cultura nas redes cibernéticas

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1 Cultura nas redes cibernéticas Giovanna Martins Quanto mais os telescópios forem aperfeiçoados, mais estrelas surgirão. Gustave Flaubert Quinta-feira, 4 de outubro Há mais filosofia em uma garrafa de vinho que em todos os livros - Pasteur 19h19 : No momento em que nos deixamos ontem, eu previa passar o resto da noite de pijama a ver televisão e a tomar chá. Há duas semanas que eu estava incubando uma boa gripe e foi ontem que ela me derrubou. Eu estava então preparado, ao bater as 18h00, para passar uma noite das mais relaxadas. Meus filmes estavam prontos para serem vistos, meu chá e meus cobertores ocupavam o lugar de honra junto aos travesseiros da minha cama. Mas todo esse universo desmoronou quando, às 18h30, eu recebi um chamado: “Olá Hinko, é XYZ do Grand Blond com o Show Sournois, preciso que você me envie um (consistente) dossiê sobre o artista X antes de meia-noite de hoje. Tenho um encontro na primeira hora de amanhã e é primordial” 1 . As páginas do diário íntimo de Hinko não são escritas sobre um caderno de belas folhas, nem ficam guardadas e escondidas numa gaveta a sete chaves. Elas estão no écran do meu computador e podem ser acessadas cada vez que minha curiosidade me faz clicar o mouse na rede dial-up. Chego a ele através do ciberespaço e de um endereço na web. Como num passe de mágica sua vida privada está lá diante dos meus olhos, em quasi-direct, anônima num site da Internet, mais um entre os incontáveis ciberdiaristas que 1 Hinko GNITO - Chroniques d´un inconnu, 2001.

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autobiografia e diarios intimos nas redes cibernéticas

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Page 1: Cultura nas redes cibernéticas

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Cultura nas redes cibernéticas

Giovanna Martins

Quanto mais os telescópios forem aperfeiçoados, mais estrelas surgirão.

Gustave Flaubert

Quinta-feira, 4 de outubro

Há mais filosofia em uma garrafa de vinho que em todos os livros -

Pasteur

19h19 : No momento em que nos deixamos ontem, eu previa passar o

resto da noite de pijama a ver televisão e a tomar chá. Há duas semanas

que eu estava incubando uma boa gripe e foi ontem que ela me

derrubou. Eu estava então preparado, ao bater as 18h00, para passar

uma noite das mais relaxadas. Meus filmes estavam prontos para serem

vistos, meu chá e meus cobertores ocupavam o lugar de honra junto aos

travesseiros da minha cama. Mas todo esse universo desmoronou

quando, às 18h30, eu recebi um chamado: “Olá Hinko, é XYZ do Grand

Blond com o Show Sournois, preciso que você me envie um

(consistente) dossiê sobre o artista X antes de meia-noite de hoje. Tenho

um encontro na primeira hora de amanhã e é primordial” 1.

As páginas do diário íntimo de Hinko não são escritas

sobre um caderno de belas folhas, nem ficam guardadas e

escondidas numa gaveta a sete chaves. Elas estão no écran do

meu computador e podem ser acessadas cada vez que minha

curiosidade me faz clicar o mouse na rede dial-up.

Chego a ele através do ciberespaço e de um endereço na

web. Como num passe de mágica sua vida privada está lá diante

dos meus olhos, em quasi-direct, anônima num site da

Internet, mais um entre os incontáveis ciberdiaristas que

1 Hinko GNITO - Chroniques d´un inconnu, 2001.

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fazem da prática de escrever diários íntimos on-line, uma

forma contemporânea de partilhar seus desejos, seus segredos

e suas experiências.

O diário de Hinko, como tantos outros, tem um título e

uma introdução na qual ele conta de onde veio e o que faz,

fala de seus projetos, confessa antigos sonhos, descreve seu

dia-a-dia. A narrativa pretende ser um retrato daquele que

está por trás do teclado. Muitos recursos visuais são

utilizados e se associam ao texto para tornar mais atraente a

leitura e envolver o espectador na trama que se constrói.

Na página principal, fotografias mostram parte de seu

rosto, em outra página uma xícara de café fumegante é

colocada como um objeto do seu cotidiano, letras coloridas e

a escolha de uma grafia dão um sentido pessoal ao conjunto e

forma uma homogênea unidade narrativa. Esse diário guarda as

mesmas características formais dos antigos diários, como

datas, horários, etc. Em seus arquivos, dentro do diário-

site, o leitor tem acesso a cada dia descrito. Tudo é

metodicamente organizado.

Há também um Livro de Ouro, pelo qual o leitor tem

acesso à comunicação com o autor. É um link direto com

direito a resposta. O de Hinko recebe mensagens de pessoas de

diferentes lugares do mundo que compartilham de sua vida por

meio de suas narrativas.

