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Maria Ângela De Ambrosis Pinheiro Machado Uma nova mídia em cena: corpo, comunicação e clown. Doutorado em Comunicação e Semiótica PUC/SP São Paulo 2005

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Page 1: Uma nova mídia em cena: corpo, comunicação e clown. Maria Angela de... · corpo, comunicação e clown. Doutorado em Comunicação e Semiótica Tese apresentada à Banca Examinadora

Maria Ângela De Ambrosis Pinheiro Machado

U m a n o v a m í d i a e m c e n a :

c o r p o , c o m u n i c a ç ã o e c l o w n .

Doutorado em Comunicação e Semiótica PUC/SP

São Paulo 2005

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Maria Ângela De Ambrosis Pinheiro Machado

U m a n o v a m í d i a e m c e n a :

c o r p o , c o m u n i c a ç ã o e c l o w n .

Doutorado em Comunicação e Semiótica

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica na área de concentração signos e significações das mídias sob a orientação da Profª. Drª. Christine Greiner

PUC/SP São Paulo

2005

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BANCA EXAMINADORA

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Resumo

Esta tese tem por objeto de estudo os processos de comunicação e

interação entre o corpo do ator e o ambiente de experimentação a partir da

pesquisa da linguagem do clown no teatro. Essa linguagem requer um

treinamento das habilidades perceptivas, da ação espontânea, do jogo e da

improvisação, sempre em trâmite entre as ações cotidianas e as ações artísticas.

O objetivo desta tese consiste em compreender esse treinamento como uma

relação comunicativa entre corpo e ambiente de pesquisa teatral. O tema que a

circunscreve refere-se às possibilidades de entendimento do corpo como mídia,

ou seja, um ambiente complexo e povoado de signos e linguagens que expressa,

informa e comunica a sua relação com outros ambientes, sempre aliando

natureza e cultura. O corpo constitui um meio que manipula, multiplica,

expande, troca, produz, retém e comunica informação. Essa compreensão

fundamenta-se em pesquisas científicas desenvolvidas por um grupo

transdisciplinar das chamadas Ciências Cognitivas, cujo foco consiste

justamente em pesquisar como o corpo conhece e interage na relação com o

ambiente, por meio de protocolos experimentais. Neste sentido, serão

apresentados alguns argumentos fundamentados nas hipóteses dos

neurocientistas Antonio Damásio, Andy Clark e Alain Berthoz.

Entre outros aspectos, estes estudos enfocam quais os mecanismos que o

organismo (humano) desenvolve para perceber, reagir e agir nas relações com e

no mundo. O entrelaçamento teórico/prático entre diversos saberes sustenta a

plausibilidade da hipótese de que o treinamento do clown habilita o ator a

interagir com o ambiente no que ele manifesta de inusitado, diferente,

polissêmico, porque ambos, ambiente e corpo do ator, estão repletos de

movimentos inusitados, diferentes e surpreendentes.

IV

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Abstract

The study object of this thesis is the processes of communication and

interaction between the actor's body and the experimentation environment by

means of research of the clown language in theater. This language requires

training of perception abilities, spontaneous action, playing and ad-libbing,

always proceeding between everyday actions and artistical actions. The aim of

this thesis is to understand this training as a communicative relation between

body and the environment of theater research. The theme comprehends the

possibilities for an understanding of the body as a medium, that is, a complex

environment filled with signs and language which expresses, informs and

communicates its relation with other environments, always associating nature

and culture. The body is a medium which manipulates, multiplies, expands,

exchanges, produces, retains and communicates information. This understanding

is based on scientific research carried out by a transdisciplinary group of the

sciences known as Cognitive Sciences and whose focus consists precisely in

researching the way in which the body knows and interacts in its relationship

with environment, by means of experimental protocols. In this respect, some

arguments based on the hypothesis of neuroscientists Antonio Damásio, Andy

Clark e Alain Berthoz will be presented.

Among other aspects, these studies focus on which mechanisms the

(human) organism develops to perceive, react and act in its relation with and

within the world. The theoretical/practical entwinement between several

knowledges supports the plausibility of the hypothesis that clown training

qualifies the actor to interact with the environment in all the latter presents as

unusual, different and polysemic, since both, environment and actor's body, are

filled with unusual, different and surprising movements.

V

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Aos meus mestres:

Chiara e Geraldo (in memorian), mestre de viver,

Tadashi Kawano, mestre de acompanhar,

Marina Kaori, mestre de brincar.

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Agradecimentos

Agradeço sem fim as ‘Cris’ que orientaram esta tese: Cristiane Paoli-Quito e Christine

Greiner.

Como sempre generosa e precisa, Cristiane conduziu-me no mergulho profundo de construção

da linguagem cômica do meu corpo. Delícia que é estar nesse lugar! Obrigada.

Atenta simplesmente, Christine orientou, incentivou, sugeriu, desburocratizou, esclareceu,

pincelou... Singela, tranqüila e, de repente, tão bela essa relação.

Um agradecimento muito, muito, muito especial para Nirvana Marinho. Mais que

pesquisadora e debatedora de minhas discussões acadêmicas/cênicas: valiosa amiga.

Agradeço em especial Jussara Setenta, Isabelle Cordeiro e Adriana Bittencourt por nosso

precioso trabalho no Grupo Sinergia.

Meus amigos e companheiros de cena Fernando Passos, Melissa Panzutti e José Renato F. de

Almeida: Vamos nessa que ainda é bom a beça!!! Estamos apenas começando...

Aos meus colegas de PUC, Cleide Martins, Lenira, Lela, Boro, Edna, Vanessa e... e... e....

Agradeço e sinto-me privilegiada de ter tido como professores também Tica Lemos e Alex

Ratton, no Estúdio Nova Dança.

Agradeço ao Estúdio Nova Dança, Pepita sempre solícita e seu Valdemar que abria a porta do

Estúdio para mim. Todos meus colegas de ralação: Alex, Melissa, Natália Catarina, Paula,

Érica, Maurício, Pedro(s), Luciana (s), Abba, Aninha, Adriana, Laura(s), Sheila(s), Karu,

André, Mara, Letícia, e mais uns 101 colegas aproximadamente.

Agradeço ao CNPq pela bolsa concedida para realização dessa pesquisa.

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Índice

Resumo..................................................................................................................................... IV

Abstract ..................................................................................................................................... V

Dedicatória ............................................................................................................................... VI

Agradecimentos.......................................................................................................................VII

Introdução............................................................................................................................... 09

Capítulo 1 ................................................................................................................................ 26

1. A URDIDURA DA IMPROVISAÇÃO E DO CORPO ...................................................... 26

1.1 Improvisação: características, qualidades, necessidades e discussões................. 26

1.2 Corpomídia: quando o corpo é o protagonista da cena........................................ 44

1.3 Enredando as malhas............................................................................................ 57

Capítulo 2 ................................................................................................................................ 66

2. CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA MÍDIA......................................................................... 66

2.1 O treinamento de Cristiane Paoli-Quito............................................................... 66

2.2 “Movimento-Imagem” ......................................................................................... 68

2.3 Você sabe voltar para sua casa à deriva? ............................................................. 72

2.4 Tudo é cênico ....................................................................................................... 79

2.5 Jogo: a vida das relações ...................................................................................... 88

Capítulo 3 ................................................................................................................................ 93

3. UM DIA, UMA BANANA...: LAÇOS E ENTRELAÇOS TRANSITÓRIOS ...................... 93

3.1 Entre laços: o processo......................................................................................... 93

3.2 Entrelaço: a construção das cenas ...................................................................... 102

3.3 Entrelaçando: o espetáculo ................................................................................ 114

Bibliografia .......................................................................................................................... 120

VIII

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Introdução

Esta tese pretende esmiuçar os processos comunicativos que envolvem o

método de criação e a performance artística do clown1. Esta investigação,

iniciada no mestrado2, circunscreve a indagação sobre a natureza do processo

semiótico para a construção do corpo do ator. Nesse sentido, o processo de

criação do clown contempla essa especificidade no modo de construção do

personagem. Esse processo tem início no corpo do ator, na experimentação de

suas habilidades corporais, tanto as relativas a um estado de presença e

percepção diferenciado como as relativas ao jogo e à improvisação.

Diferente de um personagem descrito por meio de uma dramaturgia teatral

convencional, em que o contexto é dado pela narrativa organizada em um texto a

partir do qual se constrói o corpo do personagem, no clown, a máscara confere a

essa linguagem, antes de tudo, uma fisicalidade que expressa as características e

o modo de estar no mundo. O clown se desenvolve a partir dos desafios físicos a

que o ator se submete no treinamento; em outros termos, a exposição do corpo

ao ridículo, ao jogo com outros corpos, à sua capacidade de comunicação sem

fala e sem gestos estereotipados.

No contexto mais geral da história do teatro no Brasil, o clown reapareceu

nas décadas de 1980 e 1990 em pesquisas de linguagem teatral3. O treinamento

de clown tem sido bastante utilizado como treinamento de ator e de dançarinos

1 Clown e palhaço são sinônimos. A preferência dada à terminologia inglesa apenas se justifica para diferenciar o palhaço inserido numa linguagem teatral do palhaço inserido na linguagem circense. 2 Cartografia do conhecimento artístico: o processo de criação do ator, dissertação de mestrado defendida em 2000 no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, sob orientação da Profa. Dra. Helena Katz. 3 Conforme análise de MacManus, em seu livro No Kidding! Clown as Protagonist in Twentieth-Century Theater, o clown surge no contexto europeu do século XX, como um personagem que se contrapõe ao herói trágico. Nesse sentido, apresenta-se como uma ruptura das convenções teatrais até então estabelecidas. Para o autor, o clown é eminentemente um ícone do antiautoritarismo e sua função política encontra-se justamente na fissura que promove tanto nas regras da linguagem teatral como nas regras sociais, pois é um personagem que transita entre a ficção e a realidade e permanece sempre no limiar dessa fronteira. Ou seja, ora o personagem está envolvido na ficção teatral e lá desenvolve seu jogo, ora se depara com os empecilhos da realidade, como, por exemplo, a mala que emperra quando ele tenta abri-la e este passa a ser jogo do clown. Seu antiautoritarismo se deve às possibilidades de jogo e desafios que percorrem desde as relações com as leis físicas da natureza até as relações de poder entre os homens.

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(vide respectivamente Lume4 e Nova Dança 45), visto que, afora a busca de uma

linguagem específica do clown para o teatro, esse treinamento instrumentaliza o

ator/bailarino em suas potencialidades expressivas, em habilidades de jogo, em

improvisação, em habilidades perceptivas, em capacidade de respostas e, ainda,

na tão buscada presença cênica, citada na maioria das atuais pesquisas de

linguagem do corpo.

O processo de criação do clown particulariza-se por enfocar o corpo do

ator. As habilidades perceptivas consistem em o ator perceber as mudanças

físicas que o uso da máscara traz. Essas mudanças transformam, por sua vez, os

hábitos de percepção, permitindo ao ator experimentar um outro modo de estar

no mundo, percebê-lo e interagir com ele. A fisicalidade demarcada pela

máscara implica evidenciar a imediaticidade da reação física diante de qualquer

fenômeno que apareça. O clown é um ser que tem suas reações afetivas e emotivas corporificadas em partes precisas de seu corpo. Ou seja, sua afetividade transborda pelo corpo, suas reações são todas físicas e localizadas. [...] A lógica do clown é física-corpórea, ele pensa com o corpo (Burnier Mello6, 1994: 261).

O treinamento do clown exercita a capacidade do jogo cênico e da

improvisação, seja com um companheiro de cena, seja com a platéia. Em cena,

ele estabelece uma comunicação direta com o público, em oposição à tão famosa

“quarta parede”7. Uma das possibilidades de jogo do clown encontra-se

justamente no aproveitamento das situações e reações do público ao estabelecer

4 Lume – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, Unicamp, fundado em 1985 por Luís Otávio Burnier Mello, Carlos Roberto Simioni, Ricardo Puccetti e Denise Garcia. As linhas de pesquisa que orientam o trabalho são: a Dança Pessoal, o Clown e a Mímesis Corpórea (Ferracini, 1998). 5 Cia. Nova Dança 4 é um grupo de dança dirigido por Cristiane Paoli-Quito que, desde 1996, tem desenvolvido um trabalho de pesquisa em improvisação, dança e teatro. Trata-se de um grupo que vem inovando as possibilidades de ligação entre a linguagem da dança e a do teatro. Entre suas técnicas de treinamento encontra-se a prática do clown. 6 Luís Otávio Burnier Mello (1956-1998) foi fundador do Lume – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, vinculado à Universidade Estadual de Campinas. 7 Termo utilizado no teatro para designar uma parede imaginária entre o palco e a platéia. Nesse sentido, o ator não se comunica diretamente com ela . Embora possa olhar na sua direção, é como se não a visse, sua concentração está no acontecimento do palco.

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uma relação de cumplicidade com a platéia (Fabbri & Sallée, 1982; Paoli-Quito,

1994). Daí a ênfase dada ao treinamento do ator para a questão da presença

cênica, uma vez que ela instrumentaliza a percepção dos acontecimentos

imprevistos (entre ele e a platéia) e sua incorporação à cena.

Manifestando a ingenuidade, a fragilidade e a espontaneidade, os

requisitos básicos a serem desenvolvidos no treinamento configuram um estado

de generosidade, abertura e vulnerabilidade, necessários para aguçar a escuta

atenta e perspicaz (saber ouvir e ouvir-se). Tudo é novo aos olhos do clown. Um

olhar para o mundo como se fosse a primeira vez. Um olhar para as qualidades

que o mundo à sua volta apresenta e que, por meio da linguagem teatral, ele

pode reapresentar, enfatizar ou inverter os sentidos e significados

convencionalizados para o evento.

Por sua forma de ver o mundo, o palhaço pode alterar a realidade, transformando-a no que deseja. Isso introduz no ambiente uma proposta de pensamento complexo. Os fatos ganham uma nova lógica e sentido, contestando os acontecimentos até então estabelecidos. Essa alteração a princípio pode parecer um simples desvio ou imperfeição da visão tradicional de mundo, mas na verdade ela contribui para sua ampliação e desenvolvimento (Masetti, 1998: 34) 8.

O treinamento do clown potencializa, assim, as habilidades perceptivas do

ator, na medida em que sua construção é mais “aberta” e permeável aos

acontecimentos do momento e na medida em que o ator desenvolve a sua

capacidade de resposta quase imediata a eles. Sob essa perspectiva, o

treinamento do clown constitui um embrenhar-se em um estado diferenciado de

percepção no qual outras potencialidades de sentimento, sensação, movimento,

imagem, pensamento, idéia e ação poderão manifestar-se.

8 Morgana Masetti é coordenadora do Centro de Estudos dos Doutores da Alegria (São Paulo-SP). Neste trecho, ela se refere a uma intervenção dos Doutores da Alegria numa sala de espera de um hospital, transformada em sala de cinema por meio da ação dos palhaços.

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Pesquisar o processo de treinamento e criação do clown permitirá

investigar a natureza dos processos de comunicação e semiose do corpo do ator

em diálogo com esse ambiente da pesquisa teatral. Em outros termos, pretende-

se verificar como o ator se habilita a compreender, incorporar e expressar

imagens, relações e pensamentos, ou seja, pretende-se compreender a relação de

conhecimento e interação entre o corpo do ator e o ambiente de experimentação

e pesquisa da linguagem do clown.

Essa abordagem implica repensar os parâmetros de compreensão e análise

do corpo e seus processos comunicativos, o que então constituirá a hipótese

desta tese, bem como amplia os modos de descrição e análise do processo de

criação do clown até então disponíveis bibliograficamente9. Embora parte dessa

bibliografia foque o processo de criação do clown, esses estudos limitam-se a

descrições de exercícios, tentativas de registro da experiência teatral e a busca

por uma sistematização de uma metodologia de trabalho para o ator. Com isso, o

enfoque não se concentra na compreensão desse processo, mas, na descrição

dele.

O clown caracteriza-se por ser um personagem que pode estar em

qualquer lugar. E em qualquer lugar que ele esteja, transforma o espaço,

evidenciando outros sentidos e significados das relações ali existentes. Um dos

modos possíveis de explicar tal constituição implica a possibilidade de

compreender que a característica cômica do clown encontra-se num estado

9 Poucos são os estudos que concentram atenção no clown. A bibliografia existente até o momento e que foi pesquisada consiste em pesquisa e dissertação enfocando as intervenções do clown em hospitais (Masetti, 1998, Wou, 1999). Nesse aspecto, esses estudos condizem com este projeto, uma vez que refletem a questão da interação do clown em lugares diferenciados e não-convencionais, demonstrando concretamente a permeabilidade desse personagem, as transformações que a presença de um clown gera no ambiente e, ao mesmo tempo, a maleabilidade da linguagem a fim de adaptar-se àquele ambiente e à especificidade desse tipo de intervenção concernente ao público (crianças hospitalizadas, pais, médicos, enfermeiros e instituição hospitalar). As teses e dissertações existentes sobre o processo de criação do clown (Lopes, 1990; Ferracini, 1998; Burnier, 1994; Martins, 2004; Kasper, 2004; Barboza, 2001) concentram-se na descrição e análise de alguns procedimentos e técnicas, enfocando mais amplamente o trabalho do ator e não exclusivamente o trabalho do clown ou o uso da máscara para treinamento e a criação de um espetáculo. Outras bibliografias concentram-se em reconstituição histórica do clown (Fabbri & Sallée, 1982; Levy, 1990; Burnier Mello, 1994; Pascal, 1992; Lecoq, 1987 e 1997; Kasper, 2004; Simon, 1988), relatos de experiência (Lecoq, 1987 e 1997), biografias de palhaços (Popov, 1982; Rivel, 1973; Seyssel, 1997), estudos, pesquisas, metodologias de trabalho e conceituação do personagem (Lecoq, 1997; Burnier Mello, 1994; Fo, 1998; Kasper, 2004).

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particular de comunicação e interação. O clown e o ambiente em que ele está

dispõem-se mutuamente a um jogo de receber, trocar e devolver estímulos.

Receber, trocar e devolver comicamente os estímulos do ambiente e do clown.

Essas questões estão relacionadas de modo mais amplo à habilidade e

aptidão do corpo para permanecer no tempo e no espaço. O corpo incorpora

imagens, sensações e pensamentos de movimento e os produz na medida que

incorpora um jogo contínuo da relação corpo / ambiente (Andy Clark10, 1997,

2001; Antonio Damásio11, 2003, 2000, 1995; Alain Berthoz12, 2003 e 2001).

A hipótese consiste em que o treinamento do clown habilita o ator a

interagir com o ambiente no que ele manifesta de inusitado, diferente,

polissêmico, porque ambos, ambiente e corpo do ator, estão repletos de

movimentos inusitados, diferentes e surpreendentes.

Trata-se de uma hipótese que reconhece a complexidade da relação entre

corpo e ambiente, compreendendo a complexidade particular desses dois

sistemas no espaço, não se tratando de uma simples questão de estímulos e

respostas, mas da constituição de uma complexa rede de relações.

No panorama histórico da presença do clown nas artes cênicas,

manifestou-se com ênfase a corporeidade e fisicalidade que o uso da máscara

demanda (Fo, 1998; Levy, 1990; Pascal, 1992; Fabbri & Sallée, 1982). As

metodologias estudadas na dissertação destacam o treinamento físico e

energético por meio de técnicas de dança, acrobacias, exercícios físicos de

diversas ordens, enfim exercícios físicos intensos que objetivam habilitar o ator

para o jogo e para a presença cênica (Lecoq, 1997,1987; Paoli-Quito, 2000,

1998, 1995, 1994; Burnier Mello, 1994 e Ferracini, 1998).

10 Andy Clark (1957- ) é filósofo e cientista cognitivista. É professor de filosofia e ciências cognitivas na Escola de Ciências Cognitivas e Computação, da Universidade de Sussex, UK. Foi diretor do programa de filosofia/neurociência/psicologia na Universidade de Washington, em St. Louis, USA. 11 Antonio Damásio (1944- ) é cientista, neurologista, chefe do departamento de Neurologia da Universidade Iowa e professor adjunto do Instituo Salk de Estudos Biológicos, em La Jolla, na Califórnia. 12 Alain Berthoz (1939- ) é engenheiro, psicólogo, neurofisiologista, professor do Collège de France, onde dirige o laboratório CNRS de fisiologia da percepção e ação.

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Por outro lado, esses estudos evidenciam uma questão atual e recorrente

nas pesquisas de linguagem teatral, formulada já desde o tempo de Constantin

Stanislavski13 (1863-1938). Essa questão refere-se ao corpo do ator e à sua

presença fundamental na cena e no processo de criação. Nesse aspecto, o

treinamento do clown tem sido incorporado ao teatro como linguagem artística

das artes cênicas e como recurso de formação de atores dadas as habilidades de

presença e disponibilidade, expressividade, jogo e improvisação que ele

desenvolve.

O Método das Ações Físicas constitui um dos mais importante legados de

Stanislavski para as gerações seguintes de atores e diretores. Entre outros

desdobramentos dessa prática, encontram-se o redimensionamento do corpo do

ator no processo de criação do personagem e os inúmeros procedimentos de

treinamento gerados por esse mesmo redimensionamento, como foi o caso das

pesquisas de Jersy Grotowski14, Eugênio Barba15 e Peter Brook16. No Brasil,

seguindo essa vertente de pesquisa de linguagem, encontramos o Grupo Lume

de Campinas, entre outros.

Desde então, o corpo e sua expressão foram ganhando espaço nos

processos de pesquisa de linguagem teatral. De fato, como também observado

por Azevedo (2002), o trabalho corporal sistematizado gera transformações

qualitativas no trabalho de criação e interpretação do ator. Este aprofunda seu

conhecimento acerca de seu corpo e seus recursos de expressão, intensifica sua

presença cênica, promove e instaura o estado de atenção e prontidão necessários

13 Constantin Stanislavski (1863-1938) ator e diretor de teatro, fundador do Teatro de Arte de Moscou. Importante referência para o processo de criação do ator, uma vez que sistematizou um método de trabalho para o ator que pode ser encontrado em suas obras (vide bibliografia). 14 Jersy Grotowski (1933-1998), diretor de teatro, criador do Teatro-Laboratório em 1959, na Polônia, cujos objetivos consistiram em pesquisar o domínio da arte teatral, sua metodologia e estética. Escreveu Em busca do teatro pobre, Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1992. 15 Eugênio Barba (1936- ) é diretor e estudioso do teatro contemporâneo. Estudou com Grotowski. Na Dinamarca, fundou, em 1964, o Odin Teatret e, em 1979, o Ista (International Scholl of Theatre Anthropology), que constituem hoje ponto de referência da arte teatral. 16 Peter Brook (1925- ) é diretor de teatro, fundou e dirige em Paris o Centro de Pesquisas Teatrais. Suas arrojadas concepções cênicas para teatro, ópera e cinema tornaram-se marcos de renovação e referências da escritura cênica ocidental.

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à percepção das sensações, dos estados corporais, das idéias, dos pensamentos e

das imagens que o corpo produz. O ator desenvolve a consciência e a

compreensão de sua ação em cena.

A atividade corporal transforma hábitos, modos de pensar e agir. O

relaxamento de músculos, a percepção de apoios e pesos, a percepção do corpo

no espaço facilitam a presença cênica, a percepção das sensações e dos estados

corporais e das ações e movimentos engendrados, constituindo o fluxo da

linguagem e favorecendo uma ação mais orgânica do ator na criação e na

execução do personagem. Por que isso acontece e como?

Essa questão constitui o ponto de partida desta tese. Num primeiro

momento, cabe abordar as dificuldades de responder a ela, interrogando as bases

filosóficas que se relacionam com os modos de pensar o corpo e o processo de

criação do ator, atualmente.

Como mostra Steven Pinker17, conceitos como o de tábula rasa, atribuído

a John Locke (1632-1704), o do bom selvagem, desenvolvido por Jean-Jacques

Rousseau (1712-1778) e o do fantasma da máquina, de René Descartes (1596-

1650) constituem “a secular religião da vida intelectual moderna” (Pinker, 2002:

3). Embora distintos entre si, Pinker demonstra a compatibilidade e até mesmo a

complementaridade entre esses modos de entendimento da natureza humana, no

pensamento moderno.

As doutrinas da Tábula Rasa, do Bom Selvagem e do Fantasma da Máquina – ou como os filósofos a chamem, empiricismo, romantismo e dualismo – são logicamente independentes, mas na prática elas são, freqüentemente, encontradas juntas (Pinker: 2002:10)18.

17 Steven Pinker (1954-) é professor do Departamento de Psicologia da Universidade de Havard. Lecionou no Departamento Cérebro e Ciências Cognitivas do MIT (Massachusetts Institute of Tecnology). Orienta pesquisa de linguagem e cognição. 18 The doctrines of the Blank Slade, The Noble Savage and the Ghost in the Machine – or, as philosophers call them, empiricism, romanticism and dualism – are logically independent, but in practice they are often found together. Todas as traduções contidas nesta tese são de minha responsabilidade.

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Ou seja, questões científicas, artísticas, sociais, políticas, econômicas e

culturais estão impregnadas dessas noções. Cabe identificar como estas

articulam o pensamento sobre o corpo e o processo de criação e treinamento do

ator.

Preocupado em saber como a mente funciona e como o homem conhece a

verdade, John Locke compreendeu a importância da experiência para o

conhecimento humano19. Formulou o conceito de que a mente é uma tábula rasa

que vai sendo preenchida por meio da experiência. Essa noção pressupõe a

compreensão de que os indivíduos são diferentes entre si porque têm

experiências diferentes. Muda-se a experiência, muda-se o indivíduo (Pinker,

2002).

As repercussões desse modo de compreender contribuem para a

formulação da filosofia política do liberalismo, fundamentam propostas

pedagógicas e embasam teorias da psicologia. No teatro, essa noção pode ser

reconhecida, por exemplo, na questão da memória emotiva desenvolvida na

primeira fase do trabalho de Stanislavski. Como aponta Bonfitto,

as emoções deveriam ser resgatadas de um repertório de experiências pessoais iguais ou análogas às da personagem que deveria ser construída. Existia, portanto, uma ligação quase necessária entre memória e emoção. (Bonfitto, 2002: 27).

Na seqüência desse pensamento: “para Stanislavski, quanto mais vasta é a

experiência emocional do ator, mais rico é o material que ele tem à disposição

para sua atividade criativa interior” (op.cit.: 29).

Resgatar a emoção pela memória das experiências sugere a idéia de uma

“gavetinha” que contém um repertório de memórias e emoções acumuladas,

19 A teoria de John Locke surge como alternativa ao pensamento fundado na teoria das idéias inatas, a qual apregoava que o homem nasce com idéias matemáticas, verdades eternas e a noção de Deus e que, no decorrer da vida, mais precisamente, na idade adulta, com o desenvolvimento da razão, essas idéias se tornariam conhecidas. Locke e outros filósofos de sua época questionavam o fundamento do poder político na religião e na hereditariedade. Locke é, portanto considerado um dos fundadores do pensamento liberal que marca o início do sistema capitalista moderno.

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adquiridas pela experiência e que aguardam ser solicitadas. Assim, a

necessidade de vasta experiência emocional para a construção do personagem

constitui conseqüência desse modo de pensar. Logo, um jovem ator pode

perguntar se ele tem experiência de vida suficiente para poder fazer teatro. Um

velho ator pode perguntar se as experiências que ele teve na vida servem para

trabalhar com teatro. Coitado deste último, caso a resposta seja negativa. Esta

pequena pausa especulativa sugere a falácia dessa concepção de experiência

acumulada, que repercute no modo de pensar de Stanislavski, provavelmente,

porque pertence ao contexto filosófico de sua época.

Essa questão, porém, ainda reverbera na metodologia do fazer teatral no

que respeita às questões relativas à criação de repertório. Partindo do princípio

de experiência e de conhecimento acumulados, muitos estudos sugerem que o

ator cria repertórios fixos e, conforme a necessidade, disponibiliza aquela ação.

O treinamento e a experiência em cena desenvolvem um repertório de ações

para o ator dispor no momento que necessitar. Sob essa perspectiva, esse

treinamento caracteriza-se pela construção de repertório, grosso modo, e busca-

se um corpo apto a criar e a reproduzir seu repertório de gestos e ações para

compor o personagem. Essa abordagem parece conter uma compreensão de

experiência, de memória e mesmo de repertório como algo estancado quando

apreendido e não como um fluxo de ações e interações.

