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Contos do Parque - 2013 87 Esta é a sexta coletânea de contos editada pelo grupo literário "Amigos de Xochipilli".

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Esta é mais uma coletânea de contos do grupo literário "Amigos de Xochipilli". Eles se reúnem semanalmente num parque da cidade para avaliar suas criações e trocar impressões e dicas culturais.

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Esta é a sexta coletânea de contos editada pelo

grupo literário "Amigos de Xochipilli".

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A estátua de Xochipilli está num canteiro ensolarado do Jardim Botâ-

nico, onde nos viu nascer. Por isso o nome do grupo o homenageia.

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Sobre Os Amigos de Xochipilli

De diferentes origens profissionais, nos encontra-mos no gosto de escrever, e no prazer em dividir

experiências literárias.

Eleonora Barbosa, formada em Psicologia, fez carreira na área de Recursos Humanos. Nelson Sarinho, economista, é um grande contador de “causos”. Seu estoque de histórias parece inesgotável. Sandra Magaldi, pedagoga, trabalhou com a educação, a cultura e os media. Finalista no Prêmio de Literatura da UFF em 2011, com uma crônica. Valmir Barbosa, economista e professor, atuou também na área financeira. Finalista em dois concursos literá-rios: da Escola do Serviço Público-2010 e do Prêmio OFF FLIP-2011, com dois contos. Maria Lucia Lages, socióloga e educadora. Com leitura sensível, em voz alta, desvenda caminhos insuspeita-dos na criação de cada autor do grupo. José Paulo Laber, engenheiro, cultiva sua corrida diária na orla, e sempre traz ao grupo as novidade e avanços tecnológicos. Maria Helena Machado, advogada voltada para a edu-cação e as questões sociais.

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bruns e amostras de tecidos. Reacomodou as al-mofadas de oncinha, recuou e ficou satisfeito com o cenário. Ligou o rádio numa estação de música popular. Deu mais uma olhada geral e baixou completamente a persiana. Ah, o homem é discre-to, faz as coisas na calada pra não ficar mal com a patroa. Epa! Aí vem ele agora, logo para cá... o-ops!

Seu Fragoso respeitava os genitores tam-bém. Alcançou o retrato na parede e, de um gol-pe, retirou-o e deixou-o virado sobre a mesa.

A noite prometia e cumpriu. Houve gemidos

e suspiros no veludo encarnado do sofá, enquanto a fila de formigas ia e vinha, silenciosa, carregan-do para casa o melhor farnel da temporada.

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olha lá, prato com restos de comida, caneca e co-po com fundo de bebida, hum, bem legal! E mais, uns perfumes!, com rótulos manuseados por de-dos de gordura! Maravilha!

Barulho de chave na porta. Não dava mais tempo de chegar a frascos de remédio. Pena! tal-vez algum xarope explicasse esse cheiro inebrian-te de açúcar... A parede era mais segura naquele momento. Ficou à espreita por detrás de um oval de madeira, de certo retrato dos pais do Fragoso, antigo assim...

O homem entrou, abriu de todo a persiana e acendeu um incenso sobre a mesa. Na espreita, ela olhou com pesar as roupas penduradas por todo o cômodo, vai ficar tudo com bodum de de-fumador, que mau gosto! Alheio, seu Fragoso foi até a pia, lavou as mãos e olhou-se em um dos espelhos, enquanto usava a toalha encardida. Pa-recia gostar da própria imagem ao besuntar o pes-coço com ranço de perfume. Penteou cabelos e bigode. Tingidos.Ele se acha! Mas trabalho mes-mo, sei não.

Novamente o telefone. No segundo toque ele atendeu. Sim, era do alfaiate, ele mesmo. Po-dia vir, sim, morena, a patroa viajara, sim, ele podia ficar a tarde e a noite toda. Assobiando bai-xinho, seu Fragoso se apressou em retirar do sofá as pilhas de trabalhos começados, os sacos de trapos. Sumiu com uma fita métrica, rolos de de-

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lápis e esferográficas sem tampas. Um cansaço. Deteve-se aos pés de uma estatueta de Nossa Se-nhora de Fátima. Que diabos faz de bom o dono ou a dona disso aqui? Como é que se entende no meio dessa tralha? E por que não está trabalhando num dia de semana a esta hora? Gente tem cada uma... Assim pensando, calculou o esforço neces-sário para passar da mesa às estantes no fundo do ateliê. De longe avistara ali coisas de seu interes-se. Escolheu a rota da parede, e passou por calen-dários de vários tamanhos. Um percurso de paisa-gens estrangeiras e corpos voluptuosos de garo-tas do mês. Depois, palmilhou um surpreendente Certificado de Atualização de Condutor, ladeado por duas fotos do dito condutor com a sua Halley-Davidson. “ Manuel Fragoso”, lia-se. É o tal! Logo adiante, um painel de São Jorge, e outras tantas imagens de Nossa Senhora. O motoqueiro é caro-la, concluiu, desviando-se de uma prateleira cheia de carretéis de linha e catálogos de moda.

Estava perto agora. Uma deslizada pelo es-pelho manchado, e logo se veria no chão nova-mente. Em ziguezague venceu rolos de tecidos em pé num canto e pilhas de peças dobradas. Pô, esse cara bem podia dar uma organizada no recin-to. Mas, pelo menos pra mim, a bagunça vale a pena... Chegara às estantes e, dali, à pequena pia ao lado. Não é que ele deixa tudo à vontade, po-tes de óleo e cera, latas de refrigerante abertas,

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vermelho. Todos abarrotados de coisas, atravan-cando o espaço acanhado.

Estava sozinha. Relaxou. Procurou um ponto privilegiado, para ter uma visão panorâmica do local. Não precisaria ir muito alto, a mesa bem no ângulo do L estaria bem. Subiu depressa pela per-na de madeira, lisa e sem estilo, evitando reen-trâncias de gavetas e puxadores. Lá em cima pati-nou no vidro sobre o tampo. Ele protegia uma montagem de recortes de revistas, anúncios de restaurantes baratos, folhetos com endereços co-merciais, nada que cheirasse a coisa interessante. Uma emenda de adesivo no vidro partido não foi obstáculo para detê-la. Seguiu até a borda. Um tremor a fez estacar. O vidro sob seus pés vibrava, a intervalos, com o soar da campai-nha do telefone sobre a mesa. Tocou por um bom tempo. Nada em volta se abalou. Duas máquinas de costura profissionais, mais a de overloque, a prensa de ilhoses e botões, o ventilador no chão e a torradeira velha permaneciam estáticos. Tão in-diferentes quanto o frigobar de segunda e a cafe-teira, com restos de borra, sobre o fogareiro. Até o ferro elétrico mantinha-se frio, enrolado no fio gasto. Mudos também o computador, a tevê na parede e o rádio. Mais à vontade, resolveu avan-çar. Aos tropeços, foi passando por sobre reta-lhos, restos de costura, refugos de papel, tocos de

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O cigarra e a formiga

Sandra Magaldi

Não se tratava de curiosidade. Não mesmo. Era mister. Sua vida era investigar, achar e comu-nicar. Daí, toda a coletividade viria tirar proveito. Tão natural e cotidiano esse trabalho, ela nem pensava no que a movia internamente ao chegar na porta blindex. A transparência mostrava apenas parte do que havia adiante. Mas a mistura de cheiros indi-cava que o local era promissor. Passar sob o vidro foi uma decisão simples. Encontrou a penumbra da persiana aberta pela metade. Ouvia apenas o tique-taque dos se-gundos contados por relógio antigo. Cautelosa-mente, começou a percorrer o piso junto à parede, por debaixo de um balcão. Sentiu o plástico ordi-nário sob os pés, venceu rachaduras e acúmulos de poeira; um ou outro alfinete enferrujado e es-quecido; pedaços de alinhavos aguardando vas-soura. Um pouco mais, já dava para perceber que o recinto tinha um desenho em L. Mesa, escrivani-nha, estantes de prateleiras e gaveteiros, cadei-ras, bancos, e um inacreditável sofá de veludo

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tavam uma das outras para seu trabalho (ou seria diversão?). Como nada é perfeito, reclamavam que, pelo fato de serem em grande número, ti-nham poucas chancesde participar efetivamente; ficavam muito tempo inativas.Além disso, os locais dos eventos eram quase sempre muito parecidos, já estava ficando monótono. Em suas reuniões,as pistolas, os revólveres, as espingardas, os rifles pediam sempre que os dirigentes fossem mais cri-ativos: providenciassem um número bem maior de partidas, e selecionassem outros alvos, além de estudantes.

O senador acordou angustiado. Questionou-se: até quando as armas continuarão tendo vida própria?

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Competições

José Paulo

Terminou mais um jogo. Bem movimentado, com muita raça e grandes lances. Placar 10 X 8. Mas houve muitos chutes desperdiçados. Uma pe-na! E também, correria e confusão. Lamentável! As regras eram sofisticadas. Cada time entrava em campo em momentos diferentes, e tinha que cumprir tarefas específicas. Às vezes a partida, dividida em duas etapas, uma para cada equipe, podia durar meses. Ficavam contentes com a co-bertura da imprensa. Mas não entendiam, ou não concordavam, com muitas de suas manifestações. O que para elas era natural aparecia na mídia co-mo algo extraordinário. Estavam estudando a cria-ção de um comitê para esclarecer à população o espírito da coisa. Embora existissem muitas equi-pes, elas se agrupavam em duas categorias: grandes e pequenas. As maiores eram mais po-tente; as menores, mais ágeis. Toda a preparação, as estratégias e táticas levavam em conta estas características.A competição entre elas era saudá-vel. Havia muitas disputas, gozações, mas se res-peitavam, eram adversárias leais. Afinal, necessi-

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bém sua alma. Para essa proeza só mesmo o bom, velho e queridíssimo Machado de Assis, co-mo nesse interessante conto “A cartomante”.

