque a panela de mandiocaba.Depois é convidada a permanecer sem roupa, de cócoras sobre a panela pordois minutos aproximadamente. Em seguida, ela se levanta e torna a ficar decócoras repetindo a operação várias vezes. Aos presentes (alguns familiares)é servido o mingau, que havia sido reservado para esfriar. Esse rito é parapreparar a futura mãe, a fim de que, segundo os informantes, não venha a terdoenças ginecológicas. (Zannoni,1999.p,23)

Alimentospermitidos

Alimentos proibidosPorque

são proibidos

Cutia Pato Provoca coceiraTatu Galinha de angola Provoca coceira

Galinha Porção É usado no moqueadoMingau de milho Veado É usado no moqueado

Mingau de abóbora Macaco É usado no moqueadoQuati Guariba É usado no moqueado

Arroz PorcoFaz inchar porque

contém muita gorduraFeijão Cará Peixe remosoTraira Piaba rabo preto peixe remoso

Mandi piaba “joana gorda” Peixe remosoCará do rabo preto Piau Peixe remoso

Mandioca/macaxeira Surubim Peixe remosoBatata rainha Bico de pato Peixe remoso

Batata amarela Curimatá Peixe remosoBatata roxa Lampreia Dá lombriga na barriga

Gado InhameDá coceira e corrimento

na vagina pela baba que temBatata doce Tem muito leite

Pássaros de todo tipo Usados no moqueado

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Como é possível perceber por meio desse ritual, a concepção indígena denatureza é uma mistura de seres naturais e sobrenaturais, isto é, para as socieda-des indígenas, os seres vivos e não-vivos, reais e fantásticos, possuem uma di-mensão espiritual. As plantas, os animais, todos possuem um espírito, um ances-tral que os protege, como Macunaíma dizia do Pai do Mutum, que é a constela-ção do Cruzeiro do Sul, lembra-se?

No mito de iniciação dos Tenetehara, você notou que a “mãe d’água” éuma espécie de espírito protetor das águas e todos lhe pediam que protegesse amenina; também existe um espírito do mal, o “Iwán”, que carrega as moçaspintadas... Por conta desse profundo sentimento mítico, toda comunidade indí-gena estabelece regras de conduta, para não ofender os seus antepassados míticose para se protegerem de possíveis males que possam vir; assim, quando essasregras são desrespeitadas, é inevitável que sejam punidos com doenças, ou atémesmo com a morte.

Segundo outro estudioso, Gersem dos Santos Luciano, indígena da etniaBaniwa, a doença tem sua origem na natureza, seja por razões aparentementedesconhecidas, seja provocada pelas más ações dos homens. Cabe ao pajé, tam-bém chamado de Xamã, ou líder religioso de cada aldeia, a sabedoria de procu-rar conhecer e desvendar os segredos da natureza; a principal função desselíder religioso indígena é a de ser intermediário entre os seres naturais e sobre-naturais. Na concepção indígena, quando os indígenas e não-indígenas viola-ram as regras da natureza, começaram a surgir as primeiras doenças no mundo.(BANIWA, 2006, p.173 e 174)

Os Baniwa, por exemplo, acreditam que não se pode comer carne crua,pois isso pode provocar doenças no estômago: na concepção deles, uma espé-cie de bicho cresce no interior da pessoa, a partir do momento em que eladigere a carne crua. Da mesma forma, também acreditam que, quando se andamuito tempo no mato, vários seres visíveis e invisíveis cruzam o nosso caminhoe, por isso, não se pode comer nada sem antes tomar banho, pois isso podeprovocar febres, dores de cabeça e dores de dente. Se você observar, comatenção e espírito aberto, essas regras de fundo mítico, todas têm um sentidobastante prático, de preservação da saúde humana e do meio ambiente; a pro-pósito, para não estendermos muito a conversa, veja como é higiênico e saudá-vel você tomar banho antes de se alimentar, principalmente depois de ter anda-do pela mata, ficando cansado e suado com o esforço. (BANIWA, 2006, p.175)

Em algumas sociedades indígenas, o sistema de alimentação mais comum éo baseado na carne de animais (caça); já para outros grupos como, por exemplo,alguns do Alto Xingu e do Alto rio Negro, a carne de caça, por não ser rico emproteínas, é substituída pelo peixe, constituindo-se no prato principal no dia-a-dia, como vimos no ritual do quarup. Assim sendo, o consumo do alimento,entre os povos indígenas, obedece a critérios muito práticos, como o de ser ounão abundante e rico em determinada região; entretanto, o critério prático estásubmetido a regras e preceitos – e até tabus – que variam muito de região para

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região, de nação para nação, de aldeia para aldeia, mas estarão sempre presen-tes, como uma característica marcante da cultura indígena.

Alcinda Ramos, uma interessada no assunto dos tabus alimentares entre osindígenas, lembra que é comum oferecer certas partes do animal para determi-nada categoria de parentes; por exemplo, a cabeça do animal caçado é ofereci-da à esposa do caçador, os pés à mãe da esposa, as pernas aos irmãos e assimsegue a divisão da caça, segundo a condição de cada parente na família. E hátambém algumas regras curiosas: em algumas sociedades, o caçador que mata oanimal não pode comer de sua carne, é proibido!

Com relação aos tabus, entre os Sanumá, por exemplo, há determinadasqualidades de carne que poderão ou não servir de alimentação às pessoas, se-gundo a faixa de idade e categoria que ocupam na organização da sociedade.Assim, as pessoas na fase da puberdade não podem comer grande quantidadede carne de caça, já os velhos e a crianças podem comer praticamente todos osdias e em grande quantidade, sem qualquer restrição.

Mas a alimentação indígena também está sujeita a mudanças, sob o impac-to dos tempos e das relações interétnicas. Os Terena, por exemplo, quando vivi-am na região do Chaco, durante o século XVIII, comiam os alimentos da roça, dacaça e da pesca; atualmente, segundo depoimento de uma anciã da AldeiaCachoeirinha, “eles já não comem mais hihi, poreo, lapape, ipu, nupaé, etaruma,(sem tradução para o português) que era alimento indígena Terena, agora, elesquerem comer só verduras, macarronada, alimento do branco, só”(MUSSI, 2006,p.126).

A mudança de hábito alimentar, portanto, ocorre de acordo com as condi-ções naturais em que vivem e a que são submetidos estes grupos, e dos contatoscom a cultura não-indígena. Estando delimitados em reservas e cercados porfazendas vizinhas, a caça – que era um dos principais produtos de consumo –desapareceu ou é muito rara e, com o passar da metade do século XX, foi extin-ta; a pesca, por estarem delimitados em áreas fechadas longe do curso dos rios,também se tornou quase impossível. O resultado dessa escassez de alimentosnaturais foi a sua substituição por outros produtos facilmente encontrados noscentros urbanos, e mesmo nas mais afastadas regiões são encontrados os produ-tos industrializados em armazéns e pequenos mercados.

As mudanças do hábito alimentar indígena não se restringem aos produtos;também a forma de preparar os alimentos foi alterada. No início do século XX,quase todos os alimentos eram assados, não usavam sal, óleo e nem tempero, acaça era mais acessível, conforme os relatos de uma Terena: a comida era feitaà base de assados de abóbora, mandioca, carne de caça e peixe; não usavamsal, nem cebola, em seus alimentos cozidos ou assados. O hábito alimentar, se-gundo os relatos dessa índia Terena, era tão saudável que as pessoas tinham vidamais longa, chegavam a atingir mais de 100 anos, sem apresentarem cabelosbrancos. No caso dessa pessoa que nos deu esse depoimento, ela estava com 60anos, já tinha cabelos brancos, e a sua explicação para isso era que sua alimen-

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tação já estava bastante modificada, a ponto de não sentir mais prazer na comi-da se não fosse preparada com vários tipos de temperos. Além disso, em suadieta são comuns alimentos como a manteiga, a cebola, o salame – cujos ingre-dientes diz desconhecer-, entre outras “especiarias”. Segundo ela, é por issoque “a gente pega tudo quanto é tipo de doença, hoje em dia”. Os seus ante-passados assavam o teiú (lagarto), cozinhavam mutum, e comiam mandioca as-sada. Hoje, ela conhece os efeitos nocivos de sua dieta alimentar, mas não con-segue mais alterá-la, porque já está “acostumada” com os alimentos industriali-zados, além de não conseguir facilmente os produtos tradicionais da aldeia. (Mussi,2006, p.126 a 128)

De acordo com as informações da anciã Terena que entrevistamos, a mu-dança do hábito alimentar alterou até a média de vida de seu povo, além demudar as relações internas da sua aldeia, pois, enquanto esperavam assar osalimentos, em volta da fogueira, muitas conversas surgiam, muitos ensinamentoseram repassados de pais para filhos, de avós para netos; enfim, de geração emgeração a vida se renovava, se mantinha sempre acesa em volta do fogo.

Atualmente, conforme já vimos, os alimentos são industrializados, carrega-dos de temperos, para realçar o sabor de produtos pré-cozidos e muitas vezescongelados, há meses, nos frigoríficos e supermercados; as fogueiras já não exis-tem mais... Assim, não restou aos indígenas outra opção que não seja a mudançacada vez mais radical de seu hábito alimentar. Junto com os antigos hábitos,também são esquecidos e abandonados os rituais familiares, no preparo de suaalimentação: as conversas, a atenção com o ponto do cozimento ou do assado,as trocas de ensinamentos entre as famílias, o prazer, enfim, de saberes que nãomais enchem de espírito as rodas de conversa dos nossos indígenas. E com osprazeres da comida, também se vai o equilíbrio da vida, sendo inevitáveis osproblemas de hipertensão, obesidade e diabetes (MUSSI, 2006, p.128).

Creio que a esta altura vocês já devem ter percebido que os saberes e ossabores indígenas estão muito ligados com a compreensão que eles possuem danatureza, manifestada por meio do trabalho, dos ritos, das festas, da arte, damedicina tradicional, da forma como constroem as casas, escolhem os nomes,fazem as bebidas, e até mesmo a língua possui um significado cosmológico, istoé, mítico, integrador do homem com as forças superiores da criação da vida.Assim, a visão que possuem do mundo, a educação informal que é passada degeração a geração, o cuidado com a harmonia do meio ambiente e com a saúdetêm uma dimensão cósmica, ensinada por seus antepassados míticos e que vãoapontando o caminho por onde é possível garantir a sobrevivência.

Embora a espiritualidade dos rituais da alimentação estejam se perdendoem nossa memória nacional, a influência indígena é marcante na culinária bra-sileira. Você com certeza já deve ter ouvido falar ou, até mesmo experimenta-do, algumas delícias como o pato ao molho do tucupi, uma essência extraída daraiz da mandioca brava; a carne e os ovos de tracajá, uma espécie de tartarugamuito comum na região norte do País; o tacacá, um caldo revigorante, feito à

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base de tucupi, camarão, chicória e outros ingredientes naturais. E quem nãoexperimentou, ainda, o sorvete de cupuaçu, uma fruta que aprendemos a sabo-rear graças aos indígenas do Amazonas e do Pará? Ou o bolo de castanha-do-pará?