Jean-Jacques Rousseau, pensador da época do Romantismo, oferece uma

imagem do homem bom, ou seja, aquele que, em seu estado natural, é pacífico,

tranqüilo, vivendo harmoniosamente em sociedade e de acordo com a natureza,

conforme os colonialistas europeus supunham acerca da vida dos indígenas das

colônias. Em contrapartida, o homem civilizado perde o contato com a natureza

e sua pureza natural é corrompida pelo convívio em sociedade (Pinker, 2002).

No teatro, não é difícil notar a presença desse ideal de comportamento

natural do homem, veiculado pela idéia do bom selvagem de Rousseau. A partir

da pesquisa de Azevedo (2002), é possível observar que, nas técnicas e nos

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pensamentos sobre o corpo no teatro, na dança e nas técnicas corporais (fora dos

palcos) por ela apresentada, a busca por um corpo natural constitui uma

premissa comum subjacente à maioria dos métodos expostos.

Pensar o “corpo natural” implica compreender que ele naturalmente

conhece e se desenvolve distintamente do “corpo cultural” que necessita

construir. Ou seja, as condições sociais são responsáveis pelo afastamento do

modo natural do corpo ser e desenvolver-se. Um treinamento baseado nessas

premissas pressupõe exercitar e treinar o corpo para tirar suas máscaras

socialmente criadas e desvelar a ação, o gesto e a postura genuinamente naturais.

O treinamento corporal, nessa visão, buscará o reaparecimento do corpo e seu

movimento em seus estados mais puros, naturais e orgânicos que os

convencionados socialmente como um meio que permitirá uma ação mais

natural do ator na execução de seu personagem. O grande desafio de

Stanislavski foi elaborar um método no qual a ação do ator parecesse natural

(Bonfitto, 2002; Machado, 2000).

Qual é, então, esse corpo idealizado tão natural? Existe realmente alguém

(na história real ou na ficção) que podemos considerar como portador de um

corpo genuinamente natural? Moglie? Meninos-lobos? São eles corpos naturais

ou adaptados à natureza das florestas? Observa-se no livro Guia de abordagens

corporais, de Ribeiro & Magalhães (1997), cerca de cinqüenta técnicas de

modos de tratar o corpo, com fins terapêuticos ou não. Entre elas, podemos

destacar as chamadas artes marciais, educação somática e o Contato

Improvisação, que são algumas metodologias mais buscadas e citadas nas artes

corporais. Quais delas levam ao corpo natural, sem as contaminações sociais e

culturais? Qual delas pode ser considerada a melhor para voltar ao corpo em seu

estado natural, sendo que cada uma delas tem seu fundamento técnico,

filosófico, experimental e oferece resultados importantes para o

desenvolvimento e conhecimento do corpo humano?

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O fantasma da máquina, doutrina elaborada por Descartes, pontua a

divisão entre corpo e mente, conhecida como dualismo cartesiano. Nessa

concepção, corpo e mente se diferenciam, pois a mente é indivisível, mas o

corpo pode ser compreendido em partes. O corpo tem extensão corpórea e a

mente não. O corpo consiste em instrumento de expressão da alma. Como

coloca Pinker, “Descartes rejeita a idéia de a mente poder ser operada por

princípios físicos” (Pinker, 2002: 9)20.

De imediato, a influência dessa concepção é flagrante no sistema

elaborado por Stanislavski. Nitidamente, seu método separa o trabalho interno

do ator (mental), predominante na primeira fase de sua pesquisa (Linhas de

forças motivas21 1897-1918) e o trabalho externo (corporal), sistematizado no

Método das ações físicas (1918-1938). Como nos apresenta Bonfitto, o Método

das ações físicas reorienta a utilização do método das Linhas de forças motivas,

uma vez que será a ação física a isca para a construção dos processos interiores

do ator. Isso implica um novo entrelaçamento entre ação interior e exterior, “o

conceito de ação física envolve tanto as ações executadas exteriormente quanto

as ações internas desencadeadas pelas primeiras. A ação exterior alcança seu

significado e intensidades interiores através do sentimento interior e este último

encontra sua expressão em termos físicos” (Bonfitto, 2002:26).

A partir dessa explicação, as emoções, os sentimentos, a memória e os

pensamentos continuam na esfera do mental, sem materialidade, tal como

pensou Descartes. Isso implica a compreensão do trabalho corporal como um

aflorar das potencialidades criativas e expressivas do corpo e este, por sua vez,

como instrumento a ser afinado para expressar a ação interior e responder a ela.

A ação interior motiva, impulsiona e gera a ação exterior, como uma relação de

causa e efeito, sendo que a ação exterior também influencia a ação interior. Mais

20 Descartes rejected the idea that the mind could operate by physical principles. 21 Linhas das forças motivas é a denominação dada à primeira fase do método sistematizado por Stanislavski, no período da fundação do Teatro de Arte de Moscou (1897) até 1918, com o trabalho junto ao Estúdio de Ópera do Teatro Bolshoi. A partir dessa experiência com o Estúdio de Ópera, Stanislavski deu início à sistematização do Método das ações físicas, que se estendeu até o ano de sua morte em 1938 (Bonfitto, 2002).

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ainda, o corpo constitui um instrumento do ator para expressar o invisível:

sonhos, imagens, emoções, a alma. Em outras palavras, a expressão do corpo

constitui a manifestação da alma. Essas, entre outras, são algumas influências do

pensamento dualista nas análises das metodologias do fazer teatral.

A compreensão do processo de criação do ator está impregnada dessas

noções. Parece que não temos como fugir delas para compreender esse processo

enquanto a principal pergunta (nos estudos da área) girar em torno dos temas: na

criação do ator, o que pertence à criação da mente e o que pertence à criação do

corpo? Como uma coisa interfere na outra? Qual é a mais importante? Qual é a

“determinante” para a criação?

Embora Azevedo observe que “os trabalhos corporais pesquisados têm,

quase todos, a mesma tônica: a procura de uma contínua relação corpo-mente”

(Azevedo, 2002: XXII), as metodologias ainda compreendem o corpo e a mente

como processamentos separados. Assim, o movimento pelo movimento, sem a

presença do universo interior do ator é pura forma e o universo interior sem o

canal de expressão do corpo é puro caos ou um corpo inapto ao teatro ou

expressão cênica. O treinamento interior relaciona-se com a interpretação,

aquela que dará conteúdo a forma e o treinamento exterior relaciona-se com o

corpo para ensiná-lo a expressar o conteúdo interior. A emoção mobiliza a ação

do ator, enquanto a razão tolhe sua criatividade e espontaneidade. Enfim, o

dualismo de substância, corpo e mente, desdobra-se em inúmeras outras

dicotomias.

Se as técnicas corporais enfocam a continuidade entre corpo e mente, os

estudos científicos e filosóficos que vêm sendo realizados sobre essa questão

pelos cientistas cognitivos selecionados para esta pesquisa podem contribuir

para esclarecer essa interface, uma vez que a questão está sendo estudada

também por intermédio de protocolos científicos.

Sob os parâmetros das Ciências Cognitivas, não cabe mais compreender a

experiência e o conhecimento como cumulativos e/ou estáticos e/ou naturais,

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pois, por exemplo, a repetição de um gesto ou de uma fala ou de uma ação

requer circuitos neuroniais não exigidos por gestos, falas ou ações realizados ou

criados espontaneamente (Ramachandran & Blakeslee22, 2002). Não cabe mais

pensar a mente separada do corpo, ou seja, não há operação mental que comanda

o corpo nem a mente é independente e autônoma em relação aos acontecimentos

do corpo. Cientifica e filosoficamente, tem-se demonstrado que o fenômeno

mental é corporal e está indissociavelmente relacionado ao sistema sensório-

motor (Damásio, 2003; George Lakoff23 e Mark Johnson24, 1999; Alain

Berthoz, 2003 e 2001).

São essas as pontes pretendidas nesta tese para cercar os argumentos que a

fundamentam. Desenvolver as questões propostas requer novos parâmetros

filosóficos e científicos, novas hipóteses sobre o corpo e sobre processos

comunicacionais, como, por exemplo, compreender o corpo como mídia de

comunicação, o que exige uma abordagem interdisciplinar e interteórica mais

complexa (Helena Katz & Christine Greiner25, 2001).

Evidentemente, para tratar ações orgânicas como processos de comunicação, precisam ser arrebanhados conceitos como informação, signo, mídia, representação, evolução, entre outros, numa espécie de coquetel científico distante dos usos metafóricos dessa terminologia. E com eles pensar o corpo como sendo um contínuo entre o mental, o neuronal, o carnal e o ambiental. Como pensar em corpo sem ambiente se ambos são desenvolvidos em co-dependência? (Katz & Greiner, 2001:89)

No caso da arte do ator, estamos tratando do ambiente complexo e

hiperpovoado de signos do corpo. O corpo do ator não é apenas uma construção

simbólica na qual se desenha, se veste e se maquia um personagem e sua ação

22 Vilayanur S. Ramachandran (1955- ), Ph.D. pela Universidade de Cambridge, diretor do Center for Brain and Cognition e professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Neurociências da Universidade da Califórnia. Professor adjunto de Biologia no Instituto Salk. 23 George Lakoff (1949- )é professor de linguística na Universidade da Califôrnia, Berkley, e co-autor com Mark Johnson de Metáforas da vida cotidiana. 24 Mark Johnson (1949- ) é professor e chefe do departamento de filosofia da Universidade de Oregon. Co-autor com George Lakoff do livro Metáforas da vida cotidiana. É autor de The body in the mind e Moral imagination e foi editor da antologia Philosophical perspectives on metaphors. 25 As professoras doutoras Christine Greiner e Helena Katz desenvolvem o projeto de formulação do conceito de corpomídia no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.

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para significar algo. Trata-se de um corpo humano apto a conhecer, interagir

com o mundo e produzir imagens, relações e pensamentos, cujo desenho teatral,

o figurino, a maquiagem e a ação do personagem enfatizam um modo de o ator

estar no mundo ao compreender e criar aquele personagem naquele contexto da

ficção teatral.

Conforme observado, o processo de criação do clown particulariza-se por

enfocar o corpo do ator. O clown caracteriza-se pelo seu modo ingênuo (estado

de curiosidade em que os acontecimentos parecem ser sempre novos e

inusitados); pelo seu modo frágil (estado de abertura, disponibilidade e

vulnerabilidade para interação com os acontecimentos externos e internos na

relação com o ambiente) e por um estado quase permanente de alegria e prazer.

A ingenuidade, a fragilidade e a alegria são seu modo de estar no mundo.

Essas qualidades repercutem, por sua vez, no seu modo de agir,

caracterizado pela ação espontânea e pela reação física e afetiva na interação

com o ambiente. O clown manifesta a interação entre os modos de estar

(ingenuidade, fragilidade e alegria) e de se relacionar (jogo e ação espontânea)

com o ambiente-mundo.

Trata-se de um treinamento das habilidades perceptivas, da

disponibilidade, da ação espontânea, do jogo e da improvisação. O treinamento

do clown constitui um poderoso instrumento de criação e pesquisa em

improvisação. Mais que uma descrição de procedimentos ou criação de um

repertório, o treinamento é formado por um conjunto de atividades integradas,

enfocando o desenvolvimento da presença cênica, da disponibilidade, do jogo e

das relações estabelecidas em cena e com a platéia. Essa metodologia implica

questionamentos sobre o entendimento de corpo. Não é mais suficiente um

corpo que saiba repetir com eficácia uma instrução. Nesse treinamento, exige-se

um corpo que saiba articular e desarticular seus hábitos e padrões de movimento

conforme a exigência da relação com o ambiente: modos de estar, perceber e

agir.

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O primeiro capítulo desta tese enfocará a questão da improvisação no

teatro e no treinamento do clown. Buscar-se-á uma reflexão histórica dos

entendimentos e usos da improvisação, sobretudo no século XX, com o objetivo

de mapear as indagações que acompanham o pensar e fazer a improvisação.

Nesse percurso, identificou-se como a improvisação obteve novos contornos de

entendimento e metodologia quando o corpo ganhou foco nos processos de

encenação modernos e contemporâneos. Esse fato permite vincular algumas

características da improvisação aos estudos específicos dos processos cognitivos

da relação do corpo com o ambiente e da consciência em António Damásio. A

questão da ação espontânea, tão discutida na improvisação, ganha uma outra

explicação por meio dos estudos de V. S. Ramachandran. As pesquisas

desenvolvidas por Alain Berthoz auxiliam a compreensão da relação entre

percepção e ação. E, finalmente, com Andy Clark podemos compreender o jogo

e a improvisação como tecnologia cognitiva.

Aborda-se a questão do jogo, analisando a metodologia de Viola Spolin26

(1906-1994). Para o treinamento, a criação e a ação do clown (o clown tem o

jogo como modo de comunicação com seu público), o jogo constitui um foco de

discussão imprescindível. Como o corpo desenvolve essa habilidade? Quais as

matérias de jogo para um clown?

No segundo capítulo, é realizada a descrição, análise e reflexão da

metodologia de treinamento do clown e da improvisação de Cristiane Paoli-

Quito27. A escolha dessa metodologia deve-se a duas razões: 1) desde 1998

26 Viola Spolin (1906-1994) conhecida pela sistematização do teatro improvisacional, é ponto de referência para estudiosos da improvisação e do jogo bem como para arte educação em teatro. 27 Cristiane Paoli-Quito (1960- ) é diretora da Cia. Nova Dança Quatro desde 1996, ministra curso de clown, interpretação e improvisação dança teatro no Estúdio Nova Dança em São Paulo desde 1995. Atualmente é diretora e professora da Escola de Arte Dramática (USP). Sua carreira artística data de 1977 como atriz e, a partir de 1985, como diretora. Sua formação percorreu os conhecimentos da commedia dell’ arte, teatro de animação, máscara neutra e máscara dramática, o método de Viola Spolin de improvisação para teatro, jogos teatrais e clown. Fez cursos com Philippe Gaullier, Beth Lopes, Francesco Zigrino, Maria Helena Lopes, entre outros. Desde 1991, ministra treinamentos de clown e jogos teatrais, a partir dos quais criou seu próprio método de preparação do ator por meio da improvisação. A partir de 1996, associou-se a Tica Lemos, uma das introdutoras da técnica de dança do Contato Improvisação no Brasil, e com ela cria a Cia. Nova Dança 4 onde investigam a interrelação teatro e dança a partir da improvisação. Essa pesquisa vem sendo sistematizada nos cursos de Improvisação dança teatro no Estúdio Nova Dança. Como professoras convidadas na Escola de Arte Dramática

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venho realizando cursos e workshops de clown por ela ministrados, além de

acompanhar outras atividades como Improvisação dança teatro e as disciplinas

oferecidas na PUC-SP, em 2001 e 2002 e 2) verifico na sua metodologia de

trabalho, fundada, especificamente, no princípio “Movimento – Imagem”, um

eixo teórico/prático que sistematiza um modo possível de conhecer e explorar a

incorporação e a produção de imagem do corpo em sua ação teatral.

Assim, nesse capítulo, são descritos os modos de desenvolver as

habilidades perceptivas que permitem ao ator perceber as mudanças físicas

trazidas pelo uso da máscara, as quais, por sua vez, possibilitam ao ator

experimentar um outro modo de estar no mundo, percebê-lo e interagir com ele..

Trata-se de uma metodologia em que jogo, fisicalidade, comicidade, ludicidade

qualificam o ambiente de pesquisa do clown. Averiguo como essa metodologia

pode gerar fisicamente um estado de presença e disponibilidade, essenciais ao

clown e à improvisação.

No terceiro capítulo, é apresentado o processo de criação do espetáculo

Um dia, uma banana..., que compõe junto com esta escrita o resultado deste

processo de pesquisa. Procuro retratar as intersecções que compuseram o

processo de criação do espetáculo, relacionando os aspectos do treinamento

realizado com Cristiane Paoli-Quito, os estudos desenvolvidos no curso de pós-

graduação e alguns elementos de minha história pessoal. Com esse capítulo,

reviso conclusivamente a hipótese desta tese e seus principais argumentos,

em São Paulo, desenvolveram o curso de Improvisação dança teatro, que resultou nos espetáculos de Movimento e imagem – dança teatro – improvisação Prelúdico para clowns e guitarra (1996) e Trinta e três (1998). Com a Cia. Nova Dança 4 encenou, em 1998, Miragens e SincrônicaCidade; em 1999, Águas de março sobre Lina Bo Bardi, Poetas ao Pé d’ouvido e Acordei pensando em bombas...; em 2000, Passeios; em 2001, com bolsa da Fundação Vitae, a Cia. estreou Palavra, a poética do movimento, recebendo em 2002 o Prêmio APCA – Concepção de dança. Em 2004 realizou o Projeto Entremeios, financiado pela Lei de fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo, no qual a Cia. estreou o espetáculo Vias expressas. Entre novembro de 2000 e março de 2001 realizou no Centro Cultural São Paulo a mostra Perspectiva Cristiane Paoli-Quito – um olhar em movimento, na qual remontou oito trabalhos ao longo dos últimos 10 anos de sua carreira como diretora. Em 1999, dirigiu o espetáculo Moby Dick, uma adaptação livre do romance de Herman Melville, com a Cia Circo Mínimo e Esperando Godot, de Samuel Beckett, com A Lírica Cia, premiada como melhor direção e melhor espetáculo no Festival de São José do Rio Preto em 2000. Em 2004, dirigiu o espetáculo Aldeotas, de Gero Camilo, que recebeu o Prêmio Shell 2004. Participou do FID 2000 - Festival Internacional de Dança /BH e Encontros Acarte – festival promovido pela Fundação Gulbenkian em Lisboa/ Portugal.

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delineando também alguns procedimentos possíveis de construção do clown,

algumas características de sua ação e de sua dramaturgia a partir da

improvisação.

O desafio de entender o processo de criação do clown pode sugerir uma

nova hipótese para o treinamento do ator. Ou seja, o treinamento do ator

pressupõe a interação corpo e ambiente. A tão buscada espontaneidade e

naturalidade do personagem pode ser conquistada pelos exercícios, exposições e

envolvimento do corpo do ator no ambiente de pesquisa teatral desenvolvida,

seja ela o clown ou não. O treinamento, a criação e a execução de um

personagem constituem um modo de exercitar os fluxos de ação e os gestos

intimamente relacionados com as sensações e sentimentos (também em fluxo no

momento da ação) que ocorrem no corpo na relação com o ambiente de pesquisa

teatral. O treinamento e a experiência em cena constituem um exercício

constante de aprendizado (manipulação, domínio, construção, criação, crítica e

percepção) da linguagem teatral, como, por exemplo, o exercício da leitura e da

escrita tende a favorecer um melhor desempenho na linguagem verbal.

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Capítulo 1

1. A URDIDURA DA IMPROVISAÇÃO E DO CORPO

1.1 Improvisação: características, qualidades, necessidades e

discussões.

Viver é melhor que sonhar, E eu sei que o amor é uma coisa boa, mas também sei que qualquer canto

é melhor do que a vida de qualquer pessoa. (António Carlos Belchior)

A improvisação constitui um ambiente de pesquisa de teatro propício à

hipótese desenvolvida nesta tese, uma vez que sua estrutura aberta permite que o

treinamento qualifique o ator no que respeita à percepção, à ação e ao jogo de

forma integrada à relação entre ambiente, corpo e a improvisação. Além disso, a

improvisação compõe uma das técnicas de atuação do clown. Entre outras

características, o clown é um improvisador (Lecoq, 1997, Paoli-Quito, 2000; Fo,

1998), o que implica habilidade para tornar-se um jogador, desenvolvendo o

sentido de cumplicidade, de atenção e de presença, para responder às

manifestações casuais que ocorram em determinado momento. “A arte da

improvisação, eu costumo dizer, é a arte de responder ao que lhe é dado, não

exatamente de ficar fazendo qualquer coisa, mas de estar o tempo inteiro

respondendo às necessidades do momento” (Paoli-Quito, 2000, entrevista

pessoal).

Em O ator compositor, Bonfitto (2002) aponta três modos de utilização da

improvisação no teatro. Ele denominou “espaço mental” o modo de

compreensão e utilização da improvisação em pesquisas do teatro

contemporâneo, como, por exemplo, as realizadas por Jerzy Grotowski e por

Peter Brook. Identifica a improvisação como “método” quando é utilizada para a

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construção do espetáculo e dos personagens, tal como observa nos trabalhos de

Viola Spolin e na primeira fase do Thèâtre du Soleil dirigido por Arianne

Mnouchkine1. Um terceiro modo de utilização da improvisação designada por

“instrumento” respeita o uso da técnica para a construção de personagem

presente no texto (literário ou dramático) a ser encenado (Bonfitto, 2002).

A improvisação constitui uma técnica largamente utilizada no meio

teatral. Ela ganhou diferentes concepções e metodologias no decorrer da

história. Contudo, ainda paira sobre ela uma aura de incognoscibilidade, ou seja,

dado seu caráter imediato, espontâneo e instável, a improvisação parece ser uma

experiência pouco acessível a análise mais formalizada. Essas qualidades

conferem a ela ainda uma aparente falta de dramaturgia e contribuem com a

perpetuação do caráter depreciativo com que é vista no universo da arte

dramática. Some-se a isso o fato de que a improvisação é ainda pouco

investigada a partir da grade teórica que aplicamos nesta pesquisa. O que não

ocorre na dança, uma vez que a pesquisadora Cleide Martins (2002) realizou a

árdua tarefa de estudar a improvisação na dança, em tese de doutorado, fazendo

uso da Teoria Geral de Sistemas de Mário Bunge e de alguns pesquisadores da

linha dinamicista das Ciências Cognitivas, esclarecendo as características e a

organização da improvisação como técnica e linguagem estética.

Por essas razões, cabe aprofundar as reflexões acerca da improvisação:

sua história, seus usos, seus entendimentos, seus conceitos e preconceitos no

fazer teatral, sua metodologia e promover o seu refinamento como técnica e

como linguagem e, portanto, como estética teatral.

Na história da improvisação no teatro, é possível verificar que o fazer e o

pensar a improvisação foram ganhando contornos diferentes e mais consistentes

na mesma proporção que o corpo do ator foi sendo redimensionado em sua ação

criativa. Na improvisação, o corpo do ator constitui o eixo de construção da

dramaturgia e da comunicação. Essa qualidade demanda uma especificidade do 1 Arianne Mnouchkine (1939-), fundadora, em 1964, e diretora do Théâtre du Soleil, em Paris.

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treinamento do ator. Um olhar voltado ao corpo no processo de conhecimento e

construção do personagem, cuja largada foi dada pelo Método das ações físicas

de Stanislavski, por volta de 1918, abriu caminho para que a idéia de um corpo

comandado por uma mente fosse dando lugar à idéia de um corpo integrado à

mente (Azevedo, 2002). E finalmente, nos dias de hoje, já é possível

compreender o corpo não apartado da mente e entender que sua experimentação

deflagra processos cognitivos de incorporação do conhecimento. Essas

afirmativas são consideradas à luz dos estudos provenientes das Ciências

Cognitivas, que enfocam o corpo como a construção no trâmite da relação com o

ambiente. Sob essa perspectiva, a improvisação pode ser apresentada em um

novo relevo que embasa as suas metodologias de treinamento e qualifica as suas

concepções.

Atualmente, podemos encontrar um exemplo dessa preocupação no relato

de Oida2,

Algumas vezes descobrimos essa atuação natural através de uma investigação psicológica. [...] Mas isso nem sempre funciona, já que a trajetória emocional da pesquisa é dificultosa e às vezes enganosa. Um ator precisa de métodos que produzam uma interpretação humana convicente todas as noites, independente do que esteja sentindo (Oida, 2001: 94)

Nessa perspectiva, torna-se possível realocar a questão do conhecimento

e, portanto, questionar “como o corpo conhece?” Esse aspecto vem sendo

intensamente pesquisado e discutido nas Ciências Cognitivas desde 1950. Para

esta tese, serão estudados os pesquisadores António Damásio (2003, 2000 e

1995), Alain Berthoz, (2003 e 2001), Andy Clark (2001 e 1997) e

Ramachandran (2002 e 1999), cuja hipótese para essa questão confere ao corpo

e ao ambiente, em relação contínua, os processos de conhecimento (como e o

que se conhece). Nesta tese, a história da improvisação busca reconstituir as

2 Yoshi Oida (1933- ) é ator, formado pela escola de Artes tradicionais do Japão. Desde 1968, integra o Centre Internationel de Creation Théâtrale, dirigido por Peter Brook em Paris. Atua também como diretor desde 1974.

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questões que ela suscita, destacando-as conjuntamente aos aspectos processuais

da incorporação do conhecimento no corpo como uma nova base para a

compreensão da improvisação.

Neste sentido, será analisado na tese escrita e apresentado em espetáculo o

modo de ação do corpo do ator no ambiente específico da improvisação teatral

com o clown. À luz das pesquisas das Ciências Cognitivas, será discutido como

ação espontânea, consciência, emoções e sentimentos, fluxos de imagens,

componentes da relação entre o ambiente corpo e o ambiente mundo,

configuram-se numa improvisação teatral e como contaminam o processo de

treinamento e composição de um espetáculo, qualificando uma metodologia e

uma dramaturgia apropriada à improvisação. Como o corpo e o ambiente

estabelecem um estado contínuo de comunicação? Como esse estado de

comunicabilidade conduz a construção da dramaturgia do clown na

improvisação? Pretende-se mapear alguns aspectos constitutivos dessa relação,

atentando, na medida do possível, para a complexidade dessa rede de relações.

Assim, serão identificados alguns nós que formam essa rede, sem a pretensão de

desenhá-la completamente. Mapear não é reconstituir o território.

O primeiro momento será dedicado a identificar algumas possíveis razões

pelas quais a improvisação foi subestimada no meio teatral. No segundo

momento, pretende-se mapear os questionamentos que acompanham a prática

improvisacional no decorrer do século XX e, concomitantemente, caracterizar a

improvisação como um ambiente de pesquisa de linguagem teatral e visualizar

as possíveis relações comunicativas que se configuram entre esse ambiente e o

corpo do ator.

Historicamente, a improvisação no teatro foi conceituada como uma

manifestação espontânea e informal, originária dos rituais e festas populares. A

partir dessas manifestações, os dramaturgos deram início à formalização dos

elementos dos rituais e das festas em texto e ação dramática, configurando a

tragédia e a comédia em textos dramatúrgicos (Chacra, 1991). Trata-se de uma

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concepção na qual a improvisação – considerada como expressões espontâneas,

informais, momentâneas e desprovidas de forma – gradualmente alcança a

formalização no texto dramático. Valoriza-se, nesse sentido, o caráter superior

da linguagem teatral estruturada e formalizada no texto dramático em detrimento

à linguagem estruturada na improvisação.

O caráter da momentaniedade da improvisação, sua incerteza e desamparo levam os homens de teatro a se empenharem em obter conteúdos mais estruturados, procederem à seleção de elementos cênicos e formarem os alicerces de um teatro formalizado (Chacra, 1991:25)

Originária da Grécia antiga, essa concepção pejorativa da improvisação e

dos rituais e festas populares percorre os séculos, provoca preconceitos e,

possivelmente, dela deriva o pouco conhecimento que se desenvolveu acerca da

improvisação. Configura-se nesse debate a dualidade entre o pensado, o

elaborado, o artístico da linguagem teatral formalizada no texto dramático

versus o espontâneo, o momentâneo, o pré-artístico da improvisação. Um objeto

com tais características não pode encontrar respaldo teórico nos modelos

filosóficos e científicos de cunho dualista que separam razão e emoção, teoria e

prática (e outros binômios), sobrevalorizando um dos aspectos do par em

prejuízo do outro. Assim, não é possível a construção de um pensamento teórico

e estético sobre ela, como, por exemplo, a tragédia grega, que encontra um

interlocutor na Poética, de Aristóteles. Nesse sentido, recai sobre a

improvisação a pré-concepção de ela se configurar como arte menor diante do

teatro formalizado no texto literário dramático.

Cabe notar que a improvisação e a comédia ganharão estatuto de arte com

o advento da Commedia dell’arte, por volta do século XVI, na Itália. Na

expressão Commedia dell’arte, o termo arte está ligado a “ofício”, tal como as

corporações e associações de inventores e artesãos do período (Fo, 1998). Para

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demonstrar as concepções valorativas do teatro formalizado no texto teatral

encontramos em Dario Fo a seguinte reflexão:

Um respeitável estudioso inglês, Nicoll, afirma que o termo “arte” tem o mesmo sentido de “qualidade”, sendo assim, dell’arte significa “da maestria”. Benedetto Croce, ao contrário, está de acordo com a origem corporativa, mas somente com o objetivo de demonstrar que os cômicos da comédia italiana, apesar de hábeis histriões e mímicos engraçadíssimos, não eram artistas, e sim pessoas de ofício, pois não se percebe a presença de um autor genial (Fo, 1998: 21).

