cronicas drummond

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Carta C.D.A. Às vezes o senhor me chamava para seu secretário, e isso me enchia de orgulho. Eu pequeno, o senhor tão grande — maior que um homem comum aos olhos de qualquer menino. Tudo no lugar era pequeno e doméstico, e o senhor, sim, era grande — começa que me acostumei a vê-lo montado a cavalo, no ritmo do galope ou do trote de animais tão de estimação que eram considerados joias de família, e homem montado, para o menino que mal chegava à crina do cavalo, tinha dimensão de estátua. E por outros motivos: força, trabalho, energia, até cólera, eram tudo grandezas. Então, com a pena mallat arranhando o papel, escrevendo a carta que o senhor ditava, ou redigindo-a na trilha das recomendações, eu crescia por dentro, via-me necessário participante. Mais tarde percebi que o senhor, com suas letras aprendidas menos numa semana de escola do que na largueza da vida, redigia multo melhor do que eu, e apenas queria dar-me o gosto de imaginar que lhe prestava serviço. Agora, como então, estou escrevendo carta; é para o senhor mesmo, a pedido de ninguém; eu me pedi. E dá-se isso: passado tanto tempo que não nos vemos, e tendo eu crescido o crescimento natural dos homens, é como se as peripécias desse período não se houvessem desenrolado, e me vejo aquele garoto que o achava maior que os outros homens (não era só pelo vulto alteado na sela, era ainda o tamanho especial da imagem interna). Não cresci, em comparação com o senhor. Tenho a idade que o senhor tinha quando me parecia velho — velho feito de baraúna e nervos, mas em todo caso velho. E sinto que não alcançarei nunca sua dimensão. Parou o tempo de crescer; muitos outros tempos pararam, nós mesmos estamos parados um diante do outro. Para o resto do mundo, o senhor está longe inexistente; ninguém mais o lembra, salvo três, quatro pessoas. Mas eu me sento a seu lado e observo, estudo, confiro sua identidade, seu porte; é o senhor mesmo, não mudou nada. Talvez até se mostre mais completo, como se os traços raspados, a simplificação extrema do semblante revelassem melhor a essência da pessoa, limpando-a do que é mera repetição de outras. Tudo ficou reduzido ao mínimo indestrutível, à relação calada de dois seres sem interferências de espaço e tempo. O senhor já não está a cavalo de bota e espora, não tem mais no bolso aquele relógio que marcava a hora de campear. Vejo-o distante de cuidados, de parentes, da lavoura, da tropa,

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Crônicas publicadas em 1964.

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CartaC.D.A.s vezes o senhor me chamava para seu secretrio, e isso me enchia de orgulho. Eu pequeno, o senhor to grande maior que um homem comum aos olhos de qualquer menino. Tudo no lugar era pequeno e domstico, e o senhor, sim, era grande comea que me acostumei a v-lo montado a cavalo, no ritmo do galope ou do trote de animais to de estimao que eram considerados joias de famlia, e homem montado, para o menino que mal chegava crina do cavalo, tinha dimenso de esttua. E por outros motivos: fora, trabalho, energia, at clera, eram tudo grandezas. Ento, com a pena mallat arranhando o papel, escrevendo a carta que o senhor ditava, ou redigindo-a na trilha das recomendaes, eu crescia por dentro, via-me necessrio participante. Mais tarde percebi que o senhor, com suas letras aprendidas menos numa semana de escola do que na largueza da vida, redigia multo melhor do que eu, e apenas queria dar-me o gosto de imaginar que lhe prestava servio.Agora, como ento, estou escrevendo carta; para o senhor mesmo, a pedido de ningum; eu me pedi. E d-se isso: passado tanto tempo que no nos vemos, e tendo eu crescido o crescimento natural dos homens, como se as peripcias desse perodo no se houvessem desenrolado, e me vejo aquele garoto que o achava maior que os outros homens (no era s pelo vulto alteado na sela, era ainda o tamanho especial da imagem interna). No cresci, em comparao com o senhor. Tenho a idade que o senhor tinha quando me parecia velho velho feito de barana e nervos, mas em todo caso velho. E sinto que no alcanarei nunca sua dimenso. Parou o tempo de crescer; muitos outros tempos pararam, ns mesmos estamos parados um diante do outro. Para o resto do mundo, o senhor est longe inexistente; ningum mais o lembra, salvo trs, quatro pessoas. Mas eu me sento a seu lado e observo, estudo, confiro sua identidade, seu porte; o senhor mesmo, no mudou nada.Talvez at se mostre mais completo, como se os traos raspados, a simplificao extrema do semblante revelassem melhor a essncia da pessoa, limpando-a do que mera repetio de outras. Tudo ficou reduzido ao mnimo indestrutvel, relao calada de dois seres sem interferncias de espao e tempo. O senhor j no est a cavalo de bota e espora, no tem mais no bolso aquele relgio que marcava a hora de campear. Vejo-o distante de cuidados, de parentes, da lavoura, da tropa, do gado, dos remdios da velhice. Agora o senhor apenas o senhor mesmo, no que tem de nico a criatura no mundo. E lhe escrevo esta carta como escrevia as antigas (era na mesa de jantar, defronte ao ptio ajardinado).Para lhe agradecer alguma coisa que no foi agradecida na hora, e ficou como presente dado a quem no merecia? melhor que no se agradea evitando diminuir ou pagar o sem preo. Para me lembrarao senhor? Para lembr-lo a mim? Nosso entendimento se tornou to fcil que dispensa a operao da lembrana. Escrevo-lhe talvez sugestionado porque alguns escolheram um dia para viver mais perto de outros e abra-los com ternura diversa? Mas esses abraam fisicamente algum em determinada casa, levam presentes, cumprem o ritual, e no nosso caso isso no possvel.No tenho nada de urgente ou especial para lhe contar. Nada a pedir ou a dar, mesmo porque o senhor atingiu a sublime despossuio e desnecessidade de tudo. que muitas cartas, das mais importantes, se escrevem sem motivo ou interesse imediato, e so postas num correio absurdo, que as entrega sua maneira e assim so respondidas e se estabelece a correspondncia infinita. Mas, reparo que escrevi demais. O senhor recomendava ao menino: o essencial em duas palavras. No aprendi a lio. Desculpe, e me deixe pr a mo em seu ombro, carinhosamente.Publicado noCorreio da Manh em 2/2/64.

