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Roberto RequiãoGovernador do Estado do Paraná

Maria Marta Renner Weber LunardonSecretária de Estado da Administração e da Previdência

Presidente do Conselho Superior da Escola de Governo do Paraná

Regina GubertDiretora Geral

Sônia Maria Fedri SchoberDiretora de Departamento de Recursos Humanos

Marli Aparecida Jacober PasqualinGerente Executiva da Escola de Governo

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sCuritiba,

2009

Dados internacionais de catalogação na publicação Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira

Concurso Estadual de Contos e Poesias e Fotografias dos Servidores Públicos do Estado do Paraná (1. : 2009 : Curitiba, PR) Programa Servir com arte : trabalhos premiados. - Curitiba : Secretaria de Estado da Administração e da Previdência, 2009. 147 p. : il. ; 21 cm.

1. Contos brasileiros – Coletânea. 2. Poesia brasileira – Coletânea. 3. Fotografia – Coletânea. I. Título. CDD ( 22ª ed.) B869.8

Dedicamos este livro a todos os participantes deste concurso

Diretora do Departamento de Recursos Humanos Gerente Executiva da Escola do Governo

sumário

Prefácio.15

Apresentação.19

Comentários da comissão julgadora.23

Contos.

1º lugar - “Dona do tempo”.Maria Cristina H. Lacerda32

2º lugar - “Thomas”.Rita de Cassia Simões Martelini33

3º lugar - “Os olhos do porco”Raymundo Honorato Nogueira41

Menções Honrosas

“A velhinha e os ladrões pé de chinelo”Claudio Roza47“Amores mórbidos”Luciana Marquesa Silva49

“As roupas no varal”Cleusi Betenheuser51

“Galos e homens”Mauro Marcolino Carneiro55

“Inventário”Edmilson Rodrigues da Silva61

“O despertador”Everton Ribeiro65

“O peixe de Magrarida”Paulo Martins71

“Segunda-feira”Rafael Henrique Caneparo75

“Solidão”Silvia Montanari77

“Pedra de Espia”Hamilton Bonatto 81

“Rastros da cidade”Rodrigo Schmidt97

“Refletindo”Valter Cardoso99

Poesias

1º lugar - “Dom Quixote”Luiz Carlos Salami104

2ºlugar - “Palavras de verdade”Jane Maria Sprenger Bodnar107

3º lugar - “Lápis”Mário Sérgio de Mello108

Menções Honrosas

“Amor efêmero”Juliano Grus109

“Blackout”Orlando Pinheiro110

“Era outra vez, uma menina”Nelci Peripolli Godinho111

“Imagem humana”André Alves Pereira114

“Noite e poesia”Helaine Giraldeli Balla116

“Nuvem”Arlete Gomes de Souza118

“Perjúrio”Nelci Mello Tomadon119

“Queria”Rosemeire Tânia Ferreira120

“Rastro de estrelas”Hamilton Fernandes Filho121

“Rolinha”Cláudio José de Almeida Mello123

“Sigamos cigano”Maria do Rocio Novaes P. Ferreira124

“Urbe”Marcel da Cruz Fernandes da Conceição126

Menções Honrosas

“Amanhecer”Marcos Lucio da Silva133

“Bravo Trabalhador Paranaense agradecendo por mais um dia de Trabalho”Julio Cezar Val Carnieri134

“Campo de soja colhida”Sandro Amaral135

“Clássico e Moderno”Arnaldo E. Alves136

“Descanso”Liciane Kupiosz137

“Descendo o Nhundiaquara”Carlos Eduardo138

“Energia”Adriano César Buzzato139

“Igreja São Miguel Arcanjo”Cleidiane de Miranda140

Fotografias

1º lugar - “Ubá”Celso Lück Junior130

2º lugar - “Cenas Paranaenses”Jandira Tolin131

3º lugar - “Baía de Paranaguá em trânsito”Marcelo Conor Kawase132

“Queda e Elevação”Marion Teuber Stautt150

“Sabor de Paraná”Franciely Menezes Almeida151

“Vista do ponto culminante do Estado do Paraná”Alessandra Tathiana Villa Lopardo152

“Vida de pescador”Felipe de Moura Vieira153

“Iguaçu das borboletas”Fabiana Mafessoni141

“Ilha das Peças - Maré baixa no trapiche”Rita de Cássia da Maia142

“Inspiração Divina”Ana Maria Martins Lopes143

“Manhã de inverno”Douglas Gomes Daronco144

“Nascer do Sol em ponta de Ubá”Ana Maria Tozin145

“Outono Paranaense”Cláudio Roberto Dalla Stella146

“Paranaense lutador”Washington Martins147

“Pinheiros do Paraná”Jorge Luiz Rizzi Galerani148

“Preservação e vida”Yeda Ostan149

prefácio

Prefácio · 17

O programa Servir com Arte é uma oportunidade para os servidores, pois integra um conjunto de realizações da Secretaria de Estado da Administração e da Previdência com foco no desenvolvimento humano do Governo do Paraná. A fertilidade intelectual e literária não pode ser considerada uma surpresa, já que nos escaminhos de nossa alma habita, em muitos casos de forma latente, uma ou mais características voltadas para a arte. Representação expressa, a arte clarifica a relação do homem para com ele próprio, por meio de imagens visuais, auditivas e outras. De forma consciente ou inconsciente, também dirige a natureza psicológica e psíquica do ser humano e, portanto sua relação para com mundo. A arte é a representação da individualidade e do pensar, projeta para o coletivo a forma como se interpreta as suas experiências da vida, por meio da expressão artística é que o individuo se localiza no tempo e no espaço. É importante entendermos que, a oportunidade oferecida pelo “Programa Servir com Arte”, pode permitir que os corações dos nossos artistas servidores ultrapassem a fronteiras das tarefas cotidianas e possam se manifestar livremente na arte de reinventar a vida.

Marise Martins Brassanini

O programa Servir com Arte é uma oportunidade para os servidores, pois integra um conjunto de realizações da Secretaria de Estado da Administração e da Previdência com foco no desenvolvimento humano do Governo do Paraná. A fertilidade intelectual e literária não pode ser considerada uma surpresa, já que nos escaminhos de nossa alma habita, em muitos casos de forma latente, uma ou mais características voltadas para a arte. Representação expressa, a arte clarifica a relação do homem para com ele próprio, por meio de imagens visuais, auditivas e outras. De forma consciente ou inconsciente, também dirige a natureza psicológica e psíquica do ser humano e, portanto sua relação para com mundo. A arte é a representação da individualidade e do pensar, projeta para o coletivo a forma como se interpreta as suas experiências da vida, por meio da expressão artística é que o individuo se localiza no tempo e no espaço. É importante entendermos que, a oportunidade oferecida pelo “Programa Servir com Arte”, pode permitir que os corações dos nossos artistas servidores ultrapassem a fronteiras das tarefas cotidianas e possam se manifestar livremente na arte de reinventar a vida.

Sônia Maria Fredi SchoberDiretora do Departamento de Recursos Humanos

apresentação

Apresentação · 21

Mais que um concurso

É muito gratificante observar que o conjunto do funcionalismo tem respondido às ações de capacitação e valorização que o Governo do Paraná, por meio da rede da Escola de Governo, tem promovido. O Servir com Arte é uma das iniciativas, recente, que demonstra ter despertado o interesse, o engajamento dos servidores. Tivemos, agora em 2009, a segunda – e como a primeira, exitosa - edição do evento. Um evento que não se resume a um concurso cultural. A premiação, claro, é um atrativo, mas o Servir com Arte vem cumprindo a missão de se tornar um incentivo à manifestação artística, à reflexão, à criatividade – que todos nós temos, às vezes aflorada, às vezes adormecida. Os parabéns aos contemplados e aos demais participantes; um muito obrigada à Secretaria da Cultura, à Caixa Econômica Federal, à Paraná Educativa e à Fundação de Apoio ao Desenvolvimento da Universidade Estadual de Londrina (Fauel), por serem parceiros nessa ação!

Maria Marta Renner Weber LunardonSecretária de Estado da Administração e da Previdência

É com grande prazer que a Secretaria de Estado da Cultura anuncia a publicação do livro com os vencedores da segunda edição do Concurso Servir com Arte. Este livro é o instrumento final de um processo cultural de estímulo a produção e surgimento de novos talentos na literatura paranaense. Começa com as inscrições dos nossos servidores públicos - poetas e escritores talentosos e, muitas vezes, ainda desconhecidos. Segue com a avaliação da obra por um júri competente. E finaliza com o poema ou o conto ao encontro do seu leitor. Ou seja, Servir com Arte é mais que um concurso. É, para todos nós, um enredo emocionante com início, meio e final feliz. Boa leitura a todos!

Vera Maria Haj Mussi AugustoSecretária de Estado da Cultura

Situo-me entre as pessoas que se emocionam, acreditam, valorizam e principalmente apóiam a arte em suas mais variadas manifestações culturais. Senti-me orgulhosa quando o Projeto Servir com Arte deixou de ser embrionário e ganhou vida, impulsionado por inúmeros servidores que consciente ou não colaboraram para com esse nascimento enviando seus trabalhos. Hoje posso dizer: enfim, nasceu o Servir com Arte. Começou pequeno. Em seu primeiro ano o Projeto contemplava duas categorias. Ainda no início sabíamos do potencial, mas ter total consciência de volume e aceitação era muito difícil de se mensurar. Mas enfim, nasceu o Servir com Arte. Como uma criança foi ganhando forma, força e hoje estamos em sua segunda edição de muitas que ainda virão. O sucesso desse Programa não se deve a uma coordenação competente ou a uma equipe especial. O sucesso se dá em cada linha escrita, em cada vírgula, em cada frase, em cada poesia ou num click especial, materiais que muitas vezes ficam meses e meses dentro de gavetas para somente mais tarde serem valorizados. Nossa busca por talentos dentro dos quadros do serviço público estadual não terminou. Há muito material para ser publicado e a cada dia novos são produzidos. Por isso estou certa da continuidade desse Projeto, pois acredito que ir em busca de talentos no quadro de servidores é uma descoberta que vai além das funções do cotidiano de cada servidor desta forma podemos ver em outras dimensões o quanto o Servidor/cidadão desenvolve a sua plenitude como pessoa, servem a sociedade aprendem a desenvolver no seu trabalho o Servir com Arte.

Marli Jacobber PasqualimGerente da Escola Executiva de Governo

comentários da comissão

julgadora

Comentários da Comissão Julgadora · 25

Afirmei, certa ocasião, que o escritor costura palavras, retalhos colhidos no baú dos devaneios, e faz, do texto, agasalho das esperanças. Seja poeta ou prosador, está sempre unindo palavras soltas, anônimas, enquanto sufocadas na multidão que desfila, disciplinadamente, no dicionário. De repente, a palavra é escolhida, selecionada, distinguida pela imaginação do escritor, cria vida própria, personalidade, e vem estabelecer parceria criativa, formando desenhos na tapeçaria do sonho.Aliás, Affonso Romano de Sant’Anna diz isso mesmo, em conto publicado no livro “Que Presente te Dar” (pág. 209, Editora Expressão e Cultura, Coleção Páginas Amarelas, Vol. 40): “elas (as palavras) não podem ficar por aí, desprezadas no amorfo dicionário; têm que ser desfrutadas, expor seu belo corpo à luz do nosso prazer”. Certamente por reconhecer essa possibilidade de recursos ilimitados, Paulo Venturelli também se manifesta, dizendo: “... as palavras são massa para modelação de instantes.” (“Composições para meus amigos”, pág. 59). Em prosa ou verso, cada participante deste segundo concurso “Servir com Arte” acalentou sonhos, imaginou a obra, modelou percepções, manuseou símbolos e, finalmente, pôde observar o resultado da tessitura. Por isso, com ou sem premiação, pode acalentar a certeza de que seu trabalho é o seu manto pessoal, único, exclusivo, que poderá aquecer novos sonhos e despertar mais inspiração para outros desafios.

Adélia Maria WoellnerPoetisa e Escritora

A arte é por excelência uma atividade que acontece nos altos degraus de nossa mente. O uso da palavra para a montagem de uma escultura estética é das artes a mais difícil, mas também a que mais realiza o esteta mais sensível. Tomar contato com a criação literária de servidores dos mais diferentes rincões do Paraná, já é, por si só, uma atividade prazerosa. Contudo, posso dizer que a leitura de centenas de poesias e contos me deixou feliz e esperançoso sobre a literatura paranaense e brasileira. Um concurso como este escancara para todos nós o fato inegável que estamos vivendo momentos de exuberância criativa no seio dos nossos servidores que sabem como ninguém, na sua atividade, diária abrir lacunas para “servir com arte”.

Airo ZamonerEscritor e Editor

26 · Comentários da Comissão Julgadora

É louvável a iniciativa da Escola de Governo de estimular a cultura, em especial a literatura, entre os funcionários estaduais, mostrando que, além do trabalho cotidiano, há uma brecha para a criação e a vivência da arte. Essa valorização da sensibilidade e do senso estético contribui para a integralização do ser humano, mesmo que ele viva numa sociedade em que, muitas vezes, duvidamos seja um ambiente propício ao desenvolvimento da imaginação e do senso estético. Foi possível verificar essa prática estética nos textos analisados. Embora nem todos pudessem exibir uma qualidade apreciável, deve-se valorizar a intenção de escrever algo que superasse o texto informativo e burocrático. No entanto, nem sempre a boa intenção resulta em um texto literário. A comissão verificou que muitos textos denunciavam a falta de leitura e conhecimento de literatura. Outros apresentaram dificuldades de realização na linguagem – matéria-prima indispensável da literatura – por isso contos e poemas ficaram em nível precário. A leitura dos originais comprovou que, para muitos, a poesia reside na expressão sentimental. Foram muitas dores, pássaros e choramingas que não constroem um bom texto, mesmo que sirvam de válvula de escape emocional. Com os contos, ocorreu uma profusão de narrativas mal construídas sobre enredos fracos e péssima construção de personagens. Ao final dos trabalhos, porém, alguns textos sobressaíram com qualidade textual, de pensamento, de elaboração estética. Foram os premiados. Sempre com distinção porque ultrapassaram a média dos originais apresentados e analisados. Acredito que a iniciativa deva continuar para manter estimulados os verdadeiros escritores. Para os demais, resta tentar novamente escrever , escrever, escrever. E concorrer.

Marta Morais da CostaProfessora e Pesquisadora Sênior da UFPR

Neste imenso cenário, que é o Paraná, multiplicam-se cenas ao infinito. Mas essa cenas não passam desapercebidas aos olhares dos servidores do Estado. O concurso de fotografia proporciona uma dupla oportunidade: a dos servidores fotógrafos exporem sua arte e a de, nós outros, apreciarmos uma boa arte. Hoje em dia, com os equipamentos de captação de imagens mais acessíveis, quase todos podem se dizer fotógrafos. Mas o olhar fotográfico requer um maior apuro técnico e estético, um pouco mais de estudo muita intuição e dedicação. Tudo isto eu percebi e vi na maioria das fotografias que foram inscritas e enviadas. Em muitas se percebe a limitação da máquina fotográfica e de

Comentários da Comissão Julgadora · 27

conhecimento técnico. Mesmo assim, o que transparece é o olhar fotográfico. A percepção de que os momentos únicos, mesmo os universais, acontecem aqui no Paraná e são vistos pelos nossos servidores fotógrafos. Eles têm olhar e nos proporcionaram o prazer de compartilhar sua arte.

Alberto Melnechuky Fotojornalista, Fotógrafo profissional e Amante da fotografia

Participar de um evento como este e ter a opotunidade de mostrar juntamente com outros servidores que existe entre eles um número de funcionários que tem talento e criatividade. Na condição de fotojornalista ha mais de trinta anos, e sempre exercendo a atividade profissional, fico realmente contente em ver que em nosso estado, o Governo do Estado se dispõe por meio desta Coordenaçao da Escola de Governo, a realizar com maestria um concurso específico; de fotografia e literatura, visando unicamente: descobrir e permear esses talentos - estimular e apoiar a participação de forma igual e qualitativa. Em muitas das imagens que a Comissao Julgadora, na qual estive analisando, pessoalmente - tive o cuidado de buscar (selecionar) o diferente, o nao óbvio, o que me pareceu coerente e de alguma maneira remetesse ao tema proposto: Cenas Paranaenses. Alguns devem estar se perguntando que “cenas paranaenses” sao essas? A meu ver o que foi selecionado, vai ao encontro de um resultado harmônico e simples. Onde, muitas imagens bem definem esse ser e viver no Paraná. O calendário e esta publicação é perene - personifica o “olhar” e o momento de prosa e poesia de cada autor em sua individualidade. Justifica o motivo para o qual se propôs o “Concurso de Fotografia “ e esperando que o Governo mantenha essas açoes de incentivo à criatividade de seus muitos colaboradores, verdadeiros artistas anônimos. Muito me honrou participar desta Comissao do “Projeto Servir com Arte - Fotografia” e ficar em contato com a produção de gente por todo este nosso Paraná. Parabéns a todos que participaram.

Alice Varajão Fotojornalista

Professora de Fotografia Teoria e Técnica da UniBrasil e Pós Graduada

em Língua Portuguesa PUC PR

28 · Comentários da Comissão Julgadora

A fotografia no início era uma atividade que somente os mais abastados podiam usufruir. Equipamentos caros e insumos raros faziam com que a atividade fosso pouco difundida. Por muito tempo, para expressar-se através da fotografia, além de talento, era necessário pertencer a uma familia abastada. Os tempo foi passando e ela foi se tornando cada vez mais acessivel e acabou incorporando-se em nossas vidas revelando grandes fotógrafos. Finalmente surgiu arrasadora a fotografia digital e com ela, a democracia total. Esse concurso é a prova desse movimento: Centenas de pessoas comuns munidas de suas câmeras digitais amadoras ou não, pouco importando qual o equipamento utilizado. O que realmente importa é o olhar, e esse concurso deu a grande chance de muitos mostrar seu talento, revelado no belo livro que estamos tendo o prazer de folhear.