Evidentemente, Croce valoriza o teatro realizado a partir do texto

literário-dramatúrgico, da linguagem verbal. Ampliando a perspectiva do

trabalho do ator para além da linguagem verbal e observando as técnicas

utilizadas na Commedia dell’arte, destaca-se esta arte como grande

revolucionária do gênero teatral em sua época. Os cômicos possuíam uma bagagem incalculável de situações diálogos, gags, lengalengas, ladainhas, todas arquivadas na memória [...]. Era uma bagagem construída e assimilada com a prática de infinitas réplicas, de diferentes espetáculos, situações acontecidas também no contato com o público, mas a grande maioria era, certamente, fruto de exercício e estudo (Fo, 1998: 17).

E ainda,

A Commedia dell’ arte se baseia na combinação de diálogo e ação, monólogo falado e gesto executado, e nunca unicamente na pantomima. Somente cambalhotas, dancinhas, caretas e gestos, as máscaras não são capazes de segurar uma cena, ao contrário do que supõe Croce (Fo, 1998: 22).

Embora restrita atualmente a poucos grupos, a Commedia dell’arte deixa

a sua herança ao redimensionar e revalorizar a questão da improvisação no

teatro, tanto no que respeita a necessidade de treinamento do ator para a

improvisação quanto à improvisação como uma possibilidade de estética teatral.

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Da Commedia dell’arte, vale ressaltar: a roteirização das ações,

canovaccio3, sobre a qual o ator se lançava para improvisar, orientando sua ação

em cena; e a valorização do trabalho do ator e seu treinamento técnico corporal

bastante especializado, com o uso de acrobacias, trabalho vocal, mímica e

música. Não se tratava de “atores improvisados”(Chacra, 1991; Machado,

2000).

O caráter espontâneo e a vitalidade trazida pela improvisação serão foco

de atenção do fazer teatral moderno e contemporâneo, seja como recurso de

criação (improvisação como “método” e “instrumento”), seja como um modo de

ação na representação teatral (improvisação como “espaço mental”) (Chacra,

1991; Bonfitto, 2002). A improvisação como “espaço mental” sobressai quando,

nos anos 70 e 80 do século XX, os núcleos de pesquisa teatral questionam a

primazia do texto dramático no fazer teatral, ganhando maior atenção o trabalho

sobre o ator.

Constantin Stanislavski (1863-1938) representa um importante marco na

história do teatro no século XX, uma vez que dedicou seus estudos e pesquisas à

sistematização de um método para o ator. Foi com base no seu sistema que

muitos diretores e atores contemporâneos realizaram sua formação. Seu método

como um todo, seja a primeira fase (Linhas de forças motivas), seja a segunda

(Método das ações físicas), está voltado, prioritariamente, para orientar a

formação do ator e a criação do personagem de acordo com um texto dramático

a ser encenado. Sendo este seu foco de pesquisa, a improvisação em seu sistema

constituía um recurso para compreensão da peça e para a pesquisa e construção

do personagem. Conforme Bonfitto (2002), seria a utilização da improvisação

como instrumento.

Na obra de Stanislavski, não há uma preocupação explícita em discutir a

questão da improvisação, embora a sua convicção fosse de que “quanto mais os

3 Canovaccios ou cavenas: roteiro de uma peça de improvisação, uma espécie de resumo da intriga, do jogo de cena e efeitos especiais (Pavis, 2001).

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atores aprendessem a improvisar cenas que não estão no texto, mais eles

conseguiriam acreditar na realidade humana dos personagens e das situações que

eles representavam” (Brook, 2000: 150).

No capítulo “Adaptação”, de A preparação do ator, podemos traçar

algumas correspondências com improvisação: De agora em diante usaremos essa palavra, adaptação, para significar tanto os meios humanos internos quanto externos que as pessoas usam para se ajustarem umas às outras, numa variedade de relações e, também, como auxílio para afetar um objeto. [...] é uma expessão viva de sentimentos ou pensamentos interiores (Stanilavsky, 1989: 240)

A adaptação em Stanislavski constitui uma reação constante, adequada e

ajustada à circunstâncias sugeridas e/ou aos objetivos a serem alcançados e/ou

às necessidades do momento, tanto quanto, no dia-a-dia, cada qual se adapta às

suas necessidade e ou objetivos imediatos.

Se nas situações mais comuns da vida cotidiana as pessoas precisam e usam de uma grande variedade de adaptações, nós, atores, precisamos de um número proporcionalmente maior, pois temos de estar sempre em contato uns com os outros e, portanto, em incessantes ajustamentos (Stanilavski, 1989: 243)

Atualmente, pode-se dizer que não se trata de uma questão quantitativa,

ou seja, quanto mais adaptações melhor, mas um modo qualitativo de o corpo

permanecer no espaço, isto é, processos adaptativos são contínuos e necessários

e, para a improvisação, o diferencial encontra-se na habilidade de o ator

perceber a maneira como o corpo se relaciona com o ambiente.

Stanislavski pontua ainda que a força de um ajustamento reside na sua

imprevisibilidade e em sua origem no subconsciente. “As adaptações mais

poderosas, vívidas e convincentes são fruto dessa artista que faz maravilhas: a

natureza. São de origem quase que de todo subconsciente” (Stanislavski, 1989:

249).

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Essa concepção aproxima-se do que entendemos por uma ação de

improvisação: um estado de percepção e prontidão que integra o ator aos

acontecimentos imediatos da cena e o torna apto a distinguir o jogo, o foco, os

objetivos e/ou as necessidades do momento e assim interagir ajustadamente.

Trata-se, pois, de uma resposta orgânica e viva na medida em que ocorre de

acordo com a integração e a interação do ator e da cena, seja numa cena pré-

organizada no texto dramático, seja numa cena que se organiza no próprio fazer,

cuja base é a da improvisação.

É interessante notar como Stanislavski sempre recorre às leis orgânicas da

natureza, tal como ele as denomina, para fundamentar o trabalho do ator. Elas

constituem um dos princípios de seus ensinamentos. Stanislavski parte do

pressuposto de que as bases orgânicas das leis da natureza e as experiências

vivas do ser humano e do próprio ator são as matérias que alicerçam esse

trabalho. São, portanto, as responsáveis pela construção de um personagem que,

artisticamente, pode reproduzir aspectos mais sutis e profundos da vida humana.

Abstemo-nos de interferir com a natureza e evitamos desobedecer às suas leis. Sempre que conseguimos nos pôr num estado plenamente natural e descontraído, ergue-se dentro de nós um fluxo criador que ofusca com seu brilho o nosso público (Stanislavski, 1989: 254).

Sendo essas as matérias de trabalho, a metodologia de Stanislavski traçará

os caminhos que o ator pode seguir para conhecê-las e utilizá-las, sobretudo, no

que diz respeito aos sentimentos e às emoções. Um dos objetivos do seu sistema

é que o ator aja com a mesma naturalidade que um cidadão comum agiria em

determinadas circunstâncias. Daí a forte recorrência às emoções e aos

sentimentos, não com o intuito de criá-los ou dominá-los mas de saber que ali

está a origem de uma ação ajustada.

Atualmente, os estudos de António Damásio permitem despontar algumas

possíveis leis da natureza que ajudam a compreender a plausibilidade dos

princípios relativos aos sentimentos e às emoções encontrados em Stanislavski.

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Vejamos sinteticamente como, para Damásio, as emoções e os

sentimentos constituem o primeiro modo de ação do organismo na relação com

o seu ambiente. As emoções e os sentimentos constituem as funções básicas de

sobrevivência de organismos dotados destes mecanismos. Em linhas gerais, na

relação entre organismo e mundo, as emoções vinculam o objeto ou situação

vivida à regulação homeostática (regulação interna do organismo), responsável

pela preparação do corpo para a reação emocional ajustada à experiência

(afastar-se, ficar feliz, aproximar-se, sentir dor ou prazer).

O sentimento vem depois da emoção e é por ela gerado, constituindo uma

experiência não compartilhável do organismo, enquanto a emoção pode e é

expressa no teatro do corpo. Emoções geram transformações nos estados

corporais e também são geradas por eles. E os sentimentos são o que o

organismo experimenta (dor ou prazer), fruto dessa emoção. Segundo Damásio,

o sentimento é, possivelmente, a representação do mapa cerebral que, por sua

vez, será a representação da paisagem corporal, ou seja, do estado do corpo, da

emoção.

A homeostasia constitui um estado contínuo de estabilidade do

organismo. A possibilidade de conhecer consiste no efeito que o objeto a ser

conhecido (interno ou externo) exerce sobre o sistema que regula o controle

homeostático, desestabilizando o organismo e, a um só tempo, reorganizando-o

como se fosse uma função “termostática”. A continuidade do estado de

estabilidade é que permite ao organismo constituir interações mais complexas

com o mundo, uma vez que os mecanismos de estabilização do organismo

atuam constantemente.

Esses procedimentos implicam um mecanismo complexo e contínuo de

funcionamento do cérebro no qual este traça continuamente um mapa de

representação do corpo. O organismo empenha-se em relacionar-se com o objeto

e este, por seu lado, gera mudanças no organismo. Assim, a tarefa do cérebro

consiste em mapear o organismo, mapear o objeto e mapear a relação entre eles.

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Ou seja, o cérebro é constantemente informado sobre os estados do corpo por

meio do sistema sômato sensitivo (interoceptivo, proprioceptivo e tato

descriminativo4), que transmite suas informações por meio da corrente

sanguínea ou via neural. Os estados do corpo constituem os mapas neurais5

emergentes das relações interna e externa do corpo. Os mapas neurais não são

percebidos pelo seu produtor. O objeto (interno ou externo) é representado no

cérebro e

o resultado desses comandos é uma mudança global no estado do organismo. Os órgãos que recebem os comandos mudam em conseqüência destes, e os músculos [...] movem-se conforme lhes foi ordenado. Mas o próprio cérebro sofre uma mudança igualmente notável. A liberação de substâncias [...] altera o modo de processamento de inúmeros outros circuitos cerebrais, desencadeia certos comportamentos específicos e modifica a sinalização de estados corporais para o cérebro (Damásio, 2000: 95).

Como vemos, o intrincado mecanismo no qual principiam os processos da

consciência depende das reações emocionais, da capacidade de sentir e da

capacidade de saber que se está sentindo. O cérebro representa a relação do

organismo com o objeto, na medida em que o objeto gera mudanças de estado

no organismo juntamente com os objetos evocados por essa reação do

organismo. As emoções e os sentimentos são as primeiras sinalizações passíveis

de serem conhecidas pelo corpo que as produziu e constituem estados que

orientam a ação do organismo no meio. É a partir das emoções e sentimentos

que o organismo age no mundo.

4 Interoceptivas são as sinalizações advindas do meio interno e das vísceras e estão incumbidas de perceber as mudanças no meio químico das células de todo o corpo. Proprioceptivas ou cinestésicas são as sinalizações advindas do sistemas muscular e esquelético e do sistema vestibular (mapeia o corpo no espaço). Tato descriminativo comunica sensações advindas da pele (tato, olfato, paladar, visão, audição). 5 Mapas neurais é o nome dado à formação das redes sinápticas de neurônios acionados que representam algum estado do corpo. As imagens mentais correspondem a um momento além dos mapas neurais no qual estes, conjuntamente, constituem uma imagem mental que, por sua vez, pode vir a ser conhecida por seu produtor. Ou seja, não temos acesso à formação das redes neurais e o menor controle sobre os desencadeamentos possíveis dessas redes, que só aparecem a nós como imagens mentais.

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Para um organismo dotado de sentimento (padrões sensoriais indicativos

de dor, prazer e emoções), as emoções impactam a mente. E para um organismo

dotado de consciência (saber que está sentindo – dor ou prazer e emoção–, ter a

percepção das reações corporais da emoção), as emoções influenciam os modos

de pensamento. Nessa perspectiva, é possível compreender por que as emoções

e os sentimentos não estão fora do conhecimento, não o atrapalham e, muito

pelo contrário, são fundamentais para sua formulação.

Compreendendo o processo de criação artística como uma forma de

conhecimento, podemos observar que a emoção e o sentimento não são

privilégios do fazer artístico e a formulação de conhecimento não é privilégio do

fazer científico. Fazer arte e fazer ciência implicam processos de emoção, de

sentimento e de conhecimento.

Stanislavski percebeu a importância das emoções e dos sentimentos

porque o corpo reage, percebe e age com base nesses primeiros modos de ação

do corpo. Eles qualificam uma ação ajustada, portanto, espontânea e viva,

diferente de uma ação automatizada, como os carimbos, os clichês e os

estereótipos. Este ponto de vista acerca das emoções e dos sentimentos permite

entender que o corpo humano não é apenas uma construção simbólica instruída

pela cultura, mas um complexo processador cuja natureza o habilita a conhecer,

interagir com o mundo e produzir imagens, relações e pensamentos.

Na improvisação, não será menos importante a questão das emoções e dos

sentimentos. Fundamentando-se nessa concepção de Damásio, as emoções e os

sentimentos geram ações ajustadas à demanda do momento, ou seja, cabe ao

ator, na improvisação, aguçar sua percepção interna e externa para os

sentimentos e as emoções, para as sensações e os pensamentos que tem e

consegue perceber de acordo com a ação que realiza. Em outras palavras, temos

aqui uma possível qualificação para a chamada presença cênica: um estado de

percepção atento aos acontecimentos externos e internos, donde, então, a ação

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realizada vem preenchida dos ajustamentos internos e externos e não

reproduzida automaticamente.

Se Stanislavski não apresenta em seus escritos uma preocupação explícita

com a improvisação, o mesmo não se pode dizer de seus herdeiros nas pesquisas

realizadas a partir da exploração do Método das ações físicas.

Entre as décadas de 1950 e 1960, as reflexões de Michael Chekhov6 e

Eugênio Kusnet7, já evidenciam algumas questões relativas à improvisação que

ainda hoje constituem o modus operandi dessa técnica. No Método das ações

físicas, por exemplo, as improvisações baseiam-se nos acontecimentos da peça,

construindo e compreendendo a cena, o personagem e a ação na prática de sua

realização. O objetivo da improvisação não é buscar as emoções e os

sentimentos do personagem, mas a sua ação e os recursos para alcançar o seu

objetivo/necessidade em cena. “As emoções virão como conseqüência natural de

uma ação certa” (Kusnet, 1992:104).

Nesses estudos, podemos identificar que as qualidades necessárias ao ator

para a improvisação são: a disponibilidade, a observação, a percepção, a

receptividade, o estado de atenção e a espontaneidade. Um fator fundamental

para a improvisação em grupo, já pontuado por Chekhov, consiste no processo

de conexão e interação entre os atores.

Uma pequena indicação de um parceiro – um olhar, uma pausa, uma entonação nova ou inesperada, um movimento, um suspiro ou mesmo uma mudança quase imperceptível de ritmo – pode converter-se num impuloso criativo, num convite aos outros para que improvisem. (Chekhov, 1953:45).

6 Michael Chekhov (1891-1955), ator, diretor e professor do Segundo Teatro de Arte de Moscou, foi responsável pela introdução do método de Stanislavski na Europa e nos Estados Unidos. Em 1952, publicou o livro Para o ator. 7 Eugênio Kusnet (1898-1975) nasceu na Estônia e iniciou sua formação artística na Rússia pré-revolução. Chegou ao Brasil em 1927. Em 1951, juntamente com Ziembinski, trabalhou como ator no Teatro Brasileiro de Comédia. Profundo estudioso e conhecedor do Método de Stanislavski, foi responsável pela formação dos atores do Teatro Arena e do Teatro Oficina nesse método. Em Ator e método, Kusnet sintetiza seus conhecimentos e reflexões sobre o método de Stanislavski bem como apresenta seus principais procedimentos como professor desse sistema.

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Vale ressaltar que as qualidades necessárias ao ator desenvolvidas pela

improvisação não são prioridades do ator/improvisador, mas do ator de teatro.

Mesmo num espetáculo estruturado, essas qualidades da ação do ator são

fundamentais para a vitalidade da cena e do espetáculo. Como veremos mais

adiante, elas permitem ao ator perceber seus padrões de movimento e de ação e

compreender o que está se cristalizando ou mecanizando para, então, destituir os

automatismos. Por essa razão, a improvisação é e foi recurso muito explorado

para o treinamento do ator em vários outros métodos e em pesquisa de

linguagem.

A improvisação constitui-se de uma organização aberta da seqüência de

ações, mas não de uma ação arbitrária e desprovida de limitações, comumente

conhecida pelo “fazer qualquer coisa”. A roteirização das ações ou estrutura do

jogo dramático ou o canovaccio, como veremos mais adiante, apontam para o

fato de que a improvisação não é uma ação completamente livre e privada de

critérios. Não se improvisa do nada, não somente porque o corpo do ator se

depara com um roteiro de ações ou uma estrutura de jogo dramático ou um

canovaccio, mas porque esse corpo (como qualquer outro) uma vez disposto ao

improviso não se constitui como uma tábula rasa, como foi pontuado na

introdução (p.15).

A roteirização das ações ou a estrutura do jogo dramático ou o canovaccio

são formas diferentes de nomear uma delimitação para a improvisação. Tanto

para uma improvisação individual quanto coletiva, é necessário definir um

começo e um fim para a improvisação na qual, preferencialmente, o fim

contraste com o começo (Chekhov, 1953). Essa pequena regra permite ao ator

não se perder, na medida em que possui um objetivo a ser atingido.

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Dario Fo8, em Manual mínimo do ator, descreve, nos exercícios de

improvisação, uma estrutura de jogo dramático que enfoca a necessidade de se

criar um conflito e de a história dar reviravoltas, surpreendendo constantemente,

mantendo vivo o jogo, criando a expectativa do desenlace.

O roteiro de ações e o canovaccio da Commedia dell’arte constituem

também formas de delimitação da improvisação. Na metodologia de

improvisação de Paoli-Quito, por exemplo, ela enfatiza, no aprendizado da

Commedia dell’ arte, a utilização do canovaccio – como recurso que orienta e

alinhava a leitura e a realização de uma improvisação. “Por isso que a

Commedia dell’ arte foi fundamental; eu aprendi a improvisar e a roteirizar uma

dramaturgia cênica” (Paoli-Quito, 2000). O roteiro das ações segue, de maneira

geral, a seguinte estrutura:

1. Apresentação dos personagens e do lugar da ação.

2. Apresentação das relações entre esses personagens.

3. Desenvolvimento dos conflitos dessas relações.

4. Desenlace.

Cabe compreender que esse roteiro de ações não constitui

necessariamente uma história seqüencial. Ele se compõe de poucos elementos

para orientar a ação do ator, ou seja, uma estrutura mais ampla de um modo de

organização da relação dos corpos no espaço, no caso, o espaço cênico.

Preencher essa estrutura com ações, jogo, entusiasmo, vida, alegria é a tarefa do

trabalho do ator improvisador.

Como já apontamos, o corpo do ator, como qualquer outro corpo, não é

uma tábula rasa, o que implica compreender que o corpo se encontra em

constante fluxo de troca e de comunicação consigo mesmo e com o ambiente

externo a ele (Damásio, 2000; Berthoz, 2003). Dificilmente, esse corpo

8 Dario Fo (1926- ) ator, mímico, diretor e produtor teatral italiano. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1997. Em 1959, funda com sua esposa a Cia Dario Fo – Franca Rame, produzindo e dirigindo peças de caráter satírico popular.

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executará uma ação que não tenha sido originária de seu sistema somato

sensitivo. Este, por sua vez, não implica uma resposta linear a algum estímulo,

mas constitui uma rede de estímulos na qual circulam imagens mentais

provenientes de experiências e conhecimentos anteriores, memórias,

pensamentos, sensações, imaginações que se organizam para ajustar uma

resposta adequada às outras tantas informações desencadeadas.

O corpo do ator treinado para a improvisação se defronta com um roteiro

de ações, ou um estímulo ou uma proposição. Esse ato de percepção já sinaliza

algumas possibilidades de ação no contexto das habilidades desenvolvidas. Com

Berthoz9 (2001), podemos compreender que a percepção se constitui de uma

ação simulada. Ver um movimento surte a mesma descarga neural de fazer esse

movimento, o que sugere que haja uma simulação interna, para então, decidir a

ação.

Uma das idéias principais deste livro (Le sens du mouvement) é que a percepção não é somente uma interpretação de mensagens sensoriais: ela é constrangida pela ação, ela é simulação interna da ação, ela é julgamento e tomada de decisão, ela é antecipação das conseqüências da ação (Berthoz, 2001: 15)10.

Berthoz demonstra que o cérebro simula, prolonga, projeta, substitui, cria

uma representação do corpo e do mundo simultaneamente, a partir dos processos

perceptivos complexos. De acordo com seus experimentos, a percepção já é uma

ação do corpo, uma vez que consiste em uma simulação do movimento do

objeto percebido e do próprio corpo na percepção desse objeto. Nesse sentido,

9 Alain Berthoz enfoca também uma descrição complexa do funcionamento do cérebro em relação ao corpo e ao meio externo. A hipótese desse pesquisador é de que o corpo humano é constituído de dois corpos, um de carne e osso e outro virtual, idêntico ao de carne e osso mas simulado, ou seja, a partir da capacidade do cérebro simular esse corpo de carne e osso, ele cria uma representação dele. Essa representação constitui, segundo Berthoz, o duplo do corpo, cuja ação desencadeia processos de conhecimento e decisão. 10 Une des idées principales de ce livre est que la perception n’ est pas seulement une interprétation des messages sensoriels: elle est contrainte par l’ action, elle est simulation interne de l’ action, elle jugement et prise de décision, elle est antecipation des consequences de l’ action.

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ela orienta uma ação possível para aquele corpo naquele momento, ou seja, uma

decisão.

A decisão é uma propriedade fundamental do sistema nervoso baseado em mecanismos de simulação interna do corpo e do mundo, que aumentaram de complexidade no decorrer da evolução. A deliberação não é somente um processo formal e consciente, é também um trabalho inconsciente, que utiliza mecanismos de criação de cenários, mesmo fora de toda realidade física. O cérebro pode decidir em simular a ação. Uma teoria neurocognitiva desta capacidade deve ser fundamentada (Berthoz, 2003: 155).11

Vale notar que, por não se improvisar do nada, a ação se compõe desse

complexo de ações simuladas que culmina numa decisão (não necessariamente

consciente) como uma resposta imediata à percepção do jogo de relações

estabelecidas no momento da ação, seja esse jogo um roteiro de cenas ou ações,

seja um jogo infantil de “pega-pega”, seja uma estrutura de jogo dramático. Sob

esse aspecto é que podemos entender esse modo da ação como espontâneo.

No treinamento de improvisação, pode-se falar do exercício da ação

espontânea no contexto dado, questionando como o corpo reage quando

envolvido em determinadas circunstâncias e diante de acontecimentos

inesperados do jogo das relações em cena. O treinamento constitui um modo de

conhecer e criar um sistema de ação e resposta ao jogo (qualidades técnicas de

ação) e habilitar o ator a entregar-se ao jogo de cena seja ele uma improvisação

ou não (disponibilidade e presença cênica).

A espontaneidade constitui um modo de ação bastante requerido no fazer

teatral e a improvisação constitui uma das formas de exercitá-la, como já

pontuou Kusnet:

11 La décision est une propriété fondamentale du système nerveux fondée sur dês mécanismes de complexité au fure et à mesure de l’ evolution. La déliberation n’ est pas seulement un processus formel et conscient, c’ est aussi un travail inconscient qui utilise des mécanismes de création de scénarios, même en dehors de toute réalité physique. Le cerveau peut délibérer en émulant l’ action. Une théorie neurocognitive de cette capacite doit être fondée.

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Se partirmos do princípio de que a espontaneidade se revela na ação improvisada – ou vice-versa, que a ação improvisada é resultado da espontaneidade inata – podemos chegar à conclusão de que o dom de improvisação bem desenvolvido pode substituir o que chamamos de talento (Kusnet, 1992: 98).

Vejamos uma das formas de compreensão da espontaneidade nas Ciências

Cognitivas. Por meio de estudos laboratoriais de pacientes com lesões cerebrais,

V. S. Ramachandran e Sandra Blakeslee (2002) buscam lançar uma luz sobre o

funcionamento da mente e cérebro humanos.

Na verdade, podemos começar onde Freud terminou, ingressando no que se poderia chamar de a era da epistemologia experimental [...] e a neuropsiquiatria cognitiva [...] e começar a fazer experiências sobre sistemas de crença, consciência, interações corpo-mente e outras características do comportamento humano (Ramachandran & Blakeslee 2002: 25).

Buscando mostrar que os dois pontos de vista das teorias de

funcionamento do cérebro – modularidade e holismo – não são mutuamente

excludentes, os autores acima citados explicam por que o ato espontâneo de

sorrir difere de quando o mesmo ato é solicitado, por exemplo, para tirar

fotografia. Essa diferença ocorre, pois

regiões diferentes do cérebro os controlam e apenas uma delas contém um “circuito especializado em sorriso”. [...] Apesar de sua aparente simplicidade, o ato de sorrir envolve a cuidadosa orquestração de dezenas de diminutos músculos na seqüência apropriada. No que concerne ao córtex motor (não especializado parar gerar sorrisos naturais), este é um feito tão complexo quanto tocar Rachmaninoff sem nunca ter tido aulas de piano, e portanto falha completamente. Seu sorriso sai forçado, tenso, artificial (Ramachandran e Sandra Blakeslee, 2002: 37).

Se tudo isso acontece por um simples ato de sorrir, o que pensar, então,

quando o ator vai falar um texto, criar um gesto, um modo de andar, um modo

de olhar e ainda parecer natural?

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A habilidade específica do ator profissional consiste em provocar em si mesmo, sem esforço nem artificialismo perceptíveis, estados emocionais que não pertençam a ele e sim ao personagem. [...] Nas mãos de um verdadeiro artista tudo parece natural, mesmo que a forma exterior seja tão artificial que não tenha equivalente na natureza. [...] A tarefa do ator é tornar qualquer estilo natural (Brook, 1999: 60).

Por um lado, o simples ato de sorrir espontaneamente ou não requer

circuitos diferentes e, por outro, essa citação de Brook indica que o trabalho do

ator está mais para uma ação solicitada do que para uma ação propriamente

espontânea (conforme distinção de Ramachandran e Blakeslee). Ou seja, não é

à-toa, no teatro, o medo do ator em realizar uma ação forçada, tensa e artificial,

pois é da natureza do processo de criação o exercício de fazer parecer

espontâneo o que foi criado artificialmente.

A improvisação pode ser compreendida como um modo de habilitar a

ação espontânea do ator, uma vez que ela constitui um ambiente que propicia

uma ação imediata, sem premeditação, uma ação nascida da interação com o

meio. Agir espontaneamente implica um estado quase imediato de resposta que

somos capazes de dar às imposições, aos acontecimentos. Isso exige percepção,

envolvimento, estado de alerta da mente/corpo, habilidades possivelmente

ativadas pelo que se costuma chamar de treinamento.

1.2 Corpomídia: quando o corpo é o protagonista da cena

Os trabalhos desenvolvidos por Viola Spolin constituem uma outra linha

de pensamento da improvisação no teatro. Eles diferem substancialmente das

discussões até o momento apresentadas, uma vez que investigam a ação do

corpo no jogo e o potencial de instrumentalização de jogos em suas diversas

acepções12 para a ação cênica. É uma metodologia que conjectura a

12 O termo “jogo” tem uma grande abrangência. Aqui é usado compreendendo-se como jogo tradicional os jogos e brincadeiras infantis e populares como ‘pega-pega’ e suas variações, ‘rabo do burro’, ‘esconde-esconde’, ‘duro mole’, ‘pique bandeira’, detetive etc. Como jogo teatral ou jogo de cena ou jogo do ator compreende o conjunto de acontecimentos como a enunciação de texto, a gestualidade, a réplica e o ritmo desempenhados por

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comunicação cênica do corpo do ator, portanto, fundamenta-se na fisicalização

do personagem em oposição a uma compreensão psicológica dele. Ocupada com

o processo educativo do aprendizado de teatro, com o treinamento do fazer

teatral e com a espontaneidade do ator (aprendiz ou não) em cena, Spolin

constituiu seu método sobre a interação de dois eixos, a saber, o jogo

(tradicional, dramático e teatral) e o corpo do ator.

