construção, reconstrução e disputa pela memória coletiva e
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA
ANA CARINE CERVA
CONSTRUO, RECONSTRUO E DISPUTA
PELA MEMRIA COLETIVA E IDENTIDADE TNICA
NOS CAMPOS DE CIMA DA SERRA DO RIO GRANDE DO SUL:
DISTRITO CAXIENSE DE VILA SECA
Porto Alegre
2014
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ANA CARINE CERVA
CONSTRUO, RECONSTRUO E DISPUTA
PELA MEMRIA COLETIVA E IDENTIDADE TNICA
NOS CAMPOS DE CIMA DA SERRA DO RIO GRANDE DO SUL:
DISTRITO CAXIENSE DE VILA SECA
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Sociologia.
Orientador: Karl Martin Monsma
Porto Alegre
2014
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CIP - Catalogao na Publicao
Elaborada pelo Sistema de Gerao Automtica de Ficha Catalogrfica da UFRGS com osdados fornecidos pelo(a) autor(a).
Cerva, Ana Carine Construo, reconstruo e disputa pela memriacoletiva e identidade tnica nos Campos de Cima daSerra do Rio Grande do Sul: distrito caxiense deVila Seca / Ana Carine Cerva. -- 2014. 158 f.
Orientador: Karl Martin Monsma.
Dissertao (Mestrado) -- Universidade Federal doRio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e CinciasHumanas, Programa de Ps-Graduao em Sociologia,Porto Alegre, BR-RS, 2014.
1. Memria Coletiva. 2. Identidade tnica. 3.Fronteiras tnicas. 4. Efervescncia Geral. 5.Religiosidade. I. Monsma, Karl Martin, orient. II.Ttulo.
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ANA CARINE CERVA
CONSTRUO, RECONSTRUO E DISPUTA
PELA MEMRIA COLETIVA E IDENTIDADE TNICA
NOS CAMPOS DE CIMA DA SERRA DO RIO GRANDE DO SUL:
DISTRITO CAXIENSE DE VILA SECA
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Sociologia.
Aprovada com Voto de Louvor em 09 de abril de 2014.
Banca Examinadora:
______________________________________________________________
Prof. Dr. Karl Martin Monsma UFRGS - (Orientador)
______________________________________________________________
Profa. Dra. Raquel Andrade Weiss UFRGS
______________________________________________________________
Prof. Dr. Marcio Sergio Batista Silveira de Oliveira - UFPR
______________________________________________________________
Prof. Dr. Ruben George Oliven - UFRGS
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AGRADECIMENTOS
Ento, chega o momento de agradecer a todas as pessoas e instituies que
colaboraram direta ou indiretamente pesquisa que aqui se conclui.
Nesse momento, h uma pessoa em especial, sem cuja participao constante, far-
se-ia mais rduo, ainda, esse trabalho. Meu estimado marido Flavio Freire,
companheiro de trabalhos de campo, de pesquisas e aquisies de obras, inclusive,
obras raras, as quais se fizeram indispensveis contextualizao da historiografia
rio-grandense. De forma incansvel prestou assessoria constante como motorista,
fotgrafo e filmador dos trabalhos de campo, alm de se mostrar interessado
mediador das ideias por mim compartilhadas.
Agradeo profundamente a meu filho Vincius o zeloso trabalho de degravaes de
quase cinco horas de udio, das Entrevistas Narrativas, bem como pela pacincia
com que administrou as minhas ausncias.
Dou meus agradecimentos ao meu orientador Karl pelo seu aceite em prestar-me
orientao para este trabalho, pelas suas indicaes bibliogrficas, pelas sugestes
e crticas necessrias ao desenvolvimento da pesquisa, bem como pela
tranquilidade na forma de conduzir seus orientandos.
Ao Programa de Ps Graduao em Sociologia, em especial a sua secretaria
Regiane pelo zeloso trabalho de assessoria prestado ao corpo dissente e docente
deste Programa.
professora Raquel Weiss pela forma admirvel como conduz o Grupo de
Pesquisas e Estudos Durkheimianos e Ncleo de Estudos da Religio da UFRGS,
s suas colaboraes a minha pesquisa.
A minha amiga Tielle pelos mapas elaborados para esta pesquisa, pelo seu
incentivo e fora prestados. Com muito carinho demonstro minha gratido sua
parceria e admirao sua determinao e profissionalismo.
comunidade do distrito Vila Seca pela confiana em meu trabalho, por abrir as
portas de suas residncias e receber-me de forma to gentil, hospitaleira e
prestativa. Agradeo-lhes o compartilhamento das lembranas e esquecimentos de
suas histrias de vida que se fundem histria da comunidade. Devido a vocs,
tornou-se possvel esta pesquisa.
senhora Eveny Maria Soares Dany pelo interesse em colaborar, da melhor forma
possvel, com a pesquisa, tanto por receber-me em sua casa, quanto pelo precioso
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material fornecido, como pelas ligaes minha residncia a cada material novo que
conseguia.
Ao senhor Antonino Rabello e sua famlia, especialmente, a Sandra, sua filha, pela
gentileza com que recebia as minhas visitas e pela lembrana em convidar-me para
o almoo beneficente em homenagem a seu pai.
Agradeo ao senhor Lindomar Alves Mendes a colaborao valiosa pesquisa: sua
tarefa como pesquisador das tradies, crenas e ritos das comunidades dos
Campos de Cima da Serra engrandeceram este trabalho.
Agradeo, ainda, ao senhor Luiz Antnio Alves a exposio oral da histria de
formao das comunidades dos Campos de Cima da Serra, bem como as obras
fornecidas pesquisa.
Secretaria Municipal da Cultura de Caxias do Sul, especialmente Coordenadora
da Rede de Pontos de Cultura, setor de Assessoria de Objetivos e Metas da
Secretaria Municipal de Cultura de Caxias do Sul, senhora Elaine Pasquali Cavion,
meus agradecimentos pelas informaes prestadas sobre os Pontos de Cultura do
municpio de Caxias do Sul.
Aos meus pais por me mostrarem, ao longo de suas vidas, que nossas escolhas
dependem, na maioria das vezes, de caminhos rduos, sem os quais no
atingiramos as nossas metas.
Aos meus enteados pela pacincia que tiveram em acompanhar esses dois anos de
profunda dedicao pesquisa.
Aos meus irmos Davi e Cris e a minha cunhada Camila pelo incentivo prestado nos
momentos difceis.
Ana Carine
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H, portanto, na religio algo de eterno que est destinado a sobreviver a todos os smbolos particulares nos quais o pensamento religioso sucessivamente se envolveu. No pode haver sociedade que no tenha a necessidade de manter e revigorar, a intervalos regulares, os sentimentos coletivos e as ideias coletivas que fazem sua unidade e sua personalidade.
mile Durkheim
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RESUMO
Esta dissertao tem como objetivo analisar a memria coletiva e a etnicidade da comunidade distrital de Vila Seca, includa em situao rural, localizada nos Campos de Cima da Serra da Encosta Superior do Nordeste do Rio Grande do Sul, no municpio de Caxias do Sul. Na ltima dcada, esta localidade mostra-se palco da instalao de uma barragem para fins de captao de gua potvel populao de Caxias do Sul. Em meio a um contexto de limitaes de usos do solo da regio, moradores buscam formas de potencializar recursos materiais e simblicos para a comunidade. Convm destacar que a localidade foi perpassada por atividades tropeiras em finais do sculo XIX e meados do sculo XX, o que lhe conferiu a caracterizao de pouso a tropeiros. Por parte dos moradores do distrito de Vila Seca, compreende-se que sua identidade tnica originou-se de populaes imigrantes luso-aorianas, diferenciando-se, assim, da identidade majoritria de seu municpio, conhecida pela sua italianidade. Nesse contexto, observa-se uma organizao social responsvel pela manuteno das fronteiras tnicas e realce de sinais diacrticos, em um processo contnuo de dicotomizao entre o Ns em oposio a Eles. Evidenciam-se por parte da comunidade momentos de efervescncia coletiva, relacionados s festas distritais. Nas festividades, demonstram-se tanto a religiosidade da comunidade na devoo ao Divino Esprito Santo quanto o cultivo dos hbitos de homem do campo.
Palavras-chave: Memria Coletiva, Etnicidade, Fronteiras tnicas,
Efervescncia Coletiva e Religiosidade.
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ABSTRACT
This thesis aims to analyze the collective memory and ethnicity of the community in the district of Vila Seca, which is located in a rural area in the Campos de Cima da Serra region of the upper Northeastern slopes of the state of Rio Grande do Sul, in the municipality of Caxias do Sul. In the last decade, this location became the location for the installation of a dam to provide drinking water to the population of Caxias do Sul. In a context of limitations on land use in the area, residents seek ways to raise the potential of material and symbolic resources for the community. It should be emphasized that many mule trains passed through that region in the late nineteenth and mid-twentieth century, which gave it the character of a rest stop for mule drivers. Through interviews with the residents of the district of Vila Seca, it is possible to understand that their ethnic identity originated from Portuguese-Azorean immigrant populations, thus differing from the identity of the majority of their municipality, well known for its Italian identity. In this context, there the social organization of the district maintains ethnic boundaries and highlights diacritical signs of identity, enhancement of in a continuous process of dichotomization between "Us" and "Them". The community displays moments of collective effervescence, related to the district festivals. These festivities manifest both religious devotion to the communitys patron saint, the Divine Holy Spirit, and the cultivation of rural customs.
Keywords: Collective Memory, Ethnicity, Ethnic Boundaries, Collective
Effervescence and Religiosity.