Pedro NossolDesigner e Fotógrafo

contos

Contos · 31

1° lugarMaria Cristina H. Lacerda

Secretaria de Estado e SaúdeCuritiba

Resolvi largar o medo para trás, dentro da mala, em qualquer lugar... Tirei da bolsa o caderno, o lápis e a borracha: material reservado, sempre à mão ( como me foi ensinado) caso surgisse o desejo de escrever. Resolvi fazer o tempo andar mais depressa. Foi nisso que deu... O ônibus chegaria às cinco horas da manhã. Para não acordar minha amiga tão cedo, no dia do seu aniversário, disse que chegaria às seis. Viagem tranquila, em dia de semana, estrada vazia: chegamos às quatro e quinze! Grudei na poltrona. Não querida descer. Mas a placa lá, bem grande:“ARARANGUÁ”. Fiz de conta que não sabia onde estava. Afinal eram quatro horas da manhã! Devo estar enganada, ainda com sono, pensei. A porta do ônibus se abriu. Uma voz bem forte e animada – de quem iniciava a jornada de trabalho – falou em alto e bom som: ARARANGUÁ! Não havia mais dúvidas.Era aquele mesmo o meu destino. Fui obrigada a descer. O motorista viu o susto estampado no meu rosto quando saí do ônibus e entrei no silêncio e no vazio daquele lugar. Gentilmente me levou até o guichê, falou com o funcionário – o único naquele horário – voltando logo para sua atividade. Fiquei em pé paralisada, com a aparente tranquilidade de quem iria permanecer ali por pouco tempo. A quem queria enganar? Algumas possibilidades vieram à minha cabeça: pegar um táxi e viajar 30 quilômetros até a cidade onde ficaria hospedada? Ligar para a amiga e tirá-la da cama? Ir de ônibus? Nenhuma das alternativas. Olhei para um lado: um morador de rua dormia num banco enrolado em mil e um trapos. Alguns homens andavam de um lado para outro: ladrões à espreita de suas vítimas? Trabalhadores indo cedo para o serviço? Ou seres perdidos no tempo como eu ?

“Dona do Tempo”

32 · Contos

No vidro da lanchonete – toda rodoviária tem uma – um “Jesus Te Ama” fazia sua silenciosa pregação. Na televisão, uma comédia grotesca. Frio da madrugada. Um relógio que não anda. Sentei agarrada na bolsa, apreensiva ainda. Agora somos eu e dois cachorros magricelas, enrolados em suas próprias tripas, dormindo sobre um tapete de rodoviária. Tive que rir sozinha diante dessa cena... Olhei para o relógio: quatro e trinta e oito! é a última vez que olho para o Relógio, pensei. Acabou a comédia, veio a Luluzinha, outros desenhos, Teleaula: meio ambiente, inglês... Continuo mergulhada em meus pensamentos. A bolsa agora está jogada na cadeira ao lado. Não há mais perigo algum. O frio insiste em nos visitar. Sonho com uma xícara de café com leite bem quente. São seis horas da manhã. Fiquei dona do tempo. A cidade começa a acordar. Sinto-me em casa.

Contos · 33

2° lugarRita de Cassia Simões

Martelini

Secretaria de Estado da EducaçãoCambé

“Thomas”

Paranaguá, agosto de 2006. Domingo. Chove. É manhã de inverno e folheio um livro que jamais terminarei de ler. Poucas coisas eu trouxe comigo, quando deixei a Áustria, há alguns anos; entre elas, o livro que agora releio. Pensava em começar vida nova, sem reminiscências. Bobagem. Certas coisas subsistem. Dobra o sino da igrejinha e os meus olhos procuram o relógio, como se o passar do tempo me importasse de verdade. Da sacada, vejo os barcos que se desenham quase já imperceptíveis no horizonte embaçado. Volto ao livro. Escrito em alemão, está meio amarelado e um pouco marcado pelo ato da releitura, mas não destruído. “Encontro”, esse é o título. A capa traz a imagem da Ópera de Viena, com seus contornos dourados, saída de um cartão-postal. Nunca soube ao certo a relação dessa imagem com o livro, mas sei que ela me agrada. As páginas são de folhas simples, em papel-jornal, numa bonita edição. Fecho o livro, cuidadosamente, e caminho pela Ferdinandstrasse, como em outros tempos. Era uma rua calma, onde as badalações da capital da música clássica não importunavam os amantes do silêncio. Vivendo ali por alguns anos, jamais presenciei algo que me trouxesse dissabores. Lembro-me que, numa tarde de primavera, voltando da universidade, notei que novos vizinhos se mudavam. A mobília era bem antiga, talvez de séculos passados, e também bem pouca. Mãe e filho, ele paraplégico, esperavam aquele descarregar infinito das coisas menores, contidas em várias caixas de papelão. A cena do garoto louro, de olhos azuis ligeiramente puxados e mãos pendentes, naquela cadeira de rodas, me fixou onde eu estava. Já não via a mudança e o vai-e-vem dos entregadores, quando, de repente, sua mãe, num gesto simpático, acenou para mim, trazendo-me de volta. Chamava-se Marie e aparentava uns quarenta anos. Era viúva, de origem eslava, e procurava se restabelecer com o filho único numa cidade grande, onde não faltassem bons médicos. [omas tinha vinte anos e desde os quatro havia perdido o movimento das pernas, devido a

34 · Contos

uma doença rara que, aos poucos, ia lhe atrofiando os demais membros. As mãos pouco se movimentavam e isso o tornava dependente de sua mãe para quase tudo. Ela não se queixava e jamais perdia a esperança de vê-lo curado.

Contos · 35

Aproximei-me de [omas e abaixei-me diante dele. Tinha uma beleza indefinida; uma mistura de seriedade e tristeza, uns olhos que falavam. [omas era feito de olhos. Sorri e lhe toquei as mãos, me apresentando. Seu rosto permaneceu imóvel e receei o estar aborrecendo. A mãe logo me explicou que seu filho sempre reagia assim diante de estranhos e que raramente tivera amigos. As pessoas se aproximavam dele com atitude de pena e isso o irritava profundamente, assim, preferia, muitas vezes, a solidão. Ele jamais sorria; as poucas palavras que dele ouvi naquele dia eram monossílabos desarticulados e sem doçura, como se falar lhe fosse insuportável. No outro dia, fui convidada para o primeiro almoço na casa nova, mas recusei, temendo incomodar os novos vizinhos. Não faltariam oportunidades, pensei. E, por mais de uma semana, ainda que sem vê-los, não me esqueci completamente daqueles olhos; mesmo mergulhada em estudos e nas publicações quinzenais para o Kurier sobre literatura alemã, eu pensava em [omas. Entre um rabisco e outro que eu traçava para o jornal, às vezes, sentada à escrivaninha, eu fechava os olhos e o via andando de bicicleta e se divertindo com os outros rapazes da vizinhança. Como seria, se pudesse andar? Nas semanas seguintes, notei que, sempre ao voltar dos meus passeios matutinos, o encontrava tomando sol, em sua cadeira, ora observando os transeuntes ora com os olhos voltados para o chão. Às vezes, o cumprimentava de longe e ficava esperando um sinal, sem esperança. [omas jamais respondia, e fixava o olhar em um ponto, demonstrando uma indiferença que não estava nele, eu sabia. Um dia, conversando com Marie, soube que ele sempre lhe pedia para levá-lo ao jardim, às onze horas. Ela o atendia, ainda que isso a preocupasse, pois ele não queria sua companhia enquanto lá permanecia. Era exatamente a hora em que eu retornava, depois de uma agradável caminhada pelo bosque. Poucos dias depois, resolvi não sair para caminhar. Era uma bela manhã de março ensolarada; a Ferdinandstrasse exalava perfume de jasmim e as hortênsias contornavam os quintais com várias cores. Da janela do meu quarto, observei os movimentos de [omas. Onze horas.

36 · Contos

Lá estava ele em sua cadeira e, com um leve gesto de cabeça, pedi para que a mãe o deixasse sozinho. Em atitude angustiada, ela levava as mãos unidas à boca e fazia algumas recomendações, mas [omas parecia não ouvi-la. Assim que a vi sair, desci ao jardim. Tento agora me recordar de como os abordei... Aqueles olhos! Sentei-me no banco do jardim, bem de frente com a cadeira de [omas e, por uns instantes, não trocamos palavra. O que dizer para um garoto condenado a viver daquele modo? O que poderia lhe interessar? Mas ainda assim, arrisquei: _ “Sempre toma sol nesse horário?” Ele mexeu com a cabeça, indicando que sim, mas sem me dirigir o olhar. Percebi que suas mãos eram bonitas, com unhas bem feitas e nem um sinal de hematoma. Sempre se vestia com camisas brancas e calças escuras, e trazia os cabelos escovados com apuro. Notava-se ali o carinho e a dedicação de Marie, contrastando com a maneira ríspida de [omas a tratar, como a lhe dar ordens ou culpá-la por seu estado. Um pequeno movimento de [omas e um livro deslizou por detrás de sua cabeça, que era onde ele o mantinha, provavelmente, quando não o estava lendo. Ele o segurou entre as mãos, com os olhos sempre fixos no chão, e perguntou: _ “Já leu Dostoievski?” E abriu uma página sinalizada com um marcador. Eu já havia lido alguns romances russos, inclusive o que [omas tinha entre as mãos, O Idiota, e comentei: _ “Tenho lido muita teoria e poucas obras. Isso não é bom. Preciso revisitar alguns clássicos, dizem que a releitura é essencial”. Uma coisa me intrigava: como um menino, em semelhante situação, poderia se interessar por leituras tão complexas? Falamos sobre livros por quase uma hora e, às vezes, ele se demorava concluindo uma frase; as palavras lhe saíam com muita dificuldade. No entanto, a intelectualidade de [omas sobressaía-se. Parecia-me que ele sempre estivera lendo. Impressionava-me sua paixão pelos clássicos, quando me recomendava os “livros imortais” que, segundo ele, “ninguém deveria morrer sem ler”. E acrescentava:

Contos · 37

- “Não há como fugir dos clássicos... De uma forma ou outra, são eles a referência que temos para buscar as demais leituras. Quando lemos um autor desconhecido, nosso sistema de comparações tende a encontrar referenciais para aquela fala. Um cânone não se firma do nada, é preciso critérios. Se uma obra é reeditada, com o passar dos séculos, é porque algo há nela que sobrevive; que despreza as constantes mutações da espécie e a efemeridade dos costumes; que se impõe e requer seu espaço; que precisa ser transmitido, de geração a geração, como se fosse uma lei de Deus para os homens. Um clássico é um porto seguro, um manual de boa literatura”. Seus olhos saíam do chão e buscavam um ponto qualquer, como se precisassem descansar depois de tanto tempo fixados no mesmo lugar. Tudo nele parecia começar pelo olhar. Era inquestionável a beleza daqueles olhos azuis, felinamente puxados. Desde a chegada de [omas, aquelas manhãs de primavera eram dedicadas às nossas conversas literárias, em frente ao jardim, na volta da caminhada. Ele já havia lido Guimarães Rosa, um de seus autores estrangeiros preferidos, mas muitas coisas haviam ficado obscuras, em certas passagens de Grande Sertão: Veredas, por exemplo. A tradução de Günter Grass era excelente, segundo ele, mas ainda faltava compreender num sentido amplo os neologismos criados por Rosa, comprometidos pela tradução. Essa doce tarefa nos rendia semanas! Sem interromper, ele observava a minha explicação, registrando cada detalhe em seu pensamento. Ainda guardo na memória sua opinião sobre as traduções... Eram boas, quase sempre, mas nada havia como ler as obras em suas línguas-mãe, carregada de sentimentos e regionalismos cujo entendimento só pertencia a um nativo, em sua totalidade. [omas planejava aprender português e adentrar o universo roseano, que ele tanto exaltava. Em um desses dias primaveris, ele me revelou que não sentia inveja daqueles que podiam andar, pois, ao menos ali, naquela cadeira de rodas, podia ler sem parar; sem se preocupar com outros afazeres cotidianos. Foi então que me contou sobre sua outra atividade: ao anoitecer, ditava a sua mãe umas linhas contendo os pensamentos

38 · Contos

que lhe vinham à mente, enquanto conversávamos no jardim. Falava com firmeza; jamais se emocionava e, ainda que não usasse palavras ásperas, sempre trazia uma angústia reprimida ao suspirar, como se fosse indiferente aos acontecimentos, à vida fora dos livros. Nessa mesma época, precisei me afastar de Viena por dois ou três meses. Pela universidade, faríamos uma excursão a várias cidades importantes, entre elas, Estrasburgo, onde visitaríamos a casa em que Goethe vivera. Na verdade, tratava-se de uma extensão das aulas do curso de Literatura que eu frequentava; um trabalho de conclusão de curso. Em Frankfurt, por exemplo, editaríamos a primeira revista literária da Universidade de Viena, composta em solo alemão. [omas entendeu o meu projeto e me abraçou forte, desejando-me boa sorte e boa viagem; ele sabia que, ao voltar, muitas coisas eu lhe contaria e isso mitigava a tristeza, ao nos despedir. A chuva diminui e o canto ainda tímido dos pássaros desafia os trovões distantes. Paranaguá silencia. Abro o livro que tenho entre as mãos, numa página tantas vezes relida: “Ela me dizia coisas antes por mim inimagináveis sobre o estilo roseano de escrever. Compreendi então que até aquele momento não tinha lido Grande Sertão: Veredas, mas apenas o percorrido, como se percorre uma estrada, sem saber aonde ir. Desde então, eu quis relê-lo. Relê-lo para encontrá-la”. Fecho o livro. Há cinco anos releio essas linhas tão bem traçadas e carinhosamente dedicadas. Nos primeiros dias de minha ausência, havíamos nos comunicado por e-mail, escritos por Marie; ou então eu ligava pedindo notícias dele. [omas jamais falava ao telefone. Depois de algumas semanas, notei que as respostas não chegavam e as ligações eram atendidas pela secretária eletrônica. Imaginei que estivessem viajando em busca de novos tratamentos e, por um tempo, não entrei em contato. Meses depois, na volta da Alemanha, não encontrei [omas em sua cadeira, em frente ao jardim, como supus que me esperaria. Não havia ninguém em sua casa e nas janelas já não se viam as cortinas. Subi ao meu quarto e, ao abrir a porta, encontrei muitas correspondências espalhadas pelo chão. Entre faturas, postais e extratos bancários,

Contos · 39

havia uma carta de Marie. [omas havia falecido no início do verão, algumas semanas antes do meu retorno. Ele estivera internado devido a uma insuficiência respiratória e, dois dias antes da alta médica, tivera complicações e não resistira. Junto à carta, um embrulho. Um volume único de um livro postumamente publicado. Como sabem, trata-se do livro que tenho em mãos agora, ao escrever.

40 · Contos

Contos · 41

3° lugarRaymundo Honorato

Nogueira

Secretaria de Estado da EducaçãoJacarezinho

“Os olhos do porco”

“Não é possível recompor o passado no seu estado de pureza, pois as lembranças sempre veem corrompidas com outras vivências.” (Balão Cativo)

“Há dessas reminiscências que não descansam...” (M. de Assis)

Chegara o dia de matar o porco. __ Então, a gente acordava-se mais cedo, espreguiçava-se borralheiro e corria assanhado pra fora. Recordo que nesses dias ninguém parava quieto, um rebuliço! Minha mãe punha-se então a varrer o terreiro enquanto nós ficávamos daninhando ao redor e imaginando o porco: a barrigada do porco, as “fissura” do porco, os pés do porco, o focinho do porco, o rabo do porco, os olhos do porco, latas nevadas de banha, varais de linguiças espalhados pela casa, uma “carnaria” dependurada...! Mas a hora do porco morrer não chegava, e me vinha então aquela gastura... __ Quietos, seus bocós, parecem que nunca comeram carne na vida!!! É que a gente queria ver logo o toucinho espocar fervendo no tacho, o couro pururucando feito pipoca nos dentes, ossos estralando nos dedos, estrelejando pelos quatro cantos do terreiro. __ Quietos! E a gente cochichando prazenteiro, bulindo uns com os outros, cutucando-se, de línguas xeretas por detrás das paredes, suspirando, tensos, em incontidos solilóquios, salivando... Olhinhos cúpidos, mordendo e roendo as unhas. No tempo do seu avô... E minha mãe punha-se então a falar do seu tempo, de como se comiam os porcos naqueles longes vividos. Naqueles idos, ela dizia, a gente comia a carne do porco com ora-pro-nobis, com serralha, com angu, com quiabo, com tutu...

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E eu, espoleta, repetia a sua memória me escorregando de rastro e rimando garboso pelo assoalho da casa: Com farinha Com batatas Com feijão... (... com alegria, com inocência, com esperança, com sofreguidão!) Sim, e ela continuava na cozinha falando do seu tempo, preparando réstias de palhas secas, areando latinhas vazias, macetando o alho num pilãozinho de pau, falando sozinha, lembrava dos filhos ausentes, das “meninas” empregadas, dos parentes falecidos. E a gente escutando aquilo impaciente, de água na boca, imaginando... Às vezes, me vinha uma vontade explosiva de rir, uma coceira, uma ânsia de gritar! __ Quietos!!! Era uma conspiração, uma comoção: - a morte do porco - comentada, sonhada, esperada, contada ali nos dez dedinhos das mãos. (Com farinha, com batatas...) Lembro-me de que nesses dias o sol amanhecia lindo!... A natureza lá fora se despertava parecendo assim muito mais clara, bem mais intensa; tudo assim muito mais verde. Os morros arvoravam-se diferentes, muito mais iluminados! Deveras, nessas manhãs, pairava no céu certa transcendência. Aquilo era mesmo um dia de guarda, mais que um São João, que um natal! Não havia roça, não havia escola... O feriado era nacional! - O dia da morte do porco. E a claridade ia ali os poucos subindo e descendo as ladeiras, cintilando risonha pelos gramados, tomando conta daqueles trilhos orvalhados, irradiando aqueles humildezinhos cercados. _ E a gente irreverente, de olhos arregalados no terreiro, esperando o porco, “pelando” por ver chegar a hora, a hora “sagrada.” Mas a hora do porco morrer não chegava... E eu me coçando todo, bicho carpinteiro, arrastando-me outra vez de costas pelo assoalho, exibindo-me fogueta, abestalhado, assobiando e volvendo os meus olhos para um telhado vazio.

