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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Arthur Serra Massuda
Controles na Liberdade de Expressão
A 1ª Conferência Nacional de Comunicação na imprensa
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO
SÃO PAULO
2013
2
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP
Arthur Serra Massuda
Controles na Liberdade de Expressão
A 1ª Conferência Nacional de Comunicação na Imprensa
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica:
análise de mídias, sob orientação do Prof. Dr. José Luiz Aidar
Prado
SÃO PAULO
2013
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Banca Examinadora
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Resumo: Esta pesquisa investiga a cobertura da imprensa brasileira sobre a Primeira Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Para tal, parte da teoria de discurso de Michel Foucault e em especial do conceito de procedimentos de controle do discurso, bem como da teoria política do discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. A análise da cobertura sobre a Confecom foi realizada no corpus constituído pelos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de São Paulo e O Globo, no mês de dezembro de 2009, data da realização da etapa nacional da referida conferência. O resultado da análise revela um discurso jornalístico controlado por uma racionalidade voltada para fins, criando um espaço de invisibilidade em torno das violações de liberdade de expressão denunciadas pela conferência. Além da análise midiática, examinamos também os próprios documentos da Comissão Organizadora da Confecom, acompanhando como os debates se deram na etapa nacional. O resultado mostra um debate efetuado a partir de uma divisão em eixos temáticos e grupos de trabalho e de sua efetividade a partir de procedimentos de votação. O modelo de um debate público capitaneado pela imprensa, em que sujeitos articulados pela técnica jornalística difundem suas expressões por meios de comunicação sobretudo privados, pode ser encontrado nas recomendações do sistema interamericano de liberdade de expressão, da Organização dos Estados Americanos, e é constituído a partir das necessidades da democracia. Nessas recomendações, a democracia opera de forma análoga ao liberalismo utilitário que Foucault discute nas práticas de governo a partir do séc. 18, voltadas para a gestão de interesses entre o público e o privado. Entre as necessidades democráticas, a busca jornalística pelo interesse público se destaca por exigir uma configuração específica na economia política da comunicação para o debate público funcionar adequadamente, caso contrário, lida-se com a ameaça constante da sobredeterminação dessa busca pelo interesse particular. Por outro lado, ao sustentar um discurso produtor de um antagonismo inconciliável, essa posição liberal, embora necessária para a democracia recomendada pelo sistema interamericano, não atende às necessidades da democracia radical defendida por Mouffe em The Democratic Paradox, que busca a inclusão constante daqueles excluídos pelo e do processo político. Ao final, esboça-se uma possibilidade atender às necessidades da democracia radical por meio do controle do discurso jornalístico a partir do enfrentamento de experiências de desrespeito, com os fundamentos da teoria do reconhecimento de Axel Honneth.
Palavras-chave: Confecom; liberalismo; imprensa; direitos humanos; democracia; interesse.
5
Abstract: This research reviews the Brazilian press reports on the First National
Conference on Communications (Confecom). It combines concepts from Michel
Foucault‟s discourse theory, particulary his concept of procedures on discourse control,
and Ernesto Laclau and Chantal Mouffe‟s political theory of discourse. The selection of
press reports on Confecom included those from newspapers Folha de S.Paulo, O
Estado de S. Paulo and O Globo, in December 2009, when the conference took place.
The review reveals a journalistic discourse controlled by an end-oriented rationality,
constituting an invisible space around violations of freedom of expression denounced by
the conference. The research included analysis on documents from the Confecom
Organizing Commission, in order to assess how debates were expected to occur.
Results reveal a debate where discourses were divided into thematic axis and work
groups, while their effectiveness is controlled by vote procedures. A model of public
debate where the press is a protagonist, i.e. subjects articulating journalistic techniques
express themselves through mainly private means of communication, can be found on
recommendations from the Organization of American States‟ inter-American system of
freedom of expression and is designed based on democratic needs. In these
recommendations, democracy is analogue to a utilitarian liberalism that Foucault points
out on government practices during 18th century, aiming the management of public and
private interests. Among the democratic needs, the journalistic quest toward public
interest is questioned as it demands specific configuration on the political economy of
communications in order to work properly. Otherwise, it is always vulnerable to an
overdetermination of particular interests on this quest. On the other hand, by maintaining
an unsolvable public-private antagonism, such liberal position, though a necessity to the
inter-American-recommended democracy, does not measure up to the radical
democracy need advocated by Mouffe on The Democratic Paradox, meaning the
inclusion of those excluded from and by political processes. In the conclusion, an effort
to constitute a public debate to achieve this need is developed based on Axel Honneth
theory of recognition. On such a debate, journalistic discourse is controlled by a
resistance to experiences of disrespect.
Key-words: Confecom; liberalism; press; human rights; democracy; interest.
6
Introdução Controle social sobre a mídia............................................................ 7
Capítulo 1 Controle discursivo no liberalismo.................................................... 14
O liberalismo em oposição à razão de Estado .................................................................. 18
O sistema interamericano de liberdade de expressão ...................................................... 26
Os fundamentos da liberdade de expressão .................................................................... 26
Governamentalidade para um debate público democrático ............................................. 33
O controle da expressão pelo interesse .............................................................. 42
Capítulo 2 A imprensa e a Confecom ................................................................ 45
O Estado de S. Paulo ........................................................................................................ 48
Folha de S.Paulo ............................................................................................................... 54
O Globo ............................................................................................................................. 58
Uma doutrina jornalística ................................................................................................... 62
Capítulo 3 Controle discursivo na Confecom .................................................... 70
A pluralidade de sujeitos na mobilização .......................................................................... 73
A gestão de conflitos pela Comissão Organizadora ......................................................... 78
A produção discursiva na etapa nacional ......................................................................... 85
As propostas e suas denúncias de exclusão .................................................................... 92
Conclusão Um novo debate democrático ....................................................... 102
A dinâmica dos conflitos sociais ..................................................................................... 108
Debate democrático como espaço de reconhecimento .................................................. 110
Sistema de participação .................................................................................................. 115
Referências ..................................................................................................... 117
7
Introdução
Controle social sobre a mídia
8
Em meio a uma paisagem rochosa e sem vida, a última fronteira do mal, uma
instalação abriga o laboratório mais seguro do mundo, onde foram eliminadas as
maiores aberrações existentes na face da Terra: vírus, bactérias, só o que existia de
pior. Numa cela especial, ainda habita a criatura mais temida: um monstro mantido
congelado para jamais despertar de novo. Porém, um sentinela sonolento não percebe
a temperatura subindo... e o alarme toca. O monstro da censura escapa!
Como um documentário de vida selvagem, flores se abrem, aves migram e
leões-marinhos nadam, enquanto o locutor mexe com os sonhos humanos de liberdade,
um sonho no qual os seres humanos, além de livres, detêm direitos. Pois a liberdade
sem direitos... é um tubarão se alimentando, um guepardo perseguindo um filhote de
antílope. Num tom didático e lúdico inspirado no documentário de Jorge Furtado A Ilha
das Flores (1989), o locutor apresenta o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, que versa sobre a liberdade de expressão, e denuncia a concentração dos
meios de comunicação no Brasil, que prejudica o direito de muitos cidadãos de receber
e transmitir ideias por quaisquer meios.
O vídeo Não Deixe o Monstro da Censura Acordar1 é assinado pelo Centro de
Referência sobre Liberdade de Expressão – um empreendimento do Conselho de
Autorregulamentação Publicitária (CONAR) e da Escola Superior de Propaganda e
Marketing (ESPM). Já a produção Levante sua voz2 foi realizada pelo Intervozes -
Coletivo Brasil de Comunicação Social, com o apoio da Friedrich Ebert Stiftung e da “lei
de incentivo ao „te vira‟” e do “ministério da cultura do „faz com pouca grana‟”. Ambas as
produções denunciam diferentes ameaças das quais a liberdade de expressão precisa
ser defendida, o monstro da censura e a selvageria da concentração dos meios de
comunicação. Com tantos defensores, a liberdade de expressão pareceria um
consenso no Brasil. O problema é que a solução para a selvageria vem sendo
sistematicamente associada a um monstro: os perigos do controle social sobre a mídia
são denunciados pelos sujeitos cuja selvageria se pretende controlar como as
condições para se instituir um ambiente propício à censura. Trata-se de uma disputa de
1 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=Px3bnCwJMjo>. Acesso em: 9 ago. 2013.
2 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=gf3Votr52QQ> e
<http://www.youtube.com/watch?v=gr6qFODxkAA>. Acesso em: 9 ago. 2013.
9
ameaças.
Esta pesquisa apresenta o funcionamento discursivo das estratégias que deveriam
organizar um debate democrático, discute como algumas condições precisam estar
controladas e vigiadas para que os discursos das populações possam florescer e
circular livres como um leão-marinho pelo ambiente social, disputando corações e
mentes. Pode parecer contraintuitiva uma associação entre controle e liberdade, dado o
senso comum de que liberdade seria a ausência de amarras e controle essas mesmas
amarras. No entanto, é o controle de algumas condições – na produção do discurso, na
adequação dos discursos circulantes e na seleção dos sujeitos enunciadores – que
organiza os discursos no sentido de atingir um determinado fim social, para que
resultados possam surgir da interação desses discursos: seja a condução de conflitos
sociais de maneira a não atentarem contra a integridade física e moral das identidades
constituintes e constituídas por esses discursos, seja a conquista da livre expressão por
qualquer pessoa independente de sua posição social, seja a denúncia de ameaças à
ordem estabelecida ou pretendida.
A importância de um estudo focado nas escolhas que nossa sociedade faz para
controlar suas ordens discursivas recai sobre o desvelamento de quais fins são esses e
com quais estratégias se pretende atingi-los. Se o controle social sobre a mídia seria o
primeiro passo para a censura ou a domesticação das forças econômicas no debate
público, revela-se aí uma disputa sobre o que deveríamos temer mais: a intervenção –
na forma de políticas públicas, regulação e regulamentação – ou a falta de intervenção
social sobre o debate público, deixando-o fluir autorregulado. Ambos as posições
buscam sua forma de liberdade, mas têm estratégias distintas para atingi-las. O foco no
controle discursivo revela tais estratégias assegurando uma independência em relação
a discursos legitimadores desses controles. O filósofo francês Michel Foucault faz a
seguinte reflexão a esse respeito:
Nós nos dizemos: como temos um fim, devemos controlar nosso funcionamento.
Enquanto que, na realidade, é apenas sobre a base dessa possibilidade de
controle que podem surgir todas as ideologias, as filosofias, as metafísicas, as
religiões que oferecem uma determinada imagem capaz de polarizar essa
possibilidade de controle do funcionamento. Você entende o que quero dizer? É
a possibilidade de controle que faz nascer a ideia de fim. Mas a humanidade
10
não dispõe de nenhum fim, ela funciona, controla seu próprio funcionamento e
cria, a cada instante, as formas para justificar esse controle (FOUCAULT apud
CASTRO, 2009, p. 85).
Em Foucault, o termo controle aparece inicialmente para designar uma série de
mecanismos de vigilância surgidos nos séculos 18 e 19 com a função nem tanto de
punir o desvio, mas de corrigi-lo e preveni-lo. O controle social constitui uma população
gerenciada em função de modelos normativos integrados ao Estado, enquanto institui
um sistema de individualizacão que se destina a modelar cada individuo e a gerir sua
existência (REVEL, 2005, p. 29-30). Mais recentemente, no entanto, sob a ótica da
democratização brasileira, o termo tem sido utilizado pelo governo e pela sociedade civil
como uma forma de gestão participativa das políticas públicas e do combate à
corrupção3.
Em ambos os casos, o controle busca a correção, a prevenção e a punição de
desvios de acordo com o modelo normativo de referência para instituir tal controle. A
partir daquilo de que não se quer desviar, necessidades são formadas: se queremos
uma população manejável, precisamos normalizar os colonos de um território; se não
queremos corrupção, precisamos fiscalizar a condução dos gestores públicos. Se
falamos de controle social, portanto, é indispensável tratar de sua referência normativa.
Nesse sentido, reivindicar a liberdade de expressão para promover uma
normalização ou condenar um desvio é um tipo de controle: por esse termo fazemos
entender algumas expectativas de práticas e saberes – comportamentos e instituições –
em torno das capacidades comunicativas do ser humano. Por exemplo, expectativas
como livre acesso à informação tornam necessárias práticas como a produção e
circulação sistemáticas de informação por uma pluralidade de fontes independentes.
3 Em 2012, por exemplo, ocorreu a 1ª Conferência Nacional sobre Transparência e Controle Social
(Consocial), cujo tema foi “A sociedade no acompanhamento e controle da gestão pública”. Este autor
testemunhou na primeira reunião da Comissão Organizadora Nacional uma confusão atribuída ao termo
“controle social”. Inicialmente convocada como Conferência sobre Transparência e Participação Social, o
evento criou a expectativa de discussões sobre mecanismos de participação direta, ao invés de o foco
pretendido no combate à corrupção. Com a mudança para controle social, a Associação Brasileira de
Jornalismo Investigativo se retirou do processo com base precisamente no sentido negativo que o termo
carregaria para a imprensa.
11
Divide-se a finalidade proposta das estratégias para atingi-la, ou seja, em nome do que
se condena um desvio e como evitar um desvio. A liberdade de expressão, dessa
maneira, sempre contou com um controle social sobre seu exercício, já que existem
referências normativas muito claras em relação ao que configuraria um desvio (como
monopólios informativos) e estratégias para a realização dessas referências. Quais
mecanismos estratégicos serão instituídos para organizar o debate público, por
exemplo, pode depender de se é o mercado ou o Estado que precisa ter seus desvios
controlados para a existência de uma pluralidade de fontes de informação.
A descrição das necessidades que o Estado e o mercado podem suprir para um
debate público vigoroso, e de quais desvios não serão tolerados, pode ser encontrada
no discurso sobre direitos humanos, especificamente nos sistemas de proteção regional,
como aquele sob o guarda-chuva da Organização dos Estados Americanos. O objetivo
do capítulo 1 é revelar o que o sistema interamericano entende por liberdade de
expressão e como ela deveria funcionar: as finalidades que deve atender e a estratégia
para atingi-las. A partir da estratégia instituída para a aplicação desses fundamentos,
identidades ganham importância, condições se tornam indispensáveis e algumas
práticas são inadmissíveis e ameaçadoras. Os desvios que o sistema interamericano
recomenda evitar fazem referência a uma tradição do liberalismo na qual o Estado é
controlado para garantir a independência dos governados; independência, porém,
sempre em risco, o que cria a necessidade de uma série de condições para uma
relação da imprensa com o Estado e com o mercado funcionar de forma adequada,
sem desvios perigosos.
No capítulo 2, examina-se como funcionam os controles discursivos em um
debate público capitaneado pela imprensa. A cobertura sobre a 1ª Conferência Nacional
de Comunicação pelos jornais O Globo, Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo
revela como o controle na produção discursiva da imprensa é orientada por uma
racionalidade específica que organiza o espaço social a partir do interesse do veículo.
Mais grave, esse controle discursivo torna invisível precisamente as situações de
desrespeito que motivariam a organização de uma conferência sobre políticas públicas
de comunicação.
No capítulo 3 investiga-se a organização dos discursos no interior do debate
12
conferencial, por meio do estudo de caso da última etapa da 1ª Conferência Nacional
de Comunicação, em dezembro de 2009. A análise trata tanto de controles discursivos
exercidos por uma comissão organizadora que diferenciam esse debate daquele
recomendado pelo sistema interamericano – pois funciona pelo princípio de
colaboração entre governantes e governados –, quanto das propostas de controle que
emergiram do processo: uma amostra das resoluções aprovadas é discutida a partir do
procedimento proposto de controle discursivo com o fim de incitar um debate sobre os
resultados da conferência. A Confecom foi generalizada pela imprensa como uma
ameaça, o que tornou invisíveis situações de desrespeito à liberdade de expressão
denunciadas nas resoluções finais. Ao invés de focar em como determinado controle
pode ser uma ameaça, o capítulo busca a finalidade do controle, a situação de abuso
que se pretendeu reverter.
O foco no controle discursivo abre a possibilidade de mudar a estratégia pela
qual saberes fundamentais sobre a liberdade se tornam práticas sociais. Se temos
consciência dos resultados da aplicação de determinados procedimentos de controle
discursivo, tais mecanismos podem ser aperfeiçoados. Um esboço dessa possibilidade
é apresentado na conclusão deste trabalho com a proposta de um modelo de debate
público no qual o desvio não acontece pela ação interessada entre governantes e
governados, mas na ocorrência de uma experiência de desrespeito, em consonância
com a teoria do reconhecimento de Axel Honneth. Um debate vigilante a experiências
de desrespeito diante dos movimentos sociais, em que circulem discursos
emancipatórios e sejam conectados sujeitos em rede ganha um horizonte moral até
agora perdido no debate liberal voltado para a gestão de interesses do mercado.
Esse percurso pretende incitar uma agenda de pesquisa que retire a liberdade de
expressão de sua posição liberal defensiva e de um direito que precisa ser protegido
contra as pretensas ameaças sociais. Para isso, no entanto, é preciso ter clareza de
que não há expressão absolutamente livre, já que todo discurso apresenta uma ordem
própria, que organiza o espaço social. Ao contrário, é preciso conhecer o exercício dos
procedimentos de controle do discurso, de maneira a permitir uma ordem democrática
capaz de se reordenar perante situações de exclusão, reconhecendo e incluindo novas
identidades e valores. Isso não se consegue com o controle remoto da televisão, o
13
único controle social admissível para o representante da Associação Nacional dos
Jornais (FOLHA, 2009b); mas com uma incidência social sobre as relações de
comunicação com finalidades claras e estratégias compatíveis com a democracia.
14
Capítulo 1
Controle discursivo no liberalismo
15
Fato marcante para aqueles que acompanharam a 1ª Conferência Nacional de
Comunicação (Confecom), denominação dada a um conjunto de conferências sobre o
tema realizadas pelo Brasil ao longo de 2009, foi a retirada em bloco das entidades
empresariais do processo conferencial. Em 13 de agosto de 2009, seis das oito
entidades representantes de empresários da comunicação abandonaram suas posições
na Comissão Organizadora Nacional (CON) para acompanhar as etapas conferenciais
de longe, sem “interesse algum em impedir sua livre realização” (FNDC, 2009). Elas
fundamentaram sua saída pela reação negativa de interlocutores na CON, que incluía
governo e sociedade civil, a incorporar os “preceitos constitucionais da livre iniciativa,
da liberdade de expressão, do direito à informação e da legalidade” (Idem) nos
documentos organizadores da Confecom. Em 18 de dezembro de 2009, a Associação
Brasileira de Empresas de Radiodifusão e Televisão (Abert), que capitaneara a saída
das outras entidades, soltou a nota “Conferência Nacional de Comunicação termina
com propostas que ameaçam a liberdade de imprensa”, em que diz que o resultado
conferencial atentaria contra “a liberdade de imprensa e a livre iniciativa” (ABERT, 2009).
A partir dessa fundamentação, as entidades empresariais denunciaram o suposto
funcionamento no interior do processo conferencial de uma racionalidade de ameaça à
ordem democrático-constitucional, para elas detectável desde as primeiras etapas de
organização.
Mas algo não fecha nessa linha de raciocínio. Convidadas pelo governo, as
entidades empresariais tinham mesmo poder de voto que a sociedade civil não
empresarial, ou seja, não eram meros sujeitos legitimadores de um processo de cartas
marcadas. Além disso, conferências de políticas públicas são espaços de participação
nos processos de gestão dessas políticas, instâncias em que qualquer cidadão pode
recomendar diretrizes e ações ao governo em relação a algum tema ou área de
incidência. No caso da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, milhares de
participantes das etapas municipais, estaduais, livres e nacional produziriam esses
conteúdos que seriam o resultado de todo o processo – no entanto, as entidades
empresariais já haviam formado uma posição sobre a Confecom antes mesmo de ela
produzir resultados. Em seu discurso, a saída das entidades foi necessária para a
defesa da liberdade, que estaria ameaçada por um “viés ideológico” (Idem) na
16
conferência. As entidades, portanto, se posicionaram a partir de uma lógica em que
ideias específicas constituiriam um risco à segurança de determinado ordenamento. O
foco nos documentos que essas entidades publicaram para sustentar sua saída verifica
a articulação de um saber que funciona de maneira específica, sensível a perigos a
uma certa ordem e que posiciona o sujeito para sua defesa. O saber de que se trata é
aquele chamado de liberalismo, cuja forma de organização do espaço social é o objeto
de estudo deste capítulo.
Para incidir sobre essa ordem discursiva, será utilizado o instrumental teórico de
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe sobre análise de discurso. Segundo Howarth et al.
(2000, p. 7-16), esse referencial se desenvolve em torno da disputa política pelo sentido.
O caráter contingencial do sentido – o fato de um fenômeno poder ser interpretado por
diversos discursos e nenhum deles ser capaz de totalizá-lo – implica em uma disputa
por hegemonia entre diversas forças sociais: todas buscam posicionar o fenômeno em
disputa dentro de sua perspectiva discursiva para possibilitar uma agência política. A
disputa se a Confecom seria uma ameaça à democracia ou a própria realização da
democracia demonstra o esforço de diferentes projetos políticos de organizar
discursivamente o espaço social, modalizar a conferência e promover seus programas.
A organização discursiva do espaço social ocorre pela fixação de alguns sentidos que
estruturam uma rede de significados, os chamados pontos nodais. A partir desses
pontos de referência, identidades podem ganhar sentidos diferentes: “Estado” pode ser
um problema se articulado por uma rede de significados que tem como referência o
“mercado” ou uma solução se articulado a partir dos “direitos” das partes sociais em
contenda.
Nesse contexto de disputa, antagonismos sociais representam uma ameaça a
ordens discursivas pelo funcionamento da lógica da equivalência. “Essa lógica funciona
criando identidades equivalentes que expressam negação pura de um sistema
discursivo”4 (HOWARTH et al, 2000, p. 11), ou seja, na presença de um Outro que
ameaça a existência de uma ordem de discurso, essa lógica opera atribuindo
identidades ao Outro que neguem aquelas pertencentes à ordem discursiva, dividindo o
espaço social num confronto entre identidades que não podem coexistir. Frases como
4 Tradução nossa.
17
“ou está conosco ou está contra nós” expressam essa operação ao anular todas as
diferenças sociais em prol de um conflito selecionado que resume identidades a aliados
e inimigos, opressor e oprimido, bem e mal, etc.
Howarth (2000, pp. 8-9) aponta ainda para o desenvolvimento que Laclau opera
na lógica de estruturação discursiva do social pela criação do conceito de significante
vazio. O significante vazio funciona como um ideal, algo presente por sua ausência e
que orienta diferentes estratégias políticas em busca desse ideal, como “liberdade de
expressão” ou “interesse público”. Os agentes sociais disputarão a hegemonia de
sentido sobre esses significantes vazios. Se a liberdade de expressão é o direito que
impede qualquer intervenção social sobre os meios de comunicação ou é o direito a
partir do qual os meios de comunicação são objeto de debate e agência social, isso
caracteriza uma disputa política em torno de um significante que ganhou grande
importância no ordenamento da sociedade: aquele sentido de liberdade de expressão
que conquista corações e mentes, hegemoniza-se e orienta o funcionamento da
comunicação na direção dos empresários midiáticos (o do interesse capitalista) ou na
direção democrática de inclusão de vozes que até agora estão fora do espaço público
comunicacional, sem canais.
Como esses conceitos denunciam, menos preocupada com a motivação das
entidades empresariais para se retirar do processo conferencial, esta análise se volta
para o funcionamento do saber articulado por essas organizações na construção de sua
identidade como defensoras da liberdade. É um saber que desperta interesse pelo
sentido que atribui àqueles que se oporiam a tal identidade, relegados a ser inimigos
dessa liberdade. Ao fundamentar a saída das entidades, ao organizar os sentidos que
explicariam tal ação social, esse saber liberal não deu chances à Confecom: esta virou
uma ameaça à liberdade de imprensa e aquele se enunciou como defensor da
liberdade. Trata-se de uma inversão retórica. Pretende-se aqui contestar tal
interpretação demonstrando não hipocrisia, alienação ou ingenuidade desses
“defensores” liberais, pois isso seria entrar na disputa prevista pela hegemonia que as
entidades constituíram: acusá-las só reforçaria sua posição de defesa. Contesta-se tal
interpretação a partir das consequências antidemocráticas de se pensar a liberdade de
expressão sempre a partir de suas ameaças, o que deixa acuada uma sociedade em
18
constante risco de ser deixada no silêncio.
Ao invocar preocupações como liberdade de expressão e direito à informação, o
discurso das entidades midiáticas hegemônicas se insere em uma tradição de
pensamento bem específica: o liberalismo. Para compreender o funcionamento dessa
tradição, retoma-se a genealogia que Michel Foucault (2008b, p. 3-95) faz do
liberalismo em suas aulas de 1979 no Collège de France, ocasião em que se dedica à
análise da arte do exercício da soberania política, em uma investigação histórica a
respeito da reflexão e racionalização das práticas de governo5. Ele identifica a origem
do liberalismo nessa reflexão, quando alguns saberes passaram a conceber o Estado a
partir de seus limites e a organizar a soberania política no sentido de produzir certas
condições que deveriam se sobrepor a todas as contingências. No liberalismo, essa
organização das práticas de governo se orienta em um sentido: a produção de
liberdade.
O liberalismo em oposição à razão de Estado
Para revelar as origens do liberalismo, Foucault identifica, no decorrer do século
16, "a emergência de um certo tipo de racionalidade na prática governamental, um certo
tipo de racionalidade que permitiria regrar a maneira de governar com base em algo
que se chama Estado" (FOUCAULT, 2008b, p. 6). Segundo a chamada razão de Estado,
o governante deve respeitar as leis divinas, morais e naturais, mas não é expressão dos
poderes divino, imperial ou paternal. O Estado, continua Foucault, surge como uma
realidade específica e descontínua, com sua existência concretizada na organização da
produção e dos circuitos comerciais (mercantilismo), na regulação do país a partir de
um modelo de organização urbana (gestão interna policial) e na manutenção da
pluralidade de Estados concorrentes na balança de poder internacional (aparelhos
permanentes diplomático-militares). Do século 17 ao início do 18, essa racionalidade foi
hegemônica, com a regulação da vida e atividades dos súditos, da produção e dos
preços visando à concorrência e equiparação do Estado a outros num sistema
5 Segundo Castro (2004), Foucault considera práticas “a racionalidade ou a regularidade que organiza o
que os homens fazem (...), que têm um caráter sistemático (saber, poder, ética) e geral (recorrente) e, por
isso, constituem uma „experiência‟ ou um „pensamento‟”.
19
internacional, ou seja, uma racionalidade que objetivava o fortalecimento e o
enriquecimento do Estado. “O que é governar? Governar segundo o princípio da razão
de Estado é fazer que Estado possa se tornar sólido e permanente, que possa se tornar
rico, que possa se tornar forte diante de tudo o que pode destruí-Io” (FOUCAULT, 2008b,
p. 6).
Na oposição a essa racionalidade, mas ainda no interior de reflexões com
pretensões racionalizantes, Foucault identifica o movimento dos dois saberes que mais
tarde dariam corpo ao liberalismo: uma tradição jurídica de crítica ao poder real e uma
reflexão crítica sobre as práticas governamentais desdobrada da própria razão de
Estado. Nesse contexto, surgiram teorias envolvendo direitos naturais ou um contrato
social e reflexões histórico-jurídicas sobre um estado pré-estatal de direitos primitivos.
Em ambos os casos, uma racionalidade surge a partir de uma suposta naturalidade (do
ser humano, de processos sociais) que deve ser respeitada enquanto o Estado
organiza uma população entrelaçada a valiosas dinâmicas econômicas. O liberalismo
seria uma crítica interna da razão governamental, uma reflexão constante sobre as
fronteiras de competência das práticas de governo, buscando impedir qualquer
possibilidade de excesso.
A liberdade da tradição jurídica
Na Idade Média, a prática judiciária fora um multiplicador do poder real. Com um
"sistema de justiça acompanhado de um sistema armado", afirma Foucault, "o rei pouco
a pouco limitou e reduziu os jogos complexos dos poderes feudais" (2008b, p. 11). Esse
sistema de justiça medieval sofreu uma mudança com a ascensão, até a hegemonia, da
razão de Estado e suas pretensões de poder ilimitado: do século 17 ao início do século
seguinte, o direito passou a funcionar na subtração do poder real, tornando-se o apoio
para todos que buscavam limitar a extensão indefinida das práticas governamentais.
Era uma batalha política dos juristas contra a razão de Estado a partir de certas "leis
fundamentais", localizadas fora da razão de Estado, que estabeleceriam os limites das
práticas de governo.