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SUMRIO
INTRODUO .................................................................................................................... 10 1. ETNICIDADE, MEMRIA COLETIVA, ETNOGNESES E ESPAO SOCIAL .... 16
1.1 MEMRIA COLETIVA .................................................................................... 16 1.1.1 A efervescncia geral e as representaes coletivas ...................................... 21 1.1.1.1 Manifestaes de Efervescncia Coletiva na comunidade vila-sequense ....... 24
1.2 ETNICIDADE .................................................................................................. 27 1.2.1 Identidade tnica e as Etnogneses ............................................................... 29 1.2.1.1 Manifestaes da identidade tnica na comunidade vila-sequense ................ 39
1.3 ESPAO SOCIAL .......................................................................................... 46 2. PROCEDIMENTOS METODOLGICOS .............................................................. 47
2.1 METODOLOGIA DA PESQUISA .................................................................... 47 3. CARACTERIZAO DO AMBIENTE EMPRICO ................................................. 57
3.1 CAXIAS DO SUL ............................................................................................ 57 3.2 VILA SECA ..................................................................................................... 63
4. O TROPEIRISMO NO EXTREMO MERIDIONAL DO BRASIL ............................. 76
4.1 DO FENMENO DO TROPEIRISMO POVOAO .................................... 77 5. POPULAES DOS CAMPOS DE CIMA DA SERRA ......................................... 83
5.1 DINMICA DE OCUPAO POPULACIONAL DOS CAMPOS DE CIMA DA SERRA .........................................................................................................................83
5.1.1 Populao indgena ........................................................................................ 83 5.1.2 Populao de ascendncia africana ............................................................... 85 5.1.3 Populao aoriana ........................................................................................ 90 5.1.4 Os Tropeiros ................................................................................................... 93 5.1.5 Populaes alems, polonesas e italianas ..................................................... 98
6. RELIGIO E IDENTIDADE ................................................................................. 104
6.1 PARA UMA SOCIOLOGIA DAS FESTAS DO DIVINO ................................. 104 6.1.1 Festa do Divino Esprito Santo de Vila Seca ................................................. 105 6.1.2 Origens da Festa do Divino: signos e papis ................................................. 112
7. MEMRIAS DA COMUNIDADE ......................................................................... 117
7.1 ETNICIDADE E ETNOGNESES ................................................................... 119 7.2 PARTICIPAO DAS FAMLIAS NO PROCESSO DE FORMAO DO DISTRITO ........................................................................................................................130 7.3 SEGREGAO RACIAL ................................................................................. 135 7.4 FESTAS DO DISTRITO E EFERVESCNCIA COLETIVA ............................. 136 7.5 PONTO DE CULTURA: VILA SECA EM CULTURA ...................................... 138
CONSIDERAES FINAIS REFERNCIAS ................................................................................................................. 146 ANEXOS ........................................................................................................................... 152
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INTRODUO
A presente pesquisa aborda a temtica dos fenmenos da etnicidade e da
memria coletiva do distrito de Vila Seca, rea rural do municpio de Caxias do Sul,
Encosta Superior do Nordeste do Rio Grande do Sul. Busca-se compreender em
que medida a etnicidade e a memria coletiva podem constituir-se em uma relao
dialtica entendida como uma construo simblica, uma disputa por recursos e um
estatuto de poder acionado pela comunidade.
Subsidia-se do estudo contemporneo da Teoria da Etnicidade, a qual aborda
a identidade tnica como uma construo social permeada por critrios de
pertencimento. Segundo Barth (1969), o contato intertnico entre grupos possibilita
uma atribuio tanto endgena quanto exgena, bem como a seleo e o realce de
traos diacrticos e a definio de fronteiras tnicas (POGTIGNAT; STREIF-
FENART, 1997). Busca-se, tambm, a partir do acionamento memria coletiva,
dados ou noes comuns que se integram identidade social da comunidade em
estudo.
Pensa-se que o espao social rural, alm da produo de commodities
agrcolas, pode apresentar-se como um lugar de auto identificao e autovalorizao
de identidades tnicas. Observa-se em um municpio predominantemente urbano,
ou seja, com mais de 96% de sua populao residindo em situao urbana, a
recriao de um passado rural do Rio Grande do Sul, centrado da figura mtica do
gacho (OLIVEN, 2006, p 210-11). Destaca-se o fato de os Campos de Cima da
Serra representarem a maior proporo de entidades tradicionalistas em relao
populao no Rio Grande do Sul, conforme Oliven (2006, p. 128).
Contextualiza-se, ainda, que o territrio brasileiro compe-se por seis biomas
diferenciados, sendo que o Estado do Rio Grande do Sul possui dois, o bioma
Campos, com um percentual aproximado de 63% da rea total ocupada, e o bioma
Mata Atlntica, com 37% (IBGE, 2004). O distrito de Vila Seca possui considervel
biodiversidade por inserir-se numa regio integrada ao bioma Mata Atlntica. Seu
ecossistema constitui-se pelos Campos de Cima da Serra e pela Floresta Ombrfila
Mista, que se compe de um mosaico de campos e floresta de Araucria
Angustiflia.
O fato de Vila Seca localizar-se em uma zona de transio entre a Colnia e
os Campos de Cima da Serra pode contribuir para a anlise das fronteiras tnicas
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dos grupos sob a perspectiva da dicotomizao entre ns/eles, uma vez que se
observa uma constante organizao social tnica que visa reforar os sinais
diacrticos entre o grupo minoritrio vila-sequense e o grupo majoritrio caxiense. As
fronteiras tnicas mostram-se menos permeveis quando identidades tnicas, em
interao, confrontam-se com grupos que apresentam atividades econmicas
distintas (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 155).
No caso em estudo, as identidades em convvio relacionam-se com o as
atividades econmicas do colono italiano, fundamentadas na agricultura, indstria e
servios e nas atividades econmicas do homem do campo, abalizadas na pecuria.
Segundo as narrativas de moradores da regio, os Campos de Cima da Serra foram
ocupados, inicialmente, por descendentes de luso-aorianos, tropeiros, afro-
brasileiros, alm das populaes indgenas presentes ali antes da chegada dos
demais grupos sociais.
Convm destacar aqui a questo da religiosidade da comunidade de Vila
Seca, uma vez que as populaes luso-aorianas que se deslocaram de Santo
Antnio da Patrulha e Laguna, para ocupar os Campos de Cima da Serra, trouxeram
consigo a f ao Divino Esprito Santo. Logo, os debates estabelecidos nesta
pesquisa sero mediados tanto pela corrente terica do pensamento de Durkheim,
em As Formas Elementares da Vida Religiosa, quanto pelas consideraes de Vitor
Turner em suas anlises sobre O Processo Ritual.
Outra peculiaridade do distrito de Vila Seca refere-se ao fato de localizar-se
em uma rea mida, chamada Zona das guas. Essas reas tm como funes a
captao e acumulao de gua para o abastecimento pblico de Caxias do Sul,
das agroindstrias e a dessedentao de animais. Os distritos inseridos na Zona
das guas necessitam adotar medidas especficas, conforme dispem a legislao
municipal vigente - Lei n 246/20051. Vale registrar que o distrito em investigao
mostra-se palco da instalao do Sistema Marrecas2, para fins de abastecimento de
1 A Lei n 246/2005 estabelece conceitos e funes da Zona das guas (ZA) bacias de capitao e
acumulao de gua para o abastecimento do municpio de Caxias do Sul, disciplina o uso e parcelamento do solo para estes espaos e d outras providncias. 2 Sistema Marrecas um empreendimento da Prefeitura Municipal de Caxias do Sul em parceria do
Servio Autnomo Municipal de gua e Esgoto (SAMAE). Seu objetivo consiste em atender demanda de gua potvel a 250 mil caxienses para as prximas dcadas. A obra compe-se por uma barragem, localizada no Arroio Marrecas (distrito de Vila Seca), uma Estao de Bombeamento de gua Bruta (EBAB), uma Estao de Tratamento de gua (ETA), quilmetros de adutoras de gua bruta e tratada, alm do reservatrio de chegada. O municpio ainda possui outras barragens: Maestra, Dal B, Samuara e Faxinal, que so os atuais mananciais de abastecimento pblico, todavia
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gua potvel populao do municpio de Caxias do Sul. Neste contexto, vm
surgindo, na ltima dcada, movimentos de organizao social tnica,
possivelmente relacionados s restries de uso do solo.
A instalao do Sistema Marrecas no distrito de Vila Seca para o
abastecimento de gua a cerca de 250 mil caxienses nos prximos anos retrata um
fenmeno presente das metrpoles brasileiras, o crescente processo de urbanizao
dos municpios e a necessidade de investimentos em infraestrutura e prestao de
servios para o atendimento das demandas internas dessas cidades. Para uma
contextualizao desse fenmeno, sero tratados os aspectos demogrficos de
Caxias do Sul e Vila Seca no terceiro captulo deste estudo.
Convm ressaltar, ainda, que o distrito de Vila Seca possui um ncleo urbano,
o qual compreende a prestao de servios bsicos de educao, sade, servios e
comrcio que atendem a populao local. Portanto, toda a organizao social
destinada s festas tnicas e religiosas do distrito mobiliza as questes de
etnicidade e religiosidade compreendidas mais pelo seu aspecto subjetivo do que
pelo material, uma vez que o distrito no se encontra, atualmente, em condies
estruturais de abranger um ponto de turismo rural.
Por conseguinte, a presente pesquisa tem como problema de investigao as
seguintes questes: como a memria coletiva construda, reconstruda, colocada
em disputa dentro do espao social de lutas simblicas nas quais a populao vila-
sequense se insere? Quais fatores motivam a recuperao cultural da identidade do
distrito de Vila Seca? Que processos, ou seja, atores e instituies esto envolvidos
na organizao social tnica do grupo? Quais signos esto relacionados aos
fenmenos da memria coletiva e etnicidade do grupo? Como o fenmeno da
efervescncia geral se manifesta em Vila Seca ao longo de sua histria?
No caso emprico em anlise, tem-se como objetivo geral:
- Analisar como a memria coletiva construda, reconstruda, colocada em
disputa dentro do espao social de lutas simblicas nas quais a populao vila-
sequense se insere.
atingiram o limite de capacidade de fornecimento de gua para fins diversos, principalmente, para o consumo humano do municpio de Caxias do Sul (UCS, 2008). A inaugurao do Sistema Marrecas ocorreu em 21 de dezembro de 2012 e contou com a presena da presidente da Repblica Dilma Rousseff (SEREFINI, 2012).
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Quanto aos objetivos especficos busca-se:
1. Avaliar como se apresentam as representaes coletivas
estabelecidas nos momentos de efervescncia geral ao longo da histria do distrito
de Vila Seca;
2. Elencar signos relacionados ao fenmeno da identidade tnica do
distrito de Vila Seca;
3. Identificar quais fatores motivam a recuperao cultural da
identidade tnica distrito de Vila Seca;
4. Analisar os processos sociais: atores e instituies envolvidos no
fenmeno da construo, reconstruo e disputa da memria, bem como as
posies e papis destes atores no espao social investigado.
O estudo justifica-se pelo ponto de vista metodolgico como uma corrente de
pensamento sociolgico relacional a qual compreende a realidade social voltada no
substncia, mas a relaes. Nesse contexto, compreende-se que as
representaes sociais entre os agentes sero analisadas num espao social de
lutas simblicas, lutas de classificaes sociais, de rtulos (GOODMANN apud
BOURDIEU, 2004, p. 165).
Pelo ponto de vista acadmico, o estado da arte da temtica investigada
demonstra a escassez de pesquisas na rea sociolgica sobre a memria coletiva e
etnicidade luso-aoriana e tropeira no Rio Grande do Sul.