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E aí então a mãe me chamava com um grito e mandava eu escrever (botar) pra ela numa folha de papel pautado os ingredientes do dia (O que a gente depois deveria ir buscar lá na venda para o preparo do porco). Recordo que eu punha-me então principesco, todo ancho de cotovelos fincados à mesa, e com um lápis preto (bem apontado), ia traçando as letras no papel, ia fazendo ali uns arabescos... uns floreios demorados... Ah, eu deslizava os dedos liricamente sobre aquelas linhas. _ A lista das compras! _ Éramos, pois, naquele Paraná distante e perdido, rainhas e reis: monarcas de um império invejável, inexpugnável! - O porco. Em seguida, eu saía dali aos pinotes e voava de aleluias pro terreiro, e lá então saltava feito um saci num pé só, fazia diabólicas piruetas, me alvoroçava abobado num cavalinho de bambu, urinava indecente nos olheiros das formigas, tripudiava no barro, tacava “bolotada” nos outros, me rolava dentro de um balaio de milho, corria exibido pelos cafezais, cantarolava à beira do poço... __ Quietos, seus bocós, parecem que nunca comeram carne na vida!!! - “pito” que eu ali nem ligava e retrucava com uma pontinha de língua ranheta, hã-ã! _ Afinal, não era o dia de matar o porco?! Sim, nestes dias, os humores da gente mudavam, as pessoas ganhavam um novo rosto, uma cara nova, um novo tom, um semblante diferente, até a pele da gente parecia ganhar naquelas horas uma nova cor; e falávamos muito mais do que o habitual. Ah, eu me lembro........... eu me lembro................................................ Eu lia esta ansiedade nos olhos das pessoas, nos olhos daqueles colonos arremendados e sofridos, nos olhos da minha mãe, nos fúlgidos olhos da minha mãe! - Olhos anormais - vivazes - Olhos cuja luz só hoje agora me alcança. Olhos com os quais naquele tempo eu ainda não via! __ Quietos, seus bocós, parecem que nunca comeram carne na vida!!! E então, crianças maltrapilhas apareciam sorrateiras até o nosso terreiro. E ali, em silêncio, elas ficavam. Entretinham-se mudas, pensativas... à roda do chiqueiro. Algumas, empoleiravam-se tristonhas

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nos arames das cercas, olhinhos inquietos... Pareciam procurar ali qualquer coisa, quem sabe algum brinquedo (!) Olhares perdidos... _ Fingiam! Sim, elas fingiam! (Os olhos não mentem!) Olhos assim nunca me enganaram! Pois quantas vezes eu também... Ah! Naquele tempo eu sentia de longe o cheiro dos porcos, suas entranhas, aquelas vísceras viscosas lavadas na água da bica com o sumo ácido do limão e espetadas depois aleatoriamente pelos pregos nas paredes. Toucinho salgado espalhado pelos esteios da casa. Chouriços enroscadinhos em varais de arames. Tripas secas, enfumaçadas, parecendo cobras azuladiças escorrendo-se suculentas pelos caibros do telhado. Pelancas cruas respingando-se pelas gretas das ripas, engordurando frestas e vigas... (...) Agora, era a filha da vizinha quem chegava lá em casa. A italianinha vinha à nossa porta (com aqueles olhos azuis!) com um bebezinho birrento no colo. E ela “plantava-se” bem ao pé da escada, olhares evasivos... Recordo que ela ficava ali o tempo todo como se... Como se ela também de nada soubesse! Como se ela também de nada precisasse! - Fingia. Aquela italianinha também de fato fingia! E lá no fundo do chiqueiro estava o porco indiferente, empapuçado, “olhos cegos de banha” comendo a sua última ração de farelo de arroz. Logo o seu Januário viria e, como num ritual religioso, daria bom dia a todos, olharia solene pro sol, coçaria lento a cabeça, arregaçaria as mangas da camisa e tomaria vagarosamente a direção do chiqueiro. Então, alguém ajuntaria as palhas secas e, Oh! E os grunhidos finais do porco. _ Deus! Eram gritos aflitos, exasperados, horríveis, guinchos esganiçados que ecoavam alarmando toda colônia; enquanto uma cachorrada encarniçada ficava em volta daquilo latindo esfomeada e babando uma gosma nojenta, querendo abocanhar o animal ainda vivo! _ Um animal abalado, estremecido, agora de olhos esbugalhados, esguichando um jato macabro de sangue nas mãos do Januário, um sangue vermelho e quente que escorria. E o porco ia ali então lentamente se apagando, apagando de vez os sentidos, fechando pungentemente os olhos. _ Uns olhos doloridos...

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Uns olhos sem brilhos... Os olhos de um animal inocente que morria. _ Olhos autênticos, olhos verdadeiros. E era a mais pura alegria!

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Menção HonrosaClaudio Rozza

Secretaria de Estado da FazendaCuritiba

“A velhinha e os ladrões pés de chinelo”

Acendesse a luz, os ladrões, pés de chinelo, fugiriam, na certa. Feriadão prolongado, a casa no escuro. Os bandidinhos testaram. Várias vezes, três a quatro horas da madrugada, acionaram a campainha. Ora, viajaram todos. A velhinha, temerosa, nem respirava. Malditos! Por todos os anjos, vão embora! Pularam o muro para dentro do terreno. A velhinha assistia à movimentação lá fora, protegida pela cortina. De fora, os marginais tentavam olhar para dentro. Tudo escuro. Foram para trás da casa. Pegaram o botijão de gás. Levantaram sobre o muro, e foram embora. Graças a Deus. Voltaram. Apertaram a campainha. A velhinha, quieta. A tortura continuava. Olharam pela janela, novamente. A velhinha fez barulho com a cadeira. Nada. Não escutaram do lado de fora. Um metro de distância os separava. Os bandidos e a velhinha olharam-se nos olhos. Só a velhinha soube. Os rapazes, ladrões pés de chinelo, levaram a bicicleta velha. Mais valor sentimental que de verdade. Só a dor da impotência foi maior do que a do próprio medo. Todavia, valente, colocou folha de urtiga na campainha. Rezou em português, latim e italiano, como em todos os dias. Quando veio a tempestade, jogou contra ela um punhado de sal. Choveu muito, relampejou e trovejou. A velhinha, medrosa, encolheu-se debaixo das cobertas. Os ladrões não voltaram mais. Mandou levantar o muro, colocar porta de grade e um telefone novo na cabeceira da cama. Ladrão, tem que matar. Não pode sobrar nenhum. Medrosa, enfrentou sozinha os ladrões. Tivesse acendido uma vezinha só a luz, e eles teriam ido embora. Não quis dizer que tinha gente em casa. Ficou com medo de denunciar a sua presença solitária. Não se queixou à polícia, nem ao bispo, sequer à vizinha. Só a Deus, em português, italiano e latim, para não haver dúvida. Em uma

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das línguas, Ele entenderia. Devota, ela rezava as velhas orações, sem saber se era italiano ou latim, muito menos o significado das palavras. Solta a língua, ao narrar, pela décima vez, suas aventuras à vizinha, sentia, novamente, o mesmo sentimento de impotência, e o medo igual. Levantava cedo, ainda que após noites mal dormidas. Às sete da manhã, já limpo o céu de anil, o primeiro raiozinho de sol pediu licença, estendeu-se, comprido, no chão da cozinha, e acariciou os pés da velhinha, que sentiu o seu calor. Rapidinha, no esforço de se movimentar, toc, toc, toc, bengalinha na mão direita, correu a olhar o botãozinho da flor. Será que já abriu? Ainda não, mas lá de dentro, uma pétala vermelha tentava espiar. Amanhã, a flor acorda de vez. O gatinho, manhoso, rom-rom, esfregou-se nas suas pernas. Saia, gato, vai me fazer tropeçar. Miau. Já tomou o seu leitinho? Breves instantes, esqueceu, deletou o pesadelo da noite. Pesadelo mesmo? Não. Tudo aconteceu de verdade. Cadeado arrebentado, levaram o botijão e a bicicleta. Miseráveis, ainda derrubaram o vasinho da violeta.

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Menção HonrosaLuciana Marquesa Silva

Tribunal de JustiçaLondrina

“Amores mórbidos”

Júnior já não era mais o mesmo. Chegava em casa tarde, depois de mais um estafante dia no escritório. Cris lia um livro no quarto. Ele já não a via como antes, mal se olhavam. No trabalho, as colegas despertavam nele interesses nunca experimentados. E Cris lia um livro no quarto, envolvida pelo perfume de rosas que podia ser sentido por qualquer pessoa que passasse pela janela, sempre aberta. No café, os olhos de Júnior acompanhavam o andar elegante das ninfetas que desfilavam pesados casacos de pele, vã proteção contra o rigoroso inverno daquele ano. E Cris lia um livro no quarto, envolvida pelo perfume de rosas que pairava no ar. Júnior notou também que até a vizinhança parecia diferente, principalmente depois que se mudara, para o sobrado da rua, há duas semanas, aquela loura que viera estudar medicina numa famosa universidade da cidade. E Cris lia o livro no quarto, ainda envolvida pelo perfume de rosas. Enfim, após anos de convivência, Júnior admitiu que aquela decisão parecia inevitável. Ao anoitecer, ele chegou em casa, foi ao quarto, e, numa mala velha, colocou a calça jeans preferida, algumas camisas e a velha jaqueta de couro. Fitando languidamente o livro aninhado ao colo de Cris, saiu, deixando para trás uma história. Júnior estava virando mais uma página. No dia seguinte, a polícia entrou no quarto e encontrou Cris petrificada pela ação do tempo. Ela estava sentada na cama, com um exemplar do livro Dom Casmurro no colo. Agora, o forte odor do perfume de rosas espalhava-se por toda casa. Ela jazia ali há dois anos.

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Menção HonrosaCleusi Betenheuser

Secretaria de Estado da Educação do ParanáCastro

“As roupas no varal”

Nos varais, as roupaspairam serenas ao olhar da brisa,no ar tranquilo da tarde...

Há movimentos vivendo essas roupas,gestos de humanos, abandonadas no aconchego do sol. Elas bailam sem desejar,na própria ausência de si mesmas.

E assim se vê,por toda a visita da tarde...

Gárgulas entre os gritos das crianças,debatem-se indefesaspor entre as brincadeiras.(Parecem sangrar sobre as próprias sombras.)

Humildes, silenciosas,elas se deixam...pois sabem que depoiscaminharão por entre as ruas,preenchidas de humanos.Aquecendo-os,tornando-os tão belosquanto esta tarde.

Por isso, ainda que solitárias,quietas, esquecidas,as roupas se sentem totais.

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O peso da mão sobre o ombro do menino despertou-o de sua distância. _ Vítor - o pai estava dizendo suavemente - está na hora. Vamos. O menino se deteve, queria permanecer à janela, contemplando sua primavera. _ O que tem lá? - perguntou o pai, intrigado, procurando à sua frente mais do que a chuva sobre o quintal. _ Olha, pai. - O menino mostrou o papel que estava em suas mãos desde a manhã. - Foi a mãe que escreveu, ontem, no hospital. O homem leu as primeiras palavras e logo seu rosto expressou um sorriso. _ Lindo, né, pai? - disse o menino, concordando. _ Engraçado! - disse o pai, após alguns instantes. E suspirou num riso rápido. _ Tua mãe não perdia mesmo o bom humor... Vítor estranhou. _ Não, pai. Não é uma poesia engraçada. Não é uma poesia pra se rir. É uma poesia pra se ter esperança, foi o que a mãe me explicou. O homem sentiu-se confuso. Devolveu rápido o papel. Tornou a envolver o braço no ombro do menino. _ Vamos. Todo mundo está esperando. “Todo mundo está esperando”, repetia o menino, enquanto caminhava ao lado do pai. “Uma poesia pra se ter esperança...” Quando, porém, ele chegou perto da mãe, e o fizeram colocar sua mão sobre as mãos endurecidas dela, o menino recuou estarrecido. Seus olhos não a reconheciam. Aquele corpo não veria tardes de primavera, nem ao menos teria alguma brisa para sequer embalar-lhe gestos de humanos. O corpo dela não mais caminharia por entre as ruas. Os adultos não conseguiram conter a agilidade do menino. Logo ele estava no quintal, sob a chuva fria. Fria como o corpo da mãe. Mas o calor, o calor que ele sentira no último abraço de sua mãe, esse calor não vinha do corpo dela. Vinha de um amor que ainda aquecia o peito do menino.

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Ele sentia. Ele sabia. Esse amor ia permanecer como a primavera que ele viu através da janela, por entre a chuva daquela tarde.

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Menção HonrosaMauro Marcolino Carneiro

Secretaria de Estado da EducaçãoPonta Grossa

“Galos e homens”

I – Insônia, crianças na cama

... Acordar no meio da noite. Vira... Vira. O sono não vem. Cama para quatro. O maior, menor, ela, ele. Pensamentos que vagueiam: a tarefa do dia, trabalho. Levantar. Levantar? Já? Nem amanheceu ainda. Mas o que fazer na cama? Dormir. O sono não vem, ela dorme, crianças na cama. Ao longe, canto de galo. Um tem dois o outro quatro. Culpa de quem? O cheiro, a segurança. Ela não os amamenta mais. A segurança é para eles ou ela? Ele inseguro. Levanta. Final de abril. O frio começa a dar a cara. Sente falta do fogão a lenha de infância. Fogão a gás é frio, pensa. Poderia acender a lareira. Não faz. A chaleira está cheia. Liga o fogão, coloca a chaleira. Antes folheava um jornal, agora liga o computador: bolsas asiáticas caem, o PIB brasileiro ficou menor, no mundo diminuiu o fluxo de turistas... Culpa da febre suína. Avançamos tanto em muitas áreas, mas no básico não saímos do lugar. A água ferve.- Porcaria, não serve pro mate. Prepara a cuia enquanto espera esfriar um pouco a água. Um galo canta mais perto. Toma a primeira cuia. Sorve todo o líquido até fazer barulho. Não amanheceu. Pode ser que chova. Desliga o computador. O cachorro late, percebeu sua presença. Abre a porta. Está frio. Desce as escadas, chega a garagem. O cachorro pula a seu redor esperando a ração do dia. Coloca na vasilha. Esfomeado entorna a comida. Abre a barrica, pega o milho. Ao chegar perto do galinheiro as galinhas fazem um alvoroço, se bicam, se pisoteiam. As mais territorialistas são as galinhas com filhotes. A balbúrdia toma conta. Elas bicam todas as aves que se aproximam da comida. Enquanto tocam um, outra se aproveita para beliscar o petisco. O único respeitado é o galo. Ele é o único que tem permissão para frequentar todos os ambientes sem ser importunado pelos outros. É uma algazarra que o delicia. Distrai-se por um longo tempo com a cena. Inicia um chuvisco. Fecha a porta do galinheiro. Antes de entrar dá uma olhada nas plantas. Está precisando

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transplantar algumas. Entra na cozinha. Pega o mate frio. Coloca a água para esquentar novamente... Agora a chuva é mais forte. Volta para o quarto. Todos dormindo. Só ele fora da cama. Espaço exíguo. O cenário não comporta mais um. Pega o mais velho no colo, o coloca no berço. Tenta pegar o mais novo, acorda, chora, procura o aconchego da mãe. Ela sem acordar, num ato atávico o abraça. O pequeno fecha os olhos e volta a dormir. O que fazer? Ouve o chio da água, volta apressado pra cozinha.

II – Café, notícias

Coloca o pó no coador. A água quente desce, borbulhando, cobrindo o pó. Pela janela observa que a água do lado de fora bate com força no vidro. Liga o rádio: bolsas asiáticas caem, terremoto no Chile, o governo da Tanzânia está por um fio, morre mais três no México pela gripe suína, cresce o desemprego no Brasil. _ Estes caras sobrevivem da desgraça alheia. Amplificam o problema. - resmunga para si mesmo. Desliga o rádio, coloca um CD. A música toma conta do ambiente. Sorve um gole de café. No quarto não há movimento. Encontra uma revista. Folheia. A data é antiga, mas as notícias são novas: o mundo capitalista caminha para a insolvência, se não houver controle do capital, pelo estado; a bolha imobiliária pode estourar a qualquer momento... Coloca mais um gole de café. O tempo não passa. Ninguém levanta. O CD acaba. O galo canta. Levanta, caminha até o quarto. Todos dormindo. Se a bolha estourar? Volta, senta, toma mais um café. Troca o CD.

III – Chuva, sono

A chuva que agora cai é tranquila, calma. O sono vem. O rádio é ligado. A gripe suína agora não é mais. Não se explicaram bem se a gripe não é mais gripe ou se não é mais suína. A informação para

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desinformação. A música, a chuva, o sono. Sobe a escada, entra no quarto, todos dormem. Deita, tenta conciliar o sono. Uma perna é jogada sobre sua barriga. Sente um braço em seu peito. Vira. A perna fica descoberta. Levanta. Definitivamente não há como ficar em quatro nessa cama. Desce. Na janela da cozinha observa a chuva. Os pingos caem batendo nos vidros formando um pequeno riozinho até desaguar na calçada. Os olhos já não conseguem ficar abertos. Numa última tentativa bebe mais um gole de café. Abre a porta e sai. Observa as galinhas. São três poedeiras: duas negras e uma avermelhada. São cinco caipiras, sendo que duas estão com pintinhos; e dois galos. Conta e reconta as cabeças de aves. Lembra que logo o plantel vai aumentar. Fez uma chocadeira caseira com restos de isopor, madeira, plástico, fios e lâmpada. Está entrando do décimo dia de choco. Os cuidados são extremos: manter a temperatura, virar os ovos três vezes ao dia, não deixar secar a água. É agradável passar os dias esperando o nascimento. Ao nascerem serão trinta e oito aves. A chuva aperta. Volta para dentro da casa. Refaz as contas. Dois perus não entraram na conta, então serão quarenta. O sono volta. Deita no sofá. A música do rádio. O sono vem...

IV – Crianças, galinhas

Sente uma dor no dedão do pé. Acorda assustado. Olha para baixo. O pequeno deu uma risada espalhafatosa. Tinha acabado de dar uma mordida em um dedo que estava para fora do cobertor. Como ficar brabo perante um rostinho bonito e levado? _ Bom dia pra você também! Levanta e o pega no colo. Brinca rolando no chão. Vai para a cozinha com o pequeno. Encontra o maior e a mulher tomando café. _ Bom dia, bom dia! _ Levantou cedo hoje (observa a esposa). _ É. Tinha muita coisa para deixar em dia. _ No feriado?