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tem contos leves, que fazem rir de tão engraça-dos. Quando estava na tarefa de procurar alguns desses contos, se deparou com uma coletânea de outro autor. Gostou. Ah! Esse é ótimo, pensou. Pegou-o, maravilhada. Em seguida, preparando-se para a leitura, tomou um cafezinho, acomodou-se na poltrona e começou a ler: “Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novem-bro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é o que o fazia por outras palavras”.

Após terminar a leitura, Thereza, com um grande sorriso, pensou: Como escreve bem! Ca-minhei com ele pelas ruas antigas, vi vários tipos interessantes; e mais, notei como o autor, para elogiar os dentes da cartomante, não precisou u-sar palavras como “bonitos” ou “belos”, mas um jogo de comparação com maestria que somente muito poucos são capazes de fazer. E que final surpreendente! Quem imaginaria que o pacato Vilela tivesse uma atitude daquelas? “Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o no chão.”

Fechou o livro ao mesmo tempo em que pensava no quanto esse escritor conseguia brincar com sua imaginação e entreter sua mente e tam-

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Preferências

Maria Helena

Thereza resolveu aproveitar o tempo livre, raro por sinal, para ler . Separou alguns textos que gostaria de conhecer. Abriu bem as janelas e as persianas, para que a luz clara do outono ilu-minasse a sala. Estava um tempo muito bonito. Um céu de brigadeiro. Lembrou-se de que, desde menina, influenciada pelo avô, adorava as tardes de outono, estação de luminosidade especial. O-lhou as mangueiras do quintal vizinho, que já ti-nham começado a mostrar suas primeiras flores. Ficou por instantes saboreando a beleza do tempo. Estava muito calma, tranquila e aberta para se deixar envolver pela leitura. Começou a ler um trecho do Affonso Romano de Sant’Anna, mas ain-da no primeiro parágrafo parou, entediada. Não, não estava disposta a entregar-se àquelas obser-vações filosóficas sobre a alma feminina. Queria uma leitura mais descomprometida, mais leve, para passar a tarde naquela calma que se encon-trava, nada de refletir muito e fazer indagações. Assim pensando, e sentindo, abandonou o texto. Lembrou-se do divertido Artur de Azevedo. Ele

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do casamento, mas agora por outro motivo. Com o olhar distante, procurava realizar o seu trabalho sempre de costas para o castelo, na esperança de que um dia aquela agradável lembrança se juntas-se às bonecas de pano de sua infância. Mas, às vezes, o passado custa a passar.

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gradual e inesperada. Então, levou-a para a cama, apagou as tochas que iluminavam o ambiente, deixando apenas uma no canto, junto à porta. Deitou ao seu lado e, sussurrando galanteios e palavras bonitas ao ouvido, fazendo suaves carí-cias, beijando o pescoço, o rosto, e por fim os seus lábios, ia despindo-a dos trajes e medos.

Verônica, inicialmente tensa, o corpo todo retesado como se estivesse sendo atacada, aos poucos foi soltando os braços, fechando os olhos para ouvir, sentir e, sem perceber, entrando em sintonia com aquele delicado invasor. Era uma sensação nova, sequer imaginada. Seus corpos foram se juntando, se encaixando, numa dança lenta e suave, que ia crescendo, ganhando inten-sidade, no ritmo do rouco arfar ao ouvido. Era como se ela galopasse pelas planícies da região.

Pascoal rolou para o lado, exausto, e puxou-a para si. Verônica, com as faces em chamas, pôs a mão na boca tentando conter a risada infantil que começava a escapar. Ele lhe segurou o pulso, liberando a alegria represada e, contagiado, riram à solta. Depois de um longo silêncio, adormece-ram.

No casebre erguido junto à casa dos pais,

Verônica acordava antes dos primeiros raios de sol, e seguia com o marido e o pai na direção da horta. Continuava mostrando a tristeza de antes

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corte e limpeza das unhas, tranças e enfeites nos cabelos, e uma camisola branca adornada com rendas e bordados.

A menina até se esqueceu de que tudo aqui-lo não era para brincar de bonecas, mas para tor-nar a noite de seu senhor mais agradável. Quando deu por si, o sol já descia atrás das colinas, anun-ciando que o temido encontro estava se aproxi-mando. Foi levada para a alcova de Pascoal e dei-xada sobre a enorme cama, como um presente, numa embalagem graciosa e cheia de aromas.

Pascoal Trovão entrou por uma porta exclu-siva e, sorrindo, dirigiu-se a ela.

— Sê bem-vinda ao meu castelo. Serás por uma noite a senhora do feudo. E desejo que seja o prenúncio de uma vida feliz.

Foi então que Verônica entendeu o signifi-cado de seu segundo nome, pois a voz era grave e ecoou nas paredes de pedra como se tivesse saído de uma tempestade. Ele chegou-se a ela, pegou-a nos braços, levando-a até um dos balcões que se debruçavam sobre o vale. Mantendo-a no colo, mostrou a extensão de suas terras, falou de bata-lhas travadas para anexar outros feudos, da com-pra de armas, do treinamento de seus guardas, e contou detalhes de uma série de conquistas. A respiração forte, o som de sua voz grave, porém pausada, firme e macia, foram provocando um relaxamento no corpo da menina, uma sonolência

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gação de passar a primeira noite de casada com Pascoal Trovão, o senhor do feudo. A mãe tentou mostrar que o chamado “direito do senhor” deve-ria ser visto como um privilégio, uma oportunida-de para uma noite de sonhos, desfrutando o con-forto e o luxo nas dependências do castelo, coisa a que somente as moças casadoiras poderiam aspi-rar. Os demais vassalos apenas imaginar.

Verônica ouviu tudo constrangida, calada e, terminada a conversa, voltou para o seu trabalho, cabisbaixa e triste como entrou. Ela acabara de completar quatorze anos, e a ideia de passar uma noite no castelo, nos braços de um homem com a alcunha de Trovão, visto apenas algumas vezes de longe, a assustava. Mas sabia que era uma situa-ção inevitável, pela qual outras meninas também haviam passado e, assim, tinha que se resignar.

A manhã era de sol, e as famílias próximas

se juntaram para acompanhar e festejar a cerimô-nia simples. Alguns guardas do castelo assistiam a tudo de uma distância apropriada, aguardando o momento certo para levar a moça ao topo da coli-na.

Nos aposentos de Pascoal Trovão, duas mu-

lheres receberam Verônica. Eram as encarregadas de preparar a jovem para as primícias com o se-nhor. Banho quente de imersão em água de rosas,

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O passado custa a passar

Valmir Barbosa A data do casamento fora marcada para a última semana de maio. Os dias frios quase não se repetiam mais e o sol, começando a anunciar um verão radiante, apressava a despedida da prima-vera. Já Verônica, uma flor em pleno desabrochar da adolescência, parecia murchar com a proximi-dade do grande dia.

Quando uma ponta de claridade surgia no horizonte declarando aberta a manhã, ela saía com o pai para cumprir a rotina diária de colher verduras e hortaliças − provisões para a cozinha do castelo e moeda de troca com os vizinhos.

A mãe, preocupada, tentava animar a moça mostrando uma nova peça do enxoval que acaba-ra de aprontar. Mas sem resultados. O pai exigiu que a mulher chamasse a filha para uma conversa de esclarecimentos, para tirar “as minhocas da caixola da menina”. Seria algum problema com o rapaz, homem forte e trabalhador, embora rude como todos os demais do feudo.

A conversa aconteceu e, para surpresa da mãe, o motivo era outro. A tristeza vinha da obri-

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Táxi...

Maria Lucia Chuva fina. Louca para chegar em casa . Fome. O motorista começa a dizer que sente saudades da comida de Iracema, companheira de mais de cinquenta anos. Ela nunca se cansava de traba-lhar. Tinha oitenta e seis anos quando faleceu há sete meses. Agora a vida estava vazia. Sua profis-são, motorista de táxi, preenchia sua vida. Duran-te o trajeto ele só falou na Iracema. Dirigia com muita habilidade. Tinha apenas oitenta e quatro anos. A minha fome de viver aumentou.

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Gabrielzinho – enrolador mor, você não pesca nada, mas sai satisfeito.

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Não foi viagem perdida, ficaram a camarada-gem, os amigos do peito, as histórias, os causos con-tados à roda. Gosto é disso, da turma, do passeio, das fotografias; volto sempre, pois para mim pesca-ria não é coisa de moda. Sendo assim, espero o pró-ximo evento quando tudo se repetirá: a escolha do rio, do local, as tratativas, a montagem do grupo e a esperança que desta vez, a pesca será descomunal. V – As despedidas.

Essa Diretoria modestamente se despede. De peixe entendemos pouco, sabemos que é um animal que vive na água, no caso no rio, e a maioria é ba-gre. Sabemos que Pintado não é Bacalhau e nosso saber peixeano esgota-se aí. Entendemos um pouco de organização e de amizade, esse é o nosso cabe-dal. Agradecemos de coração a participação de to-dos, pois é nossa compreensão que pescaria é con-graçamento, uma forma de oração dirigida à Nature-za, ao Criador, por brindar a humanidade com cená-rios de tanta beleza. Ildefonso – nosso comandante, merecidamente li-cenciado. Stallone – organizador mor, capaz de expedir milha-res de e-mails sobre o nada. Ronaldinho – responsável técnico, conhece tudo so-bre a pesca do barrigudinho. Nelsinho – tesoureiro quase honesto, aprendeu o que sabe com o “nosso Delúbio”.

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material, jantar, dormir, no dia seguinte de pé às cinco horas no piloto automático, felicidade geral. IV – No rio, aquela felicidade...