Pelo ponto de vista pragmtico, prope-se subsidiar Polticas Pblicas na
regio em estudo, bem como em regies com caractersticas similares. Um exemplo
dessas polticas o Programa Pontos de Cultura, no qual o distrito foi eleito no ano
de 2010.
Apresentam-se como hipteses da pesquisa as seguintes proposies:
Conforme o pensamento de Pollak (1989), este estudo analisa a memria
coletiva do distrito de Vila Seca como uma memria coletiva subterrnea, como algo
luso-aoriano e tropeiro se comparada a uma memria coletiva majoritria de
Caxias do Sul (RS), vista como algo italiano. Esta associada prosperidade
econmica e visibilidade cultural do municpio; aquela, associada a comunidades da
zona rural, que se localizam nos Campos de Cima da Serra, as quais cultivam e
realam sinais diacrticos de uma cultura campeira e forte coeso social
impulsionada pela f no Divino Esprito Santo.
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Entende-se a memria coletiva de grupos tnicos, por um lado, enquanto um
fenmeno de recuperao cultural, segundo Bartolom (2006) e, por outro lado,
consolidada em lembranas de colonizao e imigrao, que mantm uma crena
subjetiva na procedncia comum (WEBER, 2000). Compreende-se como funes
essenciais do fenmeno da memria a busca da manuteno da coeso interna e a
delimitao de fronteiras tnicas dos grupos (POLLAK, 1989).
Compreende-se, ainda, segundo Pollak (1989), que as memrias
subterrneas, possivelmente, emergem em momentos de crise. Nestes perodos, a
memria ingressa numa disputa, a qual pode proporcionar conflito e competio
entre memrias concorrentes. Portanto, em meio instalao de barragens para
acumulao de gua na zona rural do municpio, demandada pela evoluo
acentuada do crescimento populacional na zona urbana, observa-se a organizao
do fenmeno da etnicidade. Neste contexto, a construo, reconstruo e disputa da
memria coletiva do distrito pode ser compreendida, tanto do ponto de vista
simblico, para organizar de modo significativo o mundo social, ou seja, o
sentimento de pertena; como do pragmtico, para o alcance de direitos polticos e
bens materiais.
A memria coletiva mostra-se um fator importante do sentimento de
continuidade e coerncia da pessoa e do grupo neste processo constante de
reconstruo de si (POLLAK, 1992). A construo da etnicidade um fenmeno
relacional que se produz em relao ao outro. A escolha dos traos culturais de
realce ou salincia compreendida dentro de um campo de inter-relaes, no qual
se encontram organizadas categorias tnicas contrastantes (POUTIGNAT,
STREIFF-FENART, 2011; BARTH, 1969).
Admite-se a possibilidade de que os agentes envolvidos no processo atual de
organizao social tnica sejam dotados de um volume significativo de capital social,
no espao social de Vila Seca. Assume-se que o capital social torna-se importante
aspecto para o alcance dos objetivos de mobilizao do fenmeno da etnicidade no
distrito em investigao.
O procedimento metodolgico utilizado para a compreenso do objeto
construdo subsidiou-se de uma pesquisa qualitativa espacialmente demarcada pelo
distrito Vila Seca, zona rural do municpio de Caxias do Sul, enquanto
temporalmente delimitada pela memria coletiva e manifestaes culturais
expressas no momento presente. Todavia, a memria coletiva da comunidade
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contextualizada por pesquisa documental. Convm ressaltar que o segundo captulo
ir detalhar os Procedimentos Metodolgicos desta pesquisa.
Por conseguinte, o estudo foi distribudo em sete captulos, alm da
introduo. O primeiro captulo tratar dos componentes conceituais, tendo como
foco os conceitos de etnicidade, memria coletiva, etnognese e espao social. A
segunda parte discorre sobre os procedimentos metodolgicos da pesquisa. O
terceiro tpico aborda as questes relacionadas caracterizao do ambiente
emprico: Vila Seca e Caxias do Sul. A quarta seo discorre sobre o povoamento
do Rio Grande do Sul a partir dos Caminhos das Tropas. O quinto item trata das
dinmicas das populaes dos Campos de Cima da Serra. O sexto captulo dialoga
com os aspectos da religio e identidade do distrito Vila Seca com o Divino Esprito
Santo. O stimo ponto procura relacionar as memrias coletivas da comunidade em
processo de construo, reconstruo e disputa. Por fim, nas consideraes finais
apontam-se as relaes entre as hipteses e a pesquisa desenvolvida. Procura-se,
ainda, mostrar aspectos relevantes da identidade e memria coletiva de uma
comunidade rural inserida na segunda cidade mais populosa do Rio Grande do Sul.
Convm destacar que foram utilizadas, para ilustrar a memria coletiva e a
identidade tnica da populao de Vila Seca, cpias fotogrficas de poca, com
prvia autorizao, doadas pelas famlias entrevistadas, bem como pelo acervo do
Arquivo Histrico Municipal Joo Spadari Adami. Ainda, durante os trabalhos de
campo foram feitos registros fotogrficos dos desfiles tnicos, Festa do Divino
Esprito Santo, Cavalgada do Divino, Festa do Pinho, bem como dos lugares de
memrias da populao vila-sequense, as quais sero apresentadas durante o
estudo.
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1. ETNICIDADE, MEMRIA COLETIVA, ETNOGNESES E ESPAO SOCIAL
1.1 MEMRIA COLETIVA
Este captulo tratar da memria do distrito de Vila Seca a partir de sua
construo social pela comunidade, ou seja, da memria coletiva do grupo. Sero
tratadas as concepes sociolgicas presentes nos estudos de Halbwachs, discpulo
de Durkheim. Ainda, sero discutidas as abordagens conceituais de Assmann a
respeito da memria comunicativa e da memria cultural. O estudo tambm tratar
das ideias de Confino contidas na obra Collective Memory and History: Problems of
Method, as quais concebem a memria como um estudo sobre a mentalidade
coletiva e explorao da identidade comum que une o grupo. Por fim, sero
utilizadas as anlises sobre memrias subterrneas presentes nos estudos de
Michel Pollak.
No final do sculo XIX, laboratrios de psicologia experimental direcionam
seus estudos sobre a temtica da memria atravs de perspectivas quantitativas. O
psiclogo alemo Hermann Ebbinghaus3 realiza investigaes para avaliar a
capacidade de memorizao de cada indivduo. Ele emprega o termo memria como
um conjunto de atividades atribudas mente, tais como aprendizado, reteno,
associao e reproduo.
No mesmo perodo, o filsofo Henri-Louis Bergson publica a obra Matria e
Memria, Ensaio sobre a Relao entre Corpo e Esprito (1897), com o pressuposto
de que a memria no uma mera funo mecnica do crebro ou do sistema
nervoso. Pode-se compreender a teoria bergsoniana atravs de uma defesa da
memria enquanto instituio humana, em contraposio aos estudos de carter
biolgicos, os quais propunham reduzi-la a questes levantadas pelos filsofos a
respeito da natureza da memria. Bergson, apesar de se distanciar da doutrina que
fazia da memria uma funo mecnica das atividades cerebrais, no refutava o
componente material e biolgico da memria (SANTOS, 2012, p. 52).
Ao confrontar os estudos sobre memria individual com as novas abordagens
sobre a memria coletiva surge a dimenso de temporalidade. A questo temporal
3 Ebbinghaus publica em 1885 na Alemanha a obra ber das Gerdchtnis. Untersuchungem zur
experimentallen Psichologies, traduzido para ingls em 1913, com o ttulo: Contribution to Experimental Psichologie.
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pode ser vista quando Bergson faz distino entre duas memrias, uma relacionada
ao conhecimento e aprendizado, adquirida com o passar do tempo, ligada s
atividades cotidianas, uma memria espontnea. E outra, atrelada ao ato de
recordar, ou seja, a recuperao de imagens do passado em um momento preciso
do presente conforme a vontade de quem lembra (BERGSON, 1985, p. 85-96 apud
SANTOS, 2012, p. 88-89).
Para o filsofo, as duas memrias indicam a existncia de uma experincia
anteriormente adquirida. Ele acreditou em um fluxo ou estado puro de conscincia,
com uma durao, desatrelada da linguagem e da razo, com seus mecanismos
espaciais e quantitativos. Bergson trabalhou com a concepo de dure, uma
dimenso temporal complexa, que no pode ser medida por equao fsica, ou
criao subjetiva, mas compreendida segundo uma experincia vivida em um
momento inerente h um tempo. A linguagem no seria capaz de traduzir o reino da
dure, mas este se encontraria acessvel memria. O filsofo procurou representar
a atualizao de imagens, pela figura de um cone colocado sob um plano, ou seja, a
possibilidade de atualizao de imagens passadas no presente (SANTOS, 2012).
Todavia o socilogo Maurice Halbwachs negou a possibilidade de que a
reconstruo de qualquer aspecto do passado estivesse atrelada ao corpo, mas sim
sociedade. Nas primeiras dcadas do sculo XX, estudos sobre a memria
permitiram romper com a separao entre memria e sociedade, na medida em que
definiram a memria como uma construo social. A mudana de abordagem aos
estudos sobre a memria, nas reas como psicologia e filosofia, deveu-se ao
socilogo Maurice Halbwachs e ao psiclogo britnico Frederic Charles Bartlett.
Aps ser aluno de Bergson, no Liceu Henri IV, Maurice Halbwachs aproxima-
se de intelectuais que se organizavam em torno do socilogo francs mile
Durkheim. Evidencia-se essa constatao por Jean Duvignaud no prefcio do livro
de Halbwachs (2012) A memria coletiva, quando o autor afirma que Halbwachs se
insere visivelmente no pensamento durkheimiano em Les cadres sociaux de la
mmoire, publicado em 1925. Nesta obra, a anlise da memria parece ter
inspirao das Formas Elementares da Vida Religiosa, uma vez que Halbwachs
confere somente a contextos sociais reais o acionamento s recordaes e s
localizaes das lembranas. Durkheim acreditava enfaticamente no fato de que os
sistemas de classificao sociais e mentais sempre tomam como base meios
sociais efervescentes (HALBWACHS, 2006, p. 7-8).
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Santos (1998) analisa a fidelidade de Halbwachs ao conceito de
representao coletiva durkheimiano4, uma vez que ele ao pensar nos quadros
sociais da memria no os v como uma somatria de representaes individuais:
[...] a memria adquirida medida que o indivduo toma como sua as lembranas do grupo com o qual se relaciona: h um processo de apropriao de representaes coletivas por parte do indivduo em interao com outros indivduos (SANTOS, 1998, p.5).
Da mesma maneira, busca-se, no caso emprico em anlise, apreender as
maneiras como a comunidade de Vila Seca constri formas de classificao social a
partir de um sistema de representaes coletivas as quais reforam os laos
solidrios entre seus membros.