Em uma análise crítica a essa metodologia, vale observar que Spolin

fundamenta seu método na experiência, no ambiente de experimentação, na

incorporação e na comunicação. Nessa concepção salienta-se a importância dada

ao corpo do ator e ao jogo como instrumentos que habilitam o ator à

improvisação. Por sua vez, a improvisação constitui o modo de construção e

aprendizagem da linguagem teatral. E esta última, por fim, é compreendida

como um processo de comunicação. Assim, a metodologia de Spolin oferece

argumentações, técnicas e exercícios para o treinamento das habilidades

necessárias ao ator / improvisador, tanto no que respeita questões como

disponibilidade e espontaneidade como no que respeita questões próprias à

linguagem teatral concentradas no trabalho do ator. Talvez por apresentar uma

nova fundamentação ontológica e epistemológica para a compreensão da

improvisação, seu método de trabalho tem sido aplicado e discutido há anos.

Spolin evidencia uma preocupação com a questão da comunicação no que

concerne a “como um corpo se comunica na cena teatral?” Parte do princípio de

que o processo de aprendizagem da linguagem teatral tem início na experiência

e que esta se realiza na relação com o ambiente. Talento para ela significa a

capacidade de experienciar. E “experienciar é penetrar no ambiente, é envolver-

se total e organicamente com ele” (Spolin,1992: 4).

Esse princípio coaduna com algumas fundamentações filosóficas

subsidiárias das Ciências Cognitivas as quais compreendem que o corpo só

um ou mais atores que dinamizam a cena teatral. E jogo dramático pode ser compreendido como uma improvisação destinada ao conhecimento da arte dramática (Pavis, 2001).

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existe num ambiente e se faz na relação com ele, ou seja, pela experiência. O

corpo só existe, se faz e age porque está na relação com o seu ambiente – tempo

/ espaço onde esse corpo está: natureza, cultura, sociedade, história. (Yuasa13,

1987; Lakoff & Johnson, 1999). “O ambiente não é o ‘outro’ para nós. Ele não é

uma coleção de coisas que nos encontram. Ele é parte de nosso ser. Ele é o lugar

de nossa existência e identidade. Nós não podemos e não existimos fora dele”14.

(Lakoff & Johnson, 1999: 566).

Esse modo de ser do corpo (ser no espaço) fundamenta o pressuposto de

Viola Spolin, enfatizando que estar no ambiente é estar em relação com ele, ou

seja, essa concepção implica que o ambiente é incorporado pelo corpo por meio

da experiência; estar no espaço implica mecanismos internos de percepção e

incorporação das relações com o ambiente externo. O ambiente faz o corpo e o

corpo faz o ambiente, numa relação contínua de troca e interação de informação.

Para uma improvisação especificamente com o clown, que é o objeto desta tese,

esse enfoque é fundamental. O clown é um personagem que interage com o

ambiente a partir do que a relação apresenta como possibilidade, seja o ambiente

um cenário ou não. Por exemplo, se há em cena uma lata de lixo, ele pode ou

não ser usado como tal, mas tanto o público como o clown sabem que aquilo é

uma lata de lixo. Não há um jogo “faz de conta que é um tambor”, aquilo é uma

lata de lixo que virou tambor e isso orienta as possibilidades das significações da

cena.

Outro elemento importante do método de Spolin consiste na

“fisicalização”, ou seja, a expressão física de qualquer emoção, sentimento,

personagem, idéia e intenção no palco. Em seu próprio glossário, ela define a

fisicalização como um modo de mostrar que se opõe ao contar (representar), ou

13 Segundo Yasuo Yuasa, semelhante modo de pensar o ser humano pode ser encontrado no filósofo japonês Watsuji Tetsurō (1889-1960). Trata-se de um conceito de pessoa por ele defendido que compreende que o homem só existe no espaço “entridade”, “betwenness”, “aidagara”; evidentemente não se trata de um espaço neutro, despido de significação, mas um espaço interconectado de sentidos e significados humanos. Esse modo de pensar a pessoa parece intervir no padrão de comportamento e pensamento do japonês. 14 The environment is not an “other” to us. It is a collection of things that we encounter. Rather, it is part of our being. It is the locus of our existence and identity. We cannot and do not exist apart from it.

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seja, a manifestação física de uma comunicação, a expressão de uma atitude. No

capítulo intitulado “Personagem”, do livro Improvisação para o teatro, Spolin

(1992) sugere uma série de exercícios de construção do personagem sobre uma

base física estrutural. Essa concepção já indica a possibilidade de pensar o corpo

não como boneco da imaginação e do pensamento do ator, mas como o autor da

ação. Nossa primeira preocupação é encorajar a liberdade de expressão física, porque o relacionamento físico e sensorial com a forma de arte abre as portas para o insight. É difícil dizer porque isso é assim, mas é certo que ocorre. Esse relacionamento mantém o ator no mundo da percepção – um ser aberto em relação ao mundo à sua volta. [...] Um jogador que sabe dissecar, analisar, intelectualizar ou desenvolver uma história de caso sobre um personagem, mas é incapaz de assimilar e comunicá-la fisicamente, descobre que a sua compreensão do papel é inútil para o teatro. [...] Quando o ator aprende a comunicar-se diretamente com a platéia através da linguagem física do palco, seu organismo como um todo é alertado. Empresta-se ao trabalho e deixa sua expressão física levá-lo para onde quiser (Spolin, 1992 : 15).

Nesse ponto, os filósofos das Ciências Cognitivas, George Lakoff e Mark

Johnson, por meio do conceito Embodied Mind (mente encarnada) trabalham

numa argumentação15 filosófica que se opõe à longa tradição da filosofia

ocidental de que a mente é desencarnada, ou seja, tem um funcionamento

autônomo em relação às atividades corporais como percepção e movimento.

Segundo essa hipótese, a mente, a razão e os conceitos são processos

profundamente arraigados ao corpo por três razões fundamentais, a saber, (1)

sistema perceptual e motor formulam tipos básicos de conceitos, restritos à

relação corpo e ambiente, que influenciam a formação do raciocínio, de

conceitos; (2) qualquer conceito, idéia, pensamento, imaginação, raciocínio

requer uma estrutura neural, ou seja, uma rede de neurônios que os constitua; (3)

15 Essa argumentação se sustenta em estudos científicos do corpo realizados por uma segunda geração dos cientistas cognitivos, cujo pressuposto e foco da pesquisa consistem em compreender os substratos orgânicos do funcionamento das operações mentais. Entre eles, podemos citar: Paul Churchuland (1942- ) (2004), Damásio (2000), Varela (1946-2001) (2002), Maturana (1928- ) (2004), Varela & Maturana (1997), Clark (1997), Berthoz (2003) e Lakoff & Johnson (1999).

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corpo e cérebro são de tal modo formados que possibilitam um tipo de

conhecimento e não outro. (Lakoff & Johnson, 1999).

Assim, entre as respostas de Spolin à questão de como o corpo comunica,

vale destacar sua proposição de que a percepção constitui elemento norteador da

improvisação, uma vez que é ela que mantém o corpo em contato com o mundo

e que, portanto, o corpo “como um todo é alertado”. O caráter sensório-motor

do conhecimento humano, discutido e fundamentado pelos neurocientistas e

filósofos das Ciências Cognitivas abordados nesta tese, assevera a relação

comunicativa do corpo no ambiente. Para esta tese, pensar o corpo como autor

implica compreender a criação artística como um fluxo de processos, sensórios-

motores, perceptivos, imaginativos, conceituais, criativos que ganham existência

na relação do corpo com o ambiente de pesquisa teatral, neste caso, o clown e a

improvisação.

Do ponto de vista do corpo, pensar como ele comunica implica

compreendê-lo como um ambiente midiático. Urge ressalvar que midiático não

se limita a compreender o corpo somente como um suporte de difusão de

informação, mas como mídia de conhecimento e comunicação (Greiner &

Amorim, 2003; Katz & Greiner, 2001; Greiner 2005). O corpo constitui um

ambiente em fluxo de comunicação constante e simultâneo consigo mesmo e

com o ambiente externo. Isso implica mapear a constituição do corpo nos

aspectos relativos à interação, manipulação, multiplicação, expansão, troca,

produção, retenção e comunicação de informação. Em outros termos, trata-se da

capacidade de experienciar no ambiente em que esse corpo está.

Os verbos de ação como “interagir”, “manipular”, “multiplicar”,

“expandir”, “trocar”, “produzir”, “reter” e “comunicar” são funções do que

conhecemos hoje por mídia. Este constitui um primeiro argumento para

compreender o corpo como mídia. A hipótese consiste em compreender que esse

corpo só sobrevive porque interage e se comunica com as informações no

ambiente mundo.

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As informações do meio se instalam no corpo; o corpo, alterado por elas, continua a se relacionar com o meio, mas agora de outra maneira, o que leva a propor novas formas de troca. Meio e o corpo se ajustam permanentemente num fluxo inestancável de transformações e mudanças (Katz & Greiner, 2001: 68).

No teatro improvisacional de Spolin, essa questão parece presente em suas

reflexões nas quais se pode considerar que o fluxo inestancável dos

ajustamentos meio e corpo está inserido no contexto ficcional de uma

improvisação, de um jogo dramático, de um jogo teatral ou de um jogo

tradicional. Aprender teatro e improvisação significa, pois, aprender a envolver-

se no jogo, aprender a linguagem e então poder entrar no fluxo inestancável do

corpo no meio teatral desenvolvido pelo treinamento, porque é da natureza do

corpo assim se relacionar com o ambiente em seu cotidiano e em cada ambiente

que ele estiver.

É da natureza do corpo humano conhecer por meio dos processos

perceptivos do meio externo e interno ao corpo (vide sistema somato sensitivo,

cap.1, nota 4, p.36). Novamente, com os estudos do neurologista António

Damásio, pode-se contemplar um possível entendimento desses fluxos

ininterruptos de troca de informação entre corpo e ambiente. Para ele, corpo,

cérebro e mente formam um único organismo e interagem completa e

mutuamente por meio de redes químicas e neurais, não sendo possível separar e

independer a ação de cada um deles na relação do corpo com o ambiente.

A atividade cerebral compreende a regulação de processos internos e

externos do organismo vivo na relação com o ambiente. No caso do organismo

humano, a atividade cerebral se constitui da criação e manipulação de imagens

mentais, a que se pode chamar de mente. A habilidade de perceber objetos e eventos, externos ou internos ao organismo, requer imagens. Exemplos destas imagens relacionadas com o exterior incluem imagens visuais, auditivas, táteis, olfativas e gustativas. Dor e náusea são exemplos de imagens do interior. A execução de respostas

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automáticas ou deliberadas requer imagens. A antecipação e o planejamento de futuras respostas também requer imagens (Damásio, 2003: 195)16.

Essas imagens mentais se formam por sua vez do contínuo processo de

mapeamento que o cérebro realiza dos estados corporais. Assim, pequenas ou

grandes, mas contínuas modificações nos estados corporais são realizadas por

inúmeros fatores externos e internos e mapeados pelo cérebro, por meio de

sinalizações químicas (corrente sangüínea) e eletroquímicas (redes neurais).

Esse mapa neural gera imagens mentais. Entrelaça-se fisicamente o evento

corporal à constituição de imagens mentais. Esses mapas cerebrais representam, conjuntamente a estrutura e o estado do corpo em um dado momento qualquer. Alguns mapas relacionam-se com o mundo dentro, no interior do organismo. Outros se relacionam com o mundo fora, o mundo físico dos objetos que interagem com o organismo. Em cada caso, o que termina sendo mapeado nas regiões sensórias do cérebro e o que emerge na mente, em forma de idéias, corresponde a alguma estrutura do corpo, em um estado particular e num conjunto de circunstâncias (Damásio, 2003: 197)17.

Evidentemente, esse não é o nível de descrição que podemos perceber e

conhecer acerca do estado do corpo e dos processos mentais durante a

improvisação. Nem é esse o objetivo de qualquer exercício no teatro. O foco do

ator consiste em perceber suas sensações, estados, idéias, como elas estão

expressas em seu corpo e o que esse corpo comunica naquele estado que, de

alguma forma, se dão a ver. Conhecer os mecanismos inconscientes de produção

das sensações, estados e idéias permite dar lugar a um estado de espera e

atenção da construção dessa percepção e da construção da ação. E, no

16 That the ability to perceive objects and events, external to the organism or internal to it, requires images. Examples of images related to the exterior include visual, auditory, tactile, olfactory and gustatory images. Pain and nausea are examples of images of the interior. The execution of both automatic and deliberated responses requires images. The anticipation and planning of future responses also require images. 17 Those brain maps represent, comprehensively, the structure and state of the body at any given time. Some maps relate to the world within, the organism’s interior. Other maps relate to the world outside, the physical world of objects that interact with the organism at specific regions of its shell. In either case, what ends up being mapped in the sensory regions of the brain and what emerges in the mind, in the form of an idea, corresponds to some structure of the body, in particular state and set of circumstances.

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treinamento, permite acurar o tempo dessa espera, da atenção, da percepção, da

ação e da continuidade dessa construção para a cena teatral.

Não se trata mais de compreender se são os procedimentos físicos ou os

mentais os responsáveis pela criação do personagem, mas de entender que

procedimentos físicos são mentais (geram e são gerados por imagens mentais) e

que procedimentos mentais são físicos (constituem-se a partir de imagens

mentais geradas nas redes neurais) e que a construção do personagem se dá no

fluxo desses procedimentos únicos: corpo/mente. A ação física é também ela

responsável pelo fluxo de constituição de imagens mentais das sensações,

sentimentos, imagens e idéias que acontecem durante uma improvisação no

corpo do ator, do mesmo modo que as imagens mentais das idéias, imagens e

pensamentos geram ações físicas acessíveis a um espectador externo.

Assim, enfocar o corpo não significa descartar os processos psicológicos,

de pensamento, de raciocínio e de imaginação do ator necessários para a

construção do personagem, pelo contrário, significa compreender a

particularidade de uma configuração corpo/mente no que respeita o processo de

criação do ator inserido no contexto da pesquisa teatral. Isso implica entender

essa relação como um desencadeamento em rede, no qual estão envolvidos os

sistemas sensórios-motores, mapas neurais, imagens mentais, estados

corporais/mentais. Enfim, todos os sistemas se reorganizam de acordo com as

informações que o corpo está recebendo e oferecendo (Clark, 1997).

O corpo/mente é autor do personagem não somente pelo que ele é capaz

de expressar, mas pelos numerosos processos de cognição desenvolvidos para

esse fim. O cérebro cria a representação do corpo de um modo complexo no

qual interagem interdependentemente processos fisiológicos dos estados do

corpo e processos mentais, como a memória e a imaginação. E a ação do corpo

(entenda-se por ação um pensamento, um gesto, uma reação emocional) realiza-

se a partir dessa representação. Tal como aponta Berthoz (2003), a simulação, a

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projeção, a criação, o prolongamento18 constituem os variados modos de

operação do cérebro e todos fundamentam-se na possibilidade de representação

do corpo. Em outros termos, quando se representa um personagem, o que

acontece é uma representação dos processos perceptivos e cognitivos

organizados a partir de um novo estado corporal em relação co-dependente ao

ambiente de pesquisa de linguagem teatral específico. Evidentemente, para tratar ações orgânicas como processos de comunicação, precisam ser arrebanhados conceitos como informação, signo, mídia, representação, evolução, entre outros, numa espécie de coquetel científico distante dos usos metafóricos dessa terminologia. E com eles pensar o corpo como sendo um contínuo entre o mental, o neuronal, o carnal e o ambiental. Como pensar em corpo sem ambiente se ambos são desenvolvidos em co-dependência? (Katz & Greiner, 2001: 66).

Diante do já exposto, evidencia-se a complexidade da relação corpo e

ambiente. As relações comunicativas19 caracterizam-se por seu caráter vivo,

dinâmico e mediativo. Essas qualidades da relação comunicativa atravancam

qualquer suposta linearidade entre os agentes da comunicação, uma vez que os

códigos, os canais, as mensagens, os referentes e os próprios agentes estão

contaminados de outras tantas relações comunicativas e se constituem nessa

dinâmica transformando, produzindo, apreendendo, retendo, manipulando

informação. Por essa razão, podemos falar no caráter contínuo, inestancável e

imprescindível dessa relação comunicativa, seja para a integridade física do

organismo, seja para a construção da linguagem teatral. O objetivo de apresentar o corpo como mídia passa pelo entendimento dele como sendo o resultado provisório de acordos contínuos entre mecanismos

18 Os experimentos de Alain Berthoz demonstram que, quando o macaco faz uso de um instrumento como um cabo de vassoura como extensão de sua mão, a região do cérebro afetada também sofre extensão em seus acionamentos. Esse fenômeno é chamado de prolongamento (Berthoz, 2003). 19 Relação comunicativa é o terno sugerido por Ferrara para caracterizar o caráter dinâmico dos objetos da comunicação, com o objetivo de propor uma nova epistemologia que dê conta dessa dinâmica. Essa perspectiva implica numa nova epistemologia de abordagem dos objetos da comunicação: “imagina-se que uma epistemologia das relações comunicativas supere a natureza das mídias e suportes enquanto núcleos temáticos, para ousar interrogar-se não sobre o código, mas sobre as características processuais das mídias que nutrem as relações comunicativas” (Ferrara, 2003: 63). Aqui propomos indagar acerca das características processuais do corpo como mídia.

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de produção, armazenamento, transformação e distribuição de informação (Katz & Greiner, 2001: 67).

Uma vez caracterizado o corpo como um ambiente midiático e, portanto,

sua relação comunicativa com o ambiente, cabe perguntar por que o jogo

constitui um modo eficiente para desenvolver essa relação de comunicação. E

por que o jogo é um ambiente propício para o desenvolvimento das qualidades

para improvisar?

Segundo Spolin, no momento do jogo, o corpo todo está envolvido na

solução do problema. O jogo constitui um ambiente propício à manifestação da

ação espontânea, uma vez que, na situação de jogo, emergem as dificuldades, os

contratempos, os conflitos imprevistos que desafiam a capacidade dos jogadores

envolvidos a encontrar a solução adequada. O envolvimento no jogo é condição

sine qua non para a incorporação dessa experiência. “Todas as partes do

indivíduo funcionam juntas como uma unidade de trabalho, como um pequeno

todo orgânico dentro de um todo orgânico maior que é a estrutura do jogo”

(Spolin, 1992: 5).

Spolin compreende que a cena teatral constitui-se antes de mais nada de

um jogo de relações, desafios e necessidades. Sob esse ponto de vista, o jogo

teatral, o jogo dramático e os jogos tradicionais apresentam semelhanças. Todos

têm regras, objetivos, desafios que orientam, incitam e envolvem a ação

espontânea do jogador, característica própria da improvisação. Parte-se do

princípio de que esse método permite o domínio da linguagem teatral, cujo

desenvolvimento habilita o ator/jogador a improvisações cada vez mais

complexas da ação dramática, garantido a qualidade espontânea da ação.

A aprendizagem da linguagem teatral se realiza na compreensão, na

elaboração e na incorporação da experiência cênica, por meio da busca de

solução aos problemas no jogo tradicional ou dramático (ou da relação entre os

dois).

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Assim, por exemplo, um simples jogo de roda infantil como “quem

iniciou o movimento?”20 pode tornar-se um recurso para trabalhar alguma

dificuldade de construção da cena. Tal como o relato abaixo, Depois de jogar este jogo (“quem iniciou o movimento?”) quatro ou cinco vezes, a cena da festa emergiu e a qualidade necessária do olhar sem olhar apareceu com nitidez (Spolin, 1999: 138).

Os exercícios de improvisação da estrutura básica do jogo dramático, no

método de Spolin, concentram-se na compreensão, elaboração e experimentação

da linguagem teatral. Essa estrutura se compõe de três eixos básicos: onde (lugar

da ação), quem (personagem/relacionamentos) e o que (acontecimento), tendo

como regra o foco (objetivo do jogo ou problema a ser resolvido) (Spolin, 1992

e Chacra, 1991). A partir essa estrutura, o ator jogador prepara-se para a

improvisação.

A título de exemplo, Spolin propõe uma série de exercícios para

compreensão do onde, local onde se dá a ação teatral, ou seja, a noção, o uso e a

organização do espaço cênico. Assim, o lugar da ação pode ser comunicado pela

relação entre personagem e objetos do cenário, pela relação entre os personagens

e pela ação do personagem. A combinatória desses três eixos constrói os vários

jogos possíveis, com graus de dificuldade e complexidade diversos, além de

favorecer a construção de outros jogos similares (Spolin, 1992).

O jogo constitui estratégia fundamental no treinamento da improvisação

na metodologia de Paoli-Quito também. No treinamento, o jogo solicita um

estado de atenção e disponibilidade; desenvolve formas de conexão,

cumplicidade, foco e relações entre os atores; amplia as qualidades de jogo do

ator na medida em que se exploram as regras e as inúmeras formas de jogar,

dilatando as possibilidades de jogo dentro do próprio jogo; permite, enfim, a

criação e a percepção das várias possibilidades de situação cênica como, por

exemplo, uma disputa, uma burla das regras, um desafio e, neles, as possíveis

20 Nesse jogo, um jogador sai da sala enquanto os outros, em círculo, decidem quem será o mestre. Este deve iniciar o movimento e, durante o jogo, deve trocá-lo. O jogador que saiu deve descobrir quem é o mestre.

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reações dos jogadores. Pode-se dizer que o jogo simula uma situação cênica e

exige respostas imediatas e espontâneas do ator, constituindo, assim, uma forma

de exercitar a ação espontânea e imediata do ator.

A atenção, a disponibilidade, a conexão, a cumplicidade, o foco, a

relação, o jogo são elementos constitutivos da improvisação. Esses elementos

impelem o ator a não se fixar em padrões adquiridos como ganhar ou perder,

mas atentar para a dinâmica das relações do ator com o jogo e com outros atores,

da relação de aprendizagem entre seu corpo e o ambiente do jogo. Esses

elementos são também constitutivos da natureza humana na sua relação com o

ambiente.

Sendo assim, o jogo e a improvisação podem ser considerados como uma

tecnologia cognitiva no sentido apresentado por Andy Clark (2001), por meio

da qual os processos de cognição avançada podem se constituir. Ou seja, a

cognição avançada consiste em processos específicos da cognição humana

como criar hipótese, conceituar, prever, planejar e memorizar. Esses processos

atrelam-se ao modo mais imediato e espontâneo de ação e experiência do corpo

na relação com o ambiente. A partir dessas experiências e ações imediatas

temos capacidade de desenvolver tecnologias cognitivas com o objetivo de

ampliar as possibilidades de uso e as habilidades do corpo/cérebro,

configurando processos de cognição avançada. os processos de cognição avançada estão arraigados em operações de mesmo tipo básico da capacidade de uso imediato e espontâneo para respostas adaptativas, mas afinados e ampliados para uma questão especial da ajuda externa e/ou cognição artificial: tecnologias cognitivas (Clark, 2001: 141)21.

Toda e qualquer tecnologia cognitiva (desde organizar um armário até o

mais sofisticado sistema de computação) é desenvolvida a partir do uso

21 To depict much of advanced cognition as rooted in the operation of same basic kinds of capacity used for on-line, adaptive response, but tuned and amplied to the special domain of external and/or artificial cognitive aids – the domain, as I shall say, of wideware or cognitive tecnology.(Clark, 2001: 141)

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espontâneo e imediato da experiência e da ação do corpo na relação com o

ambiente. A tecnologia cognitiva favorece o aprendizado, o amadurecimento e a

operacionalização das múltiplas realizações da espécie humana (Clark, 2001).

Evidencia-se, dessa forma, que o cérebro não trabalha sozinho. Ele carece

do conhecimento incorporado pela experiência e das tecnologias cognitivas que

surgem no decorrer do processo para funcionar e se desenvolver em continuum

com o corpo.

Tomando um exemplo de Clark, ele observa que o esboço no trabalho do

artista não constitui somente um modo de memorização ou armazenamento de

idéias particulares, mas uma necessidade de pôr em contraste o que se imagina

com o que se realiza, visto que o cérebro e a imaginação não dão conta de

decompor uma forma em seus componentes. Assim, o esboço faz parte do

processo de criação como processo interativo de externalização e repercepção

do processo de conhecimento artístico.

Considerar o jogo e a improvisação sob a perspectiva de uma tecnologia

cognitiva implica compreender que as habilidades requisitadas para o jogo e

para a improvisação já constituem formas de ação do corpo no mundo. Essa

perspectiva pode contribuir para a compreensão mais apurada das condições e

técnicas de improvisação utilizadas no treinamento do clown.

Na improvisação, usa-se habilmente os acontecimentos imediatos e a

capacidade de resposta do ator na relação corpo e ambiente. Habilidades como

presença, atenção, espontaneidade e interação são constitutivos da natureza

humana na sua relação com o ambiente. Os jogos (tradicional, dramático ou

teatral) constituem um dos modos de ampliar e exercitar essas habilidades, ou

seja, os jogos são uma tecnologia cognitiva. Aplicado ao treinamento do clown,

o jogo habilita o ator a melhor articular a sua experiência imediata e as suas

ações espontâneas à linguagem constituída para o processo de comunicação

cênica. O exercício de jogar aprimora a percepção das possibilidades de jogo

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que emergem da relação do corpo com o ambiente. Soma-se a tudo isso o prazer

e a alegria tão próprios do jogo e tão caras e peculiares à linguagem do clown.

1.3 Enredando as malhas.

Em síntese, até o momento objetivou-se traçar alguns fios que compõem

a rede da improvisação, que não são só fios, são malhas, pelas quais as relações

circulam. Simultaneamente, essa rede se compõe do corpo do ator (a malha que

protagoniza a cena e produz a dramaturgia da improvisação) e da malha

composta pelas possibilidades de ação dadas por um roteiro de ação ou de um

estímulo ou um jogo ou uma estrutura dramática.

A malha do corpo constitui-se de qualidades como a disponibilidade, a

observação, a percepção, a receptividade, o estado de atenção, interação,

conexão e a presença. Essas qualidades sustentam a natureza da ação

espontânea e adaptativa, no sentido de subsidiar uma ação adequada e ajustada

em resposta ao desenvolvimento do jogo da improvisação com os parceiros e

com o público. Ou seja, o corpo/mente do ator age de acordo com as

circunstâncias desenvolvidas (desafio, disputa, romance, etc.) e/ou com os

objetivos e/ou ainda com as necessidades imediatas no tempo real da cena,

aspectos que constituem a malha da improvisação.

Esse modo de organização da improvisação discute um modo do corpo

estar no espaço. Como vimos, as qualidades dessas malhas são primariamente

constitutivas da relação do corpo com o ambiente. No cotidiano, estamos

continuamente recebendo e dando respostas provenientes da relação do corpo

com o ambiente; ambos se constituem nessa relação. Por essa razão, podemos

qualificar a improvisação como uma tecnologia cognitiva, uma vez que ela lida

com essas qualidades de ser do homem no mundo, repercutindo em processos

de cognição avançada na medida em que instrumentaliza e otimiza esse modo

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de relação, envolvendo processos cognitivos formulados pela consciência

ampliada22.

Dessas enredadas malhas emerge um princípio da improvisação: a

constituição da linguagem, organização e fluxo dos signos (ação, pausa,

imagem, movimento, gesto, intenção, etc) depende do contexto da ação

imediata, dado pelos estados corporais na sua interação com as possibilidades

de ação constituídas pelo jogo da improvisação. Na improvisação, o ator lança-

se no jogo sígnico, podendo ou não repetir ou criar ações. O caráter de

espontaneidade e momentaneidade da improvisação impele o ator a não se fixar

em padrões adquiridos, mas atentar para o fato de que, na improvisação, o que

está em jogo não é a repetição mecânica da linguagem constituída, mas a

dinâmica das relações dos signos corporais na interação e comunicação entre

corpo e ambiente.

Como foi visto, na relação de um organismo com o seu ambiente, nas

análises de Damásio (2000) os primeiros mecanismos acionados no organismo

são emoções e sentimentos (em organismos dotados desses mecanismos).