Para Foucault, a tradição jurídica, ao se integrar ao direito público, ou seja, ao
regular a prática governamental a partir de dentro das instituições estatais, torna-se
20
uma vertente do liberalismo – que nomeia de axiomática, jurídico-dedutiva,
rousseauniana ou revolucionária.
[P]rocurar definir quais são os direitos naturais ou originários que pertencem a
todos os indivíduos, definir em seguida em que condições, por causa de que,
segundo que formalidades, ideais ou históricas, aceitou-se uma limitação ou
uma troca de direito. Consiste também em definir os direitos cuja cessão se
aceitou e, ao contrário, os direitos para os quais nenhuma cessão foi acordada
e que permanecem, por conseguinte, em qualquer condição e sob todos os
governos possíveis, ou em todo regime político possível, direitos imprescritíveis.
(FOUCAULT, 2008b, p. 54).
A partir dessa tradição jurídica de autolimitação, portanto, direitos originais
devem ser preservados na sociedade política e qualquer intervenção pela soberania
seria a princípio irracional e ilegítima, afinal, foi exatamente para mantê-los que se teria
formado o Estado. Consagra-se uma concepção sobretudo francesa de liberdade que
funciona como o exercício de certos direitos fundamentais, uma liberdade que projeta
uma vontade de verdade6 que exercerá pressão e coerção sobre outros discursos
sociais. Esses direitos e liberdades fundamentais formam o regime de verdade da via
jurídico-dedutiva do liberalismo, segundo Foucault.
Quando digo regime de verdade, não quero dizer que a política ou a arte de
governar, por assim dizer, finalmente, alcança nessa época a racionalidade.
Não quero dizer que se atingiu nesse momento uma espécie de limiar
epistemológico a partir do qual a arte de governar poderia se tornar científica.
Quero dizer que esse momento que procuro indicar atualmente, que esse
momento é marcado pela articulação, numa série de práticas, de um certo tipo
de discurso que, de um lado, o constitui como um conjunto ligado por um
vínculo inteligível e, de outro, legisla e pode legislar sobre essas práticas em
termo de verdadeiro e falso. (FOUCAULT, 2008b, p. 25).
Pode-se afirmar, e isto será posto em teste por esta análise, que aquela racionalidade
desenvolvida em oposição ao absolutismo, a racionalidade que regula o Estado a partir
de certa verdade inviolável na condição humana, persiste hoje no direito internacional
6 Foucault (2008a, pp. 13-21) considera a vontade de verdade um procedimento de exclusão, na ordem
do discurso, de outros discursos que buscam contornar ou questionar uma proposição. Essa proposição
é separada de seu contexto histórico e tem suas conclusões eternizadas, relegando a alteridade à
condição de falsidade.
21
público. Mas essa não é a única racionalidade identificável nos sistemas internacionais
de proteção de direitos humanos. Em sua genealogia, Foucault menciona outra vertente
do liberalismo que regula a arte de governar, uma tradição que se desenvolve a partir
de outro regime de verdade, com origem na economia política. De forma surpreendente,
ela também se encontra presente em discursos de direitos humanos, especialmente os
relativos à liberdade de expressão.
A liberdade da tradição utilitarista
Foucault identifica a emergência, em meados do século 18, de outra forma crítica
à razão de Estado, mas, diferente daquela surgida da prática jurídica, com raízes no
interior das próprias práticas de governo: uma reflexão com origens na necessidade de
organizar a produção e os circuitos comerciais e que teve como instrumento intelectual
a economia política (então uma disciplina da filosofia moral que guiava os governantes).
Ao se debruçar sobre os efeitos das práticas governamentais na organização,
distribuição e limitação dos poderes sociais, teóricos de economia política formalizam a
existência de fenômenos, processos e regularidades nos objetos da intervenção. Ao
mexer na economia, concluem, o Estado lida com leis da natureza.
[A] economia política revelou a existência de fenômenos, de processos e de
regularidades que se produzem necessariamente em função de mecanismos
inteligíveis. Esses mecanismos inteligíveis e necessários podem, claro, ser
contrariados por certas formas de governamentalidade, por certas práticas
governamentais. Podem ser contrariados, podem ser perturbados, podem ser
obscurecidos, mas, como de todo modo não será possível evitá-los, não se
poderá suspendê-los total e definitivamente. (FOUCAULT, 2008b, p. 21).
De acordo com Heilbroner (1996, pp. 43-72), o filósofo moral Adam Smith foi o
primeiro a formular um esquema amplo e sistemático com interesse próprio e
competição articulados para manter uma sociedade coesa, construindo uma ordem
social sobre esse entendimento. A Riqueza das Nações, publicada em 1776, veio a
contestar a noção fisiocrata de "que apenas o trabalhador agrícola produzia a
verdadeira riqueza e que os trabalhadores da indústria e do comércio apenas alteravam
sua forma" (HEILBRONER, 1996, p. 49), em prol da ideia, mais urbana e menos
aristocrática, de que é o trabalho o “real” produtor de valor. O Estado devia se
22
preocupar não com o acúmulo de metais preciosos ou a nocividade do entesouramento
do excedente agrícola, mas entender as leis de mercado de formação dos preços e
fazer uma boa gestão de sua moeda.
O mercado, no sentido bastante geral da palavra, tal como funcionou na Idade
Media, no século XVI, no século XVII, creio que poderíamos dizer, numa palavra,
que era essencialmente um lugar de justiça. (...) Logo, lugar dotado de
regulamentação – isso era o mercado. (...) O que devia ser assegurado era a
ausência de fraude. Em outras palavras, era a proteção do comprador. A
regulamentação de mercado tinha por objetivo, portanto, de um lado, a
distribuição tão justa quanto possível das mercadorias, e também o não-roubo,
o não-delito. (...) Esse sistema – regulamentação, justo preço, sanção da fraude
– fazia portanto que o mercado fosse essencialmente, funcionasse realmente
como um lugar de justiça, um lugar em que devia aparecer na troca e se
formular nos preços algo que era a justiça. Digamos que o mercado era um
lugar de jurisdição.
Ora, é aqui que a mudança se produz (...). O mercado surgiu, em meados do
século XVIII, como já não sendo, ou antes, como não devendo mais ser um
lugar de jurisdição. O mercado apareceu como, de um lado, uma coisa que
obedecia e devia obedecer a mecanismos "naturais", isto é, mecanismos
espontâneos, ainda que não seja possível apreendê-los em sua complexidade,
mas espontâneos, tão espontâneos que quem tentasse modificá-Ios só
conseguiria alterá-los e desnaturá-Ios. De outro lado – e é nesse segundo
sentido que o mercado se torna um lugar de verdade –, não só ele deixa
aparecer os mecanismos naturais, como esses mecanismos naturais, quando
os deixam agir, possibilitam a formação de certo preço (...), um certo preço
natural, bom, normal, que vai exprimir a relação adequada, uma certa relação
adequada entre custo de produção e extensão da demanda. (FOUCAULT, 2008,
pp. 42-4).
A ideia de uma natural harmonia social pelo autointeresse, num ambiente de
perfeita concorrência, ancorou ao mercado a formulação de uma nova razão
governamental. Se uma “verdade natural” faria o mercado funcionar sob suas próprias
regras em prol de toda a sociedade, à figura do Estado só resta dar as condições para
que essas leis naturais não sejam corrompidas. De outra maneira, se as técnicas e
práticas de governo que interferem na população do território em prol dessa verdade
não respeitarem tal natureza, estarão fadada ao fracasso.
23
Foucault (2008b, p. 60) localiza no início do século 19 a ascensão das
formulações de problemas de direito público em termos do princípio de utilidade: se as
trocas sociais são o movimento real que mantém a sociedade, a soberania política só
deve ser exercida quando houver alguma utilidade para esse movimento. E é esse o
elemento final para a razão do Estado mínimo: a prática governamental é condicionada
a um valor de uso perante um sistema em que autointeresses em competição
determinam o verdadeiro valor das coisas. As ações governamentais que não
obedeçam a esse critério de utilidade constituem excesso de governo, recaindo na
modalização do irracional, inadequado, inconveniente. O governo será útil, explica
Foucault, quando ajudar a gerir os jogos de interesse.
Agora, o interesse a cujo princípio a razão governamental deve obedecer são
interesses, é um jogo complexo entre os interesses individuais e coletivos, a
utilidade social e o benefício econômico, entre o equilíbrio do mercado e o
regime do poder público, é um jogo complexo entre direitos fundamentais e
independência dos governados. O governo, em todo caso o governo nessa
nova razão governamental, é algo que manipula interesses. (FOUCAULT, 2008b,
p. 61).
E um dos desafios dessa vertente do liberalismo, que Foucault chama de
utilitária ou radicalismo inglês, será produzir liberdade na “república fenomenal dos
interesses” (FOUCAULT, 2008b, p. 63). Se, segundo seus princípios, uma harmonia
social surge naturalmente quando indivíduos buscam seus próprios interesses, as
práticas governamentais devem fazer o necessário para que haja as condições de
liberdade, aqui entendida como independência dos governados.
Isso nos leva a outra distinção igualmente importantíssima; de um lado, vamos
ter uma concepção da liberdade que é uma concepção jurídica – todo indivíduo
detém originalmente certa liberdade da qual cederá ou não certa parte – e, de
outro, a liberdade não vai ser concebida como exercício de certo número de
direitos fundamentais ela vai ser percebida simplesmente como a
independência dos governados em relação aos governantes. (FOUCAULT,
2008b, p. 57).
Diferente da tradição jurídica do liberalismo, em que a liberdade se concretiza no
exercício dos direitos fundamentais, a liberdade utilitária se realiza no interior da relação
entre governantes e governados. Aqueles devem estar sempre atentos para que os
24
diferentes interesses particulares não representem um risco ao interesse de todos.
Inversamente, faz-se necessário proteger os interesses individuais contra tudo o que se
revelar um abuso dos interesses coletivos. Risca-se uma fronteira que opõe um sujeito
privado, que para contribuir para a sociedade deve buscar seu interesse particular, e um
sujeito público, que deve ser acionado quando necessário em termos de interesse
coletivo. É uma tensão central e constitutiva das práticas estatais: há sempre a
insegurança do limite ser violado e a harmonia social prejudicada. Isso cria a
necessidade do alerta constante e introduz uma lógica de enfrentamento e risco nas
práticas sociais, um jogo entre liberdade e segurança.
Se a arte liberal de governar é uma que fundamentalmente manipula interesses,
então o Estado não pode deixar de ser o gestor dos perigos e dos mecanismos de
segurança e liberdade que protegem os indivíduos. Foucault (2008b, pp. 90-3) identifica
três consequências da presença dessa racionalidade nas práticas de governo. Primeiro,
uma cultura do perigo. O cotidiano traz ameaças que ganham narrativas próprias7: viver
torna-se inseparável de uma consciência constante do perigo, pois é preciso estar
sempre atento àquele interesse que possa abalar o frágil equilíbrio entre soberano e
súditos. Segundo, há a extensão dos procedimentos de controle, pressão e coerção, o
que o teórico social chama de dispositivos disciplinares. Se o governo deve abrir
espaço para a mecânica natural dos comportamentos e da produção e não exercer
influência, pelo menos em princípio, então ele fica limitado à função da vigilância sobre
aquilo que é irracional, inadequado, inconveniente, um perigo à comunidade política,
provocando uma normalização das práticas sociais que, quando ameaçada, terá o
Estado como sua garantia. À rede de relações estratégicas para tal normalização é que
se dá o nome de dispositivo. Terceiro, essa arte liberal de governar introduz, e será
vítima de, crises de governamentalidade dos dispositivos disciplinares. Quando os
perigos estão inflacionados – por exemplo, na presença de uma ameaça iminente ou
uma revolta disciplinar –, os dispositivos passam a produzir o inverso a que se
propuseram, num intervencionismo que pode ser opressivo.
7 Foucault (2008b, p. 90) cita como exemplo a emergência da literatura policial e do interesse jornalístico
pelo crime na Inglaterra do século 19, momento e local de hegemonia dessa vertente do liberalismo.
25
Há, enfim e sobretudo, processos de saturação que fazem que os mecanismos
produtores da liberdade, os mesmos que foram convocados para assegurar e
fabricar essa liberdade, produzam na verdade efeitos destrutivos que
prevalecem até mesmo sobre o que produzem. É, digamos assim, o equívoco
de todos esses dispositivos que poderíamos chamar de „liberógenos‟, de todos
esses dispositivos destinados a produzir a liberdade e que, eventualmente,
podem vir a produzir exatamente o inverso. (FOUCAULT, 2008b, p. 93).
O impacto dessas formulações no discurso que compõe a compreensão
contemporânea de liberdade de expressão pode ser verificado nos atuais sistemas
internacionais de proteção de direitos humanos. Esses sistemas, vinculados a alguma
organização internacional, como as Nações Unidas ou a Organização dos Estados
Americanos (OEA), desenvolvem os chamados padrões internacionais, que orientam a
interpretação de ativistas e operadores de direito sobre os tratados internacionais de
direitos humanos e contribuem para sua difusão na sociedade. Perante a OEA, a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969)8 é o documento básico com
efeitos jurídicos vinculantes que fundamenta o sistema de proteção interamericano,
incluindo o relativo à liberdade de expressão. Mas seria limitadora uma análise desse
documento vinculante, pois tais sistemas produzem comentários, estudos, declarações
e jurisprudência na perspectiva de criar padrões internacionais de direitos humanos em
determinados temas. Nenhum país está obrigado juridicamente a seguir essas
interpretações – a não ser que o documento vinculante o faça expressamente, como é o
caso das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, instrumento da
Convenção Americana –, mas o detalhamento das geralmente vagas obrigações dos
documentos internacionais vinculantes são formulações valiosas para aqueles que
buscam o reconhecimento de um direito numa experiência particular de violação. Por
ser produzido por um organismo internacional, trata-se de um discurso com um
argumento de autoridade estratégico em contextos de disputa por espaços sociais,
visando influenciar normativamente diferentes realidades. O uso dos "padrões
8 Ratificada pelo Brasil em 1992, quando reconheceu a competência da Corte Interamericana de Direitos
Humanos e condicionou as visitas locais da Comissão Interamericana de Direitos Humanos a autorização
prévia do país.
26
internacionais" desloca o conflito de seu contexto específico para inseri-lo num debate
moral, cosmopolita e normalizante, seguindo um saber cuidadosamente elaborado.
O sistema interamericano de liberdade de expressão
Esta análise se reclina sobre os padrões recomendados pelo sistema
interamericano. No exame dos padrões de liberdade de expressão, usa-se como
referência o documento "The Inter-American Legal Framework regarding the right to
freedom of expression" (o marco legal interamericano relativo ao direito à liberdade de
expressão). Compilada pelo Escritório da Relatoria Especial para Liberdade de
Expressão, mecanismo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a
publicação apresenta como os padrões regionais, formulados por especialistas, pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos e pela Comissão, podem ser instrumentos
de promoção da liberdade de expressão nas mãos de operadores do direito, juízes,
juristas e legisladores. É um documento, portanto, de promoção e divulgação sobre
como todo o conjunto formado pelo sistema interamericano se articula pela liberdade de
expressão.
O documento está dividido em duas partes. A primeira se dedica ao marco legal
do sistema interamericano para a liberdade de expressão e a segunda trata de como
tais padrões foram incorporados nos sistemas jurídicos nacionais em 2009. Esta análise
foca apenas a primeira parte, que por sua vez mantém como divisões principais: a)
Importância e função do direito a liberdade de expressão; b) Principais características
do direito à liberdade de expressão; c) Tipos de discurso protegidos pela liberdade de
expressão; d) Limites da liberdade de expressão; e) A proibição contra a censura e
restrições indiretas à liberdade de expressão pelas autoridades; f) Jornalistas e os
meios de comunicação social; g) O exercício da liberdade de expressão por agentes
públicos; h) Liberdade de expressão no contexto eleitoral; i) Pluralismo, diversidade e
liberdade de expressão. Em seu conjunto, o documento revela as expectativas e
premissas liberais do que seria um debate público democrático.
Os fundamentos da liberdade de expressão
O regime interamericano fixa a definição da liberdade de expressão a partir de
três necessidades, "funções" que desempenham em sistemas democráticos e cuja
27
contestação recairia na modalização do falso: a expressão de uma "virtude" comum que
iguala os seres humanos; a circulação dessas expressões como a própria possibilidade
para a democracia; e o exercício de todos os outros direitos fundamentais (IACHR,
2010, p. 2-4)9. Três proposições que são decisões, decisões institucionais a favor de
três vontades de verdade.
Em Foucault (CASTRO, 2009, pp. 421-2), a verdade é um sistema de exclusão
discursiva, sendo a vontade de verdade um procedimento voltado para conjurar os
poderes e perigos do discurso, dividindo aquilo que é aceito por aquela ordem
discursiva daquilo que não é. Fixam-se aquelas constâncias que devem persistir
através de todas as contingências e, para isso, orientarão as técnicas e as práticas que
alocam recursos e assujeitam os indivíduos. Segundo Avelino (2010), o último Foucault
busca explicitar como regimes de verdade estão sempre conectados a regimes
políticos, jurídicos etc. por alguma estrutura de obediência: o exercício do poder exige
não somente atos de submissão, mas também atos de verdade, que garantem a
adesão dos sujeitos.
Por regime de verdade, Foucault quer indicar a existência de um dispositivo da
verdade segundo o qual os discursos não apenas funcionam como verdadeiros,
mas também os mecanismos, as instâncias e os modos para distinção entre o
falso e o verdadeiro são definidos; os procedimentos e as técnicas para
obtenção da verdade são produzidos; o estatuto daqueles que dirão a verdade
é definido. (AVELINO, 2010, p. 146).
A primeira fixação de sentido na capacidade de "pensar por nós mesmos e
compartilhar nossos pensamentos com os outros" (IACHR, 2010, p. 3) anuncia uma
igualdade na condição humana10. As práticas comunicativas podem ser administradas
por uma fórmula jurídica (o direito de liberdade de expressão) que regula a circulação
9 Todas as citações do documento são de tradução nossa.
10 Ao considerar a liberdade de expressão uma competência de produção, pode-se ficar tentado a invocar
uma analogia para aproximar essa racionalidade à teoria neoliberal do capital humano (FOUCAULT,
2008, pp. 302-320), que conceitua (e valoriza) o sujeito a partir de seu estoque de capacidades em uma
situação de escassez. Mas nem competição nem escassez aparecem articuladas para a construção
desse regime de verdade. Em vez disso, é o exercício virtuoso de algumas práticas (pensar, comunicar,
construir) que aparece aqui como o próprio valor a ser preservado igualmente a todos, aproximando-a da
tradição jurídica do liberalismo.
28
livre e igualitária de expressão e recepção independentemente da posição relativa dos
sujeitos: há certa condição humana que jamais deve ser violada. Ao compreender assim
o sentido de liberdade de expressão, o sujeito é posicionado para enfrentar um
antagonismo a cada experiência em que virtudes comunicativas não forem igualmente
respeitadas em suas variadas formas. Este é um regime de verdade que rejeita a
censura.
O sistema interamericano descreve quais seriam essas posições a serem
preservadas contra a censura, as formas de expressão protegidas, que seguem em
termos de direitos (IACHR, 2010, pp. 7-10):
direito à fala, incluindo a escolha da língua para se
expressar;
direito à escrita, também na língua escolhida;
direito de disseminar a expressão oral ou escrita através dos
meios de comunicação de sua escolha, com a intenção de
comunicá-la ao maior número de pessoas possível;
direito à expressão artística e simbólica, à disseminação da
expressão artística e a acessar arte, em todas as suas formas;
direito de buscar, receber e ter acesso a expressões, ideias,
opiniões e informações de todo tipo;
direito de acessar informação pessoal em banco de dados e
registros privados e públicos, com o direito de atualizar, corrigir e
emendar seus dados;
direito de possuir informação, escrita ou em outro meio,
transportá-la e distribuí-la.
No sistema interamericano, as expressões resultantes das capacidades
comunicativas do ser humano em algum suporte tecnológico são tratadas como
"conteúdo". As práticas descritas acima são os acessos idealmente igualitários e livres
para que sujeitos incidam sobre conteúdos relativos a si ou ao mundo, incluindo
aquelas consideradas portas de entrada para o debate público. Observa-se que essas
práticas não prescindem de certa ampliação das capacidades comunicativas humanas,
incorporando sob a proteção jurídica o acesso a equipamentos tecnológicos.
29
O revolucionário anglo-americano Thomas Paine, nos EUA de 1806, escrevia
sobre como a Revolução Gloriosa, na Inglaterra de 1688, havia marcado a liberdade de
imprimir, o acesso sem a exigência de autorização pelo soberano a uma tecnologia de
comunicação e informação que ampliava o alcance de expressões: a prensa (LIMA,
2010, pp. 40-43). O marco trouxe aos poderes fora do Estado o protagonismo na
organização dos processos comunicativos associados ao uso de tecnologias,
propiciando a propriedade privada dos meios de comunicação, enquanto formulações
que culminariam em uma noção de propriedade intelectual de bens simbólicos
cercearam a manipulação, visibilidade e circulação de conteúdo (uma necessidade da
Revolução Industrial). Esses dois "cercamentos" que fundaram a organização de nosso
debate público não seriam modalizados como censura, já que não tiveram sua origem
nas práticas de Estado, mas podem provocar restrições à liberdade de expressão e
impactos culturais. O receio liberal em torno da independência dos governados foca
bastante nos perigos que o poder estatal representa a esse acesso ao simbólico, mas
tem pouco a dizer sobre as restrições de acesso originadas de outras instâncias de
poder. Como será abordado na próxima seção, o sistema interamericano recomenda
práticas antimonopolísticas que incidem sobre a propriedade privada das tecnologias,
mas silencia quanto a temas como propriedade intelectual ou direitos autorais.
A segunda dita "função" da liberdade de expressão é a criação da condição de
possibilidade da democracia: o debate publico. O sistema interamericano apresenta
uma ênfase particular no projeto democrático, por motivos históricos (as ditaduras
latino-americanas) e geopolíticos (a democracia dos Estados Unidos como forte
referência ideológica). O artigo 4º da Carta Democrática Interamericana (2001) 11
posiciona a "liberdade de expressão e de imprensa" como "component[e] fundamenta[l]
do exercício da democracia", enquanto a Comissão Interamericana declarou, em ao
menos duas ocasiões 12 que o propósito do artigo 13 da Convenção Americana é
11
Documento não-vinculante adotado pela Terceira Cúpula das Américas, realizada de 20 a 22 de abril
de 2001, na Cidade de Québec, Canadá. A Carta foi definitivamente aprovada pelos Estados Membros
da OEA durante uma Sessão Extraordinária da Assembleia Geral realizada em 11 de setembro de 2001,
em Lima, Peru.
12 Nos casos Ivcher-Bronstein v. Peru e Olmedo-Bustos et al. v. Chile.
30
"fortalecer a operação de sistemas democráticos pluralistas e deliberativos através da
proteção e promoção da livre circulação de informação, ideias e expressões de todos
os tipos" (IACHR, 2010, p. 3).
Este regime de verdade está no campo de significações políticas: a escolha não
foi sustentar uma liberdade de circulação simbólica, por exemplo, em prol da educação,
da saúde ou das artes, mas a favor daquelas expressões que tenham uma relação com
as práticas consideradas necessárias para a existência da democracia. A partir das
necessidades democráticas, a livre circulação de expressões relevantes para a
sociedade política é um valor atemporal, independente de contextos sociais e históricos,
mas identificável pelo debate público.
Nessa perspectiva, se o exercício do direito à liberdade de expressão tende não
apenas em direção à realização pessoal daqueles que se expressam, mas
também em direção à consolidação de sociedades verdadeiramente
democráticas, o Estado tem a obrigação de gerar as condições para garantir
que o debate público não apenas satisfaça as necessidades legítimas de todos
como consumidores de uma dada informação (entretenimento, por exemplo),
mas também como cidadãos. Ou seja, as condições necessárias devem ser
dadas para haver uma deliberação aberta, plural e pública sobre os assuntos
que interessam todos nós como cidadãos de um determinado Estado. (IACHR,
2010, p. 4).
A condição para a democracia, portanto, se refere a uma certa qualificação do
debate público, um certo governo necessário da circulação das expressões humanas
para a possibilidade dessa sociedade política. Com fins de construir um debate público
democrático, o sistema interamericano de liberdade de expressão orienta certa
organização dos poderes sociais na comunicação, recomenda que as práticas de
governo ajam em determinado sentido (IACHR, 2010, p. 3): (i) a formação de uma
opinião pública informada e consciente de direitos; (ii) a criação de oportunidades para
o controle cidadão sobre a condução dos assuntos públicos; e (iii) a imputabilidade dos
agentes públicos. O debate público do sistema interamericano, a condição para a
democracia, assim, trata de criar instâncias que possam também se contrapor ao poder
do Estado. Isso ocorre porque a vontade de que essas proposições se tornem uma
31
verdade social é governada por uma lógica 13 que condiciona a existência da
democracia à negação de certas práticas: esse regime de verdade organiza-se pela
rejeição à possibilidade de autoritarismo na relação entre governantes e governados. A
democracia, assim, é constituída a partir daquilo que a ameaça, o que cria a
necessidade de limitar o poder estatal. A organização do debate público a partir das
necessidades ditadas por essa oposição/ameaça pode ser verificada na concepção de
ordem pública:
Em uma democracia, a legitimidade e o poder [strength] das instituições são
fortalecidos [strengthened] pelo vigor [force] do debate público sobre o
funcionamento daquelas, não pela supressão deste. Além disso, a
jurisprudência interamericana estabelece claramente que, de maneira a impor
qualquer tipo de pena em nome da defesa da ordem pública (compreendida
como segurança, moral ou saúde públicas), é necessário demonstrar que o
conceito de "ordem" sendo defendido não é um autoritário, mas uma ordem
democrática compreendida como a existência de condições estruturais que
permitam a todas as pessoas exercer seus direitos em liberdade, sem
discriminação ou temor de punição como consequência. Em efeito, para a Corte
Interamericana, genericamente, a ordem pública não pode ser invocada para
suprimir um direito garantido na Convenção Americana, desnaturalizá-lo ou
despojá-lo de seu conteúdo real. Se esse conceito é invocado como fonte de
limitação aos direitos humanos, deve ser interpretado de maneira estritamente
ligada às justas demandas de uma sociedade democrática que mantém em
mente o equilíbrio entre interesses em jogo e a necessidade de preservar o
objeto e os objetivos da Convenção Americana. (IACHR, 2010, p. 21)
A ordem entendida como gestão de interesses mantém afastada a autocracia
(interna e externa) pela diferenciação do interesse público dos outros particulares. Há
uma divisão do espaço social que cria um nós e um Outro: se queremos democracia, é
preciso vigiar o autoritarismo. E a vigília recomendada, o ponto de vista que organiza o
espaço analítico de um defensor da democracia, é aquela da gestão de interesses, o
que ancora a liberdade de expressão em um modelo específico de funcionamento
democrático. Isso abre a possibilidade de disputa no debate público por dois
significantes vazios, pois aquele discurso que ocupar o sentido, conquistar o status de
13
Trata-se da lógica da equivalência. No caso, democracia e autocracia são opostos negativamente e
ganham status equivalente de dois regimes antagônicos.
32
interesse público ou interesse particular pautará a democracia recomendada pelo
sistema interamericano.
A terceira fixação de sentido da liberdade de expressão está em seu uso em
relação aos outros direitos fundamentais, sendo “instrumento-chave para o exercício de
todos os outros direitos fundamentais” (IACHR, 2010, p. 4). Seu papel é de acesso a
outros direitos garantidos na Convenção Americana, o que coloca a liberdade de
expressão no "coração do sistema de proteção aos direitos humanos nas Américas"
(Idem). Ou seja, a liberdade de expressão é o veículo de promoção dos valores morais
nos direitos humanos, ao mesmo tempo em que deve ser exercida dentro do rol de
significações dessa moralidade. Após dois regimes de verdade que pretendem orientar
as práticas de produção da liberdade de expressão, negando a censura ou o
autoritarismo, este regime incorpora tal produção específica a um programa mais
amplo: a produção de todos os outros direitos humanos.