Cinco dias de muita pescaria, era essa a in-tenção. Só que os peixes não foram avisados, se-guiam em sua lida sem tomar conhecimento dos pescadores e para nossas iscas não estavam ante-nados. É certo que, dentre nós, os mais experien-tes, com paciência esperaram, o rio retribuiu e re-giamente os favoreceu. Porém os outros, e aí me incluo, por incompetência nada pegaram, nem mesmo pneu.

Filosofando diria que o Kuluene parecia não um, mas dois rios ocupando o mesmo leito, separa-dos por dimensões místicas. Um densamente habita-do cheio de espécies, um Kuluene perfeito, o outro um deserto quente onde não se percebe viva alma sob um sol ardente, um Kuluene rarefeito. Cada um seguiu o rio que seu tino lhe indicou. O meu, como de outros mais, ficou capenga, eu e o peixe ficamos em desacordo. Eu parava onde ele não estava, ele estava onde eu não parava e, assim, seguimos nessa pendenga. Durante os dias todos, o peixe ficava ali, eu passava sem vê-lo, não peguei nem “quenga”. Mas fazer o quê, faz parte do jogo, não há que se ganhar sempre, o peixe tem seu direito natural. Aqui estavam muito antes do Cabral, nadando livres no fundo do peral, isso é fato e eu aceito.

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não falei, não conheço o nome de todos, nem sei dos seus desempenhos. Acredito, porém, na sua competência, no conhecimento do rio, na sua ca-pacidade e no seu engenho. Sendo assim agrade-ço, pois muito nos ajudaram colocando todo o seu empenho. III – A chegada a Goiânia e partida para Canara-na.

Chegada tranquila no aeroporto de Goiânia. Já estava a nos esperar o gaúcho Coletto, irmão do Lídio, dono da Alto Xingu, pousada confortável onde relaxamos o esqueleto. No ônibus, muito bom por sinal, seguimos para uma churrascaria e comemos carne no espeto. De barriga cheia, saci-ados à meia, cumprimos 12 horas da estrada para Canarana, aí começou o suplício. Dormir nos ban-cos e mijar com o ônibus aos solavancos já é uma barra para qualquer um, para o idoso então é uma chicana. Para aqui, para acolá, urinar e fumar, sim fumante os há, a viagem prometia durar uma se-mana. Já na alta manhã chegamos ao destino, trocamos de condução. Uma “carroça” motorizada nos conduziu por cem quilômetros de estrada ru-im, enguiçando duas vezes; uma cagada. Quatro horas depois chegamos ao nosso pouso, fome ne-gra, emburacamos no rango. Em casa de gaúcho a comilança é sempre buenacha, só faltou gaiteiro tocando fandango. Conhecer os piloteiros, sortear um deles para não haver desavença, preparar o

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ro sabe tudo não só de pescaria, como também de ecologia, o segundo é o rei do Dourado, título de merecida honraria. Como mestres que são dessa ciência de muita paciência, deram aula pescando a um só tempo com quatro varas, assim eles disse-ram e não há o que duvidar desses venerandos. Fábio Costa e Addison, eméritos pescadores de um tempo que já é pretérito, conhecem de pesca qua-se tudo, não deram descanso, era varada em cima de varada, mormente nos bagres bigodudos. Le-andro foi criado a toddynho, cresceu só um pou-quinho, para cima e para os lados, mas continua um garoto, seu pai, José Alves, veio junto para lhe fazer agrados, mas de pouco adiantou a vigilância paterna, pois não é que ele caiu no rio atrás do pescado?

Sater e Gamal, amigos novos, não sei se já eram pescadores, mas guardo a certeza de que diante desse rio, do grupo animado, gostar de pescaria será uma moleza. No barco de três, João, Fernando e Pery, a pesca foi muito boa e melhor não ficaria, também pudera, era o trio mais o pilo-teiro lançando a granel, uma verdadeira covardia.

Falei de todos os pescadores, não sei se bem ou se mal, porém deixo muito claro para to-dos esses amigos que pegar peixe é sorte exerci-da, de nada adianta ter faro. O peixe está onde sempre esteve, no rio, dispondo de muita comida e abocanhar a sua isca é fato raro. Dos piloteiros

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bedoria, organizou a pescaria formando a tripula-ção dos barcos com as seguintes parcerias: Stalo-ne e Ronaldo dupla natural, quase irmãos. Sarinho com o Henrique, um tipo caladão, mas como há dois com esse nome, esse aqui é o Weber, que consome chimarrão. Todo prosa com seu marca-passo, Ildefonso teve como parceiro o Trajano coelhão, epa! perdão, ato falho, quis dizer o ir-mão. O diretor social, que não dorme na lida, ficou no mesmo barco com o Sandro Franca, amigo par-co, companheiro de bebida. Marilzo e Claudio, um castrício o outro artista, que suplício, não deram guarida e aos peixes, derrotados, só restou o sa-crifício. Desembargador Alcindo em seu recato, mais Henrique, o Rico, pescaram que foi um hor-ror, mas vendo um boi não resistiram, praticaram abigeato. Andrew & James, súditos de Sua Majes-tade, vão à luta, pescam melhor que gato; pre-tendem, quem sabe um dia, abrir a própria desti-laria. Dupla porreta, muito sofisticada, Afonso e Paulo Köhler fisgaram peixes para encher uma carreta e, com elegância, fizeram sua cruzada. Os dois Robertos, um Moraes o outro Wagner, sem ficela, partiram pra bombardada, mostraram às Cacharas que o lugar delas é na panela. Cesar Martins, o meu compadre, mais Luiz Carlos, ami-gos afins, barbarizaram tanto que os peixes, apa-vorados, agonizantes, chamaram um padre. Do-minguinhos e Ricardo, dupla da pesada; o primei-

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Acho que neste caso é a tradição luterana de ber-ço que valoriza a educação e o viver laboreiro. To-dos nasceram iguais na pobreza, mas os gaúchos não se conformaram, foram à luta, desbravaram aquele sertão do Mato Grosso sem ajuda pretendi-da, só com sua labuta. Enquanto os-da-terra, ha-bitantes centenários do lugar, viviam na miséria quase absoluta, esperando do governo aquela es-mola concedida, pagando com seu voto na mais imoral permuta.

Algum esquerdopata, tipo comum no Bra-sil, dirá que a “zelite” nefanda de Canarana – as-sim mesmo, zelite, pois são estúpidos, beócios, apologistas da república das bananas – veio do Sul para ficar rico, explorar o sertanejo, tomar sua terra, surrupiar sua cabana. Sacripantas os há em toda parte, só não aceito que em sua má arte, em sua maledicência, distorçam os fatos na sua es-sência. Por falsidade, conspurcam o honesto, cor-rompendo a História pelo estelionato. Vamos dei-xar esses biltres de lado, seu reinado findará, não passam de uma caterva de acovardados. II – Os Pescadores

Trinta e um pescadores foram para o Kulue-ne, seus nomes digo agora a vosmecê, sendo que Stallone, Ronaldo, Sarinho e Ildefonso, na marra se intitulam diretores; fazer o quê? Ah, esqueci o Gabrielzinho, também diretor, moço mais esperto do que Saci Pererê. Esta diretoria, repleta de sa-

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Pesca no Kuluene

Nelson Sarinho

I – Apresentação

Trinta e um pescadores e um rio: o Kuluene em Canarana, no Mato Grosso. Canarana, coloni-zada por gaúchos, que logo na chegada cavaram um poço, carnearam uma rês, acenderam o fogo, fizeram churrasco e espalharam muito osso. Os-da-terra já lá estavam desde o princípio, no ócio, sem plantar nem para o almoço, desvalidos que eram. Mas os gaúchos também eram pobres, não tinham terras na sua querência, foram-se do seu pago natal, não sem pranto, buscar oportunida-des, vencer as inclemências. Em poucas décadas colonizaram aquele rincão, criaram riquezas com competência. Os-da-terra continuaram pobres, de papo pro ar, assim foram levando a existência. Já os gaúchos trabalhavam, plantavam soja, criavam gado, para muito além da sobrevivência. Enrique-ceram, gerando empregos, dando renda aos do lugar, tirando-os da indolência. Fico a pensar, par-ceiro, o que distingue uns dos outros se somos todos brasileiros? Que diferença há que faz de uns empreendedores, de outros simples borralheiros?

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sobre ela, o tal cara que chorava e dizia: — Laudi-ceia, meu amor. Fala comigo, pelo amor de Deus!

Olhei pro lado. Deparei-me com o pobre do Alberto; parecia, ele, o atropelado. Puxei-o para fora da roda que a multidão formava. Chegou a polícia, e ouvi a sirene da Defesa Civil. Um médi-co, que se identificou depois, disse que dificilmen-te ela sobreviveria. Fora atropelada depois da cur-va por um carro e uma moto. Perguntei ao moto-rista da ambulância para onde iriam. — Pro Miguel Couto. Voltei-me para o meu protegido, que queria ir com Sheila. — Pra quê? Deixa que o rapaz já vai. Você nem sabe o nome dela, endereço, e coisa e tal. De nada adiantará a sua presença. Ele será muito mais útil. Fatalidade, meu amigo. E encare isso por outro ângulo. Pensando bem, você é muita areia pro caminhão dela. Vamos lá pra casa.

