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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Arthur Serra Massuda Controles na Liberdade de Expressão A 1ª Conferência Nacional de Comunicação na imprensa MESTRADO EM COMUNICAÇÃO SÃO PAULO 2013

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Page 1: Controles na Liberdade de Expressão - PUC-SP · A 1ª Conferência Nacional de Comunicação na Imprensa MESTRADO EM COMUNICAÇÃO Dissertação apresentada à Banca Examinadora

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Arthur Serra Massuda

Controles na Liberdade de Expressão

A 1ª Conferência Nacional de Comunicação na imprensa

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

SÃO PAULO

2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP

Arthur Serra Massuda

Controles na Liberdade de Expressão

A 1ª Conferência Nacional de Comunicação na Imprensa

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para

obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica:

análise de mídias, sob orientação do Prof. Dr. José Luiz Aidar

Prado

SÃO PAULO

2013

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Banca Examinadora

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Resumo: Esta pesquisa investiga a cobertura da imprensa brasileira sobre a Primeira Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Para tal, parte da teoria de discurso de Michel Foucault e em especial do conceito de procedimentos de controle do discurso, bem como da teoria política do discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. A análise da cobertura sobre a Confecom foi realizada no corpus constituído pelos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de São Paulo e O Globo, no mês de dezembro de 2009, data da realização da etapa nacional da referida conferência. O resultado da análise revela um discurso jornalístico controlado por uma racionalidade voltada para fins, criando um espaço de invisibilidade em torno das violações de liberdade de expressão denunciadas pela conferência. Além da análise midiática, examinamos também os próprios documentos da Comissão Organizadora da Confecom, acompanhando como os debates se deram na etapa nacional. O resultado mostra um debate efetuado a partir de uma divisão em eixos temáticos e grupos de trabalho e de sua efetividade a partir de procedimentos de votação. O modelo de um debate público capitaneado pela imprensa, em que sujeitos articulados pela técnica jornalística difundem suas expressões por meios de comunicação sobretudo privados, pode ser encontrado nas recomendações do sistema interamericano de liberdade de expressão, da Organização dos Estados Americanos, e é constituído a partir das necessidades da democracia. Nessas recomendações, a democracia opera de forma análoga ao liberalismo utilitário que Foucault discute nas práticas de governo a partir do séc. 18, voltadas para a gestão de interesses entre o público e o privado. Entre as necessidades democráticas, a busca jornalística pelo interesse público se destaca por exigir uma configuração específica na economia política da comunicação para o debate público funcionar adequadamente, caso contrário, lida-se com a ameaça constante da sobredeterminação dessa busca pelo interesse particular. Por outro lado, ao sustentar um discurso produtor de um antagonismo inconciliável, essa posição liberal, embora necessária para a democracia recomendada pelo sistema interamericano, não atende às necessidades da democracia radical defendida por Mouffe em The Democratic Paradox, que busca a inclusão constante daqueles excluídos pelo e do processo político. Ao final, esboça-se uma possibilidade atender às necessidades da democracia radical por meio do controle do discurso jornalístico a partir do enfrentamento de experiências de desrespeito, com os fundamentos da teoria do reconhecimento de Axel Honneth.

Palavras-chave: Confecom; liberalismo; imprensa; direitos humanos; democracia; interesse.

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Abstract: This research reviews the Brazilian press reports on the First National

Conference on Communications (Confecom). It combines concepts from Michel

Foucault‟s discourse theory, particulary his concept of procedures on discourse control,

and Ernesto Laclau and Chantal Mouffe‟s political theory of discourse. The selection of

press reports on Confecom included those from newspapers Folha de S.Paulo, O

Estado de S. Paulo and O Globo, in December 2009, when the conference took place.

The review reveals a journalistic discourse controlled by an end-oriented rationality,

constituting an invisible space around violations of freedom of expression denounced by

the conference. The research included analysis on documents from the Confecom

Organizing Commission, in order to assess how debates were expected to occur.

Results reveal a debate where discourses were divided into thematic axis and work

groups, while their effectiveness is controlled by vote procedures. A model of public

debate where the press is a protagonist, i.e. subjects articulating journalistic techniques

express themselves through mainly private means of communication, can be found on

recommendations from the Organization of American States‟ inter-American system of

freedom of expression and is designed based on democratic needs. In these

recommendations, democracy is analogue to a utilitarian liberalism that Foucault points

out on government practices during 18th century, aiming the management of public and

private interests. Among the democratic needs, the journalistic quest toward public

interest is questioned as it demands specific configuration on the political economy of

communications in order to work properly. Otherwise, it is always vulnerable to an

overdetermination of particular interests on this quest. On the other hand, by maintaining

an unsolvable public-private antagonism, such liberal position, though a necessity to the

inter-American-recommended democracy, does not measure up to the radical

democracy need advocated by Mouffe on The Democratic Paradox, meaning the

inclusion of those excluded from and by political processes. In the conclusion, an effort

to constitute a public debate to achieve this need is developed based on Axel Honneth

theory of recognition. On such a debate, journalistic discourse is controlled by a

resistance to experiences of disrespect.

Key-words: Confecom; liberalism; press; human rights; democracy; interest.

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Introdução Controle social sobre a mídia............................................................ 7

Capítulo 1 Controle discursivo no liberalismo.................................................... 14

O liberalismo em oposição à razão de Estado .................................................................. 18

O sistema interamericano de liberdade de expressão ...................................................... 26

Os fundamentos da liberdade de expressão .................................................................... 26

Governamentalidade para um debate público democrático ............................................. 33

O controle da expressão pelo interesse .............................................................. 42

Capítulo 2 A imprensa e a Confecom ................................................................ 45

O Estado de S. Paulo ........................................................................................................ 48

Folha de S.Paulo ............................................................................................................... 54

O Globo ............................................................................................................................. 58

Uma doutrina jornalística ................................................................................................... 62

Capítulo 3 Controle discursivo na Confecom .................................................... 70

A pluralidade de sujeitos na mobilização .......................................................................... 73

A gestão de conflitos pela Comissão Organizadora ......................................................... 78

A produção discursiva na etapa nacional ......................................................................... 85

As propostas e suas denúncias de exclusão .................................................................... 92

Conclusão Um novo debate democrático ....................................................... 102

A dinâmica dos conflitos sociais ..................................................................................... 108

Debate democrático como espaço de reconhecimento .................................................. 110

Sistema de participação .................................................................................................. 115

Referências ..................................................................................................... 117

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Introdução

Controle social sobre a mídia

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Em meio a uma paisagem rochosa e sem vida, a última fronteira do mal, uma

instalação abriga o laboratório mais seguro do mundo, onde foram eliminadas as

maiores aberrações existentes na face da Terra: vírus, bactérias, só o que existia de

pior. Numa cela especial, ainda habita a criatura mais temida: um monstro mantido

congelado para jamais despertar de novo. Porém, um sentinela sonolento não percebe

a temperatura subindo... e o alarme toca. O monstro da censura escapa!

Como um documentário de vida selvagem, flores se abrem, aves migram e

leões-marinhos nadam, enquanto o locutor mexe com os sonhos humanos de liberdade,

um sonho no qual os seres humanos, além de livres, detêm direitos. Pois a liberdade

sem direitos... é um tubarão se alimentando, um guepardo perseguindo um filhote de

antílope. Num tom didático e lúdico inspirado no documentário de Jorge Furtado A Ilha

das Flores (1989), o locutor apresenta o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos

Humanos, que versa sobre a liberdade de expressão, e denuncia a concentração dos

meios de comunicação no Brasil, que prejudica o direito de muitos cidadãos de receber

e transmitir ideias por quaisquer meios.

O vídeo Não Deixe o Monstro da Censura Acordar1 é assinado pelo Centro de

Referência sobre Liberdade de Expressão – um empreendimento do Conselho de

Autorregulamentação Publicitária (CONAR) e da Escola Superior de Propaganda e

Marketing (ESPM). Já a produção Levante sua voz2 foi realizada pelo Intervozes -

Coletivo Brasil de Comunicação Social, com o apoio da Friedrich Ebert Stiftung e da “lei

de incentivo ao „te vira‟” e do “ministério da cultura do „faz com pouca grana‟”. Ambas as

produções denunciam diferentes ameaças das quais a liberdade de expressão precisa

ser defendida, o monstro da censura e a selvageria da concentração dos meios de

comunicação. Com tantos defensores, a liberdade de expressão pareceria um

consenso no Brasil. O problema é que a solução para a selvageria vem sendo

sistematicamente associada a um monstro: os perigos do controle social sobre a mídia

são denunciados pelos sujeitos cuja selvageria se pretende controlar como as

condições para se instituir um ambiente propício à censura. Trata-se de uma disputa de

1 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=Px3bnCwJMjo>. Acesso em: 9 ago. 2013.

2 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=gf3Votr52QQ> e

<http://www.youtube.com/watch?v=gr6qFODxkAA>. Acesso em: 9 ago. 2013.

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ameaças.

Esta pesquisa apresenta o funcionamento discursivo das estratégias que deveriam

organizar um debate democrático, discute como algumas condições precisam estar

controladas e vigiadas para que os discursos das populações possam florescer e

circular livres como um leão-marinho pelo ambiente social, disputando corações e

mentes. Pode parecer contraintuitiva uma associação entre controle e liberdade, dado o

senso comum de que liberdade seria a ausência de amarras e controle essas mesmas

amarras. No entanto, é o controle de algumas condições – na produção do discurso, na

adequação dos discursos circulantes e na seleção dos sujeitos enunciadores – que

organiza os discursos no sentido de atingir um determinado fim social, para que

resultados possam surgir da interação desses discursos: seja a condução de conflitos

sociais de maneira a não atentarem contra a integridade física e moral das identidades

constituintes e constituídas por esses discursos, seja a conquista da livre expressão por

qualquer pessoa independente de sua posição social, seja a denúncia de ameaças à

ordem estabelecida ou pretendida.

A importância de um estudo focado nas escolhas que nossa sociedade faz para

controlar suas ordens discursivas recai sobre o desvelamento de quais fins são esses e

com quais estratégias se pretende atingi-los. Se o controle social sobre a mídia seria o

primeiro passo para a censura ou a domesticação das forças econômicas no debate

público, revela-se aí uma disputa sobre o que deveríamos temer mais: a intervenção –

na forma de políticas públicas, regulação e regulamentação – ou a falta de intervenção

social sobre o debate público, deixando-o fluir autorregulado. Ambos as posições

buscam sua forma de liberdade, mas têm estratégias distintas para atingi-las. O foco no

controle discursivo revela tais estratégias assegurando uma independência em relação

a discursos legitimadores desses controles. O filósofo francês Michel Foucault faz a

seguinte reflexão a esse respeito:

Nós nos dizemos: como temos um fim, devemos controlar nosso funcionamento.

Enquanto que, na realidade, é apenas sobre a base dessa possibilidade de

controle que podem surgir todas as ideologias, as filosofias, as metafísicas, as

religiões que oferecem uma determinada imagem capaz de polarizar essa

possibilidade de controle do funcionamento. Você entende o que quero dizer? É

a possibilidade de controle que faz nascer a ideia de fim. Mas a humanidade

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não dispõe de nenhum fim, ela funciona, controla seu próprio funcionamento e

cria, a cada instante, as formas para justificar esse controle (FOUCAULT apud

CASTRO, 2009, p. 85).

Em Foucault, o termo controle aparece inicialmente para designar uma série de

mecanismos de vigilância surgidos nos séculos 18 e 19 com a função nem tanto de

punir o desvio, mas de corrigi-lo e preveni-lo. O controle social constitui uma população

gerenciada em função de modelos normativos integrados ao Estado, enquanto institui

um sistema de individualizacão que se destina a modelar cada individuo e a gerir sua

existência (REVEL, 2005, p. 29-30). Mais recentemente, no entanto, sob a ótica da

democratização brasileira, o termo tem sido utilizado pelo governo e pela sociedade civil

como uma forma de gestão participativa das políticas públicas e do combate à

corrupção3.

Em ambos os casos, o controle busca a correção, a prevenção e a punição de

desvios de acordo com o modelo normativo de referência para instituir tal controle. A

partir daquilo de que não se quer desviar, necessidades são formadas: se queremos

uma população manejável, precisamos normalizar os colonos de um território; se não

queremos corrupção, precisamos fiscalizar a condução dos gestores públicos. Se

falamos de controle social, portanto, é indispensável tratar de sua referência normativa.

Nesse sentido, reivindicar a liberdade de expressão para promover uma

normalização ou condenar um desvio é um tipo de controle: por esse termo fazemos

entender algumas expectativas de práticas e saberes – comportamentos e instituições –

em torno das capacidades comunicativas do ser humano. Por exemplo, expectativas

como livre acesso à informação tornam necessárias práticas como a produção e

circulação sistemáticas de informação por uma pluralidade de fontes independentes.

3 Em 2012, por exemplo, ocorreu a 1ª Conferência Nacional sobre Transparência e Controle Social

(Consocial), cujo tema foi “A sociedade no acompanhamento e controle da gestão pública”. Este autor

testemunhou na primeira reunião da Comissão Organizadora Nacional uma confusão atribuída ao termo

“controle social”. Inicialmente convocada como Conferência sobre Transparência e Participação Social, o

evento criou a expectativa de discussões sobre mecanismos de participação direta, ao invés de o foco

pretendido no combate à corrupção. Com a mudança para controle social, a Associação Brasileira de

Jornalismo Investigativo se retirou do processo com base precisamente no sentido negativo que o termo

carregaria para a imprensa.

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Divide-se a finalidade proposta das estratégias para atingi-la, ou seja, em nome do que

se condena um desvio e como evitar um desvio. A liberdade de expressão, dessa

maneira, sempre contou com um controle social sobre seu exercício, já que existem

referências normativas muito claras em relação ao que configuraria um desvio (como

monopólios informativos) e estratégias para a realização dessas referências. Quais

mecanismos estratégicos serão instituídos para organizar o debate público, por

exemplo, pode depender de se é o mercado ou o Estado que precisa ter seus desvios

controlados para a existência de uma pluralidade de fontes de informação.

A descrição das necessidades que o Estado e o mercado podem suprir para um

debate público vigoroso, e de quais desvios não serão tolerados, pode ser encontrada

no discurso sobre direitos humanos, especificamente nos sistemas de proteção regional,

como aquele sob o guarda-chuva da Organização dos Estados Americanos. O objetivo

do capítulo 1 é revelar o que o sistema interamericano entende por liberdade de

expressão e como ela deveria funcionar: as finalidades que deve atender e a estratégia

para atingi-las. A partir da estratégia instituída para a aplicação desses fundamentos,

identidades ganham importância, condições se tornam indispensáveis e algumas

práticas são inadmissíveis e ameaçadoras. Os desvios que o sistema interamericano

recomenda evitar fazem referência a uma tradição do liberalismo na qual o Estado é

controlado para garantir a independência dos governados; independência, porém,

sempre em risco, o que cria a necessidade de uma série de condições para uma

relação da imprensa com o Estado e com o mercado funcionar de forma adequada,

sem desvios perigosos.

No capítulo 2, examina-se como funcionam os controles discursivos em um

debate público capitaneado pela imprensa. A cobertura sobre a 1ª Conferência Nacional

de Comunicação pelos jornais O Globo, Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo

revela como o controle na produção discursiva da imprensa é orientada por uma

racionalidade específica que organiza o espaço social a partir do interesse do veículo.

Mais grave, esse controle discursivo torna invisível precisamente as situações de

desrespeito que motivariam a organização de uma conferência sobre políticas públicas

de comunicação.

No capítulo 3 investiga-se a organização dos discursos no interior do debate

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conferencial, por meio do estudo de caso da última etapa da 1ª Conferência Nacional

de Comunicação, em dezembro de 2009. A análise trata tanto de controles discursivos

exercidos por uma comissão organizadora que diferenciam esse debate daquele

recomendado pelo sistema interamericano – pois funciona pelo princípio de

colaboração entre governantes e governados –, quanto das propostas de controle que

emergiram do processo: uma amostra das resoluções aprovadas é discutida a partir do

procedimento proposto de controle discursivo com o fim de incitar um debate sobre os

resultados da conferência. A Confecom foi generalizada pela imprensa como uma

ameaça, o que tornou invisíveis situações de desrespeito à liberdade de expressão

denunciadas nas resoluções finais. Ao invés de focar em como determinado controle

pode ser uma ameaça, o capítulo busca a finalidade do controle, a situação de abuso

que se pretendeu reverter.

O foco no controle discursivo abre a possibilidade de mudar a estratégia pela

qual saberes fundamentais sobre a liberdade se tornam práticas sociais. Se temos

consciência dos resultados da aplicação de determinados procedimentos de controle

discursivo, tais mecanismos podem ser aperfeiçoados. Um esboço dessa possibilidade

é apresentado na conclusão deste trabalho com a proposta de um modelo de debate

público no qual o desvio não acontece pela ação interessada entre governantes e

governados, mas na ocorrência de uma experiência de desrespeito, em consonância

com a teoria do reconhecimento de Axel Honneth. Um debate vigilante a experiências

de desrespeito diante dos movimentos sociais, em que circulem discursos

emancipatórios e sejam conectados sujeitos em rede ganha um horizonte moral até

agora perdido no debate liberal voltado para a gestão de interesses do mercado.

Esse percurso pretende incitar uma agenda de pesquisa que retire a liberdade de

expressão de sua posição liberal defensiva e de um direito que precisa ser protegido

contra as pretensas ameaças sociais. Para isso, no entanto, é preciso ter clareza de

que não há expressão absolutamente livre, já que todo discurso apresenta uma ordem

própria, que organiza o espaço social. Ao contrário, é preciso conhecer o exercício dos

procedimentos de controle do discurso, de maneira a permitir uma ordem democrática

capaz de se reordenar perante situações de exclusão, reconhecendo e incluindo novas

identidades e valores. Isso não se consegue com o controle remoto da televisão, o

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único controle social admissível para o representante da Associação Nacional dos

Jornais (FOLHA, 2009b); mas com uma incidência social sobre as relações de

comunicação com finalidades claras e estratégias compatíveis com a democracia.

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Capítulo 1

Controle discursivo no liberalismo

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Fato marcante para aqueles que acompanharam a 1ª Conferência Nacional de

Comunicação (Confecom), denominação dada a um conjunto de conferências sobre o

tema realizadas pelo Brasil ao longo de 2009, foi a retirada em bloco das entidades

empresariais do processo conferencial. Em 13 de agosto de 2009, seis das oito

entidades representantes de empresários da comunicação abandonaram suas posições

na Comissão Organizadora Nacional (CON) para acompanhar as etapas conferenciais

de longe, sem “interesse algum em impedir sua livre realização” (FNDC, 2009). Elas

fundamentaram sua saída pela reação negativa de interlocutores na CON, que incluía

governo e sociedade civil, a incorporar os “preceitos constitucionais da livre iniciativa,

da liberdade de expressão, do direito à informação e da legalidade” (Idem) nos

documentos organizadores da Confecom. Em 18 de dezembro de 2009, a Associação

Brasileira de Empresas de Radiodifusão e Televisão (Abert), que capitaneara a saída

das outras entidades, soltou a nota “Conferência Nacional de Comunicação termina

com propostas que ameaçam a liberdade de imprensa”, em que diz que o resultado

conferencial atentaria contra “a liberdade de imprensa e a livre iniciativa” (ABERT, 2009).

A partir dessa fundamentação, as entidades empresariais denunciaram o suposto

funcionamento no interior do processo conferencial de uma racionalidade de ameaça à

ordem democrático-constitucional, para elas detectável desde as primeiras etapas de

organização.

Mas algo não fecha nessa linha de raciocínio. Convidadas pelo governo, as

entidades empresariais tinham mesmo poder de voto que a sociedade civil não

empresarial, ou seja, não eram meros sujeitos legitimadores de um processo de cartas

marcadas. Além disso, conferências de políticas públicas são espaços de participação

nos processos de gestão dessas políticas, instâncias em que qualquer cidadão pode

recomendar diretrizes e ações ao governo em relação a algum tema ou área de

incidência. No caso da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, milhares de

participantes das etapas municipais, estaduais, livres e nacional produziriam esses

conteúdos que seriam o resultado de todo o processo – no entanto, as entidades

empresariais já haviam formado uma posição sobre a Confecom antes mesmo de ela

produzir resultados. Em seu discurso, a saída das entidades foi necessária para a

defesa da liberdade, que estaria ameaçada por um “viés ideológico” (Idem) na

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conferência. As entidades, portanto, se posicionaram a partir de uma lógica em que

ideias específicas constituiriam um risco à segurança de determinado ordenamento. O

foco nos documentos que essas entidades publicaram para sustentar sua saída verifica

a articulação de um saber que funciona de maneira específica, sensível a perigos a

uma certa ordem e que posiciona o sujeito para sua defesa. O saber de que se trata é

aquele chamado de liberalismo, cuja forma de organização do espaço social é o objeto

de estudo deste capítulo.

Para incidir sobre essa ordem discursiva, será utilizado o instrumental teórico de

Ernesto Laclau e Chantal Mouffe sobre análise de discurso. Segundo Howarth et al.

(2000, p. 7-16), esse referencial se desenvolve em torno da disputa política pelo sentido.

O caráter contingencial do sentido – o fato de um fenômeno poder ser interpretado por

diversos discursos e nenhum deles ser capaz de totalizá-lo – implica em uma disputa

por hegemonia entre diversas forças sociais: todas buscam posicionar o fenômeno em

disputa dentro de sua perspectiva discursiva para possibilitar uma agência política. A

disputa se a Confecom seria uma ameaça à democracia ou a própria realização da

democracia demonstra o esforço de diferentes projetos políticos de organizar

discursivamente o espaço social, modalizar a conferência e promover seus programas.

A organização discursiva do espaço social ocorre pela fixação de alguns sentidos que

estruturam uma rede de significados, os chamados pontos nodais. A partir desses

pontos de referência, identidades podem ganhar sentidos diferentes: “Estado” pode ser

um problema se articulado por uma rede de significados que tem como referência o

“mercado” ou uma solução se articulado a partir dos “direitos” das partes sociais em

contenda.

Nesse contexto de disputa, antagonismos sociais representam uma ameaça a

ordens discursivas pelo funcionamento da lógica da equivalência. “Essa lógica funciona

criando identidades equivalentes que expressam negação pura de um sistema

discursivo”4 (HOWARTH et al, 2000, p. 11), ou seja, na presença de um Outro que

ameaça a existência de uma ordem de discurso, essa lógica opera atribuindo

identidades ao Outro que neguem aquelas pertencentes à ordem discursiva, dividindo o

espaço social num confronto entre identidades que não podem coexistir. Frases como

4 Tradução nossa.

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“ou está conosco ou está contra nós” expressam essa operação ao anular todas as

diferenças sociais em prol de um conflito selecionado que resume identidades a aliados

e inimigos, opressor e oprimido, bem e mal, etc.

Howarth (2000, pp. 8-9) aponta ainda para o desenvolvimento que Laclau opera

na lógica de estruturação discursiva do social pela criação do conceito de significante

vazio. O significante vazio funciona como um ideal, algo presente por sua ausência e

que orienta diferentes estratégias políticas em busca desse ideal, como “liberdade de

expressão” ou “interesse público”. Os agentes sociais disputarão a hegemonia de

sentido sobre esses significantes vazios. Se a liberdade de expressão é o direito que

impede qualquer intervenção social sobre os meios de comunicação ou é o direito a

partir do qual os meios de comunicação são objeto de debate e agência social, isso

caracteriza uma disputa política em torno de um significante que ganhou grande

importância no ordenamento da sociedade: aquele sentido de liberdade de expressão

que conquista corações e mentes, hegemoniza-se e orienta o funcionamento da

comunicação na direção dos empresários midiáticos (o do interesse capitalista) ou na

direção democrática de inclusão de vozes que até agora estão fora do espaço público

comunicacional, sem canais.

Como esses conceitos denunciam, menos preocupada com a motivação das

entidades empresariais para se retirar do processo conferencial, esta análise se volta

para o funcionamento do saber articulado por essas organizações na construção de sua

identidade como defensoras da liberdade. É um saber que desperta interesse pelo

sentido que atribui àqueles que se oporiam a tal identidade, relegados a ser inimigos

dessa liberdade. Ao fundamentar a saída das entidades, ao organizar os sentidos que

explicariam tal ação social, esse saber liberal não deu chances à Confecom: esta virou

uma ameaça à liberdade de imprensa e aquele se enunciou como defensor da

liberdade. Trata-se de uma inversão retórica. Pretende-se aqui contestar tal

interpretação demonstrando não hipocrisia, alienação ou ingenuidade desses

“defensores” liberais, pois isso seria entrar na disputa prevista pela hegemonia que as

entidades constituíram: acusá-las só reforçaria sua posição de defesa. Contesta-se tal

interpretação a partir das consequências antidemocráticas de se pensar a liberdade de

expressão sempre a partir de suas ameaças, o que deixa acuada uma sociedade em

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constante risco de ser deixada no silêncio.

Ao invocar preocupações como liberdade de expressão e direito à informação, o

discurso das entidades midiáticas hegemônicas se insere em uma tradição de

pensamento bem específica: o liberalismo. Para compreender o funcionamento dessa

tradição, retoma-se a genealogia que Michel Foucault (2008b, p. 3-95) faz do

liberalismo em suas aulas de 1979 no Collège de France, ocasião em que se dedica à

análise da arte do exercício da soberania política, em uma investigação histórica a

respeito da reflexão e racionalização das práticas de governo5. Ele identifica a origem

do liberalismo nessa reflexão, quando alguns saberes passaram a conceber o Estado a

partir de seus limites e a organizar a soberania política no sentido de produzir certas

condições que deveriam se sobrepor a todas as contingências. No liberalismo, essa

organização das práticas de governo se orienta em um sentido: a produção de

liberdade.

O liberalismo em oposição à razão de Estado

Para revelar as origens do liberalismo, Foucault identifica, no decorrer do século

16, "a emergência de um certo tipo de racionalidade na prática governamental, um certo

tipo de racionalidade que permitiria regrar a maneira de governar com base em algo

que se chama Estado" (FOUCAULT, 2008b, p. 6). Segundo a chamada razão de Estado,

o governante deve respeitar as leis divinas, morais e naturais, mas não é expressão dos

poderes divino, imperial ou paternal. O Estado, continua Foucault, surge como uma

realidade específica e descontínua, com sua existência concretizada na organização da

produção e dos circuitos comerciais (mercantilismo), na regulação do país a partir de

um modelo de organização urbana (gestão interna policial) e na manutenção da

pluralidade de Estados concorrentes na balança de poder internacional (aparelhos

permanentes diplomático-militares). Do século 17 ao início do 18, essa racionalidade foi

hegemônica, com a regulação da vida e atividades dos súditos, da produção e dos

preços visando à concorrência e equiparação do Estado a outros num sistema

5 Segundo Castro (2004), Foucault considera práticas “a racionalidade ou a regularidade que organiza o

que os homens fazem (...), que têm um caráter sistemático (saber, poder, ética) e geral (recorrente) e, por

isso, constituem uma „experiência‟ ou um „pensamento‟”.

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internacional, ou seja, uma racionalidade que objetivava o fortalecimento e o

enriquecimento do Estado. “O que é governar? Governar segundo o princípio da razão

de Estado é fazer que Estado possa se tornar sólido e permanente, que possa se tornar

rico, que possa se tornar forte diante de tudo o que pode destruí-Io” (FOUCAULT, 2008b,

p. 6).

Na oposição a essa racionalidade, mas ainda no interior de reflexões com

pretensões racionalizantes, Foucault identifica o movimento dos dois saberes que mais

tarde dariam corpo ao liberalismo: uma tradição jurídica de crítica ao poder real e uma

reflexão crítica sobre as práticas governamentais desdobrada da própria razão de

Estado. Nesse contexto, surgiram teorias envolvendo direitos naturais ou um contrato

social e reflexões histórico-jurídicas sobre um estado pré-estatal de direitos primitivos.

Em ambos os casos, uma racionalidade surge a partir de uma suposta naturalidade (do

ser humano, de processos sociais) que deve ser respeitada enquanto o Estado

organiza uma população entrelaçada a valiosas dinâmicas econômicas. O liberalismo

seria uma crítica interna da razão governamental, uma reflexão constante sobre as

fronteiras de competência das práticas de governo, buscando impedir qualquer

possibilidade de excesso.

A liberdade da tradição jurídica

Na Idade Média, a prática judiciária fora um multiplicador do poder real. Com um

"sistema de justiça acompanhado de um sistema armado", afirma Foucault, "o rei pouco

a pouco limitou e reduziu os jogos complexos dos poderes feudais" (2008b, p. 11). Esse

sistema de justiça medieval sofreu uma mudança com a ascensão, até a hegemonia, da

razão de Estado e suas pretensões de poder ilimitado: do século 17 ao início do século

seguinte, o direito passou a funcionar na subtração do poder real, tornando-se o apoio

para todos que buscavam limitar a extensão indefinida das práticas governamentais.