Bem, não vamos ficar aqui apenas provocando os sabores. Mãos à obra!Arregacem as mangas, lavem as mãos, para prepararmos um dos pratos maissaborosos da nossa culinária e que herdamos dos indígenas brasileiros. É aMANIÇOBA. Aí vai a receita:

MANIÇOBA

Ingredientes:

300 gr de lombo de porco salgado

300 gr de costela de porco salgada

600 gr de pés, orelhas e rabos de porco salgados

600 gr de charque

1 kg de folhas de aipim (mandioca-doce ou macaxeira)

250 gr de toucinho fresco

250 gr de toucinho defumado

300 gr de paio

300 gr de chouriço

Sal e pimenta do reino a gosto

4 dentes de alho amassados

1 cebola grande picada

3 pimentas-de-cheiro picadas.

Modo de preparo:

De véspera, coloque as carnes salgadas em uma tigela grande, cubra comágua fria e deixe de molho até o dia seguinte, trocando a água 3 a 4 vezes.

No dia seguinte, lave as folhas de aipim, tire os talos, passe na máquina demoer ou processador; coloque em uma panela bem grande, cubra combastante água, leve ao fogo alto, deixe ferver, abaixe o fogo ao mínimo e,sem tampar a panela, cozinhe por cerca de 5 horas, mexendo regularmen-te para não grudar no fundo e acrescentando água à medida que for se-cando.

Acrescente os dois tipos de toucinho inteiros e cozinhe por mais 2 horas,não se esquecendo de mexer e mantendo constante o nível da água.

Escorra as carnes salgadas, lave em água corrente, afervente e escorra nova-mente.

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Corte em pedaços, acrescente à panela, junte paio, chouriço e cozinhe pormais 3 horas ou até as carnes ficarem macias.

Verifique o tempero, junte alho, cebola, os dois tipos de pimenta e continuea cozinhar por cerca de 10 minutos.

Tire do fogo e sirva bem quente, acompanhada de farinha de mandioca,arroz branco e molho de pimenta-de-cheiro.

Rendimento: 10 porções.

Dicas:

A maniçoba é um prato tipicamente indígena. Na versão original é prepara-da com folhas de maniva (mandioca-brava) e extremamente demorada (trêsdias pelo menos).

A maniva contém acido cianídrico, uma substância tóxica que somente olongo cozimento com panela destampada consegue evaporar.

Enquanto vai sendo cozida, a maniva libera um suco que acentua o sabordas carnes: quanto maior o tempo de cozimento, mais saborosa fica amaniçoba.

Nesta versão, adaptamos os ingredientes e substituímos a maniva por folhasde aipim.

(Extraído do site: www.tudook.com/receitasbrasileiras/culinaria_paraense.)

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COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS80

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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81CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo IV

CAPÍTULO V

Movimentos Indígenas

Paulo Baltazar1

5.1 IntroduçãoO Brasil não tem dados precisos sobre a densidade populacional dos povos

indígenas durante a invasão européia, em 1500. Estimativas demográficas apon-tam que no território brasileiro habitava aproximadamente 1.700 grupos indíge-nas que totalizavam uma população de 5 milhões de pessoas. Após o violentoprocesso de escravização e conquista das terras, a diversidade sociocultural dospovos indígenas encontra-se pouco mais de 200 povos indígenas, em sua gran-de maioria está concentrada região da Amazônia Legal.

Existem muitas outras estimativas sobre a densidade populacional indígenana época da conquista, pois cada autor tem adotado a metodologia de cálculodo etnólogo Curt Nimuendaju que contabilizou no seu mapa etno-histórico aexistência de 1.400 povos indígenas no território brasileiro durante a chegadados portugueses.

Hoje, no Brasil, segundo os dados da FUNAI - Fundação Nacional do Índioexistem 215 povos indígenas, com uma população de aproximadamente 700mil pessoas que falam cerca de 180 línguas diferentes, o que representa 0,4%da população brasileira. O indicativo da FUNAI registra somente indígenasaldeados, ou seja, indígenas que habitam as aldeias localizadas nas terras indíge-nas. Ainda, segundo dados de organizações não-governamentais estimam-se aexistência de 100 a 190 mil índios que estão vivendo fora das terras indígenas,dispersos nas cidades.

O continente cobiçado pelos invasores recebeu diversos nomes pelos eu-ropeus que aportaram na costa do litoral brasileiro desde a “Ilha de Vera Cruz”em 1500; Terra Nova em 1501; Terra dos Papagaios em 1501; Terra de VeraCruz em 1503; Terra de Santa Cruz do Brasil em 1505; Terra do Brasil em1505; finalmente Brasil em 1527. Segundo estudiosos o país recebeu estenome porque durante a fase colonial a madeira que era extraída das matas na

1 Mestrado em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) em 2010.Da etnia Terena, atualmente é professor da Rede Municipal de Educação – Aquidauana/MS.

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costa brasileira chamada de Pau-Brasil produzia tinta para tingir tecidos na corvermelha.

Após os inúmeros registros de nomes para o Brasil, foi a vez dos povosindígenas, habitantes naturais do território brasileiro, receberem o enquadra-mento segundo a definição conceitual no imaginário do homem branco colonialdo século XVI: de “gentios”, “pagãos”, “brasis”, “negros da terra”, índios escra-vizados, depois “índios” aldeados.

No encontro entre os povos indígenas e viajantes, portugueses, franceses,holandeses, missionários no território brasileiro observou-se novos costumes eculturas tradicionais descrevendo o cotidiano indígena do modo de ser e viver.Os cronistas enfatizavam as práticas culturais classificando-os como bárbaros eselvagens, praticantes da antropofagia, devido as diferenças culturais com as quaisdepararam.

Mais uma vez os povos indígenas do Brasil receberam uma nova desig-nação, indicando que o caminho seria árduo e conflituoso, quando os con-quistadores procuravam justificar o aprisionamento dos índios “hostis” com as“guerras justas” baseado na confusão de imaginário europeu diante da diver-sidade cultural dos povos distintos, interessados em dizimar os povos para ex-plorar as riquezas naturais visando atender os interesses econômicos de seuspaíses.

A mão de obra indígena ajudou a exploração do pau-brasil na costa litorâ-nea do Brasil para cortar, transportar e colocar a madeira nas embarcações decargas, marco do início da escravidão indígena com a prática de escambo embusca de objetos de metais preciosos.

Na medida em que surgia a necessidade de defesa do território contrainvasores, passando pelo cultivo da cana de açúcar na região nordeste, intensifi-cou cada vez mais o uso da força indígena como escravo, mas por outro lado,eles reagiram e fugiam dos canaviais, dos engenhos de cana de açúcar e deoutros trabalhos massacrantes.

A história é testemunha de diversos acontecimentos e de várias tragédiasprovocadas pelos colonizadores na vida das populações indígenas do Brasil como:guerras, doenças, massacres, escravidão, genocídios e etnocídios. Esses aconteci-mentos por pouco não acabaram por completo com os primeiros habitantes destaterra.

Como não bastasse o extermínio físico dos índios, as terras indígenas, re-conhecida pela coroa portuguesa como terras devolutas, também consideradasterras de domínio público sem destinação específica, permitia a titulação a ter-ceiros dessas terras a quem quisesse gerando um caos fundiário.

Esta distribuição irregular de terras indígenas, consideradas devolutas quandona verdade estavam sendo subtraídas dos índios gerou conflitos os quais se pro-longam até hoje. Assim, essa ocupação desordenada do território indígena, trouxegrandes prejuízos que serviu tão somente para segregar ou confinar os índios

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em seus territórios ínfimos, e por sua vez liberando grandes extensões de terrastradicionais para o processo de colonização.

Diante das perdas territoriais alguns povos indígenas estão sobrevivendoem confinamento que passou a ser chamado de “aldeias” destinado à concen-tração de povos sob administração de ordem religiosa, especialmente os jesuítascom objetivo de facilitar o trabalho de catequese sem preocupação na reprodu-ção sociocultural dos povos indígenas. Nas terras onde os povos indígenas esta-vam confinados existiam outro fator complicador, para que o governo federalpudesse efetivar a demarcação dessas terras indígenas, precisavam de amploentendimento com o governo estadual e municipal onde estavam localizados osaldeamentos, agravando ainda mais a situação fundiária.

A invasão e espoliação das terras indígenas, declaradas terras devolutas, im-possibilitou historicamente, a preservação dos sistemas tradicionais de vida, tor-nando-se mão de obra barata para atuarem nas fazendas de gado que invadiam oestado de Mato Grosso do Sul e nas plantações ao entorno das áreas indígenas.

Iniciava-se novamente o período de servidão entre os povos indígenas ha-bitantes do Pantanal sul mato-grossense conforme os relatos de Renato AlvesRibeiro (1984), um dos coronéis da região pantaneira, afirma que “nas fazen-das, oitenta por cento da peonada era de índios, sendo os serviços de casa sem-pre exercidos por moças índias que eram criadas pelos brancos”.

Nos relatos de Rondon, no momento que atuava à frente da “Comissão Cons-trutora de Linhas Telegráphicas” no Estado de Mato Grosso, informam o tratamen-to dado aos índios que “são comumente explorados pelos fazendeiros. É difícilencontrar um camarada Terena que não deva ao seu patrão os cabelos da cabeça.E, se tem a ousadia de fugir, corre quase sempre o perigo de sofrer vexames,pancadas e não raras vezes a morte” (RONDON, 1901). Era uma forma de escra-vidão em relação ao povo Terena, onde as autoridades locais faziam vistas grossasao assunto, pois eram sustentados pelos fazendeiros e ainda estavam sob as ordensdos “coronéis” donos da fazenda de quem dependiam financeiramente.

Assim, como foi no norte do Brasil, os povos indígenas na exploraçãoextrativista da borracha na região amazônica durante a segunda metade do sé-culo XIX, vitimou milhares de índios e também nordestinos que estavam manti-dos sob o regime de escravidão em detrimento da produção capitalista.

5.2 Movimento IndígenaPor diversos motivos, o movimento indígena no Brasil, em diferentes regi-

ões começa a se movimentar em conjunto a uma nova fase ofensiva para garan-tir os seus direitos, objetivando uma agenda comum de luta, pela terra, pelasaúde, pela educação, reivindicando a Educação Escolar Indígena na alfabetiza-ção na língua materna e outros direitos.

Baseado na articulação de luta comum aos povos indígenas do Brasil, aslideranças indígenas conseguiram conquistar aliados e convencer a sociedade

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brasileira, principalmente o Congresso Nacional durante a constituinte, aprovaros direitos indígenas na atual Constituição Federal de 1988.

Parece que os povos indígenas nunca estiveram em silêncio e nem tampoucoestiveram conformados com as práticas coloniais escravista, mas sempre resisti-ram a qualquer forma de dominação e colonialismo.

Apesar das dimensões territoriais do Brasil e as diferenças regionais com osmais variados povos e graus de contato interétnico diferenciados a forma autori-tária do Estado brasileiro no trato das questões indígenas foram os fatores quedificultaram o movimento indígena no âmbito nacional.

O protagonismo indígena no Brasil começava a se manifestar com maiorintensidade nos anos 70 a partir das assembleias indígenas regionais e nacionaisapoiadas pelo CIMI. Pela primeira vez reuniam-se as lideranças indígenas de dife-rentes povos do Brasil com trocas de informações sobre o contexto deenfrentamento e de experiência dos problemas vividos. Surgia também o sensode solidariedade das lideranças indígenas constituindo a união e espírito corporativoentre povos que serviu de base para as futuras mobilizações indígenas.

