crônicas de insubmissões em livro e na vida 2010

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verve 205 crônicas de insubmissões em livro e na vida o autor não tencionou contentar essa ou aquela ideologia, grupo ou liderança. Também não quis fazer um escrito “água com açúcar” na intenção de agradar a todos. A verdade muitas vezes gera furor, controvérsia e desa- grado para aqueles que querem usar a história para esta- belecer suas crenças políticas e/ou religiosas. Edgar Rodrigues nunca se achou infalível, inques- tionável e muito menos “certinho”... suas Lembranças Incompletas também não são, entretanto, esse é um livro ainda injustiçado pelos próprios anarquistas e somente o tempo (com sua sabedoria) irá reconhecer a importância inestimável do mesmo para os ideais libertários. crônicas de insubmissões em livro e na vida EDSON PASSETTI Abel Rebollo, Miquel Vallès, Paco Madrid e Quim Sirera. Días rebeldes: crônica de insumisión. Barcelona, Ediciones Octaedro, 2009, 319 pp. Vivemos tempos difíceis!? Fala-se muito disso e daquilo, porém fazem-se coisas de maneiras muito similares. Edson Passetti é Professor no Departamento de Política e no Programa de Estu- dos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Coordena o Nu-Sol. verve, 17: 205-209, 2010 Verve 17 Final com mudanças na heliografica.indd 205 5/10/2010 12:27:37 AM

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Artigo publicado pela revista Verve em 2010Artigo publicado pela revista Verve em 2010Artigo publicado pela revista Verve em 2010Artigo publicado pela revista Verve em 2010

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    crnicas de insubmisses em livro e na vida

    o autor no tencionou contentar essa ou aquela ideologia, grupo ou liderana. Tambm no quis fazer um escrito gua com acar na inteno de agradar a todos.

    A verdade muitas vezes gera furor, controvrsia e desa-grado para aqueles que querem usar a histria para esta-belecer suas crenas polticas e/ou religiosas.

    Edgar Rodrigues nunca se achou infalvel, inques-tionvel e muito menos certinho... suas Lembranas Incompletas tambm no so, entretanto, esse um livro ainda injustiado pelos prprios anarquistas e somente o tempo (com sua sabedoria) ir reconhecer a importncia inestimvel do mesmo para os ideais libertrios.

    crnicas de insubmisses em livro e na vida

    EDSON PASSETTI

    Abel Rebollo, Miquel Valls, Paco Madrid e Quim Sirera. Das rebeldes: crnica de insumisin. Barcelona, Ediciones Octaedro, 2009, 319 pp.

    Vivemos tempos difceis!? Fala-se muito disso e daquilo, porm fazem-se coisas

    de maneiras muito similares.

    Edson Passetti Professor no Departamento de Poltica e no Programa de Estu-dos Ps-Graduados em Cincias Sociais da PUC-SP. Coordena o Nu-Sol.

    verve, 17: 205-209, 2010

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    Fala-se em singularidades, mas forosamente at os agrupamentos mais radicais tendem uniformidade, ou melhor dizendo, ao pluralismo no interior do uniforme.

    Os militantes vinculados ao ensino e pesquisa esto capturados pelos critrios de monitoramento e avaliao acadmicos; os tragados pela empregabilidade, veem-se forados a exercer uma restrita atuao em finais de se-mana, anloga s do empreendedorismo social. Nunca se constatou tantos anarquistas quanto os localizados via Internet; o Google se transformou em uma verdadeira en-ciclopdia iluminista repaginada, incluindo-se Wikipdia e Anarkopdia, regidas por um sem nmero de regras, ex-plicitamente antiautogesto. Enfim, estamos sob um pro-cesso de capturas jamais visto.

    Se as palavras j no designavam coisas, hoje elas so enlaadas por foras sociais diversas, no s para atualizar seus discursos, mas, principalmente, para esvaziar as pr-ticas de ao direta. Tudo se encontra aberto, arquivado e vasculhado para imobilizar resistncias: a mais nova ver-so da transparncia democrtica, a mais atual maneira de dominar pela centralizao de poder com base na descen-tralizao administrativa.

