crime e controle social no brasil contemporaneo

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    Crime e controle social no Brasil Contemporneo

    Andr Moyss Gaio (Professor do Mestrado em Cincias Sociais)H mais de duas dcadas, o tema da criminalidade violenta freqenta o cotidiano

    dos brasileiros, no importando se os cidados residam em cidades pequenas, mdias ou

    grandes, no setor urbano ou no rural, a experincia diria a do medo, da preocupao e da

    ansiedade gerados pela possibilidade de serem vtimas, principalmente, de crimes que

    possam lhe impingir dano fsico e mesmo a morte.

    Um crime ocorrido a centenas de quilmetros parece anteceder a qualquer outro

    que possa vitim-lo a qualquer momento, na sua casa, na sua rua, no seu bairro. O crime se

    agrega ao cotidiano de sofrimentos que um brasileiro experencia no cotidiano vinculados

    precria assistncia social, ao sistema de sade que no o acolhe, a problemas de renda

    baixa, transportes caros etc.

    A economia poltica do sofrimento, no Brasil, embora afete mais duramente a

    parcela mais pobre da populao, produz resultados democrticos, isto , atinge os

    miserveis, pobres, classe mdia e os ricos. O ingrediente crime se tornou,

    progressivamente, um dos principais mecanismos atravs dos quais o brasileiro percebe o

    seu cotidiano de trgico, tecido de insultos, humilhaes, desamparo e sofrimento sem fim.

    A experincia de um mundo em desordem e dessacralizado tm levado o cidado,

    em parte, ao lenitivo das novas igrejas evanglicas, ao recurso de negar a culpa pelas

    infraes, a apoiar, pelo desejo de vingana, uma escala punitiva cada vez maior, a descrer

    das figuras de autoridade e da soberania do Estado.

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    A construo do crime como um grande problema

    Sempre que se procura encontrar a origem da exploso do crime no Brasil, a

    operao tradicional associar tal fenmeno ao incio da transio democrtica,

    especialmente quando so sublinhados os temas da crise do Estado desenvolvimentista, a

    desorganizao da economia, a inflao, a baixa legitimidade dos partidos polticos, a

    exploso das demandas sociais. Outro procedimento vincular as altas taxas de crimes ao

    processo de globalizao, especialmente quando o tema o crime organizado.

    Tais procedimentos facilitam a explicao sobre o fenmeno do crime no Brasil

    contemporneo embora mais paream uma operao para contornar as dificuldades para

    que se possa avaliar a gnese do processo que, em seus desdobramentos, gerou milhares de

    mortes, um medo generalizado do crime e criao de mltiplas estratgias para se evitar a

    vitimizao.

    No estudo sobre as causas da exploso das taxas de criminalidade no Brasil,

    enfrentamos o mesmo problema que Garland (2001) mencionou quando buscou explicar a

    experincia do crime na modernidade tardia em relao aos casos britnico e estadunidense,

    ou seja, que o mesmo parece desafiar nossa capacidade de compreend-lo. Para Garland,

    explicar o que ocorreu quase to controvertido como explicar por que ocorreu (Ibid,6).

    O socilogo acima citado vem desenvolvendo uma produo rica, especialmente no

    estudo da punio e das condies que possibilitaram a emergncia de estratgias para o

    controle social na modernidade tardia. O livro The culture of control(2001) tem merecido

    ampla ateno e vivo debate no campo da criminologia.

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    Garland procurou se dedicar ao estudo da experincia (nova) coletiva do crime e da

    insegurana. As novas estratgias de controle social do crime e do desvio precisaram,

    segundo ele, de um suporte popular que apenas poder ser revelado a partir do estudo das

    estruturas sociais e do desenvolvimento das sensibilidades culturais que antecedem e

    subjazem s estratgias de tal controle. Por outro lado, devemos trabalhar, de acordo com o

    socilogo, para revelar tambm como a percepo de tal contexto e o impacto emocional

    deste em parte da populao foi retrabalhado em direo a resultados particulares por

    polticos, pelospolicy makerse pelos formadores de opinio.

    O processo poltico foi determinante para a construo do novo controle social do

    crime, mas tal controle, para que existisse, deveria receber a ressonncia popular de rotinas

    sociais e sensibilidades culturais pr-existentes. Tais rotinas e sensibilidades so condies

    extrapolticas que tornaram o novo controle social possvel.

    O modelo explicativo proposto por Garland foi construdo, tendo como objetivo

    explicar os casos da Inglaterra e dos Estados Unidos, mas o autor, reconhecendo que as

    dinmicas de outros pases devem possuir suas peculiaridades, acredita tambm que outros

    pases foram afetados de alguma forma pelos mesmos impulsos encontrados nos pases

    supracitados na construo da cultura do controle, da vivncia contempornea do crime.

    Por que a pesquisa sobre as causas do aumento da criminalidade na Inglaterra e nos

    Estados Unidos foi substituda por outra que optou pela gnese da percepo moderna

    sobre o crime? Depois de dcadas de produo acadmica e tambm da interveno dos

    especialistas ligados aos sistemas criminais dos pases supracitados sobre o fenmeno da

    criminalidade na modernidade tardia e suas causas, nos parece que Garland, na tradio do

    pensamento criminolgico crtico, observa o crime como uma construo poltica, um

    fenmeno que emerge a partir das interaes sociais em um mundo construdo a partir de

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    relaes de poder j dadas, marcadas pela desigualdade de recursos de poder. As teorias

    criminolgicas produzidas desde a dcada de 1970, teorias do controle e das oportunidades,

    so analisadas como fazendo parte, mais do que explicando as causas dos crimes, do

    complexo da nova experincia do crime.