Era uma batalha política dos juristas contra a razão de Estado a partir de certas "leis

fundamentais", localizadas fora da razão de Estado, que estabeleceriam os limites das

práticas de governo.

Para Foucault, a tradição jurídica, ao se integrar ao direito público, ou seja, ao

regular a prática governamental a partir de dentro das instituições estatais, torna-se

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uma vertente do liberalismo – que nomeia de axiomática, jurídico-dedutiva,

rousseauniana ou revolucionária.

[P]rocurar definir quais são os direitos naturais ou originários que pertencem a

todos os indivíduos, definir em seguida em que condições, por causa de que,

segundo que formalidades, ideais ou históricas, aceitou-se uma limitação ou

uma troca de direito. Consiste também em definir os direitos cuja cessão se

aceitou e, ao contrário, os direitos para os quais nenhuma cessão foi acordada

e que permanecem, por conseguinte, em qualquer condição e sob todos os

governos possíveis, ou em todo regime político possível, direitos imprescritíveis.

(FOUCAULT, 2008b, p. 54).

A partir dessa tradição jurídica de autolimitação, portanto, direitos originais

devem ser preservados na sociedade política e qualquer intervenção pela soberania

seria a princípio irracional e ilegítima, afinal, foi exatamente para mantê-los que se teria

formado o Estado. Consagra-se uma concepção sobretudo francesa de liberdade que

funciona como o exercício de certos direitos fundamentais, uma liberdade que projeta

uma vontade de verdade6 que exercerá pressão e coerção sobre outros discursos

sociais. Esses direitos e liberdades fundamentais formam o regime de verdade da via

jurídico-dedutiva do liberalismo, segundo Foucault.

Quando digo regime de verdade, não quero dizer que a política ou a arte de

governar, por assim dizer, finalmente, alcança nessa época a racionalidade.

Não quero dizer que se atingiu nesse momento uma espécie de limiar

epistemológico a partir do qual a arte de governar poderia se tornar científica.

Quero dizer que esse momento que procuro indicar atualmente, que esse

momento é marcado pela articulação, numa série de práticas, de um certo tipo

de discurso que, de um lado, o constitui como um conjunto ligado por um

vínculo inteligível e, de outro, legisla e pode legislar sobre essas práticas em

termo de verdadeiro e falso. (FOUCAULT, 2008b, p. 25).

Pode-se afirmar, e isto será posto em teste por esta análise, que aquela racionalidade

desenvolvida em oposição ao absolutismo, a racionalidade que regula o Estado a partir

de certa verdade inviolável na condição humana, persiste hoje no direito internacional

6 Foucault (2008a, pp. 13-21) considera a vontade de verdade um procedimento de exclusão, na ordem

do discurso, de outros discursos que buscam contornar ou questionar uma proposição. Essa proposição

é separada de seu contexto histórico e tem suas conclusões eternizadas, relegando a alteridade à

condição de falsidade.

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público. Mas essa não é a única racionalidade identificável nos sistemas internacionais

de proteção de direitos humanos. Em sua genealogia, Foucault menciona outra vertente

do liberalismo que regula a arte de governar, uma tradição que se desenvolve a partir

de outro regime de verdade, com origem na economia política. De forma surpreendente,

ela também se encontra presente em discursos de direitos humanos, especialmente os

relativos à liberdade de expressão.

A liberdade da tradição utilitarista

Foucault identifica a emergência, em meados do século 18, de outra forma crítica

à razão de Estado, mas, diferente daquela surgida da prática jurídica, com raízes no

interior das próprias práticas de governo: uma reflexão com origens na necessidade de

organizar a produção e os circuitos comerciais e que teve como instrumento intelectual

a economia política (então uma disciplina da filosofia moral que guiava os governantes).

Ao se debruçar sobre os efeitos das práticas governamentais na organização,

distribuição e limitação dos poderes sociais, teóricos de economia política formalizam a

existência de fenômenos, processos e regularidades nos objetos da intervenção. Ao

mexer na economia, concluem, o Estado lida com leis da natureza.

[A] economia política revelou a existência de fenômenos, de processos e de

regularidades que se produzem necessariamente em função de mecanismos

inteligíveis. Esses mecanismos inteligíveis e necessários podem, claro, ser

contrariados por certas formas de governamentalidade, por certas práticas

governamentais. Podem ser contrariados, podem ser perturbados, podem ser

obscurecidos, mas, como de todo modo não será possível evitá-los, não se

poderá suspendê-los total e definitivamente. (FOUCAULT, 2008b, p. 21).

De acordo com Heilbroner (1996, pp. 43-72), o filósofo moral Adam Smith foi o

primeiro a formular um esquema amplo e sistemático com interesse próprio e

competição articulados para manter uma sociedade coesa, construindo uma ordem

social sobre esse entendimento. A Riqueza das Nações, publicada em 1776, veio a

contestar a noção fisiocrata de "que apenas o trabalhador agrícola produzia a

verdadeira riqueza e que os trabalhadores da indústria e do comércio apenas alteravam

sua forma" (HEILBRONER, 1996, p. 49), em prol da ideia, mais urbana e menos

aristocrática, de que é o trabalho o “real” produtor de valor. O Estado devia se

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preocupar não com o acúmulo de metais preciosos ou a nocividade do entesouramento

do excedente agrícola, mas entender as leis de mercado de formação dos preços e

fazer uma boa gestão de sua moeda.

O mercado, no sentido bastante geral da palavra, tal como funcionou na Idade

Media, no século XVI, no século XVII, creio que poderíamos dizer, numa palavra,

que era essencialmente um lugar de justiça. (...) Logo, lugar dotado de

regulamentação – isso era o mercado. (...) O que devia ser assegurado era a

ausência de fraude. Em outras palavras, era a proteção do comprador. A

regulamentação de mercado tinha por objetivo, portanto, de um lado, a

distribuição tão justa quanto possível das mercadorias, e também o não-roubo,

o não-delito. (...) Esse sistema – regulamentação, justo preço, sanção da fraude

– fazia portanto que o mercado fosse essencialmente, funcionasse realmente

como um lugar de justiça, um lugar em que devia aparecer na troca e se

formular nos preços algo que era a justiça. Digamos que o mercado era um

lugar de jurisdição.

Ora, é aqui que a mudança se produz (...). O mercado surgiu, em meados do

século XVIII, como já não sendo, ou antes, como não devendo mais ser um

lugar de jurisdição. O mercado apareceu como, de um lado, uma coisa que

obedecia e devia obedecer a mecanismos "naturais", isto é, mecanismos

espontâneos, ainda que não seja possível apreendê-los em sua complexidade,

mas espontâneos, tão espontâneos que quem tentasse modificá-Ios só

conseguiria alterá-los e desnaturá-Ios. De outro lado – e é nesse segundo

sentido que o mercado se torna um lugar de verdade –, não só ele deixa

aparecer os mecanismos naturais, como esses mecanismos naturais, quando

os deixam agir, possibilitam a formação de certo preço (...), um certo preço

natural, bom, normal, que vai exprimir a relação adequada, uma certa relação

adequada entre custo de produção e extensão da demanda. (FOUCAULT, 2008,

pp. 42-4).

A ideia de uma natural harmonia social pelo autointeresse, num ambiente de

perfeita concorrência, ancorou ao mercado a formulação de uma nova razão

governamental. Se uma “verdade natural” faria o mercado funcionar sob suas próprias

regras em prol de toda a sociedade, à figura do Estado só resta dar as condições para

que essas leis naturais não sejam corrompidas. De outra maneira, se as técnicas e

práticas de governo que interferem na população do território em prol dessa verdade

não respeitarem tal natureza, estarão fadada ao fracasso.

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Foucault (2008b, p. 60) localiza no início do século 19 a ascensão das

formulações de problemas de direito público em termos do princípio de utilidade: se as

trocas sociais são o movimento real que mantém a sociedade, a soberania política só

deve ser exercida quando houver alguma utilidade para esse movimento. E é esse o

elemento final para a razão do Estado mínimo: a prática governamental é condicionada

a um valor de uso perante um sistema em que autointeresses em competição

determinam o verdadeiro valor das coisas. As ações governamentais que não

obedeçam a esse critério de utilidade constituem excesso de governo, recaindo na

modalização do irracional, inadequado, inconveniente. O governo será útil, explica

Foucault, quando ajudar a gerir os jogos de interesse.

Agora, o interesse a cujo princípio a razão governamental deve obedecer são

interesses, é um jogo complexo entre os interesses individuais e coletivos, a

utilidade social e o benefício econômico, entre o equilíbrio do mercado e o

regime do poder público, é um jogo complexo entre direitos fundamentais e

independência dos governados. O governo, em todo caso o governo nessa

nova razão governamental, é algo que manipula interesses. (FOUCAULT, 2008b,

p. 61).

E um dos desafios dessa vertente do liberalismo, que Foucault chama de

utilitária ou radicalismo inglês, será produzir liberdade na “república fenomenal dos

interesses” (FOUCAULT, 2008b, p. 63). Se, segundo seus princípios, uma harmonia

social surge naturalmente quando indivíduos buscam seus próprios interesses, as

práticas governamentais devem fazer o necessário para que haja as condições de

liberdade, aqui entendida como independência dos governados.

Isso nos leva a outra distinção igualmente importantíssima; de um lado, vamos

ter uma concepção da liberdade que é uma concepção jurídica – todo indivíduo

detém originalmente certa liberdade da qual cederá ou não certa parte – e, de

outro, a liberdade não vai ser concebida como exercício de certo número de

direitos fundamentais ela vai ser percebida simplesmente como a

independência dos governados em relação aos governantes. (FOUCAULT,

2008b, p. 57).

Diferente da tradição jurídica do liberalismo, em que a liberdade se concretiza no

exercício dos direitos fundamentais, a liberdade utilitária se realiza no interior da relação

entre governantes e governados. Aqueles devem estar sempre atentos para que os

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diferentes interesses particulares não representem um risco ao interesse de todos.

Inversamente, faz-se necessário proteger os interesses individuais contra tudo o que se

revelar um abuso dos interesses coletivos. Risca-se uma fronteira que opõe um sujeito

privado, que para contribuir para a sociedade deve buscar seu interesse particular, e um

sujeito público, que deve ser acionado quando necessário em termos de interesse

coletivo. É uma tensão central e constitutiva das práticas estatais: há sempre a

insegurança do limite ser violado e a harmonia social prejudicada. Isso cria a

necessidade do alerta constante e introduz uma lógica de enfrentamento e risco nas

práticas sociais, um jogo entre liberdade e segurança.

Se a arte liberal de governar é uma que fundamentalmente manipula interesses,

então o Estado não pode deixar de ser o gestor dos perigos e dos mecanismos de

segurança e liberdade que protegem os indivíduos. Foucault (2008b, pp. 90-3) identifica

três consequências da presença dessa racionalidade nas práticas de governo. Primeiro,

uma cultura do perigo. O cotidiano traz ameaças que ganham narrativas próprias7: viver

torna-se inseparável de uma consciência constante do perigo, pois é preciso estar

sempre atento àquele interesse que possa abalar o frágil equilíbrio entre soberano e

súditos. Segundo, há a extensão dos procedimentos de controle, pressão e coerção, o

que o teórico social chama de dispositivos disciplinares. Se o governo deve abrir

espaço para a mecânica natural dos comportamentos e da produção e não exercer

influência, pelo menos em princípio, então ele fica limitado à função da vigilância sobre

aquilo que é irracional, inadequado, inconveniente, um perigo à comunidade política,

provocando uma normalização das práticas sociais que, quando ameaçada, terá o

Estado como sua garantia. À rede de relações estratégicas para tal normalização é que

se dá o nome de dispositivo. Terceiro, essa arte liberal de governar introduz, e será

vítima de, crises de governamentalidade dos dispositivos disciplinares. Quando os

perigos estão inflacionados – por exemplo, na presença de uma ameaça iminente ou

uma revolta disciplinar –, os dispositivos passam a produzir o inverso a que se

propuseram, num intervencionismo que pode ser opressivo.

7 Foucault (2008b, p. 90) cita como exemplo a emergência da literatura policial e do interesse jornalístico

pelo crime na Inglaterra do século 19, momento e local de hegemonia dessa vertente do liberalismo.

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Há, enfim e sobretudo, processos de saturação que fazem que os mecanismos

produtores da liberdade, os mesmos que foram convocados para assegurar e

fabricar essa liberdade, produzam na verdade efeitos destrutivos que

prevalecem até mesmo sobre o que produzem. É, digamos assim, o equívoco

de todos esses dispositivos que poderíamos chamar de „liberógenos‟, de todos

esses dispositivos destinados a produzir a liberdade e que, eventualmente,

podem vir a produzir exatamente o inverso. (FOUCAULT, 2008b, p. 93).

O impacto dessas formulações no discurso que compõe a compreensão

contemporânea de liberdade de expressão pode ser verificado nos atuais sistemas

internacionais de proteção de direitos humanos. Esses sistemas, vinculados a alguma

organização internacional, como as Nações Unidas ou a Organização dos Estados

Americanos (OEA), desenvolvem os chamados padrões internacionais, que orientam a

interpretação de ativistas e operadores de direito sobre os tratados internacionais de

direitos humanos e contribuem para sua difusão na sociedade. Perante a OEA, a

Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969)8 é o documento básico com

efeitos jurídicos vinculantes que fundamenta o sistema de proteção interamericano,

incluindo o relativo à liberdade de expressão. Mas seria limitadora uma análise desse

documento vinculante, pois tais sistemas produzem comentários, estudos, declarações

e jurisprudência na perspectiva de criar padrões internacionais de direitos humanos em

determinados temas. Nenhum país está obrigado juridicamente a seguir essas

interpretações – a não ser que o documento vinculante o faça expressamente, como é o

caso das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, instrumento da

Convenção Americana –, mas o detalhamento das geralmente vagas obrigações dos

documentos internacionais vinculantes são formulações valiosas para aqueles que

buscam o reconhecimento de um direito numa experiência particular de violação. Por

ser produzido por um organismo internacional, trata-se de um discurso com um

argumento de autoridade estratégico em contextos de disputa por espaços sociais,

visando influenciar normativamente diferentes realidades. O uso dos "padrões

8 Ratificada pelo Brasil em 1992, quando reconheceu a competência da Corte Interamericana de Direitos

Humanos e condicionou as visitas locais da Comissão Interamericana de Direitos Humanos a autorização

prévia do país.

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internacionais" desloca o conflito de seu contexto específico para inseri-lo num debate

moral, cosmopolita e normalizante, seguindo um saber cuidadosamente elaborado.

O sistema interamericano de liberdade de expressão

Esta análise se reclina sobre os padrões recomendados pelo sistema

interamericano. No exame dos padrões de liberdade de expressão, usa-se como

referência o documento "The Inter-American Legal Framework regarding the right to

freedom of expression" (o marco legal interamericano relativo ao direito à liberdade de

expressão). Compilada pelo Escritório da Relatoria Especial para Liberdade de

Expressão, mecanismo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a

publicação apresenta como os padrões regionais, formulados por especialistas, pela

Corte Interamericana de Direitos Humanos e pela Comissão, podem ser instrumentos

de promoção da liberdade de expressão nas mãos de operadores do direito, juízes,

juristas e legisladores. É um documento, portanto, de promoção e divulgação sobre

como todo o conjunto formado pelo sistema interamericano se articula pela liberdade de

expressão.

O documento está dividido em duas partes. A primeira se dedica ao marco legal

do sistema interamericano para a liberdade de expressão e a segunda trata de como

tais padrões foram incorporados nos sistemas jurídicos nacionais em 2009. Esta análise

foca apenas a primeira parte, que por sua vez mantém como divisões principais: a)

Importância e função do direito a liberdade de expressão; b) Principais características

do direito à liberdade de expressão; c) Tipos de discurso protegidos pela liberdade de

expressão; d) Limites da liberdade de expressão; e) A proibição contra a censura e

restrições indiretas à liberdade de expressão pelas autoridades; f) Jornalistas e os

meios de comunicação social; g) O exercício da liberdade de expressão por agentes

públicos; h) Liberdade de expressão no contexto eleitoral; i) Pluralismo, diversidade e

liberdade de expressão. Em seu conjunto, o documento revela as expectativas e

premissas liberais do que seria um debate público democrático.

Os fundamentos da liberdade de expressão

O regime interamericano fixa a definição da liberdade de expressão a partir de

três necessidades, "funções" que desempenham em sistemas democráticos e cuja

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contestação recairia na modalização do falso: a expressão de uma "virtude" comum que

iguala os seres humanos; a circulação dessas expressões como a própria possibilidade

para a democracia; e o exercício de todos os outros direitos fundamentais (IACHR,

2010, p. 2-4)9. Três proposições que são decisões, decisões institucionais a favor de

três vontades de verdade.

Em Foucault (CASTRO, 2009, pp. 421-2), a verdade é um sistema de exclusão

discursiva, sendo a vontade de verdade um procedimento voltado para conjurar os

poderes e perigos do discurso, dividindo aquilo que é aceito por aquela ordem

discursiva daquilo que não é. Fixam-se aquelas constâncias que devem persistir

através de todas as contingências e, para isso, orientarão as técnicas e as práticas que

alocam recursos e assujeitam os indivíduos. Segundo Avelino (2010), o último Foucault

busca explicitar como regimes de verdade estão sempre conectados a regimes

políticos, jurídicos etc. por alguma estrutura de obediência: o exercício do poder exige

não somente atos de submissão, mas também atos de verdade, que garantem a

adesão dos sujeitos.

Por regime de verdade, Foucault quer indicar a existência de um dispositivo da

verdade segundo o qual os discursos não apenas funcionam como verdadeiros,

mas também os mecanismos, as instâncias e os modos para distinção entre o

falso e o verdadeiro são definidos; os procedimentos e as técnicas para

obtenção da verdade são produzidos; o estatuto daqueles que dirão a verdade

é definido. (AVELINO, 2010, p. 146).

A primeira fixação de sentido na capacidade de "pensar por nós mesmos e

compartilhar nossos pensamentos com os outros" (IACHR, 2010, p. 3) anuncia uma

igualdade na condição humana10. As práticas comunicativas podem ser administradas

por uma fórmula jurídica (o direito de liberdade de expressão) que regula a circulação

9 Todas as citações do documento são de tradução nossa.

10 Ao considerar a liberdade de expressão uma competência de produção, pode-se ficar tentado a invocar

uma analogia para aproximar essa racionalidade à teoria neoliberal do capital humano (FOUCAULT,

2008, pp. 302-320), que conceitua (e valoriza) o sujeito a partir de seu estoque de capacidades em uma

situação de escassez. Mas nem competição nem escassez aparecem articuladas para a construção

desse regime de verdade. Em vez disso, é o exercício virtuoso de algumas práticas (pensar, comunicar,

construir) que aparece aqui como o próprio valor a ser preservado igualmente a todos, aproximando-a da

tradição jurídica do liberalismo.

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livre e igualitária de expressão e recepção independentemente da posição relativa dos

sujeitos: há certa condição humana que jamais deve ser violada. Ao compreender assim

o sentido de liberdade de expressão, o sujeito é posicionado para enfrentar um

antagonismo a cada experiência em que virtudes comunicativas não forem igualmente

respeitadas em suas variadas formas. Este é um regime de verdade que rejeita a

censura.

O sistema interamericano descreve quais seriam essas posições a serem

preservadas contra a censura, as formas de expressão protegidas, que seguem em

termos de direitos (IACHR, 2010, pp. 7-10):

direito à fala, incluindo a escolha da língua para se

expressar;

direito à escrita, também na língua escolhida;

direito de disseminar a expressão oral ou escrita através dos

meios de comunicação de sua escolha, com a intenção de

comunicá-la ao maior número de pessoas possível;

direito à expressão artística e simbólica, à disseminação da

expressão artística e a acessar arte, em todas as suas formas;

direito de buscar, receber e ter acesso a expressões, ideias,

opiniões e informações de todo tipo;

direito de acessar informação pessoal em banco de dados e

registros privados e públicos, com o direito de atualizar, corrigir e

emendar seus dados;

direito de possuir informação, escrita ou em outro meio,

transportá-la e distribuí-la.

No sistema interamericano, as expressões resultantes das capacidades

comunicativas do ser humano em algum suporte tecnológico são tratadas como

"conteúdo". As práticas descritas acima são os acessos idealmente igualitários e livres

para que sujeitos incidam sobre conteúdos relativos a si ou ao mundo, incluindo

aquelas consideradas portas de entrada para o debate público. Observa-se que essas

práticas não prescindem de certa ampliação das capacidades comunicativas humanas,

incorporando sob a proteção jurídica o acesso a equipamentos tecnológicos.

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O revolucionário anglo-americano Thomas Paine, nos EUA de 1806, escrevia

sobre como a Revolução Gloriosa, na Inglaterra de 1688, havia marcado a liberdade de

imprimir, o acesso sem a exigência de autorização pelo soberano a uma tecnologia de

comunicação e informação que ampliava o alcance de expressões: a prensa (LIMA,

2010, pp. 40-43). O marco trouxe aos poderes fora do Estado o protagonismo na

organização dos processos comunicativos associados ao uso de tecnologias,

propiciando a propriedade privada dos meios de comunicação, enquanto formulações

que culminariam em uma noção de propriedade intelectual de bens simbólicos

cercearam a manipulação, visibilidade e circulação de conteúdo (uma necessidade da

Revolução Industrial). Esses dois "cercamentos" que fundaram a organização de nosso

debate público não seriam modalizados como censura, já que não tiveram sua origem

nas práticas de Estado, mas podem provocar restrições à liberdade de expressão e

impactos culturais. O receio liberal em torno da independência dos governados foca

bastante nos perigos que o poder estatal representa a esse acesso ao simbólico, mas

tem pouco a dizer sobre as restrições de acesso originadas de outras instâncias de

poder. Como será abordado na próxima seção, o sistema interamericano recomenda

práticas antimonopolísticas que incidem sobre a propriedade privada das tecnologias,

mas silencia quanto a temas como propriedade intelectual ou direitos autorais.

A segunda dita "função" da liberdade de expressão é a criação da condição de

possibilidade da democracia: o debate publico. O sistema interamericano apresenta

uma ênfase particular no projeto democrático, por motivos históricos (as ditaduras

latino-americanas) e geopolíticos (a democracia dos Estados Unidos como forte

referência ideológica). O artigo 4º da Carta Democrática Interamericana (2001) 11

posiciona a "liberdade de expressão e de imprensa" como "component[e] fundamenta[l]

do exercício da democracia", enquanto a Comissão Interamericana declarou, em ao

menos duas ocasiões 12 que o propósito do artigo 13 da Convenção Americana é

11

Documento não-vinculante adotado pela Terceira Cúpula das Américas, realizada de 20 a 22 de abril

de 2001, na Cidade de Québec, Canadá. A Carta foi definitivamente aprovada pelos Estados Membros

da OEA durante uma Sessão Extraordinária da Assembleia Geral realizada em 11 de setembro de 2001,

em Lima, Peru.

12 Nos casos Ivcher-Bronstein v. Peru e Olmedo-Bustos et al. v. Chile.

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"fortalecer a operação de sistemas democráticos pluralistas e deliberativos através da

proteção e promoção da livre circulação de informação, ideias e expressões de todos

os tipos" (IACHR, 2010, p. 3).

Este regime de verdade está no campo de significações políticas: a escolha não

foi sustentar uma liberdade de circulação simbólica, por exemplo, em prol da educação,

da saúde ou das artes, mas a favor daquelas expressões que tenham uma relação com

as práticas consideradas necessárias para a existência da democracia. A partir das

necessidades democráticas, a livre circulação de expressões relevantes para a

sociedade política é um valor atemporal, independente de contextos sociais e históricos,

mas identificável pelo debate público.

Nessa perspectiva, se o exercício do direito à liberdade de expressão tende não

apenas em direção à realização pessoal daqueles que se expressam, mas

também em direção à consolidação de sociedades verdadeiramente

democráticas, o Estado tem a obrigação de gerar as condições para garantir

que o debate público não apenas satisfaça as necessidades legítimas de todos

como consumidores de uma dada informação (entretenimento, por exemplo),

mas também como cidadãos. Ou seja, as condições necessárias devem ser

dadas para haver uma deliberação aberta, plural e pública sobre os assuntos

que interessam todos nós como cidadãos de um determinado Estado. (IACHR,

2010, p. 4).

A condição para a democracia, portanto, se refere a uma certa qualificação do

debate público, um certo governo necessário da circulação das expressões humanas

para a possibilidade dessa sociedade política. Com fins de construir um debate público

democrático, o sistema interamericano de liberdade de expressão orienta certa

organização dos poderes sociais na comunicação, recomenda que as práticas de

governo ajam em determinado sentido (IACHR, 2010, p. 3): (i) a formação de uma

opinião pública informada e consciente de direitos; (ii) a criação de oportunidades para

o controle cidadão sobre a condução dos assuntos públicos; e (iii) a imputabilidade dos

agentes públicos. O debate público do sistema interamericano, a condição para a

democracia, assim, trata de criar instâncias que possam também se contrapor ao poder

do Estado. Isso ocorre porque a vontade de que essas proposições se tornem uma

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verdade social é governada por uma lógica 13 que condiciona a existência da

democracia à negação de certas práticas: esse regime de verdade organiza-se pela

rejeição à possibilidade de autoritarismo na relação entre governantes e governados. A

democracia, assim, é constituída a partir daquilo que a ameaça, o que cria a

necessidade de limitar o poder estatal. A organização do debate público a partir das

necessidades ditadas por essa oposição/ameaça pode ser verificada na concepção de

ordem pública:

Em uma democracia, a legitimidade e o poder [strength] das instituições são

fortalecidos [strengthened] pelo vigor [force] do debate público sobre o

funcionamento daquelas, não pela supressão deste. Além disso, a

jurisprudência interamericana estabelece claramente que, de maneira a impor

qualquer tipo de pena em nome da defesa da ordem pública (compreendida

como segurança, moral ou saúde públicas), é necessário demonstrar que o

conceito de "ordem" sendo defendido não é um autoritário, mas uma ordem

democrática compreendida como a existência de condições estruturais que

permitam a todas as pessoas exercer seus direitos em liberdade, sem

discriminação ou temor de punição como consequência. Em efeito, para a Corte

Interamericana, genericamente, a ordem pública não pode ser invocada para

suprimir um direito garantido na Convenção Americana, desnaturalizá-lo ou

despojá-lo de seu conteúdo real. Se esse conceito é invocado como fonte de

limitação aos direitos humanos, deve ser interpretado de maneira estritamente

ligada às justas demandas de uma sociedade democrática que mantém em

mente o equilíbrio entre interesses em jogo e a necessidade de preservar o

objeto e os objetivos da Convenção Americana. (IACHR, 2010, p. 21)

A ordem entendida como gestão de interesses mantém afastada a autocracia

(interna e externa) pela diferenciação do interesse público dos outros particulares. Há

uma divisão do espaço social que cria um nós e um Outro: se queremos democracia, é

preciso vigiar o autoritarismo. E a vigília recomendada, o ponto de vista que organiza o

espaço analítico de um defensor da democracia, é aquela da gestão de interesses, o

que ancora a liberdade de expressão em um modelo específico de funcionamento

democrático. Isso abre a possibilidade de disputa no debate público por dois

significantes vazios, pois aquele discurso que ocupar o sentido, conquistar o status de

13

Trata-se da lógica da equivalência. No caso, democracia e autocracia são opostos negativamente e

ganham status equivalente de dois regimes antagônicos.

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32

interesse público ou interesse particular pautará a democracia recomendada pelo

sistema interamericano.

A terceira fixação de sentido da liberdade de expressão está em seu uso em

relação aos outros direitos fundamentais, sendo “instrumento-chave para o exercício de

todos os outros direitos fundamentais” (IACHR, 2010, p. 4). Seu papel é de acesso a

outros direitos garantidos na Convenção Americana, o que coloca a liberdade de

expressão no "coração do sistema de proteção aos direitos humanos nas Américas"

(Idem). Ou seja, a liberdade de expressão é o veículo de promoção dos valores morais

nos direitos humanos, ao mesmo tempo em que deve ser exercida dentro do rol de

significações dessa moralidade. Após dois regimes de verdade que pretendem orientar

as práticas de produção da liberdade de expressão, negando a censura ou o

autoritarismo, este regime incorpora tal produção específica a um programa mais

amplo: a produção de todos os outros direitos humanos.