Desde então, começavam as articulações entre povos na organização emobilização em busca de parceiros para uma perspectiva de apoio em alguns seto-res da população brasileira e até mesmo a sensibilização da comunidade internaci-onal para exigir do Estado Brasileiro o reconhecimento e a garantia dos direitos.

A década de 1970 é marcada pela penetração capitalista na região amazô-nica, onde os projetos desenvolvimentistas estimulavam a ocupação da Amazô-nia com a construção de estradas, como: a Transamazônica, Perimetral Norte eBelém-Brasília. Todos esses projetos para o desenvolvimento do país provocouderrubadas de árvores e inundações de florestas, ocasionando diversos tipos dedoenças. Essa mudança na vida dos povos indígenas obrigou a retirada do lugartradicional e transferência para outros lugares o que afetou e modificou profun-damente o modo de viver. As construções das usinas hidrelétricas e as instala-ções militares resultaram em uma extrema violência na vida sociocultural dediversos povos indígenas.

Em meio, a este contexto de políticas desenvolvimentistas, que afetaram aregião amazônica, outros povos em diferentes regiões do país, também enfren-tavam violência, preconceito, invasão e ocupação de terras indígenas, estimula-dos pela omissão das autoridades competentes. Todos esses fatores serviram paraque os povos indígenas tivessem uma reação dentre todos esses problemas deenfrentamento, estimulando a organização e articulação de debate nasassembleias indígenas, local de grito e de resistência.

O movimento teve como conseqüência a revelação e a ascensão de lide-ranças indígenas com projeção regional, nacional e internacional de diversoslíderes de povos diferentes que impulsionou as populações indígenas em buscade organização política e de mobilização que daria a continuidade nos movi-mentos indígenas de todo Brasil.

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As décadas de 1970 e 1980 marcaram o início do processo de surgimentoe de consolidação das primeiras organizações genuinamente indígenas, resulta-do de mobilização como o caso da UNI – União das Nações Indígenas, impulsi-onada pela política do Estado brasileiro com o projeto de emancipação dos índi-os, onde transformaria os índios em cidadãos comuns decretando a extinção dospovos indígenas no Brasil.

Essa reação de resposta dos povos indígenas aos propósitos do Estado, deemancipação indígena, trouxe resultados positivos devido ao movimento indí-gena na mudança de postura e de reconhecimento pelo Estado Brasileiro quan-to a existência dos povos indígenas que era tido como um contingente socialtransitório.

A década de 1980 foi marcada por diversas mobilizações e manifestaçõespelo fim da ditadura militar, fatores que desencadearam mudanças profundas anível nacional que se estenderam aos povos indígenas organizando-se com umanova configuração diferente da organização tradicional de cada povo indígena.

O movimento indígena, com sinais de repercussão no Brasil, ganhava adep-tos buscando fortalecimento e afirmação de alianças com diversos segmentos dasociedade civil organizada, Igreja, entidade de apoio ao movimento indígena esetores importantes no meio dos populares estreitando relações e desencadean-do ações conjuntas em defesa do meio ambiente formando a chamada “Aliançados Povos da Floresta” na região Amazônica.

A década de 1980 foi sem dúvida um dos momentos mais importantes naHistória dos povos indígenas do Brasil, provocou um impacto no trato das ques-tões indígenas, principalmente na garantia dos direitos com a promulgação daConstituição Federal em 1988, reconhecendo as organizações sociais dos povosindígenas, mudando substancialmente o destino dos povos indígenas do Brasil.Esse período foi o marco de conquistas que animaram as bases com a criação dediversas organizações indígenas que se multiplicariam rapidamente em todoBrasil, criando instrumentos de organização de luta para assegurar o direito con-quistado na Constituição Federal. As organizações de luta aconteceram primei-ramente nas bases locais, como: associação indígena, professores, saúde, conse-lhos tribais e muitos outros dependendo das regiões, dos povos e das atividades.

As principais organizações dos povos indígenas locais e regionais do Brasilmerecem destaque na região amazônica o CIR – Conselho Indígena de Roraima,FOIRN – Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro e COIAB – Coor-denação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira.

A FOIRN foi fundada em 1987, resultado do movimento indígena comobjetivo de lutar pela demarcação de terras indígenas no estado do Amazonas,especificamente na região do rio Negro, buscando autonomia, reconhecimen-to, valorização cultural e dos conhecimentos tradicionais, como: a medicinatradicional, sem deixar de promover a saúde através de conhecimento euro-peu, a educação e a sustentabilidade.

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Ainda, é importante ressaltar que na década de 1980 na região da Bacia dorio Negro, as organizações indígenas se multiplicaram rapidamente. A FOIRNaglutina mais de 40 organizações indígenas locais, ao longo do canal do rio Ne-gro, com mais de 750 aldeias habitadas por mais de 30 mil indígenas, abarcando22 grupos étnicos de diversas famílias lingüísticas.

A COIAB, outra organização de maior abrangência geográfica, conta com09 estados da federação (Amazonas, Acre, Amapá, Maranhão, Mato Grosso, Pará,Rondônia, Roraima e Tocantins) e toda a Amazônia Legal. Fundada em 1989,durante uma assembleia do movimento indígena. A organização surgia comoinstrumento de luta e de representação dos povos indígena também com o mesmoeixo principal: o direito pela terra, saúde, educação, economia e intercultura-lidade. A COIAB talvez seja a maior organização indígena do Brasil, seja pelaabrangência territorial, como na quantidade de organizações indígenas filiadas,com mais 75 organizações indígenas, desde as associações locais, associação deprofessores, de mulheres, de estudantes, até as federações regionais fazem par-te da instituição que representa mais de 430 mil pessoas cerca de 60% da popu-lação indígena do Brasil.

O CIR começou a nascer em 1980, resultado de reuniões locais, de encontrose assembleias indígenas, logo em 1987 a organização abrangia o estado de Roraima,fruto de expressão e de vontade da comunidade indígena durante a avaliação e deexperiência na luta pela recuperação de terras indígenas, tema central, como acon-teceu em outras organizações, constituindo um canal de interlocução própria com asociedade não-indígena, principalmente com o Estado.

A APOINME – Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Geraise Espírito Santo, organização indígena criada em 1995, tem como fundamentosbásicos de luta a recuperação de territórios, autonomia e reconhecimento étni-co. Busca junto com as instituições do Estado, as políticas públicas específicas nasaúde, educação e sustentabilidade. A organização é constituída por mais de 64povos que estão em articulação permanente, apesar de ter uma abrangênciageográfica significativa, parece que ainda não alcançou uma visibilidade rápidae nem relevância políticas como foram as organizações indígenas da região nor-te do Brasil.

O objetivo principal da APOINME é a luta pela terra, na identificação, de-marcação e de homologação de seus territórios tradicionais, além da garantia deeducação escolar diferenciada e respeito pelos valores culturais dos povos indí-genas.

Assim como, por exemplo, a Aty Guassu, conhecida como grande reuniãode líderes indígenas Guarani, com a participação de movimento de mulheres,religiosos, professores, agentes de saúde indígena, que acontece anualmenteentre os povos Guarani Kaiowá e Nhandeva no Estado de Mato Grosso do Sul,tem buscado constantemente analisar a situação da vida e as violências ocorri-das com seus principais líderes de luta no desafio e na retomada das terras tradi-cionais indígenas.

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Com certeza, cada participante da Aty Guassu, transforma em união, pro-duz esperança, fortalece os objetivos, renova as forças para continuarem o mo-vimento indígena na recuperação de seus territórios, como afirma o caciqueRosalino “a doença dos Guarani é uma só – recuperar o nosso território, nossaterra, através de nossa cultura, nossa organização, nossa reza”.

Na década de 1990 e 2000 as organizações indígenas começaram a des-pontar na região nordeste do Brasil, através da AIPONME, fato que recebeu onome de “articulação”. Posteriormente, as organizações indígenas foram cria-das em outras regiões brasileiras como o ARPINSUL – Articulação dos PovosIndígenas do Sul. Esse fato somente aconteceu depois de criar várias organiza-ções indígenas locais e as lideranças indígenas participarem de outros movi-mentos a convite para outras reuniões e assembléias indígenas em outras partesdo Brasil, quando tiveram a percepção da importância de estarem articuladoscom outras regiões do Brasil.

Esta tomada de consciência foi a máquina propulsora de diversos líderestambém do povo Kaingang para reunir outras lideranças do estado, regiões dife-rentes que foram determinantes na criação da ARPINSUL, com desafios de su-perar dificuldades econômicas, principalmente divergências e divisões internasentre os povos indígenas que compõem a organização.

Mais uma vez a organização indígena com criação da ARPINSUL, tem comoobjetivo principal a reivindicação das terras indígenas, saúde, educação escolarindígena, sustentabilidade e políticas públicas junto aos órgãos governamentaise a sociedade civil, visando atender as necessidades dos povos indígenasKaingang, Xocleng, Guarani e Xetás. Os membros da ARPINSUL estão localiza-dos nos estados da região sul do Brasil.

Na região sudeste do Brasil era criada em 2009 a ARPINSUDESTE – Articu-lação dos Povos Indígenas da Região Sudeste, que abrange os estados de SãoPaulo e Rio de Janeiro, resultado de movimento indígena em uma assembléiaque aconteceu na Aldeia Tenondê Poran em São Paulo, onde reuniu mais de100 lideranças indígenas e diversos povos como: Terena, Guarani, Tupi-Guarani,Kaingang, Krenak, Pankararú, Pankararé, Fulni-ô e Wassu Cocal.

Para completar a abrangência da articulação dos povos indígenas em todoBrasil, nascia a ARPIPAN – Articulação dos Povos Indígenas do Pantanal, a qualfoi a última organização a ser criada advindo de resultado de movimentos e dearticulação dos povos indígenas de todo Brasil. Os membros que compõem aARPIPAN são os povos Terena, Kadiwéu, Guató, Kinikinau, Ofaié, Atikum eGuarani Kaiowá e Nhandeva.

A APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil nasceu como resultadoda articulação do movimento indígena chamada de Fórum Indígena Nacionalde Lideranças Indígenas, durante o Acampamento Terra Livre de 2005 no AbrilIndígena. Naquele ano aconteceu na Esplanada dos Ministérios em Brasília – DF,por determinação de lideranças indígenas sendo considerada a instancia máxi-ma de articulação dos povos indígenas do Brasil.

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O Acampamento Terra Livre acontece anualmente desde 2004, com a par-ticipação de 500 a 1000 lideranças indígenas e constitui um espaço de união domovimento indígena do Brasil para discussão, unificação de proposta e cobran-ça de respostas das reivindicações dos povos indígenas aos poderes Executivo,Legislativo e Judiciário. A composição dos membros da Articulação dos PovosIndígenas do Brasil é a seguinte: APOINME – Articulação dos Povos Indígenas doNordeste, Minas Gerais e Espírito Santo, ARPINSUL- Articulação dos Povos Indí-genas do Sul, ARPIPAN – Articulação dos Povos do Pantanal, Aty Guassu – Gran-de Assembleia do Povo Guarani Kaiowá, ARPINSUDESTE – Articulação dos Po-vos Indígenas do Sudeste e COIAB – Coordenação das Organizações Indígenasda Amazônia Brasileira.

