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Conflitos e Contradições na

História

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Copyright © 2017, ANPUH-ES.Copyright © 2017, Editora Milfontes.Rua Santa Catarina, 282, Serra - ES, 29160-104.http://[email protected]

Editor Chefe: Bruno César Nascimento

Conselho EditorialProf. Dr. Hans Ulrich Gumbrecht (Stanford University)

Profª. Drª. Verónica Tozzi (Universidad de Buenos Aires)Prof. Dr. Alexandre de Sá Avelar (UFU)Prof. Dr. Arthur Lima de Ávila (UFRGS)

Cilmar Franceschetto (Arquivo Público do Estado do Espírito Santo)Prof. Dr. Cristiano P. Alencar Arrais (UFG)

Prof. Dr. Josemar Machado de Oliveira (UFES)Prof. Dr. Júlio Bentivoglio (UFES)

Profª. Drª. Karina Anhezini (UNESP)Profª. Drª. Rebeca Gontijo (UFRRJ)

Prof. Dr. Thiago Lima Nicodemo (UERJ)Prof. Dr. Ueber José de Oliveira (UFES)

Prof. Dr. Valdei Lopes de Araújo (UFOP)

Associação Nacional de História - Seção Espírito Santo CCHN/UFES - Av. Fernando Ferrari, 514, Goiabeiras CEP 29075-910 - Vitória - ES - Brasil

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André Ricardo Valle Vasco PereiraRossana Gomes BrittoUeber José de Oliveira

Vitor de AngeloRafael Cerqueira do Nascimento

Graziela Menezes de Jesus

Conflitos e Contradições na

História:Anais do XI Encontro de História

Editora Milfontes

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Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação digital) sem a

permissão prévia da editora.

RevisãoSob Responsabilidade do Autor

Projeto Gráfico e EditoraçãoBruno César Nascimento

Capa (Aspectos)Bruno César Nascimento

Crédito da Imgem da CapaMulher com flor em manifestação contra guerra do Vietnã

Washington DC, 1967 - Marc Riboud

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C748 Conflitos e contradições na história: anais do XI Encontro de História/André Ricardo V. V. Pereira [et al.]. (orgs.) . Serra, ES: Editora Milfontes, 2017. 372p. ISBN: 978-85-94353-02-3 1. Conflitos. 2. Contradições. 3. História. 4. ANPUH-ES. 5. Encontro de História I. PEREIRA, André Ricardo V. V. II. BRITTO, Rossana Gomes. III. OLIVEIRA, Ueber José. IV. ÂNGELO, Vitor. V. NASCIMENTO, Rafael Cerqueira do. VI. JESUS, Graziela Menezes. VII. Título.

CDU: 981

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SUMÁRIO

Apresentação............................................................................7

O Direito como matriz esclarecedora ..............................9 Alexandre de Oliveira Bazilio de Souza

Polícia e clientelismo: o uso político do cargo de subdelegado (1971-1989) ......................................................23 Amarildo Mendes Lemos

Elites na capitania do Espírito Santo: uma análise da sua composição e atividades econômicas .......................41 Anna Karoline da Silva Fernandes

Institucionalização do indigenismo no México: O congresso de Pátzcuaro e o fortalecimento da antropologia ..........................................................................59 Caroline Faria Gomes

A estatização da Estrada de Ferro Leopoldina sob a ótica do movimento sindical (1951-1953) ........................73 Celio Teixeira Alves Gusmão

Marketing político, estratégias de campanha e pesquisas eleitorais ..............................................................95 Darlan Silveira Campos

“A Verdade sobre a Central brasileira”: O campo político e a esfera pública capixaba de 1940 – 1949 ...107 Douglas Edward Furness Grandson

A Primeira Onda de Nacionalismo: O Cotidiano Japonês durante a Guerra Sino-Japonesa (1894-1895) nos escritos de Lafcadio Hearn ...............................................................125 Edelson Geraldo Gonçalves

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O surgimento da imprensa periódica no Espírito Santo e as transformações na vida política no século XIX 137 Fernanda Cláudia Pandolfi

Políticas públicas para a zona rural: Serviço Social Rural e as leituras conservadoras do papel do Estado (1951-1952) ..............................................................................149 Irlan de Sousa Cotrim

Defensores da Ordem e Conciliadores da Nação: a atuação da imprensa liberal conservadora no processo de emancipação política da América Portuguesa (1821) 167 Jorge Vinícius Monteiro Vianna

Disputas sobre a morte e o morrer no imaginário oitocentista capixaba: os relatórios de presidente de província como fonte de pesquisa ..................................185 Júlia Freire Perini

Tribunal do Júri: competência para apreciação de crimes eleitorais no Brasil (séc. XIX) ............................197 Lara Ferreira Lorenzoni

As perspectivas de estudo sobre o Partido Trabalhista Brasileiro capixaba (1945 – 1964) sob os dilemas de Angelo Panebianco e contribuições de outros (as)estudiosos (as) do trabalhismo .......................................215 Lucian Rodrigues Cardoso

Cairu na condição de Censor Régio: contribuições para o fortalecimento do Poder Real.....................................231 Marcela Portela Stinguel

A Vigilância da Polícia Política Sobre os Professores da Rede Estadual de Ensino do Espírito Santo no Ano de 1979 ..........................................................................................243 Márcio Gomes Damartini

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A construção da nação no pensamento de Edgard Roquette-Pinto ...................................................................265 Mariana Calazans Wanick

Os portuários nas páginas do jornal Folha Capixaba (1954 – 1961) ............................................................................283 Penha Karoline Pulcherio de Araújo

A afirmação da Ordem Imperial: Sabinos no banco dos réus ..........................................................................................303 Renan Rodrigues de Almeida

Perfil intelectual de Manoel Bomfim ...........................319 Ruth Cavalcante

Notas sobre o processo de expropriação das terras indígenas das vilas de Nova Almeida e Santa Cruz (1850-1889) .........................................................................................327 Tatiana Gonçalves de Oliveira

Por ser pobre e cativo: demandas aos governadores da capitania do Espírito Santo para arbitrar relações senhoriais ..............................................................................343 Thiara Bernardo Dutra

Raízes brasileiras de Thomas Mann ...............................355 Wander Luiz Demartini Nunes

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Apresentação Estamos trazendo a público os Anais do XI Encontro Regional

da Associação Nacional de História, Seção Espírito Santo (ANPUH-ES), que ocorreu em novembro de 2016, na Universidade Federal do Espírito Santo. O tema do evento foi Conflitos e Contradições na História. Além das comunicações livres e coordenadas, tivemos a oportunidade de contar com três minicursos: sobre a redação de textos científicos, pelo prof. Dr. Julio Bentivoglio (UFES); sobre Cinema, História e Televisão, pela profa. Dra. Rossana Gomes Britto (UFES); e sobre o controle social na Antiguidade bíblica e no Medievo, pelo prof. Dr. Sergio Alberto Feldman (UFES) e pela mestranda Anny Mazioli.

A ANPUH-ES se articulou com o Laboratório de Estudos de História Política e das Ideias da UFES (LEHPI/UFES), que trouxe, com recursos do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS/UFES), a profa. Dra. Regina Crespo, da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), para um debate com o prof. Dr. Antonio Carlos Amador Gil (UFES) sobre as resistências na América Latina, materializando uma das atividades do convênio UFES/LEHPI com a UNAM/CIALC.

Em que pese a variedade de abordagens e questões trazidas à baila em todas as atividades desenvolvidas, como é, aliás, padrão nas ações da ANPUH-ES, todas, de alguma forma, tocaram no tema central, que reflete não só uma das feições da pesquisa em História como também salta aos olhos na conjuntura de alta polarização ideológica na qual nos encontramos na atualidade. Neste sentido, a abertura do Encontro contou com a “prata da casa”, os professores Drs. Ueber José de Oliveira, Vitor Amorim de Angelo e André R. V. V. Pereira, debatendo a questão: Houve golpe no Brasil em 2016? E, a conferência de encerramento, proferida pelo prof. Dr. Francisco

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Carlos Teixeira da Silva, abordou o problema da relação entre Islã, guerra e terrorismo na contemporaneidade.

Seguem-se, então, 23 textos de comunicações livres e/ou coordenadas que oferecemos a todos como fonte de informação, análise e crítica, elementos que se encontram tão em falta no Brasil e no mundo no qual vivemos. Na atual gestão, inauguramos um novo site da entidade, desta vez hospedado no domínio da ANPUH Nacional (http://www.es.anpuh.org/). Ali está inserido este volume de Anais, no formato de e-book, com o fito de democratizar o acesso. Esperamos, desta forma, que ele cumpra a sua função.

André Ricardo Valle Vasco PereiraDiretor da ANPUH-ES – Gestão 2015/17

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O Direito como matriz esclarecedoraAlexandre de Oliveira Bazilio de Souza1

O juiz de Paz WeberianoO Direito possui um papel central na visão de Weber no

que tange à explicação do surgimento do capitalismo no Ocidente do século XVIII. Entende Max Weber ser esse capitalismo aquele baseado na “organização industrial racional, voltada para um mercado regular e não para as oportunidades especulativas de lucro, tanto políticas como irracionais,” possuindo ainda uma “separação dos negócios da moradia da família, fato que domina completamente a vida econômica e, estritamente ligada a isso, uma contabilidade racional” (WEBER, 2001, p.7).

Weber relata assim que não apenas fatores técnicos da ciência moderna foram determinantes para que o capitalismo se desenvolvesse no Ocidente, mas a própria noção de racionalidade é essencial para o entendimento desse fenômeno. Racionalidade essa que existe na organização da indústria, na contabilidade e nas relações jurídicas. Nesse sentido, um sistema jurídico e administrativo racional é fator essencial para o surgimento de um capitalismo com as características descritas, uma vez que

o moderno capitalismo racional não necessita apenas dos meios técnicos de produção, mas também de um sistema legal calculável e de uma administração baseada em termos de regras formais. Sem isso, o capitalismo aventureiro e de comércio especulativo e todo tipo de capitalismo politicamente determinado seriam possíveis, mas não o empreendimento racional da iniciativa privada, com capital fixo e cálculos certeiros (WEBER, 2001, p.9).

Mas o que seria um sistema jurídico racional? Weber associa a racionalidade com a abstração dos conceitos jurídicos, em oposição a uma solução casuística, que ele chama de formal. Essa última é a solução empregada no sistema do Common Law anglo-saxão, por exemplo, caracterizado pelo domínio de práticos, principalmente advogados. Weber explica:

1 Doutorando PPGHIS-UFES.

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Mas a prática jurídica também não procurava a sistemática racional, mas a criação de esquemas de contratos e queixas praticamente úteis, orientados nas necessidades concretas, tipicamente repetidas, dos interessados no direito. Produziu, por isso, aquilo que, no âmbito romano, se chamava “jurisprudência cautelar” e, além disso, por exemplo, o emprego de ficções processuais, que facilitava a classificação e decisão de casos novos pelo esquema de casos já conhecidos, e semelhantes manipulações práticas. Dos motivos de desenvolvimento a ela imanentes não nasce nenhum ‘direito racionalmente sistematizado, nem uma racionalização do direito em geral, mesmo que seja em sentido muito estreito, pois os conceitos por ela criados estavam orientados por situações, de fato materiais, palpáveis e correntes na experiência cotidiana e, nesse sentido, formais; constelações que ela delimitava convenientemente entre si segundo características externas e unívocas e cujo número ampliava, quando necessário, pelos meios já mencionados. Não eram conceitos gerais formados por abstração do sensível, por interpretação lógica do sentido, generalização e subsunção, mas empregados silogisticamente como normas (WEBER, 1999b, p. 87).