Poder-se-ia dizer que o treinamento tem em vista o exercício o quanto possível

consciente desses mecanismos, ou ao menos que ele seja o primeiro a falar e ser

ouvido antes que o julgamento perceptivo lidere a criação de sentido. Qual é a

sensação de imagem, de sentido e de significado que o corpo criou naquele

movimento? Qual o seu desenvolvimento sem perder a escuta primeira da

permanente construção de imagem? O que predomina no movimento: a

imagem, a sensação, a consciência do corpo, o objeto de pesquisa do

movimento naquele instante, o jogo, o sentido criado, a imagem, a intenção ou a

situação dramática? Conforme a pergunta, um foco, conforme o foco, algumas

22 António Damásio (2000) distingue dois tipos de consciência, consciência central e consciência ampliada “onde a ampliada se constrói sobre o alicerce da consciência central” (Damásio, 2000: 35). A primeira age no momento exatamente presente, aqui e agora, demonstrando a importância da consciência para soluções imediatas da sobrevivência humana, envolvendo processos cognitivos básicos; a segunda, dependente da primeira, é mais complexa, envolve memória, raciocínio e linguagem e é somente neste modo de ser da consciência que Damásio localiza os processos cognitivos avançados.

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possibilidades de ação, conforme a ação, novas perguntas e assim

sucessivamente se constrói a dramaturgia da improvisação.

A dramaturgia da improvisação se constrói no fazer e este é um lugar

bastante difícil e arriscado para estar. Difícil porque, além de todas as

qualidades já enumeradas, a percepção da dramaturgia construída no momento

da improvisação consiste em uma das tarefas mais árduas para o ator. Arriscado

porque é muito fácil perder-se, afastando-se dos estados de atenção,

concentração e percepção tão necessários à improvisação. Entre riscos, por

exemplo, Brook pontua Se, durante uma improvisação, você sentir a presença das pessoas que o observam – como deve ser, do contrário não faz sentido - e as pessoas rirem, você corre o risco de que esse riso o leve numa direção diferente da que teria seguido sem ele. Você quer agradar, e o riso é a prova de que está conseguindo; aí você começa a tentar arrancar cada vez mais risadas, até que seus vínculos com a verdade, a realidade e a criatividade dissolvem-se imperceptivelmente na diversão. O essencial é ter consciência desse processo e não cair cegamente na armadilha (Brook, 1999: 21).

Entre os riscos e as dificuldades, ter consciência deles pode ser um bom

começo para o ator se nortear. O treinamento para improvisação, e mesmo

outros treinamentos de ator, recorrem à questão da consciência de

procedimentos corpóreos/mentais que compõem um estado de criação e

pesquisa. Cabe pontuar que a questão da consciência corporal, conhecer e

reconhecer o corpo no espaço, seu funcionamento e sua expressividade

constituem os diferenciais de treinamento e construção estética em algumas

linhas de pesquisa de teatro e na dança contemporânea, principalmente. A

especificidade do trabalho com a consciência do corpo corresponde à utilização

de técnicas corporais que focam o conhecimento e reconhecimento do corpo,

como Ideokinesis23, BMC24 e Eutonia25, entre outros, no escopo da educação

23 Ideokinesis foi sistematizada por Mabel Todd, no início dos anos 1920. Os conceitos básicos deste trabalho encontram-se nas publicações de Todd como The thinking body, de 1937, e The hidden you de 1953 e na continuidade do trabalho por seus seguidores. 24 Body Mind Centering, técnica desenvolvida por Bonne Baindridge Cohen, desde meados da década de 1970 em Massachusetts - USA. Essa técnica desenvolve um trabalho corporal com os nove sistemas do corpo humano,

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somática, como parte integrante do treinamento. Essa questão será tratada com

mais profundidade no próximo capítulo, quando da descrição do trabalho de

Cristiane Paoli-Quito. Improvisação não é fazer qualquer coisa, mas fazer

conhecendo, tendo uma mínima noção do que se está fazendo, no fazer, no

fluxo da percepção e ação.

Mais uma vez, António Damásio pode auxiliar esclarecendo um pouco

mais acerca do funcionamento da consciência. Até o momento, pontuamos a

participação das emoções e dos sentimentos na constituição da consciência

(cap.1, p.35); a formação das imagens mentais (cap.1, p.50); e apresentamos a

função homeostática das emoções e sentimentos para a sobrevivência do

organismo (cap.1, p.35).

A homeostasia constitui um mapeamento contínuo que o cérebro faz do

corpo para mantê-lo estável. Essa estabilidade pode ser observada nas funções

orgânicas que permanecem as mesmas durante toda a vida. O estado interno do

corpo necessita manter-se estável diante do ambiente, e o estado de equilíbrio

depende de um complexo mecanismo neural que detecta e corrige as mínimas

variações químicas do corpo. Esse modo de ação do corpo é o que permite aos

sentidos vaguear no mundo, ou seja, a interação entre corpo e ambiente. O

organismo só sobrevive porque se constitui destas relações comunicativas:

organismo/organismo - organismo/mundo. Nesse ponto em que o organismo

mapeia a si mesmo ocorre, para Damásio, a constituição do self e este, por sua

vez, torna-se elemento fundamental para a compreensão da consciência, “saber

que sou eu quem está sabendo”.

Em outras palavras, resolver o segundo problema da consciência (o sentido do self) consiste em descobrir os alicerces biológicos da curiosa capacidade

a fim de centrar e incorporar esse conhecimento por meio do corpo/mente. É um estudo experimental baseado na incorporação e aplicação de princípios anatômicos, fisiológicos, psicológicos e do desenvolvimento, utilizando o movimento, o toque, a voz e a mente. 25 Eutonia é uma técnica corporal criada e desenvolvida por Gerda Alexander (1908-1994). O trabalho consiste no uso da atenção às sensações, promovendo a ampliação da percepção e da consciência corporal.

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que nós, humanos, possuímos de não só construirmos os padrões mentais dos objetos – as imagens de pessoas, lugares, melodias e de suas relações; em suma, as imagens mentais, integradas no tempo e no espaço, de algo a ser conhecido–, mas também padrões mentais que transitam, de maneira automática e natural, o sentido de um self no ato de conhecer. A consciência, como usualmente a concebemos, de seus níveis elementares aos mais complexos, é um padrão mental unificado que reúne o objeto e o self (Damásio, 2000: 27).

Se o objeto causa uma mudança no organismo significa que ocorrerá uma

alteração na função homeostática, gerando novos estados do organismo e,

conseqüentemente, nova organização de padrões neurais do pensamento. A

consciência vai constituir-se neste movimento para incrementar esta função: o

conhecimento do que se está sentindo e do que se está percebendo melhora a

qualidade de ação do organismo na relação com o ambiente. Nesse sentido, é

que o cérebro necessita mapear também um sentido de self que se constitui um

fundamento da consciência. A realização biológica desses procedimentos

consiste no mapeamento do organismo (self), mapeamento do objeto e

mapeamento da relação entre eles.

A maior parte desses procedimentos é inconsciente, ou seja, na

terminologia de Damásio, trata-se de processos que não geram imagens mentais

(cap.1, p.50). A partir de determinado ponto de acionamentos neurais, é

possível perceber esse mapeamento do organismo. Mais precisamente, quando

esses acionamentos geram emoções e sentimentos já podemos, de alguma

forma, perceber o estado do corpo. Talvez esteja nesse ponto dos primórdios da

consciência o foco de observação das técnicas de consciência do corpo usadas

pela educação somática. Aproximando o sentido do self de Damásio e a questão

da consciência do corpo da educação somática, a percepção de si mesmo

(sentido de self e objetivo da educação somática) no treinamento para o teatro

constitui um potente qualificador tanto do exercício como da ação cênica.

Procedimentos de treinamento que se ocupam dessa questão parecem apresentar

processos mais otimizados de construção do corpo do ator. Saber como e o que

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se faz durante um exercício físico é acurar a percepção do corpo, do ambiente e

de suas relações e saber encontrar soluções melhores aos desafios que se

apresentam.

Não podemos ignorar que expressamos incessantemente milhares de coisas com todas as partes de nosso corpo. Não temos consciência disso na maior parte do tempo, o que leva o ator a uma atitude corporal difusa, incapaz de magnetizar a platéia (Brook, 1999: 58).

Por exemplo, o ato de andar de bicicleta, da perspectiva da educação

somática, conforme a técnica, pode significar a visualização da estrutura óssea

em movimento e a postura geral do corpo (coluna, cabeça, quadris, braços e

pernas) para dar-se conta da musculatura utilizada e relaxar a musculatura

desnecessária ao movimento, perceber a respiração, as sensações e os fluxos de

pensamento, realizar os ajustes necessários para melhorar a ação. Tudo isso sem

perder o contato e a interação com o mundo externo, não só pelo o risco de

bater numa árvore, mas para perceber os estímulos externos e sua repercussão

no estado do corpo.

Assim descrito, o andar de bicicleta parece uma atividade bastante chata.

Essa percepção do corpo requer um treinamento. Quem se propõe a fazê-lo,

percebe, depois de algum tempo, a diferença que se opera na realização de um

exercício ou mesmo do ato de sentar e permanecer sentado, e o prazer de

realizar um exercício com essa qualidade de percepção. No cotidiano, não

necessitamos desse nível de detalhamento, mas no comum da cena teatral esse

detalhamento parece essencial. Talvez, andar de bicicleta com essa qualidade

possa até magnetizar alguns espectadores que poderão observar a diferença

entre você e alguém que apenas passeia de bicicleta.

Brook comenta a habilidade de Oida no manuseio de archotes

incandescentes nos ensaios de Mahabharata (1989), devido à precisão de

conhecimento de seu corpo no espaço. E, entre as possibilidades de exercício

que Oida oferece em seu livro, O ator invisível, encontra-se justamente a

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realização das atividades diárias com o mesmo estado de presença como se

estivéssemos em cena, ou seja, com essa percepção e saber.

A distinção entre uma ação no palco e uma ação no cotidiano constituiu

uma fonte de reflexão e formulação de metodologias. Stanislavski (1989) já

apontava para as diferenças entre um ator e um não-ator, para qualificar a ação

do ator; Eugênio Barba (1995) identifica essas diferenças como ações cotidianas

e extracotidianas, em níveis energéticos diferenciados. Em suas reflexões, no

livro A porta aberta, Peter Brook (1999) pontua diferença de modos de

caminhar de um ator e um não-ator, evidenciando que o ingrediente que compõe

a ação do ator é a intensidade de vida que ele consegue colocar nessa ação.

Assim, Para que as intenções do ator fiquem totalmente claras, com vivacidade intelectual, emoção verdadeira, um corpo equilibrado e disponível, os três elementos – pensamento, sentimento e corpo – devem estar em perfeita harmonia. Só então ele cumprirá o requisito de ser mais intenso, em curto espaço de tempo, do que é em sua casa (Brook, 1999: 14).

É importante pontuar que o autor dessas diferenças é o corpo, os estados

corporais relativos ao modo de atenção e presença do corpo nas diversas

situações em que ele está, seja em um ônibus seja em um palco.

Especificamente, o diferencial na improvisação na arte do teatro encontra-se

justamente na percepção mais acurada desse jogo de relação entre corpo e

ambiente, tendo em vista também a comunicação artística com o público. A

qualidade da percepção do ator para os acontecimentos das malhas enredadas do

corpo e da improvisação constitui seu foco de atenção, ação e comunicação. De

fato, para instrumentalizar a improvisação como recurso de criação, técnica e

estética teatral há que se compreender o corpo como produtor de idéias e não

somente veículo. Como coloca Brook, Um corpo destreinado é como um instrumento musical desafinado, em cuja caixa de ressonância há uma barulheira confusa e dissonante de ruídos inúteis, impedindo a audição da verdadeira melodia. Quando o instrumento do ator, seu corpo, é afinado pelos exercícios, desaparecem as tensões e os

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hábitos desnecessários. Ele fica pronto para abrir-se às ilimitadas possibilidades do vazio (Brook, 1999 : 18).

Na perspectiva de um corpo produtor de idéias e capaz de percebê-las e

expressá-las, a consciência do corpo é fundamental na constituição do

treinamento, conforme depoimento de Oida, A primeira coisa que o ator precisa aprender é a geografia do corpo. [...] Aprender a geografia do corpo não é uma simples questão de fazer exercícios ou adquirir novos e interessantes padrões de movimentos. Isto exige uma consciência desperta. Percebam os modos como ficamos de pé normalmente. As pequeninas regiões de tensão ou desequilíbrio afetam não só nossa facilidade de movimento e nossa expressão externa, mas também a forma como estamos nos sentindo emocionalmente. Cada minúsculo detalhe do corpo corresponde a uma diferente realidade interior (Oida, 2001: 40).

Como observam Paoli-Quito (anotação de aula26) e Peter Brook (1999) é

necessário para uma improvisação um estado de esvaziamento do corpo/mente e

um esvaziamento do espaço para que algo novo, o espontâneo, possa acontecer.

Isso não implica um vazio ignorante, sem informação, muito pelo contrário,

trata-se de um vazio inteligente, no qual o espaço, os objetos, o ator e sua ação,

já existentes, ganham sentido e significado quando co-participam de uma

construção comum: a cena. A improvisação não é um vale-tudo, parafraseando

Brook (1999), é um lugar onde tudo é possível, mas esse “tudo” não pode ser

qualquer coisa.

A habilidade para a improvisação fundamenta-se na capacidade de ouvir

o outro, responder a ele e interagir com ele. No trabalho de Paoli-Quito, o

treinamento habilita o corpo a perceber e jogar na relação com o outro. Não

necessita de uma codificação específica do movimento, mas de um corpo apto à

interação com o outro, entenda-se esse outro como os parceiros de cena, a

música, o cenário, a platéia, os imprevistos e os previstos e a própria linguagem

teatral.

26 Curso extensivo de clown, Estúdio Nova Dança, São Paulo, 2001/02/03.

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O treinamento da improvisação garante a construção de possibilidades

sígnicas na ação inserida no contexto da criação da linguagem teatral,

construída pela improvisação. A improvisação caracteriza-se por sua

instabilidade. Para aventurar-se na compreensão dessa técnica tão fluida são

necessários novos pressupostos teóricos, metodológicos e ontológicos. Ao

repetirmos um mesmo movimento, pode ser possível retomar algumas idéias ou

sensações ou não, como também pode ser possível ou não que surjam outras

sensações e idéias. Para o ator lançar-se nessa área de incertezas e inúmeras

possibilidades é necessário um árduo treinamento. Treinamento para lidar com

os imprevistos. Treinamento para perceber o ambiente e se perceber no

ambiente. Treinamento para estar presente. Treinamento para articular signo e

constituir a linguagem cênica da improvisação.

O treinamento do clown, sob a perspectiva de Cristiane Paoli-Quito,

constitui um meio possível para explorar as questões relativas ao modo como o

corpo do ator se habilita para a improvisação teatral. Como se organiza um

treinamento do corpo para improvisação dentro do modo até aqui apresentado?

Ou seja, um corpo consciente de si e de sua relação com o espaço, disponível,

presente, receptivo, atento, apto a contemplar, observar, reagir, interagir, jogar e

criar jogos e pensar em cena lançando as possibilidades de jogo da

improvisação para construir a dramaturgia da cena. Enfim, a escolha pela

metodologia de Paoli-Quito deve-se sobretudo a essa possibilidade de

contemplar algumas possíveis e profundas respostas a essa questão na qual se

enredam as malhas do corpo à improvisação no teatro.

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Capítulo 2

2. CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA MÍDIA

2.1 O treinamento de Cristiane Paoli-Quito

No primeiro capítulo, foi traçado um panorama no qual se

contextualizaram as questões suscitadas pela improvisação. Nesse contexto

insere-se também a metodologia de Cristiane Paoli-Quito que contempla a

improvisação nas suas qualidades de treinamento e de estética teatral. Busca-se,

por meio dela, treinar as qualidades de ação do ator (presença, disponibilidade e

espontaneidade) e investigar as possibilidades estéticas da construção de uma

dramaturgia criada e construída a partir do corpo.

Qual é então uma metodologia possível para chegar a essa dramaturgia do

corpo? Que princípio rege essa metodologia? Qual o treinamento necessário

para constituir o estado de presença cênico? Como um treinamento auxilia a

construção de um estado de percepção, um corpo alerta e disponível? Como o

treinamento orienta a construção do movimento? Qual é a demanda de

constituição do treinamento para que ele seja um ambiente propício ao exercício

da ação espontânea? E, especificamente nesta tese, como esse corpo cria e

articula seus padrões de movimento para o clown? Apresentar como Paoli-Quito

responde a essas questões em seu trabalho justifica a escritura deste capítulo.

Ele se concentrará nos procedimentos do treinamento do clown, a partir da

metodologia de trabalho de Cristiane Paoli-Quito. Busca-se com isso uma

melhor compreensão da instrumentalização técnica e artística apurada por essa

metodologia, que é regida pelo princípio de “Movimento-Imagem”

(denominação dada por Paoli-Quito) e constitui-se de técnicas e exercícios que

primam pelo desenvolvimento da consciência do corpo no espaço. A um só

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tempo, a improvisação de movimento com essa qualidade de consciência orienta

a construção do movimento no corpo do participante por meio de sua própria

pesquisa. O jogo organiza o fluxo das relações como um parâmetro de

realização de um exercício. Em suma, trata-se de um processo de treinamento e

criação que se organiza a partir do desenvolvimento conjunto das habilidades

motoras, perceptivas e cognitivas do corpo.

Nesse ponto, vale lembrar que os cientistas cognitivos aqui estudados

pontuam o caráter sensório-motor dos processos cognitivos (vide conceito de

Embodied Mind no cap.1, p.47). Resguardadas as devidas diferenças entre as

pesquisas de Paoli-Quito e as pesquisas e protocolos científicos encontrados nas

Ciências Cognitivas, tenho por objetivo verificar que a qualidade desse

treinamento não se deve somente aos resultados que podemos verificar no corpo

dos atores e bailarinos que trabalham nessa metodologia. Mas também ao fato

de que, de uma forma ou de outra, os exercícios desse treinamento e o modo

como eles estão articulados desenvolvem um processo de aprendizagem

semelhante ao modo como o corpo aprende, tal como as Ciências Cognitivas

com seus protocolos científicos podem oferecer ao nosso parco conhecimento do

corpo humano e de seu funcionamento no ambiente.

A título de exemplo indicial dessa relação, alguns exercícios de

improvisação parecem convocar o mecanismo de ação corpo/mente que fica

mais evidenciado quando ausente, como no caso de patologias neurológicas1.

Por exemplo, Alain Berthoz (2003) comenta casos de heautoscopia, ou seja,

grosso modo, pacientes que vêem a própria imagem a sua frente. Berthoz utiliza-

se desse exemplo como argumento para fundamentar a hipótese de que o cérebro

produz uma representação do corpo que é um duplo idêntico a ele mesmo. Um

dos jogos que realizamos como pesquisa de movimento consiste em o ator

visualizar o corpo no espaço e, posteriormente, dirigir-se ao que viu (lugar e

1 Vale lembrar que Antônio Damásio, V.S. Ramachandran e Alain Berthoz são neurologistas e que suas pesquisas surgem também do atendimento de casos de patologias neurológicas.

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forma) buscando “encaixar-se” naquilo que viu de si mesmo. Esse procedimento

exige um grau de atenção e concentração que acentua a presença cênica e

permite ao ator visualizar uma possível seqüência para o movimento iniciado.

2.2 “Movimento-Imagem”

No contexto do treinamento, o “Movimento-Imagem” é uma proposição,

criada e investigada por Paoli-Quito em seus 20 anos de observação da prática

de ensino, ensaio e pesquisa da linguagem teatral e da dança contemporânea.

Trata-se de uma terminologia utilizada para sintetizar essa prática, a partir da

qual se desenvolveu um exame minucioso do processo de construção de uma

idéia no corpo do ator. Nessa observação, Paoli-Quito pontua que essa idéia se

desenvolve a partir do movimento. O corpo se apercebe das sensações de

movimento e de imagens que está criando no espaço e que, simultaneamente,

está compondo uma idéia. O princípio do

“Movimento-Imagem” implica uma atenção especial

à percepção e à consciência do fluxo de movimento,

de imagem e de idéias, que, concomitantemente, se

criam no processo de treinamento. Em cena, esse

princípio rege a construção da dramaturgia.

Aula no Estúdio Nova Dança, em 17/06/04. Atrizes: Luciana Paes de Barros e Flávia Melman. Fotos: Ana Dupas

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Já na dissertação de mestrado apresentei o principio fundante dessa

metodologia nos seguintes termos:

Os diversos exercícios que compõem a sua metodologia contêm a idéia do princípio do “Movimento-Imagem”: “o movimento que me leva a outro movimento, que me leva a uma imagem, que me leva a uma idéia” (Paoli-Quito, 2000). Esse princípio é chave para a compreensão desse trabalho. Consiste em o ator ter conhecimento de que imagem ele está sendo capaz de produzir e está transmitindo para o espectador. ”Fotografar cada instante. Se o ator for consciente de cada uma dessas imagens, ele vem preenchido desde lá (desde o início do movimento) e ele vem dizendo coisas. [...] Então, o improvisador começa a ter consciência de tudo que ele faz e aí ele começa jogar para a platéia” (Paoli-Quito, 2000). A seqüência de movimentos-imagens compõe uma idéia. “A idéia é a cena” (Paoli-Quito, 2000). Nesse princípio, busca-se compreender o movimento suscitando uma intenção e não uma intenção motivando um movimento (Machado, 2000: 76).

Primeiramente, embora colocado numa ordem aparentemente seqüencial –

movimento gera imagem, que gera uma idéia, que gera um movimento – é

importante pontuar que não se trata de uma relação de causa e efeito, linear e

fechada nessa relação seqüencial. Pelo contrário, trata-se de um complexo de

relações comunicativas e interativas em fluxo, uma vez que o corpo em cena

(em deslocamento no espaço ou em pausa) já contém os movimentos prováveis,

as imagens possíveis e as idéias plausíveis. As imagens já contêm os

movimentos, as imagens e as idéias concebíveis. As idéias, por sua vez, geram

movimentos e imagens e são geradas por eles. Não existe fluxo de movimento

sem a imagem e sem a idéia, não existe imagem e idéia que não se constitua de

um movimento. Em segundo lugar, é necessário observar que o termo

“movimento”, para esta tese, implica deslocamento no espaço e pausa.

No fazer, a atenção do ator pode estar na pesquisa de movimento ou no

fluxo de imagens ou de idéias que acompanham o movimento. Por exemplo,

pesquisar o movimento a partir da relação cabeça e pés. Em determinados

momentos, o que chama a atenção durante a realização da pesquisa é o fluxo de

movimento gerado por essa relação que pode sugerir a imagem de alguém

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procurando algo no chão. O ator pode entrar na

pesquisa dessa imagem e, sem perder a relação

com o foco de pesquisa do movimento (pés e

cabeça), pode desenvolver uma idéia, uma cena

sobre a procura, sem necessariamente

representar que está procurando algo. A qualidade

da idéia torna-se mais ou menos inteligível e

clara, entre outras razões, conforme a

inteligibilidade da pesquisa e dos focos realizados

do que propriamente pela exacerbação do

movimento e/ou da imagem e/ou da idéia

desenvolvida.

Fotos de Ensaio, Puc, 23/02/05 Foto: Fernando Passos

xo do

“Mov

Ou seja, não há uma idéia preconcebida que organiza o fazer. Não se trata

de entrar em cena com um plano de ação ou algo que se quer dizer. Entra-se em

cena com algum foco de pesquisa no corpo, por exemplo, os pés. Trata-se de

perceber que o corpo produz imagens (mesmo em pausa), estas são percebidas

pelo público que, por sua vez, se mantém atento, na expectativa do que pode

acontecer. O treinamento possibilita ao ator perceber a continuidade e o flu

imento-Imagem” e, conseqüentemente, o fluxo de idéias produzido.

Além de todo esse procedimento contar com o alto grau de percepção e

consciência, o princípio de “Movimento-Imagem” constitui-se de uma

compreensão de fluxo de movimento, de imagem e de idéia. Isso implica que

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nenhuma das três situações (movimento, imagem e idéia) se configura a priori,

nenhuma é determinante da outra e todas só se constituem no fluxo do fazer,

com maior ou menor predominância de um ou de outro aspecto. Por outro lado,

como fluxo, o conjunto do movimento, da imagem e da idéia tem seu tempo de

desenvolvimento e duração, tem um começo, um meio e um fim, única e

exclusivamente sob a perspectiva de um fluxo de energia em densidades e

dinâmicas distintas e não necessariamente de uma narrativa. Cabe ao ator

perceber esse fluxo para não se fixar, despropositadamente, no movimento ou na

imagem ou na idéia. É o que Paoli-Quito costuma chamar de não se fixar numa

históri

do ator na pesquisa rela

dos recursos

entais de sua otimização e precisão.

Aula no stúdio Nova Dança. Dia 17/06/04. Atrizes: Luciana P. Barros e Gabriela. Foto: Ana Dupas

a.

Assim, o princípio do “Movimento-Imagem” demanda um engajamento

tiva à percepção do fluxo de movimento, de imagem, da

idéia, dos estados de atenção e concentração que se

estabelecem na relação do corpo com o espaço,

integrando-os. Requer um estado de concentração e

atenção específico para perceber qualquer elemento de

dispersão que afete o engajamento, exigindo a

consciência desses procedimentos como um

fundam

E

Nesse sentido, a percepção e a consciência desses fluxos (movimento,

imagem, idéia, atenção, concentração e da própria consciência) e a integração do

corpo ao espaço dão lugar à composição de dinâmicas, às configurações de

densidades, aos constrates diversos, à realização de pausas como os elementos

dessa dramaturgia. O objetivo da cena é compartilhar com o público o fluxo de

“Movimento-Imagem”, exacerbando a criação do corpo no espaço, suas

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possib

plia as possibilidades de

do um modo

e uma lógica próprios de cada corpo na construçã

e com osição cênica do movimento. o Estúdio Nova Dança, dia 09/06/05. Atriz: Sheila Areas. Foto: Ma Ângela

onsciência corporal de várias linhas de trabalho da

educação somática2, práticas de respiração do Aikido3 e técnicas de

ilidades criativas, imagéticas e de pensamento, ou seja, uma dramaturgia

criada pelo corpo.

No percurso dessas experimentações, inúmeros movimentos, imagens e

idéias podem ser produzidos e identificados. É possível suscitar emoções, não

necessariamente uma emoção que, por exemplo, entristeça o ator, mas que traga

a sensação da tristeza, podendo sugerir a imagem de uma pessoa triste. Inúmeros

personagens podem surgir por meio da composição fí

gestos e ação. O treinamento de Paoli-Quito am

desenvolver novos padrões e qualidades de

movimento e, mais que um repertório de

movimentos, as possibilidades de relação entre os

movimentos conquistados, distinguin

sica formada pela postura,

o

pAula n

2.3 Você sabe voltar para sua casa à deriva?

O trabalho corporal constitui o suporte articular da metodologia de

treinamento de Paoli-Quito. Isso implica que, desde o estado de presença até a

ação cênica, o corpo do ator detém inteira responsabilidade sobre o processo de

construção da sua linguagem artística e constitui foco de atenção, percepção e de

concentração, durante todo o treinamento. Esse aprendizado é alcançado por

meios de técnicas de c

improvisação em dança.

2 Cristiane Paoli-Quito realizou formação também com práticas e técnicas de dança e de treinamento do ator que

stina Brandini. Fez cursos com Pol Peletier e

investem na consciência do corpo como instrumento. Entre elas, a técnica de Klauss Vianna por intermédio de Neide Neves, técnicas de Nova Dança como Contato Improvisação, advinda da parceria com Tica Lemos desde 1996, realizou workshops BMC com Rose Akras e eutonia com Cri

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Vale a pena um pequeno e sintético relato dessas técnicas que dialogam

com o treinamento e o instrumentalizam. Da educação somática esse

treinamento se utiliza de técnicas da Ideokinesis e do Body Mind Centering

(BMC).

A Ideokinesis consiste num método educacional de reestruturação do

corpo a partir do sistema neuromuscular. O termo diz respeito ao processo

psicofísico no qual a imagem e o senso cinestésico estimulam uma mudança

corporal. Dessa técnica vale ressaltar a utilização de um conceito de ação na

forma de imagem visual ou cinestésica (sensação de movimento) para estimular

e reorganizar o sistema neuromuscular. A percepção da imagem de movimento

e/ou sensação do movimento constitui pano de fundo de toda e qualquer

experimentação realizada no treinamento de Paoli-Quito – clown, interpretação

e improvisação dança-teatro.

O uso de conhecimentos e imagens da

anatomia humana é subsidiário da Ideokinesis

bem como do BMC. O objetivo do estudo

anatômico nesta última técnica consiste em ter

uma imagem visual do sistema do esqueleto,

por exemplo, para que, por meio do toque, se

possa reconhecer determinada forma no

ca

es

co

re

A 2

deQu3 Afora b

ula no Estúdio Nova Dança, dia8/04/05. Foto Ma Ângela

próprio corpo ou no do companheiro. Nesse

so, tanto quem recebe como quem oferece o toque instrumentaliza-se com

sa visualização. Ou seja, o reconhecimento pelo toque é tanto de quem recebe

mo de quem oferece. Esses conhecimentos de anatomia orientam o modo de

alizar o toque e o que nele pesquisar.