    Nosso objetivo neste artigo cotejar a experincia brasileira com aquelas que foram

    objeto da anlise de Garland e observar em que medida o modelo proposto por ele capaz

    de revelar aspectos decisivos da dinmica da cultura do controle no Brasil contemporneo.

    Transformaes histricas na modernidade tardia

    A cultura do controle recebeu impulsos decisivos advindos das transformaes

    sociais e econmicas operadas a partir da segunda metade do sculo XX. Para Garland,as

    transformaes decorrentes da dinmica da produo capitalista e das trocas no mercado e

    os correspondentes avanos na tecnologia, no transporte e nas comunicaes, a

    reestruturao da famlia e da vida familiar, as mudanas na ecologia social das cidades e

    nos subrbios, o surgimento dos meios eletrnicos de comunicao e a democratizao da

    vida social (Ibid, p. 77,78).

    Aps a dcada de 1960 que as transformaes supracitadas, segundo o autor em

    questo, produzem seus efeitos mais decisivos e, ao mesmo tempo, os Estados Unidos e a

    Gr-bretanha experimentam um aumento importante nas taxas de delito registrado. Sustenta

    Garland (Ibid, p.89) que existiu um vnculo causal entre a transio para a modernidade

    tardia e a crescente susceptibilidade da sociedade em relao ao crime.

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    A criao de um mercado de massas, a disponibilidade de novos produtos que se

    tornaram alvos para a prtica de roubos e furtos (automveis, , equipamentos musicais) e ao

    mesmo tempo estimularam a criao de uma cultura do consumo, auxiliada pela

    progressiva importncia da televiso, desenvolvendo uma mesma demanda para ricos e

    pobres; a mudana da estrutura familiar e do estilo de vida caracterstico dessa instituio,

    especialmente pelo aumento do nmero de divrcio e da famlia monoparental, a entrada

    macia da mulher no mercado de trabalho, a multiplicao das moradias ocupadas por uma

    s pessoa; as transformaes na ecologia e demografia social, especialmente a difuso do

    automvel privado, a migrao da classe mdia e dos ricos para os subrbios, geralmente

    longe do trabalho, a alocao de pobres e minorias em locais afastados das cidades, sem

    equipamentos urbanos adequados e sem comrcio (nova forma de segregao), a

    decadncia de lealdades locais, a ausncia de contatos diretos entre as pessoas, a

    privatizao da vida individual e familiar; o impacto da televiso na criao de padres de

    consumo, no aumento da visibilidade dos crimes e da violncia, na maior exposio de

    personagens importantes , rompendo cada vez mais a noo de intimidade, com importantes

    impactos na vida poltica e cultural; a democratizao da cultura o discurso da igualdade e a

    poltica da igualdade de direitos provocou uma diminuio da deferncia por autoridades e

    pelos ricos e invadiu tambm a esfera familiar, a escola, a priso, a poltica, surgiu tambm,

    nesse processo, o que Garland chamou de um individualismo moral, uma diminuio do

    indivduo de laos de dependncia em relao aos grupos e a possibilidade de cada um

    optar por estilos pessoais quanto aos valores e aos modos de agir.

    As transformaes da modernidade tardia acima sublinhadas foram decisivas para

    forjar uma situao, nos marcos da expanso das taxas de crimes, em que a cultura do

    controle encontrou fortes estmulos para se desenvolver.

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    A crise do welfare state e as escolhas polticas realizadas no sentido da sua

    superao, todavia, tiveram uma influncia decisiva nas novas modalidades encontradas

    para combater a criminalidade e sero tratadas de modo mais detalhado a seguir.

    A cultura do controle

    O controle social contemporneo do crime exibe duas novas e distintas linhas da

    ao governamental: em primeiro lugar uma estratgia adaptativa enfatizando a preveno

    e a parceria; a segunda, uma estratgia do Estado soberano enfatizando o aumento do

    controle e uma punio expressiva. Tais estratgias em muito diferem daquelas do Estado

    liberal e de bem-estar que as precederam.

    A estratgia de controle desenvolvida na modernidade tardia, de acordo com o

    modelo produzido por Garland, se assenta no fato de que altas taxas de crimes se tornaram

    fatos sociais normais e as solues liberais e do Estado penal de bem estarforam

    percebidas como incapazes de receber e processar, adequadamente, as solues para

    diminuir as taxas de criminalidade.

    A necessidade de o Estado reconhecer esta nova realidade do crime, sem aparecer

    que ele se retrai em face desta nova situao, se constitui um complicado e recorrente

    problema poltico. A soluo encontrada foi ele se concentrar nos efeitos do crime (custos,

    vtimas, medo etc) mais do que nas causas. Tal soluo tambm s seria possvel na medida

    em que se pudesse estabelecer na base da construo de difceis parcerias com a sociedade

    civil (comunidades, empresas, comrcio) enfatizando a preveno do crime e redefinindo a

    misso organizacional de agncias como a polcia, as prises etc.

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    Muitas vezes, contudo, o Estado se mostra ambivalente quanto a tais parcerias e

    reassume muitas vezes o discurso e o mito do Estado soberano. Os resultados so modos

    mais intensivos e expressivos de policiamento e de punio cujo objetivo convencer a

    populao de que o Estado ainda mantm sua autoridade.

    Voltando soluo supracitada, preciso discutir em que condies histricas ela

    pde prosperar e de quais fontes derivava o apoio social e a ressonncia social da parceria

    preventiva entre Estado e sociedade civil.