Essa constatação não significa para Weber que o Direito moderno – o Direito que deu origem ao capitalismo moderno – seja puramente racional – no sentido apresentado. De fato, Weber descreve, em sua sociologia compreensiva – ou seja, numa sociologia baseada na análise histórica –, a história em uma vertente não evolucionista, em que não há um rumo unívoco, mas ricas variações. Assim, as formas puras são um instrumento didático e não uma realidade histórica. Segundo Weber, o mais importante é lembrar que essas variações nas formas do Direito ocorrem muito mais em consequência de fatores políticos do que econômicos. Essa é uma visão totalmente oposta a uma explicação marxista do processo histórico, uma vez que, para Marx, o direito faz parte de uma superestrutura determinada pela infraestrutura, formada pela economia.

Nas palavras de Weber:O fato de que as etapas de racionalização, aqui teoricamente construídas, na realidade histórica nem sempre seguem uma à outra precisamente na ordem da racionalidade crescente, e nem sempre se realizaram todas elas ou sequer existem

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hoje em dia nem mesmo no Ocidente, e que, além disso, as causas da forma e do grau da racionalização do direito foram historicamente — como já mostra nosso breve esboço — de natureza muito diversa, tudo isso será ignorado ad hoc neste lugar, onde importa apenas a constatação dos traços mais gerais do desenvolvimento. Queremos somente lembrar que as grandes diferenças no desenvolvimento estavam (e ainda estão) principalmente condicionadas, em primeiro lugar, pelas diferenças nas relações de poder políticas [...] (WEBER, 1999b, p.143-144).

Esboçada essa base teórica geral, é possível explicar o que seria o juiz de paz weberiano. Esse ator possui como característica marcante o fato de ser leigo. Para Weber, a consequência dessa característica é uma justiça não formal, uma vez que o leigo, por carecer de formação universitária, não aplicaria conceitos gerais e subsunção lógica da norma, agindo, assim, de forma casuística. Weber explica:

O pensamento jurídico do ‘leigo’ está ligado, por um lado, a certas palavras. Sobretudo costuma ele tornar-se um rábula palavroso quando acredita argumentar ‘juridicamente’. E, além disso, é um hábito natural dele buscar a conclusão do detalhe a partir de outro detalhe: a abstração jurídica do ‘especialista’ lhe é alheia. Em ambos os aspectos, porém, como vimos, tem parentesco com a arte da jurisprudência empírica. Pode ser-lhe pouco simpática — nenhum outro país do mundo conhece queixas e sátiras tão amargas contra as práticas jurídicas dos advogados quanto a Inglaterra —, e as formas de construção dos juristas cautelares podem ser-lhe completamente incompreensíveis: o que em mais alto grau é o caso também na Inglaterra. Mas sua peculiaridade, de princípio, lhe é compreensível; pode ‘revivê-la’ e conformar-se com ela contratando de uma vez por todas e pagando — como o faz todo homem de negócios inglês — um confessor jurídico para todas as situações da vida. Por isso, não tem, diante do direito, exigências e esperanças que possam ser frustradas por construções lógico-jurídicas (WEBER, 1999b, p.150).

Ao comentar sobre a jurisdição de paz na Inglaterra, Weber descreve-a como patriarcal e irracional, o juízo das causas de bagatela, formando, assim, o lado oposto da racionalidade jurídica alcançada no continente europeu. Weber também descreve a Justiça formada por jurados que, assim como os Juízes de Paz, são leigos. Os

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jurados funcionariam como uma espécie de oráculo irracional com o propósito de alcançar uma resposta jurídica às demandas de classes menos privilegiadas. Contra o Júri, Weber levanta dois argumentos. Em primeiro lugar, ele destaca sua parcialidade, em oposição a uma objetividade dos especialistas. Os jurados seriam assim objeto de luta de classes, do modo como ocorria na antiguidade romana. Em segundo lugar, Weber relata a falta de possibilidade de recursos de suas decisões. Contra isso, os juristas especializados costumam exigir possibilidade de revisão ou, ao menos, uma decisão colegiada com membros leigos e especialistas. Weber, entretanto, reconhece que nem a Justiça especialista está livre de influências políticas e que os anseios das classes trabalhadoras não seriam necessariamente atendidos dentro de um sistema racional do Direito.

Ao discutir o poder patriarcal, Weber credita à criação do cargo do juiz de paz um modo de self-government (WEBER, 1999a, p. 249). O poder patriarcal é relacionado com oikos, ou seja, como numa grande casa. Nesse sentido, o juiz de paz pertenceria a uma classe estamental, a quem foram delegadas certas incumbências referentes à gestão de uma comunidade. Seria assim um funcionário do soberano, residente no distrito em que atuaria. Sua função estava relacionada à pacificação e à segurança. O policiamento formava assim o núcleo de suas atividades. O autor destaca que o juiz de paz inglês2 era nomeado pela Coroa, apesar de infrutíferas tentativas de ser eleito pelos próprios honoratiores3 locais (WEBER, 1999a, p. 279). Nem sempre remunerado, o cargo era sinônimo de prestígio e poder social, sendo essas as razões que levavam a disputas por sua ocupação. Em termos locais, tudo era decidido por esses juízes, ressaltando que os assuntos mais importantes deveriam ser decididos de forma colegiada. Poderia até receber instruções da Coroa, mas essas funcionam como aconselhamentos e não como determinações.

O juiz de paz inglês tornou-se responsável, ainda, em

2 Weber discute o juiz de paz tomando como base o caso inglês. Nesse sentido, uso como sinônimas as expressões juiz de paz inglês e juiz de paz weberiano.

3 Para Weber, os honoratiores – portadores de honra - são aquelas pessoas dotadas de conhecimento especializado.

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certo momento por atividades administrativas; essas atividades, entretanto, não eram desenvolvidas de forma burocrática, mas sim de modo “repressivo, não-sistemático, reagindo, em regra, somente a graves infrações diretamente perceptíveis ou ao apelo de um prejudicado”(WEBER, 1999a, p. 281).

Desse modo, é possível chegar a uma definição do juiz de paz weberiano como sendo o leigo que pratica uma Justiça casuística, sem observância de preceitos codificados, cuja jurisdição está circunscrita em situações consideradas de menor importância, de natureza jurisdicional e administrativa; possui justificação de existência na busca de soluções jurídicas para as classes mais desprivilegiadas. É portador assim de um poder patriarcal, derivado da Coroa. Em suas decisões estariam ausentes aspectos de segurança jurídica, uma vez que as toma de modo irracional – caso a caso –, não sendo passíveis, muitas vezes, de recurso.

O juiz de paz ImperialA Constituição Política do Império do Brasil, do ano de 1824,

previu, em seu artigo 162, a existência de juízes de paz eleitos, que seriam responsáveis pela reconciliação entre as partes litigantes, sem a qual nenhum processo teria início. A Constituição ainda previu a possibilidade do aumento do rol de competências desses juízes por meio de lei.

Em 1827 foi decretada a Lei de 15 de Outubro, criando um juiz de paz para cada freguesia ou capela curada.4 O artigo 5º da Lei estabelecia uma longa lista de funções que seriam exercidas pelos juízes de paz, incluindo o julgamento em causas civis e de posturas, além de atribuições policiais5. Em 1832, com a publicação do Código de Processo Criminal, essas funções foram alargadas,

4 O artigo 1º dessa lei previa que o juiz de paz atuaria nos distritos, assim que fossem criados; a criação desses distritos foi regulada pelo artigo 2º do Código de Processo Penal de 1832.

5 Algumas dessas atribuições eram: a realização do auto de corpo de delito, concessão fiança, manutenção da ordem, prisão dos bêbados e delinquentes e interrogatório dos detidos.

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principalmente com a previsão do julgamento de crimes cuja pena não excedesse a multa até cem mil réis, prisão, degredo, ou desterro até seis meses, com multa correspondente à metade deste tempo, ou sem ela, e três meses de casa de correção, ou oficinas públicas.

O juiz de paz deveria ter a qualidade de eleitor6 e sua eleição era disciplinada pela Lei de 1º de Outubro de 1828, ocorrendo de quatro em quatro anos. O artigo 3º da Lei definia que caberia aos votantes fazer a escolha sobre quem seria o juiz de paz, podendo seu voto ser enviado por carta. A listagem desses votantes era feita pelo próprio juiz de paz, cabendo recurso definitivo à Assembléia Eleitoral7 pelo cidadão. O Código de Processo Criminal de 1832 definia que seriam eleitos quatro juízes de paz para o quatriênio, que serviriam durante um ano, cada um, sucessivamente.

O aparecimento do Juízo de Paz no Brasil deu ensejo a uma série de debates e desentendimentos entre muitas autoridades e intelectuais8 do Império, como deputados e juristas. Esses debates giravam em torno de como essa instituição deveria funcionar e quais responsabilidades deveria ter9. A figura de juiz de paz absorveu, naquele momento, muitas das funções que antes eram exercidas por outras autoridades judiciais, como o juiz ordinário, juiz de vintena e o juiz almotacel10, tornando seu o rol de competência e atribuições

6 Essas qualidades são definidas pelo artigo 94 da Constituição de 1824.7 Essas assembléias eram disciplinadas pelo Decreto de 26 de março de 1824,

sendo presidida pelo juiz de fora ou ordinário.8 Essas discordâncias foram evidenciadas em documentos como os anais da

Câmara de deputados, livros de doutrina jurídica e decisões de Governo.9 O aviso nº 358 de 18 de outubro de 1834, por exemplo, fornece esclarecimentos

sobre a alçada criminal do juiz de paz.10 (a) Juiz ordinário, eleito de forma indireta a cada três anos, tinha autoridade

sobre questões civis limitadas pelo valor da causa e, durante o século XVIII, foram substituídos nas cidades mais importantes pelos juízes de fora. Identificados com o período colonial, eram acusados de falta de preparo técnico, patronato em assuntos de interesse local e abusos eleitorais; (b) Juiz de vintena, autoridade muito restrita, sem autoridade penal, ou civil sobre bens de raiz. Nomeados pelos conselhos municipais em vilarejos localizados a uma légua ou mais da sede da cidade/condado, com vinte ou mais famílias. Foi totalmente substituído pelo juiz de paz; (c) Juiz de almotaçaria, ou almotacel, cargo ocupado por um mês consecutivo somente, objeto de burlas, cuja função era colocar em vigor as regras prescritas pelo conselho municipal (FLORY, 1986, apud BRANCO, 2008).

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deveras extenso (FLORY, 1981, p. 55). Entretanto, em 1841, essa situação foi alterada, com a

promulgação da Lei nº 261, em 3 de dezembro daquele ano, reformando o Código do Processo Criminal. Com ela, praticamente todas as atividades do juiz de paz desenvolvidas em âmbito criminal foram transferidas para os chefes de polícia e delegados11, sendo ressalvadas, conforme artigo 65 do Regulamento nº 120 de 31 de janeiro de 1842, as atribuições de fazer pôr em custodia o bêbado, evitar as rixas, fazer que não haja vadios, nem mendigos e corrigir os bêbados, por vício, turbulentos, e meretrizes escandalosas, que perturbam o sossego público. No que tange à jurisdição civil, o artigo 2º do Regulamento nº 143 de 15 de março de 1842 garantia a permanência da competência do juiz de paz12; e, segundo o artigo 1º do mesmo Regulamento, também permanecia sua função conciliadora.