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nhando o que ganho não tenho coragem de com-prar um igual. Sim, o tal cara estava sempre por perto dos dois. Sheila fazia-lhe alguns sinais e o acompanhava com um olhar derretido, muito es-pecial. Aí tem coisa, pensei. Hoje, no meu posto de observação, vi quando ela se distanciava um pouco do Alberto e tentava falar alguma coisa pro camarada, ansioso para se comunicar com ela. Fazia gestos, mímicas e ela tentava responder por linguagem labial. Da distância em que estava eu não conseguia entender. Ela se abaixou fingindo amarrar o cadarço dos tênis. Foi quando Alberto voltou-se para chamá-la; Sheila fez um sinal com a mão para que ele seguisse caminhando e, viran-do-se para o bonitão, indicou com um gesto que lhe telefonaria. Apressou o passo para alcançar o namorado oficial. Alberto já atravessa a pista e ela, mais uma vez, olhou sorrindo para o bonitão, foi adiante.

Fiquei revoltado. Agora chega! Vou conver-sar com o meu amigo e arrancá-lo dessa fria, mas como? Preciso estudar o assunto. Não foi necessá-rio. Um cantar de pneus e freadas bruscas me ti-raram dos pensamentos. Corri para o local. Pen-sei no Alberto. Cheguei e já encontrei muita gente. Parece que as pessoas brotam do nada. Que con-fusão! Cheguei mais perto para saber o que tinha acontecido e dei com uma cena patética. Caída no chão, ensanguentada, estava Sheila. Debruçado

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osque tomando água de coco e o avistei na pista, perto da água, com a namorada — Sheila — me disse. Ficara de nos apresentar, mas ainda não o fizera. Acho que por falta de oportunidade. De fa-to, a mulher era um pedaço de mau caminho. Vi-rei-me para o Raimundo, o dono do quiosque, ve-lho conhecido, enaltecendo a sorte do meu amigo: — Olha lá, cara, o Alberto com a namorada. Que mulher! Puxa, é mesmo de babar! — Aquilo é uma tremenda “chave de cadeia” — respondeu, zangado, sem parar de lavar os co-pos. — Que é isso, rapaz? — É o que disse pro senhor. C-h-a-v-e d e c-a-d-e-i-a , entendeu agora? — respondeu Rai-mundo soletrando. Acabei de tomar a água, paguei e saí dali preocupado. Afinal o que ele quis dizer? Conside-rei que não deveria perguntar. Pareceria bisbilho-tice. Pronto, agora tinha que ficar atento. Vou vol-tar ao posto de anjo guardião. E foi o que fiz. Pas-sei a acompanhar, de longe, as caminhadas do meu amigo com a dita cuja. Ela ria pra todo mun-do, dava bola mesmo. Rebolava tanto que parecia uma cobra no asfalto quente. De uns tempos pra cá tenho observado que o casal é seguido por um cara saradão, queimado, todo produzido com rou-pas esportivas de marca, e hoje reparei seus tê-nis, daqueles bem caros, caros mesmo. Eu, ga-

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ram a pensar duas vezes antes de uma gracinha de mau gosto.

Caminhamos juntos nesses mais de vinte anos. Casamos; eu tive filhos; ele não; separou-se; eu não. Agora arranja umas namoradas, aqui e ali, mas não passa disso. E são sempre umas pessoas apagadinhas, sem graça, incapazes de impulsionar Alberto, que continua murcho, apaga-do. Mas outro dia ele chegou todo animado e me confidenciou que estava namorando uma mulher especial, alegre, exuberante e, acima de tudo, lin-da. Um mulherão. Cumprimentei-o, efusivo, de-sejando de coração que o romance fosse avante.

Ele começou a mudar. Vestia-se com mais gosto, estava alegre, participava mais das brinca-deiras da turma, e até saía para um chopinho em alguns fins de expediente. Observei meu amigo, estava bem, a idade trouxe-lhe um porte bonito e um prateado grisalhava-lhe a fronte, um charme a mais.

Sosseguei! Bem, agora ia descansar da mi-nha função de anjo e deixar Alberto seguir com essa nova experiência. Alguns colegas viram os dois caminhando na Lagoa e afirmaram que ele acertara na mosca. Alberto e eu morávamos no Humaitá, bem perto da Lagoa Rodrigo de Freitas e tínhamos o hábito de caminhar na orla, às vezes juntos, às vezes separados. Num sábado eu estava num qui-

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Mudança de rumo

Maria Helena Conheci o Alberto na empresa na qual tra-balhamos, há cerca de uns vinte anos, quando passamos em um concurso. Ele foi imediatamente admitido, pois fora o primeiro classificado; entrei dois anos depois, um dos últimos. Nossas diferen-ças não paravam por aí, pois enquanto Alberto é dono de uma rara inteligência, de um tempera-mento introvertido e com baixa autoestima, eu não primo por brilhante inteligência, sou extrover-tido e possuo um conceito elevado, sem exageros, de mim mesmo.

Logo nos tornamos grandes amigos, pois um complementava o outro. Devo-lhe muito do meu caminhar na empresa: esteve sempre pre-sente, me ensinou e me ajudou a executar vários trabalhos; com ele muito aprendi e alcei voos que, sozinho, certamente não conseguiria alçar. Em compensação tornei-me uma espécie de anjo pro-tetor do Alberto, sempre saindo em sua defesa, com minha língua afiada e meu raciocínio rápido. Todos que de início zoavam o meu amigo passa-

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gada do mar aberto. Meus pés saem do chão, en-fim. Flutuo perto das ondas, jogada pra cá e pra lá pelo vento tormentoso, assim como em meus sonhos. Uma língua de água sobe e me arrasta, para logo me engolir, salgada. Melhor: agridoce, pois doce é a morte de quem a espera e recebe como amiga. Acre e dulcíssimo fez-se o destino. A superfície agora está serena . Para quem olha de longe, é plana. A mim, trata-me com uma flutua-ção ligeira, um vai-e-vem de valsa da tarde num canto de rua de tempos atrás. O céu claro vê quando uma ondulação mais forte me leva até a praia e me deposita no chão molhado como ofe-renda. Ninguém dá conta de mim em minha transparência. Apenas o olhar branco distingue um contorno de espuma que forma, na areia, a silhueta do que fui.

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Pesadelo

Sandra Magaldi

Esse olhar branco me apavora. Lembra so-nhos ruins de criança, dos quais não se pode cor-rer. Raios, relâmpagos, a vista ofuscada e, em seguida, as sombras e o terror. As ondas cheias e tão bravias, desencontradas, batendo-se entre si e na murada do Arpoador. Eu lá em cima, olhando o espetáculo com assombro. Ou sonhando ? Esta-rei mesmo nesse lugar? Um dia, longe no tempo, estarei, sim. O mar em tormenta, engolidor de praia, me atrairá de forma definitiva. O olhar branco será fatídico, fatal. A espuma se fará escu-ra, emporcalhando sua renda na mistura de areia, gravetos e restos trazidos das profundezas. Mer-gulhar naquele caldo grosso, sentir as correntes puxando, apagando-me as forças, a vontade e a vida, esse será meu destino. Levarei comigo aque-le olhar vazio, de brilho sem colorido. Comigo o pavor, para nunca mais voltar.

Não contei os dias e anos que se passaram.

O olhar branco ainda me apavora. Agora mesmo, não posso evitar, diante de nova tempestade che-

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utilizada para mostrar a importância do interlocu-tor do qual se discordava. Caramba, parece que todos eles eram metidos a besta! Isso mesmo, você pegou o espírito da coisa.Vou te contar como começou a mudança. Num dia, num julgamento no Supremo Tribunal, um juiz tropeçou na toga e foi de cara ao chão. Seguiu-se uma risada genera-lizada. O magistrado desastrado não gostou nada e reclamou. A resposta foi uma sucessão de ”data venia, o tombo de Vossa Excelência foi muito en-graçado”. A notícia correu o mundo. O episódio suscitou inúmeras discussões nas redes sociais. E, desse modo, se criou uma bola de neve que resul-tou, de fato, numa verdadeira reforma do judiciá-rio, iniciada pela supressão da toga e do uso de Vossa Excelência, de data venia e de outras latini-ces. O abandono dos salamaleques e a percepção da necessidade de aumentar a produtividade se espraiaram por todo o corpo jurídico. Progressi-vamente foi se priorizando o que realmente inte-ressa: julgamento célere e competente. Eu lhe agradeço por estas informações históricas,estou impressionado. Não há de quê, meu caro jo-vem.Mas por tudo que lhe contei,data veni-a,reforço minha discordância de Vossa Excelência: seis meses é, sim, um bom tempo para duração de um processo judicial.

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Data venia

José Paulo Um processo judicial durar seis meses é demais! Você está criticando porque é muito jo-vem e não sabe como era antigamente. Reconhe-ça, meu senhor, seis meses é muito tempo. Eu não estou dizendo que não seja. Claro, se durasse apenas um mês, seria ótimo. Quanto menos, me-lhor, mas há alguns anos demorava muito mais. Tinha processo que se estendia por dez, vinte a-nos. Ah, para mim, isso é novidade. Você sabe por que mudou? Sei não. Pois vou te dizer. No passa-do, quando você ainda era criança, os juízes usa-vam toga, tratavam-se por Vossa Excelência e es-tavam sempre utilizando a expressão data venia. Por favor, explica melhor porque não entendi na-da. Está bem! Toga era uma espécie de capa preta que eles usavam nas sessões do judiciário. Essa vestimenta tinha a função de mostrar às pessoas comuns que quem a trajava era um ser especial, pertencente a uma casta superior. O tratamento Vossa Excelência servia para reforçar a grandiosi-dade dos magistrados.Data venia era uma expres-são com a qual iniciavam uma discordância. Era

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convites, inclusive de grandes empresários. Da noite para o dia, ela era uma vitrinista de sucesso. Até que, certa vez, ao experimentar a roupa que seria exposta, foi avaliar a forma e a posição que a manequim ficaria. Um empregado cometeu o erro de suspender a porta de aço antes da hora e, surpreendida na vitrine, ficou paralisada na posição em que se encontrava, um manequim vivo. Foi juntando gente na calçada e ela, congelada, sem coragem de se revelar, ali ficou, quase sem respirar. Naquele dia, o caixa registrou um movimento espetacular e ela ganhou uma nova profissão.