    Aparceria preventivaenvolveria toda uma nova estrutura de acordos em que o

    Estado e as agncias no-estatais coordenariam suas prticas com o objetivo de melhorar a

    qualidade da segurana atravs da reduo das oportunidades para o crime e a extenso da

    conscincia sobre o problema do crime. Tal parceria envolveria os seguintes aspectos:

    coordenao de agncias tais como aquelas ligadas a transporte, habitao, planejamento,

    educao, assistncia social com o trabalho da polcia e da justia criminal em um esforo

    para aumentar as responsabilidades quanto ao controle do crime; parcerias pblico-privadas

    tais como seminrios para discusso sobre a criminalidade, vigilncia (cmeras etc) de

    certas reas visando aumentar as energias e os interesses dos cidados e das associaes

    comerciais para propsitos de preveno ao crime.

    Esta estratgia tambm considera a aceitao de um conjunto de construtos crimino

    lgicos: criminologia das oportunidades, um estilo de governana (responsabilizao

    ambgua, governo distncia) e um conjunto de tcnicas e conhecimentos advindos de

    modos de pensar e agir previamente estabelecidos.

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    A ESTRATGIA DA SEGREGAO PUNITIVA

    Sentenas pesadas e aumento do aprisionamento (encarceramento em massa),

    restries defesa, three strikes, construo de presdios de segurana mxima, priso de

    crianas e adolescentes, punio corporal, inflao do cdigo penal, publicizao dos

    condenados, especialmente nos crimes sexuais, tolerncia zero aos pequenos delitos, so

    medidas que demonstram uma forte onda punitiva na modernidade tardia.

    O movimento e a retrica da lei e ordem cuja origem remonta aos anos finais da

    dcada de 1960, tough on crime, so instrumentalizados pelo Estado para advertir e

    confortar a populao e de encontrar na mesma um apoio para a qual este processo de

    punio se torne um momento expressivo de liberao de tenses e de gratificao pela

    unidade face ao crime.

    Cada medida opera sobre dois novos registros: um expressivo, a escala punitiva que

    usa os smbolos de condenao e sofrimento para comunicar uma mensagem e um outro

    instrumental, demonstrando a capacidade de proteo da populao e um gerenciamento

    timo do crime.

    Em relao ao segundo registro, cabe sublinhar que a punio uma poltica

    construda, privilegiando a opinio pblica sobre os pontos de vista da justia e dos experts,

    poltica essa formulada por polticos, instituies epolicy markerse que, geralmente, so

    anunciadas em convenes partidrias, entrevistas tv etc. Tal poltica, quase sempre,

    construda sem pesquisa prvia sobre custos, estatsticas e rigor.

    Ainda sobre a estratgia de punio cabe aqui registrar a necessidade de

    participao de um ator que, se no novo, trabalhado a partir de uma nova perspectiva: a

    vtima. A vtima- vtima real, famlia da vtima, vtima potencial- utilizada e invocada

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    para apoiar medidas de segregao punitiva (leis so criadas com os nomes das vtimas). O

    novo imperativo o de que as vtimas devem ser protegidas, suas vozes devem ser ouvidas,

    suas memrias honradas e seus dios expressados.

    A retrica do debate sobre a punio invoca a figura da vtima-tipicamente uma

    criana, mulher ou idoso- como um cidado correto e ntegro que deve expressar toda a sua

    angstia e sofrimento e que deve ser absolutamente protegida e ter seus direitos garantidos.

    Os direitos e a segurana do criminoso, cujo tratamento na poltica penal liberal e do

    bem estar eram privilegiados, agora so completamente ignorados e, portanto, a vtima

    passa a ter todas as atenes. um jogo de soma zero em que as vtimas ganham e os

    criminosos perdem.

    A vtima tomada agora, em certo sentido, como uma figura que representa uma

    experincia comum e coletiva e no uma experincia individual e atpica. A publicizao

    das vtimas reais serve como metonmia para o problema da segurana pessoal. A viso da

    vtima como todo homem ou toda mulher tem enfraquecido a antiga noo de pblico e

    ajudado a redefinir e desagregar o coletivo. A vtima deve ter voz, opinar sobre o processo,

    sugerir sentenas.

    A demonstrao pblica da emoo e a nfase na expresso dos sentimentos como

    antdotos para o medo e a ansiedade so condicionadas , evocadas e canalizadas para

    rotinas sociais e prticas culturais da sociedade contempornea e elas so , ento,

    articuladas estratgia da segregao punitiva de modo particular, como resultado de

    especficos processos polticos e culturais.

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    EXPLICAO HISTRICA DO PROCESSO

    A partir dos anos de 1970, os partidos polticos (US e UK) comearam a dar

    proeminncia ao tema do crime em seus pronunciamentos. At recentemente os detalhes

    sobre as questes ligadas ao crime eram deixados apenas peritos do sistema criminal e aos

    criminlogos que procuravam despolitizar o tratamento de temas correlatos ao crime,

    observando apenas aspectos tcnicos que seriam mais bem trabalhados pelos mesmos, com

    conhecimento e pesquisas empricas e recusando a emoo (irracionalidade), especialmente

    porque estimula a punio.

    Como foi alterada tal situao, ou seja, como a opinio pblica foi exercitada para

    dar ateno ao crime e por que os profissionais do sistema criminal perderam a capacidade

    para limitar o impacto do pblico sobre a formulao das polticas de segurana?

    A resposta mais simples a de que o pblico foi manipulado pela mdia e por

    cruzadas que estimulam a punio. No h dvida de que os jornais e a tv so importantes

    definidores do conhecimento popular sobre o crime e que isto resulta em desinformao e

    mitologizao do mesmo. Tambm verdade que as atitudes da opinio pblica sobre a

    punio so condicionadas pela informao, mas um erro inferir que a mdia pode criar e

    sustentar uma audincia de massa para histrias sobre crimes sem certas condies sociais

    e psicolgicas que j devem existir e ser efetivas. Apenas retrica e ideologia no so

    suficientes para criar o suporte poltico ao controle social do crime.