Ao definir liberdade de expressão, o sistema interamericano posiciona três

verdades: uma "virtude" ou capacidade humana cujas necessidades extinguem as

desigualdades no ato da comunicação para que ninguém seja interditado; uma

estratégia necessária para constituir sociedades democráticas e diferenciá-las das

autoritárias; e uma prática civilizatória, cuja necessidade recai precisamente na

capacidade de criar contingências político-jurídicas em que os direitos humanos são

invocados. Se considerarmos, para fins de análise, a liberdade de expressão um

significante vazio, essas três ordens compartilham harmonicamente a hegemonia no

discurso do sistema interamericano: uma antagoniza práticas de interdição, outra as

autoritárias e a última expande indefinidamente a ordem discursiva dos direitos

humanos, todas em prol da liberdade de expressão. Um comunicador censurado, um

denunciante inconformado e um ativista de direitos humanos, por exemplo,

contingencialmente passam a ter relação quando submetidos à perspectiva da

liberdade de expressão, que os posiciona como seus defensores.

Até agora, viu-se certa confluência entre a genealogia do liberalismo de Foucault

e a análise política dos regimes de verdade do sistema interamericano de liberdade de

expressão. Ambos articulam certa condição humana inviolável e a necessidade de

produzir liberdade, abrindo a possibilidade do antagonismo por excelência liberal: se a

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liberdade é produzida, ela pode ser restrita. A resposta do liberalismo e do sistema

interamericano para lidar com o risco constante da negação de sua própria ordem

discursiva é a gestão das condições de liberdade. Para o regime interamericano, a

ameaça que divide o espaço social é a prática autoritária e sua contenção se faz pela

gestão de interesses públicos e privados.

Essa arte de governo envolta em uma cultura do perigo põe em funcionamento

práticas e técnicas para construir a relação entre suas verdades e os sujeitos que as

praticam. Com fins de constituir uma rede de relações estratégicas que permitam a

preservação e a multiplicação dos fundamentos da liberdade de expressão, o sistema

interamericano traz um amplo rol de recomendações dessas práticas e técnicas, objetos

de próxima seção.

Governamentalidade para um debate público democrático

O termo governamentalidade, introduzido por Foucault, visa deslocar a análise

do poder para dar conta das mudanças nas formas de governar com a racionalização

reflexiva do liberalismo. Com a generalização das técnicas disciplinares em direção a

uma arte de governar, “o governo das condutas é tanto um problema de autogoverno

quanto um problema de governo da condução dos outros” (SANTOS, 2010, pp. 226-7).

Uma intenção é se desviar de questões ontológicas a respeito do poder e se focar em

como o mesmo é exercido: revelar estruturas de obediência a um regime de verdade.

Avelino (2010) descreve duas dimensões desse tipo de análise: uma voltada para as

tecnologias de segurança que fazem funcionar elementos jurídicos e disciplinares por

meio de suas práticas, e outra programática, que diz respeito a programas de governo e

racionalidades governamentais. Essas racionalidades, segundo Dean (apud AVELINO,

2010, pp. 145-6), são o “produto de um conjunto de práticas sociais inscritas no interior

de relações de „poder-saber‟”. A governamentalidade, assim, trata das técnicas e

práticas que incidem na população de um território a ser governado a partir dos saberes

instituídos nos regimes de verdade.

Ao estabelecer uma condição em que a liberdade de expressão é um direito que

garante a expressão individual e ao mesmo tempo promove a circulação social de

informação, o sistema interamericano trata daquilo que chama de dimensão dual da

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liberdade de expressão: uma individual e outra coletiva. Cada dimensão precisa de

práticas e técnicas distintas para a desejada produção de liberdade. Mas essa interação

entre os regimes de verdade sobre capacidades comunicativas e sobre democracia não

produz conflito, ao contrário, um é condição para o outro.

Uma das principais consequências do dever de garantir as duas dimensões

simultaneamente é que uma não pode ser afetada pela invocação da

preservação da outra como justificativa; assim, por exemplo, “alguém não pode

legitimamente recorrer ao direito de uma sociedade de ser informada

honestamente para implementar um regime de censura prévia com o suposto

propósito de eliminar informação considerada ser mentirosa aos olhos do

censor. É igualmente verdade que o direito de disseminar informações e ideias

não pode ser invocado para justificar a implantação de monopólios públicos ou

privados dos meios de comunicação com o propósito de moldar a opinião

pública pela expressão de apenas um ponto de vista”. (IACHR, 2010, p. 6).

A rejeição à censura e à sobredeterminação do interesse privado (na disputa

pelo sentido de interesse público) organiza como o discurso do sistema interamericano

recomenda as práticas que possam dar as condições de possibilidade desse programa.

Por um lado, tenta-se conciliar a necessidade de limites à liberdade de expressão com

a rejeição à censura. Isso será feito pela legislação, pela limitação jurídica das

práticas de governo do Estado. Por outro, cria-se uma proteção especial ao livre fluxo

na circulação de informação de interesse público, uma necessidade para a gestão de

interesses. Essa proteção especial se concretiza pelo pluralismo informativo: do lado do

Estado, recomenda-se a transparência das práticas de governo, e do lado dos

governados, certa organização das condições de circulação das informações.

O programa de governo interamericano

Comecemos com a dimensão individual. A rejeição à censura em todas as suas

formas trata de interdições por motivos econômicos (como monopólios), atos de

violência e práticas de origem estatal. Para evitar tais interdições, o sistema

interamericano recomenda a normalização das práticas dos representantes do Estado

(juristas, legisladores, operadores de direito, enfim, o público-alvo do documento em

análise) para controlar a produção de qualquer discurso de limitação à liberdade – e de

maneira tal que nenhum dos regimes de verdade seja afetado. Trata-se de um

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procedimento de controle de produção de novos discursos, o qual Foucault chama de

disciplina14.

A disciplina determina as condições que uma determinada proposição deve

cumprir para entrar no campo do verdadeiro: estabelece de quais objetos se

deve falar, que instrumentos conceituais ou técnicas há que utilizar, em que

horizonte teórico deve inscrever-se. (CASTRO, 2009, p. 111).

A recomendação é proibir legalmente a censura prévia e incorporar certas

condições ao uso, sempre de caráter excepcional, de práticas de controle de conteúdo:

De acordo com a interpretação na jurisprudência do sistema interamericano, o

artigo 13.2 da Convenção requer que as três seguintes condições sejam

cumpridas de maneira a uma limitação à liberdade de expressão ser admissível:

(1) a limitação deve ter sido definida de maneira clara e precisa pela legislação,

no senso formal e material; (2) a limitação deve servir aos objetivos legítimos

autorizados pela Convenção; (3) a limitação deve ser necessária em uma

sociedade democrática para servir aos objetivos legítimos perseguidos,

estritamente proporcional ao objetivo perseguido e apropriada para servir tal

objetivo legítimo. (IACHR, 2010, p. 24).

Discursivamente, isso ocorre pela sensibilização de alguns gatilhos, significantes

vazios, que organizarão a defesa da liberdade de expressão. Ninguém deve ser

impedido de se expressar, os direitos humanos devem regular a expressão e interesses

não devem ser empecilho: censura prévia, discriminação e restrições “indiretas” são as

preocupações de um defensor da liberdade de expressão, que deverá ser vigilante ao

surgimento de discursos e práticas que permitam a análise prévia de um conteúdo, ou a

seleção de conteúdo a partir de sua origem identitária, ou ainda o uso restritivo de

tecnologias de informação. Para lidar com isso, a jurisprudência do sistema

interamericano elaborou um teste de três partes que organiza a produção do discurso

normativo. Para uma limitação à liberdade de expressão ser legítima, i.e. aceitável pelo

regime de verdade, precisa seguir a seguinte prescrição disciplinar (CASTRO, 2009, pp.

31-3):

14

Em Foucault, há dois usos para o termo disciplina, como explica Castro: “Um na ordem do saber (forma

discursiva de controle da produção de novos discursos) e outro na do poder (o conjunto de técnicas em

virtude das quais os sistemas de poder têm por objetivo e resultado a singularização dos indivíduos)”

(CASTRO, 2009, p. 110).

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36

1) As limitações não devem chegar à censura prévia, razão pela

qual elas devem ser determinadas apenas através da imposição

de responsabilidade subsequente e proporcional;

2) As limitações não podem ser discriminatórias ou produzir efeitos

discriminatórios;

3) As limitações não podem ser impostas por meios indiretos como

os proscritos pelo artigo 13.3 da Convenção Americana (abusos

privados e governamentais sobre a imprensa, as frequências de

radiodifusão ou sobre equipamento usado na disseminação de

informação ou outro meio que impeça a comunicação e circulação

de ideias e opiniões).

A estratégia de afastar a censura pelo controle interno das práticas estatais

proíbe o Estado de ser um censor e o impele a governar as condições que permitam o

surgimento de “abusos”. A lista de recomendações ao Estado é significativa. O regime

interamericano recomenda que os agentes estatais sejam abertos e compreensivos a

críticas e garantam um ambiente sem práticas dissuasórias à expressão – sem

intimidação, agressão, perseguição, homicídio etc., com um sistema judiciário célere,

independente e consciente de direitos. Qualquer reparação (nunca punição) por um ato

comunicativo ocorre a posteriori, levando em conta seu contexto, por meio de uma corte

não criminal que toma decisões de forma proporcional, a partir de leis claras e precisas,

compatíveis com os direitos humanos e necessárias para uma democracia funcional.

Tal responsabilidade deve ser atribuída em nome do respeito pelos direitos e

reputações de outros ou da proteção da segurança nacional, ordem pública ou a moral

e saúde públicas, o que inclui uma proteção especial para crianças e adolescentes e a

rejeição à propaganda de guerra e à discriminação em todas as suas formas.

Essa descrição do Estado de Direito ideal do sistema interamericano indica o

modo de fazer a liberdade de expressão funcionar a partir das relações jurídicas que

governam a prática dos representantes do Estado, como gestores, legisladores e juízes.

Mas essas recomendações trazem poucos elementos alheios a uma organização dos

poderes oficiais. Como a liberdade de expressão funciona na sociedade? Se o Estado

está contido e organizado para não haver incidências indevidas sobre o direito

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individual, na dimensão coletiva, como os sujeitos desse direito se organizam, segundo

o sistema regional de direitos humanos?

A tecnologia de segurança interamericana

O discurso constitutivo do debate público recomendado pelo sistema

interamericano é de ameaça. A dimensão coletiva da liberdade de expressão é a

democracia, e o que o documento em análise nos ensina sobre a democracia? Sua

ordem é diferenciada da autoritária pela gestão de interesses: há uma lógica de

equivalência que estende o antagonismo “democracia e autoritarismo” ao antagonismo

entre “interesse público e interesse particular”. A necessidade de vigilância ao interesse

particular é um alerta constante, e o sistema interamericano apresenta algumas

tecnologias que promovem a regularidade dessa necessidade nas práticas dos sujeitos.

A gestão de interesses exige a livre circulação de informações de interesse público para

a alimentação de alguns mecanismos de controle: informar a opinião pública e

possibilitar o controle social sobre o governo. Para haver a produção sistemática desses

discursos informativos, é preciso de técnicas que incorporem tal programa vigilante nas

práticas sociais. E há um conjunto de práticas sociais que conquista a posição de

necessidade democrática precisamente pela capacidade de produzir de forma

sistemática discursos para informar a opinião pública, expor o governo e atribuir

responsabilidades.

Jornalismo, no contexto de uma sociedade democrática, é uma das mais

importantes manifestações da liberdade de expressão e informação. O trabalho

de jornalistas e as atividades da imprensa são elementos fundamentais para o

funcionamento de democracias, já que jornalistas e os meios de comunicação

mantêm a sociedade informada de eventos e suas variadas interpretações –

uma condição necessária para o debate público ser robusto, informado e

vigoroso. É também claro que uma imprensa crítica e independente é elemento

fundamental para a efetividade de outras liberdades em um sistema

democrático. (IACHR, 2010, pp. 59-60).

Agora, o sistema interamericano não está mais no campo da limitação interna

das práticas estatais e passa a organizar as necessidades da população do território,

que precisa de sujeitos treinados em uma técnica de articulação discursiva da realidade

chamada jornalismo. Se a censura estatal foi contida pelo programa normalizante das

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práticas dos governantes, a vigilância sobre as outras ameaças sociais à ordem

democrática será feita por uma tecnologia de segurança, aquela prática social regular

que realiza a estratégia de segurança da democracia recomendada pelo sistema

regional. Mas a prática regular do discurso jornalístico não é o bastante, porque o

próprio território deve manter certa organização de seus recursos para que a imprensa

satisfaça as necessidades de uma democracia. Para que a vigilância de interesses e

sua gestão de riscos funcionem da maneira recomendada, ou seja, alimentando os

mecanismos de controle citados acima (a opinião pública, as instâncias de controle

cidadão), certas condições se fazem necessárias.

A liberdade de expressão exige certas condições a respeito do funcionamento

dos meios de comunicação, de maneira que “tal mídia possa, na prática, ser

instrumento verdadeiro dessa liberdade e não veículo para sua restrição”15

, já

que a mídia serve para por o exercício desse direito na prática. “Isso significa

que as condições de seu uso devem se conformar às necessidades dessa

liberdade”. Essas condições incluem, entre outras: (a) pluralidade da mídia; (b)

a aplicação de lei antimonopólio nesse campo, de forma a impedir a

concentração de meios, em qualquer forma – o Princípio 12 da Declaração de

Princípios sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana

estabelece nesse respeito que “[m]onopólios ou oligopólios na propriedade e

controle dos meios de comunicação devem estar sujeitos a leis antitruste, já que

conspiram contra a democracia ao limitar a pluralidade e diversidade que

garantem às pessoas o exercício pleno do direito à informação” – e (c) a

garantia de proteção à liberdade e independência dos jornalistas que trabalham

para os meios. Também foi reconhecido que a liberdade de expressão “exige,

em princípio, que os meios de comunicação sejam potencialmente abertos a

todos sem discriminação ou, mais precisamente, que não haja indivíduos ou

grupos que estejam excluídos do acesso a tais meios”. (IACHR, 2010, pp. 71-2).

15

Todos os apud se referem originalmente a “I/A Court H.R. Compulsory Membership in an Association

Prescribed by Law for the Practice of Journalism (Arts. 13 and 29 American Convention on Human

Rights). Advisory Opinion OC-5/85 of November 13, 1985. Series A No. 5, para. 4”.

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39

Verifica-se nesse trecho que o jornalismo, essa necessidade tecnológica16 que

protege a democracia de suas ameaças, carrega dentro de si a potencialidade de

produzir seu inverso: se as condições de liberdade na enunciação não forem instituídas,

a mídia pode ser “veículo para sua restrição”. O jornalismo como tecnologia de

segurança da democracia precisaria estar entranhado a uma rede de relações para

produzir a liberdade que o sistema interamericano propõe. Considerado um bastião

contra as ameaças à democracia pelo sistema interamericano, o jornalismo consiste de

discursos que separam o interesse público do privado no espaço social, mas é uma

prática exercida sobretudo em posições privadas de enunciação. A pluralidade, a livre

competição (contrário do monopólio) e a independência do comunicador – as condições

para o bom funcionamento da vigilância que permite a gestão de riscos, que remetem à

tradição utilitarista do liberalismo – compensariam essa característica ao permitir uma

disputa aberta e igualitária pelo significante vazio em debate público, mas sem tais

condições essa rede estratégia para a democracia pode entrar em crise e deixar de

“produzir liberdade”.

Essa crise surge da constituição do debate público a partir da solução da

tradição utilitarista do liberalismo para o antagonismo entre público e privado, com a

noção de independência dos governados. A produção dessa independência é feita pela

gestão e vigilância de interesses, que fundamentam a própria razão de existência da

imprensa. O sistema interamericano reforça esse papel ao atribuir a discursos de

interesse público uma proteção especial.

Embora seja verdade que todas as formas de expressão sejam protegidas em

princípio pela liberdade garantida no artigo 13 da Convenção, existem certos

tipos de discurso que recebem proteção especial por sua importância ao

exercício de outros direitos humanos, ou à consolidação, funcionamento

adequado e preservação da democracia. Na jurisprudência do sistema

interamericano, os tipos de discurso especialmente protegido são os três

seguintes: (a) discurso político e discurso envolvendo matérias de interesse

público; (b) discurso relativo a agentes públicos no exercício de suas funções e

16

Por tecnológico se entende aqui não os instrumentos de comunicação e informação que ampliam as

capacidades humanas, mas especificamente o discurso jornalístico voltado para a busca regular e

sistemática de racionalidades voltadas para fins interessados.

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candidatos a cargo público; e (c) discurso que seja elemento de dignidade

pessoal ou identitária da pessoa que se expressa. (IACHR, 2010, p. 11).

Se a censura e o autoritarismo no Estado são contidos por uma disciplina jurídica

que normaliza suas práticas, a população de um território terá suas práticas

normalizadas para a democracia liberal a partir de um dispositivo disciplinar: uma

imprensa privada e competitiva que busca discursivamente o interesse público,

protegida especialmente por um discurso jurídico de liberdade de expressão. E, como

um dispositivo liberógeno, nos termos de Foucault (2008, pp. 92-3), está sempre em

risco e está sempre exposto à possibilidade de uma “crise de governamentalidade”.

Assim, a segurança da democracia recomendada pelo sistema interamericano

conta com a vigilância normalizadora de um dispositivo disciplinar: a imprensa, que

vigia interesses com a técnica jornalística para haver a possibilidade de uma gestão

desses interesses. No entanto, qualquer configuração na economia política da

comunicação alheia à recomendável pelo sistema interamericano trará a possibilidade

de um interesse privado se impor na gestão de riscos da sociedade. Essa

sobredeterminação provoca uma crise de governamentalidade porque a imprensa deixa

de ter um papel de vigilância para assumir a própria gestão dos interesses, ela passa a

ditar “o equilíbrio entre interesses em jogo e a necessidade de preservar o objeto e os

objetivos da Convenção Americana” (IACHR, 2010, p. 21).

Ao consistir de uma rede de sujeitos que ocupam uma posição estratégica na

comunicação social, aquela que controla17 os recursos tecnológicos coletivos de acesso

à disputa pelo que será determinado como interesse público (antenas, prensas), esse

dispositivo tem o poder de selecionar quais interesses terão visibilidade em sua

“missão” de informar a opinião pública, fiscalizar o governo e atribuir responsabilidades.

A gestão por essa seleção autointeressada (pois privada e competitiva) na visibilidade

de ações interessadas e ameaçadoras não se limita a uma dimensão racional,

conquistando outra emocional, com a disseminação da cultura do medo e do perigo. É o

17

Vale salientar que esse controle não diminui sua relevância social com o surgimento da Internet. Basta

lembrar que os portais de notícias mais acessados na Internet são os dos meios de comunicação que

detêm o controle dessas tecnologias analógicas. Ver em

<http://www.meioemensagem.com.br/home/midia/noticias/2013/03/11/R7-passa-terra-no-ranking-dos-

portais.html>. Acesso em: 25 jul. 2013.

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cerne dessa estratégia de segurança. Ao buscar o interesse de qualquer natureza, do

de movimentos sociais ao seu próprio, a imprensa interpreta intenções de ameaça e as

encontra em algum momento de sua vigilância seletiva, multiplicando as possibilidades

de perigo no mundo democrático. O “equilíbrio” de interesses ganha uma dimensão

emocional, não uma que revela os sofrimentos da condição humana, mas uma que

explora os perigos dessa condição.

Ao recomendar um debate público vigilante a interesses, além de limitar o bom

funcionamento de seu dispositivo a certas condições ideais, o sistema interamericano

abre a possibilidade da submissão de objetos e sujeitos de interesse público à lógica da

equivalência. A democracia é a negação discursiva do autoritarismo, assim como o

interesse público é a negação do interesse particular e vice-versa. Uma imprensa

voltada para ameaças à democracia corre o risco de produzir sistematicamente

discursos com oposições organizadas por uma lógica inconciliável: a tecnologia que

movimenta o debate público é produtora de antagonismos.

O procedimento discursivo pode ser ainda aquele dos dispositivos de segurança.

Dispositivos de segurança miram naquilo que ainda não aconteceu. Como

resultado, estratégias de segurança operam como uma gestão de „séries

abertas que só podem ser controladas por uma estimativa de probabilidades‟.

Seguindo Foucault, ameaças à liberdade na economia de segurança assumem

a forma de eventos imprevisíveis e incertos que podem nunca acontecer, mas

são sempre possíveis. (WICHUM, 2013, p. 167).

A estratégia de segurança democrática sugerida pelo sistema interamericano é a

vigilância sobre algumas ameaças à liberdade de informação, que devem ser

controladas. Esse controle é exercido pela produção de discursos que organizam o

presente a partir da possibilidade negativa e antagônica que um risco representa para o

futuro incerto. Na criação de um conflito inconciliável, portanto, não há necessidade da

existência real do sujeito ou objeto antagônico à sociedade democrática: basta sua

existência simbólica. O monstro da censura ou intenções autoritárias podem povoar o

imaginário sem haver uma expressão material correspondente, em prol da manutenção

de certa cultura do perigo. A questão que se apresenta é se um discurso de liberdade

de expressão pode produzir menos perigos à democracia e mais práticas democráticas

para o imaginário coletivo.

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Não se trata aqui de condenar uma imprensa que exponha antagonismos sociais,

mas de posicionar criticamente aquela que os produz. Algo ainda mais preocupante se

dá quando as condições para seu bom funcionamento são restritas e, quando não

satisfeitas, trazem a possibilidade de produção sistemática do inverso do interesse

público. A massificação tecnológica promovida pela Internet pode multiplicar os sujeitos

no debate público, mas não incide sobre a cultura política de uma democracia de se

pautar pela busca jornalística pelo interesse público.

Mas existe ainda outra problemática relacionada à constituição da liberdade de

expressão a partir do referencial do interesse público.

O controle da expressão pelo interesse

Pela análise das recomendações do sistema interamericano de liberdade de

expressão, percebe-se a preocupação de impedir a interdição das expressões humanas

por parte do Estado, disciplinando legalmente seus representantes, e por parte do

mercado, com a pluralidade, competição e independência dos comunicadores treinados

para a democracia, os chamados jornalistas. No caso do agente público, disciplina-se,

pelo saber-poder jurídico, a produção de práticas que possam controlar conteúdo, de

modo a evitar a censura prévia, a discriminação e outras restrições. Para a imprensa,

dadas as condições ditadas pela economia política, o controle se faz não por técnicas

de poder, mas no saber, na ordem discursiva. A imprensa recomendada pelo sistema

interamericano articula-se discursivamente em termos de interesse, implicando em um

sujeito-jornalista que observa o mundo em busca de uma racionalidade voltada para

fins interessados.

Mas a importância da categoria „interesse‟ não recai apenas sobre o controle que

isso implica na produção do discurso jornalístico, pois o sistema interamericano inclui o

discurso de interesse público no rol de conteúdos com proteção especial. Esse status

fundamenta direitos humanos desdobrados da liberdade de expressão, como o direito

de acesso à informação pública: a transparência governamental é obrigatória quando

alguma autoridade oficial detiver documentos ou informações consideradas de

interesse público. Percebe-se, assim, que a categoria interesse tem certo protagonismo

na forma pela qual pensamos a circulação das expressões humanas. Não as

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divulgamos porque são belas ou por alguma sabedoria imbuída ou ainda pelo mero

respeito ao enunciador, mas porque respondem a fins interessados.

Enquanto o sistema interamericano está preocupado com a configuração da

economia política nos territórios de sua região, outro tipo de oligopólio invade a ordem

do discurso, selecionando o saber não pelo controle das tecnologias de informação mas

por um procedimento jurídico que cria o que Foucault chama de sociedades de discurso,

“cuja função é conservar ou produzir discursos, mas para fazê-los circular em um

espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras estritas, sem que seus

detentores sejam despossuídos por essa distribuição” (FOUCAULT, 2008a, p. 39).

Trata-se aqui da propriedade intelectual.

As consequências do ato de fundamentar a liberdade de expressão a partir do

saber liberal ultrapassam a cultura de perigo dos empresários de comunicação perante

algum fenômeno que sensibilize seus interesses, como uma conferência de

comunicação. O fundamento dessa liberdade a partir dos fins a que uma informação

atende fixa a legitimidade da formulação de que é o interesse que regula a expressão

humana. E, se assim for, o interesse público dita sua circulação, enquanto o interesse

privado dita sua restrição. A propriedade intelectual é uma consequência lógica e

necessária da fundamentação liberal da liberdade de expressão. A regulação do saber

em nossas sociedades atende à democracia desde que compreendida nos termos das

necessidades da economia política: a gestão de interesses.

Se compramos um DVD em um continente com a expectativa de assisti-lo em

outro, descobrimos que existem regiões onde aquela produção pode ser acessada e

outras onde nenhum aparelho de DVD conseguirá lê-lo com as configurações de fábrica.

Um saber na forma de medicamento só chegará a salvar vidas se houver uma

negociação com o detentor de sua patente. A propriedade de um sample pode impedir

que músicos remixem e produzam cultura. A liberdade de pesquisar uma molécula de

proteína pode ser restrita se houver muitos direitos em torno de seu uso. Direitos de

marca restringem sátiras e apropriação cultural de bens simbólicos. O fornecimento de

sementes geneticamente modificadas para produzirem plantas estéreis indica uma era

de controle sobre a produção de alimentos por uma empresa. Recursos educacionais

deixam de cumprir seu propósito quando circunscritos por direitos de cópia. Práticas

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tradicionais são ressignificadas quando objeto de interesse por uma empresa. Essas

são algumas das consequências de se pensar a expressão humana a partir do

interesse, a partir do liberalismo.

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Capítulo 2

A imprensa e a Confecom

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Este capítulo examina a cobertura da 1ª Conferência Nacional de Comunicação

na imprensa brasileira. Foram coletadas notícias sobre a conferência ao longo de

dezembro de 2009, mês em que sua etapa nacional (nos dias 14 a 17) ocorreu em

Brasília. Por meio da teoria política do discurso de Laclau e Mouffe, analisa-se como os

jornais de circulação nacional Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo

associaram saberes ao evento para fixar sentidos.

Segundo David Howarth e Yannis Stavrakakis (2000, pp. 1-16), a teoria

discursiva de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe está voltada para a análise de temas

políticos e investiga a maneira pela qual práticas sociais constituem as identidades de

sujeitos e objetos. Salienta-se que tais identidades são sempre contingentes, parciais,

pois a prática articulatória acontece em um ambiente de disputa e jamais conseguirá

totalizar o significante. Nessa perspectiva, fixações de sentido sobre tal significante são

possíveis e necessárias para a criação de identidades, que emergem da articulação de

elementos significantes disponíveis no campo discursivo. A fixação desses elementos

se faz possível pelos pontos nodais, pontos de referência em um discurso que ligam

uma cadeia de significados, na qual se pode verificar a posição do sujeito e o papel

atribuído a tal sujeito na estrutura discursiva.

No ambiente conflituoso de formação e totalização de discursos (e consequentes

identidades), Laclau e Mouffe apontam para o antagonismo social. Essa relação social

acontece quando uma identidade é contestada por fora ou no limite da ordem discursiva

que a constitui. A presença de um Outro, e sua ordem discursiva antagônica, impede a

estabilização da identidade e dos sentidos sociais, produzindo uma negatividade

inconciliável na relação social.

Isso dado, a tarefa do analista de discurso é explorar as diferentes formas

dessa impossibilidade, e os mecanismos pelos quais o bloqueio de identidade é

construído em termos antagônicos por agentes sociais18

(HOWARTH;

STAVRAKAKIS, 2000, p. 10).

A construção de hegemonia busca estabilizar sentidos frente a esse cenário de

disputa política. A prática hegemônica articula diferentes identidades e posições de

sujeitos em prol de um projeto comum, uma ordem social específica. A prática em prol

desse projeto deve enfrentar a impossibilidade de fechamento dos sentidos sociais, 18

Tradução nossa.

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sempre contingentes, mas essa estabilização imperfeita dos sentidos é o bastante para

possibilitar a agência política. As práticas hegemônicas ocorrem sob duas condições: a

existência de forças antagônicas e a instabilidade das fronteiras políticas que as

separam, já que um mesmo elemento pode ser articulado por projetos políticos opostos

(LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 136).

Apenas a presença de uma vasta área de elementos flutuantes e a

possibilidade de sua articulação em campos opostos – o que implica na

redefinição constante desses elementos – é o que constitui o terreno que nos

permite definir uma prática como hegemônica. Sem equivalência e sem

fronteiras é impossível falar estritamente de hegemonia (LACLAU; MOUFFE,

2001, p. 136).

Tais considerações são de extrema importância na reflexão sobre um debate

público democrático, em que se pretende que ocorra a disputa de projetos políticos.