O tempo passou e hoje não estou mais só.

Formamos um par de manequins vivos. Ele, sim, ele mesmo. Um dia ele entrou na vitrine e na minha vida. Também psicólogo, passamos agora parte do nosso dia a analisar os personagens que se expõem às nossas avaliações. Estamos colecionando tipos psicológicos e já planejamos um livro onde narraremos, a quatro mãos, a psicanálise do silêncio.

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viver como uma borboleta, pousando de loja em loja, a oferecer seus préstimos. Agora não. Faz seu trabalho com exclusividade e, por isso, é melhor remunerada.

Ele chega de mansinho e me dá bom dia

com os olhos. Respondo com um suave e quase imperceptível movimento dos lábios. Não me importo se há mais alguém me olhando, pois sei que somente ele será capaz de captar a mensagem. Dia a dia vamos desenvolvendo, silenciosamente, uma linguagem especial, secreta. Um levantar de sobrancelha, um suave tremor nos lábios, um sutil repuxar num canto da boca. Por detrás de meus óculos escuros, passo as horas a criar um mundo só meu, cheio de fantasias.

Quando ela terminou a faculdade de

psicologia, tinha planos para trabalhar na área clínica, dividir um consultório com um profissional mais experiente. Nunca imaginou que um dia iria atuar nessa atividade. Foi tudo por acaso. Uma amiga, gerente de uma pequena loja de roupas femininas, que andava com muitos afazeres e, por isso, sem inspiração, pediu-lhe que refizesse sua vitrine. Ela acabou fazendo tudo sozinha, num estilo belle époque que causou uma grande repercussão. Todos queriam saber quem tinha realizado o trabalho. A partir daí, foi uma chuva de

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pouco), me envia um sorriso mona lisa e se afasta.

Desde que ela passou a exercer a nova

função, houve um significativo aumento no faturamento da loja. Despertar a curiosidade das pessoas ainda é uma técnica pouco explorada pelas empresas. Seus gestores ficam demasiadamente ligados nas promessas das novas tecnologias e acabam negligenciando as velhas e poderosas táticas mercadológicas.

Essa aí, coitada, tem cara de burra, jeitinho

de burra, e se comporta como tal. Passa por aqui todos os dias e sempre faz alguma coisa para tentar me surpreender, me pegar num momento de desatenção. Já quis até me assustar para então rir, de forma estúpida, e me apontar o dedo dizendo, te peguei! Fica ridícula aos olhos dos demais transeuntes, mas, tenho que reconhecer, acaba nos ajudando a atrair a atenção dos tipos distraídos, aqueles que, depois de anos morando na mesma rua, descobrem que existe um sobrado perto de casa onde o morador cultiva, sob as janelas, belas e floridas jardineiras.

A nova atividade traz benefícios para o

proprietário da loja, mas ela também é contemplada. Antes, prestava serviço e tinha que

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Na vitrine

Valmir Barbosa Manhã de sol, movimento frenético de

pessoas, vaivém primaveril na calçada em frente à loja onde ela trabalha.

O bairro classe média alta oferece uma grande diversidade de pontos comerciais, longe dos shoppings. Mas, nessa avenida principal, reúnem-se aqueles mais sofisticados, ali circula a mais seleta clientela, de elevado poder de compra.

Ele novamente. Está se tornando um dentre

aqueles que já perceberam a minha humana presença. O tipo físico e o modo de vestir parecem com o mais comum dos homens, mas há nele um olhar curioso que indica o traço de pessoas que não se revelam ao primeiro encontro. São tipos que seguem a máxima epicurista: “Não cometa excessos. Viva no anonimato.” Geralmente, por trás dessa discrição intencional, há um indivíduo extremamente interessante, desses que vale a pena um mergulho em sua psique. Ele olha à volta para se certificar de que não está sendo observado (nesse mundo biguebroder, todo cuidado é

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Banheiros vazando barulhos escatológicos. Respingos caem de uma varanda que passa por faxina... Um banho de sol na piscina era tudo que necessi-tava naquela manhã...

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Caleidoscópio urbano

Maria Lucia Mariposas fazem voos rasantes com a leveza das suas asas. O vento balança as folhagens reluzentes, e alguns hibiscos multicoloridos caem na sua finitude. Choro de bebê, que é manha pura e matinal. Assovio que desperta a manhã com uma canção conhecida. Ruído de um avião atravessando o espaço. Bate-bate de estaca. Uma voz entoa um samba, e outra grita: “João, oi, João...” Buzinas insistentes tentam apressar o trânsito ca-ótico. Sirene de ambulância intermitente ecoa pelo ar. Voo de andorinhas que decoram o céu em coreo-grafia perfeita. Helicóptero passa baixinho, e assusta os pombos que namoram nas janelas próximas. Toque de celular que é logo atendido “Tô chegan-do... “ Carros de polícia aceleram contra a violência, com suas sirenes estridentes ligadas.

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cama na qual agora ele repousava. Seu coração parecia querer saltar pela boca. Tentou agarrá-lo antes que pulasse. Já estava à porta do quarto quando as luzes do corredor se acenderam. Parou!

− Heloisa, aonde você vai? O que está fa-zendo aí? — sussurrou o marido.

— Estou passando mal, vou tomar um re-médio. Acho que bebi muito vinho. Ia à cozinha pegar água — respondeu ela, tremendo e bambo-leando.

— Mas a cozinha é prá cá. — Estou tão tonta que nem sei para onde

estou indo. — Coitada! Vou ajudá-la, minha querida.

Driblando o marido, conseguiu não ingerir um antiácido e outros remédios. Não teve alterna-tiva senão voltar para o quarto, deitar ao lado da-quele homem que nada mais lhe significava.

Enquanto tentava dormir, pensava se o ob-jeto de todos os seus desejos ainda esperava por ela.

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Hora errada

Maria Helena O jantar fora alegre e agitado. Depois de muitos risos e conversas, todos se recolheram, e a casa, acompanhando as pessoas, também ador-meceu. Silêncio. Após algumas horas, Heloisa a-cordou, olhou o marido que dormia a sono solto. Se ainda o admirasse diria que parecia um anjo. Levantou-se bem devagar, saiu da cama; estava com uma linda camisola transparente, nem calçou os chinelos aveludados, jogou um robe por cima e, pé ante pé, saiu do quarto.

O único ruído que talvez se ouvisse eram as batidas do coração daquela mulher bonita com os seus cinquenta anos recentemente completados. No corredor dirigiu-se com muita cautela ao quar-to de um hóspede, filho de amigos da família, que chegara para passar alguns dias com eles. Um be-lo e jovem rapaz, beirando seus trinta anos, pelo qual havia algum tempo estava perdidamente e-namorada. A recíproca era verdadeira. Queria velar o sono daquele Adônis, e lógico que lhe tra-zia um corpo repleto de desejo e paixão. Fora com ternura e especial carinho que preparara a

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muxoxo. Fiquei quase sem respirar, torcendo para que não acordasse. Ela, como uma sonâmbula, sentou na beira da cama, se espreguiçou, pegou a peruca sobre o abajur e encaixou na cabeça raspada. Depois, com os dois dedos da mão boa, pescou um olho de vidro no copo com água na mesinha de cabeceira e ajustou no rosto. Ah, meu deus!

Trêmulo, as pernas teimando em não obedecer aos comandos do cérebro, enfiei a cueca de qualquer jeito, passei a mão na carteira, desci a escadaria aos trambolhões e ganhei a rua. Uma senhora toda de preto, que passava apressada, me olhou de cima a baixo e fez o sinal da cruz.

— Cruz-credo! — A senhora não viu nada...

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somos liberadas para esticar a noite, quando bem acompanhadas por clientes da casa, entende?

Era uma informação tranquilizadora, e também uma senha, uma porta que se entreabria para um convite.

A escadaria estreita levava até o alto de um

sobrado, não muito longe do dancing. Ela disse que dividia o aluguel e as despesas com uma colega de trabalho.

Tudo corria à meia-luz, ao som de músicas românticas que vazavam pelas paredes e pelo forro de madeira, uma cumplicidade comunitária auspiciosa, a criar o clima propício para a noite de um quase debutante. E assim, embalado pela sonoridade alheia, fui levado às portas do céu pelos braços e pernas da minha dançarina anfitriã.

De madrugada, com sede, levantei para tomar água de uma moringa que dormia na mesinha ao lado da cama. A luz da rua, que invadia a nossa privacidade pela janela, refletia no teto e esparramava um lusco-fusco pelo quarto, mostrando as roupas da minha dama ao fundo, sobre uma bergère. No braço dela repousava aquela bela luva bege com detalhes dourados, que despertara a minha curiosidade. Fui até ela constatei que a mão estava lá dentro. Estupefato, dei um passo atrás, derrubando o copo, e quase a moringa foi junto. Ela se virou e soltou um

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bege, macia, com pespontos dourados, mas somente na mão direita. Imaginei que seria para evitar o contato direto com as mãos dos cavalheiros, uma questão de higiene.

Na terceira música, quando um bolero aveludado escorria pelo canto da boca de um crooner de bigodinho, ela subiu sua mão do meu ombro para o pescoço e, com uma suave pressão, me puxou contra os irretocáveis e aconchegantes volumes frontais. Encostou o seu rosto contra o meu, e um arrepio me subiu pela espinha tomando todo o meu corpo. Eu tentei pensar no trabalho acumulado no escritório, no chefe mal-humorado a tamborilar na mesa, olhando para o relógio. Qual o quê! Não funcionou. Então agradeci à penumbra do salão que vinha esconder minha indisfarçável e constrangedora excitação. Quando a música terminou, ela me permitiu uma saída honrosa.