    A ampla expresso dos sentimentos punitivos e a emergncia de leis penais e das

    polticas que veiculam tais sentimentos no esto diretamente relacionados ao aumento das

    taxas de crimes e foram mobilizados em pases que experimentavam um declnio das

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    mesmas taxas. A explicao deve ser buscada na forma como as populaes experimentam

    a nova experincia do crime.

    A NOVA EXPERINCIA DO CRIME

    A historicamente situada experincia do crime constituda e vivenciada por

    indivduos situados que incorporam um complexo de prticas, conhecimentos, normas e

    subjetividades que foram uma cultura.

    Falar sobre a experincia do crime falar sobre o significado que os crimes tm

    para uma cultura singular em um momento preciso.

    A experincia coletiva do crime tender a ser altamente diferenciada e

    particularmente estratificada nas sociedades modernas. Grupos sociais so diferentemente

    colocados em respeito aos crimes, diferencialmente vulnerveis vitimizao,

    diferentemente amedrontados sobre seus riscos, diferencialmente orientados por valores,

    crenas e educao a respeito de suas causas e de suas solues.

    CLASSE MDIA

    A classe mdia tinha sido o grupo que dava boa dose de suporte poltica penal do

    Estado liberal e de bem-estar e que tambm promovia uma abordagem profissional e

    tcnica das questes relativas ao crime. Alm disso, os profissionais (assistentes sociais,

    psiquiatras, psiclogos, juzes etc) eram recrutados no interior deste grupo social.

    A classe mdia tinha uma atitude civilizada em relao ao crime, especialmente

    sustentando a existncia de circunstncias sociais mais do que a responsabilidade individual

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    para o ato criminoso, sustentavam tambm programas sociais de preveno em vez de

    punir. A classe mdia tem sido um signo de distino cultural, marcada opinio educada,

    humanista sobre temas sociais.

    A classe mdia, alm disso, at recentemente estava espacialmente distante do

    crime, da insegurana e dos eventos criminosos. Suas crianas estavam estudando em

    escolas disciplinadas e livres do crime, das drogas e da violncia. Suas rotinas no estavam

    expostas ao teatro do crime e o medo do crime no ocupava um lugar proeminente em suas

    conscincias. Ela preferia a imagem do criminoso como algum pouco socializado, com

    pouca educao e para o qual propunha reformas sociais e um tratamento correcional justo.

    O crime era apenas um problema social. O que ocorreu para que a classe mdia deixasse de

    apoiar tais posies?

    A primeira hiptese a de que a classe mdia no resistiu presso da opinio

    popular sobre a formulao das polticas, tanto porque tal formulao se tornou mais

    politizada como porque os profissionais pertencentes a tal grupo social perdem status e

    credibilidade

    A segunda hiptese a de que tal grupo social passou a apoiar menos o penalismo

    liberal e de bem-estar.A verdade que ambas as situaes ocorreram.

    Solues de mercado, individualismo e nfase na auto-iniciativa corroeram o apelo

    coletivista. A procura por gerenciadores de crises no sistema criminal superou a antiga

    importncia dos profissionais que antes atuavam no sistema. O aumento do crime foi

    associado ao penalismo liberal e falncia institucional do mesmo.

    Os ideais de generosidade e reabilitao dos criminosos foram, progressivamente,

    sendo derrotados e, portanto, os valores culturais da classe mdia foram associados ao

    apoio onda de criminalidade (direitos humanos).

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    Outro marco importante foi a diminuio da distncia espacial em relao ao crime.

    O aumento das taxas de criminalidade atingiu a classe mdia, especialmente os crimes

    contra o patrimnio. O aumento da desordem urbana (gafiti, incivilidade, vandalismo etc)

    tambm contribui para um aumento da exposio deste grupo questo do crime,

    especialmente ao medo de ser vitimado. Cada um que era assaltado ou roubado comunicava

    sua experincia a outros e, ento, o crime deixava de ser uma abstrao estatstica para ter

    um significado vvido na conscincia popular e na psicologia individual.

    O aumento do uso de drogas e as imagens reproduzidas pela mdia de crianas se

    drogando fez tambm soar o alarme para as famlias de classe mdia de que medidas mais

    duras deveriam ser tomadas.

    A mdia dramatizava e reforava a experincia pblica do crime. Alis, a

    importncia progressiva da televiso no cotidiano dos cidados coincidiu com o aumento

    das taxas de criminalidade. A cobertura da tv aos eventos criminosos intensificava uma

    abordagem emocional dos mesmos. A proeminncia e popularidade dos crime shows na tv

    vem j dos anos de 1960 e os mesmos enfatizam os dramas de revanche e moralidade,

    ressentimentos, histrias de criminosos que burlaram a justia etc. A representao operada

    pela mdia sob a forma de uma nova inflexo emocional de nossa experincia do crime,

    sem dvida, jogou um papel importante par a construo da nova estratgia punitiva;

    todavia preciso novamente sublinhar: sem a nossa experincia coletiva do crime, de nossa

    rotina j deslocada pelas altas taxas de criminalidade, a cobertura da mdia apenas no seria

    suficiente para jogar ao cho o penalismo liberal.

    As profundas mudanas na estrutura familiar da classe mdia tambm contriburam

    para minar sua viso generosa e humanista do crime, particularmente a participao da

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    mulher no mercado de trabalho ampliou tambm sua exposio ao risco do crime e,

    portanto, do medo a ele associado.

    As transformaes da economia que levaram a classe mdia ao desemprego criaram

    tambm uma sensao de precariedade, o que alguns chamam de insegurana ontolgica.