Segundo Chantal Mouffe, em The Democractic Paradox (2009 [2000]), um “espaço

simbólico comum” é necessário para que identidades antagônicas de coexistência

instável possam se articular. Ao reconhecerem-se como adversários que ocupam o

mesmo espaço simbólico, mas discordam em como organizá-lo, um “pluralismo

agônico” pode surgir (MOUFFE, 2009, pp. 101-3). Não se trata de afirmar que todo

antagonismo pode ser superado por um compartilhamento simbólico, apenas que sem

isso uma superação não-hostil não será uma opção visível. Se a imprensa é a

articuladora do espaço simbólico da democracia liberal, uma análise do corpus permite

identificar em que bases esses conflitos estão sendo apresentados e se esse pluralismo

é uma possibilidade.

Para apreender esse espaço simbólico, buscam-se os regimes de visibilidade e

os contratos de comunicação com os quais os jornais trabalham. Segundo Prado

(2011), um regime de visibilidade é um “conjunto de imagens/signos funcionando como

um imaginário de pertença social, em que os públicos (...) se identificam na partilha do

sensível”. Esse espaço comum entre os diferentes públicos permite a circulação de

valores, o que privilegia alguns temas e figuras e invisibiliza outros. Já o contrato de

comunicação é uma proposição performativa que o enunciador faz ao enunciatário:

“Essa proposição é feita na forma de um contrato comunicacional implícito, em que o

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enunciador apresenta razões para suas declarações e ilustra-as com narrativas

modalizadoras, ancoradas em dados, infográficos, imagens etc” (AIDAR, 2011).

O Estado de S. Paulo

Para determinar o contrato de comunicação que o jornal O Estado de S. Paulo

desenvolveu com seus leitores ao visibilizar a 1ª Conferência Nacional de

Comunicação, esta análise buscou entender qual foi a relação da conferência com os

saberes invocados em sua apresentação. A primeira matéria no mês, “Conferência de

Comunicação quer recriar cabides estatais de emprego” (DOMINGOS, 2009), anunciou

em seu primeiro parágrafo alguns desses saberes:

A 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), que começa amanhã,

em Brasília, vai juntar, numa mesma assembleia, propostas polêmicas –

controle social sobre a mídia, recriação de estatais extintas há quase 20 anos,

como a Embrafilme – e reivindicações puramente corporativistas, como a

tentativa de recriar velhos cabides de emprego. (DOMINGOS, 2009)

Ao posicionar a conferência em relação a propostas polêmicas e reivindicações

motivadas por interesses particulares, o Estado convocou seu leitor a assumir uma

postura contrária, de desconfiança e oposição ao evento, complementada por dados

sobre os gastos públicos necessários para sua realização. Essa apresentação da

Confecom foi acompanhada da nota “Seis entidades abandonam evento” (DOMINGOS,

2009), que informou os leitores da decisão de alguns grupos de comunicação de se

retirar do processo conferencial, decisão que se torna referência de oposição ao que

representaria a Confecom. A nota apresentou como as entidades fundamentaram sua

saída:

Ao comunicar sua saída, as empresas emitiram nota conjunta. Anunciaram ser defensoras

dos preceitos constitucionais da livre iniciativa, da liberdade de expressão, do direito à

informação e da legalidade. Afirmaram que até o princípio da livre iniciativa foi usado como

um obstáculo19

pelas outras entidades [da Comissão Organizadora Nacional] para a

19

O obstáculo mencionado se refere à refuta a reivindicações da Associação Brasileira de Emissoras de

Rádio e TV (ABERT) de definir previamente como os temas da conferência deveriam ser tratados, ou

seja, instituir posicionamentos já no regimento interno, um documento com fins procedimentais. Ver

capítulo sobre a conferência.

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confecção do estatuto da Confecom. Desse modo, decidiram sair para não atrapalhar a

realização da conferência. (DOMINGOS, 2009)

A nota mencionou também um “jogo marcado” contra as empresas por parte de

sindicalistas e ONGs, “aliados” do governo e o Outro do qual o jornal se diferencia com

a modalização negativa. Ao longo da cobertura do Estado, são os “preceitos

constitucionais” que organizam a disputa pela hegemonia na interpretação da

Conferência de Comunicação, que seria uma ameaça a tais princípios pela atuação

daqueles que a matéria “Governo tenta isolar radicais na Confecom” (DOMINGOS;

MORAES, 2009) chamou de “grupo radical” e a reportagem “Força de bloco pró-

estatização causou retirada de setor privado” (BRAMATTI, 2009) de “„movimentos de

base‟ – grupos que defendem maior intervenção estatal sobre a mídia”. Na rede de

equivalências articulada pelos princípios constitucionais, mídia e setor privado

compartilham o papel de identidades ameaçadas pelo “controle social da mídia”, termo

que homogeneíza a maioria das propostas de sindicalistas e de ONGs.

Entre os sindicatos, as ONGs e o PT, por exemplo, prevalece a ideia de pôr os

meios de comunicação sob controle público e social, uma velha tese dos

partidos de esquerda que vez por outra volta à agenda. Há teses que, se

aprovadas, vão exigir mudanças na Constituição, como a que cria o “tribunal de

mídia”, uma figura mais política do que jurídica. (ESTADO, 2009)

O maior obstáculo nas negociações entre empresários e organizações não-

governamentais era o apoio das últimas no chamado controle social sobre a

mídia. “Um controle desse tipo pressupõe uma mudança da Constituição, que

atualmente assegura a livre iniciativa”, afirmou [o presidente da ANER Roberto]

Muyalert. (BRAMATTI, 2009)

A maioria das teses do evento defende o controle social dos meios de

comunicação, com forte intervenção do setor público na iniciativa privada.

(DOMINGOS; MORAES, 2009)

Por outro lado, a cobertura associa a Conferência Nacional de Comunicação a

saberes que não antagonizam necessariamente preceitos constitucionais, embora por

vezes o façam, mas convocam o leitor a posicioná-la como expressão de interesses

particulares. A Confecom é, para o enunciador do Estado, o espaço simbólico onde

ocorrem reivindicações corporativistas, a criação de cabides de emprego, a busca pelos

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recursos da publicidade oficial e a blindagem dos movimentos sociais e dos

radiodifusores comunitários.

O ministério alegou, em uma de suas teses apresentadas à conferência, que o

retorno das delegacias facilitará a fiscalização das empresas de radiodifusão –

[delegacias] caracterizadas por dar empregos a apadrinhados políticos de quem

ocupa o poder em Brasília ou nos Estados (DOMINGOS, 2009).

Elas [rádios e TVs comunitárias] querem descriminalizar as emissoras piratas e

propõem inundar o País com canais de TVs públicos. (DOMINGOS, 2009)

O apelo por uma maior participação das mídias regionais e das TVs

comunitárias no bolo da propaganda do governo, feito pela maioria das

propostas apresentadas à 1ª Confecom, nem precisava ser levado ao encontro.

O governo já atende aos meios de comunicações regionais e passará a fazer

publicidade nas TVs comunitárias. (ESTADO, 2009a).

Significa que uma notícia sobre o MST, por exemplo, pode levar um veículo de

comunicação ao “tribunal de mídia” (ESTADO, 2009b).

Concebida por jornalistas vinculados a órgãos públicos, apoiada por

determinados setores do governo Lula e justificada com base em argumentos

corporativos e ideológicos, a proposta [do Conselho Federal de Jornalismo] foi,

desde o início, rechaçada pela sociedade civil (...) (ESTADO, 2009c).

Então, embora propostas envolvendo o controle social da mídia estivessem

associadas ao que o Estado chama de um “grupo radical”, mas não “majoritário”, o

debate conferencial foi visibilizado também como uma arena privilegiada de expressão

de interesses particulares. Criou-se, dessa maneira, duas identidades modalizadas

negativamente atuantes na Confecom: uma voltada para o controle social da mídia

(radicais) e outra voltada para a busca de seus interesses particulares. O enunciador

chega a isolar os grupos radicais como um grupo minoritário, mas os grupos de

interesse não deixam de agir em busca da “boquinha”. Não que o jornal não tenha

reconhecido nenhum momento em que o interesse público estivesse sendo buscado,

mas tais situações estariam associadas a algum preceito constitucional. Abaixo da

quebra de texto “Constituição”, leu-se:

A aliança entre governo, Central Única dos Trabalhadores, Força Sindical,

ONGs, como o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, e um

grupo de empresários do setor de radiodifusão (Bandeirantes e RedeTV) e das

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telefônicas, conseguiu tirar do foco o controle social da mídia, uma bandeira dos

grupos mais radicais.

Esse setor majoritário resolveu centrar suas teses na regulamentação dos

artigos da Constituição que tratam dos meios de comunicação. (ESTADO,

2009d).

A ideia de que há legitimidade no debate sobre comunicação numa perspectiva

constitucional também foi articulada no editorial publicado no dia seguinte à abertura da

conferência, “Os perigos da Confecom” (ESTADO, 2009e). O texto tratou dos

“antidemocráticos monopólios e oligopólios” na radiodifusão, proibidos pelo artigo 220

da Constituição Federal de 1988, fundamentando a importância do tema na ameaça à

liberdade de iniciativa e à diversidade de opiniões. Apesar disso, o editorial, como o

próprio título sugere, se desenvolveu em termos de ameaça antagônica: o “risco real e

presente” da Confecom consiste na possibilidade dos “inimigos” da liberdade de

imprensa instrumentalizarem-na para, por um lado, marcar uma “guinada autoritária” e,

por outro, justificar “intentos intervencionistas”. O enunciador incluiu ainda a presença

obscena de uma “esperteza corporativa” em prol de interesses particulares: a criação

de órgãos estatais de fomento ou fiscalização não passaria de “notórios cabides de

emprego”.

O tema do risco autoritário também foi articulado a partir da associação do

diploma de jornalistas e da lei de imprensa a instrumentos jurídicos criados durante a

ditadura militar derrubados pelo Supremo Tribunal Federal (ESTADO, 2009d.). As

propostas de um Observatório Nacional de Mídia e Direitos Humanos, apelidado de

“tribunal de mídia” e que monitoraria o “desrespeito aos direitos do cidadão”, e de um

Código de Ética do Jornalismo para garantir a “qualidade da informação veiculada”

“atacam diretamente os meios de comunicação” e podem “atingir profundamente a

liberdade de expressão” (ESTADO, 2009b). Na construção da perspectiva de ataques

autoritários, o enunciador incluiu atentados à livre iniciativa:

Uma delas propõe a criação de mecanismos de controle social e participação

popular em todos os processos de financiamento, obrigações fiscais e

trabalhistas das emissoras de rádio e TV, além de conteúdo da programação

(ESTADO, 2009b).

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Ao caracterizar aqueles de quem se diferencia, o enunciador do Estado constrói

uma identidade que antagoniza com a democracia e, como inimigo, deduz-se a

necessidade do extermínio das posições que constituem esse Outro ameaçador. Mas

em prol do quê? Ao circunscrever suas posições identitárias como preceitos absolutos,

a tradicional publicação da família Mesquita meramente espelha as posições “radicais”

que se articulam a partir de valores atemporais e independentes de contextos sociais,

teses que vez por outra voltam à agenda: livre iniciativa, liberdade de expressão, direito

à informação e legalidade são apresentadas como conquistas democráticas vítimas de

ataque autoritário ou interessado. A democracia, para o enunciador do Estado, é uma

totalidade constituída a partir de alguns princípios jurídicos que devem resistir a todas

as contingências. Com isso, o jornal acaba ignorando situações em que esses

princípios produzem o inverso a que se propõem e ignora as demandas de outros

movimentos sociais em termos de direitos.

Ao tratar a complacência com as emissoras piratas como interesse de criminosos

em busca de anistia, o enunciador Estado posiciona-se como se a legalidade

sobrepujasse os contextos sociais da comunicação: os saberes convocados pela

legalidade, como o Estado de Direito ou a segurança jurídica, modalizam

negativamente a prática daqueles comunicadores que começam a emitir sem outorga

formal, mas pouco contribuem para a compreensão das condições da liberdade de

expressão desse Outro que espera em média 10 anos pela resposta definitiva a um

pedido de concessão de radiodifusão (ARTIGO 19, 2013). Ao considerar a criação de

um Conselho de Jornalismo um controle indevido à atividade da imprensa, posiciona-se

como se a liberdade de expressão e informação bastasse para a formação de um

debate público autorregulado. Os saberes articulados pela liberdade de expressão,

como aqueles presentes no sistema interamericano de direitos humanos, alertam para

as ameaças representadas pelo interesse particular e o autoritarismo, mas não

interditam a reflexão e a agência social sobre como a prática jornalística incide ou

deveria incidir sobre a democracia. Ao se posicionar como se a livre iniciativa fosse a

própria promoção da liberdade de informação, contribui para a indistinção criada pela

defesa do interesse público a partir de uma posição privada. Certa responsabilidade

social corporativa pode manter o veículo de comunicação na busca pelo interesse

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público, mas a “indistinção” deve ser monitorada por mecanismos de transparência que

permitam distinguir influências diversas nessa busca pelo que é público. Argumenta-se

aqui, enfim, que o direito de defender seus valores em uma democracia pressupõe a

possibilidade de autorressignificação identitária. Caso contrário, há o risco de pôr em

funcionamento uma lógica de embate em que a assimetria de poder define o resultado,

não os argumentos, eclipsados por fundamentalismos; pela defesa de valores, ignoram-

se situações em que tais valores produzem o inverso a que se propõem, como os

exemplos demonstraram: a defesa da legalidade ignora que é a burocracia que induz a

práticas ilegais (no caso da criminalização das rádios), a defesa da liberdade de

expressão ignora práticas não democráticas na comunicação (no ataque ao conselho

de jornalismo), a defesa da livre iniciativa ignora quando o privado interfere na busca

discursiva pelo público (no caso da transparência das contas dos meios de

comunicação). Nessas ignorâncias do enunciador não há argumentos, mas aquilo que

foi excluído pelo sentido atribuído ao valor. Se, no entanto, buscamos uma democracia

inclusiva, o enunciador deveria permitir uma disputa inclusive pelos sentidos que o

constituem, possibilitando uma reinterpretação de sua própria identidade.

No domingo seguinte à etapa nacional da Conferência Nacional de

Comunicação, O Estado de S. Paulo publicou o editorial “O saldo da Confecom”

(ESTADO, 2009c). O balanço final foi que o governo deveria mandar todas as

propostas para a “lata do lixo”, uma posição que contraria a própria cobertura, que deu

espaço aos debates pautados pelos preceitos constitucionais. Os propósitos “dirigistas”

e o oportunismo em busca de “boquinhas” sintetizam o contrato de comunicação

instituído com o leitor, convocando-o para um enfrentamento em relação à Confecom.

Ao longo da cobertura, esse enfrentamento se referenciou pela Constituição e teve

espaço para identificá-la mesmo no espaço inimigo. A posição editorial que concluiu tal

cobertura, no entanto, não tratou do acúmulo de debate sobre a necessidade de

regulamentação dos artigos constitucionais sobre comunicação, mas da descrição de

um Outro perverso e descartável: “grupelhos políticos, corporações profissionais e

máquinas sindicais azeitadas à custa do dinheiro público”.

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Folha de S.Paulo

Os saberes associados à Conferência de Comunicação permitem à análise o

acesso ao contrato de comunicação que o jornal Folha de S.Paulo propôs a seus

leitores. O diário citou a Confecom em seis matérias, cinco delas com a conferência

diretamente em foco. Em dezembro, a pauta começou no dia de abertura da

conferência, com a apresentação de algumas propostas na agenda, e terminou com um

pequeno trecho em matéria sobre o encontro do presidente da República com

jornalistas sobre o ambiente político brasileiro, quatro dias depois do encerramento do

evento.

A Confecom foi apresentada como um evento que trata de temas que afetam as

empresas de comunicação, com impactos mais amplos na liberdade de expressão: da

influência de políticos e religiosos nas empresas de radiodifusão a propostas para a

publicidade. Assim, mesmo temas mais relacionados ao jornalismo independente ou a

reivindicações sociais foram incorporados à interpretação de que a conferência tinha

como alvo o funcionamento empresarial.

Na agenda do evento estão várias propostas contrárias às empresas de

radiodifusão, como o controle social sobre a mídia e a criação de horários

gratuitos nas TVs e rádios para os movimentos sindicais e sociais (LOBATOa,

2009).

Na pauta da Confecom estão propostas que afetam as empresas de

comunicação, como o controle social sobre a mídia, aumento de potência das

rádios comunitárias e proibição da propriedade cruzada de meios de

comunicação (LOBATO; ZANINI, 2009).

Participante ativo da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, o vice-

presidente da Rede Bandeirantes, Walter Vieira Ceneviva, discorda de que o

encontro tenha aprovado propostas que ameacem as empresas de

comunicação e a liberdade de imprensa (LOBATO, 2009b).

O privilégio à perspectiva empresarial também pôde ser verificado em matéria

sobre a clássica disputa da economia política entre empresários e sindicatos. A

reportagem “Sindicatos rejeitam redução de impostos sobre banda larga” (LOBATO,

2009c) posicionou os conferencistas não-empresariais contrariamente aos empresários

e, pela articulação dos saberes, ao interesse nacional.

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Todas as propostas para desoneração de taxas e tributos sobre telefonia e

banda larga foram rejeitadas por representantes de sindicatos, ONGs e

associações de rádios comunitárias no encerramento da primeira Conferência

Nacional de Comunicação, a Confecom, que não tem poder para impor

mudanças, mas recomendá-las.

Embora o Brasil tenha uma das maiores cargas tributárias sobre serviços de

telecomunicações no mundo (43%, em média, ou R$ 40 bilhões ao ano), a

proposta foi rejeitada porque a diminuição de impostos foi vista pelas entidades

como uma abertura para que as empresas embolsassem mais dinheiro

(LOBATO, 2009c).

A figura do Outro, de quem o diário se diferencia, aparece mais por sua agência,

a ameaça das propostas às empresas de comunicação, do que pela identidade que as

propôs: não se mencionaram quais sindicatos, organizações ou grupos participavam do

evento. Além da citação explícita acima, houve um registro dos delegados “indicados

por empresas, sindicatos e movimentos sociais e governo” (LOBATO, 2009a) e uma

menção na reportagem “Lula diz que defende imprensa livre, mas condena „excessos‟”

(LOBATO; ZANINI, 2009), novamente em uma modalização negativa:

O motivo da crise [a ameaça à abertura da Confecom] foi a mudança no

regimento feita, de manhã, por representantes dos movimentos sociais. Eles

decidiram que não haveria quórum qualificado para votação dos temas

sensíveis nos grupos de trabalho, mas apenas nas votações em plenário,

contrariando o acerto até então (LOBATO; ZANINI, 2009).

O enunciador da Folha constrói o Outro a partir do ponto de vista das entidades

empresariais participantes. Ao acompanhar sinteticamente a trajetória das duas

entidades empresariais (Abra e Telebrasil) que permaneceram na Confecom, a

reportagem “Sindicatos rejeitam redução de impostos sobre banda larga” (LOBATO,

2009c) informou que elas foram vaiadas, se aliaram contra os sindicatos, mas deixaram

passar propostas como descriminalização de “rádios piratas” e a proibição de aluguel

na grade de programação de emissoras. Por outro lado, apesar da pouca informação

sobre os participantes não-empresariais, houve registros recorrentes da ausência das

entidades representantes das empresas de comunicação, citando nomes e motivações

desses grupos.

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A representação do empresariado na conferência está prejudicada pela

ausência dos grandes meios de comunicação –seis das oito entidades

representantes das empresas do setor deixaram o evento (LOBATO, 2009a).

A ANJ e outras entidades empresariais se retiraram da discussão justamente

por conta da possibilidade de aprovação de teses restritivas à liberdade de

expressão (MATAIS, 2009).

O regimento exigira quórum de no mínimo 60% dos votos para aprovação dos

temas considerados sensíveis tanto pelos sindicalistas quanto pelas entidades

empresariais que participaram do evento: a Telebrasil, em nome das

companhias telefônicas, e a Abra, representante da RedeTV! e da Bandeirantes

(LOBATO, 2009c).

Além da Bandeirantes e da RedeTV!, as companhias telefônicas participaram

da Confecom, representando o segmento empresarial. Em agosto, seis das oito

entidades empresariais que integravam a comissão organizadora se afastaram

(LOBATO, 2009b).

No Outro construído pelo enunciador da Folha a partir de uma agência em

relação às empresas de comunicação é possível incluir a figura do presidente Luiz

Inácio Lula da Silva nas duas ocasiões em que apareceu associado à Confecom. Há

um padrão na apresentação da figura do presidente, que se estende ao governo:

primeiro apresenta-se a posição de Lula segundo ele próprio para depois contestar tal

posição com alguma informação. Em seu discurso de abertura do evento, louvou a

imprensa livre e se posicionou dizendo “conviver tranquilamente” mesmo perante

aquela que “despreza os fatos”. Para contestar tal tranquilidade, o jornal resgatou sua

ameaça de expulsão do país ao correspondente do The New York Times20 e uma

declaração de Lula sobre não ler jornal para não ficar com azia. Associa-se assim a

figura da Presidência a atos autoritários ou de desprezo em relação à imprensa,

sugerindo ao público uma posição de leitura quanto às declarações. Em conversa com

jornalistas, sob a quebra “Imprensa”, houve a segunda modalização:

20

O caso do correspondente se refere ao jornalista William Larry Rother Jr., que noticiou em 9 de maio

de 2004 que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva consumia excessivamente bebidas alcoolicas. No dia

12, o Diário Oficial da União publicou o cancelamento do visto temporário outorgado a Rother, que teria

de sair do país se não fosse um Habeas Corpus do Supremo Tribunal Federal. Até então, a última vez

que o Brasil havia expulsado um jornalista fora 1970. (ALMEIDA, 2004)

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Para o presidente, a liberdade de imprensa no país está sendo exercida como

jamais foi antes, ressaltando a importância da Confecom (Conferência Nacional

de Comunicação), realizada na semana passada em Brasília. A conferência, no

entanto, aprovou várias sugestões que propõem controle da mídia –no seu

programa de rádio, Lula as elogiou. (CABRAL, 2009)

Além de Lula, o oficialismo foi visibilizado pelo “presidente da comissão

organizadora” (MATAIS, 2009) e “consultor jurídico do Ministério das Comunicações”

(LOBATO, 2009b), Marcelo Bechara. Nas duas aparições textuais, Bechara esteve

posicionado exclusivamente negando a possibilidade de ameaça à liberdade de

expressão por parte das propostas da Confecom. A nota “Polêmica: Planalto diz que

não há tema tabu e que não teme discussão” (FOLHA, 2009a) posicionou o governo de

forma diferente. Ao invés de paráfrase ou citação de declarações voltadas para a

garantia da liberdade de expressão em meio a informações que as contrariam, a nota

trouxe uma oposição na qual contrasta o objetivo da conferência de discutir um marco

regulatório para o futuro e a ausência de veto por parte do governo de uma discussão

sobre o atual mapa de propriedade. Tal nota remete, embora não diga que o faça, à

posição de algumas entidades empresariais na saída da organização da Confecom,

quando defenderam uma conferência voltada apenas para temas futuros. Encerrou com

uma citação incendiária do ministro Franklin Martins: “Não adianta recusar-se a discutir,

sentar em cima do vulcão e achar que não vai explodir” (FOLHA, 2009a). Foi a única

apresentação do governo, no entanto, em postura de enfrentamento.

Em meio a um governo contraditório e a um Outro ameaçador ou em busca de

seus interesses, o contrato de comunicação apreensível das reportagens da Folha

privilegia o ponto de vista das entidades empresariais também no debate de temas

relacionados ao jornalismo: houve detalhamento e discussão de propostas apenas nos

posicionamentos do vice-presidente da Rede Bandeirantes, que defendeu o processo

conferencial sempre em resposta a uma ameaça: “tribunal de mídia”, “dezenas de

propostas na agenda da conferência que ameaçavam a imprensa”, o porquê de “não ter

se oposto à proposta de criação do Conselho Federal de Jornalismo” (LOBATO,

2009b). À figura do executivo que participou do processo são relacionados temas

relativos a interesses particulares (sindicais, rádios que buscam anistia) e a ameaças à

liberdade de imprensa.

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A Folha de S. Paulo orientou, assim, sua cobertura para visibilizar os interesses

sindicais, políticos, religiosos e de rádios “piratas” e as ameaças à imprensa em um

processo conferencial voltado para a reflexão das condições das empresas de

comunicação. Na disputa pela hegemonia da interpretação do que seria o interesse

público de preservação da independência e de liberdade da imprensa, o jornal assumiu

que a independência surge pela livre iniciativa empresarial, que não pode estar

submetida ao interesse de grupos religiosos ou a cargas tributárias abusivas; e a

liberdade pela ausência de controle ou influência político-sociais. Isso pôde ser

observado na declaração de Paulo Tonet, da ANJ, sobre o controle social da mídia: “É

o controle remoto e o jornal da banca. Fora disso é censura, e isso eu não quero mais.”

(MATAIS, 2009). Esse argumento do representante empresarial é econômico: o poder

social sobre a imprensa vem da escolha no consumo – fortalecer ou enfraquecer um

meio de comunicação só é aceitável, na posição da ANJ, no ato de compra ou consumo

ou não de um produto midiático. Se tal poder de consumo, e nada “fora disso”, é o

único controle passível de reflexão, então para que serviria a conferência? Confirmando

a posição de sua cobertura, a publicação da família Frias reproduz o discurso das

entidades empresariais que se retiraram do processo:

O evento discutirá um novo marco regulatório para o setor, tendo em vista as

novas mídias no país. Lula não escondeu o entusiasmo com as novas mídias,

principalmente a internet. “Leitores mais ativos ou grupos de pressão passaram

a formar redes horizontais, trocando opiniões, descobrindo pontos de contato,

firmando convicções, tornando-se mais críticos e menos passivos”, disse

(LOBATO, 2009c).

A interatividade da internet como justificativa para a falta de necessidade de

reflexão sobre as práticas de comunicação analógicas inverte, de certa maneira, a

racionalidade que aterroriza o presente a partir de uma ameaça futura. A expectativa de

futuro tecnológico brilhante também manipula decisões no presente.

O Globo

O diário O Globo fez parcimoniosa cobertura sobre a 1ª Conferência Nacional de

Comunicação: dois artigos de Opinião, um editorial e três reportagens, com o auxílio de

um infográfico, uma nota e uma chamada de capa. Apesar dos artigos serem

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assinados, por Rodrigo Constantino (2009) e João Ubaldo Ribeiro (2009), parecem

partilhar o contrato de comunicação que o jornal construiu com seu leitor, articulando

saberes semelhantes na modalização negativa da Confecom. O evento foi associado a

uma iniciativa da União voltada para o debate sobre “a produção e distribuição de

informações jornalísticas e culturais no país” (CARVALHO, 2009a), mas com a pauta do

controle social da mídia sempre como uma possibilidade, afinal confirmada na última

reportagem, “Confecom aprova medidas restritivas ao jornalismo” (CARVALHO, 2009b).

Foi recorrente nas três reportagens a associação dos participantes da conferência ao

governo.

No fórum, convocado pelo governo federal, serão debatidas propostas da

União, das empresas do setor e da sociedade civil (...).

Do lado da sociedade, com apoio da União, há forte pressão para o

fortalecimento de TVs comunitárias e veículos de pequenos porte, por exemplo

com a destinação obrigatória de um terço da verba publicitária oficial.

(CARVALHO, 2009a)

Além do presidente Lula, discursaram (sic) na abertura da Confecom o ministro

das Comunicações, Hélio Costa, que chegou a ser vaiado pela plateia formada

por representantes de movimentos sociais, empresários e setor público. Hélio

Costa destacou a importância do encontro convocado pelo governo (...).

(WEBER, 2009)

Participaram do encontro 1.500 delegados indicados pelo governo, por

sindicatos, por empresas de telecomunicações e pelas TV Bandeirantes e Rede

TV. (CARVALHO, 2009b)

Os participantes da Conferência de Comunicação, empresários ou não, foram,

dessa maneira, visibilizados como um grupo selecionado e restrito. Apesar de não se

confundirem com o governo, que às vezes é vaiado, às vezes os apoia, os

conferencistas só existem em tal identidade por uma iniciativa da União de reuni-los em

debate. A restrição combinada a propostas de controle social convoca o leitor a, no

mínimo, um estranhamento perante o discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva,

que faz um compromisso “sagrado” a favor da liberdade de imprensa (WEBER, 2009):

por que um compromisso desses se convocara um evento que o contradiz? A

homogeneização dos participantes como um grupo restrito também esteve presente no

artigo de João Ubaldo Ribeiro:

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Agora mesmo acaba de se encerrar uma tal Conferência Nacional de

Comunicação, onde, segundo me contam, houve um festival de asnices e

intenções duvidosas digno da ala de extrema esquerda de um grêmio infanto-

juvenil norte-coreano. (RIBEIRO, 2009)

Condescendência semelhante foi registrada em editorial:

Há uma expressão em inglês (wishful thinking) para designar propostas, ideias

desenvolvidas sem maiores compromissos com a realidade.