Em relação às eleições dos juízes de paz, algumas alterações ocorreram com a Lei de 19 de agosto de 1846. A lista dos votantes seria elaborada agora por uma Junta de qualificação, presidida pelo juiz de paz mais votado na eleição anterior. As reclamações sobre a lista seriam recebidas pela Junta, que daria decisão motivada. Caberia ainda recurso para o Conselho Municipal de recursos, composto pelo juiz municipal, presidente da Câmara Municipal e o eleitor mais votado da paróquia cabeça do município; e, finalmente, seria possível último recurso para a Relação do distrito. A Lei ainda determinava que, para ser eleito, o juiz de paz deveria residir no distrito; os votantes deveriam votar pessoalmente; e as eleições poderiam ser anuladas pelo Governo central em caso de irregularidades.

Em 1871, em 20 de setembro, ocorreu uma reviravolta na legislação referente aos juízes de paz por ocasião da promulgação da Lei nº 2.033, reformando o Judiciário. O juiz de paz, de acordo

11 Incluídas em matéria criminal estavam as infrações às posturas municipais, que podiam culminar em pena de privação de liberdade. Seu julgamento era disciplinado pelo Código de Processo Criminal de 1832, artigos 205 a 212.

12 O julgamento proferido pelo juiz de paz, de acordo com esse artigo, era feito de modo definitivo, ou seja, sem recursos.

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com o artigo 2º, recebia de volta sua competência referente ao julgamento das infrações às posturas municipais; segundo o mesmo artigo, também voltava a conceder fiança. Em matéria civil, o artigo 22 aumentou sua alçada de 16 mil para 100 mil réis13. Em 1879, por meio do Decreto nº 2827 de 15 de março, em seus artigos 69 a 82, era instituída nova competência para o juiz de paz: julgar causas no âmbito do contrato de locação de serviços, que poderiam ensejar penas até de privação de liberdade.14

As eleições dos juízes de paz também foram alteradas nesse período. O Decreto 2.675 de 20 de outubro de 1875 definiu que a Junta eleitoral teria membros eleitos e a lista de votantes por ela produzida deveria incluir idade, estado, profissão, filiação, domicílio e renda do votante, além de indicar se ele é alfabetizado. Os recursos agora não seriam julgados pelo Conselho Municipal, mas pelo juiz de direito. Surgia o título de qualificação, que deveria ser apresentado na hora da votação. Determinava ainda o Decreto que, para ser eleito, o juiz de paz deveria ter, ao menos, dois anos de residência no distrito; e caberia ao juiz de direito anular as eleições em caso de irregularidades.

Em 1881 foi publicada a Lei nº 3.029 de 8 de janeiro, reformando a legislação eleitoral. Uma das principais alterações nesse momento foi a extinção da figura do votante, tornando todas as eleições diretas15. A lista dos eleitores seria preparada pelos juízes municipais e organizada pelo juiz de direito, que julgaria diretamente as queixas referentes às listas, cabendo recurso à Relação. A Lei ainda definia que o título de qualificação passaria a receber o nome de título de eleitor, convertendo em crime a utilização de título alheio. Outros crimes também foram previstos na Lei, alguns com a pena de privação de voto ativo e passivo16 por determinado período.

13 De suas decisões em matéria civil caberia agora recurso ao juiz de direito.14 Essa lei também previa recurso para os juízes de direito.15 Vale ressaltar que as eleições para juiz de paz sempre foram diretas; essa

mudança repercutiu mais diretamente nas eleições em nível nacional.16 Voto ativo refere-se à ação de votar enquanto voto passivo ao direito de ser

votado.

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Após a reforma judiciária de 1871 e a eleitoral de 1881, as características do juiz de paz seriam modificadas somente com a proclamação da República em 15 de novembro 1889. De fato, esse evento alterou todo o funcionamento do Poder Judiciário, uma vez que as bases do ordenamento jurídico brasileiro foram estruturalmente transformadas pelo princípio federativo. O Decreto nº 1 de 15 de novembro de 1889 estabeleceu, em seu artigo 3º, a soberania dos Estados-membros, no sentido de estabelecer seu próprio governo, suas leis e seu sistema judiciário. Nesse cenário, o Estado brasileiro passaria a contar com uma esfera judiciária em âmbito estadual e outra em âmbito federal. Pela leitura do artigo 60 do Decreto nº 510, de 22 de junho de 1890, que instituiu a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, fica evidente essa separação, pois determina que a Justiça Federal não poderia interferir nas decisões das Justiças dos Estados.

Caberia agora aos estados definir sobre a manutenção dos juízos de paz em seu território, conferindo-lhes suas competências. Isso não significa que houve uma ruptura brusca em relação ao juízo; as leis do Império podiam ser recepcionadas e alteradas por cada estado-membro da Federação.

Dada uma descrição legal do juiz de paz imperial, é possível transpassá-la e adentrar na busca pelo significado dessa instituição dentro do mundo jurídico do Oitocentos. Bartolomé Clavero (2007), ao estudar a noção de Poderes na construção do constitucionalismo, associa o Júri a um direito antecedente à própria noção de três poderes, porque o Júri, juntamente com o Parlamento, forma a base constitucional de garantia dos direitos. Os poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário, por outro lado, passaram a ocupar um espaço que anteriormente era ocupado pelo direitos, justamente por conta da supressão do Júri. Creio ser possível tecer um raciocínio semelhante para o juiz de paz imperial, uma vez que, assim como Júri, formam instituições liberais defendidas por um mundo iluminista.

Ao se analisar o discurso de senador José Thomaz Nabuco de Araújo, em 20 de junho de 1871, em que fazia apontamentos sobre

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a reforma judiciária que culminou na Lei 2.033 do mesmo ano, é possível entender em que sentido o juiz de paz imperial pode ser concebido como garantia constitucional do cidadão. Nesse discurso, o senador debate a liberdade provisória e defende sua ampliação, a exemplo do direito inglês, em que os crimes mais leves possuem fiança definida pelo juiz de paz. O objetivo almejado pelo senador é coibir as prisões abusivas, em que os réus respondem presos e sua liberdade provisória em nada atrapalharia o andamento processual. Somente a autoridade judicial competente, e não a autoridade policial, poderia decidir sobre a prisão processual, pois só ela poderia julgar sua necessidade. Essa autoridade competente, nos pequenos crimes, é justamente o juiz de paz. Para o senador, o juiz de paz é a justiça ao pé da porta do cidadão, consagração da revolução francesa de 1789 (ANAIS DO SENADO, 1871, vol. 11).

A partir dos apontamentos feitos, é possível definir o juiz de paz imperial como sendo o cidadão eleito responsável pelo reconciliamento das partes litigantes, necessário para o início de qualquer ação judicial. Possui ainda competência na esfera criminal, eleitoral e civil, sendo possível em alguns casos recursos para juízes leigos e especializados. Em termos ontológicos, o juiz de paz imperial é um direito, no sentido de ser uma conquista liberal e uma garantia da concretização do conceito de Justiça oitocentista.

Análise Comparativa entre o juiz de paz weberiano e o juiz de paz imperial

Antes de iniciar uma análise comparativa entre os dois conceitos de juiz de paz apresentados, é preciso enfatizar que essa comparação só pode ser feita de modo indireto, uma vez que foram construídos usando abordagens distintas. Como dito anteriormente, o conceito weberiano parte de uma sociologia compreensiva, ou seja, de uma análise comparativa do processo histórico em busca da solução de um problema; enquanto o segundo conceito aproxima-se mais de uma história conceitual do político como descrita por Pierre Rosanvallon (2002), em que uma instituição é

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analisada contextualmente, vista, assim, como uma história em si mesma17. Contudo, essas formas de abordagem se aproximam na medida em que partem da premissa de que a história é uma ciência contextualizada, além de utilizarem a comparação como método fundamental.

É importante destacar também que o conceito weberiano nasceu de uma observação da realidade inglesa, onde funcionava o Common Law, muito diferente da realidade do Brasil Império, cuja herança portuguesa trouxe o Civil Law. Por conta disso, a primeira diferença a ser apontada entre os dois conceitos é o fato de o juiz de paz imperial ter sua atuação pautada na legislação, enquanto o juiz de paz weberiano desconhece majoramente a lei como fonte do direito, pois as instruções que recebe da Coroa estão mais próximas de serem conselhos do que ordens, como se mencionou.

Não se pode dizer que o juiz de paz imperial é um juiz de bagatela, pois sua jurisdição, embora em constante modificação, é sempre ampla, principalmente em matéria civil. Ademais, mesmo em matéria criminal, o juiz de paz imperial sempre desempenhou algum rol de funções, seja mais amplo ou mais restrito. É verdade que o juiz de paz weberiano também é considerado central ao se adotar uma perspectiva local, mas estava longe da figura em discussão no Brasil em termos de sua amplitude jurisdicional. Afirmo isso em virtude do fato de o instituto ter sido intensamente debatido e modificado ao longo do Império. Weber, por outro lado, coloca que o juiz de paz inglês como o único juiz disponível para as populações desprovidas de recursos financeiros, enquanto as elites dirigiam-se aos tribunais reais em Londres (WEBER, 1999a, p.281). Essa dinâmica do Common Law não poderia existir no Brasil, uma vez que a jurisdição do juiz de paz imperial – assim como dos outros juízos – era determinada por lei, não havendo possibilidade de escolhas.

São outras duas diferenças, entretanto, que considero as mais

17 Nessa perspectiva, a Justiça de Paz não teria uma história, mas seria em si uma história.

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marcantes nas duas definições. Em primeiro lugar, destaco o papel central do juiz de paz imperial dentro do ordenamento jurídico do Império, uma vez que todo processo teria início somente após tentativa de reconciliação feita por esse juiz. Em segundo lugar, destaco o fato de o juiz de paz imperial ser eleito, fazendo com que sua importância não possa ficar restrita a um caráter jurídico, mas também político. José Murilo de Carvalho, por exemplo, ao referenciar Pimenta Bueno, destaca a função do juiz de paz imperial dentro do próprio exercício da cidadania no Brasil do século XIX:

Pimenta Bueno acrescenta ainda, como direito político importante, a participação direta no poder judicial possibilitada pelo exercício da função eletiva de juiz de paz. A Constituição de 1824 previa a existência de um juiz de paz, eleito pelo voto direto, em cada distrito do território nacional. A jurisdição do juiz de paz variou ao longo do século mas em geral se concentrava na resolução de conflitos pela conciliação e no julgamento de pequenas causas (CARVALHO, 1996, p.341).

Assim, o juiz de paz imperial torna-se fundamental para entender a própria noção de cidadania que se construía no Brasil oitocentista. Ademais, seu cunho liberal aproxima-o da noção de direito, no sentido de que o juiz de paz era forma de garantia contra abusos de poder.

Em relação ao aspecto irracional associado ao juiz de paz weberiano, não seria possível sua aplicação ao juiz de paz imperial, uma vez que, mesmo sendo leigo, suas decisões deveriam ser pautadas na legislação, utilizando-se, como os especialistas, de abstrações jurídicas e silogismo lógico. É preciso, ademais, questionar até que ponto a Justiça especializada é, por princípio, puramente racional em suas decisões. A própria noção de uma decisão puramente racional soa vacilante quando se lembra da característica social e transitória dos ordenamentos jurídicos, de modo que toda segurança jurídica deve sempre ser entendida como relativa e provisória, na medida em que o Direito muda em compasso com a realidade na qual existe. Isso não significa uma inadequação da abordagem adotada por Weber; pelo contrário. Ao utilizar a ideia de uma racionalidade do Direito, Weber está tentando chegar a uma resposta sobre o problema do

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desenvolvimento do capitalismo no ocidente; funciona assim como uma teoria, que busca fornecer respostas para uma pergunta ainda não inteiramente respondida. A pergunta por mim feita – o significado do juízo de paz para o Brasil Império– é diferente e, por isso, enseja numa análise distinta. A obra de Weber, contudo, foi-me fundamental para entender as particularidades desse juiz de paz imperial, pois fornece farto material teórico-comparativo, além de ser fonte secundária para o estudo da jurisdição de paz inglesa.