— Eu aceitaria um drinque. Ofereci-lhe o braço e fomos até o bar onde

havia deixado o meu irmão, mas ele não estava lá. Pedi os drinques e brindamos à noite agradável. Enquanto bebia o último gole, corri os olhos pelo salão, mas nem sinal de meu irmão. Ela notou a minha inquietação e, depois de pedir mais dois drinques, explicou:

— Ele deve ter saído com uma das meninas. É normal, pois a partir da metade do expediente,

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Elegância efêmera

Valmir Barbosa Era início dos anos 1960, e foi a minha

primeira vez. Uma espécie de iniciação naquele mundo de prazeres noturnos. Fui levado por meu irmão, bem mais velho que eu, um assíduo frequentador, bastante conhecido das moças da casa, o Dancing Paris. Ela veio ao nosso encontro, cumprimentou-o e sorriu para mim, adivinhando o neófito que nem sabia o que fazer com as mãos, trêmulas e suadas. Fomos apresentados.

Ele sussurrou em meu ouvido, “vai”. Ela percebeu o meu embaraço e me levou, encostando calculadamente, de forma a parecer casual, o peito no meu braço. Enquanto caminhávamos para a pista, olhei de rabo de olho e reparei nos volumes perfeitos que o decote da blusa tinha a função de mostrar.

— Sabe como funciona, não é? — Você quer dizer, o cartão? — Sim, cada música uma perfuração. Sorri em sinal de concordância e

começamos a dançar uma música intimista, muito delicada. Notei que ela usava uma belíssima luva

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sa. Tal qual o dó, na música e na pena que se sen-te de alguém.

Tem dó, tem dó de mim... me diz uma pala-vra doce que nem a saudade na trova, na boca do povo, assim... Me diz, me diz, que eu pego daqui o apelo dengoso de um som de xis. Vai falando à toa, sussurra, cochicha no chamego, me chama pra chacrinha de nós dois. Chaveada a porta, o champanhe gelado na cabeceira, chega pra cá, chega pra mim, ah! que cheiro bom!, o teu e o da chuva lá fora, nada não, um chuveirinho só, puro xereré, não incomoda ninguém. Tá com frio, joga o xale em cima. E chega mais, que eu tô pronto pro xeque-mate, me suga, me xinga e chacoalha. Contigo vou de chique a xumbrega, de xinxim ou de charque, a qualquer hora, me faz de capacho que eu baixo o facho. Agora! Ou então, chispa daqui!

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Exercício

Sandra Magaldi

As palavras têm vida. Fluem como água cor-rente, transmitem calor, juntam-se ou separam-se como gente - como a gente. Padecem de esque-cimento, são aposentadas a contragosto, tantas e tantas vezes. De repente, renascem no tempo, ressuscitam das cinzas, deixam-se redescobrir. Assumem valores, significados. Vexam-se ao se-rem pronunciadas, malditas. Calam-se, gaguejam, acavalam-se aos borbotões, sequer ouvidas, com-preendidas e, assim, não chegam a acontecer. Ou-tras vezes calam fundo, benditas. As palavras têm vida. Por isso adoecem com o desuso. E morrem por inanição e abandono. Até idiomas inteiros desaparecem. Palavras conhecem a beleza. São belas no sentido que encerram, na caligrafia que as regis-tra, no som de seus fonemas, no ritmo da digita-ção que as grava, veste de efeitos, edita, sublinha e deleta. E brincam, as palavras brincam tanto com a gente! Como a manga, que vive na roupa, cresce no pomar, inflama-se no lampião, a indeci-

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certa ocasião a esposa ameaçou se jogar pela ja-nela. Foi difícil contê-la, precisou até da ajuda do porteiro. Um vexame! Em todos os outros aspec-tos era bem sucedido:carinhoso com os filhos, bom profissional, rico, saudável, esportista. Mas o mal-estar com sua extrema necessidade sexual era uma espécie de ruído de fundo, o tempo todo presente. Via os amigos vivendo de maneira me-nos complicada, e os invejava. Sempre que numa roda social a conversa se encaminhava para esse tema, ele dava um jeito de se ausentar. Fez até psicoterapia, mas não resolveu. Tinha que haver uma solução, mas qual? Passava os dias tentando encontrá-la.

Finalmente, enfrentou e venceu o grande desafio. Aos noventa anos, fez voto de castidade.E cumpriu.

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O desafio

José Paulo O moleque espiando pelo buraco da fecha-dura. A tia diz para ele sair dali e deixar de olhar as meninas trocando de roupa. Esse menino não tem jeito, puxou ao avô. O tempo passou e o espí-rito sacana só cresceu. João rapaz estava sempre metido em confusões,e em todas havia uma bela jovem envolvida. Adulto, não mudou de compor-tamento. Certa vez, quando paquerava uma vizi-nha, foi surpreendido pelo noivo da moça, prati-cante de artes marciais, que lhe deu uma surra e quebrou-lhe o braço. Indagado a respeito, conta-va uma história fantasiosa, dizendo ter escorrega-do e caído na rua. Evidentemente, ninguém acre-ditava. João tinha consciência de que sua obses-são por sexo não era normal. Tentava se corrigir, mas não dava. Admirava a abstinência dos padres, demonstração de grande força moral. Um dia sou-be que um clérigo havia comentado ter feito voto de celibato, não de castidade. Ficou decepcionado, mas pelo menos isso era mais próximo de seu mundo. Casou e descasou várias vezes, amantes teve muitas. Por causa dessas infidelidades, em

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E fez o que pôde: olhou fixamente nos olhos do touro enquanto o bicho bufava e cavava o chão. Não sei quanto tempo isso durou. Na perspectiva de uma criança pequena, uma eternidade. Final-mente o touro deu uma última bufada, uma balan-çada de chifres, dando as costas foi-se embora de-vagar; virando de quando em quando.

O pai ficou lá, firme, os meninos atrás das pernas, observando o bicho enquanto ele se ia.

Chegamos a casa correndo e contamos pra mãe: o pai não tremeu, encarou o touro.

Nunca perguntei ao pai o que ele sentiu na-quela hora. Não tive esta curiosidade porque para mim era uma coisa simples: o pai era destemido, o pai era o herói e, apesar de ter me tornado adulto, minha visão deste episódio sempre foi a do meni-no.

Hoje, morto meu pai, às vezes me questiono se adotei a atitude certa de nunca ter perguntado; ouvir dele sua correta versão, saber se teve medo, saber quais pensamentos e sentimentos o afligiram naquela hora. Mas pensando bem, agi certo. Fiquei com o sentimento do menino.

O Touro correu da raia.

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va, descansava um pouco, praia. Jantava e dormi-a, no dia seguinte a mesma rotina.

Uma vez por semana ia com o pai a Campo Grande, no mercado, comprar suprimentos; na Pedra, fora o peixe, não havia mais nada. Íamos de bonde. Era uma festa.

Quase todos os dias, sempre após o almoço, saíamos a pé no que o pai chamava de “caminha-da”. Os caminhos eram trilhas circundadas por pro-priedades, em sua maior parte dedicadas à pecuá-ria. Como de costume, o pai levava uma vara tipo cajado, com o que ia espantando os animais, ca-bras, bodes, bois e vacas, que se aproximavam em demasia. Certa feita, numa dessas “caminhadas”, ele espantava a bicharada quando um boi, atraves-sado no caminho, não deu a menor bola para o es-pantamento. Diante da indiferença do vacum, o pai resolveu usar de mais energia e bateu no animal. Pra quê! O boi não era boi, era touro, num pulo pôs-se esperto. De pé, encarou o pai, baixando a cabeça começou a cavar o chão. O pai pegou a mim e ao meu irmão e colocou-nos atrás de suas pernas. Ficou parado, encarando o touro. Se esti-vesse sozinho, o pai podia correr e, quem sabe, subir em uma árvore das tantas que havia ao re-dor.

Mas, com os dois meninos, o que poderia fa-zer?

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é o que a gente viveu. É o que a gente recorda. E como a gente recorda para contar.

Mas bom, vamos à narrativa. O pai tirava férias e, nesse tempo de que

falo, alugava de um amigo, Seu Tomas, uma casa na Pedra de Guaratiba onde passávamos o mês inteiro.

Íamos pela Avenida Brasil, em um carro a-lugado, de Madureira, onde morávamos, até Cam-po Grande e, de lá, seguíamos por uma daquelas estradas poeirentas, de cujo nome não me lem-bro, e que, do tempo total, representava bem mais que a metade do percurso. Até que se che-gasse ao destino, passávamos por estreitos “ca-minhos de boi”, ladeados por sítios e fazendas. A casa de alvenaria, uma meia-água, não possuía forro, a telha era aparente, e pelo pouco uso era empoeirada e habitada por morcegos; tira-los dali era responsabilidade do pai. Era perto da praia, cheirava a maresia, esse cheiro era, para mim, o cheiro das férias.

Ficava na torcida para que o arrumar-lavar-limpar terminasse logo. Depois, o mar, a praia... Um fundo de baia, com uma pequena extensão de areia, um mar praticamente parado, cheio de lodo, mas tinha-a como um paraíso. A mãe relaxava na vigilância, eu me sentia livre o dia inteiro. Acorda-va cedo, tomava o café da manhã, praia. Almoça-

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pequeno, em posição agressiva, latindo estriden-temente.

Acho que, na mesma linha de pensamento, perdi a fobia quando o amor pela minha filha re-dimiu o cachorro. Mas isso é só uma especulação.

Tenho boas lembranças da minha relação com o pai. Principalmente da minha infância e das férias, sempre em fevereiro, passadas na Pedra de Guaratiba e em Sepetiba.