A APIB é composta por pessoas que estão permanentemente alertas paraarticular a base regional indígena e por sua vez a organização local formando oelo de ligação até a comunidades indígenas interessadas que estão em diversasregiões do Brasil, com isso, visa fortalecer e unir os povos indígenas e suas orga-nizações de todo Brasil, objetivando a discussão, articulação e mobilização deseus membros filiados em defesa dos direitos dos povos indígenas de todo país.

Historicamente, os povos indígenas sempre reagiram de diferentes formasem cada momento de opressão, etnocídio, discriminação, escravização, coloni-zação, exploração, expulsão de suas terras e por fim o confinamento em minús-culos pedaços de terras. Estas respostas variavam de acordo com o desafio im-posto pelos modelos de expansão capitalista.

Ao longo de todos esses anos as lideranças indígenas do Brasil aprenderama buscar ferramentas adequadas para defender-se diante de diversas situaçõescolocadas pelos brancos. As lideranças indígenas também perceberam que du-rante a trajetória histórica passa necessariamente pelo movimento indígena comofator fundamental na conquista de seus objetivos comuns que é a retomada dasterras tradicionais.

5.3 Política IndigenistaAs práticas políticas do Estado brasileiro em relação à negação da diversi-

dade e da vida dos povos indígenas estavam com os dias contados. Historica-mente, todos estavam condenados a desaparecerem enquanto povo e comprazo até o final do século XIX, mas pelo contrário, reapareceu no cenárionacional e internacional com afirmação da identidade e dos valores culturaisde cada povo.

A precursora do indigenismo brasileiro pode-se dizer, teve início com a Co-missão Construtora da Linha Telegráfica comandada pelo então alferes CandidoMariano da Silva Rondon, depois do término da Guerra do Paraguai em 1870, nomomento em que o país havia adotado medidas para a defesa e ocupação dafronteira oeste do Brasil, considerada uma das regiões mais vulneráveis.

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Um dos confrontos aconteceu na região de Miranda, no Mato Grosso doSul, quando um dos grupos invasores atravessou a cidade de Corumbá e o Fortede Coimbra, em dezembro de 1864, justamente nas áreas onde os Terena ti-nham estabelecido os seus aldeamentos.

Um grupo de invasores do exército paraguaio entrou pelo sul do Estado, nacidade de Dourados, onde encontrou uma tropa brasileira sob o comando doTenente Antonio João Ribeiro e seus 16 comandados, que resistiram e foramsacrificados. A cidade de Antonio João recebeu esse nome em homenagem aoherói de guerra da Tríplice Aliança.

Os Guaikuru e os Terena, por participarem da Guerra do Paraguai comoaliados dos brasileiros, viram as suas aldeias atacadas e destruídas, de forma vio-lenta, pelas tropas paraguaias. Os Terena, que habitavam em Miranda eAquidauana, se dispersaram, buscando refúgio nas matas, enfrentando os inva-sores em ataques relâmpago, escondendo-se nas serras de Maracaju2.

A construção da Linha Telegráfica em 1904/1905, sob a direção de Cândi-do Mariano da Silva Rondon, pretendia unir as regiões distantes do país e abriráreas inexploradas para a colonização e o povoamento na fronteira com a Bolí-via e o Paraguai. Do lado indígena, parecia haver outro projeto em curso quevisava a integração dos índios à sociedade nacional para que se tornassem “bra-sileiros e trabalhadores”.

Nessa época, o sul de Mato Grosso era habitado por diversos povos, comoos temidos guerreiros Guaykurú, Paiaguá, Guató, Kinikináu, Laiana, Ofaié, Guachie outros grupos, hoje extintos. Todos estavam de prontidão para intervir emqualquer situação adversa no pantanal exigindo aproximação de contato daComissão buscando uma convivência amistosa, facilitando a integração de índi-os no contingente de trabalhadores.

No relatório de Rondon, quando atuava à frente da “Comissão Construtorade Linhas Telegráphicas” no Estado de Mato Grosso, esclareceu o tratamentodado aos índios, a exemplo do que aconteceu principalmente com os Uachiriou Guachi, como eram conhecidos antigamente. O tratamento recebido chega-va a requintes de crueldade.

Os conflitos acirravam-se, e os índios revidavam a opressão e exploração dosfazendeiros, fazendo dos fios de arame das cercas das fazendas pontas de flechaspara abaterem animais soltos no campo. Diante disso, os fazendeiros reuniram-separa atacar e matar os índios, procurando dizimá-los, situação que chegou aoconhecimento de Rondon. Este escreveu uma carta aos latifundiários da região:“Tão logo tive noticia do primeiro ataque que se projetava contra eles, escreviuma carta ao Coronel José Alves Ribeiro, como o fazendeiro mais inteligente dazona, pedindo-lhe que evitasse a carnificina que se projetava contra os índios”.

2 Taunay, na sua obra “Entre os nossos Índios” (1931), registra a dispersão dos Terena. A AldeiaLimão Verde, que fica no vale da Serra de Maracaju, a vinte e cinco quilômetros de Aquidauana,serviu também de refúgio dos Terena durante o conflito.

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Em 1909 no Rio de Janeiro Rondon posicionava-se durante a reunião daComissão Telegráfica a respeito dos índios e a colonização do país, era o mo-mento da gestação do SPILTN – Serviço de Proteção aos Índios e Localizaçãodos Trabalhadores Nacionais, isso foi determinante para que Rondon se transfor-masse em um dos principais articuladores da política indigenista republicana.

Em 1910 quando foi criado o SPILTN, Rondon foi indicado pelo Ministro daAgricultura para ser o diretor responsável pelo esboço que nortearia os trabalhosindigenistas no Brasil, justificando a criação do órgão não apenas pela açãocivilizadora com os povos indígenas, mas também como guardiões do território,integrando a sociedade brasileira e tornando a fronteira do Brasil mais segura.Mas, por outro lado, os ideais positivistas de assistir, proteger e integrar o índioencontrava oposição com os que defendiam a continuidade da atuação da Igre-ja Católica junto com as populações indígenas. Esses ideais trouxeram à tonadiversas denúncias de escravização dos índios no Brasil, inclusive no exterior.

A ação indigenista de Rondon tinha as seguintes finalidades: a) estabelecerconvivência pacífica com os índios; b) agir para garantir a sobrevivência físicados povos indígenas; c) fazer os índios adotarem gradualmente hábitos “civiliza-dos”; d) influir de forma amistosa; e) fixar o índio a terra; f) contribuir para opovoamento do interior do Brasil; g) poder acessar ou produzir bens econômi-cos nas terras dos índios; h) usar a força de trabalho indígena para aumentar aprodutividade agrícola; i) fortalecer o sentimento indígena de pertencer a na-ção brasileira (SOUZA LIMA, 1995).

Em 20 de junho de 1910 era criado o SPI pelo decreto nº 8072, com afinalidade de prestar assistência aos povos indígenas desde os nômades até paraaqueles que moravam nas aldeias e ainda buscava afastar a Igreja Católica, devi-do a pratica de catequese aos índios, seguindo fielmente os preceitos republica-nos com intuito de separar o Estado e a Igreja.

Na década de 60 o SPI sofreu diversas intervenções sendo investigado emuma Comissão Parlamentar de Inquérito, sob acusação de genocídio de índios,corrupção e ineficiência administrativa. Foi a partir desta crise que o Serviço deProteção ao Índio - SPI foi extinto. Assim, para continuar o exercício da ação doEstado com o slogan positivista de Rondon “Ordem e Progresso” foi criada aFUNAI – Fundação Nacional do Índio em 5 de dezembro de 1967. Inicialmentefoi organizada de forma semelhante ao SPI mantendo os postos indígenas nascomunidades indígenas e administração regional, respeito a pessoa do índio eas instituições e comunidades tribais; aculturação espontânea do índio e pro-moção da educação apropriada ao índio visando a sua progressiva integração nasociedade nacional.

Para reforçar a ideologia civilizatória e integracionista do índio a sociedadenacional, no dia 19 de dezembro de 1973 foi sancionada a lei nº 6001 criando oEstatuto do Índio a fim de regular a situação jurídica das populações indígenas,legislando nas questões sobre direitos civis e políticos, terras, bens, rendas, educa-ção, agricultura, saúde e na diversidade cultural entre as populações indígenas.

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91CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo IV

A FUNAI criou no final dos anos 1970 o setor de saúde indígena paracoordenar a ação de equipes responsáveis por todas as populações indígenas noBrasil. Essa política perdurou até o início de 1990, quando a saúde era prestadapor funcionários do órgão indigenista que percorriam as aldeias para realizaremos atendimentos emergenciais, esporádicas e paliativas. É importante ressaltar,que até então nunca foi pensado a prevenção e cura das doenças que assolavamas comunidades indígenas.

Na década de 1970 a saúde em algumas populações indígenas no Brasil eramuito caótica, pois muitas enfrentavam epidemias de sarampo, tuberculose,malaria e principalmente a mortalidade infantil que assolava as comunidades daregião amazônica. Essa situação era alarmante causando a preocupação quecolocava em risco a existência de inúmeros povos, sendo amplamente divulgada,tornando-se notório em todo o Brasil inclusive no exterior.

Com a nova Constituição brasileira promulgada em 5 de outubro de 1988,acontecem novas mudanças quanto as definições de responsabilidades na ques-tão de assistência na saúde indígena. O Estado através do decreto 23/92 transfe-riu a responsabilidade da gestão e assistência da saúde indígena, da FUNAI paraa FUNASA - Fundação Nacional de Saúde.

Em 1993 durante a Conferência Nacional de Saúde Indígena, foi o mo-mento de encontro e debate com proposição de diversos povos indígenas doBrasil com participação das organizações indígena e indigenista, na perspectivade criação de um sistema de saúde indígena específico e diferenciado para aspopulações indígenas.

A resolução durante a Conferência Nacional de Saúde Indígena originou alei 9836/ 99 que cria o Subsistema de Atenção a Saúde dos Povos Indígenas,implantando 34 DISEIs, - Distrito Sanitários Especiais Indígenas, distribuídos emtodas as regiões do pais. A implantação dos DISEIs foi acertado de diversas ma-neiras dependendo da realidade regional de cada região do Brasil. Na regiãonorte, por exemplo, foi pactuado entre o governo e entidade prestadora deserviços por meio de convênio e contratos com órgãos não governamentais,incluindo organizações indígenas.

Em outras regiões do país, no caso o Estado de Mato Grosso do Sul, o acor-do foi feito com órgãos públicos como as Prefeituras Municipais, entidades nãogovernamentais, todos esses convênios com entidades e poder público compe-te a aplicação dos recursos públicos para executarem atividades preventivas ecurativas garantindo um atendimento básico às populações indígenas que estãonas aldeias.

Esse modelo de serviço de saúde em atendimento as populações indígenas,trouxe avanços importantes para a melhoria na qualidade de atendimento àsaúde indígena, apesar de algumas dificuldades na articulação entre o poderpúblico municipal e estadual em algumas regiões do Brasil.