MobilidadeC.D.A D licena? O cavalheiro permite que eu roube dois minutos de seu precioso tempo? Quer colaborar conosco no censo de mobilidade? No se molesta se eu lhe fizer umas perguntinhas ligeiras? Vai responder, pois no? Bem, a que hora o amigo sai de casa? Todos os dias teis? Ah, depende da noite anterior? Compreendo, mas sai almoado? Tem carro, no tem? Onde a garagem? Quantos minutos at l para peg-lo? Se ele est no conserto, toma txi, lgico? Mas em que ponto? E vai para onde, pode-se saber? Sempre mesma hora? Qual, precisamente? Sozinho? D carona, no percurso? Onde costuma acontecer isso? Uma pessoa s, mais de uma, como ? Costuma desviar o rumo para ser gentil? Quanto tempo leva na viagem normal? Na cidade, onde estaciona? De l ao escritrio, quantos minutos? Tanto assim? Em que rua fica esse edifcio? E o andar, qual ? A que hora interrompe para o almoo? Desce para almoar? O restaurante fica onde? Sempre o mesmo, ou gosta de variar? Sozinho, ? De ordinrio, quantas pessoas, hein? E demora muito? Duas horas? Depois do almoo, d uma volta? Por onde? A que hora est outra vez no trabalho? E seu lanche, quando ? L em cima, mesmo? Quanto tempo leva isso, em minutos? Costuma descer outras vezes, durante a jornada de trabalho? Para fazer o qu, hein? Sozinho? Ah, sim, lojas de que ruas? Demora muito? E o banco, onde ? Outros escritrios tambm? No mesmo permetro, ? Pode cronometrar essas atividades externas? Digamos, aproximadamente? Nesses casos, o senhor ainda volta ao escritrio, ou? H outras interrupes de ritmo, que obriguem a deslocamento de sua pessoa? Outras, sei l? Fecha a que hora, meu amigo? Sempre, sempre? Nada de sero? Mesmo em ocasio de balano? Balano no sentido verdadeiro, claro, esta boazinha, no? Resumindo, acabado o servio, vai direto ao carro, provavelmente? J sei, passa talvez no bar? Onde que fica isso? Sozinho, desta vez? Mas questo de muito tempo? Da l segue para onde, meu caro? No ouvi bem, pode fazer o obsquio de repetir? Coisa de meia, uma hora no mximo? Como? Nem perto nem longe? Depois, quantos minutos at o ponto de estacionamento? Ah, j estava no carro? Ser que temos de refazer esta parte do roteiro para ficar mais claro? Acha que no precisa? Bem, e da? Direto pra casa, adivinhei? Em quanto tempo? Aproveita para passar a essa hora no posto de gasolina, ? A que altura? Mas ento, a que hora consegue chegar em casa? Digamos, no mais tardar? Guardou o carro em que frao de tempo? O jantar servido sempre mesma hora? Qual? Depois, v televiso com a famlia ou sai pro cinema? Sozinho? no bairro ou vai onde tiver um bom lanamento por a? No seu carro, num de praa, ou de um amigo? Mesma sesso, sempre? Duas, trs vezes por semana? S? E boate? Sozinho no, era o que faltava? A mesma boate, ou estica em outras? Em que ruas? Qual o tempo de permanncia habitual? E quantas vezes por ms, felizardo? Ser que me esqueci de algum detalhe, alguma faixa de seu dia que No pode me ajudar, lembrando? Bem, vamos agora ao seu fim de semana? Quais os movimentos do meu amigo, a partir da hora em que pe o p na rua, no sbado? Hein? Que isso? Est se sentido mal? Aborrecido comigo? Porventura acha que fui indiscreto, eu que tive o maior cuidado em no lhe perguntar o que quer que fosse de sua vida particular? No, isso no, espera l, no precisa me dar bolacha, eu saio imediatamente, at logo, socorro, socorro!Publicado no jornalCorreio da Manh, em 21 de outubro de 1964