    ESTRATGIAS DE DEFESA: O SETOR COMERCIAL

    A nossa experincia do crime est tambm amplamente marcada pelo crescimento

    da indstria de segurana privada. A criao de uma tecnologia de segurana cada vez mais

    invadia a vida dos cidados. A experincia no setor comercial (cmeras, polcia privada,

    gerenciamento das rotinas, o desenvolvimento de anlises de custo-benefcio para controlar

    o crime etc) e as medidas tomadas pelos cidados (seguros, grades, alarmes, organizao

    das rotinas para prevenir o crime) produzem um aprofundamento da experincia do crime.

    Toda uma criminologia ligada escolha racional, deterrence, teoria das oportunidades,

    teoria das rotinas antes de refletirem sobre o problema, ajudaram a formular as estratgias

    para gerenciamento do crime e aprofundamento da poltica de punio.

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    A experincia brasileira

    A dcada de 1970, no Brasil, foi marcada, fundamentalmente, pelo rpido

    crescimento econmico (milagre brasileiro) e pela experincia poltica de uma ditadura. A

    expanso das relaes capitalistas sob o rgido controle poltico pouco modificou a

    sociabilidade brasileira e os padres culturais marcadas pelo patrimonialismo, pela rgida

    desigualdade de classe e gnero, traduzidos nos fenmenos da pobreza, do racismo, da

    diviso sexual rgida no mercado de trabalho e nos lares, pela cultura oral, pela dificuldade

    ao acesso dos pobres educao bsica de qualidade e ao ensino superior.

    A experincia cotidiana ainda no era substancialmente afetada pela mdia, embora

    assistssemos ao crescimento e afirmao da televiso como horizonte unificador de

    meios de expresso, de criao e/ou reverberao de problemas pblicos e de criao de um

    espao nacional unificado, substituindo uma tarefa que em outros pases esteve a cargo do

    Estado.

    O crescimento econmico acelerado e as expectativas de ascenso social, de

    mobilidade vertical na estrutura social, promoviam a criao de uma viso otimista sobre o

    futuro do pas, especialmente por parte de setores da classe mdia. O crescimento

    econmico, nica via para a legitimao do regime ditatorial, era objeto de ampla

    campanha pblica e oficial de sustentao do regime que, aliada censura, fazia crer que ao

    futuro estaria reserva a resoluo dos problemas estruturais do pas, repetindo a cantilena

    que aqui vigorava desde a dcada de 1930, em que a convico era a de que a

    industrializao removeria os obstculos para a resoluo dos problemas que nos impediam

    caminhar para o statusde uma grande potncia.

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    De qualquer maneira, repetia-se atravs do discurso oficial e da experincia do

    crescimento econmico, a aposta no futuro. No era o momento para se desfrutar de

    momentos virtuosos anteriores ou mesmo usufruir um mundo estvel. Traar um mapa

    cognitivo do brasileiro daquele momento apenas revelar a confiana no futuro e a ausncia

    de preocupaes com questes relacionadas ao modo de vida (temas ligados s questes

    de gnero, ecologia, ampliao da cidadania etc) que, no mundo das naes ricas, eram

    j caras aos cidados.

    A questo da segurana pblica era apenas circunscrita a uma abordagem da

    segurana nacional, da luta contra o comunismo e o terrorismo da esquerda. Raras foram as

    excees, no jornalismo e na academia (Donicci, 1984; Souza, 1980; Ribeiro, 1977;

    Coelho, 1978; Misse, 1979), que buscavam tematizar a criminalidade urbana, embora ainda

    que no avaliassem a profundidade e a extenso do problema. sintomtico que todos os

    autores aqui citadostratassem da experincia vinculada cidade do Rio de Janeiro e

    Baixada Fluminense (com a exceo de Donicci, preocupado ento com o crescimento da

    criminalidade em So Paulo).

    importante sublinhar que o crime comum no era um problema pblico e,

    portanto, os temas a ele vinculados tais como as drogas, o medo impunidade, o sistema

    penitencirio etc, no tinham qualquer visibilidade.

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    Estrutura rizomtica de combate ao crime

    A experincia moderna do crime no Brasil no promoveu a criao de qualquer

    estratgia que pudssemos qualificar como minimamente pensada, articulada, planejada e

    que envolvesse a criao de discursos e prticas comuns entre as instituies do Estado e

    muito menos o envolvimento de parcelas da sociedade no combate criminalidade. Desde a

    dcada de 1970, algumas estratgias defensivas j eram utilizadas pelos indivduos em suas

    residncias e pelo setor privado (envolvendo um complexo de instrumentos, como a

    vigilncia privada, monitoramento do espao fsico atravs de cmeras, investimento em

    iluminao etc) e que decorreram de um precedente reconhecimento da incapacidade de o

    prprio Estado em combater a criminalidade ou da necessidade em estabelecer parcerias.

    Poderamos usar o modelo do rizoma, tal como foi desenvolvido por Deleuze e

    Guattari (1995) para abordar o modo mltiplo, no-hierrquico de estruturas que se

    conectam, mas no possuem um centro (poderamos, inclusive, abordar a criminalidade a

    partir do modelo citado) para iluminar como diferentes setores do Estado e da sociedade

    lidam com a questo do crime.

    No Brasil, os Poderes Executivo, Legislativo e Judicirio, as Polcias, o terceiro

    setor, a sociedade civil, trabalham com diferentes estratgias, prticas, princpios e culturas

    para pensar e atuar no combate e ou preveno ao crime.

    Nunca houve, de fato, por parte das estruturas estatais (da Unio, dos Estados

    membros e dos Municpios), a inteno de mobilizar coraes e mentes para fazer emergir

    da experincia do crime, atravs de estmulos variados, tal como os observados por Garland

    em relao Inglaterra e aos Estados Unidos, uma sensibilidade nova que pudesse imprimir

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    uma dinmica particular da poltica, uma rotina singular no funcionamento das agncias do

    Estado, um conjunto de valores e prticas sociais dos indivduos e das empresas.