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BIGIO, Elias dos Santos. Candido Rondon – A Integração Nacional. Rio de Janeiro. Contraponto/Petrobrás, 2000.

RIBEIRO, Renato Alves. Taboco 150 anos – Balaio de Recordações. Campo Grande/MS. Prol.1984.

RONDON, Candido Mariano da Silva. Ministério da Guerra Comissão Construtora de LinhasTelegráficas no Estado de Mato Grosso, Rio de Janeiro, Relatório, 1901.

SOUZA LIMA. Antonio Carlos. Um Grande Cerco de Paz. Poder tutelar, indianidade e forma-ção do Estado no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1995, 335 págs.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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93CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo IV

CAPÍTULO VI

Ilda de Souza1

6.1 IntroduçãoOs estudos e pesquisas referentes à diversidade cultural ganharam im-

pulso neste início de século, principalmente no campo da educação, comobjetivos teóricos e de aplicação prática no espaço escolar, embora orienta-ções sobre essa abordagem sejam anteriores, pois estão contempladas daLDB/1996 e, também, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN/1998).Neste texto, apresentarei o resultado de leituras realizadas sobre a lei quetorna obrigatória a inclusão de diversos aspectos da história e da cultura dosíndios brasileiros no currículo das escolas, no Ensino Fundamental e no Ensi-no Médio e, principalmente, as discussões nos campos teórico e prático daaplicação da lei.

6.2 A Lei 11.645/2008A Lei 11.645 de 10 de março de 2008, dá uma nova redação a uma lei

anterior, 10.639, de 9 de janeiro de 2003 que, por sua vez, modificou a Lei9.394, de 20 de dezembro de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da EducaçãoBrasileira (LDB), no que diz respeito à diversidade cultural brasileira. Essasvárias modificações, na verdade, têm ocorrido principalmente por pressão demilitâncias que lutam pelo fim do preconceito e da discriminação. Essas leisdispõem sobre a inclusão, no currículo escolar, de conteúdos sobre a história ea cultura dos brasileiros afrodescendentes e indígenas, grupos sociais excluí-dos da história de desenvolvimento do país, diminuídos moralmente e severa-mente discriminadas ao longo dos séculos. As duas primeiras versões (2003 –1996) referiam-se apenas à cultura afro-brasileira. A versão atual da lei inclui acultura indígena. A redação do Artigo 26, nos parágrafos 1º e 2º passa a ter oseguinte texto:

A Lei nº 11.645e sua aplicação na

Educação Básica

1 Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Agradeço aoprofessor Carlos Magno Naglis Vieira pela leitura deste texto e sugestões.

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Art. 26-ANos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos

e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasilei-

ra e indígena.§ 1º. O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos

aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da popula-

ção brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo dahistória da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas

no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na

formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nasáreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§ 2º. Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos

povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currícu-lo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e

história brasileiras.

A implementação da Lei 11 645/2008 parece ter o intuito de preencher aspáginas em branco da história do Brasil, em que deveria estar registrada a parti-cipação dos atores indígenas, presentes aos milhares na imensa arena da “novaterra” então pisada por portugueses. Depois de aparecer como elemento figura-tivo, simbólico e exótico nos primeiros registros escritos, o índio desaparece decena, torna-se invisível e afônico, mas permanece no imaginário popular, talcomo fora retratado em telas como o quadro “A Primeira Missa”, pintado em1860 por Victor Meireles: nus, ou de tanga de penas, descalços, pintura nocorpo e penacho (cocar) na cabeça. Ainda hoje, é comum ver ilustrações eestampas que evidenciam esse estereótipo.

A Lei 11.645/2008 deveria ter provocado um grande ciclo de discussõesem nível nacional sobre a questão das relações entre diferentes culturas, prin-cipalmente no tocante entre as sociedades indígenas e as sociedadesenvolventes, o que na verdade não aconteceu. Houve pouca mobilização,alguns pequenos grupos de estudos foram formados, mas não uma mobilizaçãopedagógica mais ampla, com participação de gestores escolares e professores,como era de se esperar. A promulgação da lei não teve repercussão nas mídias,muitas vezes responsáveis por reforçar estereótipos e suscitar a discriminaçãocom relação aos indígenas brasileiros. As discussões concentraram-se no nívelmais acadêmico, com pouca participação de quem deve, na verdade, fazer alei sair do papel.

No decorrer de quinhentos anos de história, em raros momentos os índiosbrasileiros foram lembrados. Um desses momentos foi a elaboração do primeiroCódigo Civil Brasileiro, que entrou em vigor com a Lei 3.071, de 1° de janeirode 1916. Em seu Artigo 2º o CCB declara que “todo homem é capaz de direitose obrigações na ordem civil”. Essa mesma lei declara, no Art. 6°, que os silvícolas(índios) “são incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exer-cer” e, por isso, devem “submeter-se ao regime tutelar, estabelecido em leis eregulamentos especiais”. Continuando, ainda, no mesmo artigo, declara que a“tutela cessará à medida que os índios forem se adaptando à civilização do país”.

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O texto, como se sabe, permite diferentes leituras, dependendo de váriosfatores que não serão discutidos aqui. Por isso, textos científicos, jurídicos entreoutros que têm objetivos muito específicos e diretos, fazem uso de linguagemque diz só e apenas o que precisa ser entendido. Sendo assim, não dá para nãoquestionar por que foram usadas as expressões “certos atos” e “adaptando-se àcivilização do país”, que dão margem a muitas interpretações. O fato de o textonão ser literário, induz a inferir-se que, ou os relatores, míopes, enxergavamincapacidade onde havia apenas diferença, ou tiveram a intenção mesmo decolocar o índio em uma posição inferiorizada, para facilitar as manobras quecolocariam os povos indígenas à margem da história.

Em 2002, a Lei 10.406 revoga a Lei 3.071/1916 do Código Civil, isto é, fazuma revisão geral, uma atualização. Os índios não estão mais na relação dos“incapazes relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer”, porém,agora no Art. 4°, aparece em parágrafo único: “A capacidade dos índios seráregulada por legislação especial”. Embora tenha sido retirado da redação, nota-se que, 86 anos depois, a ideia que se tem de índio continua a mesma. É precisoconstatar que quase nada mudou para os índios, em termos de direitos e cidada-nia. Ainda assim, esses brasileiros até hoje não deixaram de ser índios, contrari-ando todas as previsões e expectativas legislativas. A resistência desses brasilei-ros é um fenômeno que merece ser estudado.

As sociedades indígenas vêm sendo marginalizadas e silenciadas durantetodos esses séculos de história. Em consequência, muitas mudanças culturaisocorreram de forma violenta, imposta por uma relação assimétrica entre os po-vos indígenas e a chamada “sociedade nacional”, em todos os aspectos - social,cultural, científico, enfim, humanos - podem ser apontadas. Entretanto, salienta-mos que as mudanças culturais, fruto das relações interétnicas, ocorreram tantoda parte dos índios quanto da parte dos não-índios. À margem da dinâmica doprocesso produtivo do país, as sociedades indígenas tiveram de lutar com precá-rios recursos para manter, em alguns casos e, recuperar, em outros, a sua auto-nomia. Continuam lutando, através de organizações indígenas, para realizar suasconquistas, como o acesso à educação escolar específica e de qualidade, o re-conhecimento de seus territórios tradicionais e a demarcação dos mesmos.

Podemos afirmar que também perderam as sociedades envolventes, quenão aproveitaram a oportunidade de conviver e aprender com os povos indíge-nas, pois a interação e a reciprocidade entre diferentes grupos é fator de cresci-mento cultural e de enriquecimento mútuo. Nesta história de pouco mais de500 anos de contato, podemos afirmar que prevaleceu a hegemonia da culturaocidental, mesmo assim, os povos indígenas participaram deste processo comoagentes ativos, ora aceitando elementos das culturas exógenas, ora negociandoou ressignificando outros elementos. É o processo que denominamos de tradu-ção ou hibridação cultural.

Esses primeiros habitantes das Américas, chamados de “índios”, porColombo, tiveram seus destinos transformados por ele. As histórias de coloniza-

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COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS96

ção das Américas nunca apresentam os índios como personagens, pois os colo-nizadores acreditavam que eles não resistiriam à truculência da colonização ouque passariam para o lado mais forte. Enganaram-se. Eles resistiram, negociarame, o mais importante, preservaram suas identidades apesar deles.

No dia 19 de abril de 1940, no México, congressistas que participavam doI Congresso Indigenista Interamericano receberam com surpresa os represen-tantes de vários povos indígenas que tinham sido convidados, mas relutavam emcomparecer, preocupados com o convite inusitado. Dado a importância do even-to, os congressistas criaram o Instituto Indigenista Internacional e redigiram do-cumento solicitando que se criasse um dia comemorativo aos povos indígenas,sugerindo aquela data histórica. No Brasil, a data comemorativa só entrou nocalendário em 1943, pelo Decreto-Lei 5.540 do Presidente da República Getú-lio Vargas.

Não se pode negar que esse fato tenha sido um pequeno passo para oreconhecimento do valor e da importância dos povos indígenas das Américas,mas as comemorações, pelo menos no Brasil, dificilmente cumprem esse papel.

Como se vê, a promulgação da Lei 11 645/2008 não é a primeira tentativade introduzir o índio com sua cultura no cenário histórico cultural brasileiro. ALDB/1996, base de onde surgiu a lei aqui em discussão, já propunha a inclusãode conteúdos referentes à cultura e história dos povos indígenas na disciplinaHistória do Brasil, como pode ser lido a seguir:

Art. 26º. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma

base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensinoe estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas ca-

racterísticas regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da

clientela.§ 4º. O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das

diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especial-

mente das matrizes indígena, africana e européia (LDB, 1996).

A orientação é que uma parte do currículo escolar dos ensinos Funda-mental e Médio deverá ser voltada para as culturas locais e regionais. A re-comendação é reforçada no parágrafo 4, em que responsabiliza a disciplinaHistória do Brasil no trabalho com a valorização dos povos indígenas eafrodescendentes, através do enfoque nas contribuições desses grupos soci-ais na história de prosperidade de nosso país. À exceção dos estados do Piauíe do Rio Grande do Norte, existe população indígena em todos os demaisestados da federação. Portanto, em todos os estados, o estudo sobre a histó-ria e a cultura dos povos indígenas já deveria estar ocorrendo e resultados jápoderiam apontar para alguns avanços, principalmente no que diz respeitoaos conceitos e ideias equivocadas sobre os índios, os estereótipos e a dis-criminação.

Também os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de 1998, produzidospelo Ministério da Educação, apresentam a pluralidade cultural como conteúdo

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a ser trabalhado no Ensino Fundamental, no primeiro e segundo ciclos. No ter-ceiro e no quarto ciclos, a pluralidade cultural é apresentada como tema trans-versal (abordagem de questões sociais urgentes).