Hora de provarC.D.A.O maior erro de um Presidente da Repblica, em nosso sistema de governo, est em considerar-se dono do pas e de seus habitantes. Esquece-se de que um servidor um servente, que ajuda no trabalho como outros, e at mais tolhido e desamparado do que os outros, em seu perodo limitado de exerccio e na imensido de obrigaes que deveriam assust-lo em lugar de ench-lo de arrogncia. preciso muita lucidez, muita polcia ntima, para que o presidente se ponha no seu lugar, aparentemente mais alto de todos e, no sentido moral, to frgil e escravizado lei quanto o de um mata-mosquito.Evidentemente faltavam ao sr. Joo Goulart qualidades primeiras para investidura to delicada mas isso hoje em dia quase no se exige mais de candidatos. Aos trancos e barrancos poderia chegar ao fim do perodo, e teramos suportado mais um governinho ruim, ns que j suportamos tantos. Mas ele chegou perfeio de fazer um no-governo, irresponsvel e absurdo, de que o bom-senso, a ordem intelectual e a ordem fsica se tornaram ausentes. Fez tudo que era possvel para no obter as reformas que preconizava e que ele mesmo no sabia quais fossem at o momento em que seus assessores lhe ministraram os figurinos mal recortados. Reivindicou posies democrticas atravs de atitudes antidemocrticas nas quais as palavras traam o avesso do que significavam. Ligando-se a extremistas, fez sem arte um jogo perigoso, de xito impossvel. E como ficou a vida, em redor? Ao acordar, as pessoas indagavam, inquietas, se naquele dia lhes seria permitido trabalhar; se disporiam de conduo, alimento, segurana; no podiam conceber por que, para se institurem novas condies de justia social, era necessrio acabar com o pacto de convivncia pacfica, vigente em qualquer coletividade mais ou menos organizada, e fazer sofrer a todos. Deu no que deu. com tristeza misturada a horror que, ao longo da vida, tenho presenciado generais depondo presidentes, por piores que estes fossem. Ser que jamais aprenderemos a existir politicamente? No haver jeito para o Brasil? Mas no caso do sr. Goulart a verdade que ele pediu, reclamou, imps sua prpria deposio. Que fazer quando o servidor-presidente se torna inimigo maior da tranquilidade? Esperar que ele liquide com a ordem legal, para depois process-lo segundo os ritos, julgando-o pelo Supremo Tribunal ou pelo Senado? Que Senado, que Tribunal existiriam a essa altura? Quem souber de outra soluo para o caso, indique-a.Os governadores que, ao lado do poder blico, encarnaram a resistncia ao caos e limparam a rea do Executivo, precisam revestir-se de humildade e desprendimento na situao nova que se abre. Nenhum problema foi resolvido com a sada de um homem; apenas se evitou a ocorrncia de outro problema ainda mais terrvel do que os atuais, nutridos de inflao e desajustamento social. necessrio que o Congresso se mostre capaz de eleger presidente algum realmente qualificado para dissipar ressentimentos populares, inspirar confiana, botar um mnimo de ordem nas coisas, garantir eleies decentes. E no apenas algum que tape um buraco. Enquanto isso, hora de provar que reformas democrticas substanciais podem ser feitas fazendo. Se o Congresso no entender assim, e abismar-se em perplexidades ou contemporizar, no ter perdo. E voltaramos a isso que foi varrido nos ltimos dias.

Publicado no jornalCorreio da Manh em 04.04.1964 / Acervo Biblioteca Nacional.