Improvisação por Katie Duck, além de práticas meditativas orientais. Atualmente, tem como assistente Tarina elho, educadora somática em formação pela Body-mind Centering School, nos EUA. ikido é uma arte marcial japonesa, fundada pelo Mestre Morihei Ueshiba. Foi criada com base em antigas

mas de artes marciais, adaptadas para a era moderna. Tem como princípio o fato de que a união entre a força e eleza geram uma atitude correta em relaçao às leis da natureza.

73

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No BMC, o trabalho de consciência corporal é compreendido como a

incorporação de conhecimento de nosso próprio corpo. Isso se realiza mediante

estudo

iração constitui um instrumento bastante

compe

reconhecer e criar seu próprio padrão de movimento, bem como desenvolver as

s da anatomia e do toque com o objetivo de tornar consciente uma ação

que está automatizada; por exemplo, andar de bicicleta tal como exposto no

capítulo 1 (p.62). Trata-se, em última instância, de desenvolver uma habilidade

perceptiva do próprio corpo.

As técnicas de respiração vindas do Aikido são realizadas individual ou

coletivamente. Elas são bastante representativas de uma primeira busca de

integração entre as pessoas. Dentre algumas metáforas utilizadas para a relação

do palco-platéia, encontramos a idéia de o ator respirar com ela e vice-versa, ou

seja, a respiração constitui um modo de conexão entre as pessoas. Um exemplo

mais imediato pode ser encontrado numa apresentação para o público na qual

percebo, no meu trabalho em cena, que, quando canso e paro para respirar e dou

claramente um suspiro, a reação mais comum é o público suspirar também. Os

exercícios de respiração preparam os participantes para a percepção dessa

conexão. De fato, a atenção na resp

tente tanto para gerar estados corporais como para restabelecer um estado

de relaxamento que, por sua vez, habilita e revigora o estado de disponibilidade

e receptividade, retomando fluxo de concentração e percepção, seja no

treinamento seja numa apresentação.

Nesse treinamento, essas técnicas vêm acopladas ao Contato

Improvisação4, uma técnica de improvisação em dança, sistematizada pelo

norte-americano Steve Paxton, no início dos anos 1970, e consiste na

improvisação da dança baseada no contato entre os corpos, seja esse contato

direto ou não. Seus exercícios permitem a construção de um corpo apto a

possibilidades de relação, diálogos e composição cênica entre dois corpos em 4 O Contato Improvisação constitui uma técnica de improvisação em dança desenvolvida também pelo americano Steve Paxton. Entre outras dançarinas dessa técnica no Brasil, encontra-se Tica Lemos, dançarina e co-diretora da Cia Nova Dança 4.

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movimento. Conforme Tica Lemos5, “os processos para se desenvolver os

sensos de equilíbrio, harmonia, movimento, consciência espacial, corporal e

energé

ta objetivando a automassagem,

utiliza a

i

para a dança e o teatro. Tro

integração anatômica e f

tica são trabalhados com exercícios específicos para cada coisa, mas que

visam englobar todos os elementos para a prática da dança”.

Os exercícios básicos do Contato Improvisação são os rolamentos no

chão. Aliás, o chão, no treinamento de Paoli-Quito, é constantemente usado e

explorado. Por exemplo, o corpo se movimen

ndo o chão como massageador; rolamento do

pesquisa de movimento focando-se os apoios.

Observa-se em todas essas técnicas a

contribuição para o desenvolvimento dos estudos

de anatomia e fisiologia humanas dirigidos para a

qualificação da ação do corpo, seja com um fim

terapêutico tal como é o objetivo do BMC e da

m de criação artística

cando em miúdos: ao

conhecer, por exemplo, a es

s ossos contra o chão e

Ideokinesis, seja com um f

conseguir percebê-la, usar s

ósseo com os outros sistema

de movimento, a auto-obse

observação e a interação co

modificam. Entre outras observações, a pesquisa de m

nesse sistema conduz, perceptivelmente, a uma auto-o

muscular que, com o apoio do sistema ósseo, realiza ape

A R

5 Tica Lemos, bailarina, uma das introdutoras da técnica de dança Contato Impqual desenvolve uma linguagem própria. É sócia fundadora, diretora e professfundadora e co-diretora da Cia. Nova Dança 4. 6 No treinamento de Paoli-Quito, são trabalhados os outros sistemas corporais tdos exemplos recai, porém, sobre o sistema ósseo, por uma questão de maior fam

Aula no Estúdio Nova Dança, dia 09/06/05. Atriz: Melissa

Panzutti. Foto: Ma Ângela

isiológica do sistema

trutura óssea6 (ou seja,

eus apoios, perceber a

s e etc.) e a qualidade

rvação do corpo e a

m o corpo do outro se

ula no Estúdio Nova Dança,

dia 09/06/05. Atriz: Fernandaapzarda. Foto: Ma Ângela

ovimento concentrada

rganização do sistema

nas a força necessária

rovisação no Brasil, a partir da ora do Estúdio Nova Dança. É

ambém. Nessa tese, a incidência iliaridade com ele.

75

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ao m

os mais

articulares e pesados, o sistema muscular favorece movimentos de contração e

expansã ilarino

desenvo

abalhar muito a intenção, a sutileza, buscar descobrir outros meios de comunicação e, assim, nesse

e na observação do ator

o corpo, com o objetivo de

ovimento, evitando tensões desnecessárias; oferece maior clareza da

relação de apoio, sustentação, peso e equilíbrio do corpo nas diversas qualidades

e padrões de movimento, sobretudo, os relacionados ao deslocamento no espaço.

Do mesmo modo, quando outros sistemas são trabalhados, ficam

evidentes as diferenças nas qualidades e padrões de movimento desenvolvidos.

Por exemplo, se o sistema ósseo favorece a realização de moviment

o. É com essas ferramentas que, basicamente, o ator ou ba

lve sua pesquisa de movimento no treinamento de Paoli-Quito.

Isso ajudou demais a fazer o ator compreender de onde vem essa presença cênica. [...] Hoje, é muito difícil conceber um trabalho sem esse anterior, sem essa conscientização. Naturalmente, o trabalho de instrumentalização ficou mais rico. Porque não fica etéreo (Paoli-Quito, 2000, entrevista pessoal). Como se fazer comunicar sem a palavra? Tr

sentido, o trabalho corporal é fundamental. Por isso existe todo um treinamento muito rigoroso de reconhecimento do corpo. E, nesse sentido, a gente vai buscar o esqueleto desde os ossos do pé, quantos são, tíbia, fêmur, quadril, coluna, cabeça (Paoli-Quito, 1998: 2).

O trabalho de consciência corporal no treinamento de Paoli-Quito conduz,

sobretudo, ao trabalho relativo à pesquisa de movimento e à interpretação. O

caminho percorrido para chegar a esse estado de pesquisa é bastante longo e

intensamente focado na concentração, na percepção

sobre seu corpo. Para tanto, a fase inicial das ativid

aquecimento individual, focalizando-se a percepção d

reorganizá-lo para a ação. Desse modo faz-se

necessário reconhecer as tensões, observar o fluxo

de respiração e de pensamento e identificar as suas

necessidades. Trata-se de um modo de relaxamento

e de atenção ao corpo como forma de despertar a

ades concentram-se num

Aula no Estúdio Nova Dança, dia 28/04/05. Foto: Ma Ângela

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presença e a atenção do ator para aquele momento e lugar – aqui e agora. Trata-

se de um trabalho de percepção do corpo em estado de não-ação, sem

movim

a deixar-se contaminar pelas relações estabelecidas.

Poster

ue o corpo

esteja atento aos próprios proc

x

por procedimentos que o ator co

ento, apenas um estado de observação, respiração e concentração nas

sensações imediatas do corpo – uma convocação, construindo as primeiras

relações entre os ambientes de trabalho: corpo e espaço.

Vale ressaltar que esse momento do treinamento é crucial para que o ator,

na relação com os outros, possa manter-se ciente de seu eixo de pesquisa e, a um

só tempo, permeável par

iormente, o participante vai entrando em relação com os outros, por meio,

por exemplo, de jogos sutis de olhares ou toque leves, criando novos modos de

relação com o ambiente.

O relaxamento constitui um modo de tirar as tensões para estar presente

sem rigidez, logo permeável, com precisão, mas sem força desnecessária.

Assim, o relaxamento consiste num estado ativo de percepção, uma vez é

considerado um estado necessário para a disponibilidade, ou seja, a

disponibilidade para a percepção e, portanto, uma prontidão também para a ação

(Berthoz, 2003)7. Por essa razão, é preferível que o corpo não esteja entregue a

qualquer processo de relaxamento ou adormecido. É conveniente q

essos de relaxamento (inclusive aos

iliado pelo exercício de toque a dois ou mesmo

nsegue desenvolver para relaxar-se.

Entre as técnicas para alcançar o

relaxamento, o toque (a massagem) constitui um

recurso bastante eficiente e recorrente no

treinamento de Paoli-Quito. A orientação para

realização do toque sugere um profundo respeito

adormecimentos), seja ele au

7 pesquisas de Berthoz fazem a relação entre percepção e ação. Sendo a p rões neurais gerados pela percepção engendram a reação de padrões n pecto, por meio do relaxamento, talvez vemos em treinamento a relação i

AD P

Vale relembrar nesse ponto que as ercepção uma ação simulada, os padeurais que realizarão a ação. Nesse as

ula no Estúdio Nova Dança, ia 28/04/05. Atrizes Tanina Quelho eaola Musatti. Foto: Ma Angela

ntrínseca existente entre percepção e ação, tal como Berthoz apresentou como resultado de suas pesquisas.

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àquele que será tocado em vários aspectos. Busca-se que o toque seja um

convite ao outro e não uma imposição. A atenção e a precisão de quem toca

oferecem ao outro uma informação também mais precisa. Vale relembrar que o

toque é utilizado também como modo de reconhecimento do corpo. Portanto, a

qualidade do toque varia conforme o objetivo da pesquisa, ou seja, cada sistema

do corpo8 a ser estimulado e estudado demanda um modo de tocar diverso. Essa

variação vai desde um toque de calor, no qual a mão não encosta no corpo do

outro, até um toque mais profundo em busca de desenhar os ossos. Vemos assim

que o toque exercita a receptividade, a generosidade, a possibilidade de afetar, a

concentração, a atenção, a percepção e o reconhecimento do corpo tanto para

quem o recebe como para quem o oferece. E por que não supor que esses

exercí

o num osso ou na sensação ou na respiração ou etc. O importante é

saber voltar para casa quando se está à deriva dos fluxos de “Movimento-

Imagem”.

cios de toque sejam também uma aquisição de habilidade para o “tocar” o

público?

Toda essa preparação objetiva que o ator mantenha seu foco centrado no

corpo, seja durante o treinamento, seja em uma apresentação. O centramento

favorece a percepção da própria pesquisa de movimento e do jogo de relações

que se desenvolve na cena. Contribui para manter certo controle sobre a

ansiedade, a obsessão e a autocrítica (três dos principais fantasmas que

assombram o ator durante a improvisação). E produz um estado de confiança,

uma vez que instrumentaliza o ator para algum momento em que ele não sabe

para onde ir. “Se você não sabe para onde ir, volte para casa”9; essa casa pode

ser um foc

8 Conforme o BMC, os sistemas do corpo são: esquelético, muscular, circulatório, linfático, dos órgãos, endócrino e nervoso. Nesse sentido, a orientação para o toque também é seguida conforme as instruções do BMC. 9 Frase dita pelo ator Sotigui Koyaté da Cia. de teatro de Peter Brook, em palestra proferida no Centro Educacional Unificado Inácio Monteiro (CEU- PMSP) no dia 18 de agosto de 2004.

78

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2.4 Tudo é cênico

Os estados integrados de relaxamento, observação, concentração e

percepção constituem o ambiente para a realização propriamente dita da

pesquisa de movimento. Esse início do treinamento habilita o corpo à percepção

de sen

focos de

pesqu truções de somatória que o

sações e imagens de movimento constituídos por meio de exercícios de

técnicas de consciência corporal.

É importante notar que o próprio treinamento constitui um contínuo de

atividades. Ou seja, o modo e/ou os exercícios de início acabam por direcionar

também as atividades posteriores. O modo como é feito e a dinâmica que o

grupo apresentou no fazer compõe as instruções para a continuidade do foco de

pesquisa10. Assim, as instruções para a pesquisa de movimento variam conforme

as necessidades e possibilidades apresentadas no fazer, acrescidas ou não da

retomada de trabalhos dos dias anteriores. A esse procedimento Paoli-Quito

denomina de somatória. Trata-se de exercitar o corpo integrando outros

isa já incorporados. Espera-se com as ins

próprio participante integre conscientemente as pes

Por exemplo, no dia 31 de março de 2005

a proposição inicial de atividade coletiva foi a

roda de massagem dos pés

quisa já realizadas.

11. Durante a

massagem, foi proposto que quem quisesse

poderia contar uma mentira ou uma verdade e o

grupo decidiria se era mentira ou verdade. No

10 Foco de pesquisa refere-se à atenção especial dada a alguma parte do corpo (um órgão, p.ex.) ou de seu funcionamento (respiração) a partir do qual a pesquisa de movimento se desenvolverá.

Aula no Estúdio Nova Dança, dia 28/04/05. Foto Ma Ângela.

11 Roda de massagem dos pés é uma das atividades iniciais coletivas na qual cada participante massageia o pé do seu vizinho e, a um só tempo, tem seu pé massageado pelo outro vizinho, neste ínterim alguém pode cantar ou contar uma piada. Este exercício exige um grau de atenção a todos estes acontecimentos, portanto, treina conjuntamente um modo de estar presente e atento que se opera, também, similarmente, em cena.

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decorrer do treinamento, deu-se continuidade à pesquisa que investigava o

movimento a partir dos pés, somado ao trabalho anterior sobre os olhos,

acrescidos da investigação de modos de ação do corpo para contar uma mentira

ou uma verdade. De uma forma prática, o conceito investigado nesse dia girou

em torno da questão da verdade cênica12, elemento crucial em qualquer

metodologia de trabalho de teatro. Considerando a ação cênica, é possível

perceber quando o corpo está com verdade em cena ou não. Por um lado,

evidenciou-se a importância do treinamento para atingir a verdade cênica, por

outro,

e suas qualidades em todos os

a instru

p

a importância da verdade cênica para se comunicar.

Assim, a pesquisa de movimento constitui o modo de reconhecimento,

exercitação e criação dos padrões de movimento e do exercício de percepção do

“Movimento-Imagem” a partir da atenção voltada para um foco de pesquisa. É

interessante notar que as instruções orientam o foco da pesquisa, os resultados

são particularizados para cada participante, porém é possível observar uma

recorrência de padrões de movimentos e d

participantes conforme ção oferecida.

O ator realiza a pesquisa de movimento de dois

modos complementares fazendo a sua pesquisa e

observando a pesquisa do outro. Vamos nos ater um

pouco nesse segundo modo, visto que ele é tão

importante quanto o primeiro e não foi até o momento

r

A dM

i

a

1eV

ula no Estúdio Nova Dança,ia 28/04/05. Ator: Pedro antovani. Foto: Ma Ângela

e

esqu

pontuado. Depois de realizado o toque, aquele que o

ecebeu experimenta seu corpo e sua movimentação de acordo com o foco d

isa, enquanto aquele que o ofereceu observa a pesquisa do companheiro.

Nessa tarefa, o observador exercita sua percepção em vários sentidos: 1)

dentificar o foco de pesquisa de movimento; 2) notar os fluxos de imagens que

quele corpo está produzindo; 3) verificar as possibilidades e qualidades de

2 Verdade cênica constitui uma qualidade de ação no palco na qual se percebe claramente a sinceridade do ator a sensação de veracidade na realização da ação. Pode ser verificada também em A preparação do ator, capítulo II, de Constantin Stanislavski, 1989.

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movimento daquele foco de pesquisa; 4) observar as semelhanças e as

diversidades de movimento em relação ao seu próprio; 5) notar as sensações que

aquela pesquisa gera em seu próprio corpo. A um só tempo, aprender a ver o

outro implica desenvolver esta capacidade de observação sobre seu próprio

trabalh

cepção e, para uma cena de

impro

o

grupo, a execução de alguma técnica do olhar ou da triangulação, entre outras.

o. A essa auto-observação, Paoli-Quito denomina “observador interno”.

Por um lado, neste ponto, podemos relembrar as pesquisas de Berthoz

(2001) cujos resultados apontam para a percepção como ação simulada do

movimento tal como exposto no capítulo 1 (p.41). Observar a pesquisa do

companheiro constitui também um processo de aprendizagem do movimento.

Por outro lado, o recurso de auto-observação pode ser compreendido como o

exercício consciente de nosso sentido do self tal como apresentado por Damásio

(vide cap.1, p.60). Segundo ele, a consciência (central e ampliada) se faz porque

existe um sentido de self que relata ao corpo que é ele que está sentindo e não

outro. No cotidiano, essa função é constante e pode passar despercebida pela

própria consciência. Mais uma vez, exercitar conscientemente o sentido de self

repercute na nossa capacidade de autoper

visação, a autopercepção é fundamental.

O foco de pesquisa de movimento está diretamente relacionado com o

processo de aquecimento e de massagem (quando é utilizada). Por exemplo,

caso se realize um toque na coluna, o foco da pesquisa de movimento será

relacionado à coluna, ou seja, às suas possibilidades de movimento (torção e

flexão), à sinuosidade, à extensão e repercussão do movimento da coluna para

outras partes do corpo, à reorganização do movimento e da postura a partir da

coluna. As possibilidades de definir os focos de pesquisa são bastante grandes.

Imagine que, no mínimo, poderiam corresponder ao número de ossos de nosso

corpo, fora as combinações que se realizam, como, por exemplo, as relações

entre escápulas e entre tíbia e fíbula. Os critérios para seleção do foco de

pesquisa estão relacionados com uma série de fatores: alguma demanda d

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Para esta tese, selecionei alguns focos de pesquisa mais recorrentes à

construção do corpo do clown. De antemão, as descrições que seguem visam

ilustrar possíveis instruções e alguns resultados. Como veremos adiante, o que

se pode verificar nesse processo é que o treinamento do clown por meio da

improvisação se caracteriza por uma série de exercícios corporais não-

padronizados ou amparados por um modelo de atuação, ou seja, exercícios que

permitem uma maior exploração do recurso expressivo de cada corpo. Portanto

se torna irrelevante descrever minuciosamente cada exercício como padrão de

movimento, visto que ele constitui apenas uma instrução, não exigindo um

modo único para ser realizado nem pressupondo um resultado único, mas, ao

contrário, caracterizando-se pela amplitude de possibilidades de resolução dos

problemas e resultados possíveis.

O que importa é compreender esse treinamento como um conjunto de

procedimentos e instruções interarticulados, um contínuo de atividades que

começa na chegada à sala de ensaio até a saída. O aquecimento individual, o

aquecimento em grupo, o jogo, o toque, a pesquisa de movimento e o jogo de

improvisação estão entrelaçados. Esse alerta serve para atentarmos no fato de

que o risco de descrever um exercício é retirá-lo de seu contexto. De algum

modo, porém, devemos correr esse risco para tentar clarificar os procedimentos

e as instruções. Caro leitor, neste caso, o melhor mesmo é fazer o treinamento.

Entre os focos de pesquisa selecionados, encontram-se os olhos e o olhar, os pés,

a coluna – principalmente a vértebras cervicais e cóccix, as escápulas e a tíbia e

fíbula.

No treinamento de Paoli-Quito, pode-se afirmar que o clown está na

qualidade do olhar, um modo específico de conexão e de afeto com o mundo.

Paoli-Quito insiste no “brilho no olhar”. Essa instrução já reorganiza o olhar do

participante. Para uma melhor incorporação dessa instrução, realiza-se um toque

no contorno ósseo dos olhos, pesquisam-se as musculaturas do globo ocular e

experimentam-se as possibilidades de movimento dos olhos (movimento do

82

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globo, pálpebras e musculatura da face e a focalização) e as sensações, as

expressões e as imagens que cada movimento produz. Finalmente se investiga

também como o corpo se reorganiza nessa pesquisa. Busca-se um olhar ingênuo

(receptivo e curioso), expressivo, permeável, tranqüilo, vivo, que afete e crie

expectativa. Um dos exercícios que realizamos em dupla com os olhos consiste

em o participante conduzir seu companheiro com o olhar. Apenas com o

movimento dos olhos, o mandante ordena ao companheiro que ande, sente-se,

levante-se e etc. Dependendo do grau de conexão que se estabelece entre a

dupla, o mandante pode pedir ao parceiro que dê cambalhota e este fará o que

foi pedido.

Outro exercício é o jogo de espelho da máscara, realizado diante de um

espelho. Antes de vestir a máscara, o ator observa e explora seu rosto, suas

expressões e olhares e o rosto da máscara, suas angulações e expressões

decorrentes. É fundamental observar que se trata de uma experimentação

minuciosa e atenta às sensações, estados, emoções, expressões e idéias que o

exercício oferece. O experimento consiste em perceber, por exemplo, como

angulações da cabeça ou do olhar produzem e expressam estados corporais,

como o corpo se adequa a essas mudanças ou ainda como uma postura gera

sensações e estados corporais e assim por diante. Um jogo contínuo entre

estados do corpo e suas expressões e comunicações, sentidos e significados:

linguagem. O espelho, em um primeiro momento, auxilia a percepção mais

aproximada entre estado corporal (sensações de expressão) e expressão aparente.

Os pés são trabalhados também por meio da massagem. Eles orientam,

juntamente com a tíbia e a fíbula, entre outras possibilibades, a pesquisa de

movimento de modos de andar e suas sensações e imagens. Modos de andar, por

sua vez, podem suscitar inúmeros lugares, situações cênicas, personagens,

tempo, intenções, emoções e sentimentos (onde, o quê, quem, quando, como, de

acordo com denominação de Paoli-Quito).

83

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Os pés possibilitam também o treino do que Paoli-Quito denomina de

“aterramento”, ou seja, a percepção do apoio dos pés no chão como modo de

manter o corpo/mente centrados e alertas, evitando devaneios sem consistência,

quimera do “fazer qualquer coisa”. Por um lado, os pés bem apoiados no chão

permitem identificar quando um ator está abaixo (demasiado retraído) ou acima

(demasiado altivo) de seu eixo. Nesse aspecto, o trabalho sobre a coluna

vertebral (descrito na p.81 deste capítulo) também é um forte aliado. Manter-se

no eixo, neste caso, significa ter como referência um posicionamento

perpendicular da coluna em relação ao chão e perceber quando se está à frente

ou atrás do eixo. Por vezes, no afã de comunicar-se, o ator projeta seu corpo à

frente do eixo. Esse é um dos vícios bastante comuns. O que importa é o ator

dar-se conta de que está à frente do eixo e que isso compõe o que ele está

comunicando.

Tanto o foco de pesquisa na coluna

como nas escápulas favorece uma maior

participação e presença das costas. As

escápulas vitalizam o movimento dos

braços e das mãos e auxiliam no

relaxamento dos ombros, no alargamento

das costelas e dos pulmões, promovendo

uma melhor qualidade da respiração. Quanto

ao movimento, o foco de pesquisa nas escápulas dá uma maior amplitude e

clareza do desenho e do posicionamento das mãos, dos braços e do tronco no

espaço.

Aula no Estúdio Nova Dança, dia 28/04/05. Bailarina: Lu Favoretto. Foto: Ma Ângela

A pesquisa de movimento a partir da tíbia e da fíbula tem três orientações

básicas e conjugadas: o deslizamento delas sobre o chão, o rolamento sobre elas

e as possibilidades de apoio desses dois ossos da perna. Esses exercícios

organizam o deslocamento do corpo no espaço e a exploração de padrões de

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movimento nos vários planos (baixo, médio e alto). Assim, algumas ações como

levantar, deitar, sentar e cair podem ser exercitadas nesse contexto.

Enfim, as instruções e as pesquisas de movimento assumem uma

diversidade de funções inter-relacionadas no treinamento: a presença, a

disponibilidade, a atenção e concentração, o exercício e a criação dos padrões de

movimento do corpo e o desenvolvimento de uma determinada técnica. Muitas

composições desse gênero podem ser realizadas: nariz com cóccix, olhos e

escápula, olhos e pés, coluna e pés, atlas e cóccix etc., estimulando a percepção

das distâncias entre as partes, a oposição entre elas, suas ações em paralelo etc.

Cada qual tem funções específicas, explora padrões de movimento, produz

estados de divertimento variados e estimula possibilidades de jogos e

desenvolvimento técnico.

A triangulação constitui uma técnica fundamental para a performance do

clown. Trata-se de termo utilizado no teatro para designar o ato de olhar para o

público, quebrando a denominada quarta parede, o que é diferente de olhar na

direção dele. É uma técnica bastante utilizada na comédia. Para o clown, a

triangulação é um modo de compartilhar com o público e com o companheiro de

cena alguma sensação que está manifesta. Ela permite visualizar as

possibilidades de ação e conduzir a dramaturgia. Por meio da triangulação, o

ator convida a platéia para participar da cena. Entre outros exercícios para o

desenvolvimento dessa prática, além daqueles de olho e olhar acima descritos, a

pesquisa de movimento que integra a composição entre cervical e olhos, coluna

e nariz favorece uma aplicação mais precisa dessa técnica de comunicação em

cena.

A continuidade nesse treinamento acaba por integrar o corpo todo ao

movimento. Assim, conforme os focos de pesquisa vão sendo incorporados, o

corpo inteiro torna-se conscientemente incluído na pesquisa, mesmo que o foco

seja o pé. Por um lado, o treinamento possibilita desenvolver a presença do

corpo, o que qualifica melhor uma ação pequena como dobrar a orelha; por

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outro lado, intensifica a percepção de tal modo que, no fluxo de movimento, o

ator pode deslocar os focos conforme a percepção do fluxo de “Movimento-

Imagem” ou do sobressalto de um foco de pesquisa inusitado advindo do

movimento.

O foco de pesquisa é acompanhado de instruções como a exploração do

movimento nos planos baixo (chão), médio (quatro apoios) e alto (dois apoios);

o desenho do corpo no espaço; identificação de começo, meio e fim do

movimento. Soma-se a essas instruções a atenção ao “Movimento-Imagem” que

cada foco de pesquisa suscita. Assim, não basta ater-se somente ao foco de

pesquisa, pois ele constitui apenas uma referência; faz-se necessário habilitar a

percepção do fluxo de “Movimento-Imagem” que é criado. Nesse sentido, a

instrução da pausa é um elemento facilitador dessa percepção.

A pausa é um elemento fundante nessa metodologia. No processo de

pesquisa de movimento e mesmo na improvisação, constitui o modo de

intensificar a percepção do ator acerca da imagem que está construída e da

sensação de seu próprio corpo, auxilia o relaxamento, o “aterramento” e a

respiração e renova a concentração e a atenção ao corpo. Pode servir como um

momento de espera de um novo fluxo de movimento e imagem, baixando a

ansiedade do “o que fazer?” Numa improvisação, a pausa gera ainda uma

suspensão que, darmaturgicamente, pode ser interessante, pois auxilia na

percepção da dramaturgia que está se compondo e gera possibilidades de jogo

para a composição da cena.

Paoli-Quito desenvolveu uma série de exercícios a partir da relação pausa

e movimento, denominada jogo de pausas. Por exemplo, numa dupla, quando

um está em movimento o outro fica em pausa; o segundo pode movimentar-se

somente quando o primeiro pausar; os dois podem pausar juntos e podem se

movimentar juntos caso saiam ao mesmo tempo da pausa. Essas e outras tantas

variações dessas regras compõem um escopo de jogo de pausa que orienta a

86

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construção da cena, o jogo de composição, a percepção da situação, o foco no

corpo, a conexão, a localização e a organização no espaço.

De certa forma, o treinamento como um todo objetiva habilitar a

percepção para a manutenção da fluidez das sensações/movimento/

imagens/idéias. No conjunto do trabalho, o treinamento permite um estado de

atenção e percepção do corpo, o que prepara o ator para ter uma maior

percepção e expressão cênica das sensações, imagens e idéias que ele é capaz de

gerar por meio de seu movimento, das relações e dos jogos cênicos entre os

atores e com a platéia.