    No estamos afirmando que o Estado est ausente no combate ao crime. O Estado

    pune, porm pune seletivamente, penalizando negros, pobres, drogadios, enfim, a ral

    (Souza, 2001). O crescimento expressivo da populao carcerria (a 4 maior do mundo), a

    existncia de uma das mais abrangentes legislaes penais do mundo, criminalizando tudo

    e todos, a produo legislativa vertiginosa, especialmente na rea penal, por exemplo,

    demonstram que o Estado est presente, mas sua atuao carece de qualquer princpio de

    coerncia, planejamento, integrao e sofisticao.

    Pesquisa realizada pela Associao dos Magistrados Brasileiros (AMB) realizada

    em 2006, sob a coordenao de Maria Teresa Sadek, trouxe, alm de uma radiografia sobre

    a formao acadmica, distribuio territorial, distribuio por idade e gnero, o

    pensamento dos magistrados sobre temas importantes em relao questo do crime e do

    seu controle. Em resposta pergunta de seu ponto de vista, qual o grau de importncia dos

    seguintes aspectos para a existncia da impunidade no Pas?, os magistrados, em suas

    respostas revelam a completa fratura interna do sistema criminal, responsabilizando o

    Ministrio Pblico, as Polcias, Advogados, o sistema penitencirio, a Legislao e a si

    prprios. Quanto ao tema do controle, respondendo pergunta qual a sua avaliao das

    seguintes propostas (para resolver os problemas relacionados criminalidade), os

    magistrados apiam amplamente, a diminuio da maioridade penal, o aumento do tempo

    de internao de menores infratores, das hipteses de internao de menores, do tempo de

    cumprimento da pena para obteno de progresso de regime em relao a determinados

    crimes graves e aumentar a pena e proporcionar tratamento duro em relao ao trfico de

    drogas.

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    Pesquisa tambm realizada por Sadek (2003) com Delegados de Polcia chegou a

    resultados semelhantes quanto evidncia fratura do sistema criminal e propostas para

    endurecer o combate ao crime.

    No captulo da contribuio da criminologia para fundamentar uma estratgia de

    combate ao crime, nossa situao tambm muito diferente daquela estudada por Garland.

    Tem razo Misse (2004, 7) quando, ao fazer um balano, mesmo que sumrio, sobre a

    produo acadmica brasileira na rea da criminalidade, afirmou ser mnima a bibliografia

    sociolgica que trata das teorias e perspectivas sociolgicas a respeito da criminalidade.

    O que Garland denominou como as criminologias da vida cotidiana como sendo um suporte

    s aes dos governos na rea da segurana pblica por ele estudados- rational choice,

    routine-activity, deterrence- por aqui, pouca importncia tiveram na formulao de

    polticas de segurana .1As teorias mais utilizadas nos Estados Unidos e na Europa(

    Chicago School Strain, social learning, control, conflict, labeling) foram praticamente

    ignoradas pela criminologia brasileira. A recusa em adotar teorias de perspectiva

    funcionalista, normatizadoras e mesmo conservadoras, nos parece ser algo positivo, embora

    consideramos que a crtica das mesmas como sendo algo de extrema utilidade, que ajudaria

    na formao de quadros mais preparados para abordar a questo do crime a partir de uma

    visada mais crtica e generosa e tambm fundamental para observar a adequao das

    mesmas em outro cenrio. Por outro lado, vimos desenvolver na criminologia brasileira,

    menos por esforo terico e mais por uma sensibilidade pessoal dos acadmicos, a recusa

    ao quantitativismo fundamentalista e a adoo de perspectivas interacionistas nas pesquisas

    1Algumas polcias, especialmente a Polcia Militar de Minas Gerais, utilizam algumas contribuies da teoriadas oportunidades em programas por ela desenvolvidos. No campo acadmico, o socilogo Cludio Beatoincorpora elementos da teoria das oportunidades (designao genrica para um conjunto de teorias centradasno estudo do evento criminoso) na sua avaliao do problema da criminalidade no Brasil.

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    envolvendo adolescentes, o trfico de drogas, a organizao do crime, a violncias nas

    escolas.

    De qualquer forma, a criminologia brasileira tem se recusado a abordar a

    criminalidade e a violncia a partir de uma teoria geral da sociedade, ou mesmo a tecer

    relaes decisivas entre microprticas e a macrodinmica da sociedade brasileira.

    Uma pluralidade de culturas

    A economia poltica do sofrimento impe ao brasileiro uma rotina de tal forma

    trgica, desgastante, vil, na medida em que os problemas considerados graves so tantos,

    seja no caos da sade, na falta de moradia adequada, na ausncia do emprego, nos baixos

    salrios, na fragilidade da economia (dcadas de alta inflao, planos econmicos

    fracassados etc) que o discurso do Estado no conseguiu e no consegue encontrar um

    princpio a partir do qual um grande problema possa ser percebido como a matriz de todos

    os outros problemas.

    Quando se pensou que o problema era o prprio Estado, visto como o responsvel

    por todos os males e, ento, se erigiu a privatizao das empresas estatais e a reforma do

    Estado como as solues para se resolver os problemas supracitados, conseguiu-se amplo

    consenso, mas os resultados, quando se observam os problemas sociais e pblicos e os

    impactos do programa de privatizao e da reforma administrativa, foram pfios.

    A percepo pblica quanto gravidade dos problemas relacionados sade,

    criminalidade, ao desemprego, entre outros, desde a campanha de demonizao do Estado

    no incio da dcada de 1990, tem assumido propores de pnico social em larga escala.