Ao definir liberdade de expressão, o sistema interamericano posiciona três
verdades: uma "virtude" ou capacidade humana cujas necessidades extinguem as
desigualdades no ato da comunicação para que ninguém seja interditado; uma
estratégia necessária para constituir sociedades democráticas e diferenciá-las das
autoritárias; e uma prática civilizatória, cuja necessidade recai precisamente na
capacidade de criar contingências político-jurídicas em que os direitos humanos são
invocados. Se considerarmos, para fins de análise, a liberdade de expressão um
significante vazio, essas três ordens compartilham harmonicamente a hegemonia no
discurso do sistema interamericano: uma antagoniza práticas de interdição, outra as
autoritárias e a última expande indefinidamente a ordem discursiva dos direitos
humanos, todas em prol da liberdade de expressão. Um comunicador censurado, um
denunciante inconformado e um ativista de direitos humanos, por exemplo,
contingencialmente passam a ter relação quando submetidos à perspectiva da
liberdade de expressão, que os posiciona como seus defensores.
Até agora, viu-se certa confluência entre a genealogia do liberalismo de Foucault
e a análise política dos regimes de verdade do sistema interamericano de liberdade de
expressão. Ambos articulam certa condição humana inviolável e a necessidade de
produzir liberdade, abrindo a possibilidade do antagonismo por excelência liberal: se a
33
liberdade é produzida, ela pode ser restrita. A resposta do liberalismo e do sistema
interamericano para lidar com o risco constante da negação de sua própria ordem
discursiva é a gestão das condições de liberdade. Para o regime interamericano, a
ameaça que divide o espaço social é a prática autoritária e sua contenção se faz pela
gestão de interesses públicos e privados.
Essa arte de governo envolta em uma cultura do perigo põe em funcionamento
práticas e técnicas para construir a relação entre suas verdades e os sujeitos que as
praticam. Com fins de constituir uma rede de relações estratégicas que permitam a
preservação e a multiplicação dos fundamentos da liberdade de expressão, o sistema
interamericano traz um amplo rol de recomendações dessas práticas e técnicas, objetos
de próxima seção.
Governamentalidade para um debate público democrático
O termo governamentalidade, introduzido por Foucault, visa deslocar a análise
do poder para dar conta das mudanças nas formas de governar com a racionalização
reflexiva do liberalismo. Com a generalização das técnicas disciplinares em direção a
uma arte de governar, “o governo das condutas é tanto um problema de autogoverno
quanto um problema de governo da condução dos outros” (SANTOS, 2010, pp. 226-7).
Uma intenção é se desviar de questões ontológicas a respeito do poder e se focar em
como o mesmo é exercido: revelar estruturas de obediência a um regime de verdade.
Avelino (2010) descreve duas dimensões desse tipo de análise: uma voltada para as
tecnologias de segurança que fazem funcionar elementos jurídicos e disciplinares por
meio de suas práticas, e outra programática, que diz respeito a programas de governo e
racionalidades governamentais. Essas racionalidades, segundo Dean (apud AVELINO,
2010, pp. 145-6), são o “produto de um conjunto de práticas sociais inscritas no interior
de relações de „poder-saber‟”. A governamentalidade, assim, trata das técnicas e
práticas que incidem na população de um território a ser governado a partir dos saberes
instituídos nos regimes de verdade.
Ao estabelecer uma condição em que a liberdade de expressão é um direito que
garante a expressão individual e ao mesmo tempo promove a circulação social de
informação, o sistema interamericano trata daquilo que chama de dimensão dual da
34
liberdade de expressão: uma individual e outra coletiva. Cada dimensão precisa de
práticas e técnicas distintas para a desejada produção de liberdade. Mas essa interação
entre os regimes de verdade sobre capacidades comunicativas e sobre democracia não
produz conflito, ao contrário, um é condição para o outro.
Uma das principais consequências do dever de garantir as duas dimensões
simultaneamente é que uma não pode ser afetada pela invocação da
preservação da outra como justificativa; assim, por exemplo, “alguém não pode
legitimamente recorrer ao direito de uma sociedade de ser informada
honestamente para implementar um regime de censura prévia com o suposto
propósito de eliminar informação considerada ser mentirosa aos olhos do
censor. É igualmente verdade que o direito de disseminar informações e ideias
não pode ser invocado para justificar a implantação de monopólios públicos ou
privados dos meios de comunicação com o propósito de moldar a opinião
pública pela expressão de apenas um ponto de vista”. (IACHR, 2010, p. 6).
A rejeição à censura e à sobredeterminação do interesse privado (na disputa
pelo sentido de interesse público) organiza como o discurso do sistema interamericano
recomenda as práticas que possam dar as condições de possibilidade desse programa.
Por um lado, tenta-se conciliar a necessidade de limites à liberdade de expressão com
a rejeição à censura. Isso será feito pela legislação, pela limitação jurídica das
práticas de governo do Estado. Por outro, cria-se uma proteção especial ao livre fluxo
na circulação de informação de interesse público, uma necessidade para a gestão de
interesses. Essa proteção especial se concretiza pelo pluralismo informativo: do lado do
Estado, recomenda-se a transparência das práticas de governo, e do lado dos
governados, certa organização das condições de circulação das informações.
O programa de governo interamericano
Comecemos com a dimensão individual. A rejeição à censura em todas as suas
formas trata de interdições por motivos econômicos (como monopólios), atos de
violência e práticas de origem estatal. Para evitar tais interdições, o sistema
interamericano recomenda a normalização das práticas dos representantes do Estado
(juristas, legisladores, operadores de direito, enfim, o público-alvo do documento em
análise) para controlar a produção de qualquer discurso de limitação à liberdade – e de
maneira tal que nenhum dos regimes de verdade seja afetado. Trata-se de um
35
procedimento de controle de produção de novos discursos, o qual Foucault chama de
disciplina14.
A disciplina determina as condições que uma determinada proposição deve
cumprir para entrar no campo do verdadeiro: estabelece de quais objetos se
deve falar, que instrumentos conceituais ou técnicas há que utilizar, em que
horizonte teórico deve inscrever-se. (CASTRO, 2009, p. 111).
A recomendação é proibir legalmente a censura prévia e incorporar certas
condições ao uso, sempre de caráter excepcional, de práticas de controle de conteúdo:
De acordo com a interpretação na jurisprudência do sistema interamericano, o
artigo 13.2 da Convenção requer que as três seguintes condições sejam
cumpridas de maneira a uma limitação à liberdade de expressão ser admissível:
(1) a limitação deve ter sido definida de maneira clara e precisa pela legislação,
no senso formal e material; (2) a limitação deve servir aos objetivos legítimos
autorizados pela Convenção; (3) a limitação deve ser necessária em uma
sociedade democrática para servir aos objetivos legítimos perseguidos,
estritamente proporcional ao objetivo perseguido e apropriada para servir tal
objetivo legítimo. (IACHR, 2010, p. 24).
Discursivamente, isso ocorre pela sensibilização de alguns gatilhos, significantes
vazios, que organizarão a defesa da liberdade de expressão. Ninguém deve ser
impedido de se expressar, os direitos humanos devem regular a expressão e interesses
não devem ser empecilho: censura prévia, discriminação e restrições “indiretas” são as
preocupações de um defensor da liberdade de expressão, que deverá ser vigilante ao
surgimento de discursos e práticas que permitam a análise prévia de um conteúdo, ou a
seleção de conteúdo a partir de sua origem identitária, ou ainda o uso restritivo de
tecnologias de informação. Para lidar com isso, a jurisprudência do sistema
interamericano elaborou um teste de três partes que organiza a produção do discurso
normativo. Para uma limitação à liberdade de expressão ser legítima, i.e. aceitável pelo
regime de verdade, precisa seguir a seguinte prescrição disciplinar (CASTRO, 2009, pp.
31-3):
14
Em Foucault, há dois usos para o termo disciplina, como explica Castro: “Um na ordem do saber (forma
discursiva de controle da produção de novos discursos) e outro na do poder (o conjunto de técnicas em
virtude das quais os sistemas de poder têm por objetivo e resultado a singularização dos indivíduos)”
(CASTRO, 2009, p. 110).
36
1) As limitações não devem chegar à censura prévia, razão pela
qual elas devem ser determinadas apenas através da imposição
de responsabilidade subsequente e proporcional;
2) As limitações não podem ser discriminatórias ou produzir efeitos
discriminatórios;
3) As limitações não podem ser impostas por meios indiretos como
os proscritos pelo artigo 13.3 da Convenção Americana (abusos
privados e governamentais sobre a imprensa, as frequências de
radiodifusão ou sobre equipamento usado na disseminação de
informação ou outro meio que impeça a comunicação e circulação
de ideias e opiniões).
A estratégia de afastar a censura pelo controle interno das práticas estatais
proíbe o Estado de ser um censor e o impele a governar as condições que permitam o
surgimento de “abusos”. A lista de recomendações ao Estado é significativa. O regime
interamericano recomenda que os agentes estatais sejam abertos e compreensivos a
críticas e garantam um ambiente sem práticas dissuasórias à expressão – sem
intimidação, agressão, perseguição, homicídio etc., com um sistema judiciário célere,
independente e consciente de direitos. Qualquer reparação (nunca punição) por um ato
comunicativo ocorre a posteriori, levando em conta seu contexto, por meio de uma corte
não criminal que toma decisões de forma proporcional, a partir de leis claras e precisas,
compatíveis com os direitos humanos e necessárias para uma democracia funcional.
Tal responsabilidade deve ser atribuída em nome do respeito pelos direitos e
reputações de outros ou da proteção da segurança nacional, ordem pública ou a moral
e saúde públicas, o que inclui uma proteção especial para crianças e adolescentes e a
rejeição à propaganda de guerra e à discriminação em todas as suas formas.
Essa descrição do Estado de Direito ideal do sistema interamericano indica o
modo de fazer a liberdade de expressão funcionar a partir das relações jurídicas que
governam a prática dos representantes do Estado, como gestores, legisladores e juízes.
Mas essas recomendações trazem poucos elementos alheios a uma organização dos
poderes oficiais. Como a liberdade de expressão funciona na sociedade? Se o Estado
está contido e organizado para não haver incidências indevidas sobre o direito
37
individual, na dimensão coletiva, como os sujeitos desse direito se organizam, segundo
o sistema regional de direitos humanos?
A tecnologia de segurança interamericana
O discurso constitutivo do debate público recomendado pelo sistema
interamericano é de ameaça. A dimensão coletiva da liberdade de expressão é a
democracia, e o que o documento em análise nos ensina sobre a democracia? Sua
ordem é diferenciada da autoritária pela gestão de interesses: há uma lógica de
equivalência que estende o antagonismo “democracia e autoritarismo” ao antagonismo
entre “interesse público e interesse particular”. A necessidade de vigilância ao interesse
particular é um alerta constante, e o sistema interamericano apresenta algumas
tecnologias que promovem a regularidade dessa necessidade nas práticas dos sujeitos.
A gestão de interesses exige a livre circulação de informações de interesse público para
a alimentação de alguns mecanismos de controle: informar a opinião pública e
possibilitar o controle social sobre o governo. Para haver a produção sistemática desses
discursos informativos, é preciso de técnicas que incorporem tal programa vigilante nas
práticas sociais. E há um conjunto de práticas sociais que conquista a posição de
necessidade democrática precisamente pela capacidade de produzir de forma
sistemática discursos para informar a opinião pública, expor o governo e atribuir
responsabilidades.
Jornalismo, no contexto de uma sociedade democrática, é uma das mais
importantes manifestações da liberdade de expressão e informação. O trabalho
de jornalistas e as atividades da imprensa são elementos fundamentais para o
funcionamento de democracias, já que jornalistas e os meios de comunicação
mantêm a sociedade informada de eventos e suas variadas interpretações –
uma condição necessária para o debate público ser robusto, informado e
vigoroso. É também claro que uma imprensa crítica e independente é elemento
fundamental para a efetividade de outras liberdades em um sistema
democrático. (IACHR, 2010, pp. 59-60).
Agora, o sistema interamericano não está mais no campo da limitação interna
das práticas estatais e passa a organizar as necessidades da população do território,
que precisa de sujeitos treinados em uma técnica de articulação discursiva da realidade
chamada jornalismo. Se a censura estatal foi contida pelo programa normalizante das
38
práticas dos governantes, a vigilância sobre as outras ameaças sociais à ordem
democrática será feita por uma tecnologia de segurança, aquela prática social regular
que realiza a estratégia de segurança da democracia recomendada pelo sistema
regional. Mas a prática regular do discurso jornalístico não é o bastante, porque o
próprio território deve manter certa organização de seus recursos para que a imprensa
satisfaça as necessidades de uma democracia. Para que a vigilância de interesses e
sua gestão de riscos funcionem da maneira recomendada, ou seja, alimentando os
mecanismos de controle citados acima (a opinião pública, as instâncias de controle
cidadão), certas condições se fazem necessárias.
A liberdade de expressão exige certas condições a respeito do funcionamento
dos meios de comunicação, de maneira que “tal mídia possa, na prática, ser
instrumento verdadeiro dessa liberdade e não veículo para sua restrição”15
, já
que a mídia serve para por o exercício desse direito na prática. “Isso significa
que as condições de seu uso devem se conformar às necessidades dessa
liberdade”. Essas condições incluem, entre outras: (a) pluralidade da mídia; (b)
a aplicação de lei antimonopólio nesse campo, de forma a impedir a
concentração de meios, em qualquer forma – o Princípio 12 da Declaração de
Princípios sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana
estabelece nesse respeito que “[m]onopólios ou oligopólios na propriedade e
controle dos meios de comunicação devem estar sujeitos a leis antitruste, já que
conspiram contra a democracia ao limitar a pluralidade e diversidade que
garantem às pessoas o exercício pleno do direito à informação” – e (c) a
garantia de proteção à liberdade e independência dos jornalistas que trabalham
para os meios. Também foi reconhecido que a liberdade de expressão “exige,
em princípio, que os meios de comunicação sejam potencialmente abertos a
todos sem discriminação ou, mais precisamente, que não haja indivíduos ou
grupos que estejam excluídos do acesso a tais meios”. (IACHR, 2010, pp. 71-2).
15
Todos os apud se referem originalmente a “I/A Court H.R. Compulsory Membership in an Association
Prescribed by Law for the Practice of Journalism (Arts. 13 and 29 American Convention on Human
Rights). Advisory Opinion OC-5/85 of November 13, 1985. Series A No. 5, para. 4”.
39
Verifica-se nesse trecho que o jornalismo, essa necessidade tecnológica16 que
protege a democracia de suas ameaças, carrega dentro de si a potencialidade de
produzir seu inverso: se as condições de liberdade na enunciação não forem instituídas,
a mídia pode ser “veículo para sua restrição”. O jornalismo como tecnologia de
segurança da democracia precisaria estar entranhado a uma rede de relações para
produzir a liberdade que o sistema interamericano propõe. Considerado um bastião
contra as ameaças à democracia pelo sistema interamericano, o jornalismo consiste de
discursos que separam o interesse público do privado no espaço social, mas é uma
prática exercida sobretudo em posições privadas de enunciação. A pluralidade, a livre
competição (contrário do monopólio) e a independência do comunicador – as condições
para o bom funcionamento da vigilância que permite a gestão de riscos, que remetem à
tradição utilitarista do liberalismo – compensariam essa característica ao permitir uma
disputa aberta e igualitária pelo significante vazio em debate público, mas sem tais
condições essa rede estratégia para a democracia pode entrar em crise e deixar de
“produzir liberdade”.
Essa crise surge da constituição do debate público a partir da solução da
tradição utilitarista do liberalismo para o antagonismo entre público e privado, com a
noção de independência dos governados. A produção dessa independência é feita pela
gestão e vigilância de interesses, que fundamentam a própria razão de existência da
imprensa. O sistema interamericano reforça esse papel ao atribuir a discursos de
interesse público uma proteção especial.
Embora seja verdade que todas as formas de expressão sejam protegidas em
princípio pela liberdade garantida no artigo 13 da Convenção, existem certos
tipos de discurso que recebem proteção especial por sua importância ao
exercício de outros direitos humanos, ou à consolidação, funcionamento
adequado e preservação da democracia. Na jurisprudência do sistema
interamericano, os tipos de discurso especialmente protegido são os três
seguintes: (a) discurso político e discurso envolvendo matérias de interesse
público; (b) discurso relativo a agentes públicos no exercício de suas funções e
16
Por tecnológico se entende aqui não os instrumentos de comunicação e informação que ampliam as
capacidades humanas, mas especificamente o discurso jornalístico voltado para a busca regular e
sistemática de racionalidades voltadas para fins interessados.
40
candidatos a cargo público; e (c) discurso que seja elemento de dignidade
pessoal ou identitária da pessoa que se expressa. (IACHR, 2010, p. 11).
Se a censura e o autoritarismo no Estado são contidos por uma disciplina jurídica
que normaliza suas práticas, a população de um território terá suas práticas
normalizadas para a democracia liberal a partir de um dispositivo disciplinar: uma
imprensa privada e competitiva que busca discursivamente o interesse público,
protegida especialmente por um discurso jurídico de liberdade de expressão. E, como
um dispositivo liberógeno, nos termos de Foucault (2008, pp. 92-3), está sempre em
risco e está sempre exposto à possibilidade de uma “crise de governamentalidade”.
Assim, a segurança da democracia recomendada pelo sistema interamericano
conta com a vigilância normalizadora de um dispositivo disciplinar: a imprensa, que
vigia interesses com a técnica jornalística para haver a possibilidade de uma gestão
desses interesses. No entanto, qualquer configuração na economia política da
comunicação alheia à recomendável pelo sistema interamericano trará a possibilidade
de um interesse privado se impor na gestão de riscos da sociedade. Essa
sobredeterminação provoca uma crise de governamentalidade porque a imprensa deixa
de ter um papel de vigilância para assumir a própria gestão dos interesses, ela passa a
ditar “o equilíbrio entre interesses em jogo e a necessidade de preservar o objeto e os
objetivos da Convenção Americana” (IACHR, 2010, p. 21).
Ao consistir de uma rede de sujeitos que ocupam uma posição estratégica na
comunicação social, aquela que controla17 os recursos tecnológicos coletivos de acesso
à disputa pelo que será determinado como interesse público (antenas, prensas), esse
dispositivo tem o poder de selecionar quais interesses terão visibilidade em sua
“missão” de informar a opinião pública, fiscalizar o governo e atribuir responsabilidades.
A gestão por essa seleção autointeressada (pois privada e competitiva) na visibilidade
de ações interessadas e ameaçadoras não se limita a uma dimensão racional,
conquistando outra emocional, com a disseminação da cultura do medo e do perigo. É o
17
Vale salientar que esse controle não diminui sua relevância social com o surgimento da Internet. Basta
lembrar que os portais de notícias mais acessados na Internet são os dos meios de comunicação que
detêm o controle dessas tecnologias analógicas. Ver em
<http://www.meioemensagem.com.br/home/midia/noticias/2013/03/11/R7-passa-terra-no-ranking-dos-
portais.html>. Acesso em: 25 jul. 2013.
41
cerne dessa estratégia de segurança. Ao buscar o interesse de qualquer natureza, do
de movimentos sociais ao seu próprio, a imprensa interpreta intenções de ameaça e as
encontra em algum momento de sua vigilância seletiva, multiplicando as possibilidades
de perigo no mundo democrático. O “equilíbrio” de interesses ganha uma dimensão
emocional, não uma que revela os sofrimentos da condição humana, mas uma que
explora os perigos dessa condição.
Ao recomendar um debate público vigilante a interesses, além de limitar o bom
funcionamento de seu dispositivo a certas condições ideais, o sistema interamericano
abre a possibilidade da submissão de objetos e sujeitos de interesse público à lógica da
equivalência. A democracia é a negação discursiva do autoritarismo, assim como o
interesse público é a negação do interesse particular e vice-versa. Uma imprensa
voltada para ameaças à democracia corre o risco de produzir sistematicamente
discursos com oposições organizadas por uma lógica inconciliável: a tecnologia que
movimenta o debate público é produtora de antagonismos.
O procedimento discursivo pode ser ainda aquele dos dispositivos de segurança.
Dispositivos de segurança miram naquilo que ainda não aconteceu. Como
resultado, estratégias de segurança operam como uma gestão de „séries
abertas que só podem ser controladas por uma estimativa de probabilidades‟.
Seguindo Foucault, ameaças à liberdade na economia de segurança assumem
a forma de eventos imprevisíveis e incertos que podem nunca acontecer, mas
são sempre possíveis. (WICHUM, 2013, p. 167).
A estratégia de segurança democrática sugerida pelo sistema interamericano é a
vigilância sobre algumas ameaças à liberdade de informação, que devem ser
controladas. Esse controle é exercido pela produção de discursos que organizam o
presente a partir da possibilidade negativa e antagônica que um risco representa para o
futuro incerto. Na criação de um conflito inconciliável, portanto, não há necessidade da
existência real do sujeito ou objeto antagônico à sociedade democrática: basta sua
existência simbólica. O monstro da censura ou intenções autoritárias podem povoar o
imaginário sem haver uma expressão material correspondente, em prol da manutenção
de certa cultura do perigo. A questão que se apresenta é se um discurso de liberdade
de expressão pode produzir menos perigos à democracia e mais práticas democráticas
para o imaginário coletivo.
42
Não se trata aqui de condenar uma imprensa que exponha antagonismos sociais,
mas de posicionar criticamente aquela que os produz. Algo ainda mais preocupante se
dá quando as condições para seu bom funcionamento são restritas e, quando não
satisfeitas, trazem a possibilidade de produção sistemática do inverso do interesse
público. A massificação tecnológica promovida pela Internet pode multiplicar os sujeitos
no debate público, mas não incide sobre a cultura política de uma democracia de se
pautar pela busca jornalística pelo interesse público.
Mas existe ainda outra problemática relacionada à constituição da liberdade de
expressão a partir do referencial do interesse público.
O controle da expressão pelo interesse
Pela análise das recomendações do sistema interamericano de liberdade de
expressão, percebe-se a preocupação de impedir a interdição das expressões humanas
por parte do Estado, disciplinando legalmente seus representantes, e por parte do
mercado, com a pluralidade, competição e independência dos comunicadores treinados
para a democracia, os chamados jornalistas. No caso do agente público, disciplina-se,
pelo saber-poder jurídico, a produção de práticas que possam controlar conteúdo, de
modo a evitar a censura prévia, a discriminação e outras restrições. Para a imprensa,
dadas as condições ditadas pela economia política, o controle se faz não por técnicas
de poder, mas no saber, na ordem discursiva. A imprensa recomendada pelo sistema
interamericano articula-se discursivamente em termos de interesse, implicando em um
sujeito-jornalista que observa o mundo em busca de uma racionalidade voltada para
fins interessados.
Mas a importância da categoria „interesse‟ não recai apenas sobre o controle que
isso implica na produção do discurso jornalístico, pois o sistema interamericano inclui o
discurso de interesse público no rol de conteúdos com proteção especial. Esse status
fundamenta direitos humanos desdobrados da liberdade de expressão, como o direito
de acesso à informação pública: a transparência governamental é obrigatória quando
alguma autoridade oficial detiver documentos ou informações consideradas de
interesse público. Percebe-se, assim, que a categoria interesse tem certo protagonismo
na forma pela qual pensamos a circulação das expressões humanas. Não as
43
divulgamos porque são belas ou por alguma sabedoria imbuída ou ainda pelo mero
respeito ao enunciador, mas porque respondem a fins interessados.
Enquanto o sistema interamericano está preocupado com a configuração da
economia política nos territórios de sua região, outro tipo de oligopólio invade a ordem
do discurso, selecionando o saber não pelo controle das tecnologias de informação mas
por um procedimento jurídico que cria o que Foucault chama de sociedades de discurso,
“cuja função é conservar ou produzir discursos, mas para fazê-los circular em um
espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras estritas, sem que seus
detentores sejam despossuídos por essa distribuição” (FOUCAULT, 2008a, p. 39).
Trata-se aqui da propriedade intelectual.
As consequências do ato de fundamentar a liberdade de expressão a partir do
saber liberal ultrapassam a cultura de perigo dos empresários de comunicação perante
algum fenômeno que sensibilize seus interesses, como uma conferência de
comunicação. O fundamento dessa liberdade a partir dos fins a que uma informação
atende fixa a legitimidade da formulação de que é o interesse que regula a expressão
humana. E, se assim for, o interesse público dita sua circulação, enquanto o interesse
privado dita sua restrição. A propriedade intelectual é uma consequência lógica e
necessária da fundamentação liberal da liberdade de expressão. A regulação do saber
em nossas sociedades atende à democracia desde que compreendida nos termos das
necessidades da economia política: a gestão de interesses.
Se compramos um DVD em um continente com a expectativa de assisti-lo em
outro, descobrimos que existem regiões onde aquela produção pode ser acessada e
outras onde nenhum aparelho de DVD conseguirá lê-lo com as configurações de fábrica.
Um saber na forma de medicamento só chegará a salvar vidas se houver uma
negociação com o detentor de sua patente. A propriedade de um sample pode impedir
que músicos remixem e produzam cultura. A liberdade de pesquisar uma molécula de
proteína pode ser restrita se houver muitos direitos em torno de seu uso. Direitos de
marca restringem sátiras e apropriação cultural de bens simbólicos. O fornecimento de
sementes geneticamente modificadas para produzirem plantas estéreis indica uma era
de controle sobre a produção de alimentos por uma empresa. Recursos educacionais
deixam de cumprir seu propósito quando circunscritos por direitos de cópia. Práticas
44
tradicionais são ressignificadas quando objeto de interesse por uma empresa. Essas
são algumas das consequências de se pensar a expressão humana a partir do
interesse, a partir do liberalismo.
45
Capítulo 2
A imprensa e a Confecom
46
Este capítulo examina a cobertura da 1ª Conferência Nacional de Comunicação
na imprensa brasileira. Foram coletadas notícias sobre a conferência ao longo de
dezembro de 2009, mês em que sua etapa nacional (nos dias 14 a 17) ocorreu em
Brasília. Por meio da teoria política do discurso de Laclau e Mouffe, analisa-se como os
jornais de circulação nacional Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo
associaram saberes ao evento para fixar sentidos.
Segundo David Howarth e Yannis Stavrakakis (2000, pp. 1-16), a teoria
discursiva de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe está voltada para a análise de temas
políticos e investiga a maneira pela qual práticas sociais constituem as identidades de
sujeitos e objetos. Salienta-se que tais identidades são sempre contingentes, parciais,
pois a prática articulatória acontece em um ambiente de disputa e jamais conseguirá
totalizar o significante. Nessa perspectiva, fixações de sentido sobre tal significante são
possíveis e necessárias para a criação de identidades, que emergem da articulação de
elementos significantes disponíveis no campo discursivo. A fixação desses elementos
se faz possível pelos pontos nodais, pontos de referência em um discurso que ligam
uma cadeia de significados, na qual se pode verificar a posição do sujeito e o papel
atribuído a tal sujeito na estrutura discursiva.
No ambiente conflituoso de formação e totalização de discursos (e consequentes
identidades), Laclau e Mouffe apontam para o antagonismo social. Essa relação social
acontece quando uma identidade é contestada por fora ou no limite da ordem discursiva
que a constitui. A presença de um Outro, e sua ordem discursiva antagônica, impede a
estabilização da identidade e dos sentidos sociais, produzindo uma negatividade
inconciliável na relação social.
Isso dado, a tarefa do analista de discurso é explorar as diferentes formas
dessa impossibilidade, e os mecanismos pelos quais o bloqueio de identidade é
construído em termos antagônicos por agentes sociais18
(HOWARTH;
STAVRAKAKIS, 2000, p. 10).
A construção de hegemonia busca estabilizar sentidos frente a esse cenário de
disputa política. A prática hegemônica articula diferentes identidades e posições de
sujeitos em prol de um projeto comum, uma ordem social específica. A prática em prol
desse projeto deve enfrentar a impossibilidade de fechamento dos sentidos sociais, 18
Tradução nossa.
47
sempre contingentes, mas essa estabilização imperfeita dos sentidos é o bastante para
possibilitar a agência política. As práticas hegemônicas ocorrem sob duas condições: a
existência de forças antagônicas e a instabilidade das fronteiras políticas que as
separam, já que um mesmo elemento pode ser articulado por projetos políticos opostos
(LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 136).
Apenas a presença de uma vasta área de elementos flutuantes e a
possibilidade de sua articulação em campos opostos – o que implica na
redefinição constante desses elementos – é o que constitui o terreno que nos
permite definir uma prática como hegemônica. Sem equivalência e sem
fronteiras é impossível falar estritamente de hegemonia (LACLAU; MOUFFE,
2001, p. 136).
Tais considerações são de extrema importância na reflexão sobre um debate
público democrático, em que se pretende que ocorra a disputa de projetos políticos.