Halbwachs pensou a memria a partir dos laos sociais existentes entre os
indivduos no presente. O socilogo aprofundou os estudos sobre a questo social
em suas anlises, negligenciando, no entanto, as investigaes sobre as aes e
interaes sociais. No entanto, Bartlett refuta as coeres impostas por estruturas
estabelecidas e enfatiza que indivduos tm razes e intenes com significados
prprios no processo de construes de suas memrias (SANTOS, 2012, p. 26-27).
Bartlett explica a memria como um mecanismo complexo demonstrado por
uma sucesso de experincias interligadas e vinculadas com as precedentes, no
qual seriam atualizadas de acordo com as reaes do presente. Utilizou-se da
expresso schema, da psicologia, para significar um padro adquirido pelo indivduo,
mediante a percepo, permitindo-lhe perceber novas experincias. Assim, o ato de
recordar est associado capacidade de utilizao e reutilizao de imagens a partir
de padres apreendidos anteriormente (SANTOS, 2012, p. 66).
Maurice Halbwachs buscou compreender a memria social da mesma
maneira que mile Durkheim procurou analisar o suicdio, enquanto um fato social.
As questes que o socilogo deixou podem ser um ponto de partida para a
compreenso social da memria (SANTOS, 1998 apud SANTOS, 2012, p. 50).
Pode-se compreender a relao entre indivduos e os quadros sociais da
memria como uma relao de manuteno de estruturas. O socilogo analisou a
composio de alguns quadros sociais, tais como o da famlia, da religio e do
4 Para Durkheim, as representaes coletivas atribuem com frequncia s coisas s quais se
relacionam propriedades que nelas no existem sob nenhuma forma e em nenhum grau. Do objeto mais vulgar, elas podem fazer um ser sagrado e muito poderoso (DURKHEIM, 2009, p. 237). Desse modo, a memria do grupo a memria que tem significado quela coletividade, alm de se encontrar em constante relao com as representaes coletivas daquela comunidade.
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trabalho, alm de outros. Halbwchs afirma que as lembranas do passado
necessitam ser pensadas a partir de quadros sociais que antecedem os indivduos.
Na obra Les cadres sociaux de la mmoire, Halbwachs define trs afirmaes sobre
a memria:
A crena de que memrias s podem ser pensadas em termos de
convenes sociais, denominadas quadros sociais; a abordagem a estas convenes a partir do mundo emprico observvel distante, portanto, das intenes dos indivduos; e a afirmao de que o passado que existe apenas aquele que reconstrudo continuamente no presente (SANTOS, 2012, p. 53).
Halbwachs defendia a ideia de que, proporo que a sociedade burguesa
se modificava, sua memria coletiva adaptava-se s condies da sociedade
moderna. Dessa maneira, os indivduos passavam a utilizar tradies que melhor
lhes servissem. No caso abordado em Les cadres sociaux de la mmoire, a
conscincia da classe trabalhadora e suas prticas afastaram-se da determinao
das condies materiais de existncia, contudo seriam resultado das representaes
coletivas (HALBWACHS, 1912 apud SANTOS, 2012, p. 53-54).
Convm destacar que suas teses sobre a memria podem ser
compreendidas, ainda, a partir de uma perspectiva epistemolgica denominada de
morfologia social. Em 1938, o socilogo publica a obra Morphologie Sociale, a qual
defende a concepo de que as formas materiais da sociedade atuam sobre ela
atravs da conscincia que temos enquanto participantes de um grupo, e no pelo
constrangimento fsico. Para Halbwachs, o coletivo se sobrepe ao individual, no
se pode pensar nada, no podemos pensar em ns mesmos, seno pelos outros e
para os outros (HALBWACHS, 2012, p.20).
O interesse pelo trabalho de Halbwachs sobre memria associa-se
redescoberta do trabalho de Durkheim, assim como as correntes culturalistas ps-70
encarregam-se de resgatar o carter simblico de estruturas seculares apresentadas
em Formas Elementares da Vida Religiosa (SANTOS, 2003),
Nos anos 1970, os estudos sobre a memria problematizam a ideia de que o
passado pode ser resgatado atravs de estruturas pr-determinadas, e passam a
compreend-los atravs dos grupos sociais envolvidos nessa construo. Nesse
contexto, aparece uma nova perspectiva historiogrfica distinta das estabelecidas
at ento (BURKE, 1992 apud SANTOS, 2012, p. 85).
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ASSMANN (1995) considera, ainda, que nas primeiras dcadas do sculo XX
Maurice Halbwachs avana de uma perspectiva centrada na hereditariedade,
presente na vertente de estudos de Carl Gustav Jung, na teoria dos arqutipos,
para uma perspectiva social dos estudos sobre memria. Assmann (1995) define o
conceito de memria por uma dupla delimitao: memria comunicativa e memria
cultural.
A primeira inclui as variedades da memria coletiva presentes,
exclusivamente, em comunicaes dirias. Essa variedade Assmann agrupa e
analisa sob o conceito de memria comunicativa, a qual constitui campo da histria
oral. Atravs desta forma de comunicao, cada indivduo compe uma memria,
que pode ser socialmente mediada e refere-se sempre a um grupo. Cada memria
individual constitui-se em comunicao com os outros (ASSMANN, 1995).
Da mesma forma que a primeira caracteriza-se pela sua proximidade ao
cotidiano, a segunda, pela sua distncia. A memria cultural possui pontos fixos
normalmente evidenciados em fatos do passado, cujas lembranas so mantidas
atravs de uma formao cultural compreendida por lugares de memria, os quais
se fazem presentes, tanto em textos, ritos, monumentos, quanto na comunicao
institucional (ASSMANN, 1995).
Halbwachs, ao tratar a temtica da lembrana e do esquecimento,
desconsiderou as conotaes polticas, na medida em que foram compreendidas
como parte de um mecanismo de reconstruo do passado.
Todavia, pesquisas contemporneas direcionam, exatamente, para a
ausncia de consenso na construo da memria ou identidade nacional, visto que
est envolvida em relaes de poder e legitimidade, em um contexto de lutas
simblicas, nas quais se envolvem o Estado, os meios de comunicao de massa e,
inclusive, disputas entre intelectuais (OLIVEN, 2006, p. 26).
Para tanto, busca-se a problematizao do tema da memria pela tica do
Socilogo francs Michael Pollak, quando se estuda o distrito de Vila Seca. Segundo
Pollak, o pensador Halbwachs no observa na memria coletiva formas de
dominao e Violncia Simblica. Pollak (1989) analisa em suas ltimas obras o
fenmeno das memrias subterrneas como formas de memrias silenciadas em
situaes de crise social.
Os estudos atuais sobre o fenmeno da memria coletiva por meio de uma
perspectiva construtivista analisam como os fatos sociais se tornam coisas, como e
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por quem eles so solidificados e dotados de durao e estabilidade. Essa
abordagem direciona-se, logo, pelos processos e atores que intervm no trabalho
de constituio e de formalizao das memrias (POLLAK, 1989).
Conforme a concepo de Pollak (1989), a histria oral ressalta a importncia
das anlises sobre memrias subterrneas como parte integrante das culturas
minoritrias e dominadas, proporo que, ao privilegiar a anlise dos excludos,
dos marginalizados e das minorias, elas opem-se "Memria oficial", a qual ele
considera a memria nacional. Pollak (1989), ao contrrio de Halbwachs, acentua o
carter destruidor, uniformizador e opressor da memria coletiva nacional. Por
outro lado, analisa como as memrias subterrneas podem aflorar em momentos de
crise, em sobressaltos bruscos e exacerbados, nos quais a memria local pode ser
ameaada.
Convm destacar, ainda, o estudo de Confino (1997), Collective Memory and
Cultural History: Problems of Method, o qual concebe a memria como um estudo da
mentalidade coletiva. Esta pesquisa fornece uma viso abrangente da cultura e da
sociedade que muitas vezes falta na histria da memria, cuja tendncia mostra-se
fragmentria. O autor enfatiza que a memria coletiva manifesta-se pela explorao
de uma identidade comum que une um grupo social, seja uma famlia, seja uma
nao. No entanto, a questo crucial no estudo sobre memria no se apresenta
nas manifestaes do passado, mas em como ele se mostra aceito ou rejeitado pelo
grupo. Confino (1997) considera arbitrrio ao pesquisador analisar nestas situaes
os sinais diacrticos mais visveis destes grupamentos humanos. Ele alerta para a
importncia de estar atento s fontes menos visveis, manter-se sensvel aos
silncios, s apropriaes, s mentiras.
Ao escrever sobre a memria, convm adotar uma prtica que no eleja
teorias sociais sobre a memria em detrimento de outras. A relao indivduo e
sociedade: presente, passado e futuro precisam ser problematizados. Sob estas
condies, procuram-se no ambiente emprico em estudo, entre as narrativas e as
zonas de silncios, expresses significantes da memria coletiva de Vila Seca.
1.1.1 A efervescncia geral e as representaes coletivas
Ao lanar o olhar sociolgico sob os relatos de memria coletiva do grupo em
estudo observa-se, por parte dos agentes sociais locais, a seleo e o realce de
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certo nmero de smbolos identitrios. Nesse contexto, o fenmeno da etnicidade
relaciona-se diretamente ao acesso da memria coletiva do grupo. Todavia,
compreende-se o fenmeno da memria pela perspectiva de uma fidelidade
criadora em relao aos acontecimentos, negando-se, portanto, a possibilidade de
uma substncia imutvel (RICOEUR, 1992 apud POUTIGNAT; STREIFF-FENART,
2011, p. 165).
Sob estas condies tenta-se compreender a organizao do fenmeno da
memria coletiva e da etnicidade, conforme j abordado anteriormente, como uma
forma de representao coletiva da comunidade de Vila Seca. Nesse contexto, o
pesquisador pode fundamentar-se na obra de Durkheim As Formas Elementares da
Vida Religiosa:
As representaes coletivas so produto de uma imensa cooperao que se estende no apenas no espao, mas no tempo; para cri-las, uma multido de espritos diversos associou, misturou, combinou suas ideias e seus sentimentos; longas sries de geraes nelas acumularam sua experincia e seu saber (DURKHEIM, 2009 p. XXXIII).
Deseja-se compreender, assim, quais os valores comuns que permeiam as
representaes coletivas tanto para o fenmeno da etnicidade quanto da memria
coletiva do distrito de Vila Seca. Valores estes que podem ser considerados, em
uma linguagem durkheimiana, de carter sagrado, na medida em que mantm a
interao e a coeso social do grupo.