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O maior quer colo. Aconchegado, espreguiça. _ Há dia melhor para por o trabalho em dia? Tomar chimarrão. Alimentar as galinhas. Por comida pros cachorros. Ver a chuva... _ Que divertido (diz a esposa, com um sorriso no canto dos lábios). Deixa o filho na cadeira. Pega um copo de café. Observa. _ Não tem como dormir em quatro na cama. _ Eles não dormem no berço. Já tentei... (interrompe) _ Sei, sei. Mas temos que fazer alguma coisa. Olha para fora, a chuva deu uma trégua. Vai até a porta. As crianças o seguem. A mãe repreende: _ Não saiam. Está chovendo. As crianças fazem cara de choro. _ Venham. A chuva já parou. Vamos ver as galinhas. _ Não deixe que sujem os pés. Avisa a mãe. Saem todos em direção ao galinheiro. As crianças correndo na frente. _ Não corram. Cuidado. Vão cair. As galinhas se alvoroçam com a chegada das crianças. É uma correria e cacarejar que enchem o ambiente. Ao chegar acalma as crianças. As galinhas se aquietam. Os pintinhos correm pra lá e pra cá. As crianças correm pra lá e pra cá. As galinhas atendendo os pintinhos, bicando um aqui outro ali. O galo bicava um pintinho aqui, afasta outro ali. Quando os pintinhos se afastam há um cortejamento de suas mães. O galo cisca afastando os filhotes mais resistentes. Algumas mães protestam, cacarejando. O galo continua com seu intento. Uma das galinhas cede ao assédio. As crianças espantam o galo. A chuva reinicia com pingos pequenos. Pega nas mãos dos pequenos. Saindo observa o galo reiniciar sua corte.

V – Táticas, planejamento

A tarde estava preguiçosa. O tempo parava. As horas não corriam. O pensamento estacionava. Dormir, descansar... O que fazer? A cama não

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cabia quatro. O galo espantava os pintinhos. As galinhas protestavam. Os pintinhos não cediam. Insônia. Quatro numa cama. Dois tem que sair. O que fazer? O galo espanta os pintos. A galinha não cedia. O galo não terá problemas com os filhos da chocadeira. Mas se uma galinha resolver adotar os filhotinhos? Vai ser um problemão. São vinte e quatro. Mas são só dois. Se colocar um colchão no chão do quarto? Ele dorme no colchão e ela na cama, assim devagar os pequenos deixarão de dormir com os dois. Aos poucos passarão a dormir sozinhos. Pega o colchão do quarto menor e arrasta até o quarto principal. Encosta no guarda-roupa. _ Para que isso? Pergunta a mulher. _ É para o galo. _ Galo?! que galo? _ Não tem galo nenhum. _ Você disse. Vai trazer galo para dormir aqui? _ Não é nada disso. É para as crianças. _ As crianças já dormem na cama. Você não está falando coisa com coisa. Se o galo tentava... As galinhas resistiam... Milhões de anos de evolução... Quem sabe daria certo?

VI – Colchão, evolução

À noite só eram observadas as ruas molhadas. A chuva foi embora. As galinhas dormiam. As crianças descobriram o colchão no quarto e faziam grande algazarra sobre ele. Iam da cama para o colchão. A mãe ralhava: _ Vão se machucar. Cuidado. Não empurra o outro. Só ficava observando. O plano daria certo. Essa ludicidade está familiarizando os três: criança, criança, colchão. _ Hora de dormir. Disse ele. _ Escovar os dentes. Disse ela. As crianças correndo. O colchão arrumado, esperando para ser deitado. Ela deita no

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colchão. Ele na cama. O mais velho deita com o pai. O mais novo, com a mãe. A luz é apagada. O galo canta. O pequeno chora. Vai deitar com ele. O galo canta. O pequeno chora. Deita com ela. Ela deita na cama. Ele deita no colchão. O galo canta. Os dois com ela, ele só no colchão. É desconfortável. Vira pra um lado, vira pro outro. Silêncio no quarto. Ela dorme, eles dormem. O galo canta. Levanta, desce as escadas. Fica um tempo pensando. O galo afastou os pintinhos? Sobe as escadas. Silêncio total no quarto. Os três dormindo. Chega à beira da cama, afasta o mais velho, se aconchega do lado. Antes de dormir sente um pé acossando sua barriga, um braço sobre seu rosto... Houve o galo cantar pela última vez naquela noite... Milhões de anos de evolução...

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Menção HonrosaEdmilson Rodrigues da

Silva

Secretaria de Estado da Educação do ParanáKaloré

“Inventário”

Abriu uma gaveta, procurou incansável uma caneta ou lápis, revirou todo quarto até encontrar. Seus olhos brilhavam de contentamento, de posse, agora, do lápis. Sentou-se na cama, pegou o caderno, ergueu-o na altura dos olhos. Anote! – disse ele com a voz estremecida de quem já não tem controle sobre seus atos e pensamentos. Abriu o caderno e começou fazer suas anotações: Olho, neste momento, para a parede do meu quarto. Existem inúmeros objetos pendurados. Os pregos martelados ao léu despedaçaram pedaços dela. Penduraram então retratos, alguns de pessoas, várias, que eu não conheço. Olho agora pra um desses quadros e o que vejo não me atrai nem um pouco. Um velho de cabelos grisalhos olhando pra mim e sorrindo. Vejo saindo de sua boca apenas uma palavra. Ouço o desenho dessa palavra e sei que nunca me deixará. Existem mais quadros, todos eles com molduras extravagantes, umas de madeira, outras de metal, uma de madeira com cantoneiras de metal dourado e outro prateado. O espelho também está pendurado. O espelho é misterioso, pois mostra tudo aquilo que agora preciso anotar. Tudo o que quero está dentro do espelho e não consigo alcançar. Preciso descrever e ser exato. Não gosto do espelho. Sinto inveja dele. Ele tem tudo e eu nada. À minha direita, outra parede do quarto. Há uma grande janela. E mais pregos batidos enfeitando o que ainda resta do reboco. A janela é enorme, mas eu nunca abro. Prefiro deixar que se abra sozinha. Eu exercito meus pensamentos pensando o que há através dela. Não tem cortina minha janela e não dá pra lugar nenhum. Lá fora sei que tudo é vago. Minha janela é um espelho que nunca me refletiu. Fica fechada sempre. Seus vidros estão todos embaçados e eu acho melhor assim. A poeira amarelada já toma conta de todos os espaços vazios. Não posso ver através dos vidros. Vejo. Mas o que vejo não é nítido e assim me interesso pelas coisas que não posso distinguir claramente. Não há paisagem através deles. Não há perspectivas que levem a me interessar pela apreciação pura e simples do que não faz parte de mim. Prefiro apenas imaginar e anotar.

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Na parede oposta à da janela está meu guarda-roupa. Duas portas e quatro gavetas apenas. Pintado de branco. Embaçado. Encardido. Puxadores de metal nas gavetas e portas, daqueles parecidos com alças de caixão. Há atrás daquelas tão horrendas portas, que abri muito, durante muito tempo de minha vida, um vazio que finalmente consegui vencer. Vazio que esconde o excesso de coisas que me eram importantes. Não há mais nada. Antes de começar escrever, abri pela última vez aquelas famigeradas portas. Nas gavetas também não há mais nada. Há muito tempo que ali não tem mais nada. Nem meias, nem ceroulas, nem nada. Olhando daqui, posso ver que existe algum objeto debaixo dele, mas não é nada com que deva me preocupar nesse momento. Somente quero escrever. Do lado esquerdo do guarda roupa fica a porta, que dá pro corredor, que vai parar na sala, que por sua vez encontra a porta que dá para o mundo. Prefiro meu quarto. A porta fica fechada. Sempre. Do lado direito do guarda-roupa fica o que sobra da parede, com mais alguns pregos maltratando, com os mesmos objetivos, o reboco. Em alguns deles estão penduradas roupas, sacolas, bolsas. As roupas penduradas ali estão todas sujas, pois já não as lavo há muito tempo. Nas sacolas, posso ver daqui, estão todas guardadas, seguramente, de mim mesmo, objetos que já não uso mais. Não me lembro exatamente quais são, mas sei que os coloquei lá. Lâmina de barbear, sapatos, pentes, escova de dente, meias, relógios, anéis, óculos ... tudo ali, na segurança das sacolas penduradas nos pregos pregados em minha maltrapilha parede. Na última parede, onde me encontro agora sentado na minha cama, fica a cama. Minha eterna e única companheira de uma vida que achei que nunca chegaria ao fim. Minha cama foi e é muito firme. Feita de madeira nobre, vermelha. Muitos colchões passaram por ela sem que ao menos afrouxasse os encaixes. Aqui eu durmo. Dormi muitas noites que não merecem ao menos serem lembradas. Passei também inúmeras noites acordado olhando apenas pro meu quarto, e ele, acordado como eu, sempre me compreendia. Entendia minhas razões. Nesta parede também há pregos, mas não há

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nada pendurado. Usei todos os outros das outras paredes. Eles foram mais que suficientes pra eu fazer a pendurança dos trecos e coisas que já foram meus. Agora não mais, pertencem a ninguém. Pregos e paredes donos de mim. Espelho que guarda a vida que um dia existiu nesse quarto. Quadros e retratos que mostram verdades que não são minhas. Guarda-roupa me dizendo neste momento, com suas portas e gavetas, que eu vivi inutilmente. Mas não acredito muito nele. Sei que minha vida agora se esgota, mas sei também que tudo o que fiz teve um sentido. Teve sentido. Anoto e isso me traz conforto. Minha vida na ponta deste lápis. Resto de esforço pra deixar algo além de um quarto. Despontado como este lápis, me entrego finalmente ao que esperei e busquei minha vida inteira. Minha cama e colchão, meu caixão. Meu quarto, meu túmulo.

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Menção HonrosaEverton Ribeiro

Secretaria de Estado da Educação do ParanáColombo

“O despertador”

Estava caminhando ofegante pelo atraso. Mal observava o caminho na pressa de chegar logo ao trabalho, era a terceira vez em cinco dias que seu despertador não a acordava no horário. Enquanto corria, pensava numa desculpa para dar ao chefe balbuciando: _ Se eu falar de novo do despertador, ele não vai acreditar. Hoje, ainda, o problema era pior, pois além dos constantes atrasos, uma reunião com o responsável pela matriz começaria pontualmente às oitos horas. Além do mais, não conseguia esquecer da forma categórica como o chefe se despediu dela na tarde anterior: _ Amanhã às oito horas, dona Leda. Compre outro despertador, pois a desculpa na mesma semana, pela terceira vez, não vai colar amanhã. Corria pelas quadras. Se tivesse realmente comprado outro despertador como o chefe havia recomendado não estaria passando pelos mesmos apuros neste dia. Quando olhava o relógio, mais aumentava seu desespero, eram oito e trinta e cinco e sabia que dessa vez a desculpa não poderia ser a mesma. Já imaginava a repreensão que sofreria por parte do chefe e dos colegas: _ O despertador quebrou de novo, dona Leda? Ou será que a noite foi tão boa que nem o sino da catedral te acordaria hoje? Começariam a rir em tom de deboche e ela ficaria ouvindo piadinhas o dia todo. O pior seria o constrangimento diante do gerente da matriz. E se ela fosse despedida? Dobrou o último quarteirão e irrompeu a porta do edifício. Nem um bom dia à recepcionista deu tempo, senão perderia o elevador que ainda estava no térreo. O elevador chega ao quarto andar, corre ao escritório trôpega, eram oito e quarenta, corre à sala de reuniões sem nem observar os demais no escritório. Abriu a porta, entrou devagar para não atrapalhar o andamento, mas foi inevitável, todos a olharam com censura, principalmente o chefe com sua cara de poucos amigos como que querendo dizer que eles precisariam ter uma conversinha depois. Sentou-se à mesa, calada, sorriu amareladamente para uma amiga íntima e começou a acompanhar os encaminhamentos.

A pauta já estava no penúltimo tópico, por isso percebeu que não demoraria para ser questionada a respeito dos relatórios de vendas. O gerente falava que a edição da revista precisava encontrar um diferencial para que a queda de vendas fosse combatida: _ Quem apresentará os relatórios de vendas dos últimos meses? Era a vez de Leda. Todos a olham como que esperando sua manifestação, fulminando-a. Como estava atrasada, provavelmente pensavam que havia ficado de última hora preparando seus relatórios. Pensou em pedir desculpas pelo atraso, mas se falasse a verdade, de que seu despertador não havia tocado, seria ridicularizada. Preferiu iniciar de uma vez a comunicação dos resultados para não ficar mais nervosa do que já estava. _ Bom dia a todos. De acordo com os gráficos que realizei neste mês para melhor visualização das vendas, percebe-se uma queda gradual e muito significativa da venda da revista de janeiro para cá. Em dezembro, havíamos vendido mais de um milhão de exemplares, enquanto em maio, conseguimos atingir a marca de apenas trezentos mil exemplares. O comunicado agitou os ânimos da equipe. Todos sabiam que em época de crise, um desfalque nas vendas, desta proporção, significava corte de pessoal. Intervindo no burburinho, o gerente da matriz coloca às claras: _ Uma diminuição tão chocante nas vendas prevê corte de gastos. Cabe à equipe tomar uma atitude se quiserem continuar integrando o quadro de funcionários da editora. Vocês teem exatamente vinte dias para colocar nas bancas uma revista que recupere a marca que atingimos no ano passado. O gerente havia sido, realmente, categórico. A preocupação no escritório foi instaurada e o assunto entre os colegas nem havia como ser outro. Leda limitava-se a acenar com a cabeça quando era questionada sobre o que fazer. Não sabia. Havia estudado Jornalismo, pois sonhava com o dia em que seria reconhecida pelo seu trabalho, visitar países, levar notícias a todas as classes, todos os indivíduos. Fazia o retrospecto

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de seus desejos e ficava totalmente apavorada diante de sua realização profissional: limitou-se a trabalhar numa editora de uma revista de fofocas, que nada acrescentava ao seu leitor. O que ela estava fazendo? Saiu do escritório quarenta minutos após seu horário, para compensar o atraso. Já estava ficando acostumada em sair à noitinha do trabalho. Nesse dia, decidiu não ir direto pra casa, estava pensativa. Sabia que se o corte de pessoal fosse feito, ela seria uma das cotadas, não se dedicava mais ao trabalho, até seu despertador parecia estar compactuando com seu desgosto, já que deixara de funcionar. Sabia que amanhã seria pressionada pelo chefe a produzir notícias exclusivas, notícias as quais ela não fazia a menor questão de contar. Caminhava sem rumo, levada pela angústia e pelo medo de ser demitida, tinha dívidas e não podia correr o risco de ficar desempregada. Avistou os luminosos do cinema há algumas quadras e pensou consigo mesma: – Nossa! Há décadas não vou ao cinema, ou melhor, há décadas sequer assisto a um filme. Decidiu entrar para ver o que havia em cartaz. De repente encontrou um filme interessante e espairecer um pouco diante de tantas turbulências a faria se sentir melhor, ao menos. Entrou no cinema encantada. Nem reconhecia mais o espaço, todo arrojado, com novo design. Comprou o ingresso para a sessão mais próxima, nem se deu ao trabalho de descobrir o gênero do filme, só sabia que se chamava O Despertar. Depois que comprou, pensou que poderia ser aqueles dramas que faz você chorar do começo ao fim e que não faria nada bem, para ela, neste momento. Mas não era. Leda se divertiu do começo ao fim do filme, dava gargalhadas que a fazia sentir dores na musculatura facial, até seu riso estava enferrujado. O enredo do filme tratava de uma comédia sobre os constantes atrasos de funcionários de uma empresa, até o momento que a chefia toma uma atitude para aumentar a auto-estima da equipe. Leda saiu feliz do filme, mas voltou à vida real. Como queria que as coisas do filme pudessem acontecer de verdade, mas a vida real nunca é tão simples. Estava dando uma volta no shopping quando avistou uma vitrine que dizia “Desperte-se nas férias”. Era uma agência

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de turismo e, como ficou curiosa, entrou para conhecer os pacotes. Os valores realmente eram muito bons. Lembrava-se que nunca havia ido ao exterior por sempre achar fora de seu orçamento e agora era uma chance: reservou as passagens e, decidida, conversaria com o chefe no dia seguinte, afinal tinha quinze dias de férias vencidas há quase dois anos. Durante tanto tempo preocupou-se em saber notícias quentes da vida pessoal dos outros e pouco se preocupou com a sua própria. Sentiu-se gélida. Conseguiu chegar às oito no escritório naquele dia. Todos até acharam estranha tamanha pontualidade de Leda: _ Nossa! Será que ela caiu da cama com o despertador novo? – ouviu um burburinho de longe, mas nem perdeu seu tempo em relutar. Seu foco era a conversa com o chefe. Deixou sua bolsa na mesa e dirigiu-se à sala do chefe ansiosa. Ele estava lá, parecia que lhe aguardava. Bateu na porta, acenou, ele fez um sinal para que ela entrasse. _ Bom dia, dona Leda! Chegou no horário hoje? Finalmente compreendeu que temos pouquíssimo tempo para reerguemos nossa revista? – fala o chefe com certa ironia. _ Bom dia, senhor Roberto. Cheguei no horário porque precisava lhe fazer uma comunicação antes de iniciar as atividades do dia. Quero a concessão dos meus quinze dias de férias a partir de amanhã – Leda retruca objetivamente. _ Você quer tirar férias nas condições em que estamos na editora? Isso é um absurdo! _ Absurdo é eu querer reerguer uma revista sabendo que quem não consegue se levantar sou eu mesma. Além do mais, terei cinco dias no retorno das férias para tentar. Você pode comunicar o Financeiro para mim? – sai da sala com ar de vitória. Que bom que aquelas palavras apareceram naquele momento. Hoje faria seu trabalho ansiosa para embarcar amanhã. Quinze dias na Europa. Leda achava que seria apenas um sonho, mas agora era verdade. Conheceu Lisboa, Madri, Veneza, Roma, Paris, Berlim, durante tantos dias respirou arte, cultura, história, vida.