O movimento do ator não se limita à manipulação pura e simples de

músculos ou ao jogo da imaginação, mas às complexas conexões que se

articulam conjuntamente entre músculos, ossos, órgãos, sentidos, circulação,

respiração, imaginação, memória para a ação do corpo em um jogo contínuo de

trocas de informação entre esses sistemas do corpo na relação com o ambiente.

Se conhecedor da rede complexa de conexões que consiste seus atos, o ator poderá compreender mais amplamente seus processos de apreensão e conhecimento do mundo e de si mesmo, atento às questões referentes à inseparabilidade entre corpo, mente e cérebro e os estados de consciência (Nunes, 2003: 132).

Nesse conjunto de procedimentos e instruções, de fato, o que importa é o

modo como se faz, é esse estado de atenção, concentração, percepção e presença

que qualificam a pesquisa de movimento. Nos exercícios do treinamento, além

da atenção e concentração no corpo e suas qualidades de movimento, é preciso

observar a percepção das sensações, reações, imagens, sentimentos e

pensamentos que aquele movimento proporciona naquele momento e que podem

ser compreendidos como estados corporais (Damásio, 2003). Nas palavras de

Paoli-Quito corresponde à idéia de o ator estar presente em cada instante de

movimento como um fotograma de cinema. Isso habilita a experimentação, a

construção e a apropriação das possibilidades de movimento próprio de cada

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corpo e as possibilidades comunicativas deste conjunto de ações do corpo –

movimento, sensação, imagem, pensamento – no qual todo movimento e

qualquer movimento, se não é, passa a ser cênico.

2.5 Jogo: a vida das relações

No conjunto das atividades acima descritas, a concentração do grupo no

exercício de respiração, no relaxamento, no mesmo foco de pesquisa de toque e

de movimento cria um fluxo de concentração

da sala. Trata-se de um primeiro modo para

se estabelecer um estado de conexão no

treinamento. Criam-se uma sintonia e um

contexto de pesquisa que, pode até mesmo

ser utilizado como recurso a qualquer

momento quando se sente a necessidade de

reconectar-se. Posteriormente, no espetáculo,

esse recurso será fundamental para se

perceber a dramaturgia que o grupo está criando.

Aula no Estúdio Nova Dança, dia 17/06/04. Foto: Ana Dupas

A pesquisa de movimento realiza-se também em duplas ou trios ou mais.

No trabalho de dois ou mais, além da observação do próprio movimento,

praticam-se: 1) a conexão e a cumplicidade entre os atores; 2) as possibilidades

de jogo e de composição criadas pela relação; e 3) a percepção do “Movimento-

Imagem” que o grupo desenvolve. Alguns

exemplos desses exercícios podem auxiliar

seu entendimento.

Um dos exercícios de conexão e

cumplicidade é realizado em duplas e

consiste em um ator posicionar sua mão na

A F

ula no Estúdio Nova Dança, dia 17/06/04. oto: Ana Dupas

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Page 89: Uma nova mídia em cena: corpo, comunicação e clown. Maria Angela de... · corpo, comunicação e clown. Doutorado em Comunicação e Semiótica Tese apresentada à Banca Examinadora

região sacral13 (base da coluna) do segundo e fechar os olhos, após a realização

da técnica de respiração. O segundo realiza a sua pesquisa de movimento, que é

acompanhada pelo primeiro apenas por meio da conexão com o sacro.

O exercício de jogo de pausas conforme descrito acima permite à dupla

perceber os padrões de movimento, as imagens e as idéias, criando pequenas

cenas. Esses exercícios contribuem para a percepção da situação de jogo de

improvisação, treinam a receptividade, o conflito, enfim, as reações ao contato

com o outro.

Nesse ponto, entramos no exercício da cumplicidade e da conexão. No

treinamento, o jogo e as técnicas de Contato Improvisação constituem os

recursos que melhor desenvolvem essa disponibilidade para a relação com o

outro.

“O jogo é um modo para se manter viva a relação” (Paoli-Quito, anotação

de aula14). Com essa proposição, torna-se possível verificar como todas as

atividades desse treinamento se organizam também sob a perspectiva do jogo tal

como descrita no capítulo anterior. Relembrando, o jogo requer um

envolvimento do corpo e o exercita na realização de ações espontâneas. A

situação de jogo favorece a emergência de acasos e situações de risco que

demandam uma solução imediata do corpo e estratégias de jogo do ator. Por essa

razão, o jogo desenvolve um estado de atenção e disponibilidade, solicita estado

de conexão e cumplicidade entre os jogadores e simula uma situação cênica.

Essas condições do corpo no ambiente não pertencem somente ao contexto do

jogo, mas encontram-se no contexto da vida cotidiana, o que faz do jogo e da

improvisação uma tecnologia cognitiva, na medida em que exercita a capacidade

de resposta do homem na relação com o meio ambiente.

Nesse treinamento, o jogo implica o exercício do ator na relação com o

outro – espaço e/ou parceiro e/ou platéia –, criar e construir os “onde”, os 13 Segundo Paoli-Quito, a escolha pela região sacral se deve ao fato desta região ser considerada centro energético vital do corpo, chakra, nas práticas meditativas e curativas provindas da Índia. 14 Aula realizada no dia 25 de março de 2004, no curso extensivo de clown no Estúdio Nova Dança.

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“quem”, os “o quê”, os “como” e os “quando” a partir da imagem dos corpos no

espaço. Diferente da abordagem de Spolin, na qual o “onde”, o “quem” e o “o

quê” são estabelecidos previamente. Na improvisação de Paoli-Quito, não se faz

a mimese das relações humanas, mas a representação dessas relações

Aula no Estúdio Nova Dança, do dia 17/06/04. Atrizes: Adriana Macul e Laura Bruno. Foto Ana Dupas

em tempo real no contexto do jogo e da ficção. Não há uma preocupação

primeira com o que se quer dizer ou o sentido e o significado das relações

estabelecidas; os atores relacionam-se e observam o “Movimento-Imagem” que

estão gerando e seu grau de sentido e significado no contexto da dramaturgia

que está sendo criada naquele momento.

Assim, desde o treinamento da consciência corporal (o trabalho mais sutil

que seja entre o ator e os ossos do dedo mínimo do pé) até o ensaio dos “tiros” 15

de improvisação compõe-se da possibilidade de ser uma relação de jogo que

envolve antes de mais nada o prazer de jogar. Essa qualidade do jogador se

apresentará também no espetáculo, como um modo de engajar o público na

pesquisa realizada, guiando sua percepção para os focos de cena que surgem no

decorrer da improvisação. “Não há representação teatral sem a cumplicidade de

um público e a peça só tem possibilidade de ‘dar certo’ se o espectador jogar o

jogo [...]” (Pavis, 2001: 220).

Em outros termos, o jogo em suas mais variadas acepções (tradicional,

dramático e teatral, vide cap.1, nota 12, p.44) constitui o fundamento no

treinamento de Paoli-Quito para a prática da cumplicidade e da conexão entre os 15 Tiro é a denominação recebida no treinamento quando o grupo ensaia um procedimento de improvisação como se fosse espetáculo. Delimita-se um tempo, o número de pessoas que podem estar em cena e se observam as construções cênicas que o grupo construiu. Ou seja, trata-se do exercício prático das técnicas pesquisadas para ensaio da improvisação.

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atores, o espaço cênico e a platéia. Sem dúvida seu caráter lúdico permite aos

jogadores o envolvimento necessário para o desenvolvimento do jogo e suas

possibilidades cênicas e, ao mesmo tempo, conduz a um estado de alegria,

prontidão, disponibilidade e prazer, fundamentais ao exercício do clown.

Por sua vez, seu caráter competitivo promove a disputa entre os jogadores

criando possíveis conflitos cênicos, mas, no treinamento de Paoli-Quito, a

disputa constitui, principalmente, uma disciplina para a generosidade e contra a

obsessão de ganhar, sem perder a regra ou a disputa. No treinamento, o grande

prazer não está em ganhar, mas no “jogar e deixar jogar”, conforme palavras de

Paoli-Quito.

Vale lembrar que, para o clown, em um jogo tradicional, ganhar ou perder

não é o seu objetivo, mas o modo como alcança ou não a vitória. Assim, quem

ganhou o jogo pode ter perdido ou quem perdeu pode ter ganhado a cena, ambos

ganham e o público também quando nenhum dos dois perde a cena. Ou seja, a

aplicação de um jogo tradicional no treinamento, além do prazer,

disponibilidade e alegria que o risco do jogo gera, constitui um modo de os

atores envolvidos criarem uma cena interessante para quem assiste. No

treinamento, os jogos tradicionais têm essas funções. Paoli-Quito utiliza, entre

outros, os jogos de pega-pega e suas variações, esconde-esconde, toca do

coelho, rabo do burro, pique bandeira, “duro-mole”, “dança das cadeiras”,

“detetive”, “seu mestre mandou”, “jo kei pô” etc. Por meio desses jogos

exercitam-se: a conexão, a cumplicidade, a atenção, o prazer, a espontaneidade,

o frisson do jogo, que é semelhante ao de estar em cena, a qualidade de jogo do

jogador (jogar e deixar jogar) e as possibilidades cênicas surgidas nesse

contexto.

Os jogos de improvisação propostos no treinamento são constituídos

apenas de pequenas instruções. O objetivo da instrução é apenas propor uma

possibilidade. O fundamento, porém, para a improvisação está na atenção do

ator ao seu corpo, ao “Movimento-Imagem” e à construção da cena naquele

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momento. Por exemplo, dois atores entram e devem falar “pa, pa, pa” juntos e

sair. Para esse exercício ganhar graça, os atores devem estar conectados, atentos

ao “Movimento-Imagem” que criam e às possibilidades de jogo e cena que o

fabuloso texto “pa, pa, pa” pode gerar.

Um outro exercício bastante significativo no treinamento é o de entradas e

saídas, em variadas formas: em arena ou em palco (coxia e platéia). O

denominado tiro de improvisação é um jogo de entradas e saídas. Nesse

exercício, a instrução é apenas “entrar para sair”. Porém, para entrar, 1) é

necessário estar atento para “o que te mobilizou para entrar?”, em termos

teatrais, “qual foi a deixa?”; 2) ter claro um foco de pesquisa em seu próprio

corpo, para começar e desenvolver; 3) se tiver alguém em cena, perceber qual o

melhor momento para entrar, ou seja, esse critério demanda perceber o fluxo de

construção, ápice e destituição de uma cena; 4) perceber os movimentos-

imagens criados; 5) perceber seu tempo de permanência em cena; 6) saber o

momento de sair de cena; e 7) saber como sair sem destruir o que foi ou está

construído. A importância desse exercício está justamente no fato de que ele é a

conjunção de todos os recursos desenvolvidos no treinamento para a realização

de um jogo de improvisação. Tal como uma repetição de cena no ensaio de

teatro com texto dramático, o jogo de entradas e saídas e suas regras constitui

uma espécie de “repetição” da improvisação.

O tempero desses procedimentos do treinamento do clown é o prazer de

estar no jogo. Qualquer fluxo de “Movimento-Imagem”, qualquer pesquisa de

movimento, individual ou coletiva, qualquer jogo proposto visa, antes de tudo, à

preparação de um estado de alegria, de prazer e de divertimento como motor da

presença, da disponibilidade, da prontidão, do jogo e da comunicação com o

público.

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Capítulo 3

3. UM DIA, UMA BANANA...: LAÇOS E ENTRELAÇOS TRANSITÓRIOS

3.1 Entre laços: o processo

“Do lugar onde estou já fui embora.” Manoel de Barros

Um dia, uma banana... é um espetáculo solo, resultado de longo processo

de treinamento, criação e pesquisa da linguagem do clown e da improvisação,

iniciado em 19951 e vinculado, há oito anos, à pesquisa de pós-graduação em

Comunicação e Semiótica (mestrado e doutorado) como objeto de pesquisa.

A criação do espetáculo Um dia, uma banana... é

um resultado possível e transitório da intersecção entre

o treinamento de Paoli-Quito, o desenvolvimento de um

treinamento individual, as pesquisas e os estudos no

programa de pós-graduação e a história pessoal passada

e presente, carregada, revista, vivida, recriada e pensada

nessa trajetória. Ao compreender que o processo da

criação artística é fruto desses entrelaçamentos,

permito-me incluir na descrição desse processo um fato

de minha história pessoal: a gravidez, o nascimento e os primeiros três anos de

minha filha que ocorreram concomitantes ao desenvolvimento da pesquisa de

doutorado. A temática da maternidade, seus imprevistos, sustos, amores e afetos

impregnam completamente o trabalho desenvolvido a partir de então.

Espetáculo: “Um dia, uma banana...”. Tuca Arena. 30/06/05. Foto: Edson Reis

1 Em 1995, dei início a esta investigação do clown quando participei do workshop de clown oferecido por Cristiane Paoli-Quito, no Piccolo Studio – São Paulo. Em 1996, participei do curso de clown oferecido por Cida Almeida, no mesmo estúdio. E, desde 1998, realizo minha formação, com Cristiane Paoli-Quito, no Estúdio Nova Dança, em São Paulo. Participei também de alguns workshops de treinamento do Lume (Unicamp-Campinas), em 1999 e em 2004.

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Parte da investigação que norteia esta criação consiste no aproveitamento

das ações corporais transformadas, enfatizadas e adquiridas pela maternidade em

diálogo com as qualidades técnicas de jogo, de improvisação, disponibilidade e

interatividade constitutivas da linguagem do clown. O clown prima por uma

interatividade pautada no afeto e na ingenuidade, como ocorre, por exemplo, em

uma simples troca de olhares.

Duas outras fontes de influência (e de

confluência) que permeiam a proposição da criação do

clown e do espetáculo a partir da improvisação dizem

respeito, respectivamente, ao personagem Deus do

cartunista Laerte e ao Livro sobre o nada, de Manoel

de Barros. Duas linguagens distintas à do teatro, mas

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q

p

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p

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c

Espetáculo: “Um dia, uma banana...”. Tuca Arena. 30/06/05. Foto: Edson Reis

ue, por similaridade, nelas vislumbro as possibilidades de resposta às questões

ue almejo responder por meio do clown e da improvisação.

O Deus, de Laerte, é um personagem pleno de graça pela simplicidade e

ela humildade que o tornam uma figura singela e delicada. A sua inserção em

ituações tão cotidianas e a sua inadequação ao mundo dos homens o tornam

ada vez mais humano, principalmente quando faz uso de sua onipotência. É um

ersonagem que, apesar de todos os seus poderes, vive o seu cotidiano

implesmente. Não lhe é necessário uma grande e monumental história. Se o

lown fosse um personagem dos quadrinhos seria o Deus.

Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada. Dia 05/10/03

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Page 95: Uma nova mídia em cena: corpo, comunicação e clown. Maria Angela de... · corpo, comunicação e clown. Doutorado em Comunicação e Semiótica Tese apresentada à Banca Examinadora

Livro sobre o nada, de Manoel de Barros foi outra descoberta que me fez

almejar um espetáculo no qual se pudesse brincar despropositadamente com a

linguagem teatral, criando o sentido no fazer, da mesma forma como Manoel de

Barros brinca com as palavras para “descriar” e recriar seus sentidos.

Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria

(op.cit., p. 71).

Assim também um espetáculo a ser experimentado seria aquele que não

precisasse contar nada, mas apenas ser o que é, valorizando o insignificante, o

pequeno, brincando com o que é sobrecarregado de significado, com o que é

grande. Sempre que desejo contar alguma coisa não

faço nada, mas quando não desejo contar nada faço poesia

(op.cit., p. 69).

Nasci para administrar o à-toa o em vão o inútil. Pertenço de fazer imagens. Opero por semelhanças. Retiro semelhanças de pessoas com árvores de pessoas com rãs de pessoas com pedras etc etc. Retiro semelhanças de árvores comigo. Não tenho habilidade pra clarezas. Preciso de obter sabedoria vegetal. (Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã no talo.) E quando esteja apropriado para pedra, terei também sabedoria mineral.

(op.cit., p. 51)

Um espetáculo que vive somente das imagens que o ator faz surgir na sua

relação com o ambiente principia do “nada” de um corpo no espaço e pode a

nada chegar, o importante é “eu não preciso de um fim para chegar” (op.cit.,

p.71). Ou seja, esse “nada” é simplesmente não premeditar, não pretender contar

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o que não seja a relação do corpo no espaço. Vale a pena o risco, porque “É

mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez” (op.cit., p. 67). Além

disso, corpo e espaço não são tábulas rasas e o treinamento já instrui a

possibilidade de ação cênica. No treinamento, inicia-se pelo “nada a fazer” e

isso já é alguma coisa. A conjunção da improvisação e o clown podem, em

princípio, conduzir à investigação dessa possibilidade de estética teatral.

Com essas perspectivas, os conceitos desenvolvidos no Programa de

Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, apresentados no decorrer

desta tese, conjugam-se às expectativas, uma vez que tratam de mapear o corpo

em seus processos cotidianos de reação, percepção e cognição. Eles contribuem

para a compreensão da ação de meu corpo na cena em tempo real, o que

constitui a base da improvisação. Entre os conceitos, destaco o de corpomídia,

que sintetiza a capacidade de comunicação do corpo, sustentada por conceitos

do sistema geral dos signos e dos processos cognitivos do corpo na relação com

o ambiente.

Laço da autonomia e do treinamento individual

Minha participação, envolvimento e pesquisa no (e sobre) o treinamento

de Cristiane Paoli-Quito permite-me verificar que o conjunto composto do

princípio Movimento–Imagem, das técnicas de consciência corporal, da

condução da pesquisa de movimento e do jogo atribuem ao pesquisador uma

certa autonomia na pesquisa e na criação.

Depois de algum tempo, o ator capacita-se a realizar os exercícios e

técnicas em um treinamento individual. De certa forma, Paoli-Quito

instrumentaliza o ator para que ele possa se orientar na proposição e até mesmo

na criação de um exercício. A um só tempo, o intenso trabalho sobre a

percepção do corpo permite ao ator observar alguns resultados e avaliar a

qualidade da realização de um exercício no treinamento individual.

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Num treinamento individual, o ator aguça ainda mais a percepção de si

mesmo, observa com mais clareza seus fluxos de atenção e concentração, de

engajamento e de consciência da pesquisa de movimento que realiza, identifica

os focos de pesquisa trabalhados, fica mais atento às cenas que está construindo

associada ao fluxo do movimento-imagem, reconhece o começo, o meio e o fim

dos fluxos, as dinâmicas desenvolvidas e as possibilidades de movimento

surgidas. A partir dessa autopercepção, o ator identifica também suas

dificuldades em questões como a da confiança, dos artificialismos, dos exageros,

da dispersão, dos entraves técnicos, das ansiedades etc. Uma vez que as

dificuldades são identificadas, o ator pode descobrir e treinar também os seus

próprios mecanismos para restabelecer o fluxo da pesquisa e da criação.

Tem mais presença em mim o que me falta. Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.

(op. cit., p. 67/68)

Em um espetáculo de improvisação, é importante para o ator o grau de

autonomia acima descrito. Em cena, cuja base é a improvisação, cabe ao ator

perceber e sugerir focos de pesquisa vinculados ao processo de construção da

dramaturgia da cena naquele momento e dar-se conta da queda de intensidade

dos fluxos de sua ação ou o do grupo e ajustá-la. Isso porém, absolutamente não

exime o olhar do outro como um diretor ou um assistente. A presença destes

contribui muito para o ator identificar seus padrões de movimentos e a

construção da dramaturgia que realiza e para avaliar a qualidade de seu

engajamento, concentração e consciência da pesquisa que desenvolve.

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Page 98: Uma nova mídia em cena: corpo, comunicação e clown. Maria Angela de... · corpo, comunicação e clown. Doutorado em Comunicação e Semiótica Tese apresentada à Banca Examinadora

Para o espetáculo Um dia, uma banana..., foram convidados para a

direção o Prof. Dr. Fernando Passos2 da Universidade Federal da Bahia e, como

assistente, Melissa Panzutti3.

Laço da experiência pessoal

A autonomia de treinamento individual já vinha sendo experenciada desde

2001, quando realizei a performance As quatro estações (em 5 movimentos)4

(1999). Nos ensaios individuais, já trabalhei com os procedimentos do

treinamento. O treinamento individual, porém, configurou-se de fato quando da

realização do treinamento durante a gravidez. O estado de atenção e a

necessidade de proteção exigidos pela gravidez foram fundamentais para a

percepção do corpo em movimento. A noção de peso e de eixo ganhou evidência

surpreendente no processo de pesquisa de movimento. A utilização dos apoios e

do “aterramento” (vide cap.2, p.84) tornaram-se bem mais precisos, evitando

riscos de queda.

Os cuidados exigidos pelo novo estado corporal fizeram destacar a

existência, a importância e a aceitação do limite como ferramenta da criação

artística. A consciência e a aceitação do limite corroboraram para um estado de

presença fluido e atento que, por sua vez, trouxe ao movimento uma qualidade

mais marcada pela simplicidade e inteireza do que pelo virtuosismo, por

exemplo, da destreza circense.

2 O encontro com o diretor e Prof. Dr. Fernando Passos da UFBA se deu por intermédio do Centro de Estudos do Corpo e do Programa de Qualificação Institucional UFBA/PUC, em novembro de 2003, quando, em missão de curta duração na PUC-SP, ele assistiu à apresentação dos trabalhos finais da disciplina Seminários de Estudos Avançados, ministrada pela Profa. Dra. Helena Katz, na qual realizei a performance Palestra clown: Ser mãe é pão pão, queijo queijo. Posteriormente, em uma missão de longa duração, além de assistir ao espetáculo Interstícios, do Grupo Sinergia, do qual participei, o Prof. Dr. Passos assumiu a co-direção do espetáculo Um dia, uma banana..., nos meses de dezembro de 2004, janeiro e fevereiro de 2005. 3 Melissa Panzutti é atriz formada pela Escola de Comunicações e Artes da USP e realiza o treinamento de Paoli-Quito. Além da assistência do treinamento individual, Melissa opera o som neste espetáculo. Especificamente para um trabalho de improvisação, a sonoplastia é também improvisada no sentido de que não há um momento exato da sua entrada e da sua saída. Ela depende da observação e percepção do sonoplasta como a proposição de um jogo. Nesse sentido, a sonoplastia pode ser entendida como um segundo ator em cena, daí a necessidade de treinamento, cumplicidade e conexão entre ator e operador de som. 4 As quatro estações (em 5 movimentos) é uma das performances que realizo com o clown, desde 1999.

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Nesse período, os apoios dos dois pés no chão pareciam imprescindíveis

para a manutenção do meu corpo em pé, por uma questão da fragilidade do

equilíbrio e da pouca força abdominal disponível. O equilíbrio constituiu um dos

focos de pesquisa. Além dele, os focos mais constantes nas pesquisas de

movimentos concentraram-se na movimentação dos braços, da bacia, do tronco,

marcado pela leveza, delicadeza e lentidão do movimento. Outro ponto bastante

observado foi a minha percepção do espaço, extremamente atenta às

possibilidades de riscos.

O que posso observar, desse período, é que o grande salto de qualidade foi

justamente a configuração do estado de atenção e integração do corpo todo ao

movimento. A necessidade de cuidado com a barriga não permitia movimentos

dispersivos, de risco ou ainda muito rápidos e bruscos. Todo o processo de

treinamento já decorrido sobre a questão da consciência corporal entranhou esse

salto de qualidade.

Laços da consciência e da tecnologia cognitiva

Saber como o corpo incorpora conhecimento de acordo com as pesquisas

dos cientistas cognitivos estudados nesta tese facilitou a compreensão da função

de um exercício e da importância da atenção ao modo como está sendo

realizado. A percepção dos estados corporais que se manifestam e se

transformam ao mais sutil dos movimentos e seu relacionamento com a imagem,

com o pensamento e com a ação motora que, a um só tempo, o corpo produz

viabilizam tomar a consciência de parte do processo de comunicação entre corpo

e ambiente. A questão é como isso pode se transformar em comunicação cênica.

Em outros termos, como os procedimentos cotidianos de sobrevivência do corpo

podem converter-se em cena teatral.

A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.

(op. cit., p. 70)

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Reconhecer o lugar da consciência no processo da criação permite

também rever as concepções preconceituosas a partir das quais ela é considerada

um estorvo, uma barreira. Aqui talvez haja uma confusão bastante comum

acerca da consciência com autocrítica, premeditação, insegurança e

desconfiança no potencial criativo do fluxo da emoção, sentimento, consciência,

ação, pensamento e comunicação. Em vez disso, trata-se de observar o trabalho

da consciência no processo de criação, no sentido de notá-la como um poderoso

instrumento de percepção, estímulo e orientação da ação estética do corpo. A

consciência como instrumento para reconhecer a lógica subjacente à criação

artística.

Nesse sentido, todo o processo de exercícios práticos e teóricos que

apontaram para “conhecer como o corpo conhece” foi o que permitiu identificar

a improvisação e o jogo como uma tecnologia cognitiva, uma vez que

desenvolvem as habilidades cognitivas básicas

de um modo de ação do corpo, (vide cap.1, p.55)

aplicadas no cotidiano por uma questão de

sobrevivência. A importância da presença dessas

habilidades cognitivas cotidianas foi percebida

por diversos artistas, como Yoshi Oida, que

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re

fa

nsaio na PUC-SP, dia 21/01/05. oto: Fernando Passos

chega a sugerir um treinamento a partir de atos

alizados no dia-a-dia, imaginando-os como sendo feitos para uma platéia

ida, 2001). Esse procedimento estaria relacionado à exploração de estados de

enção, concentração, percepção e consciência na realização da ação, evitando

ocedimentos exclusivamente automatizados. Ou seja, fazer o mesmo a cada

z, como se fosse singular, porque de fato é.

O que diferencia o improviso na vida do improviso no teatro é que, no

biente da cena, a improvisação visa à construção de uma linguagem teatral e

quer a percepção apurada dos fluxos de emoção, sentimentos e imagens que

zem emergir a consciência, tal como descreveu Damásio, e sua expressão por

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meio da linguagem teatral. Isso significa compreender que o corpo está

comunicando esses fluxos. O ator pode então enfatizar, mostrar com mais realce

o que está ocorrendo com ele, usando alguns sentidos e significados que percebe

como imagem de seu corpo no espaço e organizando conscientemente os fluxos

de emoções, sentimentos, imagens e pensamentos como linguagem teatral.

Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas. (op.cit., p. 69)

O corpo age contaminado pelo universo de informações e conhecimentos

das mais diversas potencialidades sígnicas, cruzando o tempo todo informações

do ambiente, mudanças de estado corporal e processos imaginativos que se

elaboram nas conexões do dentro e do fora. Isso pressupõe distinguir os

melhores instrumentos técnicos para treinar o corpo para a qualidade da ação do

ator e, conseqüentemente, para a construção da dramaturgia investigada.

O treinamento do clown e o espetáculo de improvisação permitem

investigar como habilidades cognitivas básicas do ser humano podem ser

organizadas e, a um só tempo, organizam um modo da linguagem teatral. Essa

foi, de fato, a hipótese que se anunciou a partir desta tese, justificando os

cruzamentos entre procedimentos práticos e teóricos de diferentes campos do

saber.

Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada. Dia 24/02/02

Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada. Dia 07/09/03

101

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3.2 Entrelaço: a construção das cenas

Conhecer este modo de operação do corpo implica criar modos de buscar

as soluções estéticas dentro das possibilidades do corpo naquele momento e não

idealizar indistintamente um modo de ação estética do corpo. Nesse aspecto,

evidencia-se, em todas as construções das cenas, uma relação profunda com os

acontecimentos mais evidentes do momento, seja no treinamento, seja na vida

pessoal, seja no desenvolvimento da pesquisa no doutorado. O ator joga para o

clown a possibilidade de divertir-se acerca de si mesmo. Nesse ponto, evidencia-

se que, para a criação de esquetes, é necessário também que o ator perceba

aquilo que o diverte, aquilo que seu corpo está experienciando com mais

intensidade e que pode tornar-se mote de uma cena. O ator pode estar atento a

alguma questão técnica do treinamento que o conduza à criação de um esquete.

Enfim, esses aspectos novamente enfatizam a importância de uma percepção do

tempo presente, do contexto de treinamento e de vida do ator para a criação

artística do clown. Isso é diferente de ter um “ideal de palhaço” a ser alcançado.

Aliás, sobre essa questão vale notar que não existe um modo único de

desempenhar um clown. Definir o que é um clown parece ser atualmente uma

tarefa improdutiva (Kasper, 2004; MacManus, 2003). As metodologias existentes

para a construção desse personagem também não são unânimes e únicas.