Todavia, os estudos contemporneos sobre a Teoria da Etnicidade
demonstram seu carter dinmico em oposio a uma perspectiva esttica, ou seja,
a etnicidade est em constante transformao de acordo com as circunstncias
histricas.
Desse modo, para compreender as representaes coletivas da comunidade
vila-sequense, direciona-se o olhar investigativo aos momentos de efervescncia
geral, ou seja, de convvio social intenso por meio dos quais se experimentam
perodos de inquietao do esprito, de intensa paixo, em oposio aos estados de
indiferena ou apatia social. Neste sentido, Durkheim, em As Formas Elementares
da Vida Religiosa, demonstra que:
H perodos histricos em que, sob a influncia de uma grande comoo coletiva, as interaes sociais tornam-se bem mais frequentes e ativas. Os indivduos se procuram, se renem mais. Disso resulta uma
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efervescncia geral, caractersticas das pocas revolucionrias ou criativas (DURKHEIM, 2009, p. 216).
Quanto ao fenmeno da efervescncia geral na comunidade em
investigao, observam-se, nos ltimos anos, perodos de intensa manifestao
tnica nas festividades religiosas, projetos culturais, desfiles temticos do distrito de
Vila Seca. Segundo Durkheim (2009), nestes momentos de congregao, h uma
espcie de fora moral:
[...] embora nos sendo imanente, representa em ns algo mais que ns: a conscincia moral da qual, alis, o homem comum jamais fez uma representao um pouco distinta, a no ser com a ajuda de smbolos religiosos (DURKHEIM, 2009, p. 217).
Ao se fazer uma analogia com as foras exteriores do cl, tomamos o totem,
que apresenta, seja sob as figuras de um animal ou planta que despertam em seus
membros sentimentos, razo pela qual lhe deram o nome e serve-lhes de emblema.
Nos dias atuais, pode ser comparado aos sentimentos despertados por algo [coisa]
transmitido atravs do smbolo o qual representa, por exemplo, a ideia do preto
como sinal de luto, referido por Durkheim.
O socilogo afirma que a ideia da coisa e a ideia de seu smbolo esto
intimamente ligados em nossos espritos; disso resultam que as emoes
provocadas por uma se estendem contagiosamente outra (DURKHEIM, 2009, p.
227). Durkheim afirma, ainda, que o conjunto de crenas comuns ao grupo so
revivificadas pelos ritos, logo, servem para evitar que desapaream das memrias
do grupo:
Tudo transcorre em representaes que se destinam apenas a tornar presente aos espritos o passado mtico do cl. Mas a mitologia de um grupo um conjunto das crenas comuns a esse grupo. O que exprimem as tradies cuja lembrana ela perpetua a maneira pela qual a sociedade concebe o homem e o mundo; trata-se de uma moral e de uma cosmologia, ao mesmo tempo em que de uma histria. O rito, portanto, s serve e s pode servir para manter a vitalidade dessas crenas, para impedir que elas se apaguem das memrias, ou seja, em suma, para revivificar os elementos mais essenciais da conscincia coletiva. Atravs dele, o grupo reanima periodicamente o sentimento que tem de si mesmo e de sua unidade; ao mesmo tempo, os indivduos so revigorados em sua natureza de seres sociais. As gloriosas lembranas que fazem reviver diante de seus olhos e das quais eles se sentem solidrios do-lhes uma impresso de fora e de confiana: as pessoas ficam mais seguras se em sua f quando veem a que passado longnquo ela remonta e os grandes feitos que inspirou. esse carter de cerimnia que a torna instrutiva. Toda ela tende a agir sobre as conscincias, e somente sobre elas. Portanto, se
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no obstante acredita-se que ela age sobre as coisas, que ela assegura a prosperidade da espcie, isso s pode ocorrer por um reflexo da ao moral que ela exerce e que, sem a menor dvida, a nica real (DURKHEIM, 2009, p. 409).
No caso emprico de Vila Seca, observa-se como a teoria clssica
durkheimiana pode ser atualizada nos estudos sobre representaes coletivas,
religiosidade e coeso social, identidade, etnicidade e etnogneses, enfim,
abordagens que sero aprofundadas no decorrer desta pesquisa. Verificam-se, a
seguir, manifestaes culturais que podem estar associadas a um passado que
remonta os grandes feitos da comunidade vila-sequense e inspiram lembranas, as
quais proporcionam fora e confiana s pessoas que pertencem a essa
comunidade de sentimentos.
1.1.1.1 Manifestaes de Efervescncia Coletiva na comunidade vila-sequense
No ano de 2008, foi criada a Festa do Pinho de Vila Seca por um grupo
de atores sociais locais. A Festa ocorre sempre no ms de junho, aniversrio do
distrito, tendo a durao de uma semana. Durante este perodo, membros da
comunidade vila-sequense envolvem-se em preparos das atraes, tais como: o
desfile temtico das origens do distrito, a culinria tpica campeira, o artesanato
regional, as atraes artsticas e os concursos diversos. Estes momentos de
efervescncia geral podem ser vistos, a seguir, nas Figura 1 e Figura 2.
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Figura 1 - Desfile temtico evidenciando o carro alegrico Estilo Campeiro, na Semana de Vila Seca, 5 Festa do Pinho, 2012.
Fonte: Acervo pessoal da autora.
Figura 2 - Desfile temtico demonstrando o Carro de Boi na Semana de Vila Seca e Sexta Festa do Pinho, 2013.
Fonte: Acervo pessoal da autora.
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O Vice-presidente da Festa do Pinho, Jairo Rech, faz o seguinte relato
sobre o surgimento da Festa:
Como a gente tem uma festa de cunho religioso muito forte, mas ela no contempla todo o universo de pessoas, a gente tava pensando em alguma atividade desvinculada do setor religioso pra trabalhar todo o outro lado que no se contemplava na festa religiosa, que a Festa do Divino, um evento muito forte que bem trabalhado na comunidade, mas assim que a gente sentia que tava faltando algo, a surgiu um debate, bah, vamos fazer a Festa do Pinho! (Entrevista concedida por RECH, Jairo, 2013).
Mostra-se importante ressaltar que a comunidade vila-sequense mantm
uma tradio de festas e manifestaes religiosas e tnicas desde sua origem.
Nelas, esto em jogo tanto a dimenso material, ou seja, recursos para as melhorias
de espaos sociais, quanto a dimenso simblica, organizao significativa do
espao social. O trecho a seguir narra a importncia da construo de um lugar mais
abrangente para as confraternizaes da Festa do Divino Esprito Santo, por uma
Ministra da Capela do Divino Esprito Santo de Vila Seca:
No comeo, tinha que ocupar o CTG todas as vezes pra fazer almoo. O pessoal descia at l o CTG. O poro do salo era ocupado. Comeou a aumentar. Da que surgiu a necessidade de fazer um ginsio. Porque a gente precisava de espao. E da veja, as festas aumentavam, j tinha condio tambm. Foi construdo o ginsio, que da sim, dava pra fazer mil e poucos almoos entre os dois sales. Da melhorou. Porque l no ginsio, bem arrumadinho, d umas quase 800 pessoas. Ento, em 1997, foi a primeira Festa do Divino no ginsio. Da a gente aumentou, foi melhorando (Entrevista concedida por MEDEIROS, Itamaraj Kieling, 2013).
O ginsio de esportes situa-se na regio central da vila, prximo a igreja, e
tambm abriga outros eventos do distrito, como a Festa do Pinho. Esse lugar pode
ser considero um locus de vivncia e de histria daquela comunidade, ou, ainda, um
lugar de memria, entre outros que sero abordados no decorrer da pesquisa
(Figura 3).
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Figura 3 - Interior do Ginsio de Esportes. Culinria campeira, artesanato tpico e movimentos artsticos atraem pessoas da comunidade local e de outras comunidades ao distrito. 6 Festa do Pinho, Vila Seca, 2003.
Fonte: Acervo pessoal da autora.
Salienta-se que a Festa do Pinho pode ser analisada, at mesmo, como
uma forma de organizao poltica da comunidade, uma vez que contou,
inicialmente, tanto com o envolvimento comunitrio, como com a participao de
instituies polticas, tais como a Subprefeitura de Vila Seca e a Secretaria Municipal
de Cultura.
No entanto, no foram somente os recursos materiais que estavam
envolvidos nesse processo, mas tambm as dimenses de sentido, as quais
envolvem o fortalecimento das relaes comunitrias. O prximo item tratar das
relaes do fenmeno da etnicidade e a relao com a memria coletiva da
comunidade.
1.2 ETNICIDADE
Para verificar quais identidades esto em jogo na construo, reconstruo e
disputa da memria coletiva do distrito de Vila Seca, procura-se compreender o
conceito de etnicidade. Os debates acadmicos sobre a etnicidade datam da
segunda Guerra Mundial; todavia, o termo tnico origina-se da palavra grega
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ethos, a qual significa povo ou nao. Os ingleses j o utilizavam para se referir aos
brbaros e pagos, e, at o sculo XIX, empregou-se como sinnimo de raa
durante o apogeu das tipologias do racismo cientfico (WADE, 2000).
O estado atual dos debates sobre a etnicidade procura afastar-se do ponto de
vista clssico deste termo, compreendido como primordialista. O termo primordial
designado por Shils (1957) atribua significativa importncia aos grupos primrios e
vnculos pessoais nas condutas cotidianas. Dessa maneira, tanto os vnculos de
parentesco quanto os vnculos primordiais caracterizam-se por intensa
solidariedade, fora coercitiva e sentimento do sagrado (POUTIGNAT; STREIFF-
FENART, 2011).
Comeou-se a utilizar a expresso grupo tnico com a queda do racismo
cientfico, na medida em que se referiam aos grupos considerados minorias em suas
naes-estado, como o caso dos judeus e polacos no Brasil. As mudanas sociais
ocorridas na modernidade referentes s novas nacionalidades ps-coloniais e aos
processos migratrios fizeram com que os termos etnicidade e grupo tnico se
proliferassem na linguagem acadmica e popular. Os termos tribo e raas utilizadas
at ento nestes contextos, passam a ser inapropriados (WADE, 2000).
Ao afastar-se da tendncia primordialista, os tericos interacionistas
consideram a etnicidade um processo contnuo de dicotomizao entre o Ns
(membros) em oposio a Eles (no membros), o qual expresso e validado
atravs da interao social (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011). Dessa forma,
ressalta-se a perspectiva relacional do estudo o qual se pretende realizar nesta
pesquisa.
Weber, Hugues e Barth abordam uma concepo sobre etnicidade como uma
construo social em que as diferenciaes tnicas e culturais envolvem,
fundamentalmente, uma apreciao de que a etnicidade situacional e negocivel
(JENKINS, 1997).