Uma visão benevolente pode encarar a Confecom como um grande wishful

thinking em que grupos de esquerda, corporações sindicais, ONGs, movimentos

ditos sociais e similares desenharam o seu país ideal, na tentativa de influenciar

a sociedade.

É parte do jogo democrático. (GLOBO, 2009)

Na disputa pela hegemonia da interpretação da Confecom, O Globo reconheceu

o Outro-conferencista nos termos do direito que tem de defender seus interesses, mas

posicionou seu saber em algum lugar fora da realidade. Um saber previsível pela

identidade que o originou e que já vinha sendo alvo de ressalva por “atores

importantes” (WEBER, 2009):

As associações Nacional de Jornais (ANJ) e Brasileira de Empresas de Rádio e

Televisão (Abert), entre outras entidades que representam rádios, jornais,

revistas e emissoras de TV, não vão participar da conferência. Seus dirigentes

temem que parte das propostas do encontro relacionadas a suposto controle

social dos meios de comunicação resulte na criação de mecanismos de censura

ou de inibição da liberdade de imprensa (CARVALHO, 2009a).

A Associação Nacional de Jornais (ANJ) e a Associação Brasileira de Rádio e

Televisão (Abert), entre outras entidades que representam a maioria das

emissoras de rádio, TV, os jornais e as revistas do país, decidiram, há quatro

meses, não participar do encontro por considerar que a conferência teria caráter

de cerceamento da liberdade de imprensa e da livre iniciativa no setor.

(CARVALHO, 2009b)

Essa previsibilidade deu o título do editorial, “Cartas marcadas”, que tratou dos

debates sobre o regimento interno, documento procedimental e não temático, da

seguinte maneira:

Quando duas entidades representativas do jornalismo profissional, a ANJ

(Associação Nacional de Jornais) e Abert (rádios e TVs), condicionaram a

participação na Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) à retirada

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do temário do encontro de qualquer proposta contrária à Constituição, e

receberam uma resposta negativa, o destino da reunião estava traçado.

Encerrada ontem, a Confecom, como previsto, aprovou propostas que vão

contra a liberdade de imprensa e expressão, procuram intervir nas redações e

criar obstáculos à ação da iniciativa privada nos meios de comunicação

(GLOBO, 2009).

A visibilidade da conferência em termos de atentado à liberdade de imprensa

chegou a ganhar uma chamada de capa da edição de 18 de dezembro de 2009 e foi

construída nos textos pela seleção das propostas e pela negativa de que essa seria a

intenção pelas aspas de representantes do governo ou de participantes e

organizadores da conferência. Os artigos e o editorial contextualizam essa intenção a

partir da situação da imprensa na América Latina. O artigo de Rodrigo Constantino

confundiu esse contexto e o brasileiro:

Na América Latina, a liberdade de imprensa está cada vez mais ameaçada.

Cuba representa a situação extrema, onde a distopia “1984”, de George Orwell,

tornou-se realidade. (...) A Venezuela de Chávez caminha a passos largos

nessa direção. Na Argentina, o casal K vem desferindo duros golpes aos

principais veículos de imprensa. E no Brasil, desde a tentativa fracassada de

controle através do Conselho Nacional de Jornalismo, o governo não desistiu

do sonho de amordaçar a imprensa.

Eis o contexto da Conferência Nacional de Comunicações (...).

(CONSTANTINO, 2009)

O editorial, no entanto, diferenciou o Brasil desse contexto e manteve o

isolamento do grupo participante da conferência:

Ovos de serpentes como estes podem ressurgir apenas como expressão da

vontade de grupos políticos organizados.

Mas há na realidade atual da América latina projetos idênticos em curso,

também surgidos de conferências com tinturas democráticas, com delegados

escolhidos nos votos por máquinas sindicais e políticas bem azeitadas, que têm

produzidos resultados concretos preocupantes. (...) No Brasil, as instituições

são fortes e sólidas o suficiente para defender a liberdade de imprensa e

expressão, bases da democracia (GLOBO, 2009).

O Globo, dessa maneira, não considerou a Confecom uma ameaça real à

democracia, articulando declarações de autoridades como garantias institucionais de

que suas “bases” não seriam afetadas. Como a ANJ e a Abert, que abandonaram o

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processo conferencial, o jornal da família Marinho optou pela atribuição de

insignificância ao evento, um espaço em que delírios esquerdistas poderiam se

expressar sem maiores consequências. Apesar disso, reiterou um evento “convocado

pelo governo” com um grupo selecionado, convocando seu leitor a, pelo menos, manter

uma suspeita perante o governo.

Uma doutrina jornalística

As referências ao autoritarismo, à censura, à atuação de interesses particulares

na definição da ordem democrática e à necessidade de independência em relação ao

governo levam esta análise a retornar ao discurso de direitos humanos que trata das

funções do debate público em uma democracia. As recomendações do sistema

interamericano de liberdade de expressão organizam o debate público democrático a

partir da rejeição à censura e ao autoritarismo. Ao determinar uma proteção especial a

informações de interesse público, o discurso coloca a imprensa na gestão de riscos da

sociedade política pela vigilância dos interesses particulares que possam interditar o

acesso ao debate e subverter a ordem democrática, compreendida como uma condição

que permita o exercício dos direitos humanos.

Segundo Michel Foucault (apud CASTRO, 2004, p. 423), toda sociedade tem

uma “política geral da verdade”, na qual seleciona os tipos de discurso que ela aceita e

faz funcionar como verdadeiros; institui mecanismos e instâncias que permitam

distinguir e sancionar os enunciados verdadeiros ou falsos; e estabelece o estatuto

daqueles que têm a função de dizer o que funciona como verdadeiro. Nos regimes de

verdade do sistema interamericano, a opinião pública teria a palavra final sobre o

resultado do dispositivo de vigilância “imprensa”, que por sua vez funciona a partir de

certa organização do saber.

Na formação hegemônica interamericana tal política consiste em uma rede,

estratégica para a democracia, de relações de elementos heterogêneos, ligados pelo

programa de manter um debate público robusto e dinâmico, consistente com uma

ordem pública pautada pelos direitos humanos. A transparência governamental, um

judiciário independente, uma imprensa livre de influências econômicas ou estatais, mas

aberta a todos, constituem alguns desses elementos. Outro elemento consiste em uma

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proteção especial a discursos de interesse público, que acabam sendo o objeto do

jornalismo preocupado com a preservação da democracia. Essa proteção liga os

jornalistas a um tipo específico de enunciação que, por um lado, os relaciona entre si e,

por outro, os diferencia dos outros comunicadores de nossa cultura. Trata-se de uma

dupla sujeição: os enunciados de interesse público são o que definem um jornalista e o

jornalista é aquele que busca a definição do interesse público. Ora, Foucault tem um

nome para procedimentos que fixam as condições para a circulação de um enunciado e

impõem aos indivíduos certas regras a partir dessas condições: doutrina.

A doutrina (...) tende a difundir-se; e é pela partilha de um só e mesmo conjunto

de discursos que indivíduos, tão numerosos quanto se queira imaginar, definem

sua pertença recíproca. Aparentemente, a única condição requerida é o

reconhecimento das mesmas verdades e a aceitação de certa regra – mais ou

menos flexível – de conformidade com discursos validados; se fossem apenas

isto, as doutrinas não seriam tão diferentes das disciplinas científicas, e o

controle discursivo trataria somente da forma ou do conteúdo do enunciado,

não do sujeito que fala. Ora, a pertença doutrinária questiona ao mesmo tempo

o enunciado e o sujeito que fala, e um através do outro (FOUCAULT, 2008a,

pág. 42).

O conceito de doutrina contribui para a análise dos discursos jornalísticos ao

lançar luz sobre o funcionamento de procedimentos discursivos de exclusão e

mecanismos de rejeição perante sujeitos não assimiláveis pelas verdades e regras

compartilhadas: heresia e ortodoxia pertencem fundamentalmente aos mecanismos

doutrinais. A ortodoxia jornalística no discurso interamericano envolve a busca pelo

interesse público. Nessa ortodoxia, a independência do veículo jornalístico permite que

o interesse público seja preenchido por qualquer conteúdo: preceitos constitucionais, a

livre iniciativa e uma noção de progresso posicionariam, respectivamente, Estado, Folha

e Globo nessa doutrina pelo interesse público. Precisamente essa liberdade de

atribuição do sentido de interesse público ganha valor no debate democrático. A disputa

tem um espaço comum para acontecer entre a pluralidade de agentes sociais.

No início do capítulo, lançou-se a questão: uma pluralidade seria mesmo uma

possibilidade a partir das bases dos conflitos presentes no corpus? Tanto Folha quanto

Estado organizaram suas coberturas a partir de uma luta de interesses: aquela

interpretando a Confecom como o espaço em que interesses opostos às empresas de

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comunicação se organizaram, enquanto o último a interpretou como o espaço em que

interesses anti-democráticos ou particulares se articulavam. Já o jornal Globo

apresentou a Confecom como uma disputa ideológica. Mesmo orientando a disputa

discursiva em termos de ideologia, porém, o Globo compartilha uma verdade com os

outros dois enunciadores do corpus: todos os seus sujeitos discursivos agem voltados

para fins. E quem discorre sobre quais seriam esses fins é o enunciador, constituindo

um controle interno à produção do discurso a partir dessa verdade. Ao vasculhar o real,

o discurso desses veículos busca decifrar qual a finalidade da ação do sujeito.

Na seleção de discursos aceitáveis para essa política geral da verdade, a heresia

nos revela o interdito, aquilo que não entra na disputa política. Se o pluralismo agônico

sugerido por Mouffe consiste na construção de um nós a partir do Outro excluído, faz-se

necessário conhecer melhor esse excluído herético dos discursos jornalísticos.

Cada jornal lidou de forma específica com sua própria forma de heresia. O Globo

a trata com condescendência, a caracteriza como desvarios de identidades constituídas

por saberes ultrapassados, isolados e fadados ao fracasso. A heresia ganha ares de

projeto em curso na América Latina, que teria países com instituições mais vulneráveis

que o Brasil a grupos políticos, organizados para intervir na produção cultural. Um

gradualismo de desenvolvimento se deduz a partir disso, o que relaciona a heresia ao

retrocesso, à reversão de acúmulos e conquistas na evolução rumo a um progresso

que não se anuncia exatamente o que é, mas no qual o Brasil caminha. A

previsibilidade do mundo permite, por exemplo, o editorial “Cartas marcadas” (GLOBO,

2009), que direciona a Confecom em um sentido herético e o Brasil em outro sólido. A

heresia, enfim, trata-se de repensar aquilo que o jornal já considera conquistado e

irreversível: o status quo.

A heresia na Folha está num saber externo às relações de mercado: os

discursos políticos, sociais, jurídicos e religiosos aparecem em termos de seus impactos

na produção e no consumo de informação. Há tolerância para uma regulação no

dinâmico mercado de ideias, que traz desafios como as novas mídias ou influências

indevidas. A heresia está em qualquer intervenção estatal no presente, insegurança

jurídica ou crítica aos agentes do mercado, que viram fatos noticiosos importantes para

as decisões dos fornecedores e consumidores desse mercado. A declaração do

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representante da ANJ, que ganha leitura diferenciada pela posição que os empresários

gozam na cobertura, por exemplo, torna herética qualquer relação na comunicação

externa ao consumo: a compra do jornal na banca ou o uso do controle remoto. Há

fornecedores e consumidores, nas palavras da ANJ, nada “fora disso”.

Já o Estado enfrenta a conferência pela denúncia de sua condição herética,

tratando-a como equivalente antagônico real e simbólico, que pode extinguir sua

redação e abalar tudo que defende. O jornal é o que mais claramente se posicionou a

partir da rejeição à censura e ao interesse particular na ordem pública, mantendo-se

vigilante a qualquer risco que a Confecom representasse. O antagonismo à

Constituição Federal é a heresia que precisa ser combatida com argumentos incisivos e

hostis.

Apesar de pontos de vistas distintos, os três jornais coincidem na exclusão da 1ª

Conferência Nacional de Comunicação como um evento que busca o interesse público.

Se as publicações interpretaram de forma diferente quais riscos ela poderia representar,

por outro lado trataram de forma semelhante o Outro de que se diferenciam. Como

cada formulação hegemônica homogeneizou seu Outro? Formando identidades que

não se constituíram de um processo político que as justifique: trata-se de existências

fixadas por ideologias ou interesses, como se tais saberes criassem um vínculo

ontológico de obediência nos sujeitos e acreditassem por eles. Não importa o contexto

em que conferencistas formaram suas posições, nem que tais posições busquem

reverter situações que eles considerem injustas: o papel desses sujeitos se resume a

agir nos discursos jornalísticos a partir de seus fins e motivações. É claro que esses

sujeitos são produto das formulações hegemônicas desenvolvidas a partir do ponto de

vista que cada jornal é livre para assumir, mas tal procedimento produz uma

consequência nefasta. Isso permite que contextos de desrespeito social e

reivindicações de reconhecimento de direitos passem invisíveis quando não estiverem

dentro das verdades e regras do saber constituído, neste caso, uma teoria de ação que

envolve uma racionalidade com respeito a fins: a motivação pelo interesse ou pela

ideologia como fonte da ação dos sujeitos. Um jornalismo voltado exclusivamente para

a apreensão da intenção dos sujeitos deixa passar o contexto em que eles vivem.

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O teórico Axel Honneth (2003), em uma reflexão sobre as fontes emotivas e

cognitivas da resistência e reivindicações sociais, busca uma redefinição da

interpretação das lutas sociais, que será tratada na conclusão deste trabalho. O

relevante para a análise crítica dos jornais que aqui se desenvolve são seus

argumentos em torno da superação da ciência social utilitarista na interpretação desses

conflitos. Se o jornalismo constrói disputas a partir de uma racionalidade com respeito a

fins, a crítica de Honneth pode se estender à doutrina do jornalismo de interesse

público e, consequentemente, à própria política geral de verdade recomendada pelo

discurso interamericano de liberdade de expressão. Antes de chegarmos lá, vamos aos

argumentos. Ao focar-se no modelo utilitarista que o Karl Marx maduro aplicou em seus

escritos de teoria econômica, Honneth trata de uma consequência do abandono por

parte de seu conterrâneo do modelo de conflito social que o jovem Marx seguia.

Inicialmente, Marx via no trabalho a possibilidade de identificar a autorrealização

pessoal com o reconhecimento intersubjetivo, identificação impossibilitada pela

separação do trabalhador dos meios de produção:

[O] primeiro Marx pode interpretar ainda os confrontos sociais de sua época

como uma luta moral que leva os trabalhadores reprimidos à restauração das

possibilidades sociais do reconhecimento integral. A luta de classes não

representa para ele primeiramente um confronto estratégico pela aquisição de

bens ou instrumentos de poder, mas um conflito moral, no qual se trata da

„libertação‟ do trabalho, considerada a condição decisiva da estima simétrica e

da autoconsciência individual (HONNETH, 2003, p. 232).

Mais tarde, no entanto, Marx deixa de incluir a referência a outros sujeitos em

termos de reconhecimento, adotando um modelo utilitarista de conflito social.

[N]a análise do capital, ele faz com que a lei de movimento do embate entre as

diversas classes seja determinada, de acordo com seu novo quadro conceitual,

pelo antagonismo de interesses econômicos. Agora, a luta de classes (...) é

pensada por ele conforme o padrão tradicional de uma luta por auto-afirmação

(econômica); no lugar de um conflito moral que resulta da destruição das

condições do reconhecimento recíproco, entrou subitamente a concorrência de

interesses estruturalmente condicionada (HONNETH, 2003, pp. 235-6).

Opta-se aqui por apresentar a crítica ao utilitarismo a partir das aproximações

marxianas, pela influência de seu pensamento em movimentos sociais de comunicação.

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Se o saber que referencia os jornais analisados recorta a realidade social em busca de

uma racionalidade voltada para fins, também a tradição materialista em que se incluem

críticos dos meios de comunicação reproduz tal recorte sobre seu objeto, mantendo o

debate sobre liberdade de expressão limitado a temas da economia política. Honneth

recorre ao francês Georges Sorel para apontar as carências dessa perspectiva:

[P]ara ele, a concepção segundo a qual a ação humana deve se confundir com

a persecução de interesses, operando numa racionalidade com respeito a fins,

significa um obstáculo fundamental no conhecimento dos impulsos morais pelos

quais os seres humanos se deixam guiar em suas realizações criativas (SOREL

apud HONNETH, 2003, p. 240).

A moral, para Sorel, é “o conjunto de todos aqueles sentimentos de lesão e de

vexação com que reagimos toda vez que nos sucede algo que tomamos por

moralmente inadmissível” (Idem, p. 243). O sentimento de injustiça a que se refere não

provoca o fechamento de uma identidade como produto de um fim, mas abre um

espaço de disputa de identidades, já que “experiências pessoais de desrespeito podem

ser interpretadas e apresentadas como algo capaz de afetar potencialmente também

outros sujeitos” (Ibid., p. 256).

Essa digressão se fez necessária para compreender em que consiste

exatamente a heresia identificada por esta análise nos discursos de O Estado de S.

Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo. Em uma política da verdade na qual os sujeitos

competem pela noção de interesse público e sancionam os interesses particulares,

perde-se a possibilidade da disputa de diferentes noções de justiça. A cobertura da 1ª

Conferência Nacional de Comunicação teria sido uma oportunidade especial para essa

disputa discursiva em torno da justiça. Como objetos dos debates da conferência, os

jornais eram afetados pelas propostas que visavam reverter uma condição de injustiça

em que os grupos se inserissem e reagir a experiências de desrespeito que tais

propostas lhes pudessem infligir. Certamente houve reação às propostas, isolando-as e

nomeando-as como identidades interessadas ou ideológicas, mas sem referência à

situação de injustiça que originou a disputa.

Um debate sobre justiça depende, dessa maneira, que haja interesse do jornal

em invocar uma situação de injustiça para instrumentalizá-la na sua formulação

hegemônica. Dentro do conflito de interesses da Confecom, os jornais assumiram

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posição interessada para destratar seus adversários ou inimigos: pontos nodais como

controle social ou imprensa livre orientaram a disputa no sentido dos supostos fins,

fixaram posições e identidades e não contribuíram para a compreensão da origem

emotiva e cognitiva (nos termos de Honneth) do conflito social que se apresenta. Uma

seleção interessada de temas é articulada para tratar de ações motivadas por interesse.

Tornam-se heréticos aqueles temas não interessantes ao enunciador e aqueles temas

que não se expressam em termos de interesse. Esse cenário de supremacia do

interesse na análise social é impeditivo de uma perspectiva moral nas narrativas do

contemporâneo. A agência dos jornais poderia ser explicada meramente pelos

interesses que os constituem, mas isso ignoraria a cultura política de liberdade de

expressão a que fazem referência. A imprensa escrita, no discurso de liberdade de

expressão, deve ser aberta à sociedade e é livre para selecionar os temas para si

interessantes, inclusive qual sociedade que quer escutar. Essa postura de abertura só

se torna preocupante quando o Escritório da Relatoria Especial para Liberdade de

Expressão, a Comissão da OEA que o engloba e a Corte Interamericana de Direitos

Humanos, referências de ativistas, juristas, legisladores e comunicadores, recomendam

uma doutrina de preservação da democracia em termos de interesse. Ao atribuírem à

imprensa uma gestão de interesses em prol da democracia, instauram um controle

discursivo sobre o tipo de narrativas com que o jornalismo deveria se preocupar. O

controle sobre o conteúdo das narrativas jornalísticas que tal recomendação instaura

aos comunicadores preocupados com a democracia constitui uma política do silêncio

precisamente onde mais se precisa de liberdade de expressão: aquela situação em que

não há interesse em se revelar, a experiência de desrespeito real e presente que

precisa da atenção social. Mas todas as atenções, e todos os pontos nodais, estão

voltadas para os fins, as ameaças que se expressam em termos de interesse contra a

democracia. O espaço simbólico proporcionado pelo interesse prescinde de qualquer

informação sobre algum sofrimento de injustiça, já que a identidade está definida desde

o início pelo interesse que motiva a ação do sujeito no discurso, além, é claro, do ponto

de vista seletivo do enunciador.

Para haver liberdade de expressão não se pode impor pontos de vista ao

enunciador. Mas para promover a liberdade de expressão, pode-se pensar em outra

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forma de legitimar o jornalismo a partir da democracia: não como seu defensor contra

as finalidades obscuras do ser humano, mas como promotor da democracia ao

visibilizar as condições de sofrimento que têm origem social e política. Isso significaria

um sujeito de livre expressão menos preocupado na preservação daquilo que já foi

conquistado e mais voltado para catalisar a transformação social em direção do que

precisa ainda de conquista.

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Capítulo 3

Controle discursivo na Confecom

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A 1ª Conferência Nacional de Comunicação se insere em um contexto de

experimentalismo político que vem destacando o Brasil na literatura de teoria

democrática. Essa literatura trata das conferências de políticas públicas em conjunto

com conselhos de políticas públicas, a partir de diversas perspectivas: por sua

capacidade de agendamento de pautas de minorias (POGREBINSCHI, 2011), como um

sistema que consegue integrar participação e deliberação (FARIA et al., 2012) ou ainda

como instituições participativas atribuídas à Constituição Federal de 1988 (AVRITZER,

2012). Esses processos, sistemas ou instâncias têm como objetivo permitir a

participação de diversos atores políticos nas várias etapas da gestão de políticas

públicas setoriais, seja na determinação de seus princípios e diretrizes, na proposição

de ações e metas, ou na avaliação, monitoramento e controle de seus resultados

(SOUZA, 2012).

De acordo com Claudia Feres Faria, Viviane Petinelli Silva e Isabella Lourenço

Lins, a concepção das conferências surgiu no governo Vargas, em 1937, “com o

objetivo de facilitar o conhecimento do Governo Federal acerca das atividades relativas

à saúde e de orientá-lo na execução dos serviços locais de saúde” (FARIA et al., 2012,

p. 260). Embora naquele período as discussões estivessem restritas a agentes públicos,

os processos posteriormente se abriram para um diálogo com a sociedade civil. Clóvis

Henrique Leite de Souza ressalta a influência da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em

1986, e sua mobilização social para a criação do Sistema Único de Saúde sobre os

debates na Assembleia Constituinte. O contexto favoreceu para que a Constituição de

1988 garantisse formalmente “a descentralização administrativa e a incorporação da

participação de cidadãos e organizações da sociedade civil na gestão de políticas

públicas por meio da criação de instituições participativas” (SOUZA, 2012, p. 13), duas

características do modelo de gestão do SUS. Leonardo Avritzer elabora sobre tais

instituições, “IPs”:

As IPs são resultado da ação da sociedade civil brasileira durante o processo

constituinte que resultou em um conjunto de artigos prevendo a participação

social nas políticas públicas nas áreas da saúde, assistência social, criança e

adolescente, políticas urbanas e meio ambiente. Esse padrão modificou

fortemente a ideia de autonomia da sociedade uma vez que, por mais paradoxal

que pareça, a sociedade civil que reivindicou a sua autonomia em relação ao

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Estado foi a mesma que reivindicou arranjos híbridos com a sua participação

junto aos atores estatais durante a Assembleia Nacional Constituinte. A maior

parte das IPs tem a sua origem nos capítulos das políticas sociais da

Constituição de 1988. Essa foi a origem das formas de participação no nível

local, tais como os conselhos e as formas de participação incipientes no nível

federal durante os anos 1990 (AVRITZER, 2012, pp. 10-1).

Percebe-se, assim, que a concepção das conferências de políticas públicas não

parte de uma ordem discursiva liberal. Cara à concepção de democracia dessa ordem

está a noção de “independência dos governados”, identificada por Foucault (2008) na

tradição utilitarista do liberalismo, que introduz o jogo entre liberdade e segurança nas

relações entre Estado e sociedade. Não partindo de uma relação ameaçadora, as

conferências induzem à colaboração entre governante e governado. Tal perspectiva

levanta questões sobre a dinâmica desses processos: será que há mesmo um

confronto de ideias ou haveria a sobredeterminação das posições governamentais em

detrimento da autonomia da sociedade civil?

Preocupado com essas e outras questões, Avritzer (2012) conduziu uma

pesquisa de percepção como coordenador do Projeto Democracia Participativa da

UFMG em parceria com o Vox Populi, em julho de 2011, com 2.200 respondentes. A

amostragem incluiu todas as regiões do Brasil, espelhando estratificação de renda,

escolaridade, sexo e raça do país. Nesse universo, 41,8% afirmaram ter ouvido falar

das conferências nacionais e 6,5% ter participado delas. No que se refere aos pontos

aqui levantados, 41,6% dos participantes em conferências relataram que não tiveram

informação suficiente para participação, o que prejudica bastante o processo de

deliberação. Avritzer não identifica intenção governamental nisso e atribui a falta de

informação a problemas de infraestrutura de algumas áreas, o que, em 13% dos casos,

faz o participante depender de documentos preparatórios elaborados para a conferência

por entidades. Vale apontar a participação típica desses tipos de processo:

[A] participante típica é uma mulher em 51,2% dos casos, com quatro anos de

escolaridade (26,9%) ou com ensino médio completo em 20,3% dos casos. A

sua renda varia entre 1 e 4 salários mínimos (SM) em 52,2% dos casos. Assim,

a primeira observação que gostaria de fazer em relação ao padrão de

participação nas conferências nacionais é que ele é muito semelhante ao

padrão de participação no nível local. Não são os mais pobres que participam,

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mas as pessoas na média de renda da população brasileira e, em geral, com

escolaridade mais alta do que a média (AVRIZTER, 2012 p. 13).

Avrizter inclui ainda uma questão sobre a dimensão deliberativa das conferências.

Para 79% dos participantes, o processo de discussão é marcado pelo debate e pelo

confronto de ideias. Quanto à influência do governo, a pesquisa registra a percepção

majoritária de um equilíbrio entre a participação do governo e da sociedade civil, algo

verificável pelo próprio histórico de conferências, que conta com derrotas importantes

do governo, segundo o autor.

Com esse quadro geral voltamos à Conferência de Comunicação. A cobertura

jornalística incluiu um foco em um evento convocado pelo governo, com participação

restrita e previsibilidade de resultados. O conjunto de matérias, no entanto, mostrou

conflitos entre governo e “grupos radicais”, sindicatos e empresas, consonante com o

quadro geral sugerido pela pesquisa e questionando a previsibilidade de resultados por

certa homogeneidade de participantes ou por um jogo marcado governamental. Isso

abre a possibilidade de estudar o conflito no interior dessa relação colaborativa.

Para compreender como a dinâmica de conflitos foi configurada no processo da

Confecom, esta análise se volta para os documentos que marcaram a história do

evento.

A pluralidade de sujeitos na mobilização

O resultado de conferências de políticas públicas pode ser de caráter consultivo

ou deliberativo, este em geral previsto em legislação, como é o caso de conferências de

saúde e de assistência social. A primeira edição de uma conferência de comunicação

seria certamente consultiva, mas para acontecer precisava de um decreto presidencial

com o tema e o órgão responsável pelo processo. Por outro lado, segundo Avrtizer

(2012), a efetividade das conferências está vinculada a outras instâncias de

participação, como conselhos de políticas públicas, que mantêm e monitoram os

compromissos desses eventos. No caso da comunicação, não existe tal conselho para

resguardar seus resultados. Haveria motivação para uma incidência desse nível

(presidencial) para realizar um processo consultivo que sequer teria garantia de

efetividade?

Primeiro, se faz necessário contextualizar a ideia de uma conferência inédita

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74

sobre o tema da comunicação. Na administração petista, houve uma clara tendência

governamental no sentido de ampliar a participação na gestão de políticas públicas.

Entre 1941, quando ocorrera a primeira, e 1988, nove conferências foram realizadas; de

1988 a 2002, organizaram-se 27 (FARIA et al., 2012). De 2003 a 2012, registraram-se

87 conferências, com a participação de mais de 7 milhões de pessoas, consideradas

suas etapas municipais, livres, regionais, estaduais e nacionais, muitas delas em temas

inéditos (SOUZA, 2013, p. 5). O momento político propício para se discutir

coletivamente temas de políticas públicas foi considerado uma oportunidade para

movimentos que há muito buscavam espaço para defender suas pautas na

comunicação.