Segundo Chantal Mouffe, em The Democractic Paradox (2009 [2000]), um “espaço
simbólico comum” é necessário para que identidades antagônicas de coexistência
instável possam se articular. Ao reconhecerem-se como adversários que ocupam o
mesmo espaço simbólico, mas discordam em como organizá-lo, um “pluralismo
agônico” pode surgir (MOUFFE, 2009, pp. 101-3). Não se trata de afirmar que todo
antagonismo pode ser superado por um compartilhamento simbólico, apenas que sem
isso uma superação não-hostil não será uma opção visível. Se a imprensa é a
articuladora do espaço simbólico da democracia liberal, uma análise do corpus permite
identificar em que bases esses conflitos estão sendo apresentados e se esse pluralismo
é uma possibilidade.
Para apreender esse espaço simbólico, buscam-se os regimes de visibilidade e
os contratos de comunicação com os quais os jornais trabalham. Segundo Prado
(2011), um regime de visibilidade é um “conjunto de imagens/signos funcionando como
um imaginário de pertença social, em que os públicos (...) se identificam na partilha do
sensível”. Esse espaço comum entre os diferentes públicos permite a circulação de
valores, o que privilegia alguns temas e figuras e invisibiliza outros. Já o contrato de
comunicação é uma proposição performativa que o enunciador faz ao enunciatário:
“Essa proposição é feita na forma de um contrato comunicacional implícito, em que o
48
enunciador apresenta razões para suas declarações e ilustra-as com narrativas
modalizadoras, ancoradas em dados, infográficos, imagens etc” (AIDAR, 2011).
O Estado de S. Paulo
Para determinar o contrato de comunicação que o jornal O Estado de S. Paulo
desenvolveu com seus leitores ao visibilizar a 1ª Conferência Nacional de
Comunicação, esta análise buscou entender qual foi a relação da conferência com os
saberes invocados em sua apresentação. A primeira matéria no mês, “Conferência de
Comunicação quer recriar cabides estatais de emprego” (DOMINGOS, 2009), anunciou
em seu primeiro parágrafo alguns desses saberes:
A 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), que começa amanhã,
em Brasília, vai juntar, numa mesma assembleia, propostas polêmicas –
controle social sobre a mídia, recriação de estatais extintas há quase 20 anos,
como a Embrafilme – e reivindicações puramente corporativistas, como a
tentativa de recriar velhos cabides de emprego. (DOMINGOS, 2009)
Ao posicionar a conferência em relação a propostas polêmicas e reivindicações
motivadas por interesses particulares, o Estado convocou seu leitor a assumir uma
postura contrária, de desconfiança e oposição ao evento, complementada por dados
sobre os gastos públicos necessários para sua realização. Essa apresentação da
Confecom foi acompanhada da nota “Seis entidades abandonam evento” (DOMINGOS,
2009), que informou os leitores da decisão de alguns grupos de comunicação de se
retirar do processo conferencial, decisão que se torna referência de oposição ao que
representaria a Confecom. A nota apresentou como as entidades fundamentaram sua
saída:
Ao comunicar sua saída, as empresas emitiram nota conjunta. Anunciaram ser defensoras
dos preceitos constitucionais da livre iniciativa, da liberdade de expressão, do direito à
informação e da legalidade. Afirmaram que até o princípio da livre iniciativa foi usado como
um obstáculo19
pelas outras entidades [da Comissão Organizadora Nacional] para a
19
O obstáculo mencionado se refere à refuta a reivindicações da Associação Brasileira de Emissoras de
Rádio e TV (ABERT) de definir previamente como os temas da conferência deveriam ser tratados, ou
seja, instituir posicionamentos já no regimento interno, um documento com fins procedimentais. Ver
capítulo sobre a conferência.
49
confecção do estatuto da Confecom. Desse modo, decidiram sair para não atrapalhar a
realização da conferência. (DOMINGOS, 2009)
A nota mencionou também um “jogo marcado” contra as empresas por parte de
sindicalistas e ONGs, “aliados” do governo e o Outro do qual o jornal se diferencia com
a modalização negativa. Ao longo da cobertura do Estado, são os “preceitos
constitucionais” que organizam a disputa pela hegemonia na interpretação da
Conferência de Comunicação, que seria uma ameaça a tais princípios pela atuação
daqueles que a matéria “Governo tenta isolar radicais na Confecom” (DOMINGOS;
MORAES, 2009) chamou de “grupo radical” e a reportagem “Força de bloco pró-
estatização causou retirada de setor privado” (BRAMATTI, 2009) de “„movimentos de
base‟ – grupos que defendem maior intervenção estatal sobre a mídia”. Na rede de
equivalências articulada pelos princípios constitucionais, mídia e setor privado
compartilham o papel de identidades ameaçadas pelo “controle social da mídia”, termo
que homogeneíza a maioria das propostas de sindicalistas e de ONGs.
Entre os sindicatos, as ONGs e o PT, por exemplo, prevalece a ideia de pôr os
meios de comunicação sob controle público e social, uma velha tese dos
partidos de esquerda que vez por outra volta à agenda. Há teses que, se
aprovadas, vão exigir mudanças na Constituição, como a que cria o “tribunal de
mídia”, uma figura mais política do que jurídica. (ESTADO, 2009)
O maior obstáculo nas negociações entre empresários e organizações não-
governamentais era o apoio das últimas no chamado controle social sobre a
mídia. “Um controle desse tipo pressupõe uma mudança da Constituição, que
atualmente assegura a livre iniciativa”, afirmou [o presidente da ANER Roberto]
Muyalert. (BRAMATTI, 2009)
A maioria das teses do evento defende o controle social dos meios de
comunicação, com forte intervenção do setor público na iniciativa privada.
(DOMINGOS; MORAES, 2009)
Por outro lado, a cobertura associa a Conferência Nacional de Comunicação a
saberes que não antagonizam necessariamente preceitos constitucionais, embora por
vezes o façam, mas convocam o leitor a posicioná-la como expressão de interesses
particulares. A Confecom é, para o enunciador do Estado, o espaço simbólico onde
ocorrem reivindicações corporativistas, a criação de cabides de emprego, a busca pelos
50
recursos da publicidade oficial e a blindagem dos movimentos sociais e dos
radiodifusores comunitários.
O ministério alegou, em uma de suas teses apresentadas à conferência, que o
retorno das delegacias facilitará a fiscalização das empresas de radiodifusão –
[delegacias] caracterizadas por dar empregos a apadrinhados políticos de quem
ocupa o poder em Brasília ou nos Estados (DOMINGOS, 2009).
Elas [rádios e TVs comunitárias] querem descriminalizar as emissoras piratas e
propõem inundar o País com canais de TVs públicos. (DOMINGOS, 2009)
O apelo por uma maior participação das mídias regionais e das TVs
comunitárias no bolo da propaganda do governo, feito pela maioria das
propostas apresentadas à 1ª Confecom, nem precisava ser levado ao encontro.
O governo já atende aos meios de comunicações regionais e passará a fazer
publicidade nas TVs comunitárias. (ESTADO, 2009a).
Significa que uma notícia sobre o MST, por exemplo, pode levar um veículo de
comunicação ao “tribunal de mídia” (ESTADO, 2009b).
Concebida por jornalistas vinculados a órgãos públicos, apoiada por
determinados setores do governo Lula e justificada com base em argumentos
corporativos e ideológicos, a proposta [do Conselho Federal de Jornalismo] foi,
desde o início, rechaçada pela sociedade civil (...) (ESTADO, 2009c).
Então, embora propostas envolvendo o controle social da mídia estivessem
associadas ao que o Estado chama de um “grupo radical”, mas não “majoritário”, o
debate conferencial foi visibilizado também como uma arena privilegiada de expressão
de interesses particulares. Criou-se, dessa maneira, duas identidades modalizadas
negativamente atuantes na Confecom: uma voltada para o controle social da mídia
(radicais) e outra voltada para a busca de seus interesses particulares. O enunciador
chega a isolar os grupos radicais como um grupo minoritário, mas os grupos de
interesse não deixam de agir em busca da “boquinha”. Não que o jornal não tenha
reconhecido nenhum momento em que o interesse público estivesse sendo buscado,
mas tais situações estariam associadas a algum preceito constitucional. Abaixo da
quebra de texto “Constituição”, leu-se:
A aliança entre governo, Central Única dos Trabalhadores, Força Sindical,
ONGs, como o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, e um
grupo de empresários do setor de radiodifusão (Bandeirantes e RedeTV) e das
51
telefônicas, conseguiu tirar do foco o controle social da mídia, uma bandeira dos
grupos mais radicais.
Esse setor majoritário resolveu centrar suas teses na regulamentação dos
artigos da Constituição que tratam dos meios de comunicação. (ESTADO,
2009d).
A ideia de que há legitimidade no debate sobre comunicação numa perspectiva
constitucional também foi articulada no editorial publicado no dia seguinte à abertura da
conferência, “Os perigos da Confecom” (ESTADO, 2009e). O texto tratou dos
“antidemocráticos monopólios e oligopólios” na radiodifusão, proibidos pelo artigo 220
da Constituição Federal de 1988, fundamentando a importância do tema na ameaça à
liberdade de iniciativa e à diversidade de opiniões. Apesar disso, o editorial, como o
próprio título sugere, se desenvolveu em termos de ameaça antagônica: o “risco real e
presente” da Confecom consiste na possibilidade dos “inimigos” da liberdade de
imprensa instrumentalizarem-na para, por um lado, marcar uma “guinada autoritária” e,
por outro, justificar “intentos intervencionistas”. O enunciador incluiu ainda a presença
obscena de uma “esperteza corporativa” em prol de interesses particulares: a criação
de órgãos estatais de fomento ou fiscalização não passaria de “notórios cabides de
emprego”.
O tema do risco autoritário também foi articulado a partir da associação do
diploma de jornalistas e da lei de imprensa a instrumentos jurídicos criados durante a
ditadura militar derrubados pelo Supremo Tribunal Federal (ESTADO, 2009d.). As
propostas de um Observatório Nacional de Mídia e Direitos Humanos, apelidado de
“tribunal de mídia” e que monitoraria o “desrespeito aos direitos do cidadão”, e de um
Código de Ética do Jornalismo para garantir a “qualidade da informação veiculada”
“atacam diretamente os meios de comunicação” e podem “atingir profundamente a
liberdade de expressão” (ESTADO, 2009b). Na construção da perspectiva de ataques
autoritários, o enunciador incluiu atentados à livre iniciativa:
Uma delas propõe a criação de mecanismos de controle social e participação
popular em todos os processos de financiamento, obrigações fiscais e
trabalhistas das emissoras de rádio e TV, além de conteúdo da programação
(ESTADO, 2009b).
52
Ao caracterizar aqueles de quem se diferencia, o enunciador do Estado constrói
uma identidade que antagoniza com a democracia e, como inimigo, deduz-se a
necessidade do extermínio das posições que constituem esse Outro ameaçador. Mas
em prol do quê? Ao circunscrever suas posições identitárias como preceitos absolutos,
a tradicional publicação da família Mesquita meramente espelha as posições “radicais”
que se articulam a partir de valores atemporais e independentes de contextos sociais,
teses que vez por outra voltam à agenda: livre iniciativa, liberdade de expressão, direito
à informação e legalidade são apresentadas como conquistas democráticas vítimas de
ataque autoritário ou interessado. A democracia, para o enunciador do Estado, é uma
totalidade constituída a partir de alguns princípios jurídicos que devem resistir a todas
as contingências. Com isso, o jornal acaba ignorando situações em que esses
princípios produzem o inverso a que se propõem e ignora as demandas de outros
movimentos sociais em termos de direitos.
Ao tratar a complacência com as emissoras piratas como interesse de criminosos
em busca de anistia, o enunciador Estado posiciona-se como se a legalidade
sobrepujasse os contextos sociais da comunicação: os saberes convocados pela
legalidade, como o Estado de Direito ou a segurança jurídica, modalizam
negativamente a prática daqueles comunicadores que começam a emitir sem outorga
formal, mas pouco contribuem para a compreensão das condições da liberdade de
expressão desse Outro que espera em média 10 anos pela resposta definitiva a um
pedido de concessão de radiodifusão (ARTIGO 19, 2013). Ao considerar a criação de
um Conselho de Jornalismo um controle indevido à atividade da imprensa, posiciona-se
como se a liberdade de expressão e informação bastasse para a formação de um
debate público autorregulado. Os saberes articulados pela liberdade de expressão,
como aqueles presentes no sistema interamericano de direitos humanos, alertam para
as ameaças representadas pelo interesse particular e o autoritarismo, mas não
interditam a reflexão e a agência social sobre como a prática jornalística incide ou
deveria incidir sobre a democracia. Ao se posicionar como se a livre iniciativa fosse a
própria promoção da liberdade de informação, contribui para a indistinção criada pela
defesa do interesse público a partir de uma posição privada. Certa responsabilidade
social corporativa pode manter o veículo de comunicação na busca pelo interesse
53
público, mas a “indistinção” deve ser monitorada por mecanismos de transparência que
permitam distinguir influências diversas nessa busca pelo que é público. Argumenta-se
aqui, enfim, que o direito de defender seus valores em uma democracia pressupõe a
possibilidade de autorressignificação identitária. Caso contrário, há o risco de pôr em
funcionamento uma lógica de embate em que a assimetria de poder define o resultado,
não os argumentos, eclipsados por fundamentalismos; pela defesa de valores, ignoram-
se situações em que tais valores produzem o inverso a que se propõem, como os
exemplos demonstraram: a defesa da legalidade ignora que é a burocracia que induz a
práticas ilegais (no caso da criminalização das rádios), a defesa da liberdade de
expressão ignora práticas não democráticas na comunicação (no ataque ao conselho
de jornalismo), a defesa da livre iniciativa ignora quando o privado interfere na busca
discursiva pelo público (no caso da transparência das contas dos meios de
comunicação). Nessas ignorâncias do enunciador não há argumentos, mas aquilo que
foi excluído pelo sentido atribuído ao valor. Se, no entanto, buscamos uma democracia
inclusiva, o enunciador deveria permitir uma disputa inclusive pelos sentidos que o
constituem, possibilitando uma reinterpretação de sua própria identidade.
No domingo seguinte à etapa nacional da Conferência Nacional de
Comunicação, O Estado de S. Paulo publicou o editorial “O saldo da Confecom”
(ESTADO, 2009c). O balanço final foi que o governo deveria mandar todas as
propostas para a “lata do lixo”, uma posição que contraria a própria cobertura, que deu
espaço aos debates pautados pelos preceitos constitucionais. Os propósitos “dirigistas”
e o oportunismo em busca de “boquinhas” sintetizam o contrato de comunicação
instituído com o leitor, convocando-o para um enfrentamento em relação à Confecom.
Ao longo da cobertura, esse enfrentamento se referenciou pela Constituição e teve
espaço para identificá-la mesmo no espaço inimigo. A posição editorial que concluiu tal
cobertura, no entanto, não tratou do acúmulo de debate sobre a necessidade de
regulamentação dos artigos constitucionais sobre comunicação, mas da descrição de
um Outro perverso e descartável: “grupelhos políticos, corporações profissionais e
máquinas sindicais azeitadas à custa do dinheiro público”.
54
Folha de S.Paulo
Os saberes associados à Conferência de Comunicação permitem à análise o
acesso ao contrato de comunicação que o jornal Folha de S.Paulo propôs a seus
leitores. O diário citou a Confecom em seis matérias, cinco delas com a conferência
diretamente em foco. Em dezembro, a pauta começou no dia de abertura da
conferência, com a apresentação de algumas propostas na agenda, e terminou com um
pequeno trecho em matéria sobre o encontro do presidente da República com
jornalistas sobre o ambiente político brasileiro, quatro dias depois do encerramento do
evento.
A Confecom foi apresentada como um evento que trata de temas que afetam as
empresas de comunicação, com impactos mais amplos na liberdade de expressão: da
influência de políticos e religiosos nas empresas de radiodifusão a propostas para a
publicidade. Assim, mesmo temas mais relacionados ao jornalismo independente ou a
reivindicações sociais foram incorporados à interpretação de que a conferência tinha
como alvo o funcionamento empresarial.
Na agenda do evento estão várias propostas contrárias às empresas de
radiodifusão, como o controle social sobre a mídia e a criação de horários
gratuitos nas TVs e rádios para os movimentos sindicais e sociais (LOBATOa,
2009).
Na pauta da Confecom estão propostas que afetam as empresas de
comunicação, como o controle social sobre a mídia, aumento de potência das
rádios comunitárias e proibição da propriedade cruzada de meios de
comunicação (LOBATO; ZANINI, 2009).
Participante ativo da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, o vice-
presidente da Rede Bandeirantes, Walter Vieira Ceneviva, discorda de que o
encontro tenha aprovado propostas que ameacem as empresas de
comunicação e a liberdade de imprensa (LOBATO, 2009b).
O privilégio à perspectiva empresarial também pôde ser verificado em matéria
sobre a clássica disputa da economia política entre empresários e sindicatos. A
reportagem “Sindicatos rejeitam redução de impostos sobre banda larga” (LOBATO,
2009c) posicionou os conferencistas não-empresariais contrariamente aos empresários
e, pela articulação dos saberes, ao interesse nacional.
55
Todas as propostas para desoneração de taxas e tributos sobre telefonia e
banda larga foram rejeitadas por representantes de sindicatos, ONGs e
associações de rádios comunitárias no encerramento da primeira Conferência
Nacional de Comunicação, a Confecom, que não tem poder para impor
mudanças, mas recomendá-las.
Embora o Brasil tenha uma das maiores cargas tributárias sobre serviços de
telecomunicações no mundo (43%, em média, ou R$ 40 bilhões ao ano), a
proposta foi rejeitada porque a diminuição de impostos foi vista pelas entidades
como uma abertura para que as empresas embolsassem mais dinheiro
(LOBATO, 2009c).
A figura do Outro, de quem o diário se diferencia, aparece mais por sua agência,
a ameaça das propostas às empresas de comunicação, do que pela identidade que as
propôs: não se mencionaram quais sindicatos, organizações ou grupos participavam do
evento. Além da citação explícita acima, houve um registro dos delegados “indicados
por empresas, sindicatos e movimentos sociais e governo” (LOBATO, 2009a) e uma
menção na reportagem “Lula diz que defende imprensa livre, mas condena „excessos‟”
(LOBATO; ZANINI, 2009), novamente em uma modalização negativa:
O motivo da crise [a ameaça à abertura da Confecom] foi a mudança no
regimento feita, de manhã, por representantes dos movimentos sociais. Eles
decidiram que não haveria quórum qualificado para votação dos temas
sensíveis nos grupos de trabalho, mas apenas nas votações em plenário,
contrariando o acerto até então (LOBATO; ZANINI, 2009).
O enunciador da Folha constrói o Outro a partir do ponto de vista das entidades
empresariais participantes. Ao acompanhar sinteticamente a trajetória das duas
entidades empresariais (Abra e Telebrasil) que permaneceram na Confecom, a
reportagem “Sindicatos rejeitam redução de impostos sobre banda larga” (LOBATO,
2009c) informou que elas foram vaiadas, se aliaram contra os sindicatos, mas deixaram
passar propostas como descriminalização de “rádios piratas” e a proibição de aluguel
na grade de programação de emissoras. Por outro lado, apesar da pouca informação
sobre os participantes não-empresariais, houve registros recorrentes da ausência das
entidades representantes das empresas de comunicação, citando nomes e motivações
desses grupos.
56
A representação do empresariado na conferência está prejudicada pela
ausência dos grandes meios de comunicação –seis das oito entidades
representantes das empresas do setor deixaram o evento (LOBATO, 2009a).
A ANJ e outras entidades empresariais se retiraram da discussão justamente
por conta da possibilidade de aprovação de teses restritivas à liberdade de
expressão (MATAIS, 2009).
O regimento exigira quórum de no mínimo 60% dos votos para aprovação dos
temas considerados sensíveis tanto pelos sindicalistas quanto pelas entidades
empresariais que participaram do evento: a Telebrasil, em nome das
companhias telefônicas, e a Abra, representante da RedeTV! e da Bandeirantes
(LOBATO, 2009c).
Além da Bandeirantes e da RedeTV!, as companhias telefônicas participaram
da Confecom, representando o segmento empresarial. Em agosto, seis das oito
entidades empresariais que integravam a comissão organizadora se afastaram
(LOBATO, 2009b).
No Outro construído pelo enunciador da Folha a partir de uma agência em
relação às empresas de comunicação é possível incluir a figura do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva nas duas ocasiões em que apareceu associado à Confecom. Há
um padrão na apresentação da figura do presidente, que se estende ao governo:
primeiro apresenta-se a posição de Lula segundo ele próprio para depois contestar tal
posição com alguma informação. Em seu discurso de abertura do evento, louvou a
imprensa livre e se posicionou dizendo “conviver tranquilamente” mesmo perante
aquela que “despreza os fatos”. Para contestar tal tranquilidade, o jornal resgatou sua
ameaça de expulsão do país ao correspondente do The New York Times20 e uma
declaração de Lula sobre não ler jornal para não ficar com azia. Associa-se assim a
figura da Presidência a atos autoritários ou de desprezo em relação à imprensa,
sugerindo ao público uma posição de leitura quanto às declarações. Em conversa com
jornalistas, sob a quebra “Imprensa”, houve a segunda modalização:
20
O caso do correspondente se refere ao jornalista William Larry Rother Jr., que noticiou em 9 de maio
de 2004 que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva consumia excessivamente bebidas alcoolicas. No dia
12, o Diário Oficial da União publicou o cancelamento do visto temporário outorgado a Rother, que teria
de sair do país se não fosse um Habeas Corpus do Supremo Tribunal Federal. Até então, a última vez
que o Brasil havia expulsado um jornalista fora 1970. (ALMEIDA, 2004)
57
Para o presidente, a liberdade de imprensa no país está sendo exercida como
jamais foi antes, ressaltando a importância da Confecom (Conferência Nacional
de Comunicação), realizada na semana passada em Brasília. A conferência, no
entanto, aprovou várias sugestões que propõem controle da mídia –no seu
programa de rádio, Lula as elogiou. (CABRAL, 2009)
Além de Lula, o oficialismo foi visibilizado pelo “presidente da comissão
organizadora” (MATAIS, 2009) e “consultor jurídico do Ministério das Comunicações”
(LOBATO, 2009b), Marcelo Bechara. Nas duas aparições textuais, Bechara esteve
posicionado exclusivamente negando a possibilidade de ameaça à liberdade de
expressão por parte das propostas da Confecom. A nota “Polêmica: Planalto diz que
não há tema tabu e que não teme discussão” (FOLHA, 2009a) posicionou o governo de
forma diferente. Ao invés de paráfrase ou citação de declarações voltadas para a
garantia da liberdade de expressão em meio a informações que as contrariam, a nota
trouxe uma oposição na qual contrasta o objetivo da conferência de discutir um marco
regulatório para o futuro e a ausência de veto por parte do governo de uma discussão
sobre o atual mapa de propriedade. Tal nota remete, embora não diga que o faça, à
posição de algumas entidades empresariais na saída da organização da Confecom,
quando defenderam uma conferência voltada apenas para temas futuros. Encerrou com
uma citação incendiária do ministro Franklin Martins: “Não adianta recusar-se a discutir,
sentar em cima do vulcão e achar que não vai explodir” (FOLHA, 2009a). Foi a única
apresentação do governo, no entanto, em postura de enfrentamento.
Em meio a um governo contraditório e a um Outro ameaçador ou em busca de
seus interesses, o contrato de comunicação apreensível das reportagens da Folha
privilegia o ponto de vista das entidades empresariais também no debate de temas
relacionados ao jornalismo: houve detalhamento e discussão de propostas apenas nos
posicionamentos do vice-presidente da Rede Bandeirantes, que defendeu o processo
conferencial sempre em resposta a uma ameaça: “tribunal de mídia”, “dezenas de
propostas na agenda da conferência que ameaçavam a imprensa”, o porquê de “não ter
se oposto à proposta de criação do Conselho Federal de Jornalismo” (LOBATO,
2009b). À figura do executivo que participou do processo são relacionados temas
relativos a interesses particulares (sindicais, rádios que buscam anistia) e a ameaças à
liberdade de imprensa.
58
A Folha de S. Paulo orientou, assim, sua cobertura para visibilizar os interesses
sindicais, políticos, religiosos e de rádios “piratas” e as ameaças à imprensa em um
processo conferencial voltado para a reflexão das condições das empresas de
comunicação. Na disputa pela hegemonia da interpretação do que seria o interesse
público de preservação da independência e de liberdade da imprensa, o jornal assumiu
que a independência surge pela livre iniciativa empresarial, que não pode estar
submetida ao interesse de grupos religiosos ou a cargas tributárias abusivas; e a
liberdade pela ausência de controle ou influência político-sociais. Isso pôde ser
observado na declaração de Paulo Tonet, da ANJ, sobre o controle social da mídia: “É
o controle remoto e o jornal da banca. Fora disso é censura, e isso eu não quero mais.”
(MATAIS, 2009). Esse argumento do representante empresarial é econômico: o poder
social sobre a imprensa vem da escolha no consumo – fortalecer ou enfraquecer um
meio de comunicação só é aceitável, na posição da ANJ, no ato de compra ou consumo
ou não de um produto midiático. Se tal poder de consumo, e nada “fora disso”, é o
único controle passível de reflexão, então para que serviria a conferência? Confirmando
a posição de sua cobertura, a publicação da família Frias reproduz o discurso das
entidades empresariais que se retiraram do processo:
O evento discutirá um novo marco regulatório para o setor, tendo em vista as
novas mídias no país. Lula não escondeu o entusiasmo com as novas mídias,
principalmente a internet. “Leitores mais ativos ou grupos de pressão passaram
a formar redes horizontais, trocando opiniões, descobrindo pontos de contato,
firmando convicções, tornando-se mais críticos e menos passivos”, disse
(LOBATO, 2009c).
A interatividade da internet como justificativa para a falta de necessidade de
reflexão sobre as práticas de comunicação analógicas inverte, de certa maneira, a
racionalidade que aterroriza o presente a partir de uma ameaça futura. A expectativa de
futuro tecnológico brilhante também manipula decisões no presente.
O Globo
O diário O Globo fez parcimoniosa cobertura sobre a 1ª Conferência Nacional de
Comunicação: dois artigos de Opinião, um editorial e três reportagens, com o auxílio de
um infográfico, uma nota e uma chamada de capa. Apesar dos artigos serem
59
assinados, por Rodrigo Constantino (2009) e João Ubaldo Ribeiro (2009), parecem
partilhar o contrato de comunicação que o jornal construiu com seu leitor, articulando
saberes semelhantes na modalização negativa da Confecom. O evento foi associado a
uma iniciativa da União voltada para o debate sobre “a produção e distribuição de
informações jornalísticas e culturais no país” (CARVALHO, 2009a), mas com a pauta do
controle social da mídia sempre como uma possibilidade, afinal confirmada na última
reportagem, “Confecom aprova medidas restritivas ao jornalismo” (CARVALHO, 2009b).
Foi recorrente nas três reportagens a associação dos participantes da conferência ao
governo.
No fórum, convocado pelo governo federal, serão debatidas propostas da
União, das empresas do setor e da sociedade civil (...).
Do lado da sociedade, com apoio da União, há forte pressão para o
fortalecimento de TVs comunitárias e veículos de pequenos porte, por exemplo
com a destinação obrigatória de um terço da verba publicitária oficial.
(CARVALHO, 2009a)
Além do presidente Lula, discursaram (sic) na abertura da Confecom o ministro
das Comunicações, Hélio Costa, que chegou a ser vaiado pela plateia formada
por representantes de movimentos sociais, empresários e setor público. Hélio
Costa destacou a importância do encontro convocado pelo governo (...).
(WEBER, 2009)
Participaram do encontro 1.500 delegados indicados pelo governo, por
sindicatos, por empresas de telecomunicações e pelas TV Bandeirantes e Rede
TV. (CARVALHO, 2009b)
Os participantes da Conferência de Comunicação, empresários ou não, foram,
dessa maneira, visibilizados como um grupo selecionado e restrito. Apesar de não se
confundirem com o governo, que às vezes é vaiado, às vezes os apoia, os
conferencistas só existem em tal identidade por uma iniciativa da União de reuni-los em
debate. A restrição combinada a propostas de controle social convoca o leitor a, no
mínimo, um estranhamento perante o discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
que faz um compromisso “sagrado” a favor da liberdade de imprensa (WEBER, 2009):
por que um compromisso desses se convocara um evento que o contradiz? A
homogeneização dos participantes como um grupo restrito também esteve presente no
artigo de João Ubaldo Ribeiro:
60
Agora mesmo acaba de se encerrar uma tal Conferência Nacional de
Comunicação, onde, segundo me contam, houve um festival de asnices e
intenções duvidosas digno da ala de extrema esquerda de um grêmio infanto-
juvenil norte-coreano. (RIBEIRO, 2009)
Condescendência semelhante foi registrada em editorial:
Há uma expressão em inglês (wishful thinking) para designar propostas, ideias
desenvolvidas sem maiores compromissos com a realidade.