A noo barthiana de ethnic bourdary mostra-se um elemento central na
compreenso dos fenmenos da etnicidade. Para Barth, a etnicidade somente pode
ser determinada por uma linha de demarcao entre os membros e os no
membros. Neste sentido, as identidades tnicas no somente so mobilizadas a
partir de uma alteridade, mas tambm implicam a contnua organizao de
grupamentos dicotmicos entre Ns e Eles (POUTIGNAT; STREIFF-FENART,
2011).
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Por meio de estudos preliminares no ambiente emprico em estudo, distrito de
Vila Seca, pode-se apreender que o grupo local autodenominado de campeiro,
tropeiro e luso-aoriano ns reconhece-se a partir de uma linha de demarcao
em relao ao grupo de ascendncia italiana eles da regio da colnia.
Pesquisadores desta temtica consideram que o estudo sobre etnicidade
podem ser divididos em dois momentos: BB (Before Barth) e AB (After Barth), pelo
seu carter inovador, na medida em que demonstra a importncia das fronteiras
tnicas em detrimento do contedo cultural interno como fator de definio e
permanncia de um grupo tnico (MOLOHON, 1979; DESPRES, 1995 apud
POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 153).
Um dos primeiros estudos sobre a etnicidade surge na escola de antropologia
de Manchester, com Clyde Mitchell, que estudou os povos mineiros do chamado
Cinturo de Cobre do Rodesia do Norte (atual Zmbia). Mitchell observou que as
identidades tribais se tornavam mais distintas no entorno de meios urbanos, como
uma forma de categorizar as diferenas culturais as quais os distinguiam dos demais
grupos.
Outras vertentes de estudos denominadas de instrumentalistas e
mobilizacionistas classificam a etnicidade como um recurso mobilizvel na busca de
poder poltico e bens econmicos. Para Abner Cohen, por exemplo, a etnicidade
contribui para a mobilizao poltica na medida em que fornece um idioma comum
que favorece a solidariedade de grupo (COHEN, 1960, 1974a apud POUTIGNAT;
STREIFF-FENART, 2011).
Ressalta-se que a comunidade de Vila Seca mobiliza a reinveno de sua
identidade para obteno de recursos materiais, apoio poltico e valorizao
simblica, principalmente na Festa do Pinho e no Projeto Cultural: Ponto de Cultura
Vila Seca em Cultura. Tanto na festa quanto no projeto h o envolvimento de
agentes sociais na busca da participao comunitria de recursos materiais para a
comunidade. A Festa do Pinho atrai, durante um perodo de sete dias, sempre no
ms de junho, populaes do entorno para adquirirem os trabalhos artesanais da
comunidade, conhecerem a histria do distrito, experimentarem a culinria tpica,
apreciarem brincadeiras e msicas do folclore aoriano e da tradio gacha. O
Ponto de Cultura faz-se presente na Festa do Pinho e, em todo o ano, atravs de
projetos que resgatam as danas folclricas e brincadeiras tpicas luso-aorianas, o
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artesanato, enfim, manifestaes culturais resgatadas pela comunidade vila-
sequense.
Nesse contexto, segundo Barth, a identificao de determinados traos
culturais de um grupo tnico, ou seja, a marca de sentido do grupo mostra-se como
componente fundamental para o trabalho de manuteno de suas fronteiras e sobre
o qual deve assentar-se a organizao social desse grupo. As fronteiras dos grupos
tnicos determinam a esfera de interao dentro da qual os valores do grupo podem
ser realizados [...] (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 132).
Weber (2009, v1), em Economia e Sociedade, avalia a importncia da crena
na afinidade de origem comum, seja objetivamente fundada ou no, e trata o
conceito de grupo tnico como:
[...] chamaremos grupos tnicos aqueles grupos humanos que, em virtude de semelhanas no habitus externo ou nos costumes, ou em ambos, ou em virtude de lembranas de colonizao e migrao, nutrem uma crena subjetiva na procedncia comum, de tal modo que esta se torna importante para a propagao de relaes comunitrias, sendo indiferente se existe ou no uma comunidade de sangue efetiva (WEBER, 2009, p. 270).
No contexto acima, para Weber (2009, v1), a comunho tnica no se
constitui como uma comunidade, mas possui elementos que facilitam as relaes
comunitrias. Enfim, as diversas revises tericas da questo da mobilizao do
fenmeno da etnicidade evocam uma forte polarizao entre as categorias Ns e
Eles, como forma de diferenciao entre os grupos e definio de fronteiras. Nesse
contexto, o aspecto relacional fundamental nas teorias interacionistas e
mobilizacionistas. Para tanto, sero tratadas a seguir questes sobre a plasticidade
e a capacidade adaptativa dos agrupamentos tnicos, por meio da Teoria das
Etnogneses.
1.2.1 Identidade tnica e as Etnogneses
Busca-se nesta pesquisa um dilogo com o os diferentes significados do
termo etnogneses, compreendido, segundo estudos de Bartolom (2006), como um
processo social protagonizado por agentes sociais que se percebem e so
percebidos como formaes identitrias distintas de outras. No caso em estudo, a
organizao social luso-aoriana do distrito de Vila Seca, que se insere num
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contexto social majoritariamente italiano do municpio de Caxias do Sul
(BARTOLOM, 2006, p. 39).
Este termo surge para explicar o processo histrico de configuraes de
identidade tnica resultantes de fluxos migratrios, de invases e conquistas de
povos, de fuses e fisses culturais. Ulteriormente, o conceito encontra-se
relacionado ao crescente processo de emergncia social e poltica dos povos
envolvidos em relaes de dominao (HILL, 1992 apud BARTOLOM, 2006).
A etnognese ainda pode ser compreendida como o surgimento de novas
identidades tnicas ou a recuperao de antigas identidades. Historicamente o
contato entre as diversas civilizaes, entre o campo e as cidades, proporciona as
simbioses culturais, bem como o surgimento de novas configuraes sociais e
culturais, muitas vezes diferenciadas daquelas que lhes deram origem. Segundo
Bartolom (2006, p.41), toda cultura humana resultante de processos de
hibridizao, uma vez que a noo de cultura est entrelaada a um sistema
dinmico de relaes endgenas e exgenas.
Todavia compreende-se que os contatos intertnicos podem potencializar a
seleo e o realce de traos culturais, uma vez que, ao apoderar-se desses traos,
os atores podem transform-los em critrios de consignao ou de identificao com
o grupo tnico pertencente. No entanto, o que deriva do domnio da etnicidade no
so as caractersticas culturais etnicamente observadas, como a lngua, a religio,
as vestimentas e os costumes, mas as condies em que algumas diferenas
culturais so utilizadas como smbolos de diferenciao entre os grupos
(POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 129).
No caso em estudo, o fato de o distrito de Vila Seca pertencer at meados
do sculo XX, mais precisamente at 1939, ao municpio de So Francisco de
Paula, pressupe pensar que a incorporao de uma comunidade constituda por
descendestes de aorianos e tropeiros no seio de uma comunidade formada por
descentes de italianos pode mobilizar naquele grupo processos sociais e polticos de
organizao tnica. Destaca-se que, apesar das reas rurais representarem um
percentual de habitantes inferior rea urbana, a presena de proprietrios rurais
nos Campos de Cima da Serra data do sculo XVIII (ALVES, 2007), ou seja, anterior
chegada dos Italianos no Estado.
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Ao analisar uma imagem da Festa da Uva de Caxias do Sul, no ano de
1965, pode-se perceber no carro alegrico que representa o distrito Vila Seca, logo
abaixo, uma seleo de smbolos identitrios da comunidade (Figura 4).
Figura 4 - Carro alegrico do distrito de Vila Seca no desfile da Festa da Uva, 1965.
Fonte: Acervo do Arquivo Histrico Municipal Joo Spadari Adami, autoria desconhecida.
Na figura acima se apreende o realce de traos diacrticos, ou seja, sinais de
distino do grupo, tais como a figura de colonos italianos (ao fundo), alm das lidas
do homem e da mulher do campo com a representao da pecuria de ovinos e
caprinos ( frente). Para alm de efetivamente representar caxienses, o carro
alegrico de Vila Seca estava evidenciando a identidade social do tpico gacho6.
As formas de organizao econmica e cultural do grupo, mais do que
caractersticas externas, mobilizam sistemas de representaes que delimitam as
fronteiras tnicas entre o Ns e o Eles. Sendo assim, ainda que se salientem os
traos culturais desse grupo, os quais incorporam substncia identidade, estes
esto submetidos a uma historicidade prpria (BARTOLOM, 2006, p. 55).
6 Segundo Oliven (2006), o termo gacho sofreu um processo de ressemantizao, passando de um
tipo social desviante e marginal para adquirir um sentido positivo e, assim, transformando-se em um smbolo de identidade regional (OLIVEN, 2006, p. 66).
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Nesse sentido, estudar as condies nas quais se observa a emergncia de
organizaes sociais e tnicas em determinados grupos possibilita a compreenso
dos sentidos desses movimentos culturais e polticos em seus contextos histricos.
Para Zambrano (2000, p. 30 apud BARTOLOM, 2006, p. 57), a etnicidade,
ou seja, a identidade de um povo, no se busca na originalidade de seus traos
culturais, mas na capacidade de gerao de sentidos sociais e polticos que a
tornam coesa e do sentido a sua existncia comunitria.
Portanto, em Vila Seca, alm de descentes de luso-aorianos,
provavelmente vindos de Laguna e de Santo Antnio da Patrulha, observa-se,
tambm, a presena de famlias de ascendncia afro-brasileira, alem e italiana.
Todavia, ao estudar esta comunidade, encontra-se, por parte de seus membros, a
busca de uma unidade tnica, a qual eles denominam como campeira, tropeira e
luso-aoriana, ou seja, gacha. Nesse sentido a recuperao histrica do distrito,
ainda que fragmentria, mostra-se indispensvel noo de pertencimento
coletividade.
Conforme Oliven (2006), estudos sobre a colonizao indicam que os
imigrantes estrangeiros consideravam o gacho como um tipo social superior. Dois
fatores contriburam para essa categorizao: os fazendeiros como camada social
de grande importncia para o Estado e o principal smbolo do gacho estar
associado figura do cavalo (OLIVEN, 2006, p. 114).
O autor, ainda, analisa o sentido do termo colono, segundo Teixeira7, o qual
possui uma origem associada ao processo de colonizao de imigrantes europeus,
cuja atividade econmica era a agricultura, ao passo que a atividade predominante
do Estado mostrava-se na pecuria. Logo, o termo colono tinha uma conotao, de
certo modo, depreciativa (OLIVEN, 2006, p. 114).