O diário íntimo é uma página que registra, dia após

dia, aquilo que pensa, sente e vive seu autor. Ele é o

movimento da vida, uma autobiografia escrita sem a intenção

de um final, constituída de fragmentos de idéias e palavras.

Ao contrário do livro de memórias que reconstitui o passado

de forma ordenada, o diário vive do presente, da falta de

domínio sobre o tempo. Ele não pretende ser um romance e é

escrito de forma simples, redundante, descontínua.

O que determina o início e o fim de um diário?

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Geralmente, as primeiras páginas de um diário falam dos

motivos que levaram seu autor a começar a escrever. Desejos,

sonhos, registro de épocas felizes, frustrações, são inúmeras

as razões que determinam o nascimento dessa escrita.

O final implica em alguma forma de morte, seja a morte

de seu autor ou seja quando se toma a decisão de não mais

escrever: aqui onde cessa a escrita cessa também a vida.

Ao se escrever um diário íntimo, pretende-se que ele

seja lido, seja por alguém que o encontra ao acaso escondido

em alguma parte, guardado como um segredo, ou seja num site

no ciberespaço, onde se pretende o anonimato. Isso parece

paradoxal, pois a própria denominação “íntimo” como algo que

atua ou se passa no nosso interior, nos leva a pensar que

qualquer forma de exposição anularia, por princípio, a

possibilidade de algum traço de intimidade.

A prática do diário passa por inúmeras transformações a

partir do século XIX. Do domínio interditado da intimidade,

para o da escrita e depois para o da publicação, o texto

fechado, protegido contra o olhar indiscreto do outro e

reservado a releitura do próprio autor transforma-se em

texto aberto, escrito para ser publicado.

Sem a participação do leitor, talvez os diários íntimos

estivessem destinados ao esquecimento, guardados no fundo dos

sótãos.

Olha eu aqui hoje, eu que sempre sonhei ter minha própria crônica em

um diário ou em outro lugar, para fazer como Pierre Foglia e Franco

Nuovo, contar minha vida a desconhecidos, levar minha contribuição ao

mundo da edição e talvez, também, a vida das pessoas. Se o que

escrevo puder diverti-los, melhor!

Como eu já disse antes, não sou jornalista e nem editor e meu francês,

sem ser execrável, está longe de ser perfeito e os caminhos que eu tomei

me levaram a outros lugares, a um domínio diferente, mas ainda assim

conexo. Eu espero que esse diário chegue a vocês, de uma maneira ou

outra.

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Deixo ao leitor parcelas da minha vida. Aqui me entrego 2.

Quando procurei me informar sobre os diários íntimos

escritos no espaço virtual, duas idéias me moveram: a

primeira era saber como essa prática se desenvolve quando se

faz uso da tecnologia, a segunda, tentar perceber o que muda

a partir daí e como esses grupos se reúnem e interagem.

Partindo do meu interesse, -em certo sentido de caráter

etnográfico-, sobre questões autobiográficas e suas

manifestações no campo ampliado das artes, minha pesquisa

chegou, inevitavelmente, à Internet.

Após fazer uma busca, encontrei o site Autopacte de

Philippe Lejeune e tomei conhecimento da existência de

inúmeros outros sites, em diversos países, onde se formam

grupos de diaristas. Escolhi um deles e selecionei alguns

diários que tinham títulos sugestivos e que despertaram minha

atenção pela forma como os autores construíam as narrativas.

Decidi me tornar leitora de dois deles, durante determinado

período.

Com um dos autores, estabeleci um diálogo através de e-

mails e durante um breve tempo trocamos impressões sobre a

prática autobiográfica. Do outro autor fui somente uma

leitora das antípodas.

Essa estratégia me levou a buscar algumas informações

na tentativa de saber mais sobre o “terreno” onde acontecem

esses diários íntimos: o ciberpaço.

Descobri que esse termo foi criado pelo escritor

cyberpunk William Gibson, para definir a “alucinação

consensual” da “Matrix” de informação. Para ele o ciberespaço

é o “não-espaço” (a utopia) onde circulam informações,

formado estruturalmente pelas redes de telecomunicações e

particularmente pelas de informática 3.

2 Hinko GNITO. Chroniques d´um inconnu, 2001.

3 GIBSON, 1985. p. 64.

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Segundo John Perry Barlow, um dos fundadores da

Eletronic Frontier Foundation, o ciberespaço é o lugar em que

nos encontramos quando falamos ao telefone. O termo, já

incorporado ao nosso cotidiano, aparece nos jornais, nas

discussões sobre novas tecnologias de informação. Ele se

refere à estrutura de informação que se compõe de satélites,

rede de computadores, sistemas de telefonia e outros 4.