Uma visão benevolente pode encarar a Confecom como um grande wishful
thinking em que grupos de esquerda, corporações sindicais, ONGs, movimentos
ditos sociais e similares desenharam o seu país ideal, na tentativa de influenciar
a sociedade.
É parte do jogo democrático. (GLOBO, 2009)
Na disputa pela hegemonia da interpretação da Confecom, O Globo reconheceu
o Outro-conferencista nos termos do direito que tem de defender seus interesses, mas
posicionou seu saber em algum lugar fora da realidade. Um saber previsível pela
identidade que o originou e que já vinha sendo alvo de ressalva por “atores
importantes” (WEBER, 2009):
As associações Nacional de Jornais (ANJ) e Brasileira de Empresas de Rádio e
Televisão (Abert), entre outras entidades que representam rádios, jornais,
revistas e emissoras de TV, não vão participar da conferência. Seus dirigentes
temem que parte das propostas do encontro relacionadas a suposto controle
social dos meios de comunicação resulte na criação de mecanismos de censura
ou de inibição da liberdade de imprensa (CARVALHO, 2009a).
A Associação Nacional de Jornais (ANJ) e a Associação Brasileira de Rádio e
Televisão (Abert), entre outras entidades que representam a maioria das
emissoras de rádio, TV, os jornais e as revistas do país, decidiram, há quatro
meses, não participar do encontro por considerar que a conferência teria caráter
de cerceamento da liberdade de imprensa e da livre iniciativa no setor.
(CARVALHO, 2009b)
Essa previsibilidade deu o título do editorial, “Cartas marcadas”, que tratou dos
debates sobre o regimento interno, documento procedimental e não temático, da
seguinte maneira:
Quando duas entidades representativas do jornalismo profissional, a ANJ
(Associação Nacional de Jornais) e Abert (rádios e TVs), condicionaram a
participação na Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) à retirada
61
do temário do encontro de qualquer proposta contrária à Constituição, e
receberam uma resposta negativa, o destino da reunião estava traçado.
Encerrada ontem, a Confecom, como previsto, aprovou propostas que vão
contra a liberdade de imprensa e expressão, procuram intervir nas redações e
criar obstáculos à ação da iniciativa privada nos meios de comunicação
(GLOBO, 2009).
A visibilidade da conferência em termos de atentado à liberdade de imprensa
chegou a ganhar uma chamada de capa da edição de 18 de dezembro de 2009 e foi
construída nos textos pela seleção das propostas e pela negativa de que essa seria a
intenção pelas aspas de representantes do governo ou de participantes e
organizadores da conferência. Os artigos e o editorial contextualizam essa intenção a
partir da situação da imprensa na América Latina. O artigo de Rodrigo Constantino
confundiu esse contexto e o brasileiro:
Na América Latina, a liberdade de imprensa está cada vez mais ameaçada.
Cuba representa a situação extrema, onde a distopia “1984”, de George Orwell,
tornou-se realidade. (...) A Venezuela de Chávez caminha a passos largos
nessa direção. Na Argentina, o casal K vem desferindo duros golpes aos
principais veículos de imprensa. E no Brasil, desde a tentativa fracassada de
controle através do Conselho Nacional de Jornalismo, o governo não desistiu
do sonho de amordaçar a imprensa.
Eis o contexto da Conferência Nacional de Comunicações (...).
(CONSTANTINO, 2009)
O editorial, no entanto, diferenciou o Brasil desse contexto e manteve o
isolamento do grupo participante da conferência:
Ovos de serpentes como estes podem ressurgir apenas como expressão da
vontade de grupos políticos organizados.
Mas há na realidade atual da América latina projetos idênticos em curso,
também surgidos de conferências com tinturas democráticas, com delegados
escolhidos nos votos por máquinas sindicais e políticas bem azeitadas, que têm
produzidos resultados concretos preocupantes. (...) No Brasil, as instituições
são fortes e sólidas o suficiente para defender a liberdade de imprensa e
expressão, bases da democracia (GLOBO, 2009).
O Globo, dessa maneira, não considerou a Confecom uma ameaça real à
democracia, articulando declarações de autoridades como garantias institucionais de
que suas “bases” não seriam afetadas. Como a ANJ e a Abert, que abandonaram o
62
processo conferencial, o jornal da família Marinho optou pela atribuição de
insignificância ao evento, um espaço em que delírios esquerdistas poderiam se
expressar sem maiores consequências. Apesar disso, reiterou um evento “convocado
pelo governo” com um grupo selecionado, convocando seu leitor a, pelo menos, manter
uma suspeita perante o governo.
Uma doutrina jornalística
As referências ao autoritarismo, à censura, à atuação de interesses particulares
na definição da ordem democrática e à necessidade de independência em relação ao
governo levam esta análise a retornar ao discurso de direitos humanos que trata das
funções do debate público em uma democracia. As recomendações do sistema
interamericano de liberdade de expressão organizam o debate público democrático a
partir da rejeição à censura e ao autoritarismo. Ao determinar uma proteção especial a
informações de interesse público, o discurso coloca a imprensa na gestão de riscos da
sociedade política pela vigilância dos interesses particulares que possam interditar o
acesso ao debate e subverter a ordem democrática, compreendida como uma condição
que permita o exercício dos direitos humanos.
Segundo Michel Foucault (apud CASTRO, 2004, p. 423), toda sociedade tem
uma “política geral da verdade”, na qual seleciona os tipos de discurso que ela aceita e
faz funcionar como verdadeiros; institui mecanismos e instâncias que permitam
distinguir e sancionar os enunciados verdadeiros ou falsos; e estabelece o estatuto
daqueles que têm a função de dizer o que funciona como verdadeiro. Nos regimes de
verdade do sistema interamericano, a opinião pública teria a palavra final sobre o
resultado do dispositivo de vigilância “imprensa”, que por sua vez funciona a partir de
certa organização do saber.
Na formação hegemônica interamericana tal política consiste em uma rede,
estratégica para a democracia, de relações de elementos heterogêneos, ligados pelo
programa de manter um debate público robusto e dinâmico, consistente com uma
ordem pública pautada pelos direitos humanos. A transparência governamental, um
judiciário independente, uma imprensa livre de influências econômicas ou estatais, mas
aberta a todos, constituem alguns desses elementos. Outro elemento consiste em uma
63
proteção especial a discursos de interesse público, que acabam sendo o objeto do
jornalismo preocupado com a preservação da democracia. Essa proteção liga os
jornalistas a um tipo específico de enunciação que, por um lado, os relaciona entre si e,
por outro, os diferencia dos outros comunicadores de nossa cultura. Trata-se de uma
dupla sujeição: os enunciados de interesse público são o que definem um jornalista e o
jornalista é aquele que busca a definição do interesse público. Ora, Foucault tem um
nome para procedimentos que fixam as condições para a circulação de um enunciado e
impõem aos indivíduos certas regras a partir dessas condições: doutrina.
A doutrina (...) tende a difundir-se; e é pela partilha de um só e mesmo conjunto
de discursos que indivíduos, tão numerosos quanto se queira imaginar, definem
sua pertença recíproca. Aparentemente, a única condição requerida é o
reconhecimento das mesmas verdades e a aceitação de certa regra – mais ou
menos flexível – de conformidade com discursos validados; se fossem apenas
isto, as doutrinas não seriam tão diferentes das disciplinas científicas, e o
controle discursivo trataria somente da forma ou do conteúdo do enunciado,
não do sujeito que fala. Ora, a pertença doutrinária questiona ao mesmo tempo
o enunciado e o sujeito que fala, e um através do outro (FOUCAULT, 2008a,
pág. 42).
O conceito de doutrina contribui para a análise dos discursos jornalísticos ao
lançar luz sobre o funcionamento de procedimentos discursivos de exclusão e
mecanismos de rejeição perante sujeitos não assimiláveis pelas verdades e regras
compartilhadas: heresia e ortodoxia pertencem fundamentalmente aos mecanismos
doutrinais. A ortodoxia jornalística no discurso interamericano envolve a busca pelo
interesse público. Nessa ortodoxia, a independência do veículo jornalístico permite que
o interesse público seja preenchido por qualquer conteúdo: preceitos constitucionais, a
livre iniciativa e uma noção de progresso posicionariam, respectivamente, Estado, Folha
e Globo nessa doutrina pelo interesse público. Precisamente essa liberdade de
atribuição do sentido de interesse público ganha valor no debate democrático. A disputa
tem um espaço comum para acontecer entre a pluralidade de agentes sociais.
No início do capítulo, lançou-se a questão: uma pluralidade seria mesmo uma
possibilidade a partir das bases dos conflitos presentes no corpus? Tanto Folha quanto
Estado organizaram suas coberturas a partir de uma luta de interesses: aquela
interpretando a Confecom como o espaço em que interesses opostos às empresas de
64
comunicação se organizaram, enquanto o último a interpretou como o espaço em que
interesses anti-democráticos ou particulares se articulavam. Já o jornal Globo
apresentou a Confecom como uma disputa ideológica. Mesmo orientando a disputa
discursiva em termos de ideologia, porém, o Globo compartilha uma verdade com os
outros dois enunciadores do corpus: todos os seus sujeitos discursivos agem voltados
para fins. E quem discorre sobre quais seriam esses fins é o enunciador, constituindo
um controle interno à produção do discurso a partir dessa verdade. Ao vasculhar o real,
o discurso desses veículos busca decifrar qual a finalidade da ação do sujeito.
Na seleção de discursos aceitáveis para essa política geral da verdade, a heresia
nos revela o interdito, aquilo que não entra na disputa política. Se o pluralismo agônico
sugerido por Mouffe consiste na construção de um nós a partir do Outro excluído, faz-se
necessário conhecer melhor esse excluído herético dos discursos jornalísticos.
Cada jornal lidou de forma específica com sua própria forma de heresia. O Globo
a trata com condescendência, a caracteriza como desvarios de identidades constituídas
por saberes ultrapassados, isolados e fadados ao fracasso. A heresia ganha ares de
projeto em curso na América Latina, que teria países com instituições mais vulneráveis
que o Brasil a grupos políticos, organizados para intervir na produção cultural. Um
gradualismo de desenvolvimento se deduz a partir disso, o que relaciona a heresia ao
retrocesso, à reversão de acúmulos e conquistas na evolução rumo a um progresso
que não se anuncia exatamente o que é, mas no qual o Brasil caminha. A
previsibilidade do mundo permite, por exemplo, o editorial “Cartas marcadas” (GLOBO,
2009), que direciona a Confecom em um sentido herético e o Brasil em outro sólido. A
heresia, enfim, trata-se de repensar aquilo que o jornal já considera conquistado e
irreversível: o status quo.
A heresia na Folha está num saber externo às relações de mercado: os
discursos políticos, sociais, jurídicos e religiosos aparecem em termos de seus impactos
na produção e no consumo de informação. Há tolerância para uma regulação no
dinâmico mercado de ideias, que traz desafios como as novas mídias ou influências
indevidas. A heresia está em qualquer intervenção estatal no presente, insegurança
jurídica ou crítica aos agentes do mercado, que viram fatos noticiosos importantes para
as decisões dos fornecedores e consumidores desse mercado. A declaração do
65
representante da ANJ, que ganha leitura diferenciada pela posição que os empresários
gozam na cobertura, por exemplo, torna herética qualquer relação na comunicação
externa ao consumo: a compra do jornal na banca ou o uso do controle remoto. Há
fornecedores e consumidores, nas palavras da ANJ, nada “fora disso”.
Já o Estado enfrenta a conferência pela denúncia de sua condição herética,
tratando-a como equivalente antagônico real e simbólico, que pode extinguir sua
redação e abalar tudo que defende. O jornal é o que mais claramente se posicionou a
partir da rejeição à censura e ao interesse particular na ordem pública, mantendo-se
vigilante a qualquer risco que a Confecom representasse. O antagonismo à
Constituição Federal é a heresia que precisa ser combatida com argumentos incisivos e
hostis.
Apesar de pontos de vistas distintos, os três jornais coincidem na exclusão da 1ª
Conferência Nacional de Comunicação como um evento que busca o interesse público.
Se as publicações interpretaram de forma diferente quais riscos ela poderia representar,
por outro lado trataram de forma semelhante o Outro de que se diferenciam. Como
cada formulação hegemônica homogeneizou seu Outro? Formando identidades que
não se constituíram de um processo político que as justifique: trata-se de existências
fixadas por ideologias ou interesses, como se tais saberes criassem um vínculo
ontológico de obediência nos sujeitos e acreditassem por eles. Não importa o contexto
em que conferencistas formaram suas posições, nem que tais posições busquem
reverter situações que eles considerem injustas: o papel desses sujeitos se resume a
agir nos discursos jornalísticos a partir de seus fins e motivações. É claro que esses
sujeitos são produto das formulações hegemônicas desenvolvidas a partir do ponto de
vista que cada jornal é livre para assumir, mas tal procedimento produz uma
consequência nefasta. Isso permite que contextos de desrespeito social e
reivindicações de reconhecimento de direitos passem invisíveis quando não estiverem
dentro das verdades e regras do saber constituído, neste caso, uma teoria de ação que
envolve uma racionalidade com respeito a fins: a motivação pelo interesse ou pela
ideologia como fonte da ação dos sujeitos. Um jornalismo voltado exclusivamente para
a apreensão da intenção dos sujeitos deixa passar o contexto em que eles vivem.
66
O teórico Axel Honneth (2003), em uma reflexão sobre as fontes emotivas e
cognitivas da resistência e reivindicações sociais, busca uma redefinição da
interpretação das lutas sociais, que será tratada na conclusão deste trabalho. O
relevante para a análise crítica dos jornais que aqui se desenvolve são seus
argumentos em torno da superação da ciência social utilitarista na interpretação desses
conflitos. Se o jornalismo constrói disputas a partir de uma racionalidade com respeito a
fins, a crítica de Honneth pode se estender à doutrina do jornalismo de interesse
público e, consequentemente, à própria política geral de verdade recomendada pelo
discurso interamericano de liberdade de expressão. Antes de chegarmos lá, vamos aos
argumentos. Ao focar-se no modelo utilitarista que o Karl Marx maduro aplicou em seus
escritos de teoria econômica, Honneth trata de uma consequência do abandono por
parte de seu conterrâneo do modelo de conflito social que o jovem Marx seguia.
Inicialmente, Marx via no trabalho a possibilidade de identificar a autorrealização
pessoal com o reconhecimento intersubjetivo, identificação impossibilitada pela
separação do trabalhador dos meios de produção:
[O] primeiro Marx pode interpretar ainda os confrontos sociais de sua época
como uma luta moral que leva os trabalhadores reprimidos à restauração das
possibilidades sociais do reconhecimento integral. A luta de classes não
representa para ele primeiramente um confronto estratégico pela aquisição de
bens ou instrumentos de poder, mas um conflito moral, no qual se trata da
„libertação‟ do trabalho, considerada a condição decisiva da estima simétrica e
da autoconsciência individual (HONNETH, 2003, p. 232).
Mais tarde, no entanto, Marx deixa de incluir a referência a outros sujeitos em
termos de reconhecimento, adotando um modelo utilitarista de conflito social.
[N]a análise do capital, ele faz com que a lei de movimento do embate entre as
diversas classes seja determinada, de acordo com seu novo quadro conceitual,
pelo antagonismo de interesses econômicos. Agora, a luta de classes (...) é
pensada por ele conforme o padrão tradicional de uma luta por auto-afirmação
(econômica); no lugar de um conflito moral que resulta da destruição das
condições do reconhecimento recíproco, entrou subitamente a concorrência de
interesses estruturalmente condicionada (HONNETH, 2003, pp. 235-6).
Opta-se aqui por apresentar a crítica ao utilitarismo a partir das aproximações
marxianas, pela influência de seu pensamento em movimentos sociais de comunicação.
67
Se o saber que referencia os jornais analisados recorta a realidade social em busca de
uma racionalidade voltada para fins, também a tradição materialista em que se incluem
críticos dos meios de comunicação reproduz tal recorte sobre seu objeto, mantendo o
debate sobre liberdade de expressão limitado a temas da economia política. Honneth
recorre ao francês Georges Sorel para apontar as carências dessa perspectiva:
[P]ara ele, a concepção segundo a qual a ação humana deve se confundir com
a persecução de interesses, operando numa racionalidade com respeito a fins,
significa um obstáculo fundamental no conhecimento dos impulsos morais pelos
quais os seres humanos se deixam guiar em suas realizações criativas (SOREL
apud HONNETH, 2003, p. 240).
A moral, para Sorel, é “o conjunto de todos aqueles sentimentos de lesão e de
vexação com que reagimos toda vez que nos sucede algo que tomamos por
moralmente inadmissível” (Idem, p. 243). O sentimento de injustiça a que se refere não
provoca o fechamento de uma identidade como produto de um fim, mas abre um
espaço de disputa de identidades, já que “experiências pessoais de desrespeito podem
ser interpretadas e apresentadas como algo capaz de afetar potencialmente também
outros sujeitos” (Ibid., p. 256).
Essa digressão se fez necessária para compreender em que consiste
exatamente a heresia identificada por esta análise nos discursos de O Estado de S.
Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo. Em uma política da verdade na qual os sujeitos
competem pela noção de interesse público e sancionam os interesses particulares,
perde-se a possibilidade da disputa de diferentes noções de justiça. A cobertura da 1ª
Conferência Nacional de Comunicação teria sido uma oportunidade especial para essa
disputa discursiva em torno da justiça. Como objetos dos debates da conferência, os
jornais eram afetados pelas propostas que visavam reverter uma condição de injustiça
em que os grupos se inserissem e reagir a experiências de desrespeito que tais
propostas lhes pudessem infligir. Certamente houve reação às propostas, isolando-as e
nomeando-as como identidades interessadas ou ideológicas, mas sem referência à
situação de injustiça que originou a disputa.
Um debate sobre justiça depende, dessa maneira, que haja interesse do jornal
em invocar uma situação de injustiça para instrumentalizá-la na sua formulação
hegemônica. Dentro do conflito de interesses da Confecom, os jornais assumiram
68
posição interessada para destratar seus adversários ou inimigos: pontos nodais como
controle social ou imprensa livre orientaram a disputa no sentido dos supostos fins,
fixaram posições e identidades e não contribuíram para a compreensão da origem
emotiva e cognitiva (nos termos de Honneth) do conflito social que se apresenta. Uma
seleção interessada de temas é articulada para tratar de ações motivadas por interesse.
Tornam-se heréticos aqueles temas não interessantes ao enunciador e aqueles temas
que não se expressam em termos de interesse. Esse cenário de supremacia do
interesse na análise social é impeditivo de uma perspectiva moral nas narrativas do
contemporâneo. A agência dos jornais poderia ser explicada meramente pelos
interesses que os constituem, mas isso ignoraria a cultura política de liberdade de
expressão a que fazem referência. A imprensa escrita, no discurso de liberdade de
expressão, deve ser aberta à sociedade e é livre para selecionar os temas para si
interessantes, inclusive qual sociedade que quer escutar. Essa postura de abertura só
se torna preocupante quando o Escritório da Relatoria Especial para Liberdade de
Expressão, a Comissão da OEA que o engloba e a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, referências de ativistas, juristas, legisladores e comunicadores, recomendam
uma doutrina de preservação da democracia em termos de interesse. Ao atribuírem à
imprensa uma gestão de interesses em prol da democracia, instauram um controle
discursivo sobre o tipo de narrativas com que o jornalismo deveria se preocupar. O
controle sobre o conteúdo das narrativas jornalísticas que tal recomendação instaura
aos comunicadores preocupados com a democracia constitui uma política do silêncio
precisamente onde mais se precisa de liberdade de expressão: aquela situação em que
não há interesse em se revelar, a experiência de desrespeito real e presente que
precisa da atenção social. Mas todas as atenções, e todos os pontos nodais, estão
voltadas para os fins, as ameaças que se expressam em termos de interesse contra a
democracia. O espaço simbólico proporcionado pelo interesse prescinde de qualquer
informação sobre algum sofrimento de injustiça, já que a identidade está definida desde
o início pelo interesse que motiva a ação do sujeito no discurso, além, é claro, do ponto
de vista seletivo do enunciador.
Para haver liberdade de expressão não se pode impor pontos de vista ao
enunciador. Mas para promover a liberdade de expressão, pode-se pensar em outra
69
forma de legitimar o jornalismo a partir da democracia: não como seu defensor contra
as finalidades obscuras do ser humano, mas como promotor da democracia ao
visibilizar as condições de sofrimento que têm origem social e política. Isso significaria
um sujeito de livre expressão menos preocupado na preservação daquilo que já foi
conquistado e mais voltado para catalisar a transformação social em direção do que
precisa ainda de conquista.
70
Capítulo 3
Controle discursivo na Confecom
71
A 1ª Conferência Nacional de Comunicação se insere em um contexto de
experimentalismo político que vem destacando o Brasil na literatura de teoria
democrática. Essa literatura trata das conferências de políticas públicas em conjunto
com conselhos de políticas públicas, a partir de diversas perspectivas: por sua
capacidade de agendamento de pautas de minorias (POGREBINSCHI, 2011), como um
sistema que consegue integrar participação e deliberação (FARIA et al., 2012) ou ainda
como instituições participativas atribuídas à Constituição Federal de 1988 (AVRITZER,
2012). Esses processos, sistemas ou instâncias têm como objetivo permitir a
participação de diversos atores políticos nas várias etapas da gestão de políticas
públicas setoriais, seja na determinação de seus princípios e diretrizes, na proposição
de ações e metas, ou na avaliação, monitoramento e controle de seus resultados
(SOUZA, 2012).
De acordo com Claudia Feres Faria, Viviane Petinelli Silva e Isabella Lourenço
Lins, a concepção das conferências surgiu no governo Vargas, em 1937, “com o
objetivo de facilitar o conhecimento do Governo Federal acerca das atividades relativas
à saúde e de orientá-lo na execução dos serviços locais de saúde” (FARIA et al., 2012,
p. 260). Embora naquele período as discussões estivessem restritas a agentes públicos,
os processos posteriormente se abriram para um diálogo com a sociedade civil. Clóvis
Henrique Leite de Souza ressalta a influência da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em
1986, e sua mobilização social para a criação do Sistema Único de Saúde sobre os
debates na Assembleia Constituinte. O contexto favoreceu para que a Constituição de
1988 garantisse formalmente “a descentralização administrativa e a incorporação da
participação de cidadãos e organizações da sociedade civil na gestão de políticas
públicas por meio da criação de instituições participativas” (SOUZA, 2012, p. 13), duas
características do modelo de gestão do SUS. Leonardo Avritzer elabora sobre tais
instituições, “IPs”:
As IPs são resultado da ação da sociedade civil brasileira durante o processo
constituinte que resultou em um conjunto de artigos prevendo a participação
social nas políticas públicas nas áreas da saúde, assistência social, criança e
adolescente, políticas urbanas e meio ambiente. Esse padrão modificou
fortemente a ideia de autonomia da sociedade uma vez que, por mais paradoxal
que pareça, a sociedade civil que reivindicou a sua autonomia em relação ao
72
Estado foi a mesma que reivindicou arranjos híbridos com a sua participação
junto aos atores estatais durante a Assembleia Nacional Constituinte. A maior
parte das IPs tem a sua origem nos capítulos das políticas sociais da
Constituição de 1988. Essa foi a origem das formas de participação no nível
local, tais como os conselhos e as formas de participação incipientes no nível
federal durante os anos 1990 (AVRITZER, 2012, pp. 10-1).
Percebe-se, assim, que a concepção das conferências de políticas públicas não
parte de uma ordem discursiva liberal. Cara à concepção de democracia dessa ordem
está a noção de “independência dos governados”, identificada por Foucault (2008) na
tradição utilitarista do liberalismo, que introduz o jogo entre liberdade e segurança nas
relações entre Estado e sociedade. Não partindo de uma relação ameaçadora, as
conferências induzem à colaboração entre governante e governado. Tal perspectiva
levanta questões sobre a dinâmica desses processos: será que há mesmo um
confronto de ideias ou haveria a sobredeterminação das posições governamentais em
detrimento da autonomia da sociedade civil?
Preocupado com essas e outras questões, Avritzer (2012) conduziu uma
pesquisa de percepção como coordenador do Projeto Democracia Participativa da
UFMG em parceria com o Vox Populi, em julho de 2011, com 2.200 respondentes. A
amostragem incluiu todas as regiões do Brasil, espelhando estratificação de renda,
escolaridade, sexo e raça do país. Nesse universo, 41,8% afirmaram ter ouvido falar
das conferências nacionais e 6,5% ter participado delas. No que se refere aos pontos
aqui levantados, 41,6% dos participantes em conferências relataram que não tiveram
informação suficiente para participação, o que prejudica bastante o processo de
deliberação. Avritzer não identifica intenção governamental nisso e atribui a falta de
informação a problemas de infraestrutura de algumas áreas, o que, em 13% dos casos,
faz o participante depender de documentos preparatórios elaborados para a conferência
por entidades. Vale apontar a participação típica desses tipos de processo:
[A] participante típica é uma mulher em 51,2% dos casos, com quatro anos de
escolaridade (26,9%) ou com ensino médio completo em 20,3% dos casos. A
sua renda varia entre 1 e 4 salários mínimos (SM) em 52,2% dos casos. Assim,
a primeira observação que gostaria de fazer em relação ao padrão de
participação nas conferências nacionais é que ele é muito semelhante ao
padrão de participação no nível local. Não são os mais pobres que participam,
73
mas as pessoas na média de renda da população brasileira e, em geral, com
escolaridade mais alta do que a média (AVRIZTER, 2012 p. 13).
Avrizter inclui ainda uma questão sobre a dimensão deliberativa das conferências.
Para 79% dos participantes, o processo de discussão é marcado pelo debate e pelo
confronto de ideias. Quanto à influência do governo, a pesquisa registra a percepção
majoritária de um equilíbrio entre a participação do governo e da sociedade civil, algo
verificável pelo próprio histórico de conferências, que conta com derrotas importantes
do governo, segundo o autor.
Com esse quadro geral voltamos à Conferência de Comunicação. A cobertura
jornalística incluiu um foco em um evento convocado pelo governo, com participação
restrita e previsibilidade de resultados. O conjunto de matérias, no entanto, mostrou
conflitos entre governo e “grupos radicais”, sindicatos e empresas, consonante com o
quadro geral sugerido pela pesquisa e questionando a previsibilidade de resultados por
certa homogeneidade de participantes ou por um jogo marcado governamental. Isso
abre a possibilidade de estudar o conflito no interior dessa relação colaborativa.
Para compreender como a dinâmica de conflitos foi configurada no processo da
Confecom, esta análise se volta para os documentos que marcaram a história do
evento.
A pluralidade de sujeitos na mobilização
O resultado de conferências de políticas públicas pode ser de caráter consultivo
ou deliberativo, este em geral previsto em legislação, como é o caso de conferências de
saúde e de assistência social. A primeira edição de uma conferência de comunicação
seria certamente consultiva, mas para acontecer precisava de um decreto presidencial
com o tema e o órgão responsável pelo processo. Por outro lado, segundo Avrtizer
(2012), a efetividade das conferências está vinculada a outras instâncias de
participação, como conselhos de políticas públicas, que mantêm e monitoram os
compromissos desses eventos. No caso da comunicação, não existe tal conselho para
resguardar seus resultados. Haveria motivação para uma incidência desse nível
(presidencial) para realizar um processo consultivo que sequer teria garantia de
efetividade?
Primeiro, se faz necessário contextualizar a ideia de uma conferência inédita
74
sobre o tema da comunicação. Na administração petista, houve uma clara tendência
governamental no sentido de ampliar a participação na gestão de políticas públicas.
Entre 1941, quando ocorrera a primeira, e 1988, nove conferências foram realizadas; de
1988 a 2002, organizaram-se 27 (FARIA et al., 2012). De 2003 a 2012, registraram-se
87 conferências, com a participação de mais de 7 milhões de pessoas, consideradas
suas etapas municipais, livres, regionais, estaduais e nacionais, muitas delas em temas
inéditos (SOUZA, 2013, p. 5). O momento político propício para se discutir
coletivamente temas de políticas públicas foi considerado uma oportunidade para
movimentos que há muito buscavam espaço para defender suas pautas na
comunicação.