Nesse sentido, a estratégia de mobilização passou a se concentrar na

convocação de uma conferência. Em 2007, as comissões de Ciência Tecnologia,

Comunicação e Informática e de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos

Deputados convocaram o Encontro Nacional de Comunicação: na luta por democracia e

direitos humanos, que se constituiu numa articulação com diversas entidades sociais

historicamente envolvidas no tema da democratização das comunicações, como o

FNDC e o Coletivo Intervozes, tendo o encontro encerrado com a Carta Aberta ao

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva: por uma legítima e democrática Conferência

Nacional de Comunicações21:

O modelo vigente [na comunicação] é marcado pela concentração e a

hipertrofia dos meios em poucos grupos comerciais, cujas outorgas são obtidas

e renovadas sem controle da sociedade e sem critérios transparentes. (...)

Historicamente, as decisões relativas à comunicação no Brasil têm sido

tomadas à revelia dos legítimos interesses sociais, quase sempre apoiadas em

medidas administrativas e criando situações de fato que terminam por se

cristalizarem em situações definitivas.

A necessidade de corrigir tais distorções históricas emerge justamente na hora

em que a convergência digital torna cada vez mais complexo o processo de

produção, difusão e consumo das informações. (ENCONTRO NACIONAL DE

21

Disponível em <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-

permanentes/cdhm/arquivos/Carta%20Final%20do%20Encontro%20Nacional%20de%20Comunicacao%

20-%20Na%20Luta%20%20por%20Democracia%20e%20Direitos%20Humanos.pdf>. Acesso em: 6 mar.

2013.

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75

COMUNICAÇÕES, 2007)

A referência principal no documento é a radiodifusão. Como as ondas hertzianas

que difundem as emissões de rádio e TV passam por um espaço público de tamanho

limitado, a exploração do espectro eletromagnético se faz pelo regime de concessão. O

documento reivindica um debate em torno da renovação dessas concessões e também

sobre os impactos no espectro com a convergência digital, que pode aumentar a

quantidade de canais abertos na radiodifusão. Dessa maneira, com um discurso pelo

debate do uso do espaço público, foi formado o movimento Pró-Conferência Nacional

de Comunicação ao final do encontro.

O movimento divulgou mais um documento em 2 de dezembro de 200822, ao

final de outro encontro em Brasília que reunira “66 organizações e 250 pessoas”,

pressionando por uma conferência de comunicação, proposta debatida em 15 unidades

da federação. Nesse documento, o escopo de discussão foi ampliado: televisão aberta,

rádio, internet, telecomunicações por assinatura, cinema, mídia impressa e mercado

editorial. Em 19 de março daquele ano23, uma nota oficial nos traz a lista de membros

da Comissão Pró-Conferência Nacional de Comunicação:

1) FNDC – Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação

2) MNDH – Movimento Nacional de Direitos Humanos

3) FENAJ – Federação Nacional dos Jornalistas

4) INTERVOZES – Coletivo Brasil de Comunicação Social

5) CFP – Conselho Federal de Psicologia

6) ABCCOM – Associação Brasileira de Canais Comunitários

7) Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos

Deputados

8) Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática

da Câmara dos Deputados

9) CUT – Central Única dos Trabalhadores 22

Disponível em <http://www.fndc.org.br/arquivos/Encontro_Brasilia_dez_2008.pdf>. Acesso em: 12 Jun.

2013.

23 Disponível em <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-

permanentes/cdhm/arquivos/Nota%20Oficial%20da%20Comissao%20Pro-

Conferencia%20Nacional%20de%20Comunicacao.pdf>. Acesso em: 12 Jun. 2013.

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76

10) FITERT – Federação dos Trabalhadores em Empresas de

Rádio e Televisão

11) LaPCom-UnB – Laboratório de Políticas de Comunicação –

Universidade de Brasília

12) ABRAÇO – Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária

13) Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – Ministério

Público Federal

14) AMARC-BRASIL – Associação Mundial das Rádios

Comunitárias

15) ENECOS – Executiva Nacional dos Estudantes de

Comunicação Social

16) ABGLT – Associação Brasileira de Gays, Lésbicas,

Bissexuais,Travestis e Transexuais

17) MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

18) ARPUB – Associação das Rádios Públicas do Brasil

19) ASTRAL – Associação Brasileira de TVs e Rádios Legislativas

20) Campanha Quem Financia a Baixaria É contra a Cidadania

21) ABTU – Associação Brasileira de TVs Universitárias

22) OAB – Ordem dos Advogados do Brasil

23) UNE – União Nacional dos Estudantes

24) CEN – Coletivo de Entidades Negras

A diversidade da lista, que ainda seria ampliada, já sinalizaria as identidades que

uma futura conferência precisaria reconhecer e relativiza relatos jornalísticos que

sugerem a convocação da conferência pela ação de grupos de interesse (ESTADO,

2009). O apoio de movimentos e entidades nacionais também mostrava a força política

que o grupo detinha para articular sua reivindicação em um momento político propício.

Em janeiro de 2009, a reivindicação desses movimentos foi reconhecida pelo

presidente Luiz Inácio Lula da Silva, precisamente em um evento articulado por grupos

da sociedade civil:

No Fórum Social Mundial, em Belém (PA), Lula afirmou que assinará um

decreto nos próximos dias convocando o evento, para atender à reivindicação

dos movimentos que lutam pela democratização do setor. “No conflito entre

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77

grandes e pequenos, dali sairá uma proposta de comunicação mais avançada

para o Brasil”, declarou Lula segundo a CUT (MOULATLET, 2009).

O decreto presidencial de 6 de abril de 2009 (DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, 2009,

p. 2) afinal fez a convocação da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, com o tema

“Comunicação: meios para a construção de direitos e de cidadania na era digital”,

atribuindo a responsabilidade de organização ao Ministério das Comunicações. A

primeira das atribuições seria a publicação de portaria constituindo a comissão

organizadora, que elabora o Regimento Interno da conferência.

A Portaria n. 18524, de 20 de abril de 2009, criou a Comissão Organizadora

Nacional (CON), instância cuja duração está associada ao processo conferencial. A

composição incluiu oito vagas para o Executivo25, duas para o Legislativo (Câmara dos

Deputados e Senado) e 16 para a sociedade civil, compreendida como:

ABCCOM - Associação Brasileira de Canais Comunitários

ABEPEC - Associação Brasileira das Emissoras Públicas,

Educativas e Culturais

ABERT - Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e

Televisão

ABRA - Associação Brasileira de Radiodifusores

ABRAÇO - Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária

ABRANET - Associação Brasileira de Provedores Internet

ABTA - Associação Brasileira de TV por Assinatura

ADJORI BRASIL - Associação dos Jornais e Revistas do

Interior do Brasil

ANER - Associação Nacional de Editores de Revistas

ANJ - Associação Nacional de Jornais

CUT - Central Única dos Trabalhadores

24

Disponível em <http://www.mc.gov.br/portarias/26707-portaria-n-185-de-20-de-abril-de-2009>. Acesso

em: 12 Jun. 2013.

25 Casa Civil, Ministério das Comunicações, Ministério da Ciência e Tecnologia, Ministério da Cultura,

Ministério da Educação, Ministério da Justiça, Secretaria de Comunicação Social, Secretaria-Geral da

Presidência.

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78

FENAJ - Federação Nacional dos Jornalistas

FITERT - Federação Interestadual dos Trabalhadores de

Empresas de Radiodifusão e Televisão

FNDC - Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação

INTERVOZES - Coletivo Brasil de Comunicação Social

TELEBRASIL - Associação Brasileira de Telecomunicações

Observa-se assim que a sociedade civil foi representada por organizações que

mobilizaram para a conferência mais as entidades empresariais atuantes no setor de

comunicação. Houve equilíbrio entre o que o Regimento Interno mais tarde dividiria

como sociedade civil e sociedade civil empresarial: cada uma com oito entidades,

mesma quantidade que o Executivo Federal. Esse equilíbrio identitário lançou as bases

para a discussão da organização da 1ª Confecom.

A gestão de conflitos pela Comissão Organizadora

O Regimento Interno26 orienta e organiza o processo conferencial, das etapas

municipais à nacional, e é desenvolvido pela Comissão Organizadora Nacional. Por

meio dele, sabemos que há etapas preparatórias (conferências livres, virtual, municipais

e intermunicipais) e etapas eletivas (conferências estaduais e distrital), estas capazes

de eleger delegados para a etapa nacional. As conferências municipais e

intermunicipais, assim como as etapas eletivas, são organizadas por e submetidas a

uma comissão organizadora no nível federativo respectivo que respeita os critérios de

composição e deliberação da CON, ou seja, a proporção de representantes dos três

grupos identitários da CON – Poder Público (20%), Sociedade Civil (40%) e Sociedade

Civil Empresarial (40%) – e a forma da votação no interior de uma comissão

organizadora municipal ou estadual devem seguir o padrão nacional.

Para um trabalho com uma preocupação com a liberdade de expressão, é de

particular interesse uma instância que governa a conduta dos participantes, valorizando

práticas e instituindo procedimentos de quórum e votação que controlam a circulação

dos discursos políticos no processo conferencial. As decisões são tomadas por maioria

26

Disponível em: <http://www.in.gov.br/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=72&data=03/09/2009>.

Acesso em: 12 Jun 2013.

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79

simples dos presentes, com a possibilidade da “deliberação qualificada” – quando pelo

menos a metade de um dos segmentos indicar uma questão sensível em votação, a

decisão só será aprovada com o aval de 60% dos presentes, com ao menos um voto de

cada segmento. Trata-se de um procedimento de gestão de antagonismos no interior

das comissões organizadoras. Ernesto Laclau e Chantal Mouffe consideram

antagonismo uma disputa em que duas ordens discursivas são inconciliáveis,

representando uma a negação da outra. O mecanismo de votação e proporcionalidade

permite que decisões não provoquem uma crise no conjunto de identidades

representadas, impedindo de expor um segmento a decisões incompatíveis com seus

valores constitutivos.

Se o sujeito é construído através da linguagem, como uma incorporação

metafórica e parcial a uma ordem simbólica, qualquer questionamento dessa

ordem deve necessariamente constituir uma crise de identidade27

(LACLAU;

MOUFFE, 1985, p. 126).

Não se trata de imunizar as discussões para que um consenso que não conteste

identidades seja formado, mas impedir que diferenças inconciliáveis impeçam o debate.

A própria possibilidade de uma decisão que não reconheça a parte derrotada como

interlocutora traz o risco de dissolução do espaço de diálogo, já que implica em uma

ordem discursiva alheia a essa identidade. Uma preocupação de Mouffe (2009, p. 103-

5) envolve a criação de um espaço simbólico comum que consiga mobilizar paixões a

partir de canais democráticos que permitam o dissenso e assegurem certa fidelidade

institucional, apesar do caráter contingencial de qualquer arranjo político.

Parece ser um passo nesse sentido um coletivo capaz de, por um lado,

estabelecer as regras a que se submete e, por outro, ser referência identitária para os

sujeitos-conferencistas que seguem sua metodologia de debate. A acomodação da

pluralidade e a diversidade de identidades durante o processo conferencial não levaria

a uma crise se adotada alguma técnica de gestão de conflitos que impedisse a

alienação discursiva de uma identidade representada na CON, mas sem impedir o

dissenso. Como qualquer um dos três blocos de identidade (sociedade civil empresarial,

sociedade civil não-empresarial e governo) poderia requisitar o processo de deliberação

qualificada, decisões que ameaçassem um deles poderiam ser vetadas. A negociação

27

Tradução nossa.

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80

de questões polêmicas, dessa maneira, seria a única forma de resolver o impasse,

afastando as possibilidades de imposição da vontade de um grupo identitário.

Antes de analisar os documentos que governaram as práticas conferenciais,

cabe discutir as razões pela qual a CON fracassou em manter esse espaço simbólico

comum no seu próprio interior, dando vazão a antagonismos que resultaram na saída

de seis entidades do processo conferencial. Para a compreensão das razões pelas

quais essa estratégia não funcionou, se faz necessário um olhar mais próximo sobre

quais possibilidades dispunham os atos normativos da CON para impedir que discursos

saíssem de uma ordem comum.

Para essa discussão, recorre-se a instrumentos teóricos desenvolvidos por

Michel Foucault em A ordem do discurso (2008a), material de transição na trajetória do

autor, em que a análise da articulação dos fatos do discurso nos mecanismos do poder

se faz ainda em termos do direito, não avançando completamente para a busca da

intenção das técnicas e estratégias do exercício do poder (CASTRO, 2004, p. 118). Mas

se sabemos que a intenção do Regimento Interno foi promover um debate sem que –

nos termos teóricos aqui adotados – antagonismos fossem impedimento, a descrição

dessas técnicas possíveis de exercício do poder pelo controle discursivo já é o bastante

para contextualizar tal fracasso.

Eis a hipótese que gostaria de apresentar esta noite, para fixar o lugar – ou

talvez o teatro muito provisório – do trabalho que faço: suponho que em toda

sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada,

organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm função

conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar

sua pesada e temível materialidade (FOUCAULT, 2008a, pp. 8-9).

Busca-se aqui precisamente a capacidade analítica de avaliar a função dos

procedimentos de controle discursivo e, embora se apresente de forma geral os três

que Foucault desenvolve, detalham-se apenas aqueles com uma utilidade para o objeto

em estudo. Trata-se de procedimentos de exclusão, de controle interno ao discurso e de

rarefação.

Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de

tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de

qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou

exclusivo do sujeito que fala: temos aí o jogo de três tipos de interdições que se

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cruzam, se reforçam ou se compensam, formando uma grade complexa que

não cessa de se modificar (FOUCAULT, 2008a, p. 9).

Procedimentos de exclusão são aqueles que revelam a ligação com o desejo e o

poder, proibições que concernem ao objeto do discurso, “aquilo por que, pelo que se

luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (Idem, p. 10). Além da interdição de

discursos, destaca-se o procedimento de exclusão que os separa e rejeita, quando as

palavras são desarmadas e reconciliadas a partir da intenção daquele que exerce o

procedimento. Elas podem até ser objeto de escuta, mas de forma a curá-las de sua

inconsistência ou inadequação. Foucault (Ibid., pp. 10-3) identifica os discursos da

loucura 28 como aqueles sobre os quais se busca controlar seus terríveis poderes,

tornando-os inócuos, ingênuos, astuciosos, ou ainda angustiantes ou objetos de

exaltação. É um discurso que não pode circular como os outros por não ser admissível

(na ordem jurídica, por exemplo) ou por ter poderes especiais (como uma verdade

escondida) (CASTRO, 2004, p. 119).

O segundo conjunto de procedimentos tem como função a eliminação do acaso

na realidade em prol de princípios de classificação, ordenação e distribuição. São

discursos que controlam a produção de outros discursos, quando eles mesmos

exercem seu próprio controle, mantendo certa ordem recorrente independente das

contingências. Curiosamente, tais procedimentos de ordenação se aproximam da teoria

política do discurso de Laclau e Mouffe, no limite em que pontos nodais articulam uma

rede de equivalências contingentes que organiza o que era caos.

O terceiro conjunto de procedimentos de controle discursivo teorizado por

Foucault não exclui ou domina os poderes do discurso, nem constrói realidades

discursivas coerentes pela submissão do acaso, mas impõe certo número de regras aos

indivíduos que os pronunciam. São os procedimentos de rarefação.

Rarefação, desta vez, dos sujeitos que falam; ninguém entrará na ordem do

discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início,

qualificado para fazê-lo. Mais precisamente: nem todas as regiões do discurso

28

Interessante apontar como esse procedimento foi utilizado na cobertura da Confecom por O Globo.

Sua complacência ao discurso delirante de grupos ultrapassados também é um procedimento para

controlar suas terríveis verdades, reproduzindo certo tratamento social à loucura, isolando-a e

desarmando-a.

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são igualmente abertas e penetráveis; algumas são altamente proibidas

(diferenciadas e diferenciantes), enquanto outras parecem quase abertas a

todos os ventos e postas, sem restrição prévia, à disposição de cada sujeito que

fala (FOUCAULT, 2008a, p. 37).

Tais procedimentos de rarefação têm como função limitar o intercâmbio e

comunicação dos discursos e determinar sua apropriação social por um sistema de

restrições. O sistema relevante para os objetivos postos é o ritual:

A forma mais superficial e mais visível desses sistemas de restrição é

constituída pelo que se pode agrupar sob o nome de ritual; o ritual define a

qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo de um

diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar determinada posição e

formular determinado tipo de enunciados); define os gestos, os comportamentos,

as circunstâncias, e todo o conjunto de signos que devem acompanhar o

discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito

sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coerção

(FOUCAULT, 2008a, pp. 38-9).

Com esse instrumental teórico em mente, a análise tem condições de precisar a

divergência no desenvolvimento de um sistema de bloqueio de antagonismos no interior

da Comissão Organizadora Nacional. Sustenta-se aqui que entidades empresariais

pretenderam, durante a discussão do Regimento Interno, realizar o controle prévio do

discurso político que fosse produzido no interior da Confecom por meio de um

procedimento de exclusão e seleção de discursos admissíveis, orientando os debates

para apenas suas pautas políticas. Esses procedimentos na discussão do Regimento

Interno da Confecom podem ser verificados nas reivindicações de Abert, Abra, Abranet,

Abrafix, Telebrasil, ABTA, ANJ e ANER ao ministro das Comunicações Hélio Costa:

Entre as reivindicações documentadas estavam os principais pleitos que já

vinham sendo colocados pelos radiodifusores: quórum qualificado em que os

setores empresariais tenham peso relevante e; temática voltada para temas

futuros, e não para críticas e revisão dos marcos regulatórios e modelos atuais

(TELETIME NEWS, 2009).

O quórum qualificado permitiria o controle ritualístico sobre os sujeitos

capacitados a dar efetividade aos discursos resultantes da conferência, uma proposta

sobre processos de votação. Por outro lado, o “tema futuro” buscaria excluir discursos

de avaliação sobre o modelo contemporâneo de comunicação e selecionar discursos a

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respeito das novas mídias no âmbito do processo conferencial. Revela-se, assim, um

bloqueio realizado pelas associações que representam empresas de radiodifusão, TV a

cabo, internet, imprensa e telecomunicações ao debate da atual condição da

comunicação no Brasil. Anteriormente, os radiodifusores, sozinhos, haviam expressado

ainda as seguintes preocupações:

Os representantes da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV

(Abert) apresentaram „condições mínimas‟, ou premissas, que deveriam constar

no regimento com vistas a garantir a participação do empresariado de

radiodifusão no decurso do processo.

Entre elas estão: (1) a defesa do conteúdo nacional, (2) a proteção dos serviços

e outorgas atuais frente à turbulência tecnológica da convergência midiática, (3)

a defesa intransigente das práticas da legalidade, (4) o respeito e a valorização

das empresas brasileiras de comunicação escrita ou de radiodifusão dirigidas e

orientadas editorialmente por brasileiros, (5) o livre exercício da atividade de

comunicação e de informação, por pessoa e organizações, e (6) a mínima

interferência estatal (OBSERVATÓRIO DO DIREITO À COMUNICAÇÃO, 2009).

Essas reivindicações não apenas excluem pela revelação dos objetos de desejo

das entidades, mas também selecionam os discursos que podem circular no processo

conferencial. Esses procedimentos de exclusão foram interpretados por Jonas Valente e

Carolina Ribeiro, do coletivo Intervozes (com assento na CON), como uma ameaça ao

“caráter amplo e democrático” da conferência.

Tal posição precisa ser problematizada fortemente. No que tange às premissas

reclamadas pela Abert, a defesa a priori dos interesses de um setor nos

objetivos ou mesmo como premissas de uma Conferência não respeita a lógica

de funcionamento de uma iniciativa como esta. Como já ocorreu em dezenas de

eventos deste tipo organizados pelo Executivo Federal desde 2003, uma

Conferência presume a abertura de um espaço para debate público entre as

diversas partes envolvidas. Suas regras precisam assegurar esta amplitude, o

envolvimento da população e dos diversos segmentos interessados na área.

Mas não devem legitimar a consolidação da pauta de determinado segmento

como tema indiscutível ou como premissa dos debates. Tal opção ameaça a

Confecom como espaço de discussão pública sobre as políticas de

comunicação (OBSERVATÓRIO DO DIREITO À COMUNICAÇÃO, 2009).

Apesar de mais tarde os radiodifusores recuarem dessas posições em prol da

seleção temporal dos temas (ganhando com isso o apoio dos outros empresários), o

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84

conflito se apresentou inegociável em 13 de agosto de 2009, quando Abert, Abranet,

ABTA, Adjori Brasil, Aner e ANJ divulgaram nota à imprensa comunicando seu

desligamento da CON:

Por definição, as entidades empresariais têm como premissa a defesa dos

preceitos constitucionais da livre iniciativa, da liberdade de expressão, do direito

à informação e da legalidade.

Observa-se, no entanto, que a perseverante adesão a estes princípios foi

entendida por outros interlocutores da Comissão Organizadora como um

obstáculo a confecção do regimento interno e do documento-base de

convocação das conferências estaduais, que precedem a nacional (FNDC,

2009).

Essas entidades empresariais expuseram, assim, os termos mínimos pelos quais

consideram legítimo um debate. Não aceitar sua seleção de discursos aptos a

circulação significou para elas o próprio não-reconhecimento das empresas como

interlocutores “por definição”. Apesar disso, não estão registradas em nenhum

documento organizador do processo conferencial menções contrárias aos preceitos

constitucionais. Segundo a nota, o antagonismo ficou explícito por posições

apresentadas por interlocutores na Comissão Organizadora. No entanto, tais

declarações não sensibilizaram Abra, que representa Band e Rede TV, nem Telebrasil,

que representa empresas de telecomunicações: as entidades se mantiveram na CON

mesmo com a debandada dos outros empresários exposta na nota acima.

A atitude das entidades empresariais afastadas comunica ao analista uma

identidade condicionada à exclusão e seleção de discursos admissíveis, evitando uma

disputa aberta sobre seu papel no campo discursivo da comunicação. Ao considerarem

esse papel exclusivamente em termos de livre iniciativa, liberdade de expressão, direito

à informação e legalidade, numa formação hegemônica em que sua identidade não é

posta em questão, acabam bloqueando o debate a partir de outras perspectivas, como

se pontuou na análise da cobertura jornalística sobre a Confecom. Esse

condicionamento, no entanto, mais enfraquece do que protege as empresas de

comunicação em um regime democrático, cujo dinamismo exige constante

ressignificação de papéis de um sujeito. Além, naturalmente, da complicada questão

ética de comunicadores interditarem um debate. Postergar tal debate parece mais sinal

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de fraca resiliência do que de poder democrático advindo de princípios de liberdade.

De acordo com Pedro Santoro Zambon e Juliano Mauricio de Carvalho (2010), a

Abert tinha como objetivo “retirar a legitimidade da arena decisória da Confecom com

sua própria retirada da comissão, que acabou por levar consigo outras entidades”. Já a

decisão de Abra e Telebrasil por se manter na conferência, segundo Marcos Dantas

(2009), teve o objetivo de “enfraquecer politicamente a Abert e aproximá-los [os dois

grupos de representação] ainda mais do governo, desde que, porém, não abrisse

caminho para todo o tipo de resolução raivosa, oriunda de segmentos populares, que

esse tipo de encontro tende a abrigar”.

Esse “caminho raivoso” foi administrado pelo acordo de votação, que impediu

que qualquer resolução classificada pelos conferencistas como sensível de ser

aprovada sem o voto dos três grupos de interlocução da Confecom: governo, sociedade

civil empresarial e sociedade civil não-empresarial. Esse controle discursivo pela

seleção dos sujeitos em um ritual de votação, em conjunto com o controle na produção

de discursos classificando-os por meio de eixos temáticos que organizam o debate

evitando o caos, é característico da cultura política de processos conferenciais.

Percebe-se, portanto, que o Regimento Interno e as resoluções da CON são sobretudo

procedimentais, ordenando os debates e selecionando a efetividade dos discursos e

não excluindo ou selecionando os discursos que entram no debate.

Após a atenção voltada para os mecanismos instituídos para evitar crises de

identidades com a gestão de conflitos, cabe agora a discussão sobre os processos de

produção de discursos no interior da conferência.

A produção discursiva na etapa nacional

De 14 a 17 de dezembro de 2009, o maior encontro para discutir a comunicação

brasileira desde a Assembleia Constituinte de 1988 reuniu cerca de 1.800 pessoas em

sua etapa nacional, a maioria eleita pelas etapas estaduais e contando também com

observadores, integrantes da CON e indicados da Administração Federal. Para

conduzirem discussões informadas, os participantes no Centro de Convenções Ulysses

Guimarães, o espaço em Brasília onde as conferências de políticas públicas geralmente

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86

realizam sua etapa nacional, deveriam ter em mãos o Caderno de Propostas 29 ,

resultado da consolidação das propostas aprovadas nas etapas estaduais.

Pressupunha-se um conhecimento do chamado Documento de Referência30, material

sobre a metodologia dos debates estaduais que alimentaram o Caderno de Propostas e

contendo o Texto-Base que contextualizou historicamente o processo. A Confecom

contou também com os chamados Painéis, mesas de debates, cujo objetivo envolvia o

nivelamento de conhecimento dos participantes.

Como resultados esperados do processo conferencial, o Documento de

Referência estabelece: elaborar um documento, denominado Caderno da 1ª

Conferência Nacional de Comunicação, com propostas e relatórios encaminhados pelas

comissões organizadoras Estaduais e Distrital; subsidiar formulações no âmbito da

Política Nacional de Telecomunicações e de Radiodifusão; promover a divulgação do

Caderno da 1ª Confecom tanto junto às instâncias governamentais quanto nos diversos

setores da sociedade brasileira; estimular o compromisso e a responsabilidade dos

demais órgãos do poder público e da sociedade civil na construção do direito e da

cidadania na era digital. Como objetivo geral do processo, documento registra:

A Conferência Nacional de Comunicação - CONFECOM é um instrumento de

contribuição que tem como objetivo geral a elaboração de propostas

orientadoras para a formulação da Política Nacional de Comunicação, através

do debate amplo, democrático e plural com a sociedade brasileira, garantindo a

participação social em todas as suas etapas (DOCUMENTO DE REFERÊNCIA,

2009).

A Confecom realizaria isso, em termos de objetivos específicos, elaborando um

relatório final com princípios, diretrizes e propostas para a formulação e implementação

de políticas públicas de comunicação; e propondo mecanismos para efetivar a

participação social no âmbito da comunicação. Para contextualizar a Confecom em

29

Disponível em:

<http://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/conferencias/Comunicacao/texto_base_1_conferencia_

comunicacao.pdf>. Acesso em: 15 Jun. 2013.

30 Disponível em:

<http://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/conferencias/Comunicacao/caderno_propostas_1_conf

erencia_comunicacao.pdf>. Acesso em: 15 Jun. 2013.

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relação aos objetivos de outras conferências de políticas públicas, recorremos aqui a

uma categorização de Clóvis Henrique Leite de Souza (2012), que analisou

conferências ocorridas entre 2003 e 2010, separando suas finalidades na produção

discursiva em quatro grupos: agendamento, avaliação, participação e proposição.

O agendamento consiste em orientar o objetivo da conferência, principalmente,

no sentido de disseminar uma visão de política ou uma maneira de tratar um assunto.

Ora, era precisamente a intenção das entidades empresariais que se viram ameaçadas

em sua identidade. Perante a proposta de discussão ampla sobre comunicação,

quiseram estabelecer os objetivos da Confecom a partir de uma posição já estabelecida.

Souza se posiciona criticamente em relação a conferências de agendamento:

Não se quer aqui menosprezar a importância das conferências em difundir

ideias contribuindo com a formulação de uma agenda pública, até pela

capilaridade que alguns desses processos tiveram nos municípios. No entanto,

cabe a reflexão se um evento cujo propósito central é disseminar visões deve

ser considerado como processo participativo na gestão de políticas públicas,

embora o agendamento possa ser base para a proposição de políticas.

(...)

E se o intuito é a formulação de uma nova agenda, além de garantir a presença

de múltiplas perspectivas, faz-se necessário que a postura na organização vá

além da escuta. Fundamentais são ações que possibilitem a construção coletiva

e até mesmo o convencimento, tendo em vista a intenção de que sujeitos que

não consideravam determinado tema em sua pauta venham a incluí-los

(SOUZA, 2012, pp. 22-3).