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    Quanto ao crime, a face mais trgica da desigualdade social, especialmente o crime

    violento, imprime um cotidiano de medo ao cidado brasileiro. A noo de sociedade de

    risco, do risco fabricado, importante contribuio de Ulrich Beck (1998) e que enfatiza a

    existncia de uma ansiedade generalizada advinda da incerteza quanto possibilidade de

    controle de problemas que so criados pelo desenvolvimento da sociedade industrial (pelo

    progresso da cincia e da tecnologia), no Brasil, tem uma dimenso especial: o risco da

    morte, especialmente o risco de ser vtima de um crime violento.

    O controle do crime no se tornou o tema principal na agenda dos polticos e dos

    operadores do Direito; todavia em alguns Estados da Federao, especialmente em So

    Paulo e no Rio de Janeiro, o crime tem sido plataforma poltica de muitos candidatos ao

    Legislativo e ao Executivo, alm de ser o cargo de Secretrio de Segurana nesses Estados

    um proveitoso trampolim para um incio vitorioso como poltico, onde o discurso sobre o

    crime se tornou essencial para se obter sucesso poltico, o discurso da lei e da ordem e de

    um tratamento duro com o crime nem sempre o vitorioso, embora obtenha sucessos

    pontuais, como nos mostrou Dornelles (2003) a respeito das sucessivas eleies para o

    governo estadual do Rio de Janeiro.

    Desde que as estatsticas sobre a criminalidade comearam a confirmar a exploso

    de todos os tipos de crimes, no incio da dcada de 1980, observamos repetidas eleies

    presidenciais omitirem quase por completo qualquer debate sobre propostas para reduzir e

    prevenir a criminalidade.

    prtica que sobrevive apenas da repetio, transformar certos conceitos em

    culturas e modos de agir que definem os padres de interao social como as recorrentes

    expresses: cultura da inflao, cultura do jetitinho, cultura do atraso, cultura do colonizado

    e a cultura da violncia, a cultura da droga. Machado da Silva (2004, 35), em artigo

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    instigante, procura confirmar a centralidade da violncia urbana na percepo cotidiana do

    cidado, violncia essa percebida como a fragilizao de duas dimenses bsicas: a

    integridade fsica e a garantia patrimonial. E agregava que a violncia urbana a

    categoria de senso comum coletivamente construda para dar conta do fato de que faz parte

    da vida cotidiana um complexo de prticas do qual a fora o elemento aglutinador,

    responsvel por sua articulao e relativa permanncia ao longo do tempo.

    Est ainda para ser confirmada a tese de que pela resoluo do problema da

    violncia que os cidados esperam a modificao de suas rotinas marcadas pelo sofrimento

    cotidiano. No temos dvidas a respeito de que a violncia representa um grave problema

    na escala de juzos dos brasileiros, mas ainda isso no faz do crime a prtica social que

    promove a criao de novas cadeias de problemas.

    O aumento das notcias sobre crimes, especialmente dos crimes violentos, na mdia

    brasileira, tem sido uma estratgia para fortalecer a tese da centralidade do crime como o

    principal problema social e pblico (Wey, 2006); entretanto no nos parece haver ainda um

    consenso a respeito da questo, especialmente porque os textos que discutem as maneiras

    pelas quais a mdia divulga as matrias sobre a violncia, carecem de uma abordagem

    global, algumas analisando os jornais, como, por exemplo, Ramos e Paiva (2005) ou Wey

    (Ibid), discutindo a televiso. Trata-se, para uma discusso sobre a questo do crime, de

    promover pesquisas sobre o contedo das notcias veiculadas pela mdia2e perceber

    vinculaes entre o contedo divulgado e as opinies dos cidados a respeito da

    2Um texto importante de autoria do Professor Gilberto Salgado (2006) faz interessantes consideraes sobreo conceito de mdia, ou melhor, sobre sua inadequao, e prope que cada meio (jornal, televiso, rdio,Internet) deva ser tratado de forma isolada, como se o funcionamento de cada operasse sob uma dinmicaparticular.

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    criminalidade,os modos de pelos quais o Estado atua e as solues ambicionadas pelos

    cidados.

    A PARTICIPAO DA SOCIEDADE

    No encontramos, em momento algum, qualquer discurso oficial em que o Estado

    reconhea a sua incapacidade em reprimir as prticas criminosas e controlar o territrio,

    embora exista, em muitos brasileiros, o costume de empregar a expresso estado paralelo,

    estado associado quando se discute o crime cometido na cidade do Rio de Janeiro.

    O Estado brasileiro somente em raras oportunidades inclui a sociedade como

    parceira no combate e/ou preveno ao crime; na verdade, algumas campanhas

    desenvolvidas pela Polcia Militar (especialmente a gacha e a mineira) incluem a vtima

    como responsvel pelas ocorrncias (especialmente quando se trata de crimes contra o

    patrimnio) e estimulam o cidado a adotar posturas defensivas que incluem vigilncias

    sobre suas carteiras e bolsas, no falar ao celular em pblico, desenvolver acordos com

    vizinhos para uma vigilncia das casas, comprar equipamentos de segurana, dentre outras

    platitudes.

    O cidado e as empresas so, compulsoriamente, integrados na preveno da

    criminalidade na medida em que deve prover sua prpria segurana, adquirindo um sem

    nmero de equipamentos ao custo de quase 19 bilhes de reais ao ano (sistema de cmeras,

    segurana particular, sistema de alarme, segurana na rua, fechaduras especiais, cadeados

    especiais, colocao de grades, alarmes em mercadorias, blindagem de portas, cercas

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    eltricas, treinamento para funcionrios, cofres, sensores etc). No Brasil, 330 companhias

    prestam servios de segurana e empregam mais de 800 mil pessoas.