Sob essa perspectiva, a performance Roda peão5 (2002) foi um dos

resultados do treinamento do período da gravidez no qual a forma arredondada

do corpo sugeria um peão que, por um lado, associado ao seu movimento

giratório, estonteante, criativo e preciso, configurava uma metáfora dos

processos de mudança que a gravidez gera na vida cotidiana e, por outro, gerava

5 A performance Roda peão foi apresentada durante o processo de avaliação da disciplina Seminário de Estudos Avançados: Política dos signos: sistemas gráficos e visuais, ministrada pelo Prof. Dr. Amálio Pinheiro, 1º semestre de 2002, como forma de aprofundar a questão teórica relativa às intersemioses constitutivas da improvisação no teatro, compreendida como uma política de signos e relações sígnicas e construídas nos processos de treinamento. Essa reflexão permitiu redimensionar o valor estético da improvisação e da performance.

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um particular estado presença e atenção indispensável aos cuidados exigidos e

possibilitava uma pesquisa acerca da questão do eixo e do equilíbrio.

Essa performance não foi selecionada para compor o espetáculo Um dia

uma banana..., mas considero importante pontuar sua presença nesta tese, uma

vez que ela evidenciou a utilização adequada das condições e possibilidades

corporais no processo de criação de esquetes do clown. Essa criação se

caracterizou pela util

reelaboradas a partir d

A origem da

configurou a partir d

grupo de pesquisad

Semiótica da PUC-SP

cada qual trazia para

(dança ou teatro) a

desenvolvendo.

6 Grupo Sinergia se constituiacima referenciado, o grupo Todas doutorandas do mesmoobjetivo do grupo é a exposiçem outubro de 2004 com umade Dança e com as apresentaorganizado pelo Senac-SP, em

Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada. Dia 21/03/04

ização das experiências vividas durante o treinamento e

as técnicas incorporadas.

cena Chair and pillow and banana (2004) também se

e um contexto específico de pesquisa. Em 2004, eu e um

oras e doutorandas do Programa de Comunicação e

formamos o Grupo Sinergia6. Nos encontros do grupo,

discussão em grupo algum aspecto de sua prática artística

ssociada à prática da pesquisa acadêmica que estava

u em 2004 e, atualmente, é composto por mim e Nirvana Marinho. No trabalho contava também com Jussara Setenta, Isabelle Cordeiro e Adriana Bittencourt. programa na PUC-SP e cujas pesquisas configuram um caráter teórico/prático. O ão e a discussão prática/teórica das pesquisas realizadas. Esse processo culminou apresentação do espetáculo Interstícios, no projeto Teorema, do Núcleo Artérias ções dos trabalhos no I Congresso de Mídias: multiplicações e convergências, outubro de 2004.

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A pesquisadora Nirvana Marinho trouxe como proposta discutir a questão

política relacionada à problemática da cópia na dança contemporânea. Assim,

ela propôs refazer o espetáculo Chair and pillow de Ivone Rainer7 (1971) em seu

corpo e mostrar a mesma cena inserida no espetáculo Product of circumstances

de Xavier Le Roy8 (1999), coreógrafo que faz parte da sua pesquisa de

doutorado. O grupo aprendeu a coreografia e discutimos a questão da cópia a

partir dessa prática.

A partir dessa experiência, ficou evidente como cada corpo realizava o

movimento de acordo com seu treinamento pessoal. Sem que eu quisesse, a

minha movimentação saía mais cômica que a das minhas colegas. Propus-me

então a investigar como o clown performaria aquela movimentação. Esse foi o

início desta investigação. Naturalmente, ela foi se modificando quando do

ensaio do espetáculo Interstícios (2004), que preparávamos para apresentar

como resultado de nossos encontros. A cadeira e o travesseiro utilizados no

trabalho de Nirvana Marinho foram incorporados à minha cena de clown como

paródia, e a banana constituiu o toque “clownesco” da proposta, organizado

ainda por outras informações como aquelas referentes à exposição Natureza

morta9. Cenas de degustação e paródias são mesmo “pratos cheios” para um

clown.

7 Ivone Rainer nasceu em São Francisco em 1934. Ela formou-se em dança moderna em Nova York e começou o seu próprio trabalho coreográfico em 1960. Foi uma das fundadoras do Judsom Dance Theater em 1962, um movimento de dança que repercutiu na dança moderna por algumas décadas seguidas. Entre 1962 e 1975, Rainer apresentou sua coreografia pelos EUA e Europa. 8 Xavier Le Roy nasceu em Juvisy sur Orge (France) em 1963. Estudou bioquímica na Universidade de Montpellier onde conclui Ph.D. em biologia molecular em 1990. No mesmo ano, decidiu começar uma carreira em dança e começou a fazer aulas. Desde 1992 mora em Berlim e é dançarino profissional; seus trabalhos vêm sendo desenvolvidos como solos, parcerias com outros artistas e coreógrafos. 9 A exposição "Still Life/ Natureza-Morta" foi uma realização do Sesi -Serviço Social da Indústria em parceria com o Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC) e o British Council, e contou com as curadorias, respectivamente, de Ann Gallagher, do British Council de Londres e Kátia Canton, do MAC. Ficou aberta à visitação do público em geral no período de 3 de agosto a 7 de novembro de 2004, na Galeria de Arte do Sesi, Av. Paulista, 1313, São Paulo - SP.

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Embora nascida como paródia, Chair and pillow and banana acabou

ganhando autonomia em relação a essa característica. Deixando de ser apenas

uma paródia, o desafio foi recontextualizar essa cena. Daí surgiu a questão: será

que a paródia e a repetição são possibilidades de contextualizar a ação do

clown? Que outras formas o clown encontra para criar o contexto de sua ação?

A natureza-morta é, ao mesmo tempo, um dos gêneros mais tradicionais e um dos mais banalizados da história da arte ocidental. [...] O conceito surgiu entre os séculos XVI e XVII, particularmente naHolanda, para caracterizar cenas retratadas por artistas envolvendoalimentos, frutas e flores [...] No decorrer da história da arte ocidental, além de sua popularidade original durante o renascimento, a natureza morta ressurge em determinados momentos em que a discussão sobre os limites formais e a autonomia da arte ocupam aberlinda. [...] O jogo realizado pelos artistas a partir do uso de objetos cotidianos, confere à natureza-morta uma potência permissiva, transformadora. A natureza morta se torna um coringa para mesclar

-

se às mais densas questões que tangenciam a existência humana. Kátia Canton, Catálogo da exposição “Still life Ι Natureza –Morta”, Sesi, 2004.

uadrinho publicado no domingo seguinte ao atentado terrorista de 11 de setembro, nos EUA.

Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada. Dia 16/09/01. Q

Ainda seguindo a questão do aproveitamento do contexto de treinamento

e de vida do ator para a criação de cenas, a Palestra clown: Ser mãe é pão pão,

queijo queijo10 (2003) foi a primeira cena que fiz após o nascimento de minha

filha. Essa palestra foi responsável pelo surgimento das cenas Coreografia para

olhos e insônia e A tese das bolhas de sabão no espetáculo Um dia, uma

banana...

10 Uma segunda apresentação dessa palestra ocorreu como uma palestra/seminário apresentada para a disciplina Seminário de Estudos Avançados: Corpomídia, ministrada pela Prf ª Drª Helena Katz, no 2 º semestre de 2003.

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Desse processo de construção podemos destacar a importância das

experiências de vida no cotidiano para a construção da cena. Após o nascimento

de minha filha, os cuidados para com ela requeriam um estado de abertura e

prontidão. A cada momento, uma mudança. Esse período excedia em

imprevistos dos mais variados gêneros: mudanças de horário de alimentação e

sono, estratégias diferenciadas para ninar, brincadeiras, jogos e passeios

diversos. Não houve melhor treino para aceitar o imprevisível e lidar com ele.

Quando alguma situação parecia manter uma regularidade é porque já estava se

transformando.

Concomitantemente, no primeiro semestre de 2003, Paoli-Quito propôs

que o próprio clown palestrasse sobre a sua especialidade. Normalmente, o

clown é especialista em tudo, uma vez que não importa o que ele faz, mas como

o realiza. Naquele momento, minha especialidade era a maternidade. Tinha em

mãos um vídeo da ultra-sonografia, as fotografias de minha filha, os poemas

Poema enjoadinho, de Vinicius de Moraes, e Ser mãe, de Coelho Neto.

Conforme a improvisação se desenvolvia, eu apresentava esse material ou não.

Foi também das primeiras vezes que lancei mão da possibilidade de só jogar

com o que estava acontecendo. Não planejei realizar nada. O único enfoque da

palestra recaía sobre a crítica à idolatria do “ser mãe” a que o último poema

remete. No treinamento, a palestra contou com uma grande participação da

platéia. Essa participação tem também seu caráter pedagógico, por um lado, para

se aprender a interferir na cena e alimentá-la e, por outro, para se saber como

receber uma intervenção e sustentar-se ou apoiar-se nela. Reconhecer o jogo

proposto pelo parceiro e encenar.

Em resumo, a apresentação foi uma reflexão de um clown acerca da

experiência da maternidade. Questionando a (im)propriedade das metáforas que

referenciam (reverenciam) esse fato, demonstrou que ser mãe é pão pão, queijo

queijo. Uma forma mais “clownesca” do que as metáforas de Coelho Neto, que

aliavam a maternidade ao “padecer no paraíso”.

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Poema enjoadinho Vinicius de Moraes (1913-1980) Filhos...filhos? Melhor não tê-los! Mas se não os temos Como sabê-lo? Se não os temos Que de consulta Quanto silêncio Como os queremos! Banho de mar Diz que é um porrete... Cônjuge voa Transpõe o espaço Engole água Fica salgada Se iodifica Depois, que boa Que morenaço Que a esposa fica! Resultado: filho. E então começa A aporrinhação: Cocô está branco Cocô está preto Bebe amoníaco Come botão Filhos? Filhos Melhor não tê-los Noites de insônia Cãs prematuras Prantos convulsos Meu Deus, salvai-o! Filhos são o demo Melhor não tê-los... Mas se não os temos Como sabê-los? Como saber Que macieza Nos seus cabelos Que cheiro morno Na sua carne Que gosto doce Na sua boca! Chupam gilete Bebem xampu Ateiam fogo No quarteirão Porém, que coisa Que coisa louca Que coisa linda Que os filhos são! (Moraes,1974: 261)

Ser mãe

Coelho Neto (1864-1934)

Ser mãe é desdobrar fibra por fibra

o coração! Ser mãe é ter no alheio

lábio, que suga, o pedestal do seio,

onde a vida, onde o amor cantando vibra.

Ser mãe é ser um anjo que se libra

sobre um berço dormido! é ser anseio,

é ser temeridade, é ser receio,

é ser força que os males equilibra!

Todo bem que a mãe goza é bem do filho,

espelho em que se mira afortunada,

luz que lhe põe nos olhos novo brilho!

Ser mãe é andar chorando num sorriso!

Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!

Ser mãe é padecer num paraíso!

(http://www.secrel.com.br/jpoesia/cne01.html)

107

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Mas como um clown palestraria sobre a maternidade? Como um clown

palestra? Desafiou-me a improvisação da fala e do discurso sobre a maternidade.

Como alocar a fala a uma improvisação com o clown? Como o conceito de

corpomídia orienta essa criação e a leitura desse resultado?

Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada. Dia 13/05/01

Ao propor palestrar de acordo com as possibilidades surgidas no

momento, o desafio foi verificar um modo da ação do corpo no ambiente: a

improvisação como a resposta imediata, de acordo com as necessidades,

possibilidades e/ou objetivos surgidos no momento. O mote da maternidade era

apenas um contexto possível, próximo e gratificante. De fato, as questões

referiam-se ao modo como o corpo se ajusta a uma exposição cênica. Como

transita pela platéia e pelo seu próprio material de cena e se articula cenicamente

com eles? Ou seja, a essa palestra clown , deve-se a origem das questões que

orientam o atual espetáculo: como criar uma dramaturgia da improvisação por

meio do clown? Como perceber a dramaturgia que está sendo criada e tomar as

rédeas sem perder o fluxo da criação?

Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada. Dia 06/05/01

108

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O esquete Coreografia para olhos e insônia nasceu do desenvolvimento

dessa palestra. Nesse esquete, podemos ver o quanto as noites maldormidas,

próprias da maternidade, constituíram o mote da cena, juntamente com a intensa

pesquisa de olhos que vínhamos desenvolvendo no treinamento em que

investigávamos as possibilidades de criação de sensação, sentido e expressão

que os olhos contêm (vide descrição no cap.2, p.82). Investigávamos na época

como o posicionamento dos olhos expressava, interna e externamente, uma

sensação específica, por exemplo: girar os olhos para o canto direito ou

esquerdo, sugere um estado de desconfiança e, dependendo da posição do

crânio, pode indicar um desafio e assim por diante.

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Ensaio Aberto, dia 02/03/05. Fotos: Nirvana Marinho e Apresentação Tuca Arena, dia 30/06/05. Fotos: Edson Reis.

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A criação da cena A tese das bolhas de sabão deve-se à reincidência dessa

bricadeira nas atividades de minha filha. Fiquei especialista em bolhas de sabão,

tendo elaborado até mesmo uma teoria sobre os três estados dessa matéria (uma

pequena e delicada referência aos procedimentos científicos e acadêmicos da

construção de conhecimento à luz da máscara do clown). A palestra clown

acabou sendo proposta como um jogo com a platéia, a partir da oferta das

bolhinhas de sabão e como demonstração de habilidades adquiridas, como fazer

embaixadinhas com bolhas de sabão e outros jogos.

O clown prima por uma interatividade com o público que seja um convite

e não uma imposição, que seja uma exposição que o valorize, que o respeite e

não o ridicularize diante de seus pares; assim,

busca sempre cumplicidade com a platéia, de

modo que esta entre no jogo de forma voluntária,

afetiva, ingênua, tranqüila. Nesse sentido, as

bolhas de sabão foram um objeto bastante

adequado para essa interação.

No treinamento, Paoli-Quito solicita a

apresentação de cenas como um modo de pôr em exercício a questão da

presença cênica e algumas técnicas desenvolvidas no treinamento. Algumas das

cenas de Um dia, uma banana... já haviam sido criadas e executadas na

condição de treinamento, sem necessariamente algum vínculo com a tese atual.

O percurso de criação das cenas caracteriza-se pela curta duração, baseando-se

nas condições de criação do momento (alguma questão técnica que estava sendo

treinada, circunstâncias, a partir de estímulos diversos). Normalmente, está

associado a uma questão técnica do treinamento a ser exercitada, como ocorreu,

por exemplo, na cena O espirro, acompanhada pelo primeiro movimento da

Suite nº 1 para violoncelo11, de J. S. Bach. Ela surgiu do desafio do “nada a

Ensaio na PUC-SP, em 21/01/05. Foto: Fernando Passos

11 Gravação de Yo Yo Ma, 1997, Sony.

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fazer”, somente estar presente por meio de uma sutil movimentação circular do

cóccix. Dessa primeira proposição seguiu-se a possibilidade de a cena tornar-se

um espirro malsucedido ou um momento em que se propõe ao público apenas

escutar a música ou ainda alguma outra possibilidade que componha melhor

com espetáculo desenvolvido ao vivo.

Outro momento anterior a esta tese que merece ser lembrado aqui como

parte do processo foi a cena Coreografia literal, cuja música Debaixo dos

caracóis de seus cabelos 12, de Roberto Carlos, permaneceu. Ela foi criada, em

1999, para responder à pergunta: como um clown coreografa uma música, que

música escolher, quais os movimentos? Nessa cena, alguns elementos

recorrentes ao treinamento do clown são perceptíveis, como a repetição (no caso

do refrão), a literalidade entre o movimento e a letra da música e, seguindo esse

raciocínio, onde não tem letra, não tem movimento e o jogo com a música.

A escolha de O espirro e Coreografia literal para compor o espetáculo

deve-se, portanto, em parte, ao grau de desafio imposto pela sua realização. O

que conta nessas cenas é única e exclusivamente a presença. Em primeiro lugar,

só para ouvir a música. Em seguida, proposital e demasiadamente kitsch and

trash, exige presença para não cair nos exageros nem nos automatismos da

coreografia. Exige-se um estado de atenção ao movimento-imagem, ao cuidado

com a repetição e ao compartilhar com a platéia o que não pertence à

coreografia, por exemplo, o cansaço, a característica maçante da música etc.

Enquanto a primeira explora um modo de ação que pode ser aproveitado pelo

clown como “quanto menos, melhor”, a segunda explora outra possibilidade

“quanto pior, melhor”.

A cena Livros, melhor não lê-los surgiu nos ensaios com o diretor

Fernando Passos, completamente contaminada por estes entrelaçamentos:

doutorado, jogo, movimento-imagem, maternidade e clown. Levei um monte de

12 A versão utilizada é a interpretação de Caetano Veloso no CD Circuladô ao vivo, 1992, Polygram.

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livros para o ensaio e me propus a pesquisar as possibilidades de jogo entre o

corpo e o livro. Tanto quanto o corpo, os livros vêm carregados de conotações e

denotações sociais, culturais, econômicas e filosóficas. Em um meio de pesquisa

acadêmico, então, nem é preciso falar. Brincar com os livros foi a melhor forma

de expurgar essa aura. A um só tempo, os livros foram escolhidos a dedo: livros

que utilizei na tese, livros sobre pais e filhos, livros de jogos e a literatura lida

nesse período de quatro anos. Lê-los em cena para mim, de certa forma,

correspondia a verificar como compor as informações lidas nos livros para

recontá-las por meio de gestos, fragmentos de

textos, o vínculo com os outros e a emergência

das paisagens corporais.

EF

Prefiro afuncionar:

Quando celas

Podem um

(Os objepelo abandono.)

Também

grilos dentro – ela

(Eu sou beato em

Todas as coisas apropriada Deus. Senhor, eu tenho orgulho (O abandono me protege.

O que considero importante pontuar na cena

preocupação com a produção de sentido e significad

nsaio na PUC-SP, em 23/02/05. oto:Fernando Passos

s máquinas que servem para não

heias de areia de formiga e musgo –

dia milagrar de flores.

tos sem função têm muito apego

as latrinas que servem para ter s podem um dia milagrar violetas.

violetas.)

as ao abandono me religam

do imprestável!

) (op.cit. pg. 57)

dos livros é que não há uma

o que a relação com o livro

113

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induz como, por exemplo, jogar o livro no chão. A preocupação era o jogo com

objetos, as sensações, as brincadeiras possíveis, as imagens que geram e

alimentam as circunstâncias. É como o jogo inocente de uma criança com um

livro, sem noção do sentido e dos significados ali presentes. Não ignoro os

possíveis significados e sentidos que este “brincar com livros” pode trazer. No

processo, porém, nunca pareceu necessariamente a primeira coisa a mostrar.

Em qualquer das cenas, não são os sentidos e os significados que quero

mostrar, por exemplo, o erotismo da banana, ou questionar a prevalência dos

livros nos processos de conhecimento, muito pelo contrário. Os sentidos e

significados se fazem ou não na ação. A ação se constrói na relação do corpo

com o ambiente. Nesse espetáculo, em especial, o clown faz divertir pela criação

de situações inusitadas e poéticas, provocadas pelo encontro com os objetos da

cena, como a do saco cheio de livros, a da banana ou das bolhas de sabão,

acrescidas dos imprevistos advindos da platéia e da própria cena.

3.3 Entrelaçando: o espetáculo

Até o momento, foram pontuados os

entrelaçamentos mais evidentes relativos ao processo de

criação do espetáculo Um dia, uma banana... Sendo um

resultado possível e transitório, esse espetáculo também

segue um fluxo de construção a cada vez que é realizado.

Se o corpo é resultado provisório e transitório de acordos

com o ambiente, conforme a definição de corpomídia, o

espetáculo Um dia, uma banana... é e sempre será um

resultado transitório, não só porque se constrói a cada vez

u

a

EbTF

spetáculo “Um dia, uma anana...” uca Arena, dia 30/05/05. oto: Edson Reis

por meio da improvisação, como também porque, como

m corpomídia, está em fluxo contínuo de transição devido a sua relação com o

mbiente. Em última instância, todo corpo é um improvisador. O que o corpo do

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clown anuncia é essa qualidade mesma da natureza humana, elaborando um

treinamento específico para expor o que se passa muitas vezes no campo do

invisível (nas nossas redes cognitivas e perceptivas) no âmbito macroscópico. O

que se dá a ver são as incertezas, os processos aleatórios, improváveis.

Isso não implica, porém, que o treinamento deixe de ganhar algumas

regularidades no seu fazer. De certa forma, ensaios e apresentações tendem a

criar elementos estáveis e, portanto, recorrentes em todas as apresentações. Na

atual fase de desenvolvimento desse espetáculo, é possível, por exemplo,

identificar os elementos que estão se estabilizando, como a ação de tirar os

livros da sacola. O cuidado, entretanto, não é com o que se estabiliza, mas com o

que se cristaliza e ganha uma única forma de ser realizado, perdendo o frescor

de mostrar o inusitado durante a repetição. Nesse aspecto, a cena cristalizada

perde a possibilidade de percepção para o momento presente e para outras

possibilidades de fazê-la acontecer.

A preocupação nesse espetáculo não é, portanto, com o que é

comunicado, mas com o “como” é comunicado. O objetivo é sempre mostrar

como o corpo cria imagens na sua relação com o ambiente. Esse foco exige uma

grande atenção quanto ao que já foi estabilizado e com o que pode estar se

cristalizando. Um dos modos de cuidar desses aspectos é focar a ação nos fluxos

de movimento, imagens e idéias que se organizam a cada vez no momento da

cena. Nesse sentido, o treinamento ininterrupto é importante para a manutenção

do fluxo de criação e pesquisa, mesmo que algumas cenas se repitam a cada

apresentação. O que importa no espetáculo é atentar para os estados corporais

perceptíveis e, a partir deles, a construção da cena.

No momento do espetáculo, todos esses aspectos confluem para a

construção de uma comunicação cênica. Mais do que ficar julgando se há ou não

repetição, cabe perceber se aquela ação é coerente com a dramaturgia que está

sendo construída. Ou seja, cada apresentação desafia a construção do contexto

de ação do clown. Esse contexto não é dado, ele se cria no fazer, na relação do

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clown com os esquetes e os elementos de cena, assim como na relação com a

platéia. Nesse sentido, as apresentações corroboram para o exercício dessa

percepção.

Como parte dos procedimentos desta pesquisa, esse espetáculo foi

apresentado entre março e agosto de 2005, sendo três apresentações no Centro

Educacional Unificado Cidade Dutra (CEU- PMSP), Projeto Porta Aberta do

Estúdio Espaço 7, Semana de Artes do Corpo da PUC-SP, três apresentações na

Semana Cultural Monte Azul e seis no Projeto Recreio nas Férias da PMSP,

todas em São Paulo. Essa fase de apresentações trouxe uma outra qualidade para

os ensaios. Eles foram direcionados para questões pontuais, como treinamento

do fluxo movimento-imagem, pesquisa de movimentos diversos, utilizando ou

não os elementos da cena e exercício de improviso e cumplicidade com a

sonoplastia, enfim, procedimentos de treinamento como modos de descristalizar

ou trazer novas possibilidades para a realização das cenas.

O espetáculo Um dia, uma banana... é formado de cenas curtas e

improvisadas que acontecem aleatoriamente durante a apresentação. São elas: A

passagem, O começo, Livros: melhor não lê-los, Chair and pillow and banana,

A tese das bolhas de sabão, Meios e entremeios, Coreografia literal, O espirro,

Coreografia para olhos e insônia e O fim.

As cenas A passagem, O começo e O fim acontecem na ordem acima

disposta. Elas são demarcatórias. A passagem pontua um procedimento de

transição entre um estado de aquecimento do fluxo de movimento-imagem para

um estado intencional de comunicação desse fluxo. Trata-se de um processo de

concentração e pesquisa de movimento no qual não se ignora a presença do

público, mas se procura apenas descobrir o melhor momento para a colocação

da máscara. Isso ocorre quando percebo o fluxo e o jogo mais claro das relações

entre movimento, imagem e idéia e quando os olhos começam a expressar essa

percepção e atuar como comunicadores dessas relações. De certa forma, o

público presencia a construção do clown na cena.

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Ao que parece, nas apresentações que venho realizando, estar em cena

realizando essa pesquisa de movimento também conduz a platéia a um processo

de transição e concentração. Tenho dado preferência para esse modo de dar

início ao espetáculo do que começar diretamente com a máscara.

O começo é demarcado pela colocação da máscara, quando o clown

começa o jogo com a música e seu carrinho. A partir de então, as cenas se

desenrolam conforme o jogo com a platéia, de acordo com as sensações e

estados corporais e em concordância com a dramaturgia criada. Meios e

entremeios são cenas de passagem, de arrumação de cenário ou pausas conforme

a necessidade. O fim, como o próprio nome diz, marca a saída do clown de cena.

Como dissemos anteriormente, a dramaturgia de cada cena se constrói no

fazer. A orientação básica é a percepção dos fluxos de movimento-imagem, dos

estados corporais, das percepções das sensações e dos pensamentos que são

gerados na ação. As escolhas se fazem no âmbito dessas possibilidades que se

apresentam no momento. A linguagem do clown organiza e enfatiza as escolhas

e as ações em seu aspecto cômico, ou seja, o tempo cômico, o ritmo, o jogo, a

situação constrangedora ou inadequada do clown ou ainda alguma cena absurda,

hilária ou surpreendente que venha a ocorrer.

Por exemplo, na apresentação realizada no Espaço 7, quando fui jogar a

água no chão na cena A tese sobre bolhas de sabão, em uma troca de olhar com

a responsável pelo espaço percebi o seu desagrado, pois aquela ação poderia

estragar o piso. Mostrei ao público o problema e busquei uma solução: fui ao

lavabo buscar toalhas de papel. Posteriormente, tudo que caía no chão ou que eu

iria jogar passava pelo crivo da responsável e isso tornou-se um jogo. A cena

Chair and pillow and banana foi também permeada por esse jogo. Sem ter onde

jogar as cascas, eu as coloquei na boca. Como então comer a banana? Um

problema para o clown é sempre um bom achado. Novamente, recorri às toalhas

de papel já utilizadas para fazer o lixinho das cascas de bananas. Nesse exemplo,

utilizar duas vezes as mesmas toalhas de papel compõe com mais precisão a

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dramaturgia do espetáculo, como se aquilo estivesse planejado e não fosse

improvisação.

Cada uma das outras cenas, a cada vez, acontece de um modo diferente,

como um jogo proposto. Livros, melhor não lê-los é um jogo sobre as

possibilidades de seu uso, incluindo a leitura. A tese sobre bolhas de sabão

constitui um jogo com as regras acadêmicas e científicas de exposição de um

conhecimento advindo da pesquisa sob a óptica do clown. Chair and pillow and

banana constrói o seu jogo como uma disputa entre a música/coreografia e a

vontade do clown de comer a banana. O espirro joga com o nada a fazer e

Coreografia literal brinca com a tradução literal da letra da música pelo corpo.

Coreografia para olhos e insônia brinca com as possibilidades cômicas dos

olhos e do olhar. Tal como os jogos, as cenas têm algumas regras básicas e

pontos de apoio. É na sua realização, no modo como o jogo é desenvolvido que

elas demonstram a sua teatralidade, os seus sentidos e significados, o seu

aspecto cômico e poético e o seu divertimento, construindo uma dramaturgia

organizada pela linguagem do clown.

De certa forma, é no trânsito entre o pequeno e o grande,

o visível e o invisível, o que tem estabilidade e o que

desestabiliza que o clown se constrói.

O clown e o corpo.

A experiência artística e a cotidiana, sempre aliadas

na sua aptidão natural para realizar todo tipo

de inversões e brincadeiras que,

ironicamente, parecem

mais

importantes ...

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“Mosca dependurada na beira de um ralo –

Acho mais importante do que uma jóia pendente.

Os pequenos invólucros para múmias de passarinhos que os antigos egípcios faziam

Acho mais importante do que o sarcófago de Tutancâmon.

O homem que deixou a vida por se sentir um esgoto– Acho mais importante do que uma Usina Nuclear. Aliás, o cu de uma formiga é também muito mais

importante do que uma Usina Nuclear.

As coisas que não têm dimensões são muito importantes. Assim, o pássaro tu-you-you é mais importante por seus

pronomes do que por seu tamanho de crescer.

É no ínfimo que eu vejo a exuberância”. (op.cit. p. 10)

Ensaio Aberto. PUC-SP. Dia 02/03/05. Foto: Nirvana Marinho

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