A escola deve ser local de aprendizagem de que as regras do espaço públi-

co democrático garantem a igualdade, do ponto de vista da cidadania, eao mesmo tempo a diversidade, como direito. O trabalho com a

Pluralidade Cultural se dá, assim, a cada instante, propiciando que a esco-

la coopere na formação e consolidação de uma cultura da paz, baseadana tolerância, no respeito aos direitos humanos universais e da cidadania

compartilhada por todos os brasileiros. Esse aprendizado exige, sobretu-

do, a vivência desses princípios democráticos no interior de cada escola,no trabalho cotidiano de buscar a superação de todo e qualquer tipo de

discriminação e exclusão social, valorizando cada indivíduo e todos os

grupos que compõem a sociedade brasileira (BRASIL, 1998, p. 69).

Os Parâmetros Curriculares Nacionais, embora não tenham tratado a ques-tão com a relevância que o assunto requer, não podem ser criticados por omis-são. Fizeram recomendações importantes, bem colocadas, justificadas e comobjetivos bem claros sobre a pluralidade cultural. Porém, grande parte das esco-las não tem seguido essas orientações.

Ao longo do tempo, as populações indígenas foram sendo invisibilizadas epreteridas da História do Brasil, como se tivessem deixado de existir realmentee, até hoje o índio não passa de elemento simbólico para grande parte da popu-lação e isto é um indicativo de que a escola não está fazendo direito o seutrabalho. Quando trata da temática indígena, o faz pontualmente e, quase sem-pre, no passado.

Ainda que a Constituição de 1988 tenha assegurado a todos os brasileirosos mesmos direitos de cidadania, os indígenas que vivem em território brasilei-ro, não têm recebido o mesmo tratamento de cidadãos brasileiros e, o maisgrave, às vezes, não são vistos como brasileiros pela sociedade envolvente. Sa-bemos que além de terem os mesmos direitos de cidadania que qualquer pes-soa nascida no país, por serem considerados nativos (direitos originários) possu-em mais alguns direitos específicos (terras que tradicionalmente ocupam, lín-gua, práticas culturais, educação específica e diferenciada, entre outras), con-forme o artigo 131 da CF de 1988.

Em Mato Grosso do Sul, segundo estado do Brasil em população indígena,pesquisa recente realizada por Vieira (2008)2 em escolas da capital, Campo Gran-de, com alunos do Ensino Fundamental, do 6º ao 9° ano, com o objetivo deverificar como os índios são representados (em produções textuais e em dese-nhos), revelou que o que prevalece, ainda, no imaginário popular é umaconceituação fragmentada e descontínua, fortemente marcada pela visão este-reotipada, com tendência ao preconceito e à discriminação.

2 Para conhecer melhor a dissertação de Vieira, Carlos M. N. (2008), ver Bibliografia e visitar o sitewww.antropologiaufms.org.com

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COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS98

Se a normatização da LDB (Lei nº 9394/96), acima mencionada, tivessesido colocada em prática, as escolas teriam avançado alguns passos para atingirum dos importantes objetivos da educação que é a equidade. Uma pesquisamais aprofundada certamente irá mostrar que nesses 14 anos pequenos avançossão pontuais. No geral, não se teve avanço, como constatou Vieira (2008) eoutros estudos que serão citados no decorrer deste texto.

A escola continua gerando mais exclusão do que interação, porque aindanão encontrou ou não compreendeu muito bem os mecanismos e instrumentosque levam a uma educação intercultural. A simplificação de questões muito com-plexas como é o caso das relações étnico-raciais pode ter efeito mais desastrosodo que o silêncio, isto é, ignorar a situação. Achar que o respeito e a tolerânciasão atitudes suficientes quando se trata de relações interétnicas é um lamentávelengano, porque quem tolera, em geral, assume uma posição de superioridade epreconceito com relação ao outro.

Doudou Diène, cientista político senegalês, relator especial da Organiza-ção das Nações Unidas (ONU), em visita ao Brasil no ano de 2005, expressou,em algumas entrevistas, as suas impressões sobre o racismo em nosso país:

No Brasil o racismo tem uma grande profundidade histórica, onde ele se

inscreve no próprio tecido da sociedade brasileira, e não apenas nas estru-turas sociais e econômicas, mas nas mentalidades, nos subconscientes, na

sensibilidade, na perspectiva cultural que as pessoas têm para olhar uma

outra comunidade. (DOUDOU, Entrevista Jornal A Tarde 29/10/2005)

Em outro trecho da entrevista, Doudou sugere

O sistema educacional e os meios de comunicação do Brasil precisampossibilitar que o Brasil se reconheça, colocando no centro desses sistemas

a desconstrução da profundidade da história do racismo e da discrimina-

ção. Isto é, tomar consciência de que o racismo não cai do céu, ou docosmos, mas que, sim, provém de uma estrutura social e política de condi-

ções históricas muito precisas. (DOUDOU, Entrevista Jornal A Tarde 29/

10/2005)

Como se vê, o problema é muito mais complexo e de profundidadehistórica. Não é um exercício de tolerância que irá resolver. É preciso que asações da escola tenham a mesma dimensão da questão que se precisa resol-ver. Para acabar com o preconceito e desconstruir os estereótipos com rela-ção às sociedades indígenas, é preciso começar estudando sobre essas soci-edades, a cultura, as tradições, a história passada e a história atual, as mistu-ras étnicas e outras relações. Dessa forma, o que parecia estranho passa aparecer normal, próximo, familiar. É um exercício de longo prazo, umaedificação ética.

A escola tem falhado no quesito equidade, pois ainda não consegue terclareza sobre a pluralidade cultural, sobre as diferentes identidades do seu cor-po discente. O “aqui todo mundo é igual” continua sendo a bandeira que sedesfralda no dia a dia, sem que se tenha a preocupação de discutir e refletirsobre as implicações dessa suposta “igualdade”. Dessa forma, as culturas locais

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são ignoradas, silenciadas, excluídas, o que reforça e perpetua o padrãohomogeneizador que está arraigado no inconsciente coletivo.

Admite-se a dinâmica da evolução cultural em muitas coisas, e o ladoprático da reformulação cultural na assimilação de valores exógenos es-

clarece: “Quando se afirma que os grupos isolados ‘conservam’ sua iden-

tidade sociocultural entende-se que eles mantêm atuantes mecanismoscognitivos e organizacionais através dos quais são capazes de interpretar e

de se adaptar às situações das mais diversas e constantemente renovadas. A

história vem remodelando permanentemente suas especificidades cultu-rais… a cultura não é nada mais que uma dinâmica em constante

reelaboração (GRUPIONI, 1992).

Preconceito e discriminação são comportamentos negativos que geram vi-olência no espaço escolar e na vida das pessoas. Essas atitudes são aprendidas,construídas no dia a dia das crianças e jovens, no convívio familiar, com seugrupo social e precisam ser combatidas didaticamente. Para isso, o professorprecisa assumir atitudes pedagógicas de respeito às alteridades, na relação comos alunos, na exposição dos conteúdos e, principalmente nas avaliações.Metodologias aleatórias e equivocadas podem levar ao agravamento da situaçãode embate cultural que gera desconforto, indisciplina, sentimento de rejeição epode resultar no silenciamento das crianças e adolescentes por pertencerem asociedades étnicas diferentes dos padrões definidos como válidos na escola. Si-tuação bastante comum em escolas públicas onde a pluralidade étnico-racial émais acentuada.

6.3 Aplicação da Lei 11.645/2008Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor da sua pele, por sua origemou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender e, se

podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar. (NELSON

MANDELA)

A aplicação da Lei 11.645/2008 é mais uma questão de atitude do quede conteúdo curricular. De qualquer forma, é um grande desafio para a mai-oria das escolas. Para cumpri-la, a primeira condição é a atitude, porque aescola como um todo que precisa abrir-se para uma perspectiva maisintercultural, menos homogeneizadora. O currículo, as diretrizes curriculares,o projeto político pedagógico, as metodologias e a avaliação, enfim, a escolaprecisa (re)elaborar os mecanismos de construção das identidades nacionais,raciais, étnicas para compreender a complexidade das relações que se dãoem seu interior. Esse trabalho não é só do professor ou do gestor, nem muitomenos do professor de História. É da escola. Do gestor ao guarda que cuidado portão, todos precisam ter conhecimento da diversidade étnico-racial ecultural que compõe a complexidade do ambiente escolar, para que todostenham atitude de reconhecimento das alteridades, de compreensão e valo-rização do outro, para que todos possam (com)viver e aprender “com”, enão “apesar de”.

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COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS100

Os primeiros conhecimentos e as primeiras imagens que se adquire sobreos indígenas brasileiros são construídos, em geral, na escola. Para a maioria daspessoas, o único lugar e veículo de contato com esse assunto. É nesse espaçopedagógico de produção e transmissão de cultura que as informações sobre asdiferentes culturas vão sendo processadas e depositadas na rede de conheci-mentos que, certamente serão evidenciados no comportamento social dos alu-nos.

Esse processo de humanização do ser humano tem início quando ele co-meça a se relacionar com o outro. E é na escola, que pela primeira vez os hori-zontes se abrem, que se começa a aprender a ouvir as vozes diferentes, quevêm de culturas diferentes. Por isso, consideramos a escola espaço estratégicopara inserir o tema da alteridade, da prática da interculturalidade, na tentativade ampliar horizontes e favorecer a convivência respeitosa entre os diferentes.

O trabalho didático do professor com o tema, pensado como ponto deconfluência e de interação etnocultural, ainda é uma realidade muito pontual eescassa. Faltam investimentos em capacitações (atualização), discussões eaprofundamento sobre a questão. Faltam materiais pedagógicos mais adequa-dos, ou seja, faltam textos didáticos para subsidiar o trabalho do professor e paraa ampliação de estudos do aluno.

Apesar de fazer o possível para cumprir as determinações vindas de instân-cias superiores, como é o caso das leis aqui em discussão, o conjunto de inicia-tivas e ações não parecem evidenciar sistematicidade e organicidade. Enquan-to isso, a escola continua investindo esforços para construir mecanismos e instru-mento de controle, de apaziguamento social, o que não implica em mudançasnas relações, que deveriam acontecer por respeito às diferenças. E ainda susci-tar questionamentos sobre preconceitos, discriminações, desrespeito aos direi-tos humanos e mudanças nas hierarquias.

Um dos grandes e graves problemas que tornam o processo educativoemblemático e difuso, é que as determinações, as leis e diretrizes passam porinstâncias diversas e chegam à escola (aos professores) muitas vezes de formanão muito clara, porque são interpretações em terceira ou quarta instâncias,manuais ou orientações escritas em textos muito complicados, o que dificulta asua aplicabilidade. Não é raro encontrar esses materiais intactos em gavetas, embibliotecas escolares, por falta de uma melhor forma de apresentação, de orien-tação e, por que não dizer, de cobrança do que se espera que se cumpra.

Em geral, a cobrança não é feita, exatamente porque a forma de apresenta-ção dessas diretrizes é falha, no que diz respeito ao professor que está lá na salade aula, no dia-a-dia do fazer pedagógico.

Um estado como Mato Grosso do Sul, com sua população indígena calcula-da em torno de 70 mil pessoas, com expressiva presença de indígenas nos cen-tros urbanos e, em conseqüência, nas escolas, já deveria ter envidado esforços eproporcionado encontros para estudos, discussões com os segmentos mais en-

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volvidos, como Secretarias de Educação e de Cultura, universidades, escolas eorganizações para elaborar o plano de aplicação da Lei 11. 645.