ConclusãoComo forma de conclusão deste trabalho, gostaria de explicar

a escolha do título O Direito como matriz esclarecedora. O que quero dizer com a firmação de que o Direito pode ser usado como matriz esclarecedora? É justamente nesse ponto que as abordagens utilizadas para a definição dos dois conceitos apresentados de juiz de paz se tocam. Isso porque as duas usam o Direito como fonte para responder às perguntas propostas, sob a perspectiva de uma história-problema. É exatamente nisso que consiste o uso do Direito como matriz esclarecedora.

Em relação ao juízo de paz imperial, pude observar que esse instituto revela muitos elementos do momento histórico em que surgiu no início da nação brasileira: a busca pelo significado da cidadania por meio dos direitos políticos, a crença em uma Justiça eficiente acessível a todos e, principalmente, as dúvidas sobre as escolhas políticas. Afinal, seria o juiz de paz uma faceta da disputa de poder na nação nascente ou um órgão genuíno de jurisdição popular? São opções-limite de uma resposta que, para ser alcançada, necessita de pesquisa mais profunda. Seu resultado, provavelmente, indicará algum ponto entre esses dois extremos.

ReferênciasANAIS DO SENADO. Discursos. Volume 11. 1871.

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CARVALHO, José Murilo de. Cidadania: tipos e percursos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.18, 1996.

CLAVERO, Bartolomé. El Orden de los Poderes. Madrid: Editorial Trotta, 2007.

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ROSANVALLON, Pierre. Por uma historia conceptual de lo político. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 2002.

WEBER, Max. Estruturas e Funcionamento da Dominação. In: Economia e Sociedade: fundamentos de uma sociologia compreensiva. v. 2. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999a.

WEBER, Max. Sociologia do Direito. In: Economia e Sociedade: fundamentos de uma sociologia compreensiva. Volume 2. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999b.

WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 2001.

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Polícia e clientelismo: o uso político do cargo de subdelegado (1971-1989)

Amarildo Mendes Lemos1

O ano de 1989 foi um período de intensos debates e também de intensificação de conflitos diversos no Brasil e no Espírito Santo. O debate sobre a eleição direta para presidente, depois de 29 anos, repercutiu, juntamente com as investigações e prisões relacionadas ao crime organizado no Estado do Espírito Santo, no noticiário capixaba. Nessa conjuntura foi extinto o cargo de subdelegado contratado como trabalhador vinculado à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que foi criada em 1971, durante a ditadura militar, pelo então governador Arthur Carlos Gerhardt.

A extinção do cargo e a exoneração de 197 subdelegados em 1989 não envolveu somente questões trabalhistas ou administrativas sucedeu-se em uma conjuntura de queixas interpostas pela Associação de Polícia Civil do Espírito Santo (APCEES), por meio de seu presidente Custódio Serrati Castelani, que denunciava o uso político do cargo de subdelegado e a degeneração dos nomeados fortalecendo o crime organizado no Espírito Santo. O debate sobre os subdelegados apareceu nos jornais depois de meses de investigações realizadas pela Polícia Federal para o combate ao crime organizado no estado. As operações policiais eram solicitadas inclusive pelo Governador do Estado, Max de Freitas Mauro, o que demonstra sinais de certa autonomia do aparato repressivo em relação ao controle exercido pelo governo do Estado sobre a polícia capixaba.

Durante todo o ano de 1989 a Polícia Federal agiu no estado do Espírito Santo. No conjunto das investigações, três grandes operações merecem destaque: em fevereiro foi deflagrada a Operação Alegoria, para combate ao tráfico de drogas e ao videopôquer, cujo desenvolvimento chegou aos nomes de José Carlos Gratz e ao delegado Cláudio Guerra; em setembro foi deflagrada a Operação

1 Instituto Federal de Ensino - Espírito Santo.

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Marselha, cujos alvos foram ladrões de carros e envolveu nomes policiais em um esquema que estaria conectado ao Cartel de Medelín da Colômbia, onde os carros seriam trocados por cocaína para ser exportada; em outubro foi deflagrada a Operação Dinossauro, que “estourou seis fortalezas do jogo do bicho, apreendeu vasta documentação sobre a contravenção e teve como seu maior saldo a detenção do bicheiro José Carlos Gratz”.2

Trataremos aqui de expor alguns aspectos da organização do aparato repressivo no Espírito Santo por meio dos fatos narrados em coberturas jornalísticas. Analisaremos nas matérias veiculadas no noticiário o papel político desempenhado pelos subdelegados no conjunto das relações sociais. Naquele contexto diversos movimentos sociais e partidos políticos defendiam a ruptura com as tradições oligárquicas e autoritárias presentes no regime que havia sucumbido. Pretendia-se um reordenamento jurídico fundamentado em princípios democráticos que promovessem uma modernização do serviço público retirando o poder de clientela relacionado às indicações para ocupar cargos na burocracia estatal. Dessa forma,

ao instituir a Polícia de carreira, a lei 3.400 de 1981, complementada três anos antes pela lei 3.705, estabeleceu que, para ocupar cargo comissionado, o candidato deve ser um policial concursado, classificado na terceira categoria – último nível da carreira. De acordo com a lei, na realidade não existe mais o cargo de subdelegado. Indiferente ao preceito legal, o Governo do Estado mantém uma política sistemática de nomear pessoas para o exercício dessa função.3

Com fundamentos contrários à política tradicional clientelista, a Constituição Estadual de 1989 incorporou os princípios de nossa carta magna de 1988 e asseverou que a formação de quadros do serviço público estadual deveria se realizar exclusivamente por meio de concurso público. Contudo, em oposição à premissa desse novo ordenamento jurídico, “a contratação de funcionários na área da Polícia Civil foi iniciada em 1971, durante o governo de Arthur

2 CAMARGO fará sugestões contra crime. A Gazeta: Vitória, p.11, 10 out. 1989.

3 POLÍCIA denuncia governo de empreguismo. A Gazeta: 24 de setembro de 1989, p.31.

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Carlos Gerhardt Santos, e somente sustada a partir do governo de Max Mauro,”4 que, após enfrentar muitas críticas ao uso político da nomeação de subdelegados em seu governo durante o conflito com a APCEES, determinou a exoneração de todos os subdelegados contratados.

Modernização conservadora e reforma administrativaA degeneração da polícia civil reforçava o controle da ordem

social e política pelas elites capixabas que atuava em consonância com os imperativos da produção advindo do Grande Capital. Conforme analisou a professora Maria da Penha Smarzaro Siqueira,

tanto a agricultura quanto o setor de serviços tendem a reproduzir as condições criadas pela ação modernizadora, direta ou indireta, da Aracruz Celulose, Petrobrás e CVRD no que diz respeito, principalmente, à estrutura fundiária, relações de trabalho, gestão empresarial e esquemas de incentivos e viabilização econômica. [...] Desse modo há toda uma conversão do médio e grande proprietário de terras em empresário rural, com uma diversificação tecnificada de cultivos, apoiada por todo um esquema de incentivos fiscais, com alta concentração de terras, em regime de assalariamento, inclusive temporário, tudo vinculado às necessidades dos centros de poder (SIQUEIRA, 2006, p. 13.)

Com baixa participação no conjunto da economia nacional, diminuta população e representação parlamentar na Câmara dos Deputados, o Espírito Santo encontrava-se em posição secundária no quadro político nacional e os projetos locais permaneceram subordinados à centralização levada a cabo pelos militares. Durante o governo de Artur da Costa e Silva e de Ernesto Geisel, os militares implementaram uma agenda que incluía o estado como parte das políticas de modernização econômica do país. O território capixaba foi, dessa forma, reintegrado no sistema econômico mundial. Além do café, a produção industrial e o papel de corredor de exportação (aproveitando posição estratégica em relação ao centro do Brasil e suas estradas, ferrovias e portos) passaram a ocupar lugar na agenda

4 GOVERNO demitirá todos os policiais civis contratados. A Gazeta: Vitória, p.16, 16 out. 1989.

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política local. Apesar do golpe de 1964 ter sido legitimado, entre outras

coisas, pela crítica à corrupção e aos desvios na administração pública promovidos pelas classes políticas, na Ditadura Militar, o objetivo de realizar uma reforma administrativa no Espírito Santo, fundamentada na “estrita observância do mérito”, como estava contido no programa da Arena (GRINBERG, 2009, p. 67), não alcançou a organização da Polícia Civil capixaba. Dessa forma, a modernização econômica do Espírito Santo se fez acompanhar de uma reforma administrativa promovida pelos governadores Christiano Dias Lopes e Arthur Carlos Gerthardt que ao contrário de superar o clientelismo da política tradicional capixaba manteve condições para que ela assumisse o controle político local ao mesmo tempo em que funcionava como “correia de transmissão” das necessidades dos centros de poder.

Assim, observa-se que a ordem econômica do Governo Christiano Dias Lopes seguiu as diretrizes formuladas pela Federação das Indústrias do Espírito Santo – FINDES – e contidas no Diagnóstico para o Planejamento Econômico do Espírito Santo. Mais do que um estudo, para a esfera econômica, esse documento passou a ser “o próprio plano de Governo de Dias Lopes, embora este levantasse duras críticas à exportação de minério pelo porto capixaba.” (VILASCHI, 2011, p. 65). Os incentivos criados com o Fundo de Recuperação Econômica do Espírito Santo (FUNRES) e o Fundo de Desenvolvimento das Atividades Portuárias (FUNDAP) compensaram as elites locais e o “dirigismo econômico do Governo Federal, em circunstâncias do Regime Autoritário, teve boa aceitação no Espírito Santo, vindo a repercutir de forma positiva sobre as estratégias traçadas pelo grupo de poder local” (VILLASCHI, 2011, p. 75).

Vale ressaltar que a criação de incentivos fiscais e do FUNDAP para promover a modernização econômica do Espírito Santo se fez a partir de uma negociação com o Governo Federal que somente concordou com a criação desses mecanismos utilizados

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pelos empresários capixabas para promover o desenvolvimento econômico local depois do consentimento dos estados do norte – da SUDAM - e do nordeste – da SUDENE (VILLASCHI, 2011, p. 73). Dessa forma, para se obter a permissão dos governadores dessas regiões foi feita uma peregrinação pelos estados com o objetivo de negociar com eles diretamente o aval para a implementação das políticas requeridas pelos capixabas. Na defesa desse projeto, além de Christiano Dias Lopes, outra importante liderança política da ARENA atuou com bastante empenho, o deputado federal João Calmon (SILVA, 1993, p. 161).