Nesse sentido, a estratégia de mobilização passou a se concentrar na
convocação de uma conferência. Em 2007, as comissões de Ciência Tecnologia,
Comunicação e Informática e de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos
Deputados convocaram o Encontro Nacional de Comunicação: na luta por democracia e
direitos humanos, que se constituiu numa articulação com diversas entidades sociais
historicamente envolvidas no tema da democratização das comunicações, como o
FNDC e o Coletivo Intervozes, tendo o encontro encerrado com a Carta Aberta ao
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva: por uma legítima e democrática Conferência
Nacional de Comunicações21:
O modelo vigente [na comunicação] é marcado pela concentração e a
hipertrofia dos meios em poucos grupos comerciais, cujas outorgas são obtidas
e renovadas sem controle da sociedade e sem critérios transparentes. (...)
Historicamente, as decisões relativas à comunicação no Brasil têm sido
tomadas à revelia dos legítimos interesses sociais, quase sempre apoiadas em
medidas administrativas e criando situações de fato que terminam por se
cristalizarem em situações definitivas.
A necessidade de corrigir tais distorções históricas emerge justamente na hora
em que a convergência digital torna cada vez mais complexo o processo de
produção, difusão e consumo das informações. (ENCONTRO NACIONAL DE
21
Disponível em <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-
permanentes/cdhm/arquivos/Carta%20Final%20do%20Encontro%20Nacional%20de%20Comunicacao%
20-%20Na%20Luta%20%20por%20Democracia%20e%20Direitos%20Humanos.pdf>. Acesso em: 6 mar.
2013.
75
COMUNICAÇÕES, 2007)
A referência principal no documento é a radiodifusão. Como as ondas hertzianas
que difundem as emissões de rádio e TV passam por um espaço público de tamanho
limitado, a exploração do espectro eletromagnético se faz pelo regime de concessão. O
documento reivindica um debate em torno da renovação dessas concessões e também
sobre os impactos no espectro com a convergência digital, que pode aumentar a
quantidade de canais abertos na radiodifusão. Dessa maneira, com um discurso pelo
debate do uso do espaço público, foi formado o movimento Pró-Conferência Nacional
de Comunicação ao final do encontro.
O movimento divulgou mais um documento em 2 de dezembro de 200822, ao
final de outro encontro em Brasília que reunira “66 organizações e 250 pessoas”,
pressionando por uma conferência de comunicação, proposta debatida em 15 unidades
da federação. Nesse documento, o escopo de discussão foi ampliado: televisão aberta,
rádio, internet, telecomunicações por assinatura, cinema, mídia impressa e mercado
editorial. Em 19 de março daquele ano23, uma nota oficial nos traz a lista de membros
da Comissão Pró-Conferência Nacional de Comunicação:
1) FNDC – Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação
2) MNDH – Movimento Nacional de Direitos Humanos
3) FENAJ – Federação Nacional dos Jornalistas
4) INTERVOZES – Coletivo Brasil de Comunicação Social
5) CFP – Conselho Federal de Psicologia
6) ABCCOM – Associação Brasileira de Canais Comunitários
7) Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos
Deputados
8) Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática
da Câmara dos Deputados
9) CUT – Central Única dos Trabalhadores 22
Disponível em <http://www.fndc.org.br/arquivos/Encontro_Brasilia_dez_2008.pdf>. Acesso em: 12 Jun.
2013.
23 Disponível em <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-
permanentes/cdhm/arquivos/Nota%20Oficial%20da%20Comissao%20Pro-
Conferencia%20Nacional%20de%20Comunicacao.pdf>. Acesso em: 12 Jun. 2013.
76
10) FITERT – Federação dos Trabalhadores em Empresas de
Rádio e Televisão
11) LaPCom-UnB – Laboratório de Políticas de Comunicação –
Universidade de Brasília
12) ABRAÇO – Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária
13) Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – Ministério
Público Federal
14) AMARC-BRASIL – Associação Mundial das Rádios
Comunitárias
15) ENECOS – Executiva Nacional dos Estudantes de
Comunicação Social
16) ABGLT – Associação Brasileira de Gays, Lésbicas,
Bissexuais,Travestis e Transexuais
17) MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
18) ARPUB – Associação das Rádios Públicas do Brasil
19) ASTRAL – Associação Brasileira de TVs e Rádios Legislativas
20) Campanha Quem Financia a Baixaria É contra a Cidadania
21) ABTU – Associação Brasileira de TVs Universitárias
22) OAB – Ordem dos Advogados do Brasil
23) UNE – União Nacional dos Estudantes
24) CEN – Coletivo de Entidades Negras
A diversidade da lista, que ainda seria ampliada, já sinalizaria as identidades que
uma futura conferência precisaria reconhecer e relativiza relatos jornalísticos que
sugerem a convocação da conferência pela ação de grupos de interesse (ESTADO,
2009). O apoio de movimentos e entidades nacionais também mostrava a força política
que o grupo detinha para articular sua reivindicação em um momento político propício.
Em janeiro de 2009, a reivindicação desses movimentos foi reconhecida pelo
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, precisamente em um evento articulado por grupos
da sociedade civil:
No Fórum Social Mundial, em Belém (PA), Lula afirmou que assinará um
decreto nos próximos dias convocando o evento, para atender à reivindicação
dos movimentos que lutam pela democratização do setor. “No conflito entre
77
grandes e pequenos, dali sairá uma proposta de comunicação mais avançada
para o Brasil”, declarou Lula segundo a CUT (MOULATLET, 2009).
O decreto presidencial de 6 de abril de 2009 (DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, 2009,
p. 2) afinal fez a convocação da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, com o tema
“Comunicação: meios para a construção de direitos e de cidadania na era digital”,
atribuindo a responsabilidade de organização ao Ministério das Comunicações. A
primeira das atribuições seria a publicação de portaria constituindo a comissão
organizadora, que elabora o Regimento Interno da conferência.
A Portaria n. 18524, de 20 de abril de 2009, criou a Comissão Organizadora
Nacional (CON), instância cuja duração está associada ao processo conferencial. A
composição incluiu oito vagas para o Executivo25, duas para o Legislativo (Câmara dos
Deputados e Senado) e 16 para a sociedade civil, compreendida como:
ABCCOM - Associação Brasileira de Canais Comunitários
ABEPEC - Associação Brasileira das Emissoras Públicas,
Educativas e Culturais
ABERT - Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e
Televisão
ABRA - Associação Brasileira de Radiodifusores
ABRAÇO - Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária
ABRANET - Associação Brasileira de Provedores Internet
ABTA - Associação Brasileira de TV por Assinatura
ADJORI BRASIL - Associação dos Jornais e Revistas do
Interior do Brasil
ANER - Associação Nacional de Editores de Revistas
ANJ - Associação Nacional de Jornais
CUT - Central Única dos Trabalhadores
24
Disponível em <http://www.mc.gov.br/portarias/26707-portaria-n-185-de-20-de-abril-de-2009>. Acesso
em: 12 Jun. 2013.
25 Casa Civil, Ministério das Comunicações, Ministério da Ciência e Tecnologia, Ministério da Cultura,
Ministério da Educação, Ministério da Justiça, Secretaria de Comunicação Social, Secretaria-Geral da
Presidência.
78
FENAJ - Federação Nacional dos Jornalistas
FITERT - Federação Interestadual dos Trabalhadores de
Empresas de Radiodifusão e Televisão
FNDC - Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação
INTERVOZES - Coletivo Brasil de Comunicação Social
TELEBRASIL - Associação Brasileira de Telecomunicações
Observa-se assim que a sociedade civil foi representada por organizações que
mobilizaram para a conferência mais as entidades empresariais atuantes no setor de
comunicação. Houve equilíbrio entre o que o Regimento Interno mais tarde dividiria
como sociedade civil e sociedade civil empresarial: cada uma com oito entidades,
mesma quantidade que o Executivo Federal. Esse equilíbrio identitário lançou as bases
para a discussão da organização da 1ª Confecom.
A gestão de conflitos pela Comissão Organizadora
O Regimento Interno26 orienta e organiza o processo conferencial, das etapas
municipais à nacional, e é desenvolvido pela Comissão Organizadora Nacional. Por
meio dele, sabemos que há etapas preparatórias (conferências livres, virtual, municipais
e intermunicipais) e etapas eletivas (conferências estaduais e distrital), estas capazes
de eleger delegados para a etapa nacional. As conferências municipais e
intermunicipais, assim como as etapas eletivas, são organizadas por e submetidas a
uma comissão organizadora no nível federativo respectivo que respeita os critérios de
composição e deliberação da CON, ou seja, a proporção de representantes dos três
grupos identitários da CON – Poder Público (20%), Sociedade Civil (40%) e Sociedade
Civil Empresarial (40%) – e a forma da votação no interior de uma comissão
organizadora municipal ou estadual devem seguir o padrão nacional.
Para um trabalho com uma preocupação com a liberdade de expressão, é de
particular interesse uma instância que governa a conduta dos participantes, valorizando
práticas e instituindo procedimentos de quórum e votação que controlam a circulação
dos discursos políticos no processo conferencial. As decisões são tomadas por maioria
26
Disponível em: <http://www.in.gov.br/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=72&data=03/09/2009>.
Acesso em: 12 Jun 2013.
79
simples dos presentes, com a possibilidade da “deliberação qualificada” – quando pelo
menos a metade de um dos segmentos indicar uma questão sensível em votação, a
decisão só será aprovada com o aval de 60% dos presentes, com ao menos um voto de
cada segmento. Trata-se de um procedimento de gestão de antagonismos no interior
das comissões organizadoras. Ernesto Laclau e Chantal Mouffe consideram
antagonismo uma disputa em que duas ordens discursivas são inconciliáveis,
representando uma a negação da outra. O mecanismo de votação e proporcionalidade
permite que decisões não provoquem uma crise no conjunto de identidades
representadas, impedindo de expor um segmento a decisões incompatíveis com seus
valores constitutivos.
Se o sujeito é construído através da linguagem, como uma incorporação
metafórica e parcial a uma ordem simbólica, qualquer questionamento dessa
ordem deve necessariamente constituir uma crise de identidade27
(LACLAU;
MOUFFE, 1985, p. 126).
Não se trata de imunizar as discussões para que um consenso que não conteste
identidades seja formado, mas impedir que diferenças inconciliáveis impeçam o debate.
A própria possibilidade de uma decisão que não reconheça a parte derrotada como
interlocutora traz o risco de dissolução do espaço de diálogo, já que implica em uma
ordem discursiva alheia a essa identidade. Uma preocupação de Mouffe (2009, p. 103-
5) envolve a criação de um espaço simbólico comum que consiga mobilizar paixões a
partir de canais democráticos que permitam o dissenso e assegurem certa fidelidade
institucional, apesar do caráter contingencial de qualquer arranjo político.
Parece ser um passo nesse sentido um coletivo capaz de, por um lado,
estabelecer as regras a que se submete e, por outro, ser referência identitária para os
sujeitos-conferencistas que seguem sua metodologia de debate. A acomodação da
pluralidade e a diversidade de identidades durante o processo conferencial não levaria
a uma crise se adotada alguma técnica de gestão de conflitos que impedisse a
alienação discursiva de uma identidade representada na CON, mas sem impedir o
dissenso. Como qualquer um dos três blocos de identidade (sociedade civil empresarial,
sociedade civil não-empresarial e governo) poderia requisitar o processo de deliberação
qualificada, decisões que ameaçassem um deles poderiam ser vetadas. A negociação
27
Tradução nossa.
80
de questões polêmicas, dessa maneira, seria a única forma de resolver o impasse,
afastando as possibilidades de imposição da vontade de um grupo identitário.
Antes de analisar os documentos que governaram as práticas conferenciais,
cabe discutir as razões pela qual a CON fracassou em manter esse espaço simbólico
comum no seu próprio interior, dando vazão a antagonismos que resultaram na saída
de seis entidades do processo conferencial. Para a compreensão das razões pelas
quais essa estratégia não funcionou, se faz necessário um olhar mais próximo sobre
quais possibilidades dispunham os atos normativos da CON para impedir que discursos
saíssem de uma ordem comum.
Para essa discussão, recorre-se a instrumentos teóricos desenvolvidos por
Michel Foucault em A ordem do discurso (2008a), material de transição na trajetória do
autor, em que a análise da articulação dos fatos do discurso nos mecanismos do poder
se faz ainda em termos do direito, não avançando completamente para a busca da
intenção das técnicas e estratégias do exercício do poder (CASTRO, 2004, p. 118). Mas
se sabemos que a intenção do Regimento Interno foi promover um debate sem que –
nos termos teóricos aqui adotados – antagonismos fossem impedimento, a descrição
dessas técnicas possíveis de exercício do poder pelo controle discursivo já é o bastante
para contextualizar tal fracasso.
Eis a hipótese que gostaria de apresentar esta noite, para fixar o lugar – ou
talvez o teatro muito provisório – do trabalho que faço: suponho que em toda
sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada,
organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm função
conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar
sua pesada e temível materialidade (FOUCAULT, 2008a, pp. 8-9).
Busca-se aqui precisamente a capacidade analítica de avaliar a função dos
procedimentos de controle discursivo e, embora se apresente de forma geral os três
que Foucault desenvolve, detalham-se apenas aqueles com uma utilidade para o objeto
em estudo. Trata-se de procedimentos de exclusão, de controle interno ao discurso e de
rarefação.
Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de
tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de
qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou
exclusivo do sujeito que fala: temos aí o jogo de três tipos de interdições que se
81
cruzam, se reforçam ou se compensam, formando uma grade complexa que
não cessa de se modificar (FOUCAULT, 2008a, p. 9).
Procedimentos de exclusão são aqueles que revelam a ligação com o desejo e o
poder, proibições que concernem ao objeto do discurso, “aquilo por que, pelo que se
luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (Idem, p. 10). Além da interdição de
discursos, destaca-se o procedimento de exclusão que os separa e rejeita, quando as
palavras são desarmadas e reconciliadas a partir da intenção daquele que exerce o
procedimento. Elas podem até ser objeto de escuta, mas de forma a curá-las de sua
inconsistência ou inadequação. Foucault (Ibid., pp. 10-3) identifica os discursos da
loucura 28 como aqueles sobre os quais se busca controlar seus terríveis poderes,
tornando-os inócuos, ingênuos, astuciosos, ou ainda angustiantes ou objetos de
exaltação. É um discurso que não pode circular como os outros por não ser admissível
(na ordem jurídica, por exemplo) ou por ter poderes especiais (como uma verdade
escondida) (CASTRO, 2004, p. 119).
O segundo conjunto de procedimentos tem como função a eliminação do acaso
na realidade em prol de princípios de classificação, ordenação e distribuição. São
discursos que controlam a produção de outros discursos, quando eles mesmos
exercem seu próprio controle, mantendo certa ordem recorrente independente das
contingências. Curiosamente, tais procedimentos de ordenação se aproximam da teoria
política do discurso de Laclau e Mouffe, no limite em que pontos nodais articulam uma
rede de equivalências contingentes que organiza o que era caos.
O terceiro conjunto de procedimentos de controle discursivo teorizado por
Foucault não exclui ou domina os poderes do discurso, nem constrói realidades
discursivas coerentes pela submissão do acaso, mas impõe certo número de regras aos
indivíduos que os pronunciam. São os procedimentos de rarefação.
Rarefação, desta vez, dos sujeitos que falam; ninguém entrará na ordem do
discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início,
qualificado para fazê-lo. Mais precisamente: nem todas as regiões do discurso
28
Interessante apontar como esse procedimento foi utilizado na cobertura da Confecom por O Globo.
Sua complacência ao discurso delirante de grupos ultrapassados também é um procedimento para
controlar suas terríveis verdades, reproduzindo certo tratamento social à loucura, isolando-a e
desarmando-a.
82
são igualmente abertas e penetráveis; algumas são altamente proibidas
(diferenciadas e diferenciantes), enquanto outras parecem quase abertas a
todos os ventos e postas, sem restrição prévia, à disposição de cada sujeito que
fala (FOUCAULT, 2008a, p. 37).
Tais procedimentos de rarefação têm como função limitar o intercâmbio e
comunicação dos discursos e determinar sua apropriação social por um sistema de
restrições. O sistema relevante para os objetivos postos é o ritual:
A forma mais superficial e mais visível desses sistemas de restrição é
constituída pelo que se pode agrupar sob o nome de ritual; o ritual define a
qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo de um
diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar determinada posição e
formular determinado tipo de enunciados); define os gestos, os comportamentos,
as circunstâncias, e todo o conjunto de signos que devem acompanhar o
discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito
sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coerção
(FOUCAULT, 2008a, pp. 38-9).
Com esse instrumental teórico em mente, a análise tem condições de precisar a
divergência no desenvolvimento de um sistema de bloqueio de antagonismos no interior
da Comissão Organizadora Nacional. Sustenta-se aqui que entidades empresariais
pretenderam, durante a discussão do Regimento Interno, realizar o controle prévio do
discurso político que fosse produzido no interior da Confecom por meio de um
procedimento de exclusão e seleção de discursos admissíveis, orientando os debates
para apenas suas pautas políticas. Esses procedimentos na discussão do Regimento
Interno da Confecom podem ser verificados nas reivindicações de Abert, Abra, Abranet,
Abrafix, Telebrasil, ABTA, ANJ e ANER ao ministro das Comunicações Hélio Costa:
Entre as reivindicações documentadas estavam os principais pleitos que já
vinham sendo colocados pelos radiodifusores: quórum qualificado em que os
setores empresariais tenham peso relevante e; temática voltada para temas
futuros, e não para críticas e revisão dos marcos regulatórios e modelos atuais
(TELETIME NEWS, 2009).
O quórum qualificado permitiria o controle ritualístico sobre os sujeitos
capacitados a dar efetividade aos discursos resultantes da conferência, uma proposta
sobre processos de votação. Por outro lado, o “tema futuro” buscaria excluir discursos
de avaliação sobre o modelo contemporâneo de comunicação e selecionar discursos a
83
respeito das novas mídias no âmbito do processo conferencial. Revela-se, assim, um
bloqueio realizado pelas associações que representam empresas de radiodifusão, TV a
cabo, internet, imprensa e telecomunicações ao debate da atual condição da
comunicação no Brasil. Anteriormente, os radiodifusores, sozinhos, haviam expressado
ainda as seguintes preocupações:
Os representantes da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV
(Abert) apresentaram „condições mínimas‟, ou premissas, que deveriam constar
no regimento com vistas a garantir a participação do empresariado de
radiodifusão no decurso do processo.
Entre elas estão: (1) a defesa do conteúdo nacional, (2) a proteção dos serviços
e outorgas atuais frente à turbulência tecnológica da convergência midiática, (3)
a defesa intransigente das práticas da legalidade, (4) o respeito e a valorização
das empresas brasileiras de comunicação escrita ou de radiodifusão dirigidas e
orientadas editorialmente por brasileiros, (5) o livre exercício da atividade de
comunicação e de informação, por pessoa e organizações, e (6) a mínima
interferência estatal (OBSERVATÓRIO DO DIREITO À COMUNICAÇÃO, 2009).
Essas reivindicações não apenas excluem pela revelação dos objetos de desejo
das entidades, mas também selecionam os discursos que podem circular no processo
conferencial. Esses procedimentos de exclusão foram interpretados por Jonas Valente e
Carolina Ribeiro, do coletivo Intervozes (com assento na CON), como uma ameaça ao
“caráter amplo e democrático” da conferência.
Tal posição precisa ser problematizada fortemente. No que tange às premissas
reclamadas pela Abert, a defesa a priori dos interesses de um setor nos
objetivos ou mesmo como premissas de uma Conferência não respeita a lógica
de funcionamento de uma iniciativa como esta. Como já ocorreu em dezenas de
eventos deste tipo organizados pelo Executivo Federal desde 2003, uma
Conferência presume a abertura de um espaço para debate público entre as
diversas partes envolvidas. Suas regras precisam assegurar esta amplitude, o
envolvimento da população e dos diversos segmentos interessados na área.
Mas não devem legitimar a consolidação da pauta de determinado segmento
como tema indiscutível ou como premissa dos debates. Tal opção ameaça a
Confecom como espaço de discussão pública sobre as políticas de
comunicação (OBSERVATÓRIO DO DIREITO À COMUNICAÇÃO, 2009).
Apesar de mais tarde os radiodifusores recuarem dessas posições em prol da
seleção temporal dos temas (ganhando com isso o apoio dos outros empresários), o
84
conflito se apresentou inegociável em 13 de agosto de 2009, quando Abert, Abranet,
ABTA, Adjori Brasil, Aner e ANJ divulgaram nota à imprensa comunicando seu
desligamento da CON:
Por definição, as entidades empresariais têm como premissa a defesa dos
preceitos constitucionais da livre iniciativa, da liberdade de expressão, do direito
à informação e da legalidade.
Observa-se, no entanto, que a perseverante adesão a estes princípios foi
entendida por outros interlocutores da Comissão Organizadora como um
obstáculo a confecção do regimento interno e do documento-base de
convocação das conferências estaduais, que precedem a nacional (FNDC,
2009).
Essas entidades empresariais expuseram, assim, os termos mínimos pelos quais
consideram legítimo um debate. Não aceitar sua seleção de discursos aptos a
circulação significou para elas o próprio não-reconhecimento das empresas como
interlocutores “por definição”. Apesar disso, não estão registradas em nenhum
documento organizador do processo conferencial menções contrárias aos preceitos
constitucionais. Segundo a nota, o antagonismo ficou explícito por posições
apresentadas por interlocutores na Comissão Organizadora. No entanto, tais
declarações não sensibilizaram Abra, que representa Band e Rede TV, nem Telebrasil,
que representa empresas de telecomunicações: as entidades se mantiveram na CON
mesmo com a debandada dos outros empresários exposta na nota acima.
A atitude das entidades empresariais afastadas comunica ao analista uma
identidade condicionada à exclusão e seleção de discursos admissíveis, evitando uma
disputa aberta sobre seu papel no campo discursivo da comunicação. Ao considerarem
esse papel exclusivamente em termos de livre iniciativa, liberdade de expressão, direito
à informação e legalidade, numa formação hegemônica em que sua identidade não é
posta em questão, acabam bloqueando o debate a partir de outras perspectivas, como
se pontuou na análise da cobertura jornalística sobre a Confecom. Esse
condicionamento, no entanto, mais enfraquece do que protege as empresas de
comunicação em um regime democrático, cujo dinamismo exige constante
ressignificação de papéis de um sujeito. Além, naturalmente, da complicada questão
ética de comunicadores interditarem um debate. Postergar tal debate parece mais sinal
85
de fraca resiliência do que de poder democrático advindo de princípios de liberdade.
De acordo com Pedro Santoro Zambon e Juliano Mauricio de Carvalho (2010), a
Abert tinha como objetivo “retirar a legitimidade da arena decisória da Confecom com
sua própria retirada da comissão, que acabou por levar consigo outras entidades”. Já a
decisão de Abra e Telebrasil por se manter na conferência, segundo Marcos Dantas
(2009), teve o objetivo de “enfraquecer politicamente a Abert e aproximá-los [os dois
grupos de representação] ainda mais do governo, desde que, porém, não abrisse
caminho para todo o tipo de resolução raivosa, oriunda de segmentos populares, que
esse tipo de encontro tende a abrigar”.
Esse “caminho raivoso” foi administrado pelo acordo de votação, que impediu
que qualquer resolução classificada pelos conferencistas como sensível de ser
aprovada sem o voto dos três grupos de interlocução da Confecom: governo, sociedade
civil empresarial e sociedade civil não-empresarial. Esse controle discursivo pela
seleção dos sujeitos em um ritual de votação, em conjunto com o controle na produção
de discursos classificando-os por meio de eixos temáticos que organizam o debate
evitando o caos, é característico da cultura política de processos conferenciais.
Percebe-se, portanto, que o Regimento Interno e as resoluções da CON são sobretudo
procedimentais, ordenando os debates e selecionando a efetividade dos discursos e
não excluindo ou selecionando os discursos que entram no debate.
Após a atenção voltada para os mecanismos instituídos para evitar crises de
identidades com a gestão de conflitos, cabe agora a discussão sobre os processos de
produção de discursos no interior da conferência.
A produção discursiva na etapa nacional
De 14 a 17 de dezembro de 2009, o maior encontro para discutir a comunicação
brasileira desde a Assembleia Constituinte de 1988 reuniu cerca de 1.800 pessoas em
sua etapa nacional, a maioria eleita pelas etapas estaduais e contando também com
observadores, integrantes da CON e indicados da Administração Federal. Para
conduzirem discussões informadas, os participantes no Centro de Convenções Ulysses
Guimarães, o espaço em Brasília onde as conferências de políticas públicas geralmente
86
realizam sua etapa nacional, deveriam ter em mãos o Caderno de Propostas 29 ,
resultado da consolidação das propostas aprovadas nas etapas estaduais.
Pressupunha-se um conhecimento do chamado Documento de Referência30, material
sobre a metodologia dos debates estaduais que alimentaram o Caderno de Propostas e
contendo o Texto-Base que contextualizou historicamente o processo. A Confecom
contou também com os chamados Painéis, mesas de debates, cujo objetivo envolvia o
nivelamento de conhecimento dos participantes.
Como resultados esperados do processo conferencial, o Documento de
Referência estabelece: elaborar um documento, denominado Caderno da 1ª
Conferência Nacional de Comunicação, com propostas e relatórios encaminhados pelas
comissões organizadoras Estaduais e Distrital; subsidiar formulações no âmbito da
Política Nacional de Telecomunicações e de Radiodifusão; promover a divulgação do
Caderno da 1ª Confecom tanto junto às instâncias governamentais quanto nos diversos
setores da sociedade brasileira; estimular o compromisso e a responsabilidade dos
demais órgãos do poder público e da sociedade civil na construção do direito e da
cidadania na era digital. Como objetivo geral do processo, documento registra:
A Conferência Nacional de Comunicação - CONFECOM é um instrumento de
contribuição que tem como objetivo geral a elaboração de propostas
orientadoras para a formulação da Política Nacional de Comunicação, através
do debate amplo, democrático e plural com a sociedade brasileira, garantindo a
participação social em todas as suas etapas (DOCUMENTO DE REFERÊNCIA,
2009).
A Confecom realizaria isso, em termos de objetivos específicos, elaborando um
relatório final com princípios, diretrizes e propostas para a formulação e implementação
de políticas públicas de comunicação; e propondo mecanismos para efetivar a
participação social no âmbito da comunicação. Para contextualizar a Confecom em
29
Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/conferencias/Comunicacao/texto_base_1_conferencia_
comunicacao.pdf>. Acesso em: 15 Jun. 2013.
30 Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/conferencias/Comunicacao/caderno_propostas_1_conf
erencia_comunicacao.pdf>. Acesso em: 15 Jun. 2013.
87
relação aos objetivos de outras conferências de políticas públicas, recorremos aqui a
uma categorização de Clóvis Henrique Leite de Souza (2012), que analisou
conferências ocorridas entre 2003 e 2010, separando suas finalidades na produção
discursiva em quatro grupos: agendamento, avaliação, participação e proposição.
O agendamento consiste em orientar o objetivo da conferência, principalmente,
no sentido de disseminar uma visão de política ou uma maneira de tratar um assunto.
Ora, era precisamente a intenção das entidades empresariais que se viram ameaçadas
em sua identidade. Perante a proposta de discussão ampla sobre comunicação,
quiseram estabelecer os objetivos da Confecom a partir de uma posição já estabelecida.
Souza se posiciona criticamente em relação a conferências de agendamento:
Não se quer aqui menosprezar a importância das conferências em difundir
ideias contribuindo com a formulação de uma agenda pública, até pela
capilaridade que alguns desses processos tiveram nos municípios. No entanto,
cabe a reflexão se um evento cujo propósito central é disseminar visões deve
ser considerado como processo participativo na gestão de políticas públicas,
embora o agendamento possa ser base para a proposição de políticas.
(...)
E se o intuito é a formulação de uma nova agenda, além de garantir a presença
de múltiplas perspectivas, faz-se necessário que a postura na organização vá
além da escuta. Fundamentais são ações que possibilitem a construção coletiva
e até mesmo o convencimento, tendo em vista a intenção de que sujeitos que
não consideravam determinado tema em sua pauta venham a incluí-los
(SOUZA, 2012, pp. 22-3).
Souza também menciona a categoria de avaliação, seja para o diagnóstico de
uma situação ou análise de implementação de uma política. Ao autor chamou a atenção
o fato de conferências com o objetivo de formular propostas não tenham incluído esse
diagnóstico em seu objetivo, o que é o caso da Confecom. Uma hipótese para tal
ausência envolve o próprio processo de mobilização da conferência: cada entidade ou
movimento já possuía um diagnóstico sobre os problemas na comunicação social e
buscavam um espaço de visibilidade para suas soluções. A própria recusa de alguns
empresários de discutir a atual configuração desse campo já indicaria, também, outro
conflito potencial se a Confecom se inclinasse para avaliar a situação. Cabe o
questionamento, no entanto, se a visibilidade alcançada pela conferência não pudesse
88
ser aproveitada para apontar os problemas estruturais no debate público brasileiro ao
invés de circular as soluções que cada identidade apresenta para seu diagnóstico
particular. Perante a homogeneidade na cobertura jornalística, essa seria uma
formulação contra-hegemônica que não impediria, mas aliviaria a exposição negativa
de propostas apresentadas para problemas não conhecidos.