O ciberespaço é uma das grandes questões do século, uma

das fronteiras pelas quais a sociedade redefine as noções de

espaço e tempo, de real e ficção, de natural e artificial.

Ele é um terreno onde grande parte da humanidade transita,

onde interage e onde as ferramentas de comunicação se

diferenciam das mídias clássicas, porque aqui elas se tornam

interativas, plásticas e ganham a possibilidade de se

metamorfosearem, de se recombinarem. No ciberespaço todos têm

a possibilidade de se tornarem emissores.

O ciberespaço acolhe, assim, diversas tribos e suas

variadas manifestações,-torna-se um espaço democrático e

essencial para a comunicação e a geração de pensamento.

Manifestações culturais, debates políticos, questões

religiosas e científicas passam hoje por esse espaço ou

apropriam-se dele. Seu grande interesse reside também nas

possibilidades de sociabilidade que fornece: chats, MUDs,

newgroups, e-mails, BBS, diários íntimos. A tecnologia torna-

se uma ferramenta contra o isolamento, a separação. A rede

permite que as pessoas se conectem entre si, de forma

descentralizada, múltipla, como um rizoma.

Os ciberdiaristas, conhecidos também como blogueiros (a

palavra deriva de blog uma alteração do termo weblog: diário

on-line) formam uma tribo, em comunidades específicas dentro

da rede Internet. Os grupos de escritores virtuais são

determinados pelo idioma e reunidos em categorias, tais como:

4 Cf. LEMOS, 2001, p. 1.

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crônicas cotidianas, diários íntimos ou outras páginas

jornalísticas de caráter pessoal. Algumas comunidades impõem

regras: os sites de conteúdo racista ou discriminatório não

são tolerados; os diários devem ser atualizados uma vez por

mês e algumas convidam os escritores e leitores a participar

de forums e de encontros virtuais. Existem também comunidades

interativas, que colocam um diário on-line, não importando a

procedência do autor.

Em 19 de abril de 2000, a comunidade em que se encontra

o site de Hinko abrigava 72 diários; em 13 de março de 2001,

esse número subia para 124, chegando em 21 de outubro desse

mesmo ano a um total de 150. Segundo estatísticas recentes,

existem por volta de 800 mil páginas nos quatro sites mais

conhecidos de criação de diários íntimos. Na Weblogger do

Brasil existem 4000 ciberdiaristas on-line.

Hermano Vianna, em seu livro Galeras Cariocas, cita o

comentário de vários autores que apontam a proliferação das

comunidades virtuais como uma reação contra a decadência das

comunidades tradicionais. Esses autores retomam a antiga

idéia de que o homem é um animal social ou político e que, na

falta de comunidades na vida real, ele procura preencher o

gap construindo-as nas vizinhanças do ciberespaço 5.

Hinko opta pelo diário íntimo como uma forma de se

introduzir em uma comunidade virtual. O anonimato relativo

das relações que se estabelecem usando as redes cibernéticas

favorece a combinação entre intimidade e publicação. Quando

ele fornece seu endereço eletrônico, estabelece uma

possibilidade de diálogo com aquele que o lê. Essa prática,

mantida também por muitos ciberdiaristas, pode significar uma

mudança na escrita de diários íntimos. Cabe ressaltar que tal

procedimento não representa uma traição dos segredos daquele

que escreve, sendo antes uma forma de compartilhamento que

sintetiza diário e correspondência. Nesse sentido o

5 cf. VIANNA, 1997, pág 265.

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ciberespaço, em contínuo movimento, se configura como um

lugar possível para abrigar desejos e possibilidades.

novembro de 2001

Bibliografia:

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Critical Art Ensemble. Distúrbio eletrônico. São Paulo:

Conrad Editora do Brasil, 2001. Coleção Baderna.

GIBSON, W. Neuromancien. Paris: La Découverte, 1985.

LEJEUNE, Philippe. Autopacte.

http://worldserver.oleane.com/autopact/index.htm

LEJEUNE, Philippe. Cher écran. Paris: Ed. Du Seuil,

2000.

LEMOS, André L.M. As estruturas antropológicas do

cyberespaço. http://www.facom.ufba.br/pesq/cyber/lemos

LÉVY, Pierre. A emergência do cyberespaço e as mutações

culturais.In palestra realizada no Festival Usina de

Arte e Cultura, Porto Alegre,RS. out. 1994.

LÈVY, Pierre. L´intelligence Collective. Pour une

Anthropologie du Cyberespace. Paris: La Découverte,

1995.

LIS, Jerzy. Lecture et imitation- le journal personnel

et la problematique de la memoire culturelle (cópia

digitada s/d).

VIANNA, Hermano. Galeras Cariocas: territórios de

conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro:Ed.

UFRJ,1997.

Giovanna Martins é artista

plástica graduada pela Escola

Guignard (UEMG).