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Viveu! Agora se sentia mais viva, mais informada, mais proprietária de conhecimento. Voltou para o Brasil, cheia de si, renovada. Chegou pela manhã no escritório, no dia seguinte, nem eram oito horas ainda. Descarregou sua máquina fotográfica, fez algumas anotações, cumprimentou os colegas animadamente. O chefe ainda não tinha chegado. Gostaria de marcar uma reunião, mas precisava de sua presença. Ele chegou quase às nove horas. Pediu desculpas à equipe, mas Leda não tinha sido observada por ele, mas escutou quando cochichou para uma colega sua: _ Acredita que meu despertador não funcionou hoje? Leda se aproximou, um súbito constrangimento subiu à tez rosada do chefe. Havia censurado tanto a funcionária para constatar que era possível se atrasar pela falha do despertador. Meio envergonhado, perguntou: _ Dona Leda, como foi a viagem? Chegou cedo pelo visto hoje. _ Foi ótima, fiquei satisfeita. Sim, cheguei cedo e já consegui fazer alguns relatórios para nossa nova edição. Por que não falar da gente? Todos entreolharam-se. Parecia que Leda havia adivinhado que nada havia sido feito na sua ausência. Tudo incorria na mesma formatação de reportagem de fofoca repetida em todas as outras revistas da categoria. Entregou as fotografias ao chefe com as legendas e alguns rascunhos, certa de que seria um sucesso. Seria a reportagem de capa. _ Gostaria que o senhor olhasse e dissesse o que acha. Essa é minha contribuição para a nova edição. Afinal, as pessoas querem saber mais sobre si mesmas. Ah, e outra coisa: trouxe esse folder para o senhor, da agência de turismo, caso continue tendo problemas com atrasos. Só para que o senhor saiba, eu encontrei meu novo despertador. Naturalmente, Leda dirige-se à mesa, senta-se ao computador, e começa a digitar o editorial da nova revista. De repente, toca seu telefone, algo que não acontecia há certo tempo. Atende, com segurança: _ Bom dia, Leda. Em que posso ajudar? _ Alô, senhorita Leda? Aqui é Carlos, o gerente da matriz,

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soube de suas idéias para nossa nova edição. Podemos jantar hoje para conversarmos? _ Olá, senhor Carlos. Certamente podemos conversar sim, será um prazer. Até mais tarde – Leda fica atônita, mas logo constata seu grande trunfo. _ Pelo visto, o que não vão me faltar daqui pra frente serão despertadores. E não são dos reloginhos que eu estou falando – caiu numa gargalhada compulsiva como no dia que assistiu ao filme no cinema. Todos no escritório a observavam perplexos, como que querendo entender a razão de tanta alegria. Já estavam acostumados em apenas figurar na história de outros protagonistas.

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Menção HonrosaPaulo Martins

Tribunal de Justiça do Estado do ParanáApucarana

“O peixe de magrarida”

“Não basta dirigir-se ao rio com a intenção de pescar peixes; é preciso levar também a rede.”

Provérbio chinês

Na aldeia era aquela gozação em cima da pobre Magrarida, miúda de carnes e farta de espinhas. Para se ter ideia da criatura, e não gastar a justiça em vão, dir-se-ia que sua cintura poderia ser medida a dedos de camaleão. Se Magrarida magra era, magra ficou. Desditava a moça do nome em sua corruptela. Não havia então de ser Margarida? Margarida fosse, mais estofada seria. Mas se a natureza, capenga de um lado privou-a de carnes, serviu-a de outra banda, pois eis que singrava em seu peito o doce mel da poesia. Rimava rimando, brincava brincando. Fina no corpo, fina no verbo. Por conta da secura enraizou hábito de haver-se solitária, longe nos ausentes. Pelos campos perambulava e não dava prosa, versejando misérias e amores, catando gavelas de suspiros. Sucedia que, quanto mais versejava, menos a vida versava nela mesma. E ia rimando desejo com ausência. Magrarida, mantida sob severas vistas pelo pai, não nem tinha consciência de si. Sentia apenas que seu coração saía dela a ausentar-se do corpo, em busca de si mesma nas palavras lavradas em dor de amor. Metade dela era poesia, o restante um assim indecifrável bordejar esperança. O amor que paria em fecunda poesia não gerava paixão de homem em seu fino corpo. Ainda refém-nascida, Magrarida foi desamparida pela mãe, que abalou alhures com um açougueiro, e desbotava os dias cricrizando com poesia o pai, Sr. Benevisto, enquanto o amor não vinha. Esperava fisgar peixe grande com o anzol da poesia. E sofria, esforsuando-se para ser amada. Mas, porém, todavia, entretanto. Eis que naqueles campos raiou um moço formoso. E Magrarida o viu, embora ele não tenha visto Magrarida. Pelo menos não a vira como ela queria ser vista. Assim mesmo

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o coração de Magrarida abriu fervura de amor, o olho relampiscando de urgência. E foi o bastante para bulir com seu sentimento, amanteigando a polpa do seu coração. O nome dele era DoisBerto Peixoto e isso calhava bem com o dela, pois de modo que não era apenas ela a ter nome inominado. E com justeza o laço requisitou as duas pontas para se fechar: ingrato por ingrato o nome de um juntava ao do outro num só ato, no pulo do gato. Sem distrato, o cerne do trato. Eis que Magrarida sentia que na primavera da alma desabrochava a flor do amor. Faltou chão, faltou ar, sobrou paixão. Caso é que DoisBerto deixou cair pelo caminho uma réstia de esperança, que Magrarida colheu num buquê. Falando com ela, dia desses, chamou-a de coisa fina. Que magra, que nada, ela era mesmo um biscoito fino, que ele não temia os espinhos, nem as espinhas, mas o belo da rosa, ou da Magrarida. O convexo do olho dela rebrilhou de tontura, e a boca descosturou num sorriso. Entonteceu toda a magra Magrarida, que quedou-se pálida de amor. E ela resolveu zelar de DoisBerto, aquele seu peixe fisgado. Pois assim estava o espírito da moça: em estado final de pescaria. É verdade que perguntou ao seu peixe porque seu nome era assim. _ Acontece - disse ele - que meu pai é o ZeroBerto e meu irmão primogênito chama-se UmBerto. No natural da lógica o próximo rebento seria DoisBerto, e cá estou para dar seguimento à família. Embora a coisa entre os amantes estivesse mais indo que ficando, aos grampos e tamancos, dia veio que coisa misteriosa sucedeu: deram conta a Magrarida que DoisBerto estava com a cabeça enfiada dentro da água do rio com os pés apontando para as estrelas. _ Começou começado quando isso? _ Venha ver, Magrarida, que ‘isso’ é coisa dormida de ontem. Magrarida viu e desviu. Custava crer que DoisBerto se prestasse a tamanho disparate. Gritou todos os verbos e adjetivos, mas nem bulha. Aquele predicado par de pernas assim ficou, dia que dia. Não descia nem subia, não andava nem desandava. Alguém sugeriu que fossem de bote acudir o estranho náufrago, que aquilo era coisa de espanto. Magrarida embargou a pretensão.

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_ E se o navegar do bote afundar e afogar de vez meu peixe na água? _ Se afundar, que afunde. Magrarida protestou, ameaçou suicidar a vida. _ Olha que me apincho rio abaixo. Mais não disse. O caso é que juntou gente na borda do rio, para ver o estranho peixe, uns já chegando com cara de saída e outros saindo com cara de chegada, todos zunzunando em parolices. Quando o céu pichou-se de grafite já pela tarde, a caterva foi raleando na borda do rio, a ponto de restar apenas Magrarida na sua beira. Sem eira nem beira. No breu, Magrarida ficou vagalumeando entre a cruz e o sacristão. E tonteando a caixa das ideias, quis achar que uma das pernas do peixe se tinha ido. Abotoou e desabotoou os olhos. Espiou e era fato. Ficou apenas uma delas, como haste de esperança. Tremexeu todo seu coração míope, e a poetisa senhora ficou do amarelo pálido de defunto morto. No céu rolaram trovões secos, trovão sem chuva, chuva sem água. No grave das horas da noite, entretantemente, deu de faiscar chuva e chover raios, ribombar relâmpagos e riscar trovões, mas Magrarida não chovia nem deschovia. Nada via, DoisBerto queria. Coisa é que o sarilhar da chuva barrigou o rio, que subiu muito bem subido. Desandou. Quando o dia acordou, já Magrarida desacordava. Estava encharquilhada pela chuvarada. Nem pôde ver que a outra perna havia sido consumida pela água. De modo que ao tomar corpo de si ela pensou que tivesse os olhos engripados e rapinados pela miragem. Na planura do rio nem não se via sinal de DoisBerto. Decerto já estava no soalho do rio. E Magrarida morreu pela vez primeira, de desgosto. Magrarida mais Magrarida ficou, colou pele com osso, sobrando saliente apenas as bolas dos olhos. Veio família, sacerdote e polícia, para dialogar e noitelogar, mas Magrarida abriu questão: ou revejo DoisBerto ou me dano em solidão. Morro de morte morrida. E morreu pela segunda vez, de solidão. Até Zeca Faz-de-Conta Zeca, andrajoso pedinte, deu sua faminta opinião: “vê se ao menos come um peixe, Magrarida, para continuar a vigília. Se não, tu morre.”

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Magrarida palavreou que já tinha mesmo morrido antes de morrer, de modo que não seria surpresa. “Morrer de verdade mesmo a gente morre por de dentro”. E dizia: DoisBerto há-de voltar! E chorava do caso ao ocaso. E morreu pela terceira vez. De amor. Passa o tempo, fica o esquecimento. Magrarida tanto tempo esperou que o tempo restou congelado no tempo. Um dia, quando todos já a chamavam com nome e sobrenome de malouca, no meio do rio surgiu a ponta de um dedo, mais unha que dedo, com ar de quem convida para passeio, coisa bastante para Magrarida pinchar-se de mente e dente dentro da água. Agarrou o desditoso dedo e, com o dedo em riste, apaixonadando, navegou para a linha onde o céu encosta na terra e nunca mais ninguém a viu. Decerto morreu pela quarta vez, totalmente apeixonada. E não tinha mais espinhas na cara, mas no lugar da coluna, peixote que tornara-se.

Essa é a história que Lolita conta na aldeia de pescadores quando os homens reclamam que não

chove mais amor como chovia antanho.Amores são muitos, DoisBerto é que é um só.

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Menção HonrosaRafael Henrique Caneparo

Secretaria Especial para Assuntos Estratégicos - CELEPARCuritiba

“Segunda-feira”

Acabo de chegar do meu estúpido trabalho cansada,

moída; enfim, sem nenhuma vontade até para pensar. Despejo

minha bolsa no sofá e como uma morta-viva me arrasto pela

casa. Andei sem rumo até que o avistei, estático sobre a mesa

da cozinha. Atraída pelo seu cheiro fui em sua direção. No

caminho pensei: "Como seria ter a vida dele? Com certeza não

teria de trabalhar!" acabo rindo da tamanha besteira produzida

pela minha mente. Novamente sou invadida pelo seu cheiro,

que vai me dominando a cada passo. Acendo a luz, sua tez

dourada reflete-a tão maravilhosamente. Sou tomada pela

felicidade, é como se os deuses me presenteassem com esta

visão esplêndida. Por um momento fico só contemplando-o,

mas logo tenho a necessidade de sentir o seu corpo.

Então, delicadamente o toco, minhas mãos tremem, a

imagem do doutor Aristíades invade meus pensamentos com

o dedo em riste e gritando "Profana! Tocaste-o!". Recuo por

medo, mas agora é tarde; minhas mãos clamam pelo seu corpo

e quando percebo já estou acariciando sua massa macia. A fera

interior extasiada pelos sentidos do tato e do olfato assume o

controle e manda atacá-lo. Aperto-o com força animalesca e ele

jorra em mim seu líquido grosso. Ofegante, não me contenho

mais, lambo o líquido escorrido pelo corpo seguindo até sua

fonte. O gosto salgado inunda minha boca, "eu tenho que

degustá-lo por inteiro".

Os lábios encontram a massa e ao contrário do que

imaginava não sinto culpa, sinto prazer. Me entrego às minhas

necessidades, a sensação é ótima! Um grito libertário explode

da minha alma "Dane-se, doutor!!". Como um animal faminto

cravo meus dentes em seu corpo macio, rasgando-o com

violência. Saboreio o pedaço e só quando já está em minhas

entranhas percebo o que fiz.

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Desabo no chão derrotada pelos meus instintos; deformado pela dentada ele ainda está inerte em minhas mãos. Olho-o e já que não posso mais voltar atrás dou-lhe outra dentada. Agora vou comer até o final, se bem que eu preferia um sanduíche com pão integral e sem tanta mostarda. Lá se foi o meu regime, mas sempre haverá outra segunda-feira.

Contos · 77

Menção HonrosaSilvia Montanari

Companhia de Saneamento do Paraná Curitiba

O que me resta é observar um bocado de gente perdida num mar de asfalto e cimento e desejar ser um deles. Exalo um aroma interiorano que às vezes causa saudade, mas quase sempre revolta. Sou casada, tenho dois filhos. Gosto da minha família e procuro protegê-la, mas preciso de espaço, de tempo, de silêncio. Na minha casa não encontro nada disso. Dizem que faço drama por motivos fúteis. Dói tanto isso. Por que todos se acham no direito de interferir até naquilo que tenho de mais íntimo? Sou casada, tenho dois filhos, meu marido é homem bom, mas não sabe conversar sobre nada que não envolva a sua profissão. É eletricista, passa horas falando sobre: quadro de comandos, corrente, tensão... Depois só lembro que fiquei dizendo é! Nossa! Ram, ram! Os garotos querem ser meus donos, o que me salva é que passam a tarde na escola e fico livre para andar, observar, sonhar e me livrar do manheêêê, que usam sempre antes de reclamar um do outro e pedir, pedir. Será que filho é só isso? Estou me sentindo culpada. Não devia ter colocado nenhuma vida neste mundo. Agora o que devo fazer? Deixá-los com o pai? Deixar o pai e levá-los comigo? Manter a família unida? A vontade de abandoná-los se esvai quando me abraçam, acho tão gostoso, parece que o coração vai explodir de tanto amor. Os afazeres da casa negligencio. Se as meias dos meus homens estão furadas, as zorbas sem elástico, as calças sem barras, as camisas sem botões, faço uma trouxa e jogo tudo fora. Meu marido outro dia quase teve um colapso quando procurou cuecas e não achou. Disse que por minha culpa estamos falidos, que esbanjo tudo, que não arrumo nada e que, nem que trabalhe vinte e quatro horas vamos construir alguma coisa. Fiz de conta que não ouvi e falei numa promoção de meias e cuecas das Lojas Americanas. Aproveitei e pedi que comprasse, ou me desse dinheiro, para comprar também para os meninos. Ele saiu batendo a porta. Os meninos me olharam acusadoramente. Perguntei se queriam bolo de laranja. Como não responderam, fui ler. Logo os dois começaram a gritar e se estapear, e como não dei atenção,

“Solidão”

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se jogaram no meu colo fazendo o livro cair. Acariciei-os, e como não paravam de chorar, mandei que fossem chorar no quarto. Que mania que criança tem de ficar choramingando no ouvido da gente! A minha mãe disse que Deus me dá tudo de mão beijada e que não sei agradecer, só exigir. Por minha culpa seu genro e netos vivem desmazelados e a casa deles uma imundícia. Perguntou-me se não tinha vergonha e quando falei que importante era eu estar limpa e cheirosa e que eles eram bem grandinhos para se cuidarem, esconjurou. Depois prometeu mandar a empregada duas vezes na semana para fazer a faxina. Mesmo convicta de que não era aquele tipo de ajuda que precisava, estava me dilacerando e ela preocupada com a casa. Depois que saiu me arrependi de ter sido grosseira. Sou mesmo uma megera, preciso mudar. Visitei um endocrinologista. Aproveitei para falar da depressão, da vontade de nada. Ele mandou fazer exames de hormônios e receitou antidepressivo. Quando passei na farmácia achei o preço exorbitante, joguei a receita e o pedido de exames. É melhor não comentar que fui ao médico, vão achar que devia ter procurado um psiquiatra, ninguém admite que sofra de solidão uma mulher casada. Mas não estou preocupada com o que os outros pensam, a minha auto-estima é que está baixa. Ontem estava chovendo e quando isso acontece sinto-me prisioneira, é muito triste passar a tarde sozinha, principalmente quando não se tem ânimo para fazer nada. Leio, ando de um lado para outro, como, assisto televisão. Às vezes faço tudo ao mesmo tempo e sinto que de um momento para outro posso me decompor. É tão mórbido isso, mas é a verdade. Para mudar a rotina fui ao cinema. Vi um homem que não sai da minha cabeça. No saguão estávamos sós, insistiu em olhar, mas não consegui encará-lo, estava inibida, e para disfarçar, fingi olhar os cartazes. Senti o calor do corpo dele, tão próximo chegou. A minha vontade era voltar-me e abraçá-lo, mas fiquei com medo que interpretasse errado. Sou rançosa de moralismo, mesmo que tivesse nascido no século XIX seria ultrapassada. Quase todas as noites brigo com o almoço e ingiro água compulsivamente. Fosse só o distúrbio gástrico! Não estou legal,

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procuro a salvação e não sei como me proteger; temo ser devorada por essa inquietação. Olho para meu marido e tenho vontade de acordá-lo para falar tudo que sinto, mas desisto, não vai entender nada mesmo e já deu vários sinais de que credita a mim o fracasso do nosso casamento. Tornei-me uma personagem forte e pungente e ofusquei aquelas que viviam dentro e ajudavam a suportar o cotidiano. Estou só, sou muro de lamentações e isso faz mal, muito mau, principalmente porque sou arrimo meu e é tão mais fácil abandonar os outros.

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Contos · 81

Menção HonrosaHamilton Bonatto Secretaria Estadual de Obras Públicas Curitiba

“Pedra de espia”

Um

Quando alguém gritou “tainha, tainha ...” formou-se um grande furdunço na praia. Era gente correndo para todo lado. As crianças iam de casa em casa gritando: “olha o cerco ... tainha, tainha”. Era o “arrastão”. O grito que vinha lá da pedra mais alta era do “espia”. De lá ele ficava para ver se os cardumes de tainha estavam chegando. Coisa de especialista. O espia via o cardume chegando através de uma mancha escura no mar. Todos tentavam ver, mas poucos conseguiam. E como ele, ninguém. Era um “farejador” de peixe. Era uma figura impressionante, magro como um “pau-de-vira-tripa”. Devido a sua magreza, os amigos o chamavam de “Cambira”, nome dado ao peixe seco ao sol. Onde estava em poucos minutos se fazia uma roda. Ninguém sabia contar anedotas como ele. Ao seu grito de “tainha” todos obedeciam, sabiam de sua experiência. E Cambira tinha orgulho de dizer; “meu corpo está aqui na pedra, mas meus dois olhos estão debaixo d’água do mar”. E era verdade! Não havia tainha que passasse despercebida por ele. “Só se a tainha for invisível”, ironizava ele. Fiquei impressionado como tanta gente corria depois do grito e dos assovios do Cambira. Cheguei mais perto por pura curiosidade, depois corri chamar papai que ainda desmanchava as malas da viagem, acabávamos de chegar, era mês de junho. Papai apontou para o Cambira, tentando entender o que aquele homem estava tanto a gesticular lá de cima da pedra. Parecia um maestro: cabelos longos, despenteados, “tipo profeta”, na frente calvo, testa bronzeada e brilhante, de gente que não sai do sol. Havia uma elegância nos gestos que coordenavam o arrastão, numa autoridade invejável, sabia a sinfonia de cor. As roupas não eram de maestro, calça dobrada até as canelas, camisas sem botões, amarradas na altura do umbigo, nos pés, sandálias alpargatas.