Apesar do discurso de combate à corrupção que mobilizou a sociedade no apoio ao golpe de 1964, foi justamente durante a Ditadura Militar que o mecanismo de preenchimento de postos na burocracia estatal, no caso, o cargo de subdelegado contratado pela CLT, foi criado. Desta forma contratou-se servidores para “cargos técnicos, conforme vários casos existentes no setor de perícia criminal. Também ingressaram na instituição policial, através de contratações, médicos legistas, agentes de presídio, fotógrafos, escrivãs e investigadores.”5

Clientelismo e degeneraçãoDiante da crise instalada em 1989, com a presença de Policiais

Federais investigando a polícia capixaba, a Associação de Polícia Civil do Estado do Espírito Santo (Apcees), por meio do seu presidente Custódio Serrati Castelani, anunciou a mobilização realizada pela entidade para acionar o poder judiciário contra o Executivo estadual requerendo a anulação de “nomeações irregulares”, pois segundo a associação haviam ocorrido “207 nomeações ilegais, sendo que 189 dos beneficiados sequer pertencem aos quadros da Polícia de carreira.” Estariam regularizadas, segundo ele, somente 11 das 218 nomeações para cargos comissionados. Castelani, em sua denúncia, ainda “chama à atenção para o fato de que essa ilegalidade está

5 GOVERNO demitirá todos os policiais civis contratados. A Gazeta: Vitória, p.16, 16 out. 1989.

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contribuindo para o fortalecimento do crime organizado no Estado.” E, demonstrando a corrupção dentro da instituição que deveria combater o crime, ressaltou que “nesse meio tem ladrão de carros, traficantes de cocaína, estupradores, estelionatários, envolvidos até os cabelos em vários tipos de delitos.”6

De forma confusa, a mesma matéria ressalta, contudo, que seriam “198 subdelegados nomeados ilegalmente pelo Governo do Estado, que sequer pertencem aos quadros de carreira da instituição.” No entanto, no mesmo texto fica bem explícito que

o critério principal para alguém ser nomeado em alguma função na Polícia Civil começa a ser definido nos períodos eleitorais. Antes da eleição, para ficar comprovada a intenção política o futuro policial é atrelado aos interesses em jogo. Passadas as eleições as nomeações também ocorrem para não deixar na mão quem trabalhou duro na campanha. ‘Na maioria dos casos é o que acontece. Mais da metade desse pessoal é despreparada, sem nenhuma formação profissional, e muitos tem até ficha criminal,’ revolta-se Castelani, Assim, basta ter uma simples nomeação para se obter um passaporte para o crime organizado. [...] ‘Atualmente, as nomeações obedecem somente ao interesse político’, ressalta Castelani.

As críticas apontam o uso político do cargo de subdelegado para a composição de alianças políticas articuladas entre o Governador do Estado do Espírito Santo e os prefeitos. Apesar da prerrogativa de nomeação ser do governador, os prefeitos seriam os responsáveis por indicar os nomes de aliados políticos que constituíam sua clientela. Assim, era a prestação de serviços ao poder local, a lealdade ao chefe político do município que determinava a ocupação da subdelegacia estabelecida em determinada municipalidade. Dessa forma, observamos nessa reportagem a explicação de que

O interesse político na nomeação, é exatamente para que o subdelegado, na condição de autoridade, passe a exercer influência sobre a comunidade, visando às eleições. Mas o despreparo acaba, invariavelmente, levando o subdelegado a cometer abusos, praticando extorsão, principalmente contra os comerciantes do local, em troca de suposta segurança. Além disso, todo o tipo de violência é praticada contra membros da comunidade, sobretudo se

6 POLÍCIA denuncia governo de empreguismo. A Gazeta: 24 de setembro de 1989, p.31.

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o local for habitado por trabalhadores da classe mais pobre.

Assim, se valendo e indo além da discricionaridade do poder conferido aos subdelegados, eles exerciam um poder de polícia a serviço dos poderes locais contra adversários políticos e contra a população, permitindo o controle social e político por meio de ações violentas e da disseminação do medo. Em decorrência disto, a crise no interior da Polícia Civil capixaba era agravada. A falta de credibilidade da instituição era tal que a sociedade capixaba não enxergava a Polícia Civil como uma instituição capaz de apurar os responsáveis por diversas ações criminosas que envolviam furtos, assassinatos, extorsões e outros delitos cometidos por organizações criminosas. Era frequente o envolvimento de pessoas instaladas no interior dos poderes públicos com o crime organizado no estado do Espírito Santo, que foi alvo de operações pela Polícia Federal que trouxeram visibilidade às ligações clandestinas entre agentes públicos e organizações criminosas.

Devido à gravidade da situação, as páginas dos jornais traziam notícias sobre o retorno, se é que ele havia deixado de existir, do Esquadrão da Morte. E nesse contexto a ação policial na proteção ao crime organizado reforça a ideia de degeneração ligada à forma como o cargo de subdelegado ingressava nos quadros da polícia capixaba. Como efeito do tipo de perfil requerido ao postulante ao cargo, identificamos a perpetuação do clientelismo levado a cabo pelos poderes locais no interior do sistema político marcado pela atuação de forças centrípetas. A corrupção e participação em atividades criminosas tornou-se, a partir cãs críticas observadas, algo endêmico no interior da Polícia Civil, em especial no que diz respeito aos subdelegados. Reforçando essa linha de raciocínio, o jornal A Gazeta registrou exemplos de subdelegados envolvidos com atividades ilegais:

O ex-subdelegado do Rio Marinho, Walmor José dos Santos, [...] integrante do crime organizado do estado, foi preso no Rio de Janeiro com um carro roubado, um Caravan. O ex-subdelegado do distrito de São Rafael, no município de Linhares, Antônio Carlos Piana, o Carlinhos Piana, logo após nomeado, matou um sargento PM e depois estuprou a mulher da vítima, em Linhares. Depois ele

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comandou uma quadrilha de assaltantes e estupradores, composta por dois cunhados seus, fornecendo, inclusive, coletes da Polícia Civil, que eram usados pelos comparsas durante os assaltos. [...]O ex-subdelegado do Bairro da Penha, Samuel Gomes, [...], colocou um mecânico no pau-de-arara e ateou fogo no seu corpo, para obter confissão de furtos. No Bairro das Flores, na Serra, o subdelegado Rodovaldo da Silva prendeu dois pivetes e os deixou com fome durante três dias. O ex-subdelegado de Santa Rita, Onofre Francisco Lessa, torturou e aleijou o paneleiro Juarez Firmino dos Santos. O também ex-subdelegado de Santa Rita, Carlos Giovani, está sendo processado sob acusação de ter matado o soldado PM Carlinhos e um traficante.7

No entanto, a prática de ilegalidades, o controle sobre as atividades criminosas por agentes públicos em organizações criminosas chamadas de Esquadrão da Morte existia desde a década de 1960. Em 1969, segundo o advogado Ewerton Montenegro Guimarães ligado à Arquidiocese de Vitória, as investigações sobre as ações do Esquadrão da Morte objetivaram livrar de acusações a cúpula da polícia, o superintendente de Polícia Civil José Dias Lopes, promovido a secretário de Estado para ganhar imunidade, e seu irmão o então Governador Christiano Dias Lopes Filho. Ewerton Guimarães expôs como o superintendente de polícia civil José Dias Lopes e seu irmão o Governador Christiano Dias Lopes Filho eram atores importantes no cenário estadual e chancelavam os crimes cometidos por policiais correligionários. José Dias Lopes chegou a ser acusado de “desovar” um cadáver, isto é, de jogar cadáver da ponte Florentino Avidos com finalidade de ocultação e desaparecimento do mesmo. Como parte da organização criminosa, alguns presos também recebiam privilégios para prestar serviços para os criminosos da alta cúpula (GUIMARÃES, 1978, p. 178).

As denúncias de Guimarães envolviam comércio de armas no interior, no meio rural; proteção da polícia ao jogo do bicho; extorsão feita por policiais a comerciantes; furto e desvio de carros roubados; homicídios; ocultação de cadáveres; espancamento e tortura para obtenção de informações e confissões; perseguição a pessoas

7 MAX anuncia que vai reestruturar a Polícia Civil. A Gazeta: Vitória, p.13, 21 out. 1989.

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que fazem política para o Movimento Democrático Brasileiro; interferência do governador no poder judiciário no sentido de que correligionários tivessem a benevolência dos juízes. As ações levadas a cabo pela polícia no Espírito Santo, mesmo servindo aos interesses de combate ao comunismo, também geravam receios entre os militares, que por meio da Lei 667 subordinava as forças policiais diretamente ao Exército.

Os militares, enquanto endureciam o regime contra as organizações de defesa dos trabalhadores e partidos de esquerda, davam passos lentos no sentido de investigar a corrupção e a degenerescência do sistema policial para esquadrões da morte. Somente depois de denúncias de três policiais civis que acusaram a corporação da qual participavam de atuar na venda de armas, algumas inclusive roubadas, de roubo de carros e falsificação de documentos de identidade, além de tortura, execução sumária de desaparecimento dos cadáveres, que foram feitos procedimentos para investigar os crimes no interior da estrutura política capixaba. Por que “aparentemente, os militares perceberam que deveriam agir contra esse tipo de esquadrão da morte porque eles respondiam por suas ações somente perante a Polícia Civil do Estado e os mais altos membros do governo estadual” (HUGGINS, 1998, p. 208).

Contudo, Christiando Dias Lopes e José Dias Lopes não foram responsabilizados por quaisquer atos criminosos. Apesar das evidências contra José Dias Lopes, ele permaneceu no cargo de secretário de Segurança até o fim do ano de 1970. Segundo Huggins, uma possível explicação para a postura dos militares em deixar de apoiar a demissão do governador e seu irmão seria por que talvez “a investigação estadual independente estivesse também revelando a relação dos próprios militares com os esquadrões da morte” (HUGGINS, 1998, p. 210).

Os casos de envolvimento de policiais com esquadrões da morte registrados na década de 1980 podem revelar elementos que permitem reforçar a ideia de continuidade desse fenômeno que ocupou o noticiário no final das décadas de 1960 e 1980. O suposto

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retorno do Esquadrão da Morte ocupava a atenção dos capixabas e gerava temores na sociedade capixaba. Nos anos 1980, o Esquadrão da Morte atuava por meio de uma entidade legalizada, supostamente fundada com objetivos filantrópicos, a Scuderie Detetive Le Cocq. A real finalidade deste organismo foi revelada pela Polícia Federal e de acordo com o Delegado de Polícia Federal Badenes essa entidade

Utiliza-se de meios e recursos próprios das milícias e “contribuições empresariais”. Incorpora em seus quadros de associados centenas de policiais (civis, militares e federais), serventuários da Justiça, Delegados, Advogados (que normalmente ocupam a presidência), funcionários da administração pública, Promotores de Justiça e até Juízes de Direito, Desembargadores, Políticos, empresários, comerciantes e banqueiros de jogo do bicho. A Scuderie surgiu como um meio operacional de apoio à criminalidade organizada do Estado do Espírito Santo, compondo-se basicamente dos seguintes serviços:- intermediação nos assassinatos de mando;- execução desses assassinatos;- acobertamento e desvirtuação nas investigações policiais pertinentes a estes assassinatos;- garantia da total impunidade na esfera judiciária.Quanto à clientela da Scuderie, é basicamente composta por empresários e políticos que se interligam ao crime organizado. Essa clientela articulou esquemas de violência (contando, para tal, com o sistema operacional da Scuderie), com o escopo de controlar o Poder Político das Administrações Municipais do Espírito Santo. Já detém o poder político em diversas prefeituras municipais do Espírito Santo, com o objetivo de se coligarem para se apoderarem da Administração Pública Estadual. (BADENES, s/d, p. 3)

A Scuderie Detetive Le Cocq, ou “esquadrão da morte”, como ficou conhecida, foi fundada em 1984 e extinta em 2002. Nos noticiários da década de 1980, quando não havia sentenças condenatórias contra a entidade, observamos notas divulgadas nos noticiários onde ela reiterava o seu papel de instituição filantrópica para se defender das acusações. Assim, antes dos policiais federais assumirem as responsabilidades pelas investigações do crime organizado no Espírito Santo, quem investigou as denúncias

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sobre o “novo ‘Esquadrão da Morte’”8 foi um importante ator na coordernação de diversas atividades criminosas, o delegado Cláudio Antônio Guerra, que em 1989, foi peso pela Polícia Federal sob a acusação de ser membro ativo do crime organizado no estado. Cláudio Guerra foi acusado de matar o bicheiro Jonas Burlamarques, atendendo interesses de outros bicheiros.