Por seus objetivos, a 1ª Conferência Nacional de Comunicação se classifica
como orientada para participação, que para Souza (2012, p. 25) caracteriza aquelas
conferências que se voltam para o fortalecimento ou criação de espaços participativos
para a gestão de políticas públicas. Na classificação de Souza, ela também é uma
propositiva. Para esta pesquisa, a Confecom é um evento voltado para a ampliação da
participação na proposição de um Plano Nacional de Comunicação. Essa perspectiva
se harmoniza com a literatura de políticas públicas e teoria democrática que analisa
conferências e permite posicionar a Confecom num espaço de disputa agônica sobre
como organizar a intervenção social no campo da comunicação.
A belga Chantal Mouffe (2005, pp. 135-40) propõe pensar a democracia como
um pluralismo agônico em que se trava a disputa entre uma diversidade de concepções
de “bem”, que apenas chegaria a resultados contingentes e negociados. Como os
sistemas sociais têm um caráter fundamentalmente político, estão sempre vulneráveis a
forças excluídas do processo de formação política, assim, a democracia sempre deverá
lidar com antagonismos. Um dos desafios das práticas políticas democráticas, segundo
Mouffe (2005, p. 101), será buscar criar um “nós” a partir da determinação daqueles que
foram excluídos.
O caráter aberto de um processo conferencial permite que a concepção de bem
desses excluídos ganhe espaço na produção de discursos sobre políticas públicas.
Para que os debates não se tornem disputas entre inimigos antagônicos, o caso
específico da Confecom tratou de selecionar sujeitos (que viram delegados com direito
a voto) e limitar sua capacidade de efetivar discursos (com o quórum qualificado) para
que não ocorresse uma crise de identidade nos atores políticos que governam a
conferência a partir da Comissão Organizadora. Essa configuração, por outro lado,
pressupõe que a Comissão Organizadora seja representativa das disputas sociais em
andamento, o que seria uma afirmação forte demais para este caso pela exclusão na
89
CON de movimentos sociais (e suas pautas) que estavam na mobilizadora Comissão
Pró-Conferência. Apesar de alguns desses movimentos terem encontrado espaço nas
comissões organizadoras estaduais, a etapa nacional precisaria dar voz a grupos não
consagrados com representação institucional. O acúmulo de conferências já teria uma
tecnologia para responder a isso: a divisão dos debates em eixos temáticos que, por
sua vez, ocorrem em grupos de trabalho.
As propostas das Confecom estaduais, enviadas por cada comissão
organizadora estadual à CON em relatórios consolidados, foram sistematizadas e
reorganizadas em eixos temáticos pela Fundação Getúlio Vargas. Assim, o tema
estabelecido em decreto “Comunicação: Meios para a Construção de Direitos e de
Cidadania na Era Digital” foi desmembrado nos três eixos previamente determinados
pela Resolução n. 1, de 10 de setembro de 200931, da CON:
Eixo I - Produção de Conteúdo
Eixo II - Meios de Distribuição
Eixo III - Cidadania: Direitos e Deveres
Segundo o Regulamento da etapa nacional, cada eixo organizou-se em cinco
Grupos de Trabalho, que tinham o mandato de debater, aperfeiçoar e priorizar as
propostas constantes no Caderno de Propostas. Nesses grupos, participavam
delegados, com direito a voz e voto, e observadores e convidados, com direito a voz.
Propostas sem oposição eram automaticamente aprovadas. Quando alguém pedisse
destaque, a proposta precisaria receber 80% dos votos dos delegados do GT para ser
aprovada e incluída no Caderno da 1ª Confecom. Na validação das propostas
destacadas, as que não obtivessem 30% dos votos eram rejeitadas de pronto e aquelas
que ficassem entre 30% e 80% eram objeto de debate, podendo ser fundidas ou
alteradas. Ao final, os GTs estabeleceram entre as propostas não descartadas, mas
sem votos suficientes – por um procedimento de escolha definido pelo próprio grupo –,
sete propostas prioritárias, que seriam aquelas a serem submetidas a votação na
Plenária.
31
Disponível em:
<http://www.in.gov.br/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=44&data=14/09/2009>.
Acesso em: 17 Jun. 2013.
90
Apesar do procedimento de votação específico, mas ainda exigente de um
quórum qualificado, os Grupos de Trabalho consistem em espaços voltados
principalmente para a discussão e troca de argumentos. Nesse espaço, identidades não
representadas na CON têm a oportunidade de apresentar, defender e garantir sua
pauta minoritária: seja agregando apoio para ser aprovada diretamente no GT, seja
encaminhando-a como prioritária para a Plenária.
Em termos morfológicos, Plenárias e Grupos de trabalho [se] diferenciam entre
si. As plenárias apresentam um tipo mais direto de ação, mais informal e, por
vezes, mais conflitivo. Sua forma de decisão é sempre agregativa em função do
próprio número de atores envolvidos. Os Grupos de Trabalho operam como
grupos de discussões face a face através dos quais os atores têm a chance de
apresentar suas opiniões e preferências, refletir e chegar às decisões por meio
da troca de argumentos. Nesse momento, mesmo que constrangid[as] pelo
tempo, narrativas, ideias e questões são levantad[a]s podendo redefinir
problemas, soluções e, às vezes, alianças estabelecidas. A forma agregativa de
soluções dos problemas também ocorre nos Grupos, mas ela, em tese, deve
ser precedida de discussões entre os atores em cena que podem, inclusive,
incluir novas proposições aos roteiros que balizam tais discussões. Por meio de
destaques, os atores envolvidos julgam publicamente as proposições, debatem
e acordam sobre como mudá-las. (FARIA et al., 2012)
No caso da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, Marcos Dantas revela
como se deu a dinâmica dos GTs e da Plenária.
[N]os próprios GTs, pequenas plenárias com cerca de 100 delegados cada um,
foi possível negociar boa parte dos acordos, geralmente na base do toma lá, dá
cá. Para a Abra e a Telebrasil eram, a rigor, poucas as teses que realmente
interessavam: são as fundamentais para a reprodução do capital, estas que,
nos tempos em que a esquerda era marxista, seriam consideradas decisivas,
quase exclusivas em qualquer discussão, pois remeteriam à disputa central
entre o capital e o trabalho. Já os “movimentos sociais” cuidavam, sobretudo, de
garantir “direitos”. (...) Nem a Abra, nem a Telebrasil iriam perder muito tempo
com isso, como ficou bastante evidente nas duas horas finais de Plenária,
quando as principais questões já tinham sido votadas, e tudo o mais passou a
ser aprovado por relaxada unanimidade.
Também não se preocuparam muito com as teses funcionalistas da CUT, do
FNDC ou do Intervozes, teses que, no fundo, ignorando velhas e novas lições
de Economia Política, ainda acreditam numa „missão‟ democrática e cidadã dos
91
meios de comunicações. (DANTAS, 2010)
Dantas traz dados que podem relativizar o argumento de que GTs são espaços
privilegiados de discussão. Grupos de cerca de 100 pessoas, apesar dos avanços nas
técnicas de facilitação de debates, não são exatamente espaços em que uma discussão
possa fluir livremente e provavelmente subgrupos foram formados. Também traz
informações interessantes no comportamento dos atores empresariais: tais identidades
pareceram estar mais voltadas para a garantia de visibilidade de seu ponto de vista no
Caderno 1ª Confecom do que de antagonizar alguma perspectiva. Fica a pergunta
sobre quais seriam os resultados da conferência se as entidades empresariais que se
sentiram mais ameaçadas estivessem presentes.
Pode-se extrair a ideia que os grande ganhadores na Confecom foram os
representantes da sociedade civil que, em um contexto de cisão empresarial,
conseguiram aprovar suas propostas mais importantes, enquanto os
empresários acabaram por perder muitas definições que serão forçadas a
serem concluídas no futuro, fora de um cenário tão propício para o seu debate
como um evento das proporções da Confecom (ZAMBON; CARVALHO, 2010, p.
12).
A saída de grande parte dos representantes do setor empresarial trouxe uma
perda para a transparência de suas posições específicas, no enfrentamento a discursos
externos à ordem que as constitui. Nem Abra nem Telebrasil pareceram ser
massacradas em suas identidades e contribuíram para visibilizar quais diretrizes ou
práticas devem ser levadas em conta na constituição de um Plano Nacional de
Comunicação. A democracia representativa privilegia a ação do lobby na representação
de interesses e, embora existam no Congresso Nacional propostas de regulamentação
do lobby que podem trazer transparência a tais influências, essa prática legítima
sempre será apresentada ao agente público de forma isolada. Em um processo
conferencial, tais influências terão uma reação e contextualização de outros pontos de
vista, o que é péssimo para grupos de interesse e extremamente oportuno para a
gestão de políticas públicas.
Em relação a outras conferências, o evento não buscou avaliar a situação das
comunicações no Brasil ou disseminar uma única posição já definida sobre o que
consistiria um Plano Nacional de Comunicação, dada a pluralidade de identidades
92
envolvidas desde a mobilização até a formação da CON. Um acordo de votação para
questões polêmicas impediria a escalada de conflitos entre os blocos de identidade,
mas tais conflitos acabaram não sendo significativos ao longo da etapa nacional após a
saída das entidades empresariais que constituíam sua identidade a partir de discursos
admissíveis ou não (exclusivamente a partir dos “preceitos constitucionais” que
selecionaram). Assim, pelo controle que ordenou os debates em eixos temáticos e por
aquele que selecionou a efetividade dos discursos num ritual de votação entre
delegados, a 1ª Conferência Nacional de Comunicação atingiu seu fim de produzir
diretrizes para a participação e a formulação de um Plano Nacional de Comunicação.
Tais diretrizes são o objeto da próxima seção.
As propostas e suas denúncias de exclusão
A análise das propostas originadas do processo participativo para a formulação
de políticas públicas para a comunicação tem como foco o controle discursivo e as
instâncias de participação presentes no Caderno 1ª Confecom32, já que a cobertura
jornalística voltou seu olhar para as ameaças nas propostas de controle de conteúdo e
nos órgãos de regulação da imprensa. Uma compreensão sobre em que consistem
esses “controles sociais” passa pela função que exercem na ordenação, produção,
exclusão, seleção e acesso a discursos sociais. A determinação da função do controle
pode posicionar a identidade daquele que o propôs, revelando carências e
necessidades presentes hoje no debate público brasileiro. É nesse sentido que se
orienta esta análise.
Para tal, adaptam-se as reflexões de Foucault em A ordem do discurso (2008a)
para inspirar a criação de categorias sobre a função do controle discursivo na finalidade
proposta pelas resoluções aprovadas na Plenária Final da 1ª Conferência Nacional de
Comunicação, além de uma categoria voltada para a lógica conferencial de ampliar a
participação no processo de gestão de políticas públicas. As propostas da Plenária Final
são aquelas que não foram aprovadas automaticamente pelos Grupos de Trabalho,
pressupondo maior conflito em torno de suas intenções.
32
Disponível em <http://www.mc.gov.br/component/docman/doc_download/480-caderno?Itemid=13217>.
Acesso em: 20 Jun. 2013.
93
A primeira categoria consiste em propostas voltadas para instâncias de
incidência na gestão de políticas públicas. A segunda engloba o controle na produção
de novos discursos a partir de certa linguagem ou ordem que elimine o acaso em prol
de alguma coerência esperada. A terceira categoria inclui propostas que excluem ou
selecionam discursos adequados a determinada ordem, recortando o real e revelando o
objeto de desejo da intervenção. A quarta trata da seleção dos sujeitos, quando o
funcionamento da proposição depende de uma ação sobre aquele que enuncia, distribui
ou recebe a mensagem. A análise aqui não será exaustiva – há propostas semelhantes
e que se entrecruzam, portanto se conclui ser mais produtivo agregá-las em
interpretação holística.
As propostas em prol de instâncias de regulação envolveram principalmente
aquelas que criam conselhos. Reproduzem-se aqui algumas para demonstrar, inclusive,
como se apresenta a redundância de propostas, comum em todo Caderno da 1ª
Confecom:
PL 712: Criação de Conselhos de Comunicação nos âmbitos
federal, estaduais e municipais de caráter paritário com
membros eleitos e estrutura de funcionamento para que possa
acompanhar a execução das políticas públicas, que garantam
o exercício pleno do direito humano à Comunicação. Entre
suas atribuições, deve constar a regulação de conteúdo,
políticas de concessões, mecanismos de distribuição, dentre
outras.
PL 22: Criação de um conselho de Gestão dos Fundos de
Fomento à Radiodifusão Pública e, no médio prazo, para os
Conselhos Nacional e Estaduais de Comunicação Pública, a
serem formados com ampla representação da sociedade e que
definam a política de uso dos recursos, além de fazer o
acompanhamento dos gastos dos respectivos fundos.
PL 117: Reativar imediatamente o funcionamento do Conselho
de Comunicação Social, paralisado desde 2006, por omissão
da Mesa Diretora do Senado.
94
Souza aponta que a criação de conselhos é desdobramento intuitivo de
conferências, pela conexão recorrente entre instâncias de participação.
Conferências, em geral, estão conectadas com outras instâncias de
participação. Em especial, com os respectivos conselhos gestores das políticas
em pauta que, muitas vezes, assumem responsabilidades na organização do
processo e podem acompanhar os encaminhamentos dados às deliberações.
Vale, pois, regulamentar as funções de responsabilidade do conselho antes,
durante e após a realização do processo conferencial. Ademais, outras
instituições participativas, como ouvidorias, audiências e consultas públicas,
podem contribuir com o fluxo de informações necessário para o diálogo
qualificado a respeito dos temas. As conferências que não possuem vínculos
com outras instâncias de participação podem criar, durante o processo
conferencial, mecanismos para monitoramento e avaliação das propostas
aprovadas. (SOUZA, 2013, p. 9)
A Confecom, nesse sentido, propôs a criação de instâncias reguladoras que
pudessem incidir sobre políticas públicas voltadas para a comunicação, seja na gestão
de fundos, no fomento ou qualquer outra incidência. Essas instâncias são estatais,
portanto, qualquer abuso no exercício dessas instâncias na gestão de políticas públicas
está impedido pela legislação vigente. Tal demanda demonstra identidades que buscam
reconhecimento no processo de gestão de políticas públicas por meio da constituição
de espaços de democracia direta. Houve ainda outra maneira de incentivo à
participação:
PL 361: Regulamentar o Artigo 223 da CF, definindo os
sistemas público, privado e estatal. O primeiro deve ser
entendido como aquele integrado por organizações de caráter
público, geridas de maneira participativa, a partir da
possibilidade de acesso universal do(s) cidadão(s) à[s] suas
estruturas dirigentes e submetida[s] a controle social. O
segundo deve abranger todos os meios de entidades privadas
em que a natureza institucional e o formato de gestão sejam
restritos, sejam estas entidades de finalidade comercial. O
terceiro deve compreender todos os serviços e meios
controlados por instituições públicas vinculadas aos poderes do
95
Estado nas três esferas da Federação. Para cada um dos
sistemas, devem ser estabelecidos direitos e deveres no
tocante à participação social na gestão, às modalidades de
financiamento e às obrigações quanto à programação.
A participação neste caso refere-se ao acompanhamento do processo
comunicativo, independente de sua natureza, revelando identidades que parecem
alienadas desses processos.
Há propostas que combinam procedimentos de ordenação na produção
discursiva e de adequação e seleção de discursos. Há uma organização, pelo
discurso, do espaço social quando propostas visando veículos radiodifusores incitam a
produção de conteúdo de tipo nacional, regional, educativo, cultural, ambiental,
informativo, latino-americano, não-ficcional, antidrogas ou sobre grupos identitários. Tais
identidades envolviam questões de gênero, étnico-racial, religiosa, orientação sexual,
geracional e também pessoas com deficiência. Por exemplo:
PL 711: Apoiar a criação por lei de uma política que garanta a
veiculação de conteúdos nacionais e regionais, com produção
independente, nos meios de comunicação eletrônicos,
independentemente da plataforma em que operam, conforme
assegurada pela Constituição Federal de 1988. Assegurada a
plena liberdade de escolha desta produção pelos meios
eletrônicos. A lei deve estar baseada nos princípios de
reconhecimento e respeito dos direitos humanos,
universalidade e acessibilidade ao direito à comunicação,
igualdade, equidade, respeito à diversidade, respeito aos
direitos autorais[,] da mulher, promoção da justiça social,
laicidade do Estado e transparência dos atos públicos.
PL 716: Estabelecer que os meios de comunicação veiculem
conteúdos de caráter educativo, cultural, informativo e
ambiental de países latino-americanos, estabelecendo a
política de integração da América Latina. O conteúdo deve ser
transmitido nas suas línguas originais, com opções de
96
dublagem, legenda e tradução simultânea, e respeitando as
diversidades regional, étnico-racial, religiosa, cultural,
geracional de gênero, dentre outras.
Mas se verifica que essas e outras propostas não se limitam à produção coerente
de conteúdo classificado por essas identidades – com incentivos fiscais ou outras
políticas –, já que contêm elementos de seleção dos conteúdos distribuídos pelo espaço
público hertziano, por onde se deslocam as ondas de radiodifusão. Não se trata apenas
de produzir determinados conteúdos compatíveis com os fins ordenadores das
classificações apontadas, mas também de selecionar, excluir ou adequar os discursos
em circulação com cotas para conteúdo, punições a conteúdos que desvalorizem
grupos e a devolução de verbas públicas ou mesmo a não renovação da concessão em
casos de desrespeito a normas constitucionais sobre conteúdo. Deduz-se disso que a
Confecom denuncia um sentimento de subrepresentação identitária, dos mais diversos
tipos, na televisão aberta, principalmente, mas tal ausência também é registrada em
outras mídias como TV a cabo, cinema e impressos.
Entre as propostas de adequação do discurso a determinada ordem, inclui-se o
código de ética do jornalismo:
PL 375: Criação de um código de ética do jornalismo brasileiro
como um dos mecanismos de controle público e social visando
a garantir a qualidade da informação veiculada pelos meios de
comunicação, sejam eles impressos, audiovisuais e demais
mídias, tendo em vista a democratização da Comunicação no
Brasil. Nas normas a serem definidas deverão estar previstos
os princípios éticos, os compromissos do jornalista e dos
proprietários dirigentes das empresas jornalísticas para com a
ética no exercício profissional, os direitos inalienáveis do
cidadão, a garantia bem clara e explícita do direito de resposta
do acusado por matéria jornalística divulgada, a definição do
que é abuso do direito à liberdade de imprensa e,
principalmente, as penalidades a serem impostas no caso de
97
denúncias de transgressões devidamente comprovadas.
Apesar de apresentar-se como um código de ética, a presença de penalidades
nega tal caráter orientador. A proposta pontua o papel dos jornalistas e dos proprietários
na produção de informação de qualidade, incitando à regulamentação do direito de
resposta e ao debate sobre quais seriam os limites da liberdade de imprensa. Com a
revogação pelo Supremo Tribunal Federal da Lei de Imprensa, ficou sem
regulamentação o direito constitucional de resposta, o que provoca certa insegurança
jurídica sobre como esse direito deve ser exercido: o prazo para a divulgação da
resposta e o espaço dedicado a ela ficaram sob a discricionariedade da Justiça. Esse é
um assunto, entretanto, para legislação.
Mais adequado para um código é discutir sobre qual ordem discursiva a
imprensa constrói em sua interação com a sociedade: é bem-vindo o debate público
sobre a forma pela qual o comunicador lida com suas fontes, visibiliza grupos
vulneráveis e outros temas para estabelecer qual tipo de debate jornalístico um país
quer construir. O código seria a referência na qual o jornalista verifica desvios nas
relações que a sociedade espera de uma imprensa supostamente a seu serviço. Não é
um controle sobre como o jornalista escreve, mas sobre como seleciona os discursos
que formarão sua reportagem ou mesmo como outras instâncias realizam tal seleção
(por intimidação, assédio, etc.). Se essa seleção passaria por relações (com fontes,
empregadores, colegas) que não poupam esforços para a conquista do furo jornalístico
ou que buscam impedir desvios de algum ideal democrático será uma escolha social. A
proposta de construção de uma identidade de comunicador ético revela, porém,
identidades expostas a posturas antiéticas na comunicação, o que revela a urgência
dessa escolha.
Sem dúvida, as propostas mais diversas são aquelas que regulam a seleção
dos sujeitos que se expressam e que recebem as informações pelas mídias. Entre as
propostas que incidem sobre os sujeitos expressivos há a estratégia de equipar e
formar tecnologicamente os cidadãos, com núcleos comunitários e capacitação para as
diversas mídias. Toda forma de expressão tecnológica possui uma linguagem própria e
a criação de laboratórios “atualizados” de informática, rádio e TV nas escolas trata de
familiarizar o sujeito nessas diferentes linguagens, proporcionando sua entrada na
98
comunicação que essas tecnologias permitem.
Produtores ganham diversos estímulos por sua condição de locais, nacionais e
independentes. Uma forma de selecionar esses sujeitos é pelo financiamento. A
seguinte proposta se destaca por separar a produção da transmissão (emissão) e da
distribuição de conteúdo:
PL 715: Apoiar e incentivar a produção independente no Brasil,
por meio de editais e ampliação dos preceituais de fundos
setoriais de apoio e investimento, de modo a construir políticas
para o fomento de produção de conteúdo audiovisual, levando
em consideração as produções locais e regionais
independentes, realizadas por MPES, micros, pequenas e
médias empresas, cujos acionistas não tenham participação
acionária em empresas emissoras e distribuidoras e que
tenham financiamentos viáveis garantindo a veiculação
adequada de acordo com o público-alvo.
O esforço para a multiplicação de sujeitos expressivos também envolve políticas
públicas voltadas para evitar o controle de grupos de programadores no conteúdo da
grade de programação com o estabelecimento de cotas; para o estímulo à formação de
redes locais e regionais de rádios públicas, estatais e comunitárias; para o estímulo à
concorrência de empresas e entidades pela diversificação do mercado; e a
regulamentação da proibição, na Constituição Federal, a monopólios e oligopólios na
comunicação.
Um conjunto de propostas busca ampliar o acesso de sujeitos a conteúdos por
meio da liberação parcial de direitos autorais atribuídos à produção. O uso da licença
Creative Commons, que permite a distribuição de conteúdo sem a necessidade de
autorização do autor, instaura uma liberdade nessa circulação em contraposição aos
limites que direitos autorais impõem ao acesso dos sujeitos ao conteúdo.
Outro conjunto de propostas busca terminar com a seletividade dos órgãos de
controle na fiscalização do uso das ondas hertzianas, mais especificamente o fim da
criminalização das rádios comunitárias e a ampliação da fiscalização sobre emissoras
que não sigam diversos requisitos na outorga da concessão, por exemplo:
99
PL 105: Que todas as outorgas, concessões, permissões e
autorização nas quais se identifiquem irregularidades em face
à legislação vigente sejam objeto de revisão, concedendo-se
prazo para apresentação de defesa, bem como para
adequação às normas. Não sendo apresentada defesa ou não
sendo sanada a irregularidade, que seja cassada a outorga
concedida e que sejam realizadas obrigatoriamente audiências
e consultas públicas no processo de renovação de outorga,
anunciadas tanto pelas próprias emissoras e pelas prestadoras
de serviços. Em se tratando de emissoras cabeças de rede, o
concessionário e o Ministério das Comunicações ao
estabelecimento de regras que limitem a afiliação entre
emissoras, fomentem à distribuição independente de conteúdo
devem apresentar levantamento, com resultados de pesquisa
de opinião ou outros dispositivos, com a avaliação dos serviços
prestados à comunidade, para fins de comprovação de
atendimento dos compromissos firmados no ato da assinatura
da outorga.
A ampliação de acesso também ocorreu pelo foco na distribuição de conteúdo.
Uma proposta incita os Correios a oferecer tarifas mais baratas para pequenas
empresas de comunicação, com fins de “romper o atual monopólio existente no setor de
distribuição de periódicos”. Os jornais, revistas e livros também foram alvo para torná-
los de mais fácil acesso pela diminuição dos preços com financiamento ou redução de
carga tributária. O fortalecimento de distribuidoras de audiovisual foi proposto por meio
da criação de uma empresa pública de fomento.
Por fim, vale salientar as propostas de inclusão digital pela banda larga:
PL 417: Criação do serviço de banda larga a ser prestado em
regime público, por meio de diversas tecnologias, com metas
de universalização do acesso, metas de qualidade, controle de
tarifas e garantia de continuidade.
PL 421: O Acesso à Internet Banda Larga é um direito
100
fundamental e deve ser garantido pelo Estado, que deve
instituir uma política de tarifas que torne viável o acesso
residencial a toda população, garantindo a gratuidade do
serviço sempre que necessário.
PL 436: Garantir banda larga com velocidade e qualidade,
assegurando condições aos requisitos para a acessibilidade.
Essa amostragem de propostas aprovadas na 1ª Conferência Nacional de
Comunicação apresenta alguns elementos relevantes sobre o evento. O procedimento
de controle discursivo mais frequente nas propostas foi aquele voltado para os sujeitos
da produção cultural, não sobre o conteúdo (pela produção orientada ou pela
adequação daquilo que circula). Ou seja, a maioria das resoluções da conferência
busca ampliar o acesso das pessoas a formas de expressão e recepção de discursos
ou reduzir os impedimentos existentes sobre tais formas.
Propostas que visam à adequação de conteúdo, um procedimento cujo uso pode
escalar para a censura, se concentraram na busca do respeito aos direitos humanos e a
grupos vulneráveis e, mais sensível, na atuação jornalística. A proposta de código de
ética jornalística acabou focando a “qualidade da informação” a partir de direitos e
compromissos e, “principalmente”, das penalidades a abusos e correções de desvios.
Apesar dessa perspectiva, na opinião deste autor, poder ser uma ameaça à liberdade
de expressão quando não orientada por princípios democráticos, é possível afirmar que
a demanda por esses procedimentos indica o desrespeito que identidades sentem em
sua visibilidade pública, em seu modo de se tornar visíveis nas superfícies de inscrição
social, principalmente as midiáticas. São identidades cuja visibilidade na mídia não as
representa e, exatamente por isso, estiveram desde o início envolvidas na mobilização
para a Confecom: envolvem gênero, etnia-raça, orientação sexual, etc.
Se à demanda por esses procedimentos de adequação for incluída a demanda
por procedimentos que inserem os sujeitos no debate público, percebe-se que a 1ª
Conferência Nacional de Comunicação pode ser totalizada como um espaço de
resistência daqueles excluídos do debate público, seja porque o conteúdo circulante
não os contempla ou os desrespeita, seja porque não têm acesso aos meios para
apresentar sua visão. Temas e sujeitos invisíveis ou não reconhecidos nos meios de
101
comunicação, os impactos dos direitos autorais na circulação de conteúdo, a formação
para a comunicação pelas tecnologias de informação e o acesso a tais tecnologias são
elementos de reflexão necessários para um Plano Nacional de Comunicação que
busque a inclusão daquele excluído, promovendo uma forte e firme democratização das
comunicações. Talvez assim a liberdade de expressão no Brasil passe a ser promovida
por políticas públicas e deixe de ser “defendida” contra os excluídos de seu exercício.