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Conforme seus gestos, todo mundo se movimentava na praia. Não tinha uma batuta, mas um chapéu velho de palha, cujos movimentos, compreendidos por todos que estavam lá, faziam parte da orquestra que se apresentava. Eu e meu pai éramos espectadores. Gostávamos da “música”, mas não entendíamos os gestuais do maestro. De repente Cambira fez um movimento maior e os pescadores empurraram suas canoas para a água, buscando o local indicado pelo maestro, para fazer o “cerco” à tainha. Começava o arrastão! As canoas e os pescadores desenvolviam um balé. Em cada batel, quatro ou cinco homens. Cercavam os cardumes de peixe, orientados pelo espia e agora pelo “dono da rede”, o Teodoro Apolinário, jovem forte, com uma liderança sobre os demais que não precisavam além de um olhar para seguir suas orientações. Enquanto Teodoro conduzia as canoas arrastando o cardume para a praia, os demais pescadores, de pé na água, cercavam pelo lado oposto, para os cardumes caírem na rede. Aquela rede tinha umas 300 braças, 500 a 600 metros. Pela alegria de todos a pesca foi boa. Uns diziam 4000 tainhas, outros 5000, outros que não passava de 3500, e alguns chegaram a estimar 6000. Teodoro Apolinário, com olhar de especialista, virou para o Cambira, e decretou ... “5000”. O espia, com olhar de magistrado, confirmou: “... umas cinco mil, se mais ou menos, muito pouco”. Pronto, a contagem estava feita. Independentemente de quanto cada um havia estimado, o que prevalecia era a “contagem” do dono da pesca, o Teodoro Apolinário. Esse era o costume, era a lei. O dono da pesca dividiu o monte de tainhas em três menores, e a olho, ficou com uma das partes. O restante dividiu entre todos os demais pescadores, dando uma parcela maior para os donos das canoas e para o Cambira, uma um pouco menor para os camaradas que estavam nas canoas e uma parcela um pouco ainda menor para aqueles que colaboraram cercando a rede pela praia a pé. Ninguém ficou sem o seu quinhão. Eu e meu pai que fomos junto e ajudamos no cerco, ganhamos o nosso! Papai disse que não era preciso, que não deu nenhum trabalho. Seu Teodoro Apolinário, como fez com todos, jogou o quinhão de tainha aos pés de papai e disse: todo mundo que trabalha é merecedor. Parou um pouco, olhou-me nos

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olhos como se dissesse que o quinhão também era meu, e continuou a dividir com os demais ajudantes. Teodoro Apolinário reservou um quinhão para o Mané Bagre que estava de adoecido na cama. Ninguém reclamou, ao contrário, acharam bem lembrado. Cada um foi saindo com seu quinhão. A praia aos poucos foi se aquietando, parecia que nada daquilo tinha acontecido. Não fosse o barulho da criançada que ficou na praia como eu, seria só o som do mar. A maioria dos pescadores vendia seu quinhão para um homem, que ficava no combro da praia. Era o Gercino, que comprava peixe e camarão dos pescadores e vendia na Capital. Pagava cinquenta centavos o quilo e vendia por vinte cruzeiros para os hotéis da capital. Dizia: - Se quiser cinquenta, pega, senão deixa os peixes apodrecerem e virarem comida de urubu. Era 1945. Eu com doze anos. Havia muitas crianças de minha idade, mas eu não conhecia ninguém, até que uma menina, de mesma idade se aproximou, e sem sequer perguntar naquele momento o meu nome, de onde vim ... nada, chamou para brincar com todos. Aí começa minha história.

Dois

Brincamos na areia, andamos em direção às canoas na praia, sobre as estivas. “Ia, é assim que todos me chamam. Você também pode me chamar de Ia”. Assim que Maria se apresentou quando perguntei o seu nome. Se eu quis saber o nome da minha recém conhecida, ela, por sua vez, quis saber tudo sobre minha vida. Menininha curiosa estava ali! Seu jeito já dizia tudo. Olhos negros, vivos, curiosos. Seu olhar penetrava os meus, ela não queria saber apenas o que eu estava dizendo, mas o que eu estava pensando. A cada resposta, nova pergunta, e outras, e outras ... Interessante é que não me incomodava, mas me divertia e tranquilizava, pois recém chegando já tinha alguém para conversar.

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Gostava da reação dela às minhas respostas: quando ria, gargalhava; quando se entristecia, chorava; quando se admirava, arregalava os olhos. Nunca meios sentimentos. Terminava de gargalhar dizia: conta mais; e aí?! O que aconteceu depois? Sempre buscando mais detalhes. Muitas vezes, olhava pra cima e dizia: essa eu queria ver! Eu queria estar lá! Ia era Filha do Teodoro Apolinário, gostava de saber sobre tudo, e quando eu perguntava algo sobre ela, geralmente respondia com outra pergunta, e quando eu via, estava contando um pouco mais sobre mim, sob os mesmos olhos arregalados. -Tudo bem, seu Cambira? Ia cumprimentou o espia com reverência. -Bom. Disse Cambira – Pesca boa! Cambira era agricultor, como a maioria das pessoas que estavam no arrastão, durante o tempo da pesca da tainha vinha até a Vila dos Pescadores, quando morava num rancho de palha na areia da praia, para ajudar na pesca e faturar seu quinhão. Casa rústica e provisória, feita de tábua, coberta de palha, porta amarrada, chão de areia forrado com esteira de palha. Acostumou a ficar só, pois a malária o viuvou cedo. De nada adiantou sua mulher tomar chá de quina e nem mesmo a “atibrina” que o Serviço Nacional da Malária distribuía. Veio o calafrio e a febre, até que morreu com dores nos rins, no pulmão, até perder os sentidos. -E você rapazinho, de onde vem? Cambira perguntou, e continuou: - Chegue-se! Logo vi, outro curioso. Parece que naquela Vila de Pescadores só havia curiosos. Fomos chegando mais perto do barraco e sentamos nos bancos de madeira, usados para entralhar redes. Não era só o Cambira curioso sobre mim. Ia, aproveitava o momento e fazia mais perguntas. Os dois combinavam muito. Parecia que faziam uma entrevista comigo. Eu, feliz da vida com os amigos, contei que morava na Capital, que minha mãe falecera e que meu pai era pedreiro que veio morar na Vila para fazer a casa de um banhista.

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Da Capital queriam saber tudo. Quanto mais eu contava, mais perguntas vinham, uma após outra. Até que aproveitei um momento de silêncio e perguntei: -Como você enxerga as tainhas? -A gente acostuma. Disse ele com a autoridade de um profissional.- Esse segredo já contei pra Ia, mas “te” conto também: Não é só enxergar, é sentir que elas veem. Primeiro a gente tem que saber quando elas podem vir, depois algo avisa a gente que elas estão por perto. O espia tem que acreditar no que sente, senão não vê. Os outros não conseguem ver a mancha dos cardumes porque só veem com os olhos. Quando o assunto é tainha, os olhos sozinhos são cegos. Parou um pouco, olhou para o mar e completou: - Mas isso não é só com tainha, em tudo, geralmente, os olhos pouco enxergam! Seu olhar se perdeu no horizonte, como se estivesse vendo um grande filme naqueles poucos segundos em que olhava para o infinito do mar. Perguntei pensando que iria receber uma resposta positiva: -Deve ser interessante enxergar mais que os outros, não Cambira? -Que nada menino, seria bom se eu enxergasse só tainha, mas há coisas que é feliz quem não consegue ver. Esse sofre menos. Ia não deixou passar: -Não entendi. Então não é bom ser espia? -Ser espia de tainha é bom, mas a gente acostuma tanto a ver o que os outros não veem, que acaba sendo espia da vida, de tudo que acontece. E quem enxerga mais, reclama mais, conhece as pessoas mais por dentro, sabe quem é bom, mas também conhece quem não é. Sofre mais! Conhece a traição, a maldade, a vigarice. É duro conhecer as pessoas que logram os outros. Lá daquela pedra - Continuou ele apontando para a Pedra de Espia – De lá eu vejo mais do que eu gostaria. -Eu tenho tanto a vontade de saber espiar as tainhas e de lá comandar todo mundo aqui em baixo, fazer igual você, Cambira, com o movimento do chapéu de palha todos te obedecem, fazem o que você orienta. -Pois é, menina, fazem o que oriento porque teem interesse. Não é o movimento do meu chapéu que interessa a eles, mas é a tainha que vai

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encher suas panças. Sei porque de lá vejo tudo. E quando venho cá embaixo, vejo os olhos deles. Isso me dói, antes não enxergasse isto. Tudo era novidade, estava aflito para saber como as coisas funcionavam, perguntei: -O que as pessoas farão com todo o peixe de hoje, é muita tainha pra comer?! -Esse é o problema. Disse Cambira com certa tristeza nos olhos – A gente se lasca pra pescar, o Teodoro se arrebenta pra ter a rede, tralhar, chumbar, nós é que fazemos tudo, aí vem esse tal de Gercino, lá de não sei onde, e paga uma miséria pelas tainhas. Bem pensando, ele vende é nosso sangue e nosso suor. Melhor seria não saber disso! Ia prestava atenção. Tinha pena, mas ao mesmo tempo admirava aquela figura franzina, que sabia mais que os outros. Realmente, Cambira era um espia da vida. Depois de um silêncio, ela pediu: -Você me ensina a ser espia, Cambira? -Não queira ver mais que os outros, menina, pois vai ver, além de tainha, muita podridão. Não queira conhecer essa gente por dentro. -E não tem pra quem vender os peixes por um preço melhor? Perguntei. -Ter tem, menino, mas esse povo é frouxo. Tem medo do Gercino. Um dia talvez nós daremos um jeito nisso! Disse decidido. -Você me ensina a ser espia Cambira? Insistiu Ia. -Nunca vi uma mulher ser espia, muito menos menina igual a tu, nem cresceu ainda. -Se homem aprende, mulher também pode. Retrucou Ia, sem desistir. -Tá bom, eu ensino alguma coisa a vocês. Mas só vou ensinar a ver tainha, o resto é com vocês.- Vencido disse Cambira. Nisso papai chegou, preocupado comigo e fomos embora. Comemos a tainha assada na brasa por meu pai, que improvisou uma churrasqueira, mas não sem antes que eu recebesse um sermão, dizendo para eu não ir longe, não falar com desconhecidos, porque eu não sabia enxergar as maldades da vida. Você não aprendeu ainda a ver o que está dentro das pessoas.

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Ouvindo papai percebi que eu queria enxergar mais, sentir mais. Assim como Ia, eu também queria, na verdade, ser espia, tal qual Cambira.

Três

Daquele dia em diante, eu e Ia chegávamos da escola e íamos até a pedra de espia encontrar Cambira para que nos ensinasse sua arte. Era muito divertido, pois além de ensinar, contava muitos causos: estórias de pesca, de brigas, de festas, de fandangos, e tantas outras que um dia ainda vou contar. Ele contava e ria de nossos risos. Até que no final do mês, o tempo da tainha acabou, Cambira pegou o caminho do pique e foi para casa, lidar com a agricultura, sua verdadeira ocupação. Voltava até a Vila para comprar mantimentos, rever as pessoas, inclusive Teodoro. Finalmente chegou maio. Os agricultores voltaram para seus barracos à beira da praia para nova temporada de tainha. Cambira também, sempre magro feito um peixe seco. Naquela feita as aulas foram práticas. Cambira esperava para ver se conseguíamos avistar o cardume de tainha antes dele. Eu tinha muita dificuldade, já Ia pelo contrário. O maestro dizia que eu precisava sentir a tainha vindo, não bastava ver, tinha que sentir. Agora acompanhávamos os cercos lá da pedra de espia. Víamos os movimentos das canoas, das pessoas, o cardume chegando e indo de encontro às redes. Assistíamos o concerto ao lado do maestro. Vontade de pegar a batuta e comandar a orquestra, mas isso era só para o Cambira. Se bem que Ia, imitava cada um dos seus gestos. Cada vez que o cerco dava certo era uma alegria para nós na pedra de espia. Ia sentia como se ela é que houvesse sido a espia, e não Cambira, tamanho o entusiasmo com o aprendizado. Passaram os meses de maio e junho. Aprendemos muito, não só sobre tainhas, mas sobre todo tipo de pesca, sobre a Vila dos Pescadores, aquela gente, suas dores, suas alegrias, todos os seus sentimentos. Infelizmente, o tempo da tainha se encerrava. Era 28 de junho de 1946. Haveria um último arrastão, o melhor do ano, segundo

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Cambira, de quem tiramos um pouco da solidão de espia, daquele que enxerga além, que possui dentro de si o sentimento da Vila. Amanheceu, fui até a praia; a Vila dos Pescadores estava alegre; as crianças de roupa domingueira. Era o dia da Festa de São Pedro, o padroeiro dos pescadores. O vento sul, forte, anunciava chuva; o rebojo não tardaria, por isso a procissão não seria por mar, mas pela praia, das canoas até a Igreja. Durante a procissão vi Cambira, e como não podia deixar de ser, como bom espia, circulava seu olhar, observando tudo. Parou na porta da igreja, donde podia ver todos os movimentos, olhar as pessoas. Encontrei Ia na Igreja e tratamos de cuidar do que o maestro fazia. Fixava o olhar de um lado, parecia desaprovar algo de outro. Em cada canto uma reação diferente. Observou todos os lados, e como já tivesse terminado sua análise, parou seus olhos no crucifixo e então sorria muito. Parecia que ambos, ele e o Cristo, riam da mesma coisa, pura cumplicidade; um último olhar para o altar e saiu em direção ao matinho que existia entre a praia brava e a praia dos pescadores, perto da Vila. Eu e a Ia esperamos terminar a missa e fomos direto para a praia. Não foi difícil encontrar Cambira, sentado na pedra de espia, olhando o infinito. Fomos ao seu encontro. -Oi Cambira, que está fazendo aí? Tá todo mundo na festa, agora é que vão sair o churrasco, a tainha recheada, o frango assado, e você aqui! Perguntei-lhe. -Sabe quem deu a carne pro churrasco? Perguntou Cambira sabendo que não sabíamos a resposta. E ele mesmo respondeu: Gercino, o que tira nosso sangue e suor com uma mão e com a outra agrada pra que a gente se engane que não doeu. Primeiro suga, depois quer mostrar que faz bem pra gente. Canalha! As tainhas eu como, mas essa carne não! Ele via o que os outros nem sequer imaginavam: via a exploração do atravessador, a ganância, a inconsciência dos pescadores. A essa altura Cambira discursava pra nós: - Essa gente não entende que sem nós esses Gercino não é ninguém. Ele nem sabe subir numa canoa. Não reagem, parece que são escravos dele. - Mas Cambira – Disse eu – Como é que eles vão saber? Quem ensina pra eles?

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- Tenho ensinado sempre, eles não escutam. E não é só no tempo da tainha, é com qualquer peixe, com camarão sete barba, pistola, o rosa. Só muda a pesca, a exploração é a mesma. Nós pescamos, nos danamos, e ele nos explora. - Se você aprendeu os outros também podem aprender. Disse Ia. -E se a gente conversar com todo mundo? E se a gente ajudar você a convencer os outros? Completou Ia empolgada. - Vocês são umas crianças, como poderiam ajudar? Quem daria ouvido a vocês? Indagou Cambira, com voz de desânimo, porém com olhos de esperanças. - Papai! Disse Ia. – Primeiro convencemos papai, depois a gente vai vendo o que faz. Conversamos com as crianças e elas com seus pais, até convencermos a todos. -Já falei uma vez com Teodoro, mas só eu e ele não adianta, teríamos que convencer os outros. - Então, vamos pra festa, comer uma tainha e conversar com as pessoas. Você procura papai, enquanto nós vamos conversando com as crianças. - Gostei!. Disse Cambira. Vamos pra festa! Ao chegarmos no pátio ao lado da igreja, eu e Ia de um lado, conversando com as crianças e os jovens, e Cambira, de outro, conversava com os outros pescadores. Teodoro não estava na festa. Nós até que conseguíamos explicar as coisas, se bem que a maioria das crianças não entendia muito do que estávamos falando. Mas quando Cambira falava, com seu entusiasmo, os olhos dos pescadores brilhavam. É verdade que alguns o chamavam de louco e demonstravam medo do Gercino e dos homens que o acompanhavam. Ele era contagiante! Quando Cambira chegava perto de uma roda de pescadores, em seguida chegava alguém do grupo de Gercino e, com olhar ameaçador, fazia com que a roda espalhasse. Depois que Cambira falou com todo mundo que pôde, Gercino mandou chamá-lo: -Senta aí, Cambira, vamos, tomar uma cerveja com a gente. Cambira, desconfiado, puxou a cadeira de palha, virou o

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encosto para frente, pegou o copo, e ficou esperando que Gercino tinha para lhe dizer: -Meu grande amigo Cambira. – Disse Gercino – O que está acontecendo que “tu” anda colocando coisas na cabeça dessa gente? - Cada cabeça uma sentença. Falou o maestro. -Vamos deixar disso. Vamos nos entender.”Tu” fica quieto, deixa de colocar minhoca na cabeça do pessoal que “tu” só tem a ganhar comigo. Diz o preço do teu silêncio e toma mais uma cerveja com a gente. Disse Gercino, como se já tivesse tudo acertado.

Sem dizer palavra, Cambira olhou nos olhos do atravessador, arrastou a cadeira, virou de costas e saiu. -“Tu” é louco, vai perder esta chance? Não tem onde cair morto, pra que tanto orgulho? Não havia quem não deduzisse que tipo de conversa havia acontecido ali, até porque todos ouviram as últimas palavras de Gercino. Cambira se afastou, foi até a barraca de bebida, pediu uma cerveja, tomou o primeiro copo num gole apenas, encheu o copo de novo, parou, com um olhar triste que era só dele, e como se estivesse na pedra de espia, fez seu olhar correr de canto a canto da festa, parando em cada grupo de pessoas. Depois de um grande silêncio após a saída de Cambira, Gercino gritou: - Traz cerveja pra todo mundo e põe na minha conta, e Viva São Pedro! Era cerveja aos montes. Os pescadores que estavam na festa gritavam muito: “Viva São Pedro”. Com Gercino e seus homens, gritavam, bebiam e comiam. Ia foi triste e pensativa para casa, mas não baixou a cabeça, ao contrário, antes de ir espiou grupo por grupo. Então, fui até onde papai estava e fiquei escutando as pessoas, uma gente muito boa. Os pescadores conversavam com papai como velhos amigos. Seu Mané Bagre, que não perderia a festa por doença alguma, contava o dia que Teodoro salvou em sua canoa seis gringos de uma só vez na puxada de um lagamar.