O então delegado, Cláudio Guerra, negou o envolvimento e apontou como autor do crime contra Burlamarques o tenente Odilon Carlos de Souza, especialista em explosivos. Segundo Guerra o tenente Odilon, também promovia, a serviço dos militares, atentados que pudessem ser atribuídos ao Partido Comunista Brasileiro. Odilon teria assassinado Burlamarques pois ele estaria chantageando “dois coronéis do Exército que ocupavam a chefia da polícia e a Secretaria de Segurança Pública do Espírito Santo” (GUERRA et. al; 2012, p. 31).

Os estudos sobre a ditadura militar e a redemocratização no Espírito Santo não permitem ainda compreender a conexão entre os esquadrões da década de 1960 e 1980. Há que se explicar as tensões existentes entre os militares e os policiais civis no Espírito Santo e a capacidade de controle das policias pelos chefes políticos aos quais o aparato repressivo local está subordinado.

O fim dos subdelegadosA Associação de Polícia Civil responsabilizava o uso político

do cargo de subdelegado pela corrupção no interior da instituição. As denúncias promovidas pela associação em 1989 municiaram a oposição na Assembléia Legislativa contra o governador Max Mauro. No noticiário de A Gazeta vemos o deputado Lúcio Merçon, que na ocasião era relator do novo texto constitucional capixaba, defender a exoneração imediata daqueles que haviam sido nomeados ilegalmente. Já o deputado estadual Antônio Pelaes, cobrava uma posição da Secretaria de Segurança e acusava Governo

8 GUERRA apura 13 crimes do “Esquadrão da Morte”. A Gazeta: Vitória. 09 dez.1986, p. 13

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do Estado de proteger “bandidos dentro da Polícia Civil”. Eleito pelo PMDB Pelaes encontava-se à época no PRN. Além de criticar a exoneração do delegado Emerson Gonçalves da Rocha, chefe do Departamento de Administração da Polícia Civil, disparou contra o governo dizendo que “a Polícia está cheia de cabos eleitorais de Max Mauro, sendo que a maioria é formada por bandidos portando arma e carteira policial.”9

O jornal A Gazeta dando voz à denúncia realizada pela Associação de Polícia Civil relatava que

a exoneração dos subdelegados é uma velha aspiração da Polícia Civil. Já em 1981, com a criação da Polícia de Carreira, a lei 3.400, complementada pela lei 3.705, já estabelecia que o cargo deveria ser preenchido por policial concursado, de terceira categoria. Entretanto, a lei foi desrespeitada e muitos cabos eleitorais, despreparados para a função, foram nomeados para o cargo, segundo denúncias de membros da Associação da Polícia Civil.10

Em resposta à matéria que denunciava o empreguismo na Polícia Civil, o governador do Estado do Espírito Santo, Max de Freitas Mauro, por meio do subsecretário de Segurança, coronel Lézio Pires da Luz, informou à imprensa que a denúncia contida no “ofício 131/89 de 1º de setembro, que pediu a relação dos ocupantes em cargos de comissão que exercem função na Polícia Civil,” seria apurada. Reforçando a argumentação oficial, o subsecretário reiterou que “a Lei 3.705, no seu artigo 24, mantém o cargo de subdelegado que somente será extinto com a promulgação da nova Constituinte Estadual.” Ao mesmo tempo a matéria informava que “o chefe de Polícia Civil, delegado Carmini Alberto Ponzo, preferiu não se manifestar sobre a questão.” Diante de um assunto que dividiu a categoria, a chefia de Polícia Civil preferiu manter o silêncio e, na ocasião, o porta voz da Polícia Civil, delegado Gilson Gomes, declarou que “a chefia não vai interferir no caso, ‘o presidente da

9 PELAES diz que Max protege bandidos na PC. A Gazeta: Vitória, p.11, 02 out. 1989.

10 MAX anuncia que vai reestruturar a Polícia Civil. A Gazeta: Vitória, p.13, 21 out. 1989.

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APC representa a categoria e deve saber o que está fazendo’, frisou.”11 Diante do acirramento dos conflitos entre o governo e a

categoria, presidente da Apcees, Custódio Serrati Castelani, apesar da denúncia, preferiu poupar o Secretário de Segurança alegando acreditar que “o secretário Aurich não tinha conhecimento das irregularidades, até por que ele tem excelentes propostas para a Polícia Civil”. Apesar do próprio Aurich ter sido subdelegado em Colatina, Custódio Serrati Castelani, alegava que “a Polícia Civil está pagando um preço alto por causa dessas distorções.” Preferindo não entrar em embate direto com a Secretaria de Segurança, Castelani diz acreditar que as distorções seriam corrigidas “por que é intenção da Secretaria de Segurança profissionalizar a Polícia Civil.”12

Nessa matéria do dia 28 de setembro de 1989, publicada no jornal A Gazeta, o secretário de Segurança, coronel Sérgio Aurich anunciou que, em virtude da promulgação da Constituição Estadual, todos os 198 subdelegados seriam exonerados. O empenho do secretário em resolver o problema com a categoria privilegiou a aproximação com a associação dos delegados para encaminhar um fim para o impasse entra os policiais civis e o Governo. Para tanto, Aurich se reuniu com Adão Rosa, presidente da Associação dos Delegados (Adepol), deixando de lado a Apcees que havia entrado em rota de colisão com o Governo do Estado.

Em decorrência do conflito com o Governo do Estado, pairava um temor no interior da categoria dos Policiais Civis, registrado por A Gazeta dessa forma, lemos na referida reportagem:

Dentro da Polícia Civil, a denúncia de nomeações ilegais passou a ter como resposta um silêncio total por parte dos policiais. A razão, segundo um deles, foi a exoneração do delegado Emerson Gonçalves da Rocha, que elaborou o documento onde constam os nomes dos policiais nomeados de forma irregular. Emerson era chefe do Departamento de Administração e na lista fornecida por ele figuravam o nome de pessoas que exerciam cargos comissionados.

11 MAX exige explicação sobre empreguismo. A Gazeta: 26 de setembro de 1989, p.13.

12 DENÚNCIA de empreguismo causa queda de delegado. A Gazeta: Vitória, p.13, 27 set. 1989.

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Contudo, diante da reação do Governo de se valer do artigo 129 da Constituição Estadual, que previa o concurso público como forma exclusiva de recrutamento dos quadros da polícia civil, para demitir 224 funcionários contratados da Polícia Civil, o presidente da Apcees, Custódio Serrati Castelani, passou a se posicionar no sentido de garantir a permanência dos contratados. Para tanto, ele teria se reunido com o secretário de Segurança Pública, Luiz Sérgio Aurich, que segundo Castelani, “prometeu que os contratados seriam submetidos a um concurso público interno.” Castelani mudou então o discurso, provavelmente em virtude de pressões internas, e passou a defender que a decisão de demissão dos contratados seria inconstitucional invocando o artigo 8 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias no que refere à compatibilização dos quadros de pessoal. Catelani argumentava que “ao perder o poder de Polícia, o funcionário estaria desprotegido contra os inimigos que porventura tenha conquistado durante o período de trabalho.”13

Considerações finaisEm 10 de novembro de 1989, em defesa do delegado Cláudio

Guerra, quando ainda era possível defendê-lo publicamente, a Associação dos Delegados de Polícia do Espírito Santo (ADEPOL) publicou no jornal A Gazeta uma nota de repúdio contra o “tratamento descortês e impróprio dispensado ao Delegado”, cujo nome foi escrito em letras garrafais. Tentando evitar a continuidade das investigações realizadas pela Polícia Federal no combate ao crime organizado no Espírito Santo, a ADEPOL defendia que a apreciação das acusações contra Guerra devia ser realizada no Espírito Santo, pela polícia local. Tal estratégia visava obviamente manter a impunidade à qual seus membros estavam acostumados. Dos indiciados no processo de 1969, julgados no Espírito Santo, não houve nenhuma condenação para os réus arrolados no inquérito.14

13 MAX anuncia que vai reestruturar a Polícia Civil. A Gazeta: Vitória, p.13, 21 out. 1989.

14 CEMITÉRIO clandestino na Serra pode ser uma farsa. A Gazeta: Vitória. 30 abr. 1989, p. 19.

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Pelo contrário, os três policiais que denunciaram a corrupção e degenerescência no interior da Polícia Civil foram indiciados e retiraram a denúncia contra José Dias Lopes para conseguir redução de pena e salvaguardar suas vidas (GUIMARÃES, 1978).

Assim, a degeneração das funções da polícia civil era reforçada, portanto, ainda mais pela interferência de políticos em contratações que se tornaram possíveis a partir de 1971 no governo de Arthur Carlos Gerhardt. Somente em 1989, quando estavam em vigor, respectivamente, a Constituição Federal (1988) e a Constituição Estadual (1989) asseverando a necessidade de concurso público, foi possível a extinção do clientelismo direto dos políticos sobre os subdelegados que permaneciam submetidos aos interesses de quem havia possibilitado sua nomeação.

Em 1989 a credibilidade da Polícia estava em baixa e a população clamava pela intervenção da Policia Federal no sentido de buscar solução para crimes de mando. De acordo com A Gazeta, em levantamento do número e da qualificação das queixas registradas na delegacia de plantão localizada na sede da Chefatura de Polícia, observa-se que a população recorria à polícia, na maioria dos casos, para notificar a perda de documentos. O descrédito chegou a tal ponto que a maioria das vítimas preferia não registrar queixa na delegacia por considerar esta providência mera perda de tempo. Além disto, muitas pessoas garantiam ter mais medo da Polícia do que dos próprios bandidos, em virtude do grande número de arbitrariedades praticadas por policiais civis e militares.15

O descrédito do aparato repressivo diante da sociedade era fruto do desvirtuamento de sua função de proteção. Na ditadura militar cabos eleitorais que se esforçavam nas eleições também podiam ser recompensados com contratações como essa. Esse procedimento foi realizado até a década de 1980 quando ficou patente o inchaço da máquina pública. Os aliados eram agraciados nos mais diversos departamentos, inclusive na condição de policiais.

15 POLÍCIA perde crédito e vítima não registra queixa. A Gazeta: Vitória. 22 jan.1989, p.17.

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Após o processo eleitoral, os cabos eleitorais que agiram com lealdade e empenho recebiam uma carteira funcional e uma arma e passavam a dispor de um poder conferido pelo Estado por meio da indicação política. Dessa forma, passavam a atender interesses desses padrinhos políticos. Nesse esquema entravam delegados, subdelegados, investigadores, escrivãs, agentes de presídio, médicos legistas e fotógrafos.16

Os subdelegados subordinavam-se aos políticos locais embora integrassem um sistema político cuja principal característica era a centralização política. Quanto ao nível de autonomia do aparato repressivo local em relação aos militares e aos poderes locais ainda não podemos traçar conclusões. Porém, fica evidente que a constituição do aparato repressivo durante a ditadura militar permitiu que, por meio de nomeações, grupos políticos locais pudessem dispor de um braço armado para a defesa de seus interesses particulares. Ao mesmo tempo, determinadas relações estabelecidas pelos membros do aparato repressivo os conectam com demandas e hierarquias externas ao governo, o que é evidenciado pela necessidade da ação da Polícia Federal na investigação do “crime organizado”, que denota a não confiança do governador na Polícia Civil, e pela forma como se realizava, durante o período de 1971 a 1989, a investidura do cargo de subdelegado, gerando lealdades e estreitamento de vínculos entre a polícia e o poder local.