Nesse contexto, corrobora com esta ideia o relato de um pesquisador da
cultura dos Campos de Cima da Serra, Lindomar Alves Mendes, que indica que os
italianos e alemes os quais chegaram a Vila Seca incorporaram o estilo de vida do
homem de campo.
Vila Seca era pertena territorial de Santo Antnio da Patrulha, depois passou para So Francisco de Paula. Tinha uma identidade
7 O termo colono aqui empregado foi utilizado por Srgio Alves Teixeira na obra Os recados das
Festas: representaes e poder no Brasil. Rio de Janeiro, FUNARTE, 1998, p. 54 (TEIXEIRA, 1998 apud OLIVEN, 2006, p. 114).
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totalmente campeira, at o final do Sculo XIX e incio do sculo XX. Aps, com a extrao da madeira, pinheirais em abundncia na regio, comearam a entrar para esta regio os descendentes de alemes e os italianos com suas serrarias, e mesclou etnias, mas, concordem ou no, percebe-se claramente um percentual muito alto do jeito campeiro neste povo, diferenciando-se um pouco do povo caxiense, que vem tambm mudando pela influncia dos migrantes dos campos. Mas Vila Seca, com suas construes mais antigas, foges a lenha, pinho, cavalos e gado, continua muito campeira (Entrevista concedida por MENDES, Lindomar Alves, 2013).
Outro movimento identitrio local pode ser percebido quando o distrito foi
escolhido um dos dez Pontos de Cultura de Caxias do Sul. Em entrevista narrativa
com um dos idealizadores do projeto, pde-se perceber a importncia da
reconstituio cultural e histria do distrito. Nesse contexto, foi realizado um
convnio entre os alunos da Universidade de Caxias do Sul (UCS) e o Ponto de
Cultura: Vila Seca em Cultura para tal fim.
Um aspecto da etnognese observado no trecho acima conduz a se pensar
que esses processos esto ligados vontade de associao poltica, uma vez que,
para se construir uma unidade comunitria, procura-se o fortalecimento da
configurao social qual se pertence e a projeo alm de um determinado
momento (BARTOLOM, 2006, p. 59-60).
O distrito tambm se destaca pela presena de seu Parque de Rodeios, e
entidades tradicionalistas (Figura 5). Do ponto de vista administrativo, o Movimento
Tradicionalista Gacho divide o Estado em trinta regies. Caxias do Sul integrante
da vigsima quinta regio tradicionalista, da qual fazem parte os municpios de:
Caxias do Sul, Farroupilha, Flores da Cunha, Nova Pdua, Nova Roma do Sul e So
Marcos8.
Segundo Oliven (2006, p. 128), os Campos de Cima da Serra representam a
maior proporo de entidades tradicionalistas em relao populao. Em segundo
lugar est o Planalto, e, em terceiro, as Misses.
8 Disponvel em: http://www.mtg.org.br/site/pag_rts.php. Acesso em: 07 de fev. de 2014.
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Figura 5 - Parque de Rodeios do distrito de Vila Seca, Caxias do Sul, 2013.
Fonte: Acervo pessoal da autora.
A rea rural do municpio de Caxias do Sul, por inserir-se numa regio
integrada ao ecossistema constitudo pelos Campos de Cima da Serra e pela
Floresta de Araucrias, tem a tradio do homem do campo e da atividade pecuria.
Todavia, conforme o ltimo Censo Demogrfico, sua populao urbana constitui
mais de 96% da populao total do municpio (IBGE, 2010). Nesse contexto, apesar
de Caxias do Sul passar por um processo contnuo de urbanizao, nas ltimas
dcadas, a tradio gacha de preservao e realce dos sinais diacrticos do
homem do campo se intensifica.
Segundo Oliven (2006), as tradies florescem em situaes de
modernizao (OLIVEN, 2006, p 210-11). Nesse contexto, pode-se observar em um
municpio predominantemente urbano o Movimento Tradicionalista Gacho (MTG)
em posio de destaque no Estado. Todavia, para se alcanar esse patamar de
proeminncia, necessrio recriar o passado rural do Rio Grande do Sul e a figura
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mtica9 do gacho, pois esses so os traos distintivos da identidade gacha
(OLIVEN, 2006, p 210-11).
Em relao a esta construo mtica do termo gaucho, perpassa-se, a partir
de agora, por algumas pesquisas historiogrficas realizadas desde Bonifacio del
Carril, Luiz Carlos Barbosa Lessa, Auguste de Sant-Hilaire, Wolfgang Hoffmann
Harnisch, at Aurlio Porto.
Na obra El Gaucho de Bonifacio del Carril, esse termo utilizado por
Francisco Manuel Javier Muniz indicando trs classificaes distintas:
Gaucho: campesinos bien sirvan como peones en la ganadara o en la labranza; se designa tambin com este nombre a todo campesino civil. Tambin se les llama Camiluchos y Guazos.
Gaucho alzado: que andam por los campos ms solos o siempre alerta.
Gaucho neto: enteramente gauchos sin que en el vestir, montar, lenguaje y conducta aventureira desmientan en un pice la calidad de gaucho. Hombres errantes, sueltos y sin domicilio por general criminales perseguidos por la justicia o por la autoridad militar en virtud de desercin, que slo se ocupan de andar em las hierras, o marcaciones de ganado, corridas de caballos, tabernas y casas de juego de uno en outro pago. Montan siempre los mejores caballos y, cuando no los tienen propios, los pillan a lazo o con las bolas, de las manadas que pastan por los campos [...] (Muniz, 1937 apud CARRIL, 1978, p. 32-3).
Segundo Barbosa Lessa (1984), os gaudrios, chirus ou gachos surgem:
A natureza no comporta vazios. Se algo desaparece, outro algo aparece. Afastado, pelos missionistas, o temido perigo dos genoas, desgarrados forasteiros foram se achegando da colnia do Sacramento, espanhola, para ver se era mesmo verdade a fbula das vacarias sem fim.
De um em um, ainda muito poucos, foram aparecendo buenoairenses, sanatafessinos, correntinos, tropeiros de mula tucumanos, at mesmo chilenos. Gente praticamente sem ocupao, andejos sem rumo. Agora andarengos sem casa, na ex-Banda dos Charruas, mas com carne garantida no espeto do churrasco.
No eram accioneros, nem faeneros com direitos de vaquear, mas uma terceira classe espontaneamente surgindo nas lonjuras do pampa. A nova casta dos gaudrios. Brancos, em maior parte, mas se mesclando com grupos remanescentes minuanos. Do ajuntamento com as chinas ndias iam nascendo os pis che pi, meu corao , que ao crescerem passaram a ser chirus che iru, meu amigo.
Quando contratados pelos colonistas para um servicinho qualquer de arreada ou coureada, ganhavam o nome de changadores.
Mais tarde toda essa gente seria caracterizada pelo nome genrico de gaucho ou gacho, gente sem lei nem rei, quase ao feitio dos antigos genoas (LESSA, 1984, p. 127).
9 Conforme Oliven (2006), ao se falar nas coisas do gacho, busca-se um passado cuja existncia
ocorreu na regio da campanha no Sudoeste do Rio Grande do Sul, bem como numa figura idealizada do gacho (OLIVEN, 2009, p. 154).
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Para Auguste Saint-Hilaire (2002), o termo Garruchos ou Gachos era
utilizado para os homens sem religio, sem moral, a maior parte ndios ou mestios,
que os Portugueses designavam sob o nome de Garruchos ou Gachos (HILAIRE,
2002, p. 129).
Harnisch (1941), na obra O Rio Grande do Sul: a terra e homem faz algumas
consideraes sobre o que veio a ser o povo gacho:
O gacho propriamente dito, o dominador das pampas, formou-se
sob leis especiais para um tipo todo especial de indivduo. [...] Um homem montado a cavalo ainda no uma gacho. A dualidade do homem mais o seu cavalo, fundidos numa unidade, num novo ser dizem ser o gacho. [...] Ele o que pela sua finalidade ltima: o pastor! [...] As tropas de centenas de milhares de cabeas de gado fizeram com que surgissem os primeiros milhares de gachos, e, sob a influncia da formao de rebanhos, formou-se ento a nova unidade, o povo (HARNISCH, 1941, p. 122-23).
Por fim, a conceituao de Aurlio Porto (1954, v.3) poeticamente nos
mostra:
E o gacho, que no tarda a surgir, filho semibrbaro do Pampa,
criado no fogo do minuano, que o lagunista tornou amigo do branco, ser ainda produto das condies especialssimas do meio, onde o gado, elemento primacial da vida, exercendo funo socioeconmica, dar ao homem uma feio toda singular, diferenciando-o de todos os seus irmos da vasta Colnia Portuguesa (PORTO, 1954, 413-14, v.3).
Como se v, o gaucho surge a partir de uma imagem atrelada atividade
pastoril do homem que habita os campos do Rio Grande do Sul e da Argentina. A
figura do gaucho classificada pelos estes autores mostra-se relacionada ao homem
sem lei e sem rei, sem religio e sem moral.
Convm destacar que esta pesquisa no tratar com maior acuidade a
construo da identidade do gacho, uma vez que este tema demanda estudos mais
aprofundados. Todavia, emprega-se esta categoria como uma autodefinio da
prpria populao em investigao, que representa o vila-sequense, em confronto
com a figura do colono italiano que representa o caxiense.
Observa-se que a comunidade de Vila Seca busca, constantemente, uma
recuperao cultural, centrada na figura do homem do campo e na devoo ao
Divino Esprito Santo. Por conseguinte, procuram organizar uma diferenciao tnica
historicamente construda e reconstruda (BARTOLOM, 2006).
Apesar de a Festa do Divino ser realizada desde aproximadamente 1930 em
Vila Seca, na ltima dcada, novos smbolos trazidos diretamente do Arquiplago de
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Aores, por meio de atores sociais locais, vm sendo introduzidos Festividade
(Figura 6).
A narrativa de um Ministro da Igreja Catlica que atua na Capela do Divino
Esprito Santo de Vila Seca, Lindomar Alves Mendes, demonstra como esto
ocorrendo as transformaes na Festa de Divino na localidade:
[...] em 2008, fui a um Congresso Internacional sobre as Festas do
Divino, na Ilha Terceira dos Aores, e sentimos a necessidade de melhorarmos a sintonia com as festas do restante do mundo, colocando alegorias que significassem o sentido do nascimento e crescimento desta devoo e cultura, e numa homenagem Rainha Santa Isabel e sua Corte, onde foi realizada a primeira Festa do Divino na Cultura Portuguesa a que chegou at ns, por via Aores e colonizao aoriana. Desde ento, coroada a Festeira de Honra como Rainha Santa Isabel e entregue a seu esposo Festeiro de Honra o Cetro Real, como homenageados pela comitiva, que devero acompanhar nas visitas do grupo de louvao e festeiros (Entrevista concedida por MENDES, Lindomar Alves, 2013).