Souza também menciona a categoria de avaliação, seja para o diagnóstico de

uma situação ou análise de implementação de uma política. Ao autor chamou a atenção

o fato de conferências com o objetivo de formular propostas não tenham incluído esse

diagnóstico em seu objetivo, o que é o caso da Confecom. Uma hipótese para tal

ausência envolve o próprio processo de mobilização da conferência: cada entidade ou

movimento já possuía um diagnóstico sobre os problemas na comunicação social e

buscavam um espaço de visibilidade para suas soluções. A própria recusa de alguns

empresários de discutir a atual configuração desse campo já indicaria, também, outro

conflito potencial se a Confecom se inclinasse para avaliar a situação. Cabe o

questionamento, no entanto, se a visibilidade alcançada pela conferência não pudesse

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ser aproveitada para apontar os problemas estruturais no debate público brasileiro ao

invés de circular as soluções que cada identidade apresenta para seu diagnóstico

particular. Perante a homogeneidade na cobertura jornalística, essa seria uma

formulação contra-hegemônica que não impediria, mas aliviaria a exposição negativa

de propostas apresentadas para problemas não conhecidos.

Por seus objetivos, a 1ª Conferência Nacional de Comunicação se classifica

como orientada para participação, que para Souza (2012, p. 25) caracteriza aquelas

conferências que se voltam para o fortalecimento ou criação de espaços participativos

para a gestão de políticas públicas. Na classificação de Souza, ela também é uma

propositiva. Para esta pesquisa, a Confecom é um evento voltado para a ampliação da

participação na proposição de um Plano Nacional de Comunicação. Essa perspectiva

se harmoniza com a literatura de políticas públicas e teoria democrática que analisa

conferências e permite posicionar a Confecom num espaço de disputa agônica sobre

como organizar a intervenção social no campo da comunicação.

A belga Chantal Mouffe (2005, pp. 135-40) propõe pensar a democracia como

um pluralismo agônico em que se trava a disputa entre uma diversidade de concepções

de “bem”, que apenas chegaria a resultados contingentes e negociados. Como os

sistemas sociais têm um caráter fundamentalmente político, estão sempre vulneráveis a

forças excluídas do processo de formação política, assim, a democracia sempre deverá

lidar com antagonismos. Um dos desafios das práticas políticas democráticas, segundo

Mouffe (2005, p. 101), será buscar criar um “nós” a partir da determinação daqueles que

foram excluídos.

O caráter aberto de um processo conferencial permite que a concepção de bem

desses excluídos ganhe espaço na produção de discursos sobre políticas públicas.

Para que os debates não se tornem disputas entre inimigos antagônicos, o caso

específico da Confecom tratou de selecionar sujeitos (que viram delegados com direito

a voto) e limitar sua capacidade de efetivar discursos (com o quórum qualificado) para

que não ocorresse uma crise de identidade nos atores políticos que governam a

conferência a partir da Comissão Organizadora. Essa configuração, por outro lado,

pressupõe que a Comissão Organizadora seja representativa das disputas sociais em

andamento, o que seria uma afirmação forte demais para este caso pela exclusão na

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CON de movimentos sociais (e suas pautas) que estavam na mobilizadora Comissão

Pró-Conferência. Apesar de alguns desses movimentos terem encontrado espaço nas

comissões organizadoras estaduais, a etapa nacional precisaria dar voz a grupos não

consagrados com representação institucional. O acúmulo de conferências já teria uma

tecnologia para responder a isso: a divisão dos debates em eixos temáticos que, por

sua vez, ocorrem em grupos de trabalho.

As propostas das Confecom estaduais, enviadas por cada comissão

organizadora estadual à CON em relatórios consolidados, foram sistematizadas e

reorganizadas em eixos temáticos pela Fundação Getúlio Vargas. Assim, o tema

estabelecido em decreto “Comunicação: Meios para a Construção de Direitos e de

Cidadania na Era Digital” foi desmembrado nos três eixos previamente determinados

pela Resolução n. 1, de 10 de setembro de 200931, da CON:

Eixo I - Produção de Conteúdo

Eixo II - Meios de Distribuição

Eixo III - Cidadania: Direitos e Deveres

Segundo o Regulamento da etapa nacional, cada eixo organizou-se em cinco

Grupos de Trabalho, que tinham o mandato de debater, aperfeiçoar e priorizar as

propostas constantes no Caderno de Propostas. Nesses grupos, participavam

delegados, com direito a voz e voto, e observadores e convidados, com direito a voz.

Propostas sem oposição eram automaticamente aprovadas. Quando alguém pedisse

destaque, a proposta precisaria receber 80% dos votos dos delegados do GT para ser

aprovada e incluída no Caderno da 1ª Confecom. Na validação das propostas

destacadas, as que não obtivessem 30% dos votos eram rejeitadas de pronto e aquelas

que ficassem entre 30% e 80% eram objeto de debate, podendo ser fundidas ou

alteradas. Ao final, os GTs estabeleceram entre as propostas não descartadas, mas

sem votos suficientes – por um procedimento de escolha definido pelo próprio grupo –,

sete propostas prioritárias, que seriam aquelas a serem submetidas a votação na

Plenária.

31

Disponível em:

<http://www.in.gov.br/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=44&data=14/09/2009>.

Acesso em: 17 Jun. 2013.

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90

Apesar do procedimento de votação específico, mas ainda exigente de um

quórum qualificado, os Grupos de Trabalho consistem em espaços voltados

principalmente para a discussão e troca de argumentos. Nesse espaço, identidades não

representadas na CON têm a oportunidade de apresentar, defender e garantir sua

pauta minoritária: seja agregando apoio para ser aprovada diretamente no GT, seja

encaminhando-a como prioritária para a Plenária.

Em termos morfológicos, Plenárias e Grupos de trabalho [se] diferenciam entre

si. As plenárias apresentam um tipo mais direto de ação, mais informal e, por

vezes, mais conflitivo. Sua forma de decisão é sempre agregativa em função do

próprio número de atores envolvidos. Os Grupos de Trabalho operam como

grupos de discussões face a face através dos quais os atores têm a chance de

apresentar suas opiniões e preferências, refletir e chegar às decisões por meio

da troca de argumentos. Nesse momento, mesmo que constrangid[as] pelo

tempo, narrativas, ideias e questões são levantad[a]s podendo redefinir

problemas, soluções e, às vezes, alianças estabelecidas. A forma agregativa de

soluções dos problemas também ocorre nos Grupos, mas ela, em tese, deve

ser precedida de discussões entre os atores em cena que podem, inclusive,

incluir novas proposições aos roteiros que balizam tais discussões. Por meio de

destaques, os atores envolvidos julgam publicamente as proposições, debatem

e acordam sobre como mudá-las. (FARIA et al., 2012)

No caso da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, Marcos Dantas revela

como se deu a dinâmica dos GTs e da Plenária.

[N]os próprios GTs, pequenas plenárias com cerca de 100 delegados cada um,

foi possível negociar boa parte dos acordos, geralmente na base do toma lá, dá

cá. Para a Abra e a Telebrasil eram, a rigor, poucas as teses que realmente

interessavam: são as fundamentais para a reprodução do capital, estas que,

nos tempos em que a esquerda era marxista, seriam consideradas decisivas,

quase exclusivas em qualquer discussão, pois remeteriam à disputa central

entre o capital e o trabalho. Já os “movimentos sociais” cuidavam, sobretudo, de

garantir “direitos”. (...) Nem a Abra, nem a Telebrasil iriam perder muito tempo

com isso, como ficou bastante evidente nas duas horas finais de Plenária,

quando as principais questões já tinham sido votadas, e tudo o mais passou a

ser aprovado por relaxada unanimidade.

Também não se preocuparam muito com as teses funcionalistas da CUT, do

FNDC ou do Intervozes, teses que, no fundo, ignorando velhas e novas lições

de Economia Política, ainda acreditam numa „missão‟ democrática e cidadã dos

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meios de comunicações. (DANTAS, 2010)

Dantas traz dados que podem relativizar o argumento de que GTs são espaços

privilegiados de discussão. Grupos de cerca de 100 pessoas, apesar dos avanços nas

técnicas de facilitação de debates, não são exatamente espaços em que uma discussão

possa fluir livremente e provavelmente subgrupos foram formados. Também traz

informações interessantes no comportamento dos atores empresariais: tais identidades

pareceram estar mais voltadas para a garantia de visibilidade de seu ponto de vista no

Caderno 1ª Confecom do que de antagonizar alguma perspectiva. Fica a pergunta

sobre quais seriam os resultados da conferência se as entidades empresariais que se

sentiram mais ameaçadas estivessem presentes.

Pode-se extrair a ideia que os grande ganhadores na Confecom foram os

representantes da sociedade civil que, em um contexto de cisão empresarial,

conseguiram aprovar suas propostas mais importantes, enquanto os

empresários acabaram por perder muitas definições que serão forçadas a

serem concluídas no futuro, fora de um cenário tão propício para o seu debate

como um evento das proporções da Confecom (ZAMBON; CARVALHO, 2010, p.

12).

A saída de grande parte dos representantes do setor empresarial trouxe uma

perda para a transparência de suas posições específicas, no enfrentamento a discursos

externos à ordem que as constitui. Nem Abra nem Telebrasil pareceram ser

massacradas em suas identidades e contribuíram para visibilizar quais diretrizes ou

práticas devem ser levadas em conta na constituição de um Plano Nacional de

Comunicação. A democracia representativa privilegia a ação do lobby na representação

de interesses e, embora existam no Congresso Nacional propostas de regulamentação

do lobby que podem trazer transparência a tais influências, essa prática legítima

sempre será apresentada ao agente público de forma isolada. Em um processo

conferencial, tais influências terão uma reação e contextualização de outros pontos de

vista, o que é péssimo para grupos de interesse e extremamente oportuno para a

gestão de políticas públicas.

Em relação a outras conferências, o evento não buscou avaliar a situação das

comunicações no Brasil ou disseminar uma única posição já definida sobre o que

consistiria um Plano Nacional de Comunicação, dada a pluralidade de identidades

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envolvidas desde a mobilização até a formação da CON. Um acordo de votação para

questões polêmicas impediria a escalada de conflitos entre os blocos de identidade,

mas tais conflitos acabaram não sendo significativos ao longo da etapa nacional após a

saída das entidades empresariais que constituíam sua identidade a partir de discursos

admissíveis ou não (exclusivamente a partir dos “preceitos constitucionais” que

selecionaram). Assim, pelo controle que ordenou os debates em eixos temáticos e por

aquele que selecionou a efetividade dos discursos num ritual de votação entre

delegados, a 1ª Conferência Nacional de Comunicação atingiu seu fim de produzir

diretrizes para a participação e a formulação de um Plano Nacional de Comunicação.

Tais diretrizes são o objeto da próxima seção.

As propostas e suas denúncias de exclusão

A análise das propostas originadas do processo participativo para a formulação

de políticas públicas para a comunicação tem como foco o controle discursivo e as

instâncias de participação presentes no Caderno 1ª Confecom32, já que a cobertura

jornalística voltou seu olhar para as ameaças nas propostas de controle de conteúdo e

nos órgãos de regulação da imprensa. Uma compreensão sobre em que consistem

esses “controles sociais” passa pela função que exercem na ordenação, produção,

exclusão, seleção e acesso a discursos sociais. A determinação da função do controle

pode posicionar a identidade daquele que o propôs, revelando carências e

necessidades presentes hoje no debate público brasileiro. É nesse sentido que se

orienta esta análise.

Para tal, adaptam-se as reflexões de Foucault em A ordem do discurso (2008a)

para inspirar a criação de categorias sobre a função do controle discursivo na finalidade

proposta pelas resoluções aprovadas na Plenária Final da 1ª Conferência Nacional de

Comunicação, além de uma categoria voltada para a lógica conferencial de ampliar a

participação no processo de gestão de políticas públicas. As propostas da Plenária Final

são aquelas que não foram aprovadas automaticamente pelos Grupos de Trabalho,

pressupondo maior conflito em torno de suas intenções.

32

Disponível em <http://www.mc.gov.br/component/docman/doc_download/480-caderno?Itemid=13217>.

Acesso em: 20 Jun. 2013.

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93

A primeira categoria consiste em propostas voltadas para instâncias de

incidência na gestão de políticas públicas. A segunda engloba o controle na produção

de novos discursos a partir de certa linguagem ou ordem que elimine o acaso em prol

de alguma coerência esperada. A terceira categoria inclui propostas que excluem ou

selecionam discursos adequados a determinada ordem, recortando o real e revelando o

objeto de desejo da intervenção. A quarta trata da seleção dos sujeitos, quando o

funcionamento da proposição depende de uma ação sobre aquele que enuncia, distribui

ou recebe a mensagem. A análise aqui não será exaustiva – há propostas semelhantes

e que se entrecruzam, portanto se conclui ser mais produtivo agregá-las em

interpretação holística.

As propostas em prol de instâncias de regulação envolveram principalmente

aquelas que criam conselhos. Reproduzem-se aqui algumas para demonstrar, inclusive,

como se apresenta a redundância de propostas, comum em todo Caderno da 1ª

Confecom:

PL 712: Criação de Conselhos de Comunicação nos âmbitos

federal, estaduais e municipais de caráter paritário com

membros eleitos e estrutura de funcionamento para que possa

acompanhar a execução das políticas públicas, que garantam

o exercício pleno do direito humano à Comunicação. Entre

suas atribuições, deve constar a regulação de conteúdo,

políticas de concessões, mecanismos de distribuição, dentre

outras.

PL 22: Criação de um conselho de Gestão dos Fundos de

Fomento à Radiodifusão Pública e, no médio prazo, para os

Conselhos Nacional e Estaduais de Comunicação Pública, a

serem formados com ampla representação da sociedade e que

definam a política de uso dos recursos, além de fazer o

acompanhamento dos gastos dos respectivos fundos.

PL 117: Reativar imediatamente o funcionamento do Conselho

de Comunicação Social, paralisado desde 2006, por omissão

da Mesa Diretora do Senado.

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Souza aponta que a criação de conselhos é desdobramento intuitivo de

conferências, pela conexão recorrente entre instâncias de participação.

Conferências, em geral, estão conectadas com outras instâncias de

participação. Em especial, com os respectivos conselhos gestores das políticas

em pauta que, muitas vezes, assumem responsabilidades na organização do

processo e podem acompanhar os encaminhamentos dados às deliberações.

Vale, pois, regulamentar as funções de responsabilidade do conselho antes,

durante e após a realização do processo conferencial. Ademais, outras

instituições participativas, como ouvidorias, audiências e consultas públicas,

podem contribuir com o fluxo de informações necessário para o diálogo

qualificado a respeito dos temas. As conferências que não possuem vínculos

com outras instâncias de participação podem criar, durante o processo

conferencial, mecanismos para monitoramento e avaliação das propostas

aprovadas. (SOUZA, 2013, p. 9)

A Confecom, nesse sentido, propôs a criação de instâncias reguladoras que

pudessem incidir sobre políticas públicas voltadas para a comunicação, seja na gestão

de fundos, no fomento ou qualquer outra incidência. Essas instâncias são estatais,

portanto, qualquer abuso no exercício dessas instâncias na gestão de políticas públicas

está impedido pela legislação vigente. Tal demanda demonstra identidades que buscam

reconhecimento no processo de gestão de políticas públicas por meio da constituição

de espaços de democracia direta. Houve ainda outra maneira de incentivo à

participação:

PL 361: Regulamentar o Artigo 223 da CF, definindo os

sistemas público, privado e estatal. O primeiro deve ser

entendido como aquele integrado por organizações de caráter

público, geridas de maneira participativa, a partir da

possibilidade de acesso universal do(s) cidadão(s) à[s] suas

estruturas dirigentes e submetida[s] a controle social. O

segundo deve abranger todos os meios de entidades privadas

em que a natureza institucional e o formato de gestão sejam

restritos, sejam estas entidades de finalidade comercial. O

terceiro deve compreender todos os serviços e meios

controlados por instituições públicas vinculadas aos poderes do

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Estado nas três esferas da Federação. Para cada um dos

sistemas, devem ser estabelecidos direitos e deveres no

tocante à participação social na gestão, às modalidades de

financiamento e às obrigações quanto à programação.

A participação neste caso refere-se ao acompanhamento do processo

comunicativo, independente de sua natureza, revelando identidades que parecem

alienadas desses processos.

Há propostas que combinam procedimentos de ordenação na produção

discursiva e de adequação e seleção de discursos. Há uma organização, pelo

discurso, do espaço social quando propostas visando veículos radiodifusores incitam a

produção de conteúdo de tipo nacional, regional, educativo, cultural, ambiental,

informativo, latino-americano, não-ficcional, antidrogas ou sobre grupos identitários. Tais

identidades envolviam questões de gênero, étnico-racial, religiosa, orientação sexual,

geracional e também pessoas com deficiência. Por exemplo:

PL 711: Apoiar a criação por lei de uma política que garanta a

veiculação de conteúdos nacionais e regionais, com produção

independente, nos meios de comunicação eletrônicos,

independentemente da plataforma em que operam, conforme

assegurada pela Constituição Federal de 1988. Assegurada a

plena liberdade de escolha desta produção pelos meios

eletrônicos. A lei deve estar baseada nos princípios de

reconhecimento e respeito dos direitos humanos,

universalidade e acessibilidade ao direito à comunicação,

igualdade, equidade, respeito à diversidade, respeito aos

direitos autorais[,] da mulher, promoção da justiça social,

laicidade do Estado e transparência dos atos públicos.

PL 716: Estabelecer que os meios de comunicação veiculem

conteúdos de caráter educativo, cultural, informativo e

ambiental de países latino-americanos, estabelecendo a

política de integração da América Latina. O conteúdo deve ser

transmitido nas suas línguas originais, com opções de

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dublagem, legenda e tradução simultânea, e respeitando as

diversidades regional, étnico-racial, religiosa, cultural,

geracional de gênero, dentre outras.

Mas se verifica que essas e outras propostas não se limitam à produção coerente

de conteúdo classificado por essas identidades – com incentivos fiscais ou outras

políticas –, já que contêm elementos de seleção dos conteúdos distribuídos pelo espaço

público hertziano, por onde se deslocam as ondas de radiodifusão. Não se trata apenas

de produzir determinados conteúdos compatíveis com os fins ordenadores das

classificações apontadas, mas também de selecionar, excluir ou adequar os discursos

em circulação com cotas para conteúdo, punições a conteúdos que desvalorizem

grupos e a devolução de verbas públicas ou mesmo a não renovação da concessão em

casos de desrespeito a normas constitucionais sobre conteúdo. Deduz-se disso que a

Confecom denuncia um sentimento de subrepresentação identitária, dos mais diversos

tipos, na televisão aberta, principalmente, mas tal ausência também é registrada em

outras mídias como TV a cabo, cinema e impressos.

Entre as propostas de adequação do discurso a determinada ordem, inclui-se o

código de ética do jornalismo:

PL 375: Criação de um código de ética do jornalismo brasileiro

como um dos mecanismos de controle público e social visando

a garantir a qualidade da informação veiculada pelos meios de

comunicação, sejam eles impressos, audiovisuais e demais

mídias, tendo em vista a democratização da Comunicação no

Brasil. Nas normas a serem definidas deverão estar previstos

os princípios éticos, os compromissos do jornalista e dos

proprietários dirigentes das empresas jornalísticas para com a

ética no exercício profissional, os direitos inalienáveis do

cidadão, a garantia bem clara e explícita do direito de resposta

do acusado por matéria jornalística divulgada, a definição do

que é abuso do direito à liberdade de imprensa e,

principalmente, as penalidades a serem impostas no caso de

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denúncias de transgressões devidamente comprovadas.

Apesar de apresentar-se como um código de ética, a presença de penalidades

nega tal caráter orientador. A proposta pontua o papel dos jornalistas e dos proprietários

na produção de informação de qualidade, incitando à regulamentação do direito de

resposta e ao debate sobre quais seriam os limites da liberdade de imprensa. Com a

revogação pelo Supremo Tribunal Federal da Lei de Imprensa, ficou sem

regulamentação o direito constitucional de resposta, o que provoca certa insegurança

jurídica sobre como esse direito deve ser exercido: o prazo para a divulgação da

resposta e o espaço dedicado a ela ficaram sob a discricionariedade da Justiça. Esse é

um assunto, entretanto, para legislação.

Mais adequado para um código é discutir sobre qual ordem discursiva a

imprensa constrói em sua interação com a sociedade: é bem-vindo o debate público

sobre a forma pela qual o comunicador lida com suas fontes, visibiliza grupos

vulneráveis e outros temas para estabelecer qual tipo de debate jornalístico um país

quer construir. O código seria a referência na qual o jornalista verifica desvios nas

relações que a sociedade espera de uma imprensa supostamente a seu serviço. Não é

um controle sobre como o jornalista escreve, mas sobre como seleciona os discursos

que formarão sua reportagem ou mesmo como outras instâncias realizam tal seleção

(por intimidação, assédio, etc.). Se essa seleção passaria por relações (com fontes,

empregadores, colegas) que não poupam esforços para a conquista do furo jornalístico

ou que buscam impedir desvios de algum ideal democrático será uma escolha social. A

proposta de construção de uma identidade de comunicador ético revela, porém,

identidades expostas a posturas antiéticas na comunicação, o que revela a urgência

dessa escolha.

Sem dúvida, as propostas mais diversas são aquelas que regulam a seleção

dos sujeitos que se expressam e que recebem as informações pelas mídias. Entre as

propostas que incidem sobre os sujeitos expressivos há a estratégia de equipar e

formar tecnologicamente os cidadãos, com núcleos comunitários e capacitação para as

diversas mídias. Toda forma de expressão tecnológica possui uma linguagem própria e

a criação de laboratórios “atualizados” de informática, rádio e TV nas escolas trata de

familiarizar o sujeito nessas diferentes linguagens, proporcionando sua entrada na

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comunicação que essas tecnologias permitem.

Produtores ganham diversos estímulos por sua condição de locais, nacionais e

independentes. Uma forma de selecionar esses sujeitos é pelo financiamento. A

seguinte proposta se destaca por separar a produção da transmissão (emissão) e da

distribuição de conteúdo:

PL 715: Apoiar e incentivar a produção independente no Brasil,

por meio de editais e ampliação dos preceituais de fundos

setoriais de apoio e investimento, de modo a construir políticas

para o fomento de produção de conteúdo audiovisual, levando

em consideração as produções locais e regionais

independentes, realizadas por MPES, micros, pequenas e

médias empresas, cujos acionistas não tenham participação

acionária em empresas emissoras e distribuidoras e que

tenham financiamentos viáveis garantindo a veiculação

adequada de acordo com o público-alvo.

O esforço para a multiplicação de sujeitos expressivos também envolve políticas

públicas voltadas para evitar o controle de grupos de programadores no conteúdo da

grade de programação com o estabelecimento de cotas; para o estímulo à formação de

redes locais e regionais de rádios públicas, estatais e comunitárias; para o estímulo à

concorrência de empresas e entidades pela diversificação do mercado; e a

regulamentação da proibição, na Constituição Federal, a monopólios e oligopólios na

comunicação.

Um conjunto de propostas busca ampliar o acesso de sujeitos a conteúdos por

meio da liberação parcial de direitos autorais atribuídos à produção. O uso da licença

Creative Commons, que permite a distribuição de conteúdo sem a necessidade de

autorização do autor, instaura uma liberdade nessa circulação em contraposição aos

limites que direitos autorais impõem ao acesso dos sujeitos ao conteúdo.

Outro conjunto de propostas busca terminar com a seletividade dos órgãos de

controle na fiscalização do uso das ondas hertzianas, mais especificamente o fim da

criminalização das rádios comunitárias e a ampliação da fiscalização sobre emissoras

que não sigam diversos requisitos na outorga da concessão, por exemplo:

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PL 105: Que todas as outorgas, concessões, permissões e

autorização nas quais se identifiquem irregularidades em face

à legislação vigente sejam objeto de revisão, concedendo-se

prazo para apresentação de defesa, bem como para

adequação às normas. Não sendo apresentada defesa ou não

sendo sanada a irregularidade, que seja cassada a outorga

concedida e que sejam realizadas obrigatoriamente audiências

e consultas públicas no processo de renovação de outorga,

anunciadas tanto pelas próprias emissoras e pelas prestadoras

de serviços. Em se tratando de emissoras cabeças de rede, o

concessionário e o Ministério das Comunicações ao

estabelecimento de regras que limitem a afiliação entre

emissoras, fomentem à distribuição independente de conteúdo

devem apresentar levantamento, com resultados de pesquisa

de opinião ou outros dispositivos, com a avaliação dos serviços

prestados à comunidade, para fins de comprovação de

atendimento dos compromissos firmados no ato da assinatura

da outorga.

A ampliação de acesso também ocorreu pelo foco na distribuição de conteúdo.

Uma proposta incita os Correios a oferecer tarifas mais baratas para pequenas

empresas de comunicação, com fins de “romper o atual monopólio existente no setor de

distribuição de periódicos”. Os jornais, revistas e livros também foram alvo para torná-

los de mais fácil acesso pela diminuição dos preços com financiamento ou redução de

carga tributária. O fortalecimento de distribuidoras de audiovisual foi proposto por meio

da criação de uma empresa pública de fomento.

Por fim, vale salientar as propostas de inclusão digital pela banda larga:

PL 417: Criação do serviço de banda larga a ser prestado em

regime público, por meio de diversas tecnologias, com metas

de universalização do acesso, metas de qualidade, controle de

tarifas e garantia de continuidade.

PL 421: O Acesso à Internet Banda Larga é um direito

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100

fundamental e deve ser garantido pelo Estado, que deve

instituir uma política de tarifas que torne viável o acesso

residencial a toda população, garantindo a gratuidade do

serviço sempre que necessário.

PL 436: Garantir banda larga com velocidade e qualidade,

assegurando condições aos requisitos para a acessibilidade.

Essa amostragem de propostas aprovadas na 1ª Conferência Nacional de

Comunicação apresenta alguns elementos relevantes sobre o evento. O procedimento

de controle discursivo mais frequente nas propostas foi aquele voltado para os sujeitos

da produção cultural, não sobre o conteúdo (pela produção orientada ou pela

adequação daquilo que circula). Ou seja, a maioria das resoluções da conferência

busca ampliar o acesso das pessoas a formas de expressão e recepção de discursos

ou reduzir os impedimentos existentes sobre tais formas.

Propostas que visam à adequação de conteúdo, um procedimento cujo uso pode

escalar para a censura, se concentraram na busca do respeito aos direitos humanos e a

grupos vulneráveis e, mais sensível, na atuação jornalística. A proposta de código de

ética jornalística acabou focando a “qualidade da informação” a partir de direitos e

compromissos e, “principalmente”, das penalidades a abusos e correções de desvios.

Apesar dessa perspectiva, na opinião deste autor, poder ser uma ameaça à liberdade

de expressão quando não orientada por princípios democráticos, é possível afirmar que

a demanda por esses procedimentos indica o desrespeito que identidades sentem em

sua visibilidade pública, em seu modo de se tornar visíveis nas superfícies de inscrição

social, principalmente as midiáticas. São identidades cuja visibilidade na mídia não as

representa e, exatamente por isso, estiveram desde o início envolvidas na mobilização

para a Confecom: envolvem gênero, etnia-raça, orientação sexual, etc.

Se à demanda por esses procedimentos de adequação for incluída a demanda

por procedimentos que inserem os sujeitos no debate público, percebe-se que a 1ª

Conferência Nacional de Comunicação pode ser totalizada como um espaço de

resistência daqueles excluídos do debate público, seja porque o conteúdo circulante

não os contempla ou os desrespeita, seja porque não têm acesso aos meios para

apresentar sua visão. Temas e sujeitos invisíveis ou não reconhecidos nos meios de

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101

comunicação, os impactos dos direitos autorais na circulação de conteúdo, a formação

para a comunicação pelas tecnologias de informação e o acesso a tais tecnologias são

elementos de reflexão necessários para um Plano Nacional de Comunicação que

busque a inclusão daquele excluído, promovendo uma forte e firme democratização das

comunicações. Talvez assim a liberdade de expressão no Brasil passe a ser promovida

por políticas públicas e deixe de ser “defendida” contra os excluídos de seu exercício.