ReferênciasBADENES, Francisco. Império da Lei: Justiça Federal decreta

a dissolução judicial da Scuderie Detetive Le Cocq. In: Revista Phoenix Magazine, disponível no site <http://www.sindepolbrasil.com.br/sindepol07/segurança1.html>. Acesso em: 15 jul. 2016.

GUERRA, C.; MEDEIROS, R.; NETTO, M. Memórias de uma Guerra Suja. Rio de Janeiro: Topbooks editora, 2012.

GRINBERG, Lúcia. Partido político ou bode expiatório: 16 PROMOTOR denuncia impunidade de policiais militares. A Gazeta:

Vitória. 26 out. 1989, p. 16.

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um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional – ARENA (1965-1979). Rio de Janeiro: Mauad X, 2009.

GUIMARAES, Ewerton M. A chancela do crime. Rio de Janeiro: Ambito Cultural, 1978.

LEMOS, Amarildo M. Modernização econômica e conflito social na década de 1980. In: RIBEIRO, Luiz Cláudio M. [et. al.]. Modernização e modernidade no Espírito Santo. Vitória: Edufes, 2015.

SIQUEIRA, Maria da Penha S. Industrialização e Empobrecimento Urbano: o caso da Grande Vitória (1950-1980). 2. ed. Vitória: Grafitusa, 2010.

VILLASCHI, Arlindo (org.). Elementos da economia capixaba e trajetórias de seu desenvolvimento. Vitória: Flor Cultura, 2011.

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Elites na capitania do Espírito Santo: uma análise da sua composição e atividades

econômicasAnna Karoline da Silva Fernandes1

Inicialmente apropriaremos da discussão historiográfica do termo elite empreendida por Maria Fernanda Bicalho (2005), na sociedade de Antigo Regime no Brasil. Segundo Bicalho, podemos conceituar as elites a partir de um critério econômico, de acordo com o qual as elites coloniais seriam os grupos que mais riquezas teriam acumulado. Muito provavelmente, o acúmulo de riquezas conferia statuse poder na sociedade colonial. Em Portugal, a constituição das elites atendiam aoutros critérios, comoo pertencimento às casas nobres, a “pureza do sangue”, a legitimidade da ascendência em casas tradicionais, sua melhor identificação. Desse modo, no contexto europeu do Antigo Regime podemos abordar elites mercantis, ou elites administrativas, constituídas por nobres, por eclesiásticos ou por letrados. De modo que é possível imaginar em uma elite camarária, concelhia, em uma nobreza da terra ou nobreza civil e política, atribuída à governança das localidades (BICALHO, 2005).

No entanto, no ultramar também é possível pensar a constituição das elites a partir do serviço ao rei, tal como acontecia em Portugal. Desse modo, a conquista e a defesa do território, a prestação de serviço ao rei, o exercício de cargos administrativos e as mercês régias oferecidas em retribuição aos serviços prestados podem ser entendidos como critérios de formação e de definição das elites coloniais. No entanto, no caso do Brasil ou o império atlântico português havia como característica singular em relação a Portugal o fato de suas elites serem constituídas numa sociedade escravista. Nesse sentido, as conclusões de Bicalho para o termo elites estão relacionadas à acumulação econômica advindas da ocupação de cargos administrativos e recebimento de mercês régias por serviços

1 Mestranda em História pela Universidade Federal do Espírito Santo, com o projeto “A administração espanhola no Brasil durante a monarquia dual (1580-1640): o caso do Espírito Santo”.

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prestados (BICALHO, 2005).Para compreender a elite em formação no Espírito Santo

analisamos a relação entre os indivíduos e a Coroa, baseada no Sistema de Mercês, ou seja, política de distribuição de terras, cargos régios, privilégios e títulos nobiliárquicos oferecidos pelo monarca, como forma de remuneração dos serviços dos vassalos prestados à Coroa, de modo que a formação da elite colonial brasileira está relacionada às benesses reais que permitiam ampliar seus ganhos (MELO, 2014). Na mesma perspectiva foram os trabalhos do historiador João Fragoso na abordagem da acumulação de recursos para a primeira elite senhorial do Rio de Janeiro. De acordo com ele, a administração real era um eficiente mecanismo de acumulação de riqueza, fenômeno que possibilitava, além do poder em nome del Rey, diferentes benesses mediante sistema de mercês, à medida que permitiram a apropriação de recursos não somente de um ramo particular da economia, mas sim de excedentes gerados por toda uma sociedade colonial em formação (FRAGOSO, 2010).

O conjunto de mecanismos econômicos que permitia a acumulação de riqueza baseado nos benefícios e serviços públicos da Coroa foi chamado por João Fragoso de economia do bem comum, uma vez que as mercês concedidas pelo rei e os serviços que prestavam eram de interesse da Coroa, portanto do bem comum. Esta relação entre o rei e seus vassalos foi chamada por Ângela Xavier e Antônio Manoel Hespanha de economia do dom, segundo a qual os serviços prestados eram devidamente remunerados e assumiam a forma de concessão de terras e até ofícios régios (FRAGOSO, 2012).

Nesse sentido, o sistema de mercês permitia a participação dos vassalos na estrutura administrativa da Colônia, estratégia utilizada pela Coroa para efetivar seu projeto de ocupação e dominação do território, oferecendo cargos no funcionalismo como recompensas dos serviços prestados pelos vassalos, transformados em funcionários régios nas diversas capitanias do Brasil. Esse processo foi a base para a formação da elite colonial brasileira, constituída a partir da obtenção de mercês por homens que ofereciam seus serviços a fim

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de serem recompensados (RICUPERO, 2009). Com o propósito de analisar o exercício desses cargos por

membros da elite na capitania do Espírito Santo no início do século XVII, buscamos identificar quem eram os ocupantes dos principais cargos da administração local, pois entendemos que o prestígio e o poder que possuíam eram fundamentais para serem considerados um grupo social privilegiado. Embora, provavelmente se tratasse de indivíduos de escalões sociais mais baixos a quem eram reservadas as oportunidades de serviços socialmente menos valorizadas como os postos menores nas capitanias, a esse respeito falaremos mais adiante (FRAGOSO; GOUVÊA, 2010).

A análise dos autos da devassa, ocorrida na Alfândega do Espírito Santo iniciada em 15 de março de 1618, ordenada a partir de carta régia de Felipe II (1598-1621) datada em 13 de agosto de 1617, revelou o grupo de administradores locais da capitania no início do século XVII, a começar pelo capitão-mor, Gaspar Alves de Siqueira, a quem o monarca escreveu a Carta de Lei “Eu el Rey faço saber a vos gaspar alves de siqueira capitão mor na capitania do Spirito Santo das partes do Brasil”.2 Também identificamos o escrivão da Câmara e da Ouvidoria por meio do próprio escrivão Bartolomeu Freire “eu bertolomeu freire escrivão da camara e da ouvidoria nesta villa de nossa senhora da vitoria capitania do Espírito Santo”.3 Segundo o mesmo, o capitão mor Gaspar Alves de Siqueira acumulava o cargo de ouvidor “[...] o capitão mor e ouvidor gasparalves de sequeira comigo escrivão [...]”.4 Bartolomeu Freire, ainda completou: “[...] o capitão mor gasparalves de Sequeira me deu juramento dos santos evangelhos, para que bem e verdadeiramente sirva de escrivão nos cazos conteúdos na dita carta de sua magestade [...]”.5

2 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

3 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

4 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

5 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

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O escrivão dos depoimentos da devassa, Bartolomeu Freire, foi nomeado pelo capitão-mor da capitania, cumprindo ordem régia de nomeá-lo para o cargo:

[...] mande que tomeis pera servir de escrivão desta diligencia e suas dependencias a pessoa que vos pareser de mais confiança e emtelegente e segredo que ouver nesta capitania a qual fareis juramento dos santos evangelhos para que bem e verdadeiramente sirva guardando em tudo meu serviço [...].6

Como autoridade local, o capitão-mor e demais funcionários régios, como o ouvidor-geral e outros funcionários tinham autonomia para oferecerem postos na governança, desde que tivessem a aprovação do monarca. Apesar de em geral os cargos mais importantes serem concedidos pelo rei (RICUPERO, 2009).

Nesse sentido, conseguimos identificar dois servidores de cargos importantes da governança local: capitão mor, ouvidor, escrivão da Câmara e da Ouvidoria. Outros funcionários régios foram identificados no documento, conforme se verifica no testemunho de vários moradores da capitania convocados para depor no processo investigativo. Exemplo o testemunho de Luis Furtado, 40 anos “jorge pinto provedor e almoxarife que foy”. Também, Antônio Gomes Miranda, 60 anos, incluiu “marcos dazeredo que foy provedor da fazenda” e completou que “era compadre de marcos dazeredo e que algúm tempo que senão comuniqua com ele e que outrosihe compadre de jorge pinto e que tabé se não comuniquavacóelle”.7

Os postos de provedor e almoxarife estavam diretamente ligados e se relacionavam com a arrecadação e fiscalização das rendas régias, seus ocupantes, Marcos de Azeredo e Jorge Pinto, respectivamente, faziam parte do grupo social privilegiado, que dominava os principais cargos da capitania. Eles recebiam salários pagos pela Fazenda Real para o exercício de tais funções, portanto, servidores do rei que se ligavam a ele por meio do sistema de mercês.

6 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

7 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

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Alguns funcionários régios prestaram depoimento no processo investigativo, exemplo de Bernaldo da Fonseca, provedor dos defuntos e ausentes, 45 anos; Estevão Machado, meirinho da Alfândega, 34 anos; André Gomes, meirinho da Ouvidoria, 52 anos; Gaspar Carneiro Rangel, escrivão da Fazenda, 48 anos e Antônio Ribeiro, meirinho do mar, 40 anos.8

Quadro 1 - Distribuição de cargos ocupados na capitania do Espírito Santo no início do século XVII

Cargo NomeadoCapitão Mor Gaspar Alves de SiqueiraOuvidor Gaspar Alves de SiqueiraEscrivão da Ouvidoria Bartolomeu FreireEscrivão da Câmara Bartolomeu FreireProvedor Marcos de AzeredoAlmoxarife Jorge PintoProvedor dos defuntos e ausentes Bernaldo da FonsecaMeirinho da Alfândega Estevão MachadoMeirinho da Ouvidoria André GomesEscrivão da Fazenda Gaspar Carneiro RangelMeirinho do mar Antônio Ribeiro

FONTE: Elaboração própria com base na documentação CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

Através dessas informações conseguimos compor parte do quadro político-administrativo que assegurava a gestão da capitania. Digo parte, porque ainda desconhecemos os cargos de eleição da Câmara de Vitória e, provavelmente Vila Velha, além dos ofícios militares. Concluída a identificação de alguns cargos da administração da capitania do Espírito Santo, passaremos agora para as origens sociais dos titulares nomeados para tais postos da governação ultramarina.

8 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04

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A princípio é importante compreender que ao longo dos séculos XVII e XVIII, a base da pirâmide nobiliárquica foi se ampliando cada vez mais, ao mesmo tempo que o topo, pelo menos até meados do setecentos, se cristalizou com a constituição de uma primeira “nobreza de corte”. De maneira oposta a uma polarização entre nobres e não nobres (ou nobres e mecânicos), constatamos uma imensidade de distinções e hierarquias e com a extrema dificuldade em definir uma estratificação nobiliárquica abrangendo toda a Monarquia, pelo menos abaixo da “primeira nobreza” da corte (MONTEIRO, 2005).