É urgente a formação de grupos de estudos, em que a participação de profes-sores de sala de aula seja facilitada; para que os diálogos regionais trabalhem nadireção de uma proposta participativa, ampliando os conhecimentos destes povos.

Se há alguma escola cumprindo com a determinação da Lei 11.645, osefeitos ainda não são sentidos. Faltam pesquisas e não há um plano de metascom instrumentos de avaliação para se verificar possíveis resultados.

É na escola que grande parte dos brasileiros recebe alguma informaçãosobre os índios. Pouco se sabe sobre os índios no país. Os conhecimentos que setêm são os aprendidos na escola, através dos livros didáticos e os que são veicu-lados nas mídias, principalmente na televisão. Todos bastante questionáveis, ain-da hoje, com algumas poucas exceções, responsáveis pela manutenção e per-petuação de estereótipos e, ainda, discriminação e preconceito. A escola é, emessência, um espaço pedagógico onde se realiza o processo de educação que éuma das instâncias formadoras de cidadania.

Para tratar da história e da cultura dos índios brasileiros na sala de aula, oprofessor precisa se auto-analisar quanto a seus conhecimentos sobre as ques-tões indígenas e sobre os índios; principalmente, que imagem ele tem do índio.E, ainda, como tem se colocado nas discussões sobre as diferenças étnico-cultu-rais, que atitudes tomar quando percebe comportamento discriminatório epreconceituoso entre seus alunos, considerando que, no estado de Mato Grossodo Sul, é comum a presença de alunos indígenas nas escolas, pois a migração defamílias das aldeias para as cidades, em busca de trabalho, é bastante acentuada.Depois da auto-análise, o professor precisa informar-se sobre os estudos, as pes-quisas e as produções científicas que estão circulando nos espaços pedagógicos.

Uma das discussões, no campo da antropologia, tem prestado grande con-tribuição para o trabalho escolar. Tanto do ponto de vista teórico quanto deproposta pedagógica, as discussões sobre multiculturalismo e interculturalidadetêm iluminado muitos trabalhos. É o que será comentado a seguir.

6.4 Multiculturalismo einterculturalidade

O desafio de romper com a perspectiva homogeneizadora e acabar coma padronização na educação brasileira, principalmente no sentido de se estabe-lecer a equidade, o diálogo mais equilibrado no complexo cultural que com-põem o ambiente escolar uma discussão tem sido recorrente: educação multiou intercultural?

O multiculturalismo surgiu como uma idéia no final do século XIX e passoua um movimento no século XX, nos Estados Unidos da América, com adesão deestudiosos como George W. Williams, Carter G. Woodson, W. E. B. DuBois e

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Charles H. Wesley, segundo Banks (2006). Esse movimento ressurgiu mais tarde,no momento em que se intensificaram as manifestações das minorias, principal-mente a pressão dos afro-americanos pelos direitos civis, nos anos 1960 e 1970.As discussões ganharam impulso quando foram assumidas por estudiosos, nasacademias, e a educação multicultural se efetivou com a inclusão, nos currículosdas escolas e das universidades, de conteúdos referentes à história, à cultura, àvida dos negros estadunidenses. Como se vê, o multiculturalismo tem origemem movimentos de luta pela cidadania dos negros, ampliou-se ao encamparoutras minorias culturais e se estendeu por outros países. O objetivo primeirodo multiculturalismo era mudar a imagem negativa que a maioria “branca” tinhados afro-americanos. Era preciso mudar as crenças equivocadas e acabar com osestereótipos que dominavam no senso comum. Era preciso construir uma histó-ria positiva de valorização dos negros na história dos Estados Unidos, para que asociedade afrodescendente pudesse se considerar realmente liberta das amar-ras do preconceito. Esse movimento gerou muitos debates e muitas discussõesque motivaram a criação de associações, linhas de pesquisa sobre a história e acultura dos negros, nasceram revistas científicas para publicação de resultadosdas pesquisas, produziram-se livros de história, literatura e didáticos.

Todo esse trabalho já dura mais de um século e os problemas relativos aodiálogo multicultural continuam atuais e um desafio para as políticas, as acade-mias, as escolas e a sociedade em geral. Os países com problemas sociais maisou menos parecidos importaram a ideia e a estão adaptando às suas realidades.Este é o caso do Brasil.

O mundo, hoje, tem assumido uma aparência múltipla, em que as socieda-des são mostradas multiculturais, sendo desafiadas a desenvolver capacidades emecanismos de convivência com os diferentes. Esse processo, longe de ser pací-fico, tem sido marcado por sérios conflitos e até guerras. Em alguns casos, emque os conflitos são silenciosos, e camuflados em forma de preconceito e discri-minação velados, o processo é extremamente doloroso para as minorias, quesão os seguimentos sociais mais frágeis econômica, política e às vezes, tambémnumericamente. E, como é de situações limites que nascem as ideias para apacificação e o entendimento entre as partes, surgiram os movimentos sociaisque clamavam pela admissão de uma sociedade multicultural. Esses movimentosdespontaram nos Estados Unidos e logo foram se espalhando por outros países,com diferentes feições, mas com propósitos bem parecidos, de se discutir oetnocentrismo e a construção de uma sociedade mais equitativa. Não demoroupara que essas discussões adentrassem os espaços escolares e assumissem cará-ter pedagógico. Por ser a escola um lugar de encontro e confronto de muitasculturas, a proposta de uma educação multicultural tem sido o grande desafio daescola atualmente.

Educação multicultural é uma abordagem de educação que transforma, quequestiona criticamente e desvela as desigualdades sociais, as práticasdiscriminadoras, o fracasso dos silenciados na escola, afirma Banks,

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103CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo IV

O multiculturalismo, desde sua origem, aparece como princípio ético quetem orientado a ação de grupos culturalmente dominados, aos quais foi

negado o direito de preservarem suas características culturais. Esta é, por-

tanto, uma das condições que favoreceu a emergência de movimentosmulticulturalistas. No início, esses expressavam, exclusivamente a reivindi-

cação de grupos étnicos. A partir da segunda metade de nosso século

abarcam um universo cultural mais amplo. Contam com a aliança deoutros grupos culturalmente dominados e, juntos, reagem por meio de

suas organizações políticas, para serem reconhecidos e respeitados quanto

aos seus direitos civis (GONÇALVES, 2002, p. 20).

Segundo Fedyunina e Slepukhin (2008), a educação multicultural é funda-mentada em princípios teóricos do humanismo, de ensinamento crítico. Temcomo proposta a reforma educacional, no sentido de criar oportunidades iguaispara todos os estudantes.

O termo multiculturalismo pode ser entendido como relativo a muitas cultu-ras, o encontro de várias culturas em um mesmo espaço, como a cultura indígena,a cultura negra, a cultura européia, as culturas dos imigrantes estrangeiros, culturarelativa à língua, classe social, gênero, religião, orientação sexual e outras.

Por ser uma ideia que se tornou prática social e pedagógica, o multicultu-ralismo também é alvo de muitas críticas. Alguns opositores o definem comouma idéia ingênua, que não tem sustentação teórica, outros o consideram umaestratégia perigosa, que fragmenta a vida social. Porém há os que não só aco-lhem a ideia, como também a aperfeiçoam, ampliam e flexibilizam, como é ocaso, no Brasil, de estudiosos como Gonçalves e Silva (2006), Candau (2002,2008), Fleuri (2000).

Candau (2008) apresenta as várias concepções do multiculturalismo e tam-bém as perspectivas mais desenvolvidas e que deram origem a várias propostas.A autora afirma situar-se na “perspectiva que propõe um multiculturalismo aber-to e interativo, que acentua a interculturalidade, por considerá-la a mais ade-quada para a construção de sociedades democráticas e inclusivas, que articulempolíticas de igualdade com políticas de identidade” (CANDAU, 2008, p. 51).Segundo essa autora, a perspectiva intercultural promove a inter-relação entregrupos sociais diferentes que pertencem a uma mesma sociedade, valorizandoas particularidades de cada cultura, além de considerar que as culturas estãosempre em processo de elaboração, construção e reconstrução e, ainda, que asculturas não são puras, elas hibridizam-se, tornando as identidades abertas. Sãode Candau e Koff (2006) as afirmações que seguem:

A interculturalidade orienta processos que têm por base o reconheci-mento do direito à diferença e a luta contra todas as formas de discrimi-

nação e desigualdade social. Tenta promover relações dialógicas e igua-

litárias entre pessoas e grupos que pertencem a universos culturais dife-rentes, trabalhando os conflitos inerentes a esta realidade. Não ignora as

relações de poder presentes nas relações sociais e interpessoais. Reco-

nhece e assume os conflitos procurando as estratégias mais adequadaspara enfrentá-los. (...)

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COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS104

Educar na perspectiva intercultural implica, portanto, uma clara e objetivaintenção de promover o diálogo e a troca entre diferentes grupos, cuja

identidade cultural e dos indivíduos que os constituem são abertas e estão

em permanente movimento de construção, decorrente dos intensos pro-cessos de hibridização cultural. (CANDAU & KOFF, 2006, 475).

Para Banks (2006), pesquisador, estudioso e autor de livros e artigos sobreeducação multicultural, todas as salas de aula são multiculturais e é preciso desve-lar as diferenças que há nelas. Se um professor pretende promover um ensinomulticultural, ele precisa começar pelo seu auto-conhecimento. Banks (2006) afir-ma que alguns problemas ainda precisam ser revistos na educação multicultural.Um desses problemas é a tendência à simplificação do conceito de educaçãomulticultural, que acontece no interior da escola, onde não se aprofundam osestudos e as discussões para se ter uma compreensão mais ampliada e sistematiza-da da questão, e, fora da escola, em instâncias superiores, os responsáveis pelaspolíticas públicas, de onde partem decisões, propostas e financiamentos, tambéma compreensão muitas vezes é superficial. O autor alerta para o carátermultidimensional e complexo do significado de educação multicultural.

Fleuri (2000), que também postula uma educação intercultural, afirma que

A relação intercultural indica uma situação em que pessoas de culturasdiferentes interagem, ou uma atividade que requer tal interação. A ênfase

na relação intencional entre sujeitos de diferentes culturas constitui o traço

característico da relação intercultural. O que pressupõe opções e açõesdeliberadas, particularmente no campo da educação. (p.75)

O propósito maior da educação intercultural, segundo Gonçalves e Silva(2000) é inserir nos sistemas educacionais

A filosofia do pluralismo cultural, ao reconhecer e valorizar a importânciada diversidade étnica e cultural, na configuração de estilos de vida, expe-

riências sociais, identidades pessoais e oportunidades educacionais aces-

síveis a pessoas, grupos, nações. (GONÇALVES & SILVA, 2000, p. 55)

Apesar de a Constituição Brasileira (CF/1988), a LDB/1996, os ParâmetrosCurriculares Nacionais (PCN/1998) e a Lei 11.645/2008 representarem um avan-ço para a inclusão das sociedades indígenas na educação formal e, a educaçãoformal, entre outros objetivos, forma para o exercício da cidadania, os indígenasnão têm conseguido exercitar esse direito.