102
Conclusão
Um novo debate democrático
103
No início do século 21, o modelo hegemônico de organização política em
sociedades ocidentais ou ocidentalizadas coloca o debate público no centro de seus
processos. Em uma situação na qual diversas instâncias de poder governam as práticas
da coletividade – conselhos corporativos incidem sobre profissionais, religiões
influenciam os costumes, a publicidade cria vínculos com consumidores, etc. –, os
defensores da democracia buscam submeter esses poderes ao escrutínio público,
expô-los à intempérie de posições relativas que testa a resiliência das tradições e, em
geral, reconfigura identidades. Complexos sistemas de regras foram erguidos para que
o debate público gere resultados e prossiga indefinidamente, orientando sujeitos e
práticas sociais. Cicélia Pincer, em debate no Memorial da América Latina, em São
Paulo, comenta como a liberdade de expressão e o direito à informação estiveram no
cerne das decisões que forjaram a identidade do Ocidente:
Tal identidade, consolidada na forma da democracia, implica dentre outros
aspectos e condições de possibilidade, a existência de um sistema de produção
e distribuição da visibilidade simbólica dos acontecimentos e ações dos sujeitos
sociais, que se baseou fundamentalmente – mas não exclusivamente – numa
imprensa livre e no jornalismo como oci [ocupação] de competência profissional
e técnica legítima capaz de reorientar o próprio sentido de publicidade, que,
desde a consolidação do capitalismo como processo civilizatório a partir do
século XIX, se traveste de um interesse público para um interesse comercial-
privado configurado em bases empresariais. (PINCER, 2010, p. 19)
A visibilidade desse sistema de produção se realiza atualmente, segundo
descrição de Pincer (2010, pp. 19-31), mediante as seguintes condições: a
centralização da produção da informação em grandes corporações financeiras e
empresariais; a constituição de empreendimentos políticos e jurídicos para permitir o
controle destas condições; e o uso de uma racionalidade esquemática e redutora da
complexidade e diversidade social como parâmetro para a produção jornalística. Trata-
se de um debate público com fortes influências da economia política, mas não na forma
recomendada, por exemplo, pelo sistema interamericano de liberdade de expressão.
Embora uma racionalidade jornalística voltada à vigilância de interesses e a regulação
estatal estivessem previstas nas recomendações regionais visitadas no capítulo 1, a
descrição que Pincer faz de grandes corporações como centralizadoras da produção
discursiva contraria o que “deveria ser” um livre mercado de comunicação, sem o qual a
104
imprensa corre o risco de produzir o inverso da liberdade pretendida pelos ideais
liberais.
Isso se torna mais grave com uma lógica produtora de antagonismos no discurso
de liberdade de imprensa, sempre à espreita de um inimigo que vem ameaçar a
democracia. Como a análise dos jornais no capítulo 2 apresentou, a indicação
persistente de ameaças deixa invisível a própria experiência de violação de direitos
humanos, que se torna mero argumento instrumental para a construção do Outro
ameaçador, ao invés de ser o próprio objeto do debate público. Alberto Dines (2010, p.
125), no mesmo ciclo de debates no Memorial, descreve o fazer jornalístico no Brasil
como “o campo de batalha onde se trava uma guerra escancarada pela conquista dos
corações e mentes em sociedades carentes de referências primárias e atordoadas pelo
excesso de informações secundárias”.
A mudança desse cenário passa pela revisão da estratégia de preservação
democrática que funciona a partir da vigilância sobre racionalidades voltadas para fins.
Para tal, deve-se partir das necessidades de uma democracia que não considere o
debate público apenas o espaço em que a disputa de interesses ganha visibilidade. Um
programa pela democratização das comunicações não pode ficar restrito à configuração
da economia política das tecnologias de informação e comunicação, tratando
exclusivamente de temas relacionados à concentração da mídia ou à regulação setorial,
sem uma mudança conceitual do próprio debate público. Na dimensão do saber, o
pluralismo não deve ser encarado como uma ameaça discursiva, com o risco de
reproduzir uma cultura de perigo e segregação e constituir o imaginário de uma
democracia em constante declínio. Se isso se abre como uma possibilidade recorrente
em um debate voltado para o interesse33, haveria alguma forma de pensar o debate
público de maneira a não constituir uma ameaça a partir do pluralismo? Será possível
33
Por debate público voltado para o interesse, refere-se à vigilância de interesses de qualquer natureza
pela imprensa. A organização do espaço social em termos de interesse, em que dividimos interesses
sociais ou interesses econômicos, contribui para a perda da dimensão moral da democracia, funcionando
de forma utilitarista e em meio a uma cultura de perigo originada da interação entre esses diversos
interesses. É sempre uma decisão feita em termos de risco: se não privilegiarmos os interesses
econômicos, os interesses sociais não serão atingidos, ou se os interesses sociais não tiverem atenção
podem prejudicar os interesses econômicos.
105
uma estratégia de segurança democrática que não produza sistematicamente discursos
com antagonismos ameaçadores, que escondem a alteridade com a face do inimigo? A
seguir, realiza-se um esforço teórico para explorar essa possibilidade.
A superação dos problemas da democracia liberal com o pluralismo de valores
teve importante contribuição dos teóricos políticos Ernesto Laclau e Chantal Mouffe em
Hegemony and Socialist Strategy (2001), quando lançaram o projeto de constituir um
novo imaginário político a partir da aceitação do pluralismo e da indeterminação do
social.
A tese central do livro é que a objetividade social é constituída através de atos
de poder. Isso implica em que toda objetividade social é, em última instância,
política e que ela deve mostrar os traços de exclusão que governam sua
constituição. Esse ponto de convergência – ou ainda colapso mútuo – entre
objetividade e poder é o que queríamos dizer por „hegemonia‟. Essa forma de
propor o problema indica que o poder não pode ser concebido como uma
relação externa a ocorrer entre duas identidades pré-constituídas, mas sim
constituinte das próprias identidades. Já que qualquer ordem política é a
expressão de uma hegemonia, de um padrão específico de relações de poder, a
prática política não pode ser vista simplesmente representando os interesses de
identidades pré-constituídas, mas como constituintes dessas próprias
identidades em um precário e sempre vulnerável terreno34
(MOUFFE, 2009, pp.
99-100).
Na constituição de identidades desse programa de “democracia radical”,
diferenciam-se relações de subordinação, quando um agente é sujeito às decisões de
outro, relações de opressão, quando as relações de subordinação se tornam espaços
de antagonismo entre as identidades envolvidas, e relações de dominação, quando a
subordinação é considerada ilegítima a partir da perspectiva ou julgamento de um
agente social externo a tal relação. Uma relação de subordinação, vale salientar, não é
antagônica, mas meramente diferenciadora de identidades. A subversão do sujeito
subordinado só pode ocorrer em termos de uma formação discursiva diferente da que
constitui a subordinação: servo ou escravo só ganha posições antagônicas quando
constituídas por formações discursivas como “direitos inerentes a todo ser humano”.
Nossa tese é que apenas a partir do momento em que o discurso democrático
34
Tradução nossa.
106
se torna disponível para articular as diferentes formas de resistência à
subordinação que existirão as condições para tornar possível a luta contra
diferentes tipos de desigualdade35
(LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 154).
Como a democracia liberal, a democracia radical também considera a liberdade
de informação uma necessidade: não para circular informações sobre intenções,
segmentadas entre pública ou privada, Estado ou mercado, interesses sociais ou
econômicos, mas informações que possam constituir identidades de resistência à
opressão. Uma reflexão sobre liberdade de expressão a partir dessa fundamentação da
democracia traz consequências importantes para o debate público. Por um lado, o
comunicador orientado por esse saber organiza o espaço social a partir da busca por
traços de exclusão e está posicionado de forma privilegiada para detectar relações de
dominação. Como agente externo à relação de subordinação, o comunicador está na
posição de apontar situações que considera de exclusão. Por outro, o exercício da
liberdade de expressão do oprimido depende da disponibilidade de discursos
democráticos, circulantes na sociedade, que permitam a ressignificação de uma
identidade subordinada para outra constituída a partir de um antagonismo. Aqui, para a
formação de um pluralismo que não constitua identidades a partir de um inimigo a ser
exterminado, Mouffe (2005) introduz a categoria de “adversário”. A política democrática
deve ter a preocupação de formar um espaço simbólico comum nos antagonismos de
maneira a permitir confrontos, não entre identidades inimigas, mas de adversários que
possam coexistir a partir de uma ética que equilibre os princípios democráticos de
liberdade e igualdade – a política deve ser capaz de transformar antagonismos em
“agonismos”, tornando disponíveis formas democráticas de individualidade e
subjetividade como principal estratégia para a preservação da democracia frente às
relações de opressão que a desconstroem:
De outro modo, desprovidos da possibilidade de identificarem-se com
concepções preciosas de cidadania, muitas pessoas estão, em um crescendo,
procurando formas de identificação que podem muito freqüentemente colocar
em risco o laço cívico que deveria unir a associação político-democrática. O
crescimento de várias religiões, bem como de fundamentalismos morais e
étnicos, é a meu ver a conseqüência direta do déficit democrático que
35
Tradução nossa.
107
caracteriza a maior parte das sociedades liberal-democráticas36
(LACLAU;
MOUFFE, 2001, p. 19).
A liberdade de informação para constituição de identidades de resistência,
portanto, exige a adequação e a seleção de conteúdos capazes de identificar traços de
exclusão no social e de constituir um „nós‟ democrático inclusivo. Isso posiciona
formações excludentes de movimentos sociais, de gênero, etnia e raça, religião,
sexualidade, geração e de pessoas com deficiência, para citar aqueles destacados na
Confecom, como discursos que identificam o funcionamento de práticas sociais não-
democráticas. Precisamente por serem nocivos no contexto de uma relação de
subordinação/opressão, são de interesse para o comunicador em busca de traços de
exclusão que podem evidenciar relações de dominação. Discursos discriminatórios são
de grande importância para a compreensão de como sujeitos são excluídos da
democracia e revelam antagonismos sociais. A conscientização dessa discriminação
sensibiliza o público e o comunicador contra-hegemônico para que tipo de discurso de
resposta deve circular para possibilitar a resistência contra a subordinação. É um
assunto extremamente delicado, dada a capacidade do discurso de contribuir para a
reprodução de práticas discriminatórias no social: se garantida a voz do oprimido, será
que o opressor deve ter sua vez mantida? A lição do liberalismo consiste precisamente
em revelar as consequências desse tipo de lógica. Por um lado, quando uma ameaça
discursiva é relegada à heresia, um espaço de invisibilidade social resulta formado.
Discursos não-democráticos têm lugar na democracia como evidência empírica de que
existem relações não-democráticas no território governado. Por outro lado, cultivar uma
cultura de perigo em relação a esses discursos pode levar à mesma lógica de
segurança na qual a proteção contra a ameaça pode ela mesma se tornar opressiva,
promovendo um “higienismo” nos costumes. Em uma democracia, a discriminação é
desconstruída pela promoção de uma luta por hegemonia, não por uma interdição37.
Aos mecanismos de adequação de conteúdo cabe a abertura de possibilidade dessa
luta, expondo a exclusão e constituindo um espaço simbólico de ressignificação de
36
Tradução nossa. 37
É claro que a interdição do apoio público (financiamento, uso do espectro eletromagnético) a sujeitos
que disseminam discursos discriminatórios surge como possibilidade democrática, mas foge ao escopo
de promover a disputa contra-hegemônica.
108
identidades a partir de um discurso de direitos.
Os desafios que se apresentam não são poucos. Uma democracia que não
incentive uma cultura de perigo à alteridade exige um espaço simbólico comum para
relações antagônicas, enquanto uma liberdade de expressão não controlada por uma
racionalidade voltada para fins traz a necessidade de outro tipo de controle na produção
discursiva que organize o espaço social de forma a não deixar invisíveis experiências
de subordinação e permita canalizá-las em lutas de resistência.
Isso exige o fornecimento de canais através dos quais paixões coletivas tenham
vazão para se expressar sobre assuntos que, ao darem possibilidades
suficientes de identificação, não construam o oponente como um inimigo, mas
como um adversário38
(MOUFFE, 2009, p. 103).
Um debate público para uma proposta não-racionalista de democracia,
que reconheça o papel das paixões na constituição do político, consiste em um espaço
simbólico em que conflitos sociais possam ser canalizados e ressignificados. Nesse
sentido, é preciso conceber um debate coerente com a dinâmica dos conflitos sociais.
A dinâmica dos conflitos sociais
Axel Honneth fundamenta uma teoria social de teor normativo que pode ser um
saber referencial interessante para conceber um espaço em que conflitos possam ser
canalizados de maneira orientada à emancipação. Trata-se da luta por reconhecimento,
uma atualização dos escritos de Jena do filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel,
particularmente sua não-concluída teoria do reconhecimento, a partir da psicologia
social de George Herbert Mead, uma “fenomenologia empiricamente controlada das
formas de reconhecimento” (HONNETH, 2003, p. 256). Para Honneth, as lutas por
reconhecimento impulsionam a ação social dos sujeitos e o progresso moral da
sociedade a partir de expectativas de autorrealização.
As dimensões da autorrealização individual – quando, seguindo Mead, as
reações do Outro atribuem valor às capacidades e propriedades desenvolvidas por um
sujeito (HONNETH, 2003, pp. 147-8) – consistem no reconhecimento intersubjetivo no
interior das relações do amor, correspondente às relações de afeto; do direito,
correspondente às relações jurídicas; e da solidariedade ou estima social, que permite
38
Tradução nossa.
109
ao sujeito uma compreensão positiva de si próprio em suas propriedades particulares e
coletivas. Essas três dimensões de reconhecimento em sociedades modernas criam,
em conjunto, as condições sociais para um sujeito manter uma atitude positiva consigo,
desenvolvendo respectivamente autoconfiança, autorrespeito e autoestima e permitindo
sua autonomização e individuação. Esse modelo atribui os conflitos sociais à frustração
do processo de autorrealização.
Diferentemente de todos os modelos explicativos utilitaristas, ele sugere a
concepção segundo a qual os motivos da resistência social e da rebelião se
formam no quadro de experiências morais que procedem da infração de
expectativas de reconhecimento profundamente arraigadas. Tais expectativas
estão ligadas na psique às condições de formação da identidade pessoal, de
modo que elas retêm os padrões sociais de reconhecimento sob os quais um
sujeito pode se saber respeitado em seu entorno sociocultural como um ser ao
mesmo tempo autônomo e individualizado; se essas expectativas normativas
são desapontadas pela sociedade, isso desencadeia o tipo de experiência
moral que se expressa no sentimento de desrespeito (HONNETH, 2003, p. 258).
Os sentimentos de desrespeito e injustiça impulsionam a luta pelo
reconhecimento, que ganha uma motivação secundária: a conquista de uma
autorrelação nova e positiva.
Na vergonha social viemos a conhecer o sentimento moral em que se expressa
aquela diminuição do auto-respeito que acompanha de modo típico a tolerância
passiva do rebaixamento e da ofensa; se um semelhante estado de inibição da
ação é superado agora pelo engajamento na resistência comum, abre-se assim
para o indivíduo uma forma de manifestação com base na qual ele pode
convencer-se indiretamente do valor moral ou social de si próprio: no
reconhecimento antecipado de uma comunicação futura para as capacidades
que ele revela atualmente, ele encontra respeito social como a pessoa a quem
continua sendo negado todo reconhecimento sob as condições existentes
(HONNETH, 2003, p. 259).
A luta, porém, só será caracterizada como social se a experiência de desrespeito
e injustiça puder ser generalizada para além do horizonte das intenções individuais,
sendo capaz de fundamentar um movimento coletivo. A generalização agrega ao
indivíduo a estima mútua do grupo ao se apresentar como uma formação hegemônica
que permite, inclusive, a agência coletiva nos termos de uma luta por reconhecimento. A
110
compreensão, por exemplo, da violência doméstica não como uma experiência
meramente individual, mas como condição compartilhada por uma diversidade de
mulheres trouxe a possibilidade de uma atuação que resultou nas políticas públicas
solidárias à vítima da Lei Maria da Penha. Igualmente frustrante é a condição de
comunicadores comunitários, envolvidos cada um nos lentos trâmites burocráticos da
busca por uma concessão de radiodifusão, que motiva a luta pelo reconhecimento de
sua liberdade de expressão, seja pelo início das emissões sem a outorga, seja pela
incidência na política institucional.
É o desapontamento político de expectativas morais que conduz ao abalo de
relações de reconhecimento tradicionalmente constituídas, iniciando uma disputa em
que se abrem novas possibilidades de identidade. O foco na lógica moral dos conflitos
sociais, portanto, envolve a criação de um espaço simbólico em que relações
antagônicas podem ser canalizadas e identidades ressignificadas. É o que precisamos
para pensar um novo tipo de debate público.
Debate democrático como espaço de reconhecimento
No sistema interamericano de liberdade de expressão, esse direito é
fundamentado a partir das capacidades comunicativas do ser humano, por sua
IMPRENSA PARA A DEMOCRACIA INTERAMERICANA
Estratégia de segurança democrática: antagonismo perante censura e
autoritarismo; exercício dos direitos humanos
Dispositivo disciplinar:
Programa: vigilância sobre interesses
Tecnologia: prática jornalística
Condições para governamentalidade (elementos do dispositivo):
Estado disciplinado e regulador (sem censura prévia, sem discriminação,
sem interdição da expressão por meios indiretos)
Pluralidade de comunicadores independentes em mercado competitivo
Proteção especial a discursos de interesse público, de agentes em função
pública e de dignidade identitária
Liberdade produzida
Liberdade de informação para a gestão de interesses: debate público
robusto e vigoroso com opinião pública informada, imputabilidade de
agentes públicos e controle cidadão
111
necessidade para a democracia e pelo exercício de todos os outros direitos
fundamentais. O sistema desenvolve principalmente os dois primeiros fundamentos
(chamados no capítulo 1 de “regimes de verdade”), incluindo nesse direito o acesso às
tecnologias que ampliam as capacidades comunicativas e constituindo um tipo de
debate público democrático. É um debate voltado para a gestão de interesses, um
espaço simbólico que visibiliza a concorrência social por bens escassos e a busca pelas
condições de reprodução de identidades sociais. O controle interno ao discurso desse
debate, a partir do interesse, busca vigiar aqueles interesses particulares que podem
representar ameaça à ordem democrática.
Todavia, a fixação da teoria social na dimensão do interesse também acaba
obstruindo o olhar para o significado social dos sentimentos morais, e de
maneira tão tenaz que incumbe hoje ao modelo de conflito baseado na teoria do
reconhecimento, além da função de complementação, também a tarefa de uma
correção possível: mesmo aquilo que, na qualidade de interesse coletivo, vem a
guiar a ação num conflito não precisa representar nada de último e originário,
senão que já pode ter se constituído previamente num horizonte de
experiências morais, em que estão inseridas pretensões normativas de
reconhecimento e respeito (HONNETH, 2003, pp. 261-2).
Com a intenção de complementar e corrigir esse debate público que perdeu seu
horizonte moral, ensaia-se aqui a constituição de um debate coerente com a lógica
moral das lutas sociais, que leve em conta as condições intersubjetivas da integridade
pessoal. É um debate que retira a democracia e a liberdade de expressão de sua
posição defensiva, constituindo sua ordem a partir de suas ameaças, e que permite, ao
contrário, sua promoção, a expansão de tais ordens pela consciência e a inclusão
daqueles em situação de subordinação.
O primeiro objetivo para a constituição desse debate público é a aquisição da
consciência dos espaços de exclusão social. As experiências pessoais de desrespeito
afetam potencialmente outros sujeitos e a visibilidade desses afetos precisa estar nas
representações de nossa comunidade social. Para que haja tal visibilidade, é
necessário, por um lado, que os indivíduos sejam capazes de articular seu sofrimento
pessoal em termos de um discurso político, e, por outro, que comunicadores
reconheçam relações de dominação e resistência sendo reproduzidas na sociedade.
Essas duas necessidades do debate público ampliam os espaços de visibilidade além
112
das tecnologias de comunicação e informação, consequentemente da imprensa, para
englobar espaços de formação, manifestações, audiências públicas, expressões
culturais e artísticas, processos conferenciais e qualquer outra oportunidade que
canalize os sentimentos provocados pela exclusão e subordinação dos sujeitos.
Qualquer espaço que atribua sentidos que articulem os sentimentos morais
desrespeitados dos indivíduos tem o potencial de promover a liberdade de expressão.
Ao invés do interesse, o controle que permite a produção de novos discursos
promotores da liberdade de expressão organiza o espaço social a partir da experiência
de desrespeito. Esse controle promove transparência nas causas sociais dos
sentimentos individuais de lesão e um debate sobre as consequências sociais da
reversão dessa condição. É importante que dentro desse debate contra-hegemônico as
pessoas sejam capazes de discordar quanto às identidades em discussão, futuras e
presentes, ao mesmo tempo em que disputam corações e mentes para uma hegemonia
que torne efetiva a ação política. Isso só é possível quando se organiza o espaço social
a partir do desrespeito. A denúncia de interesses em si é interessada em sua ordem
discursiva e pode se perder na defesa de seus próprios interesses; a denúncia do
desrespeito é ética e impele os sujeitos a tomar uma posição sobre essa condição, ou
seja, a condição de subordinação não perde a atenção do debate enquanto seu
sentimento gerativo circular, mesmo em meio a uma disputa de posições.
Um segundo objetivo desse debate público é constituir a reação moral da
sociedade aos sentimentos de desrespeito expressos ou visibilizados por denúncias de
terceiros. Se o oprimido tem voz ou visibilidade, a sociedade deve ser capaz de acolher
a expressão da carência e discutir o valor identitário a ser reconhecido.
Os sentimentos de injustiça e as experiências de desrespeito, pelos quais pode
começar a explicação das lutas sociais, já não entram mais no campo de visão
somente como motivos de ação, mas também são estudados com vista ao
papel moral que lhes deve competir em cada caso no desdobramento das
relações de reconhecimento (HONNETH, 2003, p. 265)
Honneth menciona um quadro interpretativo do processo de formação dessa
reação, que busca padrões de reconhecimento visando à ampliação progressiva dessa
ordem moral. Esse quadro forma a semântica que permite a generalização da
experiência individual e consiste de “doutrinas ou idéias morais capazes de enriquecer
113
normativamente nossas representações da comunidade social” (HONNETH, 2003, p.
258). Trata-se das expectativas39 morais de nossa sociedade. Havendo expectativas, e
o desapontamento dessas expectativas, haverá lutas por reconhecimento. De qualquer
maneira, menciona-se aqui esse quadro mais por seu funcionamento discursivo na
proposta de Honneth do que por sua existência claramente referenciada como uma
necessidade do debate contra-hegemônico. Como funciona um discurso que acolha as
expressões reivindicadoras de uma luta por reconhecimento?
Um discurso de generalização do sofrimento individual deve ser capaz de
“arrancá-los [aqueles em situação de desrespeito] da situação paralisante do
rebaixamento passivamente tolerado e de lhes proporcionar, por conseguinte, uma
auto-relação nova e positiva” (HONNETH, 2003, p. 259). A expectativa moral abre a
possibilidade de redefinição das identidades de opressor e oprimido em relações
compatíveis com uma democracia: o debate se torna criativo em prol de práticas de
cidadania, cuja necessidade Mouffe atribui à preservação do modo de vida democrático.
Isso expande sentidos além da economia política e do Estado de Direito, pois
não se trata apenas de apontar a ilegalidade e as imperfeições no mercado da
propriedade de políticos sobre jornais e radiodifusoras, ou mesmo de relacionar essa
condição à angústia daqueles que veem negado o reconhecimento de seu valor moral
ou social pela ausência na circulação simbólica de discursos que os permitam articular
sua situação de subordinação. O debate contra-hegemônico deve fazer circular não só
os discursos que generalizam os sentimentos individuais, mas também as “boas
práticas” da ação política: o conhecimento daqueles que reverteram sua condição de
subordinação com técnicas para rádios de poste, stêncil, esforços mobilizatórios para
atrapalhar a fiscalização da Polícia Federal sobre as rádios engessadas pela burocracia,
etc.
Se a luta social é interpretada da maneira mencionada a partir de experiências
morais, então isso não sugere de início nenhuma pré-decisão a favor de formas
não violentas ou violentas de resistência; antes, continua totalmente em aberto,
39
As expectativas morais desse quadro podem receber contribuições de padrões internacionais de
direitos humanos, mas em um debate público pode ser inadequado um vínculo institucional que não
possa ser contestado, dando-se preferência a recomendações (como as do sistema interamericano) que
sejam mais um elemento do debate.
114
num nível descritivo se são pelos meios práticos da força material, simbólica ou
passiva que os grupos sociais procuram articular publicamente os desrespeitos
e as lesões vivenciados como típicos e reclamar contra eles (HONNETH, 2003,
p. 257).
Honneth destaca ainda a importância da criação de “um nexo objetivo-intencional,
no qual os processos históricos já não aparecem como meros eventos, mas como
etapas em um processo de formação conflituoso” (HONNETH, 2003, p. 268).
Contextualizar uma relação de subordinação numa perspectiva histórica de formação
de cidadanias democráticas pode contribuir para a reversão da tolerância ao
rebaixamento do sujeito oprimido, ampliando suas possibilidades expressivas. Tal
reversão não precisa ser constituída apenas em dimensão temporal, já que outros
sujeitos em situação presente semelhante também estão espalhados pelo território: um
debate público democrático deve ter como terceiro objetivo a criação da possibilidade
de redes de solidariedade espaciais e temporais que impulsionem a confiança do
sujeito expressivo. Situações de opressão sofridas por ativistas, assentados,
comunicadores, povos tradicionais, minorias ou outros discriminados, perseguidos e
ameaçados têm mais chances de serem expostas se o sujeito estiver em contato com
outros em semelhante condição, formando uma rede identitária, mobilizatória e
colaborativa.
Um debate que dê visibilidade a experiências de desrespeito, torne disponíveis
discursos emancipatórios e propicie a conexão de sujeitos é complementar àquele
recomendado pelo sistema interamericano, que objetiva informar a opinião pública,
atribuir responsabilidades e permitir o controle social sobre o Estado. Seu caráter
contra-hegemônico reside em não se concentrar na reprodução da ordem vigente, mas
na sua transformação constante em direção ao aprofundamento da democracia.
A liberdade de expressão, dessa maneira, sai de seu caráter defensivo contra
influências indevidas para assumir a ofensiva e tornar-se efetivamente o direito que
fundamenta o exercício de todos os outros direitos humanos, como fixa o tão pouco
desenvolvido terceiro regime de verdade do sistema interamericano.
Pois “espontaneidade” [Ungezwungenheit] ou “liberdade” não pode referir-se,
com vista a um tal processo, simplesmente à ausência de coerção ou influência
externa; ela significa ao mesmo tempo a falta de bloqueios internos, de
115
inibições psíquicas e de angústias; mas, num sentido positivo, essa segunda
forma de liberdade deve ser compreendida como uma espécie de confiança
dirigida para fora, que oferece ao indivíduo segurança tanto na expressão das
carências como na aplicação de suas capacidades (HONNETH, 2003, p. 273).
Torna-se então necessária uma agenda de pesquisa para a formulação de uma
liberdade de expressão que possa ser promovida como discurso emancipador na ordem
democrática.
Sistema de participação
Instrumentos de democracia direta como a gestão de políticas públicas com o
apoio de processos conferenciais podem ser oportunidades para tornar visíveis
experiências de desrespeito e disponíveis experiências de resistência. A capilaridade
dos processos conferenciais, com etapas que idealmente alcançam todos os municípios
brasileiros, permite a constituição de cartografias da presença dessas duas
experiências ao longo do território alcançado. Trata-se, no entanto, de um desafio à
configuração de um espaço discursivo que permita a livre expressão em torno do
processo de formação da autorrealização individual e coletiva, ou seja, que leve em
conta as disputas para a conquista da autoconfiança, do autorrespeito e da autoestima.
Essa perspectiva pode complementar a noção do Estado como promotor do
direito à participação, como pretende a Política e Sistema Nacional de Participação
Social40 do governo federal. A participação na formulação, no acompanhamento, no
monitoramento e na avaliação das políticas públicas não deve ser compreendida
apenas como mecanismo de incidência e articulação de interesses sociais. Isso
significa que uma orientação participativa para a formulação de propostas pode excluir
aqueles que ainda não articulam sua condição em um discurso político estruturado ou
de forma muito particularizada. Uma relação colaborativa entre governantes e
governados envolve a instituição de mecanismos de avaliação contextual que acolham
violações de direitos e expectativas morais e que permitam que redes de solidariedade
sejam formadas. E, mais importante, um sistema de participação não pode prescindir de
um processo de formação de cidadãos.
40
Mais informações em <http://www4.planalto.gov.br/consea/plenarias/plenarias-de-2013/reuniao-do-dia-
27-de-fevereiro/politica-e-sistema-nacional-de-participacao-social>. Acesso em: 24 jul. 2013.
116
Qualquer sistema, no entanto, não pode estar descolado das necessidades mais
amplas da liberdade de expressão, inclusive aquelas desenvolvidas no saber liberal.
Faz-se necessário um ambiente político, econômico e jurídico que propicie a
participação, rejeitando a censura em suas diversas formas – monopólios, violência,
discriminação, desigualdade, etc. – e promovendo as condições para a expressão –
com acesso à informação em linguagem compreensível, o acesso à justiça, o acesso à
tecnologia, o trabalho em rede, a livre circulação de conhecimento, entre outras formas
criativas para a (re)produção de cidadanias.
117
Referências
Livros, artigos, documentos, notícias, hipermídia
118
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