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102

Conclusão

Um novo debate democrático

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103

No início do século 21, o modelo hegemônico de organização política em

sociedades ocidentais ou ocidentalizadas coloca o debate público no centro de seus

processos. Em uma situação na qual diversas instâncias de poder governam as práticas

da coletividade – conselhos corporativos incidem sobre profissionais, religiões

influenciam os costumes, a publicidade cria vínculos com consumidores, etc. –, os

defensores da democracia buscam submeter esses poderes ao escrutínio público,

expô-los à intempérie de posições relativas que testa a resiliência das tradições e, em

geral, reconfigura identidades. Complexos sistemas de regras foram erguidos para que

o debate público gere resultados e prossiga indefinidamente, orientando sujeitos e

práticas sociais. Cicélia Pincer, em debate no Memorial da América Latina, em São

Paulo, comenta como a liberdade de expressão e o direito à informação estiveram no

cerne das decisões que forjaram a identidade do Ocidente:

Tal identidade, consolidada na forma da democracia, implica dentre outros

aspectos e condições de possibilidade, a existência de um sistema de produção

e distribuição da visibilidade simbólica dos acontecimentos e ações dos sujeitos

sociais, que se baseou fundamentalmente – mas não exclusivamente – numa

imprensa livre e no jornalismo como oci [ocupação] de competência profissional

e técnica legítima capaz de reorientar o próprio sentido de publicidade, que,

desde a consolidação do capitalismo como processo civilizatório a partir do

século XIX, se traveste de um interesse público para um interesse comercial-

privado configurado em bases empresariais. (PINCER, 2010, p. 19)

A visibilidade desse sistema de produção se realiza atualmente, segundo

descrição de Pincer (2010, pp. 19-31), mediante as seguintes condições: a

centralização da produção da informação em grandes corporações financeiras e

empresariais; a constituição de empreendimentos políticos e jurídicos para permitir o

controle destas condições; e o uso de uma racionalidade esquemática e redutora da

complexidade e diversidade social como parâmetro para a produção jornalística. Trata-

se de um debate público com fortes influências da economia política, mas não na forma

recomendada, por exemplo, pelo sistema interamericano de liberdade de expressão.

Embora uma racionalidade jornalística voltada à vigilância de interesses e a regulação

estatal estivessem previstas nas recomendações regionais visitadas no capítulo 1, a

descrição que Pincer faz de grandes corporações como centralizadoras da produção

discursiva contraria o que “deveria ser” um livre mercado de comunicação, sem o qual a

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104

imprensa corre o risco de produzir o inverso da liberdade pretendida pelos ideais

liberais.

Isso se torna mais grave com uma lógica produtora de antagonismos no discurso

de liberdade de imprensa, sempre à espreita de um inimigo que vem ameaçar a

democracia. Como a análise dos jornais no capítulo 2 apresentou, a indicação

persistente de ameaças deixa invisível a própria experiência de violação de direitos

humanos, que se torna mero argumento instrumental para a construção do Outro

ameaçador, ao invés de ser o próprio objeto do debate público. Alberto Dines (2010, p.

125), no mesmo ciclo de debates no Memorial, descreve o fazer jornalístico no Brasil

como “o campo de batalha onde se trava uma guerra escancarada pela conquista dos

corações e mentes em sociedades carentes de referências primárias e atordoadas pelo

excesso de informações secundárias”.

A mudança desse cenário passa pela revisão da estratégia de preservação

democrática que funciona a partir da vigilância sobre racionalidades voltadas para fins.

Para tal, deve-se partir das necessidades de uma democracia que não considere o

debate público apenas o espaço em que a disputa de interesses ganha visibilidade. Um

programa pela democratização das comunicações não pode ficar restrito à configuração

da economia política das tecnologias de informação e comunicação, tratando

exclusivamente de temas relacionados à concentração da mídia ou à regulação setorial,

sem uma mudança conceitual do próprio debate público. Na dimensão do saber, o

pluralismo não deve ser encarado como uma ameaça discursiva, com o risco de

reproduzir uma cultura de perigo e segregação e constituir o imaginário de uma

democracia em constante declínio. Se isso se abre como uma possibilidade recorrente

em um debate voltado para o interesse33, haveria alguma forma de pensar o debate

público de maneira a não constituir uma ameaça a partir do pluralismo? Será possível

33

Por debate público voltado para o interesse, refere-se à vigilância de interesses de qualquer natureza

pela imprensa. A organização do espaço social em termos de interesse, em que dividimos interesses

sociais ou interesses econômicos, contribui para a perda da dimensão moral da democracia, funcionando

de forma utilitarista e em meio a uma cultura de perigo originada da interação entre esses diversos

interesses. É sempre uma decisão feita em termos de risco: se não privilegiarmos os interesses

econômicos, os interesses sociais não serão atingidos, ou se os interesses sociais não tiverem atenção

podem prejudicar os interesses econômicos.

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105

uma estratégia de segurança democrática que não produza sistematicamente discursos

com antagonismos ameaçadores, que escondem a alteridade com a face do inimigo? A

seguir, realiza-se um esforço teórico para explorar essa possibilidade.

A superação dos problemas da democracia liberal com o pluralismo de valores

teve importante contribuição dos teóricos políticos Ernesto Laclau e Chantal Mouffe em

Hegemony and Socialist Strategy (2001), quando lançaram o projeto de constituir um

novo imaginário político a partir da aceitação do pluralismo e da indeterminação do

social.

A tese central do livro é que a objetividade social é constituída através de atos

de poder. Isso implica em que toda objetividade social é, em última instância,

política e que ela deve mostrar os traços de exclusão que governam sua

constituição. Esse ponto de convergência – ou ainda colapso mútuo – entre

objetividade e poder é o que queríamos dizer por „hegemonia‟. Essa forma de

propor o problema indica que o poder não pode ser concebido como uma

relação externa a ocorrer entre duas identidades pré-constituídas, mas sim

constituinte das próprias identidades. Já que qualquer ordem política é a

expressão de uma hegemonia, de um padrão específico de relações de poder, a

prática política não pode ser vista simplesmente representando os interesses de

identidades pré-constituídas, mas como constituintes dessas próprias

identidades em um precário e sempre vulnerável terreno34

(MOUFFE, 2009, pp.

99-100).

Na constituição de identidades desse programa de “democracia radical”,

diferenciam-se relações de subordinação, quando um agente é sujeito às decisões de

outro, relações de opressão, quando as relações de subordinação se tornam espaços

de antagonismo entre as identidades envolvidas, e relações de dominação, quando a

subordinação é considerada ilegítima a partir da perspectiva ou julgamento de um

agente social externo a tal relação. Uma relação de subordinação, vale salientar, não é

antagônica, mas meramente diferenciadora de identidades. A subversão do sujeito

subordinado só pode ocorrer em termos de uma formação discursiva diferente da que

constitui a subordinação: servo ou escravo só ganha posições antagônicas quando

constituídas por formações discursivas como “direitos inerentes a todo ser humano”.

Nossa tese é que apenas a partir do momento em que o discurso democrático

34

Tradução nossa.

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106

se torna disponível para articular as diferentes formas de resistência à

subordinação que existirão as condições para tornar possível a luta contra

diferentes tipos de desigualdade35

(LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 154).

Como a democracia liberal, a democracia radical também considera a liberdade

de informação uma necessidade: não para circular informações sobre intenções,

segmentadas entre pública ou privada, Estado ou mercado, interesses sociais ou

econômicos, mas informações que possam constituir identidades de resistência à

opressão. Uma reflexão sobre liberdade de expressão a partir dessa fundamentação da

democracia traz consequências importantes para o debate público. Por um lado, o

comunicador orientado por esse saber organiza o espaço social a partir da busca por

traços de exclusão e está posicionado de forma privilegiada para detectar relações de

dominação. Como agente externo à relação de subordinação, o comunicador está na

posição de apontar situações que considera de exclusão. Por outro, o exercício da

liberdade de expressão do oprimido depende da disponibilidade de discursos

democráticos, circulantes na sociedade, que permitam a ressignificação de uma

identidade subordinada para outra constituída a partir de um antagonismo. Aqui, para a

formação de um pluralismo que não constitua identidades a partir de um inimigo a ser

exterminado, Mouffe (2005) introduz a categoria de “adversário”. A política democrática

deve ter a preocupação de formar um espaço simbólico comum nos antagonismos de

maneira a permitir confrontos, não entre identidades inimigas, mas de adversários que

possam coexistir a partir de uma ética que equilibre os princípios democráticos de

liberdade e igualdade – a política deve ser capaz de transformar antagonismos em

“agonismos”, tornando disponíveis formas democráticas de individualidade e

subjetividade como principal estratégia para a preservação da democracia frente às

relações de opressão que a desconstroem:

De outro modo, desprovidos da possibilidade de identificarem-se com

concepções preciosas de cidadania, muitas pessoas estão, em um crescendo,

procurando formas de identificação que podem muito freqüentemente colocar

em risco o laço cívico que deveria unir a associação político-democrática. O

crescimento de várias religiões, bem como de fundamentalismos morais e

étnicos, é a meu ver a conseqüência direta do déficit democrático que

35

Tradução nossa.

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107

caracteriza a maior parte das sociedades liberal-democráticas36

(LACLAU;

MOUFFE, 2001, p. 19).

A liberdade de informação para constituição de identidades de resistência,

portanto, exige a adequação e a seleção de conteúdos capazes de identificar traços de

exclusão no social e de constituir um „nós‟ democrático inclusivo. Isso posiciona

formações excludentes de movimentos sociais, de gênero, etnia e raça, religião,

sexualidade, geração e de pessoas com deficiência, para citar aqueles destacados na

Confecom, como discursos que identificam o funcionamento de práticas sociais não-

democráticas. Precisamente por serem nocivos no contexto de uma relação de

subordinação/opressão, são de interesse para o comunicador em busca de traços de

exclusão que podem evidenciar relações de dominação. Discursos discriminatórios são

de grande importância para a compreensão de como sujeitos são excluídos da

democracia e revelam antagonismos sociais. A conscientização dessa discriminação

sensibiliza o público e o comunicador contra-hegemônico para que tipo de discurso de

resposta deve circular para possibilitar a resistência contra a subordinação. É um

assunto extremamente delicado, dada a capacidade do discurso de contribuir para a

reprodução de práticas discriminatórias no social: se garantida a voz do oprimido, será

que o opressor deve ter sua vez mantida? A lição do liberalismo consiste precisamente

em revelar as consequências desse tipo de lógica. Por um lado, quando uma ameaça

discursiva é relegada à heresia, um espaço de invisibilidade social resulta formado.

Discursos não-democráticos têm lugar na democracia como evidência empírica de que

existem relações não-democráticas no território governado. Por outro lado, cultivar uma

cultura de perigo em relação a esses discursos pode levar à mesma lógica de

segurança na qual a proteção contra a ameaça pode ela mesma se tornar opressiva,

promovendo um “higienismo” nos costumes. Em uma democracia, a discriminação é

desconstruída pela promoção de uma luta por hegemonia, não por uma interdição37.

Aos mecanismos de adequação de conteúdo cabe a abertura de possibilidade dessa

luta, expondo a exclusão e constituindo um espaço simbólico de ressignificação de

36

Tradução nossa. 37

É claro que a interdição do apoio público (financiamento, uso do espectro eletromagnético) a sujeitos

que disseminam discursos discriminatórios surge como possibilidade democrática, mas foge ao escopo

de promover a disputa contra-hegemônica.

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108

identidades a partir de um discurso de direitos.

Os desafios que se apresentam não são poucos. Uma democracia que não

incentive uma cultura de perigo à alteridade exige um espaço simbólico comum para

relações antagônicas, enquanto uma liberdade de expressão não controlada por uma

racionalidade voltada para fins traz a necessidade de outro tipo de controle na produção

discursiva que organize o espaço social de forma a não deixar invisíveis experiências

de subordinação e permita canalizá-las em lutas de resistência.

Isso exige o fornecimento de canais através dos quais paixões coletivas tenham

vazão para se expressar sobre assuntos que, ao darem possibilidades

suficientes de identificação, não construam o oponente como um inimigo, mas

como um adversário38

(MOUFFE, 2009, p. 103).

Um debate público para uma proposta não-racionalista de democracia,

que reconheça o papel das paixões na constituição do político, consiste em um espaço

simbólico em que conflitos sociais possam ser canalizados e ressignificados. Nesse

sentido, é preciso conceber um debate coerente com a dinâmica dos conflitos sociais.

A dinâmica dos conflitos sociais

Axel Honneth fundamenta uma teoria social de teor normativo que pode ser um

saber referencial interessante para conceber um espaço em que conflitos possam ser

canalizados de maneira orientada à emancipação. Trata-se da luta por reconhecimento,

uma atualização dos escritos de Jena do filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel,

particularmente sua não-concluída teoria do reconhecimento, a partir da psicologia

social de George Herbert Mead, uma “fenomenologia empiricamente controlada das

formas de reconhecimento” (HONNETH, 2003, p. 256). Para Honneth, as lutas por

reconhecimento impulsionam a ação social dos sujeitos e o progresso moral da

sociedade a partir de expectativas de autorrealização.

As dimensões da autorrealização individual – quando, seguindo Mead, as

reações do Outro atribuem valor às capacidades e propriedades desenvolvidas por um

sujeito (HONNETH, 2003, pp. 147-8) – consistem no reconhecimento intersubjetivo no

interior das relações do amor, correspondente às relações de afeto; do direito,

correspondente às relações jurídicas; e da solidariedade ou estima social, que permite

38

Tradução nossa.

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109

ao sujeito uma compreensão positiva de si próprio em suas propriedades particulares e

coletivas. Essas três dimensões de reconhecimento em sociedades modernas criam,

em conjunto, as condições sociais para um sujeito manter uma atitude positiva consigo,

desenvolvendo respectivamente autoconfiança, autorrespeito e autoestima e permitindo

sua autonomização e individuação. Esse modelo atribui os conflitos sociais à frustração

do processo de autorrealização.

Diferentemente de todos os modelos explicativos utilitaristas, ele sugere a

concepção segundo a qual os motivos da resistência social e da rebelião se

formam no quadro de experiências morais que procedem da infração de

expectativas de reconhecimento profundamente arraigadas. Tais expectativas

estão ligadas na psique às condições de formação da identidade pessoal, de

modo que elas retêm os padrões sociais de reconhecimento sob os quais um

sujeito pode se saber respeitado em seu entorno sociocultural como um ser ao

mesmo tempo autônomo e individualizado; se essas expectativas normativas

são desapontadas pela sociedade, isso desencadeia o tipo de experiência

moral que se expressa no sentimento de desrespeito (HONNETH, 2003, p. 258).

Os sentimentos de desrespeito e injustiça impulsionam a luta pelo

reconhecimento, que ganha uma motivação secundária: a conquista de uma

autorrelação nova e positiva.

Na vergonha social viemos a conhecer o sentimento moral em que se expressa

aquela diminuição do auto-respeito que acompanha de modo típico a tolerância

passiva do rebaixamento e da ofensa; se um semelhante estado de inibição da

ação é superado agora pelo engajamento na resistência comum, abre-se assim

para o indivíduo uma forma de manifestação com base na qual ele pode

convencer-se indiretamente do valor moral ou social de si próprio: no

reconhecimento antecipado de uma comunicação futura para as capacidades

que ele revela atualmente, ele encontra respeito social como a pessoa a quem

continua sendo negado todo reconhecimento sob as condições existentes

(HONNETH, 2003, p. 259).

A luta, porém, só será caracterizada como social se a experiência de desrespeito

e injustiça puder ser generalizada para além do horizonte das intenções individuais,

sendo capaz de fundamentar um movimento coletivo. A generalização agrega ao

indivíduo a estima mútua do grupo ao se apresentar como uma formação hegemônica

que permite, inclusive, a agência coletiva nos termos de uma luta por reconhecimento. A

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110

compreensão, por exemplo, da violência doméstica não como uma experiência

meramente individual, mas como condição compartilhada por uma diversidade de

mulheres trouxe a possibilidade de uma atuação que resultou nas políticas públicas

solidárias à vítima da Lei Maria da Penha. Igualmente frustrante é a condição de

comunicadores comunitários, envolvidos cada um nos lentos trâmites burocráticos da

busca por uma concessão de radiodifusão, que motiva a luta pelo reconhecimento de

sua liberdade de expressão, seja pelo início das emissões sem a outorga, seja pela

incidência na política institucional.

É o desapontamento político de expectativas morais que conduz ao abalo de

relações de reconhecimento tradicionalmente constituídas, iniciando uma disputa em

que se abrem novas possibilidades de identidade. O foco na lógica moral dos conflitos

sociais, portanto, envolve a criação de um espaço simbólico em que relações

antagônicas podem ser canalizadas e identidades ressignificadas. É o que precisamos

para pensar um novo tipo de debate público.

Debate democrático como espaço de reconhecimento

No sistema interamericano de liberdade de expressão, esse direito é

fundamentado a partir das capacidades comunicativas do ser humano, por sua

IMPRENSA PARA A DEMOCRACIA INTERAMERICANA

Estratégia de segurança democrática: antagonismo perante censura e

autoritarismo; exercício dos direitos humanos

Dispositivo disciplinar:

Programa: vigilância sobre interesses

Tecnologia: prática jornalística

Condições para governamentalidade (elementos do dispositivo):

Estado disciplinado e regulador (sem censura prévia, sem discriminação,

sem interdição da expressão por meios indiretos)

Pluralidade de comunicadores independentes em mercado competitivo

Proteção especial a discursos de interesse público, de agentes em função

pública e de dignidade identitária

Liberdade produzida

Liberdade de informação para a gestão de interesses: debate público

robusto e vigoroso com opinião pública informada, imputabilidade de

agentes públicos e controle cidadão

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111

necessidade para a democracia e pelo exercício de todos os outros direitos

fundamentais. O sistema desenvolve principalmente os dois primeiros fundamentos

(chamados no capítulo 1 de “regimes de verdade”), incluindo nesse direito o acesso às

tecnologias que ampliam as capacidades comunicativas e constituindo um tipo de

debate público democrático. É um debate voltado para a gestão de interesses, um

espaço simbólico que visibiliza a concorrência social por bens escassos e a busca pelas

condições de reprodução de identidades sociais. O controle interno ao discurso desse

debate, a partir do interesse, busca vigiar aqueles interesses particulares que podem

representar ameaça à ordem democrática.

Todavia, a fixação da teoria social na dimensão do interesse também acaba

obstruindo o olhar para o significado social dos sentimentos morais, e de

maneira tão tenaz que incumbe hoje ao modelo de conflito baseado na teoria do

reconhecimento, além da função de complementação, também a tarefa de uma

correção possível: mesmo aquilo que, na qualidade de interesse coletivo, vem a

guiar a ação num conflito não precisa representar nada de último e originário,

senão que já pode ter se constituído previamente num horizonte de

experiências morais, em que estão inseridas pretensões normativas de

reconhecimento e respeito (HONNETH, 2003, pp. 261-2).

Com a intenção de complementar e corrigir esse debate público que perdeu seu

horizonte moral, ensaia-se aqui a constituição de um debate coerente com a lógica

moral das lutas sociais, que leve em conta as condições intersubjetivas da integridade

pessoal. É um debate que retira a democracia e a liberdade de expressão de sua

posição defensiva, constituindo sua ordem a partir de suas ameaças, e que permite, ao

contrário, sua promoção, a expansão de tais ordens pela consciência e a inclusão

daqueles em situação de subordinação.

O primeiro objetivo para a constituição desse debate público é a aquisição da

consciência dos espaços de exclusão social. As experiências pessoais de desrespeito

afetam potencialmente outros sujeitos e a visibilidade desses afetos precisa estar nas

representações de nossa comunidade social. Para que haja tal visibilidade, é

necessário, por um lado, que os indivíduos sejam capazes de articular seu sofrimento

pessoal em termos de um discurso político, e, por outro, que comunicadores

reconheçam relações de dominação e resistência sendo reproduzidas na sociedade.

Essas duas necessidades do debate público ampliam os espaços de visibilidade além

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112

das tecnologias de comunicação e informação, consequentemente da imprensa, para

englobar espaços de formação, manifestações, audiências públicas, expressões

culturais e artísticas, processos conferenciais e qualquer outra oportunidade que

canalize os sentimentos provocados pela exclusão e subordinação dos sujeitos.

Qualquer espaço que atribua sentidos que articulem os sentimentos morais

desrespeitados dos indivíduos tem o potencial de promover a liberdade de expressão.

Ao invés do interesse, o controle que permite a produção de novos discursos

promotores da liberdade de expressão organiza o espaço social a partir da experiência

de desrespeito. Esse controle promove transparência nas causas sociais dos

sentimentos individuais de lesão e um debate sobre as consequências sociais da

reversão dessa condição. É importante que dentro desse debate contra-hegemônico as

pessoas sejam capazes de discordar quanto às identidades em discussão, futuras e

presentes, ao mesmo tempo em que disputam corações e mentes para uma hegemonia

que torne efetiva a ação política. Isso só é possível quando se organiza o espaço social

a partir do desrespeito. A denúncia de interesses em si é interessada em sua ordem

discursiva e pode se perder na defesa de seus próprios interesses; a denúncia do

desrespeito é ética e impele os sujeitos a tomar uma posição sobre essa condição, ou

seja, a condição de subordinação não perde a atenção do debate enquanto seu

sentimento gerativo circular, mesmo em meio a uma disputa de posições.

Um segundo objetivo desse debate público é constituir a reação moral da

sociedade aos sentimentos de desrespeito expressos ou visibilizados por denúncias de

terceiros. Se o oprimido tem voz ou visibilidade, a sociedade deve ser capaz de acolher

a expressão da carência e discutir o valor identitário a ser reconhecido.

Os sentimentos de injustiça e as experiências de desrespeito, pelos quais pode

começar a explicação das lutas sociais, já não entram mais no campo de visão

somente como motivos de ação, mas também são estudados com vista ao

papel moral que lhes deve competir em cada caso no desdobramento das

relações de reconhecimento (HONNETH, 2003, p. 265)

Honneth menciona um quadro interpretativo do processo de formação dessa

reação, que busca padrões de reconhecimento visando à ampliação progressiva dessa

ordem moral. Esse quadro forma a semântica que permite a generalização da

experiência individual e consiste de “doutrinas ou idéias morais capazes de enriquecer

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113

normativamente nossas representações da comunidade social” (HONNETH, 2003, p.

258). Trata-se das expectativas39 morais de nossa sociedade. Havendo expectativas, e

o desapontamento dessas expectativas, haverá lutas por reconhecimento. De qualquer

maneira, menciona-se aqui esse quadro mais por seu funcionamento discursivo na

proposta de Honneth do que por sua existência claramente referenciada como uma

necessidade do debate contra-hegemônico. Como funciona um discurso que acolha as

expressões reivindicadoras de uma luta por reconhecimento?

Um discurso de generalização do sofrimento individual deve ser capaz de

“arrancá-los [aqueles em situação de desrespeito] da situação paralisante do

rebaixamento passivamente tolerado e de lhes proporcionar, por conseguinte, uma

auto-relação nova e positiva” (HONNETH, 2003, p. 259). A expectativa moral abre a

possibilidade de redefinição das identidades de opressor e oprimido em relações

compatíveis com uma democracia: o debate se torna criativo em prol de práticas de

cidadania, cuja necessidade Mouffe atribui à preservação do modo de vida democrático.

Isso expande sentidos além da economia política e do Estado de Direito, pois

não se trata apenas de apontar a ilegalidade e as imperfeições no mercado da

propriedade de políticos sobre jornais e radiodifusoras, ou mesmo de relacionar essa

condição à angústia daqueles que veem negado o reconhecimento de seu valor moral

ou social pela ausência na circulação simbólica de discursos que os permitam articular

sua situação de subordinação. O debate contra-hegemônico deve fazer circular não só

os discursos que generalizam os sentimentos individuais, mas também as “boas

práticas” da ação política: o conhecimento daqueles que reverteram sua condição de

subordinação com técnicas para rádios de poste, stêncil, esforços mobilizatórios para

atrapalhar a fiscalização da Polícia Federal sobre as rádios engessadas pela burocracia,

etc.

Se a luta social é interpretada da maneira mencionada a partir de experiências

morais, então isso não sugere de início nenhuma pré-decisão a favor de formas

não violentas ou violentas de resistência; antes, continua totalmente em aberto,

39

As expectativas morais desse quadro podem receber contribuições de padrões internacionais de

direitos humanos, mas em um debate público pode ser inadequado um vínculo institucional que não

possa ser contestado, dando-se preferência a recomendações (como as do sistema interamericano) que

sejam mais um elemento do debate.

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num nível descritivo se são pelos meios práticos da força material, simbólica ou

passiva que os grupos sociais procuram articular publicamente os desrespeitos

e as lesões vivenciados como típicos e reclamar contra eles (HONNETH, 2003,

p. 257).

Honneth destaca ainda a importância da criação de “um nexo objetivo-intencional,

no qual os processos históricos já não aparecem como meros eventos, mas como

etapas em um processo de formação conflituoso” (HONNETH, 2003, p. 268).

Contextualizar uma relação de subordinação numa perspectiva histórica de formação

de cidadanias democráticas pode contribuir para a reversão da tolerância ao

rebaixamento do sujeito oprimido, ampliando suas possibilidades expressivas. Tal

reversão não precisa ser constituída apenas em dimensão temporal, já que outros

sujeitos em situação presente semelhante também estão espalhados pelo território: um

debate público democrático deve ter como terceiro objetivo a criação da possibilidade

de redes de solidariedade espaciais e temporais que impulsionem a confiança do

sujeito expressivo. Situações de opressão sofridas por ativistas, assentados,

comunicadores, povos tradicionais, minorias ou outros discriminados, perseguidos e

ameaçados têm mais chances de serem expostas se o sujeito estiver em contato com

outros em semelhante condição, formando uma rede identitária, mobilizatória e

colaborativa.

Um debate que dê visibilidade a experiências de desrespeito, torne disponíveis

discursos emancipatórios e propicie a conexão de sujeitos é complementar àquele

recomendado pelo sistema interamericano, que objetiva informar a opinião pública,

atribuir responsabilidades e permitir o controle social sobre o Estado. Seu caráter

contra-hegemônico reside em não se concentrar na reprodução da ordem vigente, mas

na sua transformação constante em direção ao aprofundamento da democracia.

A liberdade de expressão, dessa maneira, sai de seu caráter defensivo contra

influências indevidas para assumir a ofensiva e tornar-se efetivamente o direito que

fundamenta o exercício de todos os outros direitos humanos, como fixa o tão pouco

desenvolvido terceiro regime de verdade do sistema interamericano.

Pois “espontaneidade” [Ungezwungenheit] ou “liberdade” não pode referir-se,

com vista a um tal processo, simplesmente à ausência de coerção ou influência

externa; ela significa ao mesmo tempo a falta de bloqueios internos, de

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inibições psíquicas e de angústias; mas, num sentido positivo, essa segunda

forma de liberdade deve ser compreendida como uma espécie de confiança

dirigida para fora, que oferece ao indivíduo segurança tanto na expressão das

carências como na aplicação de suas capacidades (HONNETH, 2003, p. 273).

Torna-se então necessária uma agenda de pesquisa para a formulação de uma

liberdade de expressão que possa ser promovida como discurso emancipador na ordem

democrática.

Sistema de participação

Instrumentos de democracia direta como a gestão de políticas públicas com o

apoio de processos conferenciais podem ser oportunidades para tornar visíveis

experiências de desrespeito e disponíveis experiências de resistência. A capilaridade

dos processos conferenciais, com etapas que idealmente alcançam todos os municípios

brasileiros, permite a constituição de cartografias da presença dessas duas

experiências ao longo do território alcançado. Trata-se, no entanto, de um desafio à

configuração de um espaço discursivo que permita a livre expressão em torno do

processo de formação da autorrealização individual e coletiva, ou seja, que leve em

conta as disputas para a conquista da autoconfiança, do autorrespeito e da autoestima.

Essa perspectiva pode complementar a noção do Estado como promotor do

direito à participação, como pretende a Política e Sistema Nacional de Participação

Social40 do governo federal. A participação na formulação, no acompanhamento, no

monitoramento e na avaliação das políticas públicas não deve ser compreendida

apenas como mecanismo de incidência e articulação de interesses sociais. Isso

significa que uma orientação participativa para a formulação de propostas pode excluir

aqueles que ainda não articulam sua condição em um discurso político estruturado ou

de forma muito particularizada. Uma relação colaborativa entre governantes e

governados envolve a instituição de mecanismos de avaliação contextual que acolham

violações de direitos e expectativas morais e que permitam que redes de solidariedade

sejam formadas. E, mais importante, um sistema de participação não pode prescindir de

um processo de formação de cidadãos.

40

Mais informações em <http://www4.planalto.gov.br/consea/plenarias/plenarias-de-2013/reuniao-do-dia-

27-de-fevereiro/politica-e-sistema-nacional-de-participacao-social>. Acesso em: 24 jul. 2013.

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Qualquer sistema, no entanto, não pode estar descolado das necessidades mais

amplas da liberdade de expressão, inclusive aquelas desenvolvidas no saber liberal.

Faz-se necessário um ambiente político, econômico e jurídico que propicie a

participação, rejeitando a censura em suas diversas formas – monopólios, violência,

discriminação, desigualdade, etc. – e promovendo as condições para a expressão –

com acesso à informação em linguagem compreensível, o acesso à justiça, o acesso à

tecnologia, o trabalho em rede, a livre circulação de conhecimento, entre outras formas

criativas para a (re)produção de cidadanias.

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Referências

Livros, artigos, documentos, notícias, hipermídia

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