Figura 6 - Itamaraj Kieling Medeiros, Ministra da Eucaristia em Vila Seca, desde 1986, representando a Rainha Santa Izabel com uma Coroa Real trazida da Ilha Terceira do Arquiplago dos Aores em 2008.
Fonte: Acervo pessoal da senhora Itamaraj Kieling Medeiros.
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Outros relatos do Senhor Lindomar Alves Mendes remetem-nos
compreenso de como a populao de Vila Seca se organiza para fortalecer sua
identidade frente a uma italianidade majoritria de Caxias do Sul:
Uma preocupao de minha parte, pois vejo pouco da busca de preservar sua primeira identidade; quando se busca, isto parece uma guerra de raas, (o que no ), pois os italianos com uma descendncia de pouco mais de cem anos conservam muito presentes seus antepassados, ao passo que as descendncias Luso-Aorianas-campeiras remontam a trezentos anos, sete, oito ou mais geraes de uma histria muitas vezes perdida e com poucas pessoas buscando remont-las (Entrevista concedida por MENDES, Lindomar Alvesl, 2013)
O Senhor Mendes, atravs de suas pesquisas e msicas, busca informaes
das razes de sua famlia paterna, que se estabeleceu nos campos do distrito. Seu
pai faleceu recentemente. Segundo o informante, a saudade daquele gacho
honrado que lhe ensinou o caminho do bem o fez interessar-se por conhecer melhor
a identidade e o lugar onde viveu sua infncia e sua juventude com seus amigos.
Nesse contexto, a Coordenadora dos Pontos de Cultura de Caxias do Sul
compreende que: valorizao da identidade a base para a permanncia ou no do
Ponto de Cultura na comunidade, isto , a sustentabilidade do Ponto de Cultura est
diretamente atrelada a essa questo (Entrevista concedida por CAVION, Elaine
Pasquali, 2013).
Portanto, pode-se visualizar em diferentes perodos de existncia da
comunidade, sob as lentes tericas durkheimianas, a necessidade peridica da
restaurao da coletividade.
1.2.1.1 Manifestaes da identidade tnica na comunidade vila-sequense
Ao olhar sociologicamente a sequncia de imagens compreendidas entre a
Figura 7 e a Figura 17, a qual retrata fatos que marcaram a trajetria de existncia
da sociedade vila-sequense, pode-se perceber uma constante renovao de
concentrao do grupo atravs da sucesso de momentos de efervescncia
coletiva. Segundo Durkheim (2009), nesses perodos restauraram-se as foras
religiosas da sociedade.
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Figura 7 - Dia de festa em Vila Seca em frente Igreja do Divino Esprito Santo, dcada de 1930.
Fonte: Acervo pessoal da senhora Elisete Medeiros Lauffer.
Figura 8 - Comunidade reunida em Procisso. Vila Seca, ano de 1938.
Fonte: Acervo pessoal da senhora Elisete Medeiros Lauffer.
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Figura 9 - Marco indicativo da anexao do distrito de Vila Seca ao municpio de Caxias do Sul. A faixa traz a seguinte frase: Estado Novo fez Renascer Vila Seca. Vila Seca, ano de 1940.
Fonte: Acervo pessoal da senhora Elisete Medeiros Lauffer.
Figura 10 - Solenidade alusiva passagem de Vila Seca ao municpio de Caxias do Sul, em frente ao Hotel Guarani, pertencente famlia Medeiros, Vila Seca, ano de 1940.
Fonte: Acervo pessoal da senhora Elisete Medeiros Lauffer.
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Figura 11 - Baile das Chitas, ao fundo, Igreja do Divino Esprito Santo, Vila Seca, ano de 1949.
Fonte: Acervo pessoal da senhora Idalina Oliveira Guerra.
Figura 12 - Festa Religiosa das Moas: Festa Nossa Senhora da Sade e Santa Terezinha, Vila Seca, ano de 1962.
Fonte: Acervo pessoal da senhora Eveny Maria Soares Dany.
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Figura 13 - Procisso das Moas, Vila Seca, dcada de 1960.
Fonte: Acervo pessoal da senhora Eveny Maria Soares Dany.
Figura 14 - Carro alegrico do distrito de Vila Seca realando os sinais diacrticos da localidade, no desfile da Festa da Uva em 1961, Caxias do Sul/RS.
Fonte: Acervo do Arquivo Histrico Municipal Joo Spadari Adami, Caxias do Sul/RS.
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Figura 15 - Procisso de fiis em frente Capela do Divino Esprito Santo, no ncleo urbano de Vila Seca.
Fonte: Acervo pessoal da senhora Itamaraj Kieling Medeiros.
Figura 16 - Cavalgada do Divino Esprito Santo de Vila Seca. Marco inicial de sada: Igreja Nossa Senhora do Caravaggio - Farroupilha/RS - dcada de 2000.
Fonte: Acervo pessoal da senhora Itamaraj Kieling Medeiros.
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Figura 17 - Desfile da Comitiva do Divino Esprito Santo de Vila Seca, Festa de Uva - Caxias do Sul/RS, ano de 2012.
Fonte: Estdio fotogrfico Fotos Volga - Ana Rech Caxias do Sul, 2012.
Observa-se nesta sucesso de cenas que a coletividade vila-sequense, no
decorrer de seus cem anos de existncia, fixa pontos de referncia por meio dos
quais ela se constitui. Por conseguinte, ritos e crenas organizam o calendrio anual
da localidade atravs da Festa de Divino Esprito Santo, da Semana de Vila Seca
Festa do Pinho, da Festa das Moas (antes) e da Festa dos Jovens (hoje). Dessa
maneira, a organizao social compreendida pelo cenrio de eventos locais reala
os sinais diacrticos da comunidade, em relao tanto colnia italiana de Caxias do
Sul, como do prprio distrito.
A mobilizao destas cerimnias nada mais do que forma de classificao
da comunidade, por exemplo: o grupo de fiis do Divino Esprito Santo comparado
em relao a outros grupos. Ainda segundo Durkheim (2009): Essa organizao da
sociedade por meio de um calendrio de eventos relaciona-se ao espao que ela
ocupa. Para evitar qualquer conflito, preciso que a cada grupo particular seja
destinada uma poro determinada de espao (DURKHEIM, 2009, p. 493).
Nesse contexto, a populao de Vila Seca organiza seu espao social de
forma diferenciada, de acordo com as orientaes e interesses dos diferentes
grupos que compem a localidade. Todavia, o espao social tambm um espao
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de lutas simblicas, ou seja, disputas por classificaes, que operam de forma
dualista: catlico/evanglico, colono/gacho, vila-sequense/caxiense, rural/urbano.
1.3 ESPAO SOCIAL
Dessa forma, elegeu-se o conceito de espao social para investigar as
posies e os papis dos agentes sociais na localidade de Vila Seca, bem como a
influncia do capital econmico, cultural, religioso e poltico na construo da
memria e identidade coletivas do distrito.
Segundo Bourdieu (2004), o mundo social pode ser dito e construdo atravs
de diferentes princpios de viso e diviso, sejam divises econmicas, divises
tnicas, religiosas, nacionais. Apesar dessa pluralidade potencial de estruturaes
possveis o que Weber chamava de Vielseitigkeit do dado , permanece o fato de
que o mundo social apresenta-se como uma realidade solidariamente estruturada.
Segundo o autor, isso se relaciona pelo fato de o espao social mostrar-se sob a
forma de agentes dotados de propriedades diferenciadas e sistematicamente ligadas
entre si (BOURDIEU, 2004).
Verificou-se nesta pesquisa como no espao social de Vila Seca
estabelecem-se condies de construo, reconstruo e disputa da memria
coletiva e identidade tnica do distrito.
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2. PROCEDIMENTOS METODOLGICOS
O item a seguir tratar da abordagem metodolgica utilizada para a presente
pesquisa.
2.1 METODOLOGIA DA PESQUISA
A metodologia utilizada para a anlise do objeto construdo fundamenta-se
em um modo de pensamento relacional, o qual analisa a realidade a partir das
relaes entre os agentes no espao social em estudo, sendo que as
representaes sociais sero mediadas no espao social de lutas simblicas de
classificaes sociais, de rtulos (GOODMAN apud BOURDIEU, 2004).
Este estudo foi realizado a partir de uma pesquisa qualitativa, com recorte
espacial no distrito Vila Seca, zona rural do municpio de Caxias do Sul, localizado a
aproximadamente 30 km do ncleo urbano da cidade (Figura 18).
A demarcao temporal abrange as memrias coletivas e manifestaes
culturais do tempo presente, ainda que contextualizadas por Pesquisa Documental,
cuja abrangncia incorpora desde os primeiros registros de terras da localidade,
datados do sculo XIX.
Figura 18 - Localizao do distrito de Vila Seca, Caxias do Sul, em relao ao Estado do Rio Grande do Sul, Brasil.
Fonte: Dados do IBGE (2010). Elaborao: Tielle Soares Dias.
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Todavia, preciso ressaltar que esta pesquisa procura abordar a memria
coletiva como um fenmeno social o qual se coloca em relao no apenas ao
passado, mas ao contexto atual mediado por representaes coletivas da
comunidade. Esta investigao no se prope a um resgate da memria, pois se
compreende que a memria no algo constante ou uniforme. Dessa forma,
pesquisam-se demonstraes em que ela construda, reconstruda e colocada em
disputa dentro do espao social de lutas simblicas na qual se insere.
Para tanto, adotaram-se procedimentos flexveis de pesquisa, os quais
proporcionaram investigar diferentes questes em diferentes ocasies (BECKER,
1999). Nos prximos pargrafos, sero apresentadas as etapas do estudo emprico.
Primeiramente, fez-se um trabalho de campo de reconhecimentos, na fase
preliminar da pesquisa, entre os anos de 2010 e 2012, ainda quando se executaram
trabalhos socioambientais na localidade10 em razo da instalao e funcionamento
do Sistema Marrecas. Nesta Fase, tomou-se conhecimento do Projeto Cultural
Ponto de Cultura: Vila Seca em Cultura, bem como se pde observar algumas
festas e eventos distritais, de modo que se conheceram importantes atores sociais
envolvidos nas dinmicas sociais do distrito. No ano de 2012, j iniciado o Mestrado
Acadmico, acompanharam-se as festividades comemorativas do Centenrio da
Capela do Divino e da localidade de Vila Seca.
Em um segundo momento, realizou-se a pesquisa documental no Arquivo
Histrico Municipal de Caxias do Sul Joo Spadari Adami; Arquivo Histrico e
Geogrfico do R