    O livro, este objeto de dimenses tico-estticas indes-critveis, ainda permanece como espao de resistncia. Por ele passam reflexes pessoais e coletivas, que mesmo dis-ponveis livremente ao pblico, requer antes o desejo para t-lo, folhear suas pginas, sem temer a pressa exigida pela atualidade, propiciando at mesmo uma reflexo lenta e demolidora, afeita a ultrapassagens.

    O livro se distingue da enciclopdia construda de Diderot ao Google, por exigir mais, por ser mais generoso

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    com os argumentos, mais criterioso quanto aos mtodos, mais instigante inteligncia livre das produtividades e das exibies espetaculares, vaidosas e inertes.

    Um livro no se ope Internet. Esta capaz de absor-v-lo; apenas dela se diferencia, como singularidade. Pou-co importa que digam haver livros e livros, e que no futuro todos os leremos pela eletrnica. Um livro sempre uma linguagem estranha pressa dos dispositivos eletrnicos. At mesmo para os que dele fazem uso com autoajuda.

    De repente, ao leitor em busca de livros que remexam o estado das coisas vigentes, aparece Das rebeldes.

    O ttulo anuncia seu vnculo oposto retrica, ra-pidez e ao imediato. No pretende responder de forma totalizadora a um conceito rebeldia. Indica ao leitor, por um mtodo claro antisservido, costumes inventados pe-los rebeldes, extrados de mitos, poesias, relatos, situaes margem da historiografia acadmica, lembranas de pe-quenos gestos capazes de desestabilizar, insurreies.

    Os acontecimentos rebeldes apresentados pelas lentes do presente. Este presente to avanado tecnologicamente, e to retrgrado nos costumes. Somos convidados a atra-vessar espaos e tempos diversos neste planeta, refletin-do sobre nossos vnculos com os dias rebeldes do passado, em cada dia de possvel rebeldia a ser inventada. Estamos convidados e incitados a lidar com o indito diante de si-tuaes de servido voluntria, e dispensados das verses progressistas, evolucionistas e vitimizadoras da histria.

    Estamos diante de verbetes de poucas pginas que nos remetem ao acontecimento singular realizado por gente indomesticvel.

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    O livro comea com o dilvio segundo a verso su-mrica encontrada na Epopia de Gilgamesh, num tempo de deuses contra deuses, de deuses superiores e inferiores que inventaram os homens como escravos pela interven-o da deusa-conselheira Enlil. Mas essa gente procriou, cresceu e se robusteceu, contestou a condio que lhes foi imposta pelos deuses. Em resposta, vem a vingana dos deuses com epidemias e dilvio com a salvao de uma parte dos vivos para permanecerem servindo aos deuses, sob o regime dos tabus. O relato da prtica de dilvios tambm reaparece quando o rei assrio Senacherib depois de esmagar os rebeldes com seus exrcitos, ordena romper os diques para afogar os insurretos. Os deuses inventaram os homens para servi-los; estes se rebelam contra a servi-do e as insurreies so incontveis.

    Os organizadores do livro nos levam primeira greve na histria ocorrida no Egito, na poca de Ramss III, uma greve contra a fome; emergncia da filosofia do povo com Lakayatas, na ndia, h mais de 3 mil anos, em favor da vida livre de deuses e homens superiores; ao efeito da inveno pela democracia direta ateniense expressa na pe-a de Aristfanes Ekklesizouzai; a presena arrebatadora de cnicos e esticos contra o academicismo na vida e na filosofia; a revolta com abolio de escravos (Spartacus). Avanamos pela Europa, sia, frica, Oceania e Amricas at os dias de hoje, at as revoltas na Grcia em 2008, Chiapas, as surpresas no Ir, os rompimentos com racismos, os novos racismos, as novas lutas, e o que h de novo nestas novidades rebeldes.

    Abel Rebollo, Miquel Valls, Paco Madrid e Quim Sirera buscaram amigos pelo planeta adentro para escre-verem sobre rebeldias em seus pequenos espaos, pases,

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    continentes. Dividiram com eles, livremente, a escrita e a escolha dos dias rebeldes que pudessem conversar com a atualidade de libertrios. Abriram muitos verbetes, in-completos, a serem acrescentados, no s por lembrana a algum esquecido, mas pelos que podem acontecer, segun-do um querer por ultrapassar a servido.

    No h tempos difceis, apenas espaos a serem inven-tados pelos rebeldes rompendo com costumes, Estado e todo ardiloso que se pretende superior.

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