O que ocorre hoje, é que os povos indígenas constituem sociedades fecha-das, produzindo para si mesmas, com pouca circulação de materiais. O que éproduzido nas escolas indígenas, por exemplo, raramente ultrapassa os limitesda aldeia, pois são materiais na própria língua. A sociedade envolvente não en-xerga ou ignora o que o índio produz, não participa e não usufrui dessa impor-tante e rica produção, como se ela não fizesse parte de toda a produção quecompõe o grande mosaico pluricultural de nosso vasto país.

Pode-se dizer, por outro lado, que muitas vezes, as sociedades indígenasnão participam dos bens culturais produzidos pela sociedade envolvente, como

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se não fizesse parte dela. Alguns povos indígenas têm acesso à produção culturalda sociedade envolvente. Mas, são poucos, apenas os que vivem nos grandescentros urbanos ou próximos a eles e, os que individualmente conseguem avan-çar no processo educacional, chegando à universidade.

Essa segregação é que chamamos discriminação, uma forma de violênciasimbólica, muitas vezes gerada pela ignorância, isto é, o não reconhecimentode que as sociedades indígenas e as sociedades envolventes constituem um sópovo: o povo brasileiro.

Em uma educação multicultural, todas as crianças, além de sua própriacultura, devem estudar sobre a cultura das outras crianças que compõem o ce-nário cultural do seu meio, da sua escola, da sua cidade, do seu estado, da suaregião etc. Assim, em Mato Grosso do Sul, crianças não-indígenas deveriamestudar sobre a história passada e o presente de crianças índias, crianças negras,crianças japonesas, crianças paraguaias, crianças bolivianas. Crianças negrasdeveriam estudar sobre a história passada e presente de crianças brancas, índiasetc., conforme está proposto nos PCNs (1998) de estudos sociais.

6.5 Índios, esses nossosdesconhecidos irmãos brasileiros

A questão da diversidade cultural étnica deve ser, em uma primeira fase,muito bem trabalhada com os professores, pois há riscos em se tratar do temaquando não se tem profundo conhecimento do conteúdo. Um dos riscos é trataras diferenças étnicas como divisão, compartimentalização da sociedade, o queseria muito ruim e até desastroso.

Pesquisas de mestrado e doutorado têm mostrado que ainda hoje os alunosrevelam um conhecimento confuso sobre os índios e, por isso, constroem ouassimilam idéias equivocadas, preconceituosas e discriminadoras sobre eles, comoa idéia de índio genérico, uma visão etnocêntrica em que todos os índios sãoiguais, falam a mesma língua tupi-guarani, cultuam o deus tupã, vivem na mata,em ocas e tabas, andam nus, usam cocares de penas, caçam com arco e flecha.Essa visão de índio genérico torna invisíveis construções simbólicas de riquezasúnicas, de produções artísticas singulares e de conhecimentos da flora e da faunaque cada sociedade indígena vem cultivando há séculos.

As sociedades indígenas diferem-se umas das outras. Possuem diferenteshabitat, têm histórias diferentes de resistência, de sobrevivência, de vida, decontato. Possuem diferentes orientações lógicas e têm maneiras distintas de in-terpretar e explicar o mundo, o cosmos. Cada sociedade indígena fala uma lín-gua ou uma variação de língua à qual é filiada3.

3 Para saber mais sobre as línguas indígenas, consultar pesquisadores como Aryon Rodrigues,Lucy Seki, Bruna Franchetto, Angel Corbera, Filomena Sandalo entre outros.

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No mundo contemporâneo as sociedades não são mais constituídas de su-jeitos unificados. Segundo Hall (2006), os sujeitos manifestam diferentes identi-dades em diferentes momentos, porque os sistemas de significação e de repre-sentação cultural não são unificados e estão sempre se multiplicando. As socie-dades indígenas hoje não são mais como eram há quinhentos anos atrás. Osjovens índios, em parte das aldeias, estudam, usam computador, celular, têm e-mail, ouvem músicas em aparelhos eletrônicos de última geração, muitas jovenspintam o cabelo, as unhas, usam sapatos de salto. É importante que os professo-res estejam bem informados sobre a história atual dos índios. É preciso saberque nas escolas das aldeias, todos ou a maioria dos professores são índios daprópria aldeia. Há muitos índios formados nas universidades. É crescente o nú-mero de índios que já fizeram e estão fazendo mestrado e doutorado. Há mui-tos índios nas cidades e, consequentemente, muitas crianças índias nas escolasurbanas.

Na educação ideal multi ou intercultural, os princípios democráticos sãoaplicados com vistas a tornar a escola uma instituição transformadora, em queentre outros objetivos, investe na formação do cidadão, para que ele seja cons-ciente do seu papel na escola, na família, na sociedade e no mundo, e quesaiba atuar com inteligência, respeito e humanidade. Conhecer as sociedadesíndias é um primeiro e importantíssimo passo para se romper os nós do pre-conceito, que é uma das causas de violência social. Não pode se considerartransformadora uma escola que não se empenha no cumprimento rigorosodos direitos humanos.

Segundo Gasparin e Vicentine (2008, p.11)

A constituição do povo brasileiro resulta da interação e da miscigenação

de diferentes grupos étnicos. Essa idéia é sempre atribuída a um valorpositivo, ou seja, a miscigenação é entendida como aquilo que há de

melhor no Brasil. No entanto, esse mesmo discurso sobre a miscigenação,

não garante uma democracia racial no país, permitindo-nos, muitas vezes,compreender o Brasil como se fosse subdividido em vários brasis. Então,

esse Brasil que ao mesmo tempo é composto por esses múltiplos povos:

negros-brasis, italianos-brasis, alemães-brasis, japoneses-brasis, índios-brasis,é o mesmo Brasil que ainda mantém uma única raça como a hegemônica

e que ainda engatinha no processo de verdadeiros encontros culturais.

6.6 Considerações FinaisO crescimento demográfico da população indígena neste início do século

XXI é um fenômeno novo e digno de comemoração. Os índios usaram a própriacultura como meio de sobrevivência e mecanismo de projeção de si para ooutro. Acreditando em sua própria força, utilizando técnicas de sobrevivência ede convivência muito mais eficientes do que as que a sociedade envolventeutiliza, o índio sobreviveu, fez sua própria história, aprendeu o caminho dacidade, da escola, da universidade. Suas conquistas parecem tímidas aos olhos

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do não-índio. Porém, se analisarmos os avanços de muitos povos indígenas den-tro do seu contexto histórico, que entre outras coisas, foram qualificados comoincapazes, deixados à mercê de sua própria sorte pelas políticas excludentes,silenciados com a dor do preconceito e da discriminação, roubados daquilo quelhes é mais sagrado: a terra. Suas conquistas foram tímidas, mas muito significa-tivas. Tudo isso mostra que ainda temos muito a aprender com esses nossos ir-mãos: os índios brasileiros.

As mudanças propostas pela LDB (Lei nº 9394/96) e até mesmo a Lei em si,resultam de movimentos de defensores dessas minorias silenciadas. Porém, nãose pode deixar de enfatizar que, a participação de lideranças indígenas em taismovimentos, em atitudes de grande coragem e determinação, tem sido funda-mental para que a reabertura desse livro de história esteja acontecendo e que aspáginas em branco estejam começando a receber os registros escritos sobre epor esses brasileiros que, lutando contra todos os tipos de violência velada, etambém explícita, em forma de cerceamento de direitos, teimaram, teimam eainda teimarão por muito tempo em SER ÍNDIOS.

Para aplicar a Lei 11.645/2008 a escola como um todo e, principalmente osprofessores de todas as áreas e todos os níveis precisam estudar, buscar informa-ções que os levem a conhecer melhor os índios, sua cultura, sua história passadae atual. Só o conhecimento amplo poderá ajudar na desconstrução dos estereó-tipos, na mudança de atitude que colocará fim à discriminação e ao preconcei-to. Não há teoria ou metodologia didática que substitua esse primeiro grande,largo passo. Insistir em abordar o tema sem esse passo poderá ser muito pior doque ignorá-lo.

Existe uma bibliografia considerável sobre os índios brasileiros. Existem emvários sites informações sérias, importantes que ajudarão na aquisição do co-nhecimento.

Minha sugestão é que a escola elabore um programa, projeto ou plano deação pedagógica, com um cronograma inteligente, envolvendo todos os educa-dores (professores, gestores, técnicos, coordenadores) para estudar, discutir edecidir sobre a aplicação da lei. Nessas sessões de estudos, além de bons textos,poderão ser vistos documentários e filmes sobre os índios brasileiros, conformedicas que seguem.

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Terra Vermelha - filme dirigido pelocineasta chileno Marco Bechis. Uma co-produção Brasil-Itália.

A sociedade indígena Guarani-Kaiowá de MS vive tentando resgatar suasorigens. O impulso de suicídio é latente. O conflito secular pela disputa deterras com os fazendeiros da região impera, quando um encontro entre umjovem índio e a filha de um fazendeiro deixa aflorar as similaridades daespécie humana e ao mesmo tempo revela por novos ângulos o desentendi-mento entre as civilizações.

Brava gente brasileira– Filme brasileiro dirigido por Lúcia Murat (2000).

O filme fala do choque entre duas culturas: índio e colonizador, num encon-tro-desencontro que se passa no ano de 1778, na região do Pantanal. Essecontato deixa marcas profundas e definitivas. De um lado, o português colo-nizador, deslumbrado e atormentado pela visão do Novo Mundo. De outro,o povo indígena, que não se deu por vencido, mesmo após ver suas terrasserem invadidas e suas tribos quase dizimadas. Uma história de luta, de guerrae de algumas conquistas. O filme trata da dificuldade de lidar com as dife-renças e, sobretudo, da força e da fragilidade desta que chamamos de con-dição humana. Há a participação de 40 índios Kadiwéu.

Índio no Brasil

Série da TV Escola, Secretaria de Educação à distância (MEC), sob a direçãodo renomado documentarista Vincent Carelli, criador da Ong “Vídeo nasAldeias”. São dez vídeos documentários que podem ser vistos no site daTVEscola, on-line, em domínio público.

• Quem são eles• Nossas línguas• Boa viagem, Ibantu• Quando Deus visita a aldeia• Uma outra história• Primeiros contatos• Nossas terras• Filhos da terra• Do outro lado do céu• Nossos direitos

Vídeos e documentários sobre os povos indígenas

Sabedoria dos pajés, conhecimento de plantas, rituais etc. Produção da TVCultura www.culturamarcas.com.br

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“Vídeo nas Aldeias” - www.videonasaldeias.org.br/

Projeto criado pelo documentarista Vincent Carelli, que possui um acervode documentários produzidos pela equipe de formadores do projeto e pelosrealizadores indígenas. Os documentários mostram rituais; encontros entreos povos; oficinas de capacitação entre outros. Há documentários produzi-dos para a TV Educativa, em que os índios são personagens, co-realizadorese apresentadores. Há documentários sobre conflitos na Amazônia e experi-ências de desenvolvimento sustentável em áreas indígenas. Também hádocumentários realizadas para TV Escola do Ministério da Educação, quetraçam um painel da realidade indígena para estudantes do ensino funda-mental.

NA INTERNEThttp://www.redepovosdafloresta.org.br/deupal?q=taxonomy/term44www.ideti.org.brhttp://www.educarede.org.brwww.socioambiental.org.brhttp://www.danielmunduruku.com.br/http://www.grumin.org.br/

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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