Foi na Pedra de Guaratiba que ocorreu um fato do qual me recordo de forma tão vívida que até hoje, depois de pelo menos 58 anos, ainda vejo a cena nos mínimos detalhes. Não posso as-segurar que minha memória tenha preservado a lembrança do acontecido de forma fidedigna, tão pouco que durante esses anos eu não tenha incor-porado algumas imagens que corroborassem a visão heróica que eu, menino de uns cinco anos, tinha do meu pai. Só posso assegurar que o nú-cleo da narrativa é verdadeiro e, se o menino colo-riu a cena com cores mais vivas, isso deve ser creditado à dose de delírio que normalmente po-voa a visão que temos dos eventos passados e faz com que, ao olharmos para trás, tenhamos a im-pressão que a vida foi venturosa e que um futuro alvissareiro nos aguarda. São essas pequenas ilu-sões que tornam a vida mais graciosa, pois reves-tem nossas lembranças com certa roupagem épi-ca. No dizer de Gabriel Garcia Marquez: A vida não

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Meu pai, Nestor Travassos Sarinho, era uma boa pessoa e, pelo que testemunho, um excelente pai e marido. Não que fosse perfeito – era falível como qualquer um de nós –, tinha seus problemi-nhas e seus problemões, mas no cômputo geral era um bom sujeito e, diria mesmo, acima da mé-dia dos homens da sua geração. Foi um pai pre-sente, na medida de sua disponibilidade de tempo, sua única atividade fora de casa era o trabalho. Éramos a típica família de classe média suburbana do meado do século XX; o pai era o provedor, a mãe gerenciava a casa e cuidava da educação dos filhos.

O meu pai, normalmente pacato e atencio-so, tinha um pavio curto, curtíssimo, não tolerava ignomínia nem falsidades, perdia as estribeiras, não deixava barato; nada físico, tudo no verbo. Era cada descompostura de fazer parar o trânsito, nessas horas não tinha ninguém acima dele. Era franco até a raiz do cabelo, não media as palavras. Do ponto de vista das relações públicas, era um zero, mas tinha a retidão de caráter e a honradez como pilares de conduta e o respeito como princí-pio do viver. Esses seus momentos de explosão, que não eram poucos, certamente faziam muito medo na criança pequena que eu era e daí, medo que transferi para o cachorro. Aliás, agora, pen-sando bem, a imagem é perfeita se eu quisesse descrever as espinafrações do pai: um cachorro

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dades, nesse ponto a fobia me ajudou várias ve-zes. Entretanto, já na chamada terceira idade, meu medo fóbico desapareceu e atribuo a isso o fato da minha filha, Juliana, ter adquirido uma ca-dela bassê com a qual fui convivendo e me acos-tumando. Passei a ter um medo normal de cachor-ro, principalmente dos grandes.

Recentemente, no livro Totem e Tabu, de Sigmund Freud sobre o qual me debruçava, li o seguinte trecho: Fobias desse tipo (fobias de cava-lo, cães, gatos, aves e outros animais domésticos) são, em minha opinião, pelo menos tão comum na infância quanto o pavor nocturnus e, na análise, quase invariavelmente mostram ser um desloca-mento para os animais do medo que a criança tem de um dos genitores.

Imediatamente me veio ao pensamento a imagem do meu pai e a de um cachorro vira-lata bem pequeno, que latia desbragadamente. Essa visualização, certamente motivada pelo livro, mui-to principalmente pelo trecho em citação, me cau-sou uma surpresa e, diga-se, uma boa surpresa, pois percebi, aos 63 anos, a provável explicação para um sentimento muito profundo que me ator-mentou e me acompanhou até bem pouco tempo. Percebi que eu havia deslocado para os cães o medo que me causava a imagem paterna quando esbravejava.

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O Touro correu da raia

Nelson Sarinho

Desde a mais tenra idade sempre tive medo

de cachorro; medo não, fobia. Não importava o tamanho, era um medo paralisante de qualquer cachorro, principalmente daqueles pequenos que se agitam nervosamente e latem um latido alto, raivoso, esganiçado e contínuo.

Adotei durante a minha vida diferentes pos-turas diante de tal pavor. Na infância, eu tinha medo e não escondia – tem cachorro, estou fora. Durante a adolescência e juventude, a coisa pe-gou; tinha pavor, porém tinha vergonha, era obri-gado a inventar procedimentos diversos quando confrontado socialmente com algum cão. A minha masculinidade não permitia que eu tornasse explí-cito esse sentimento angustiante – era um sofri-mento só. Na idade adulta, resolvi assumir publi-camente minha cinofobia, e até valer-me dela pa-ra livrar-me de compromissos sociais indesejáveis: – tem cachorro na sua casa... me perdoe, mas não vou. Devo acrescentar que sou meio antissocial, sempre me foi muito penoso participar de festivi-

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Decisão

Maria Helena Entrou num café, desses sofisticados que estão aparecendo em vários pontos da cidade, on-de se pode tomar uma saborosa bebida, feita com grãos selecionados. Pediu um expresso. Ouviu en-tão:

— Eu a conheço de algum lugar, de há mui-to... tenho certeza. Eu a conheço. Eleonora voltou-se e viu um homem, já ses-sentão, com ares de executivo, cuja fisionomia deixava ver o esforço que fazia para buscar, nos esconderijos da memória, aquela lembrança. Ela simplesmente lançou-lhe um olhar, misto de es-panto e desdém. Continuou tomando o seu cafezi-nho. Ele seguia falando, ou melhor, murmurando. Ela acabou de tomar o café, fez-lhe um aceno com a cabeça, expressou um sorriso à Mona Lisa, e retirou-se da mesma forma que entrara – indife-rente. Não quis revolver seu passado. Não valia a pena!

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do aparelho que ficava na mesinha ao lado do so-fá.

— Padre Vitório, que bom ouvir a sua voz novamente. Como vai a saúde, melhorou? Sei que devia ter ligado, mas a rotina... Preciso muito que o senhor me dê algumas orientações. Ah, meu Deus!

— Eu também queria muito falar contigo, fi-lho. Mas a doença tem me tomado todo o tempo disponível. E temo não sair dessa, infelizmente. Assim que você chegou, eu queria dividir contigo uma preocupação que vem me angustiando mais que a doença. Você está ofegante, irmão?

— Por favor, padre Vitório, continue. — É sobre uma moça que frequenta a nossa

igreja, você já deve ter visto. Ela tem o corpo do-tado de uma perfeição divina, o rosto de uma be-leza angelical. Mas a mente, pobrezinha, parece que foi tomada pelas forças do mal. No entanto, tenho certeza de que, com a graça de Deus, o jo-vem irmão vai manter o coração e a mente fecha-dos para as tentações da carne. Demorei a ligar, mas espero que não tenha chegado tarde.

A delicada mão da moça puxou de volta o jovem pároco para junto de si, deixando o fone pendurado pelo fio.

— Padre Anselmo... Irmão, você está me ouvindo?... Alô!... Alô!...

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Mais uma noite de insônia, preces, medita-ções, pesadelos. Na manhã seguinte, na basílica, ainda exausto, padre Anselmo trocava de roupa para iniciar a rotina religiosa, quando ouviu o ruí-do da maçaneta girar e a porta se abrir. Era ela, com mais uma história ensaiada.

— Bom dia, padre. Vim trazer um recado do seu assistente. Ele teve que levar a mãe ao hospi-tal, coitada, e pediu para eu ajudar o senhor en-quanto ele não chega.

Antes que o padre pudesse esboçar alguma reação, ela se aproveitou de ele estar com as mãos ocupadas vestindo a calça e o empurrou so-bre o sofá. Caiu-lhe em cima, a mão direita enfia-da nos cabelos, imobilizando-o, a língua forçando a entrada entre os dentes, enquanto a outra mão arrancava-lhe a camisa, arrebentando os botões.

Anselmo era um jovem forte, mas parecia sem forças. Com forças, mas sem vontade de rea-gir. Com vontade de reagir, mas com o controle motor desligado. Ligado, mas sem ânimo para se defender da força invasora, cedendo aos instintos que começavam a se manifestar ativamente. Para piorar sua situação, viu-se de cara com aqueles seios que tinham ficado registrados na memória, desde a primeira aparição.

O telefone tocou. Padre Anselmo desvenci-

lhou-se da moça, esticou o braço e pegou o fone

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delineava com diabólica clareza a delicada anato-mia da almofadinha à sua frente.

— Xiii!... Rápido, que o rapaz tá vindo aí. Não havia alternativa. Ele não teria como

explicar a sua inocência diante daquela cena. Pu-xou o cartão com a ponta dos dedos, como se fos-se uma pinça, e jogou sobre a mesa.

O sacristão apontando na moldura da porta, a moça já sentada ajeitando o vestido, o rosto do padre coberto de gotículas de suor, iluminadas pela luz que entrava em diagonal: uma bela e dramática pintura, digna de Velázquez.

— O senhor tem razão, padre Anselmo. Dia oito de maio é mesmo uma segunda-feira, por isso não tem nenhuma cerimônia agendada no livro.

A moça loura dos cabelos encaracolados le-vantou-se, pegou o santinho na mesa, sorriu sa-tisfeita para o homem suado à sua frente e deixou a sala.

O vagão do plano inclinado, único meio de

transporte coletivo entre a parte alta da cidade e a parte baixa, ia fechando as portas, quando ela chegou correndo. Àquela hora da noite ele descia lotado. O sacerdote gelou quando a viu. Ela em-purrou daqui, espremeu dali, e chegou onde ele se segurava. Encostou o peito na mão do padre, que fechou os olhos e ficou sem se mexer. Ela o mas-sageou, aproveitando o balanço da composição.