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Todos tinham orgulho do Teodoro. Enquanto papai escutava e ria, olhava curioso para Gercino e os seus. De repente, deu um tapa nas minhas costas e chamou pra ir pra casa. Reclamei que queria ver os fogos, mas ele insistiu, disse que veríamos de casa, e lembrou que a chuva viria, o que aconteceu. No outro dia a notícia chegou cedo na praia: Durante o foguetório, antes do aguaceiro cair, Gercino e seus homens foram até a casa de Cambira, o espancaram, chutaram sua barriga, pisaram em suas costas, cuspiram em seu rosto, arrastaram-no pelos cabelos, tiraram-lhe a roupa e o jogaram na beira do mar. Seus gritos de dor se misturavam com os dos pescadores que estavam na festa e com o barulho dos fogos. Gercino, antes de sair gritava a alguns centímetros da orelha de Cambira: - Eu ofereci pra “tu” ser meu amigo, mas “tu” é teimoso, tem que apanhar pra aprender! Quanto mais “tu” falar, mais tentar por essa gente contra mim,mais tu vai apanhar. Mané Bagre encontrou Cambira ainda de madrugada, na areia da praia, encharcado de mar, de chuva e de sangue.

Quatro

Ia foi até minha casa cedo para me chamar para ver Cambira. Ela soube ainda de madrugada, pois como sempre, o primeiro a ser avisado foi o Teodoro. Cambira estava em seu barraco, com as roupas ainda sujas de sangue, mas conseguia falar e até a andar, com muita dificuldade. A mãe de Ia é que foi atendê-lo, fazer curativos, levar ervas e benzer, pois era a benzedeira mais conhecida da Vila. Teodoro estava indignado, falava, praguejava, chegava a babar de nervoso: - Além de ser explorador é um bandido esse estropício! Depois de terem tratado Cambira, saíram. As pessoas passavam, perguntavam como estava o espia, ofereciam serviços e iam para casa. O povo da Vila dos Pescadores era muito solidário. Eu e Ia ficamos mais um pouco, mas o maestro não queria conversa.

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A nossa tristeza era igual a de todos. Na praia só se ouvia o barulho do mar. Fomos embora, mas combinamos que à tarde voltaríamos para ver como estava Cambira. E, assim, voltamos à casa dele, com Teodoro, sua mulher, papai e outras pessoas, éramos nove ao todo. Como não o encontramos, fomos à pedra de espia. Estava lá. Vendo-o, Teodoro gritou: - Que desânimo é este, homem! Se ele quer briga, vai ter. Nós vamos mostrar com quantos paus se faz uma canoa! - Não estou desanimado, Estou pensando como convencer nossa gente a não ser enganada. - Pois nós estamos aqui pra fazer isso contigo. Disse decidido Teodoro, e continuou: - Nós vamos sair daqui de dois em dois e vamos de casa em casa para conversar com o pessoal. Eles têm que escutar a gente. -Se a gente não vender os peixes pro Gercino, o que vamos fazer com eles, deixar apodrecer? Perguntou Mané Bagre. Cambira expôs o que havia pensado como solução: - E se a gente juntar todo peixe e camarão que nós pegarmos e só vender se eles pagarem o preço justo? Se ele não comprar de um não compra de ninguém. Ele precisa do nosso peixe, senão não tem o que vender. - E se ele comprar na outra Vila? Retrucou Mané Bagre. -A gente seca o peixe e vende pros banhistas. Tem melhor preço que o peixe fresco. Fazemos isso pelo menos até arrumarmos outro comprador pro nosso peixe e nosso camarão. Alguém há de querer. O Gercino não é o único que compra peixe e vende. Papai entrou na conversa. Todo mundo parou para ouvi-lo falar: -Eu acho que ao invés de vender para alguém que vai revender, melhor vender diretamente para os hotéis da Capital. Vocês venderão por um preço muito melhor, e os hotéis poderão comprar mais barato. Bom para ambas as partes. -Aqui quase ninguém foi até a Capital, como vamos fazer isso? Perguntou Teodoro. -Eu posso ajudar, nasci lá e conheço muita gente. Arrematou papai. O entusiasmo foi grande. Teodoro e Cambira organizaram o que deveria ser falado nas casas, organizaram as duplas e todos saíram. Assim

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que iam convencendo as pessoas, o grupo ia aumentando, pois sempre convidavam as que iam sendo convencidas a acompanhar o grupo. Salvo uns poucos, que por medo não foram juntos, criou-se uma grande corrente. A Vila dos Pescadores nunca mais seria a mesma. Depois das visitas, os pescadores ainda conversaram e sonharam até o fim da tarde com os planos traçados na pedra de espia. Alguém

lembrou que estava quase na hora de começar o fandango que encerrava

a festa de São Pedro.

Cinco

Toda a Vila foi à casa de Teodoro para o fandango, os violeiros começaram agradecendo os donos da casa com a chamarrita da louvação, as violas, os violinos, a rabeca e o adufo, muito bem “temperados”, ninguém ficou nos bancos. Daquele momento em diante era só festa, o que valia era a tamanqueada, as marcas valsadas, as marcas bailadas. Depois da chamarrita de louvação veio a chamarrita de oito, a meia canja, o dondom, o passeado, a estrela, e dá-lhe festa. De vez em quando um ou outro folgadeiro dava uma parada para secar a camisa suada, se esquentar na fogueira, tomar um quentão, comer um doce de goma, e provar um pouco da gemada com vinho. O povo estava muito alegre. Sabia que no outro dia faria a grande pesca do ano, era só esperar Cambira gritar e fazer o cerco. Havia certeza no trabalho de Cambira e no sucesso da pesca. As tainhas que iriam pegar seriam secas e feitas cambiras (peixe seco) para aguentar o resto do ano, para os dias em que a pesca fosse fracassada. O peixe seco é que garantia que ninguém passaria fome o resto do ano. A habilidade do maestro era tão importante quanto as redes de Teodoro. Sem os dois não havia tainha e haveria fome. Não era à toa que entre uma música e outra gritavam, além de Viva São Pedro, Viva Teodoro! Viva Cambira! Lá pelas cinco da manhã, ainda escuro, Cambira despediu-se de todos e saiu. Quando chegava perto de seu barraco, estavam a sua

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espera Gercino e seus homens, e desta vez foram muito mais violentos, bateram muito mais, humilharam muito mais, quebraram seus dentes, os ossos de um de seus braços, e os ossos de suas duas pernas. Que dor sentia aquele homem magro. Ossos era quase tudo que tinha em seu corpo, e estavam quebrados. - Se “tu” sobreviver desta, da próxima vez “tu” morre. Disse Gercino com o pé sobre o rosto seco e humilhado de Cambira. Quando encontraram Cambira ele estava quase morto. Trataram suas feridas, colocaram talas à força em seu braço e nas suas pernas. Desmaiou mais que uma vez. Enquanto Teodoro ajudava sua mulher no tratamento, Cambira falou baixo: - Está dando certo. Gercino sabe que se nós estivermos juntos eles não têm peixe. Não foi desta vez que mataram Cambira, mas alijaram a Vila. O cardume de tainha poderia chegar a qualquer momento e não havia quem pudesse espiar, não por falta de vontade, mas por desconhecimento. Um ou outro ia até a pedra de espia, mas não conseguia enxergar nada. Era um total desânimo na praia. Como sobreviver o resto do ano? Sem o espia só iriam conseguir pegar tainha para uns dias, à tarrafa. O silêncio na praia era fúnebre e o desânimo estampado em cada pessoa daquela Vila. Cambira não podia mexer mais que os olhos e, um pouco, a boca para cochichar alguma coisa. O cercavam como que num velório. A esperança de tainha estava na cama, quebrada, sem a mínima condição de ajudá-los. Quando já não havia a menor ilusão de que conseguiriam fazer o cerco de tainha, se ouviu uma voz fina, feminina, gritando de cima da pedra de espia com um chapéu na mão: “tainha, tainha ...” Era uma menina, magra, de olhos negros, agitava aquele chapéu como uma maestrina agita sua batuta. Havia aprendido com Cambira a coordenar com uma certa elegância nos gestos. Ninguém parou para pensar quem seria, ninguém sequer indagou se seria verdade o que estava acontecendo. Todos a obedeciam. Cada um foi tomando sua posição, uns pegavam as redes, outros as canoas, as crianças saíram correndo avisar os poucos que não estavam na praia. Da pedra de espia Ia coordenava o arrastão com

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a mesma autoridade invejável de Cambira, como se também soubesse toda a sinfonia de cor. Foi o melhor arrastão de todos os tempos. Teodoro estava surpreso e orgulhoso pelo que Ia havia feito. Repartiu os quinhões como de costume. A certa altura olhou para Ia para dar seu quinhão de espia: - Esse quinhão é do Cambira. – Disse Ia. Como ninguém vendeu seu quinhão ao Gercino, irado no combro, Teodoro reuniu todos os pescadores e propôs: - Essa tainha de hoje é pra secar no sol, mas no ano que vem nós não vamos mais vender pra atravessador nenhum, vamos juntar tudo que pescarmos e vender direto na capital. Com o dinheiro que juntarmos vamos comprar mais redes e distribuir o peixe em quinhões iguais. A Vila dos Pescadores nunca mais foi a mesma! Eu vivi para ver, e vi do alto da pedra de espia a Vila se tornar uma cidade. Esta história não acaba aqui. Ainda contarei.

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Menção HonrosaRodrigo Schmidt

Secretaria Especial de Relações com a Comunidade Curitiba

“Rastros da cidade”

Quando viu o Sol refletido no Olho foi como se visse a imagem do vitral da igreja que sua mãe o levava. Firmou-se na bengala. Um turbilhão de vozes falavam ao mesmo tempo. Passou pela Assembleia e avistou o Palácio Iguaçu. Entrou na Cândido de Abreu. No lugar das construções atuais via sobrepostas as diversas que já existiram. Quantas e quantas vezes havia passado por ali em direção ao Colégio Estadual. Estava tudo diferente, mas incrivelmente igual. Olhando para cima esbarrou em uma moça. Reparou nas roupas. Essa saia, esse bordado. Há muito tempo que não via essa forma de se vestir. Lembrou-se de suas mulheres, das mulheres do mundo. Das paixões correspondidas, das que não correspondeu e das que não foi correspondido. Onde estariam todas as pessoas de sua juventude. O que teriam feito. Estariam vivas. Casaram-se, tiveram filhos. Indagações sem respostas. Algumas delas agora entravam nas lojas, caminhavam apressadamente. Outras a passos despreocupados, como tarde de domingo de matinê na XV. Os carros também pareciam ter saído de museus. Mas estavam ali funcionando, vindo do Passeio misturados com os modelos de hoje. E vinham também carroças dos colonos europeus de Curitiba carregadas de abóboras e batatas. No shopping entravam carregamentos de ferro, funcionários em seus trajes fumaceados, mas tinham também executivos, estudantes, todos andando juntos com uma naturalidade inexplicável. Não entendia o que acontecia. De repente imaginou-se louco. Só ele estaria vendo isso. Como se tivesse em uma peça em que todos estavam seguindo seus papéis e só ele ali perplexo e alienado. Na esquina da Inácio, um casal. O rapaz convocado para o front consolava a namorada. O casamento, os preparativos tinham que esperar o retorno. O que antes parecia distante, um improvável chamamento, de repente tornara-se realidade. Em três semanas estaria viajando. A flor, o anel, o compromisso, tudo que aconteceu naquela

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tarde repetia-se e, ele era espectador de sua história. Agora, velho, viu-se dizendo as mesmas palavras. Escutando os soluços. Enxugando as lágrimas de uma face inclinada, resignada. Viu seus filhos correndo em direção ao Passeio. Sua mulher arrumando-lhes as roupas. A gritaria juvenil ecoando do colégio. Sentou-se no banco da praça. Endireitou-se. As duas mãos apoiaram-se na bengala. As pombas de um lado para outro corriam atrás de pipocas perdidas e jogadas. Fechou os olhos, escutou o avião sobrevoando a cidade. As arrancadas das motos ao abrir do sinaleiro. Deslumbrou também o silêncio da cidade em dia de feriado, a véspera de carnaval, as luzes do natal. O som dos desfiles, as bandeirinhas se agitando. A cidade em dias dos jogos da seleção. De repente os sons foram embora. Sentiu o frio da cidade em dias de inverno, o vento cortando, rachando o lábio, endurecendo a mão. Abriu os olhos. Era noite. Não conseguia distinguir há quanto tempo estivera ali. Se desde aquele dia, há meses ou anos. Mas tivera a certeza de que a cidade havia vivido ele.

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“Refletindo”

Menção HonrosaValter Cardoso

Secretaria de Assuntos Estratégicos - CELEPARCuritiba

Quando só, sentia-me soberano de todas as coisas inanimadas que povoavam minha casa. Porém, em determinados momentos, o termo inanimado não correspondia à situação e, um dos objetos que mais reforçava essa ideia estava à minha frente naquele momento. Nas suas funções primordiais, de imitar perfeitamente minha imagem, meus movimentos e o cenário ao fundo, despertavam motivos de deslumbre. Olho a olho, ombro a ombro e rotações sincronizadas. Além disso, havia vida nele, pois era um antigo espelho temporizado de três botões. Ganhei-o de meu pai ao completar meus primeiros anos. Para manipular o artefato, segui as instruções que ele me passou. Pareciam complicadas para a época, mas hoje fazem parte de um ritual: “Faça uma careta e conte até dez, mas não mexa a boca ou a cabeça”. Repetia agora a careta que fiz quando criança, com a cabeça na mesma posição. Os dez segundos na minha infância pareciam muito longos, principalmente porque eu não tinha a exata noção de tempo. Fingia que estava brincando de estátua. De forma contrária à minha imobilidade, o espelho ganhava vida. Como resultado da primeira parte do ritual realizada com sucesso, emergiu da moldura um botão de pressão do lado esquerdo. Não, não havia qualquer indício de que ali ou em qualquer outra parte da moldura houvesse algum botão escondido. Sem perder tempo continuei com o ritual: “Faça agora uma cara feliz e conte até dez, mas não mexa a boca ou a cabeça. Durante este tempo, fique apertando o botão com uma das mãos”. Esta parte, no início, me confundia, ora pelas palavras escolhidas pelo meu pai, outra porque felicidade lembrava alegria e risos, o que dificultava a imobilidade. Com o passar do tempo, ficava ainda mais difícil repetir a expressão feliz que se tem quando criança. Deixava de ser um ritual para tornar-se um desafio, trazendo lembranças de dias melhores e piores.

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Ao surgir o botão do lado direito, o passado dava lugar ao presente, confirmando a correta execução da segunda parte do ritual, e, lembrando-me de continuar com a última sequência de instruções: “Dessa vez, fique sério e conte até dez, mas não mexa a boca ou a cabeça. Não esqueça de apertar os dois botões, durante este tempo!”. Assim como nas duas primeiras partes, na terceira também obtive êxito. A revelação do terceiro e último botão permitiu que as funcionalidades estivessem ao meu dispor novamente. Com o tempo, descobri que o ritual não poderia ser repetido por outras pessoas, somente por mim. No espelho havia um dispositivo de reconhecimento facial, configurado para o meu rosto, que também previa meu envelhecimento. Quando uma criança ganha um brinquedo, ele é explorado à exaustão, sendo depois deixado de lado. Comigo foi diferente. Era o tipo de presente que passaria o futuro comigo. Após muita insistência, descobri a funcionalidade do botão esquerdo e do porquê do nome temporizado. Ao pressionar o botão esquerdo por dez segundos, o espelho começava a gravar as imagens e depois repeti-las, como em um filme, pelo mesmo intervalo de tempo. Pressionei o botão em questão, fechei os olhos e fiz algumas caretas e gestos. Ao abri-los e liberando o botão, pude contemplar-me e, apesar do papel de bobo, fiquei impressionado com o resultado. Como que por intuição, deixei o botão pressionado, e fiquei de costas para ele, agachando e subindo pelo intervalo de tempo. Outra novidade, já sabia como ver minhas costas e nuca. Ganhando confiança, usava o efeito do botão esquerdo para ver o que tinha do outro lado das janelas altas. Sabia também o que acontecia em algum corredor sem precisar entrar nele. Como o espelho era fino, às vezes passava na fresta das portas. Eu me sentia a criança mais poderosa do mundo. Algum tempo depois descobri a funcionalidade do botão direito. Ao mantê-lo pressionado por dez segundos ele gravava em memória o último “filme” obtido pelo botão esquerdo. Essa memória era limitada, mantinha somente seis pequenos momentos da minha vida. Ao gravar um sétimo momento, ele imediatamente apagaria o mais antigo.

Contos · 101

Assim como um nativo da Ilha de Vera Cruz uma vez nomeou um espelho simples de “dois eu”, eu chamava o meu de “muitos eu”. Hoje, sempre repasso os seis momentos escolhidos para guardar na memória. O primeiro, quando tinha o espelho há pouco tempo, ainda banguela e mostrando meu corpo franzino de frente e de costas. O segundo, de terno, adolescente e com o cabelo penteado ainda molhado, me preparando para um evento importante. O terceiro, novamente de terno, mas dessa vez por um motivo mais triste, a passagem de um ente querido. As imagens quatro, cinco e seis apareciam e sempre traziam lembranças fortes, como mudanças físicas, comportamentais e de pensamento. De uma pequena espinha a uma cicatriz. Do cabelo comprido à calvície precipitada. Os trajes, os locais ao fundo mostrando que o mundo mudava, mas eu ainda era o personagem principal da minha história. Perdia horas com o meu brinquedo de infância, usado para aumentar e - por que não? - multiplicar dimensões. Como uma extensão do meu corpo, aumentando minha imagem através de um caleidoscópio de emoções. Sempre concordando e repetindo meus movimentos e sentimentos. Mostrando-me que, em uma orientação ocidental, pode-se adquirir a destreza de ser sinistro. Apesar de meus reflexos diminuírem com a idade, o do espelho sempre imitou perfeitamente as minhas imperfeições. Com a virtual virtude de mostrar a simetria desfigurada sem hipocrisia. Minha imagem seria então meu complemento, onde o verso e o inverso se aplicam com o mesmo sentido de frases palíndromas. Quanto ao botão central, descobri recentemente que serviria para configurar o dispositivo de reconhecimento facial. Com o auxílio dos outros botões, poderia apagar as minhas memórias e passá-lo para outra pessoa. Mas, apesar de antigo, não ter recursos sonoros, dispositivos holográficos ou outras funcionalidades comuns hoje em dia, meu lado narcisista diz que não estou preparado para desfazer-me dele. Espelho-me na madrasta da Branca de Neve ao afirmar possessivamente: Espelho, Espelho meu, existe no mundo alguém mais refletido do que eu?

poesias

104 · Poesias

1° LugarLuiz Carlos Salami

Secretaria de Estado da Educação do ParanáSão Pedro do Iguaçu

“Dom Quixote”

I

singro em água mansao barco parece firmemas a alma balança

teus moinhos de ventocom espadas de papelcravadas no tempo

lúgubre lamentona serra do rola-mocaum réquiem ao vento

estrela cadenteno firmamento deslizasome num repente

relinchos relinchosnos confins duma savanaquem corteja a dama

uma brisa brandaembala a breve sonecaduma salamandra

cavaleiro andante rudes combates à vistasus, sus rocinante

Poesias · 105

por mais que tu cismesnunca atinas com o rumodos gansos, dos cisnes

mente machucadapela dor do amor perdidodor, dor tresloucada

um nuevo caminouma paixão sem, sem fimsonho dum menino

numa ribanceiraformigamente descansatamanduá – bandeira

sancho, devagaro teu calcanhar – de – aquilespode te matar

II

Não sou Dom Quixote.Nem Sancho Pança. Na pontade minha canetaafiado gume de lança.