    Tais gastos ajudam a reforar a viso de que o Estado est completamente

    despreparado e a ausncia de iniciativas para atuar na resoluo do problema da

    criminalidade e parecem-nos uma manifestao daquilo que Foucault (1997, 90) sugeria e

    em tempos neoliberais se confirma, a manifestao de um desejo de no governo.

    MUDANAS MACROSSOCIAIS E A CRIMINALIDADE

    Os marcos para uma avaliao acerca das transformaes da sociedade brasileira

    nos marcos da modernidade tardia e sua associao com o aumento da criminalidade ainda

    est por ser feita. De qualquer forma, observamos que a tendncia mais forte tem sido

    eleger como marco principal a associao entre as transformaes operadas no regime

    poltico - o fim da ditadura - e o crescimento da criminalidade urbana, especialmente

    quanto s suas repercusses daquela experincia poltica na desorganizao do aparelho de

    Estado, promoo de um modelo de desenvolvimento econmico concentrador de renda,

    no processo de urbanizao desorganizada e segregadora, na criao de um aparelho

    policial apenas destinado represso, altamente corrupto e incapaz de desenvolver

    atividades adequadas ao perodo democrtico.

    O tratamento mais profundo das mutaes societrias ocorridas nos ltimos trinta

    anos e que resultou na Nova Sociedade Brasileira ( Sorj, 2000), marcada por padres

    novos de sociabilidade, vinculados sociedade de consumo, s novas formas de

    organizao e representao polticas, crise do Estado, introduo era dos direitos ,

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    violncia, mas ainda exibindo a manuteno, mais ou menos marginais, de padres antigos

    tais como o patrimonialismo, a desigualdade social, espacial, racial e de gnero, o

    autoritarismo, traduzido na produo de desigualdades, ainda que com baixo vis

    hierrquico.

    Os estudos sobre essa nova sociabilidade e seus nexos com a criminalidade tem sido

    produzidos e privilegiam os temas da cultura do consumo (ZALUAR, 1994; COSTA, 2004,

    DIGENES, 2001), o tema da segregao espacial (PIRES CALDEIRA, 2000;), violncia

    e gnero (MUSUMECI SOARES, 1999), violncia e raa (RIBEIRO, 1995), a nova

    juventude (FRAGA, 2000; PAPA e FREITAS, 2003; ASSIS, 1999; NETO et al, 2001;

    DOWDNEY, 2003).

    Bernardo Sorj afirmava, na obra supracitada, que a reivindicao por cidadania tem

    pautado os discursos dos movimentos sociais dos indivduos e dos consumidores, discursos

    esses que esto relacionados a demandas vrias para a resoluo de problemas vinculados

    s reas da sade, habitao, renda, acesso a equipamentos urbanos bsicos,

    reivindicaes de uma nova moralidade quanto ao tratamento das questes de gnero e a

    novas configuraes da famlia.

    De qualquer modo, se a sociedade brasileira experimenta mudanas societrias que

    se assemelham realidade dos pases estudados por Garland, os impasses polticos e

    sociais, associados crise do Welfare State e aplicao de uma poltica neoliberal stricto

    sensu e suas repercusses no tratamento duro dado ao crime, no ver a experincia

    brasileira como uma reproduo do modelo por ele proposto.

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    CONCLUSO

    David Garland no afirmou, como destacamos no incio deste artigo, que a

    dinmica da cultura do controlena Inglaterra e nos Estados Unidos se reproduziria

    exemplarmente em outros contextos e, por isso, nosso exerccio aqui procurou apenas

    chamar a ateno para as possveis dinmicas prprias do crime e da violncia, bem como

    de certa cultura do controle no Brasil.

    No desconhecemos que existem na sociedade brasileira setores que defendem a

    aplicao de polticas cujo sentido se aproxima de uma abordagem da lei e da ordem. As

    recorrentes declaraes de autoridades e cidados para um endurecimento das penas, a

    favor do crcere duro, da informalizao da justia, de tolerncia zero (lato sensu) com o

    crime so provas de que existe algum suporte para o discurso pela lei e ordem; contudo

    poderamos especular se tais manifestaes, longe de demonstrar a reverso de um quadro

    pretrito em que havia uma viso generosa ou tolerante em relao ao criminoso, como no

    Estado Penal de Bem- Estartematizado por Garland, apenas se referem a uma atualizao

    de prticas que so recorrentes desde que poderiam ser apenas atualizadas no esprito da

    abordagem da lei e da ordem.

    De qualquer modo a exploso da criminalidade no Brasil uma situao que no

    pode ser modificada rapidamente. Ela produz uma srie de efeitos psicolgicos e sociais

    que exercem profundas influncias sobre a poltica e sobre a formulao de polticas de

    vrias reas. A exibio de altos nveis de medo e ansiedade que s podem encontrar

    recompensas pela punio dura, se autoreproduz, mesmo em realidades que experenciam

    uma reduo nas taxas de criminalidade.A sociedade de riscos apenas institucionaliza a

    insegurana, uma forma especialmente aguda de viver os riscos.

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    O cenrio no nada otimista. As demandas de uma ampliao da proteo penal

    para pr fim angstia por segurana algo extremamente perigoso. Buscar a proteo de

    direitos atravs do cdigo penal, tal como observamos hoje pelos ecologistas, feministas,

    pacifistas, ongs que buscam a criminalizao de um sem nmero de condutas, corre no

    perigoso campo de fazer do cdigo penal um gestor atpico da moral.

    No captulo dos movimentos progressistas ou de esquerda, no Brasil, preciso dizer

    que os mesmos ainda no se definiram pela poltica de ser duro com o crime, ser duro com

    as causas do crime (como ocorreu na Alemanha, Inglaterra, Espanha etc), embora estejam

    ainda muito distantes de uma escolha por um modelo especfico de tratamento das questes

    relacionadas ao crime.

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