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achou melhor pedir para o sacristão permanecer na sala.

— Qual a data marcada? — O meu casamento está marcado para o

dia oito de maio deste ano, às 18 horas. — Mas, senhorita, se não me engano, dia

oito cai numa segunda-feira. Aqui está — disse ele, mostrando o calendário sobre a mesa — e, às segundas, não realizamos esse tipo de cerimônia. Deve haver algum engano.

— Eu garanto ao senhor que a data marca-da é essa. Eu mesma agendei com o padre Vitório.

Ele então pediu ao auxiliar que trouxesse o livro dos agendamentos para sanar de vez a dúvi-da.

Aproveitando-se da saída do funcionário, ela disse ter anotado a data no santinho que trazia sempre consigo. Levantou-se, chegou próximo ao padre e suspendeu o vestido. De fato, o cartão estava preso ao elástico da calcinha. Com as duas mãos a segurar a barra da roupa, quase cobrindo o rosto, ela sussurrou.

— Pega pra mim, por favor. O religioso empurrou a cadeira para trás e

esboçou uma reação nervosa, sem conseguir, en-tretanto, tirar os olhos do que era mostrado. Ficou mudo, paralisado. O sol, entrando pelos vitrais, iluminava os finos pelos dourados das coxas, a lembrar um pêssego maduro. A pecinha rendada

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Embaraçado com a inusitada situação, o pá-roco ficou imobilizado olhando a alvura daquela seda fina, a auréola rosada em torno da perfeição arroxeada do bico. Sem esperar pela recuperação do ouvinte, muito menos pela penitência, ela se retirou. Quando deu por si, falava para o vazio do outro lado.

Quase no final da missa das 18 horas, a úl-tima do dia, o religioso entregava as hóstias aos fiéis, quando viu ajoelhada à sua frente a jovem da perturbadora confissão. As mãos tremeram na hora em que pegou a partícula consagrada para depositar na língua da moça. O véu cobria o rosto, deixando expostos apenas a ponta do nariz e os carnudos lábios vermelhos, molhados e entreaber-tos. Os olhos fechados se abriram sob a fina ren-da, mas Anselmo levantou os seus a tempo de evitar confrontá-los, e empurrou o sacristão adian-te.

O padre teve uma noite difícil. Não conse-guia conciliar o sono. Levantou-se várias vezes para orar, e permaneceu por bom tempo em me-ditação. De volta à cama, o sono foi entrecortado por pesadelos que o deixaram exausto.

Os dias que se seguiram foram tranquilos, sem nada que perturbasse sua rotina. Mas quando pensava ter superado o desejo, a moça reapare-ceu. Desta vez, para saber detalhes sobre a ceri-mônia de casamento. Ele recebeu a jovem, mas

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Anjo caído

Valmir Barbosa

O sino badalava no alto da torre da Basílica de Santa Maria Maggiore, na parte alta de Bérga-mo, uma cidadela preservada, memória viva da Renascença, como muitas outras na Itália. Anun-ciava a chegada de Anselmo, o jovem pároco que viera substituir padre Vitório, afastado para tratar de uma doença grave.

Numa manhã ensolarada, padre Anselmo

chegou bem disposto, e depois de cumprir sua ro-tina administrativa, foi para o confessionário. En-trou e ao abrir a cortininha deparou-se com uma belíssima jovem de cabelos louros cacheados.

— Quais os pecados, irmã? — Padre, no domingo eu mostrei o seio es-

querdo ao meu noivo e... — Por esse pecado, a irmã... — Um momento, padre. Isso foi no domin-

go. Ontem eu mostrei o seio direito, esse aqui — disse ela, baixando parte da blusa — e ele não conseguiu notar nenhuma diferença. Isso é sinal de que ele não me ama?

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Ao final de todas as tardes, após o banho, as cri-anças da vizinhança, entravam na “cabana” para esperar pacientemente o início da transmissão. A imagem, cheia de chuvisco e instável, obrigava o dono da máquina maravilhosa a se levantar a todo minuto, para mexer nos botões . Bastavam poucos segundos para que tudo começasse novamente. Mas nada importava; para as crianças, a tela era de cinema. Pura alegria! A vizinha amiga passava a cestinha da pipoca durante a programação infan-til, e todos iam ficando, até os pais chamarem pa-ra dormir. Novos canais surgiram, outros televisores se compraram, e a turminha da “cabana” cresceu. Quem diria... passados alguns anos, a tevê seria apenas mais um aparelho dentro de casa.

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Mudando de canal

Maria Lucia A rua larga do bairro propiciava inúmeras brin-cadeiras, e todos se divertiam. Naquele dia a alga-zarra começou logo de manhã. O televisor, com-prado pela vizinha da casa amarela, em uma loja no centro da cidade, chegaria- e a espera trazia muita expectativa. Somente ao final da tarde um caminhão enorme apareceu dobrando a esquina. Chegou buzinando e bem devagarinho, procurando o número da ca-sa. Ao parar em frente ao endereço, as crianças saíram em disparada para abrir o portão. O cami-nhão estacionou, e os homens de uniforme cinza abriram o baú. Retiraram a imensa caixa e, com muita cerimônia, entraram na pequena sala. A família a postos já havia preparado um espaço onde seria colocado o televisor. No centro da sala ficava a mesa de jantar, quadrada.A plateia, miú-da e feliz, logo entrou embaixo da mesa, inaugu-rando o que passou a ser a “cabana” preferida pa-ra assistir à reduzida programação .Os intervalos e os horários faziam as expectativas aumenta-rem.

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laram uma briga. Trocaram empurrões e xinga-mentos. João não gostou das grosserias e partiu para tomar satisfações. Foi reconhecido pelos ra-pazes. Deixa disso, amigão, não tá vendo que é brincadeira. Mas pera aí, o que você tá fazendo aqui, com a Gracinha? Cuidado, que o marido dela é esquentado! João balbuciou uma desculpa, pa-gou a conta, pegou a mulher pelo braço, e saiu. Depois disso, os dois pilantras passaram a contar a história para os conhecidos, sempre pedindo, com um sorriso maroto, que nada fosse dito ao corno. Muitos estão se divertindo com essas inver-dades. Inverdades, repito. Um absurdo. Logo ago-ra que prometeu abandonar o marido para viver comigo!

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Senso de humor

José Paulo

Estou indignado.Há uma epidemia de infâ-mias grassando por aí. A maledicência é uma das piores pragas da humanidade. Todos estão achan-do muito engraçado, menos eu. Para mim, se me-ter com a vida alheia, é falta de respeito e de con-sideração. Até o Nelson, meu amigo Nelson, uma pessoa responsável, entrou nessa onda de espa-lhar notícias sobre assuntos que só interessam aos diretamente envolvidos. Uma vergonha.

Vejam o que teve a coragem de contar. Se-gundo ele, João foi surpreendido aos beijos e a-braços com uma moça, num bar de Ipanema. O casal estava numa paixão só, desligado do mundo, quando Jorginho e Paulinho entraram.Os dois ti-nham saído à noite, à procura de confusão. E ha-viam criado muitas, em diversos pontos do bairro. Tinham discutido com guardas e dado carteiradas. O pai de um deles é desembargador. Por acaso adentraram o bar. Como costumam fazer, de sa-canagem, para afrontar os frequentadores, simu-

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O reencontro não passou da soleira da porta. O desengano não pesava mais. Nem o amor.

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Nem em sonhos

Sandra Magaldi Ela sonhou. A noite toda. Ela sonhou a noite toda com o ex. O ex, aquele covarde. Sonhou a noite toda com o ex, aquele covarde, encantador como ele só. Mas sem ver-lhe o rosto. Ela sonhou a noite toda com o ex, aquele covarde, encantador como ele só, mas sem ver-lhe o rosto, que era o que mais desejava. Ver-lhe o rosto era o que mais desejava, após a-nos da separação. Ela sonhou a noite toda com o ex, aquele covarde, encantador como ele só, mas sem ver-lhe o rosto, que era o que mais desejava, anos após a separa-ção, pois o desengano não pesava mais. A campainha da frente. Uma, duas, várias vezes. Ela acordou e foi abrir. Era o ex, aquele covarde, a vida passada no rosto, mas ainda encantador como ele só. Agora ela o via claramente, como desejara, anos após a sepa-ração.

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Para o escritor e amigo, Pedro Veludo.

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Sumário

09 - Nem em sonhos Sandra Magaldi

11 - Senso de humor José Paulo

13 - Mudando de canal Maria Lucia

15 - Anjo caído Valmir Barbosa

21 - Decisão Maria Helena

23 - O touro correu da raia Nelson Sarinho

31 - O desafio José Paulo

33 - Exercício Sandra Magaldi

35 - Elegância efêmera Valmir Barbosa

39 - Hora errada Maria Helena

41 - Caleidoscópio Maria Lucia

43 - Na vitrine Valmir Barbosa

47 - Data venia José Paulo

49 - Pesadelo Sandra Magaldi

51 - A mudança de rumo Maria Helena

57 - Pesca no Kuluene Nelson Sarinho

65 - Taxi Maria Lucia

67 - O passado custa a passar Valmir Barbosa

73 - Preferência Maria Helena

77 - Competições José Paulo

79 - A cigarra e a formiga Sandra Magaldi

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Copyrigth Edição independente - Todos os direitos reser-vados aos autores. (contosdoparque.blogspot.com) Capa Daniel de Lucena Queiroz Revisão Marilena Moraes Diagramação Valmir Barbosa Impressão Oficina de Livros

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Eleonora Barbosa

Maria Helena Maria Lucia

Sandra Magaldi José Paulo

Nelson Sarinho Valmir Barbosa

Coletânea de Contos do grupo

Amigos de Xochipilli

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