Uma tarde inteirapara esculpir uma trova –a trova de amorno tronco duma palmeira.

106 · Poesias

Triste Fim. O Fimde Policarpo Quaresma.Vai-se a rubra rosa.Fica o fecundo jardim.

Vida – trama tola.Tanto nos faz sorrir comoNos leva a chorar – Ardida e doce cebola.

Indolentementemove-se o moinho de vento.vai devagaritofeito piá pirracento.

No peito marcadoo coração já cansadoarquiva tuas lutasdo presente, do passado.

Poesias · 107

2º Lugar

Jane Maria Sprenger

BodnarSecretaria de Estado da

Educação do Paraná

Curitiba

“Palavras de verdade”para Luísa

palavras de brinquedo palavras de verdadeimagens impossíveisnascidas das primeiras palavras

garrafinha de águaagasalho para a noiteo livro esquecido da aula de ciências

pó de asas, pólenimagens absurdasos olhos aveludados da mariposa

asas de porcelanadas louças antigascoladas com clara de ovo

filhote de garça caído no ninhoo peixe ainda em seu bicotema para um haicai sombrio

os acentos das palavras que você escrevesão filhotes estabanadosdespencam lá do alto

caderno, ninho de letrasvamos colar os acentos que você esquececom chicletes

tecladoseus dedos olhos fascinados outro sentido para a métrica farfalham

108 · Poesias

3° LugarMário Sérgio de Mello

Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior - UEPGPonta Grossa

“Lápis”

prefiro os lápisapontados a mãocanivete ou estileteo cuidado em cada corteimperfeições e diferençasmas que só elas podemfazer o negro carvãodo jeito que mais aprazàs palavras mais intensas

prefiro os lápisapontados a mãotortos e certeirosàqueles aparadosretos, pontiagudoscones lisos, colarinhossinto que destesnão poderiam verteros trêmulos escritosque vertem do meu ser

tal como aos homensprefiro os lápisapontados a mão

Poesias · 109

Menção Honrosa

Juliano GrusSecretaria de Estado da

EducaçãoCuritiba

“Amor efêmero”

Todo dia naquele ônibusera olho no olhocom aquela menina.Passava ponto, parava tanto,só não parava aquele olhar.Namorei-a, só de vista,durante vários e vários diaspor uns doze toques de campainha.Êta amor passageiro,efêmero como o preço da tarifa.

110 · Poesias

Menção HonrosaOrlando Pinheiro

Secretaria de Estado da Cultura - CCTGCuritiba

“Blackout”

Não predomina a luzPredestina primeiroO contrário da sínteseO sinônimo do óbitoO óbvio

Poesias · 111

Menção Honrosa

Nelci Peripolli GodinhoSecretaria de Estado

EducaçãoNova Aurora

“Era outra vez, uma menina”

Estranha tela aquelade cores ora serenas, ora febris em que centenas de fragmentos em meio a um turbilhão de pigmentos arriscam movimentos sutis

Num segundouma menina emergeem cores antigas como o mundo- tão novas para ela!

Nas mãos um pincel, um arco-íris na paletaa pinceladas livres certas vivas a menina traceja (a vida)- irrequieta borboleta!

Mergulha as mãos no azul do céu e escorrega-as pelas paredes rompendo limites- as paredes misturam-se ao céu!

Inventa um cavalinho transparente para ondular no azulfarejar o tempo... galopam entre nuvens de algodão, por campos e mares verdes balançam-se nas cabeleiras de árvores verdadeiras, de braços plumosos - o verde tinge os olhos da menina e invade seus sonhos despretensiosos!

Mais adiante

112 · Poesias

as ondas das águas tépidas sugerem-lhe outro curso- novas pinturas, outras técnicas!

Esboça uma forma insinuante...uma linha sinuosa... imprecisa...Indecisa... a moça começa um traço,traça, destraça, cruza, transpassa,retraça até que perde a graça:- um grito, a dor!

Na torre as sombras roubam-lhe as cores:a mulher tenta juntar sonho a sonho com traços fracosnos estilhaços de um abraçodestila o açoestrelaços de luz- cansaço!

Tinge tudo de sépiatons neutros, desprovocantes, irrelevantes, isentos de indagações Termina e se encostasem rosto, braços soltos uma gota quente escorre seguindo o curso das formas e cai umedecendo a tinta seca- restinho de púrpura deixada na paleta!

Súbito

Poesias · 113

refaz uma grande janelaquebrando as vidraças fazendo inundar a luzuma luz sem pressa que a aquece e a seduz rouba o olhar da velha-menina encoberto pelas cinzas das horas cabelos brancos, antigos olhos verdes- pinta-se outra vez!

Irreverente agarra as crinas do cavalo transparenteque ondulando fareja o azul do tempo...com um traço o enlaçae com ele vai...voa o mundo voa a vidabusca tintas etéreas para finalizar sua tela:- eterna tela a se estampar!

114 · Poesias

Menção HonrosaAndré Alves PereiraSecretaria de Estado da Justiça e da Cidadania - DEPENGuarapuava

“Imagem humana”

Vi um reflexo no espelho?Não tenho certeza de que a imagem era minha.Corri demasiado em busca de uma resposta, nada pude encontrar.

O tempo, me fez esperar e depressa passou.Fez os anos mentirem, que o homem mudou.Não compreendo essa metamorfose, que é a vida.Porque, o homem que sou hoje, não é o que fui.

Seria fútil admitir que mudei. Inútil afirmar que gostei.Pior ainda, é ser, uma soma humana na sociedade.Ela, ela precisa de ação. Mas sem identificar o reflexo não posso!

Vago, é ser mais um.E fico só.

Só?Só andar por caminhos não basta,Só passar pela vida, não é existir.Só amar por amar, não define o amor.

Vago?

Vago é trilhar sonhos de outrosVago, é ser quem não sou;Vago é querer ser algo, e ao mesmo, tempo não poder.Vago, é vagar por estradas que levam a muitos lugares e não chegam a lugar nenhum.

Poesias · 115

O caminho...

O caminho é andar.A estrada, uma linha que já está definida,Sair dela, tropeçar, pular pedras, retirar entravesÉ ser possível de mudar - a rota.

Vagar por caminhos e não encontrar o reflexo - solidão.Imprevisível, é amar.Forte é querer ser, o que já não sou.Depressa?Vai o tempo humano.

Uma imagem, um reflexo, o que falta é o espelho.Não conseguir ver o real já é uma visão.Não sonhar como antes, é ser o que me tornei.

Se antes havia uma imagem Hoje, há um reflexo.O espelho inexiste, assim como não existe a imagem que criei.

Humano,Transpassa o que pensaE vive o que pensou.

O reflexo é uma construçãoTua e minha.A imagem, nunca pode ser a mesma.Porque somos no fundo um espelho quebrado.

116 · Poesias

Menção HonrosaHelaine Giraldeli Balla

Secretaria de Estado da Educação do ParanáArapongas

“Noite e poesia”

Quando o desejo de viver for maiorque o tamanho dos teus diasestarei à tua porta feito um anjo Eu...arte, palavraPoesia

Meus versos são passos,caminho leve sobre os teus tesouros onde em ti a melhor parteé onde estou borboleta fêmea desafiandoo deserto dos homens

Assim que me anuncio com minhas palavras poucas já não tens como fugiro encontro é certovou direto, retouma flecha contra o malum tiro dentro do peito um vento frio em tua febre

O tempo não espera o amorata-me ao teu corpo antes e me ama em silêncio vem desvendar os segredos do meu ritmoe despir as minhas intenções

Olha bem nos meus olhos e beija-me a boca cheia de sentidos vem ser feliz!

Poesias · 117

Descobre em mim a matéria de que és feito penetra as metáforas do meu corpoa minha ambiguidade inocente e todos as minhas rimas “ajuizadas” leia-mesou horizonte para teus olhos e linguagem para o coração

Deixa a minha verdade aclamar teus prantostuas dores de amores teus sustos teus momentos de morte

Decifra o lirismo em meus olhos mata em meus braços os desejosque desesperam a tua alma e depois, em silêncio deixa que eu te enxergue dentro e ilumine o labirinto que te esconde entrega-te a mim sem medo de não poder voltar

Vê ao redor .O que te cerca? dias de ferroforjando homens em matéria cinza

Sinto em mim pulsarem as cores mais puras e me vejo agora contigo, aprisionada! esquece as chavesé quase noite e não existem poemas proibidos

118 · Poesias

Menção Honrosa

Arlete Gomes de SouzaSecretaria de Estado da Educação

Guaratuba

“Nuvem”

Felicidade efêmerapalpável feito fumaça.Sofrimento denso,concretoarmado n’alma.Esperança sempre,SinaDe quem ama.Solidão enclausurada,karmade vidas amarguradas,presa,segue..livre nos limites da minha vida.

Poesias · 119

Menção HonrosaNelci Mello Tomadon

Secretaria de Estado da Educação do Paraná

Campo Mourão

“Perjúrio”

Nada de ti entrará na minha casa.Nem teu número constará nas minhas ligações recebidas.Teus bons dias e boas noites foram, prematura e definitivamente, banidos.

O livro que te deiTrouxe a folha de rostoCom a dedicatória escrita apenas na minha memória.Deserto branco.

Teu nome não soará na minha boca.Tua geografia não será delimitada por mim.Na minha, tu és lugar algum.

Não revelarei a ti meus caminhos,Nem meus pensamentos, desejos e emoções.Não permitirei que me alimentes.Nem que arrumes minhas coisas.Meu caos ficará como sempre esteve.

E, por fim,Não permitirei que me aprisionesCom a suavidade de teu toque;Que me enredes com o som de tuas narrativas;Que me embriagues com o cheiro de tua pele;Que me sequestres com a delícia de tua língua.

Eu juro... por todo sagrado em que não creio...Não gosto de ti.

120 · Poesias

Menção Honrosa

Rosemeire Tânia FerreiraSecretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior - UEL

Londrina

“Queria...(?)”

Queria, nem sempre significa passado Talvez, o imperfeito estado Em que não se sabe ao certo Se já ia, continua ou vai se querer... Queria, quando refere-se ao amor, É mais um sinal de impotência do que de desejo É o presente gritando ao passado O rompimento de algo que não se rompeu. O ia que se foi Antes do depois Que se esperou por vir.... Queria, em alguns casos, Nem deveria derivar-se de verbo Pois é o estado patético De não se verbalizar... Queria é camuflar o querer. Verbo que nessa hora, Mais que imperfeito se torna, Pois já não tenho você...

Poesias · 121

Menção HonrosaHamilton Fernandes Filho

Secretaria de Estado da Segurança

Pública do Paraná - PMPRCuritiba

“Rastro de estrelas”

Era...Não era poeta, talvez poesiaQue nasce ao acasoFeito estrelas coincidentesA formar rastros siderais;Galáxias de sentimentos;Humanos pensares,Sóis que ardem, luminaresOs quais expressam no negro véu noturnoUm quadro salpicadoDe cristais sobre o veludo negroQue o Senhor dos dons pintou.Colhi respostas em versosQue dispersos na brisa não rimavamFiz repensar sonhos para torná-los possíveisChorei... nem por estar vencido, Nem por descrer, só por saudade.Cri que amigos eram seres quase inatingíveisQue só se encontram quando pousamosNa terra dos sonhos bons.De lutos colhi frutos mirradosPara assim nunca perderAo menos sua essência, e sobreviverE como em sonhos ter o saborDas romãs que nunca provei.As constelações ainda cintilamNa alma ainda que diaQuando a noite permanece nelaAinda que viva a adornarO outro lado da Terra.No entanto, ainda assimVive em mim o ouvir, o querer vê-las

122 · Poesias

Mais que o simples fulgor,Há vida no entendê-las,Pois, há traços de perfeiçãoNo rastro das estrelas.

Poesias · 123

Menção HonrosaCláudio José de Almeida

Mello

Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia

e Ensino Superior - UNICENTROGuarapuava

“Rolinha”

Rolinha na chuva num galho de árvorelá embaixoautomóveis passam assustados

124 · Poesias

Menção Honrosa

Maria do Rocio Novaes

P. FerreiraSecretaria de Estado da Justiça e da Cidadania - DEPEN

Curitiba

“Sigamos cigano”

Sigamos no engano,cigano.

Ilusões persasno tapete voador,matematicamente,disperso.

Dispensoo certo.

Aprecio os errantese suas cabanasno deserto.

Dunas nas cidadessem idades,atemporais.

Ritos de passagemsem embarque.

Orações aos deusesdas dúvidas divinas.

Sigamos, cigano,em nosso repertório.

Territórios desconhecidos,ruas e avenidasnunca dantes percorridas.

Poesias · 125

Sigamos a setada bússola trincada.

Para que o sulseja norte, na noite de nossos dias.

126 · Poesias

Menção HonrosaMarcel da Cruz Fernandes

da Conceição

Secretaria de Estado dos Transportes - APPA

Antonina

“Urbe”

cidades múltiplas caos urbano trajeto concreto acelerado

perdido desorganizado em crescimento vertiginoso

movimento do olhar além da ideia da imaginação da

compreensão engole destrói reconstrói metrópole cidade

megalópole vilas bairros prédios casas barracos tendas ar

livre florestas matas falta formulação estrutura fenômenos

complexos cheios inertes expandidos suporte urbano

linhas irregulares desconcertantes cinzas arteriais fluxo

interminável contínuo conceitual mundo concreto abstrato

lugares vazios gerados libertados presos fluência passagem

demarcações territoriais ilusões sonhos trabalho ironias

vida morte alto baixo transporte comunicação informação

zonas ocupadas cidades destinos desígnios impactos sem

limites cartografias arquitetônicas interferências mútuas

amontoado de pó espacial surreal pintura em labirintos

visão impulsos mecânicos matéria urbana moderna

fantástica luzes tensão sólida vertical horizontal estática

e monumental panorama urbe cultural e social trânsito

barulhos ruídos constelações efêmeras poluídas estranhas

relações humanas imagens contínuas desocupação territorial

utópica intersecções arte política globalização desumana

sentimentos revoltados pensamentos conturbados estradas

rodovias caminhos possíveis afeto amor amizade sociedade

dilacerada privacidade invadida intervenções físicas

espirituais intelectuais mundo desordenado miséria riqueza

revoluções ocupações cidades lagos parques pessoas

Poesias · 127

imóveis paranoicas aceleradas convulsivas violentas visão

contemplação poemas retratos pensamentos passarela

transitória rápida elementos construtivos distantes janelas

perdidas respiração em planos descomunais separação

tempo ação e reflexão fatos e parâmetros confrontados

realidade percebida ruas córregos terrestres e aéreos vias

arteriais abismos mar tubular feixes luminosos encontros

desencontros percursos possíveis e impossíveis intensos

simultâneos e frequentes lojas bancos comércios vendas

poder invisível necessidades mudanças apropriações

existentes funcionais incluídas excluídas mentirosas áreas

desenfreadas duráveis inservíveis lixo geografia repetida

dispositivos dominantes montados quebrados fixos soltos

homens mulheres crianças moradores induzidos enganados

vítimas e culpados estruturas maleáveis conscientes e

inconscientes ruínas detritos vidros metais carne bloco

sanguíneo dinâmico inflexível silencioso memórias ativas

superfícies expandidas cidade felicidade atrocidades

128 · Poesias

fotografias

130 · Fotografias

1º LugarCelso Lück Junior

Secretaria de Estado dos Transportes - APPAParanguá

Ubá

Fotografias · 131

2º LugarJandira Tolin

Secretaria de Estado da Educação

Iretama

Cenas Paranaenses

132 · Fotografias

3º LugarMarcelo Conor Kawase

Museu Oscar NiemeyerCuritiba

Baía de Paranaguá em trânsito

Fotografias · 133

Menção HonrosaMarcos Lucio da Silva

Secretaria de Estado da Segurança Pública - PMPR

Londrina

Amanhecer

134 · Fotografias

Menção HonrosaJulio Cezar Val Carnieri

Secretaria de Estado da Segurança Pública do Paraná - Polícia CivilCuritiba

Bravo trabalhador paranaense agradecendo por mais um dia de trabalho

Fotografias · 135

Menção HonrosaSandro Amaral

Secretaria de Estado da

Segurança Pública - Polícia

Civil

Curitiba

Campo de soja colhida

136 · Fotografias

Menção HonrosaArnaldo E. Alves

Secretaria de Estado de Comunicação Social Curitiba

Clássico e moderno

Fotografias · 137

Menção HonrosaLiciane Kuspiosz

Secretaria de Estado da

Educação

Guarapuava

Descanso

138 · Fotografias

Menção HonrosaCarlos Eduardo Partika

Secretaria da Justiça e da

Cidadania - DEPEN

Curitiba

Descendo o Nhundiaquara

Fotografias · 139

Menção HonrosaAdriano César Buzzato

Secretaria de Estado da Educação

Curitiba

Energia

140 · Fotografias

Menção HonrosaCleidiane de Miranda

Secretaria de Estado da Educação Mallet

Igreja São Miguel Arcanjo

Fotografias · 141

Menção HonrosaFabiana Mafessoni

Secretaria de Estado da Educação

Curitiba

Iguaçu das borboletas

142 · Fotografias

Menção HonrosaRita de Cássia da Maia

Secretaria de Saúde do Estado do ParanáCuritiba

Ilha das Peças - Maré Baixa no trapiche