A esse respeito, o historiador João Fragoso salientou que a grande aristocracia titulada estimava que os serviços militares terminavam no Marrocos. Ao sul do Marrocos, os principais agentes da coroa eram provenientes da pequena nobreza (FRAGOSO, 2010). A historiadora Mafalda Soares da Cunha corrobora os argumentos anteriores, em recente trabalho apontou indícios de que os fidalgos tinham mais disposição para os serviços no reino de Portugal. Assim, entre a fidalguia grada difundia-se o desapreço pelos serviços no império, o contrário passava-se entre os escalões sociais mais baixos, que eram obviamente mais abundantes. Para esses, os serviços ultramarinos representavam eficiente recurso de ascensão social através das oportunidades de serviço e consequente remuneração (CUNHA, 2010).

Assim, há indícios de falta de empenho de fidalgos em tomar conta desse governo em decorrência de possíveis descontentamentos por certos tipos de postos ultramarinos. Diante da dificuldade de apresentar propostas de nomes para o governo das conquistas é possível deduzir os obstáculos dos órgãos de decisão para conseguir indivíduos apropriados para os postos de menor relevo à medida que o grupo dos fidalgos que era numericamente escasso faziam constantes reivindicações. Logo, deduzimos que boa parte dos postos ultramarinos atraíam mais os sujeitos de mais baixa estratificação. Para eles, os cargos de comando ultramarino podiam representar possibilidades que não eram encontradas no Reino.

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Também, tinham perspectivas diferentes, interessados em formas de sobrevivência e riqueza mais rápidas que as estruturas políticas e administrativas oferecidas na metrópole (CUNHA, 2010).

Apesar de serem mais numerosos, ainda assim não eram indicados senão para os postos menores, o que foi de fato predominante, mas não exclusivo, pois a coroa pretendia dar continuidade à elitização governativa que a monarquia tencionava como recurso para os problemas que o império enfrentava. No entanto, o escasso grupo dos fidalgos de alta qualidade demonstrava um elevado nível de desinteresse pelo serviço ultramarino. Desse modo, os raros casos de fidalgotes que alcançaram governos de maior importância provavelmente pode demonstrar a extensão dos inconvenientes de recrutamento que a monarquia hispânica enfrentava (CUNHA, 2010).

É verdade que o quadro de oportunidades da fidalguia aumentou bastante após 1580, momento da anexação de Portugal. As guerras em que a monarquia hispânica estava envolvida aumentaram as possibilidades de desempenho militar em território europeu. Assim, os sujeitos atuavam em um conjunto político maior com possibilidades de serviço mais variadas. Ademais, a nova organização político-administrativa aumentara o número de cargos políticos. Como essas possibilidades de serviço não se equivaliam estavam criadas as concorrências com os tradicionais espaços de serviço da fidalguia portuguesa (CUNHA, 2010).

As oportunidades de serviços no ultramar teriam sido aproveitadas pela gente de menos boa extração, que estava na fronteira inferior do grupo nobiliárquico ou até na transição para o escalão dos privilegiados, sujeitos evidentemente mais numerosos, atraídos pelas possibilidades de ascensão social por meio da remuneração e da acumulação de riqueza possibilitadas pelo sistema de remuneração dos serviços prestados à Coroa, dominante na história do período colonial brasileiro, estratégia da Coroa para garantir a dominação dos territórios conquistados. Essa gente de menos boa extração teria viajado para o Brasil buscando o

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enobrecimento por meio da ocupação de cargos régios. Além disso, o fato de servirem ao rei nas suas conquistas, os inseria na economia de mercês como importantes merecedores da generosidade régia. Daí resultava um poder político considerável alcançado através do sistema de mercês, no qual homens comuns eram transformados em funcionários reais e em camaristas, por recompensas dos seus serviços prestados à Coroa, apesar dela se mobilizar para recrutar sujeitos dispostos a dar continuidade à elitização da governança (CUNHA, 2010).

Assim, o sistema de mercês foi indispensável para movimentar uma máquina administrativa à medida que possibilitava ocupar todos os postos da administração militar, justiça, civil e fiscal com indivíduos atraídos pelas mercês distribuídas que conferiam o prestígio e o poder de um grupo social privilegiado. Desse modo, nossa investigação entende que as elites na capitania do Espírito Santo estavam vinculadas ao exercício dos poderes locais (RICUPERO, 2009).

As mercês reais eram conquistadas por meio de pedidos e solicitações dos próprios interessados para o empreendimento dos serviços em cartas enviadas ao rei ou pelas súplicas de funcionários régios para certos indivíduos. Outra possibilidade era a concessão feita pelos próprios servidores régios, pois como representantes da Coroa, tinham a autoridade de oferecerem eles próprios recompensas em nome do rei quando julgassem merecido. Em todos os casos, as reivindicações necessitavam ser aceitas pelo monarca (RICUPERO, 2009).

É importante considerar que a Coroa só permitia que determinados cargos fossem ocupados por indivíduos com condições de arcar com os custos dos serviços. Essas condições eram aceitas por homens enriquecidos, pois os mesmos se sentiam atraídos pelas recompensas que poderiam receber, acreditando que elas ressarciriam os investimentos realizados (RICUPERO, 2009).

Nesse sentido, a política de mercês, ao mesmo tempo que provia os funcionários da administração colonial, reforçava o

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poder econômico, na medida em que a maioria dos servidores era recompensada com salários, vantagens comerciais e tributárias como isenção de impostos, terras, direitos e outros privilégios, após serviços já prestados ou futuros. Esse sistema proporcionou a formação de uma elite possuidora dos recursos econômicos no Espírito Santo (RICUPERO, 2009).

Assim se caracterizavam os chamados homens-bons da capitania, através da ocupação de postos no funcionalismo e acumulação de recursos provenientes dos préstimos oferecidos ao rei, meio pelo qual se constituiu uma elite vinculada ao governo. De modo que a conquista de cargos e mercês foi a gênese para a constituição da elite (RICUPERO, 2009).

À medida que a ocupação de cargos régios possibilitava a acumulação de recursos financeiros, investimentos em outras atividades econômicas poderiam ser realizados, o que nos leva a inferir que provavelmente a ocupação de ofícios não significava que a elite não se envolvesse com outras atividades, mas que tais mecanismos eram apenas um dos instrumentos usados no rendimento das primeiras fortunas coloniais, sem que sobressaísse sobre os demais (FRAGOSO; GOUVÊA, 2010). Desse modo, consideramos o envolvimento com o comércio, as atividades agrárias e a usura,9 fontes de enriquecimento indispensáveis para compreender a formação de elites econômicas do Espírito Santo, conforme mostraram as fontes históricas desta capitania.

Todas essas atividades garantiam a produção de riqueza da elite colonial e eram fundamentais para o processo de dominação do território de modo que garantiam a ocupação, povoamento e defesa das terras da América. Assim, os vassalos compreendiam o seu dever com a monarquia e isto era feito com o desenvolvimento de atividades produtivas, pois unidos por laços de dependência se sentiam parte de um projeto político que excedia a gestão local (FRAGOSO, 2012).

9 Resultado das pesquisa de Carla Almeida acerca da formação da elite mineira (MELO, 2014).

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O excerto da Carta de Lei de Felipe II (1598-1621) que ordenou a devassa destaca que chegavam três e às vezes até quatro navios por ano à capitania. Assim, os documentos apontaram o envolvimento de homens da capitania com atividades ligadas ao comércio. Conforme escreveu Rodrigues Caminha, 42 anos: “[...] vem do reino a esta capitania da cidade de Lisboa tres ou quatro navios em cada húanno com fazendas [...]”.10

A versão foi confirmada por outras testemunhas, entre elas, Antonio Velho, 33 anos: “[...] a esta villa vem todos os anos duas três embarcaçois e quatro muitas vezes em dereitura com fazendas [...]” e Gonçalo Mendes Barboza, 50 anos: “[...] em cada ano vem a esta dittavillatresembarcaçois e quatro as vezes com fazendas em dereitura do reino [...]”.11 Diogo Dias Sanches, 45 anos, por sua vez, acrescentou que: “[...] fazendas lhe vinhão do reino e da baia [...]”.12

Conforme verificamos na documentação, o comércio envolvia atividades de importação de mercadorias com a Metrópole e com a capitania da Bahia, para abastecimento do mercado interno. Desse modo, havia uma acumulação de riquezas provenientes das atividades comerciais, e que, por isso se construiu uma elite econômica na capitania do Espírito Santo voltada para o comércio.

Também, através da devassa foram identificados alguns dos proprietários das mercadorias que chegavam na capitania do Espírito Santo vindas de Portugal e da Bahia. O testemunho de Manoell Lourenço Valença, 50 anos, informou que: “[...] a mor parte das fazendas que a esta villa vem são de leonardo froes e marcos fernandez monsanto e de luiscorea seu filho [...]”.13

Jorge de Almeida Lobo, 40 anos, informou que: “[...] por

10 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

11 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

12 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

13 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

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outras vezes vira despachar fazendas junto as cazas de antonio froes [...]”.14 Também, Bento Pimenta, 38 anos, assegurou: “[...] que as dittas fazendas as despachavão na pedra e no porto de antoniofroes [...]”.15

Logo, identificamos como negociantes de mercadorias da capitania do Espírito Santo, Leonardo Froes, Marcos Fernandes Monsanto, Luis Correa Monsanto e Antônio Fróes (morador na vila), filho e procurador de Leonardo Fróes. No entanto, por meio do testemunho de outros moradores da vila, os mesmos homens envolvidos com a mercancia foram apontados como proprietários de unidades agroindustriais, indicando que as atividades mercantis eram conciliadas com a produção agrícola e agrofabril, conforme se reconheceu no testemunho de João Del Rio, 39 anos: “[...] as fazendas que ordinariamente vem a esta capitania sam de marcos fernandezmonsanto e de leonardofroes e de manoell Teixeira senhores de engenhos [...]”.16

Jorge de Moura, 60 anos, confirmou o fato: [...] as fazendas que ordinariamente vem nas ditas embarcaçois de purtugal a esta dita villasam dos senhores de engenhos dela e a saber leonardofroes marcos fernandezmonsantoluiscorea seu filho [...].17 Gonçalo Mendes Barbosa, 50 anos, acrescentou: “[...] amtoniofroes senhor de tres engenhos pelo qual respeito lhe deixavão levar as fazendas que lhe vinhão para suas cazas [...]”.18

Assim, através da análise do documento, percebemos que além de negociantes Marcos Fernandes Monsanto, Leonardo Froes, Luís Correa, Antônio Froes e Manoel Teixeira se envolviam também

14 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

15 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

16 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

17 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

18 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

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com a produção açucareira. Na sociedade portuguesa a burguesia comercial, constituía um grupo cujo status era considerado inferior. Assim, podemos inferir que os senhores de engenhos da capitania do Espírito Santo tinham origens sociais pouco valorizadas, tal como observou o historiador Stuart Schwartz, em relação à constituição das elites coloniais no Recôncavo baiano. De acordo com ele, muitos dos primeiros senhores de engenhos baianos vinham de famílias menos proeminentes, quiçá um terço dos engenhos do Recôncavo na década de 1580 fosse posse de comerciantes que haviam substituído o comércio pela atividade açucareira, alguns permaneciam exercendo as duas atividades simultaneamente. Desse modo, Schwartz argumentou que o financiamento dos primeiros engenhos baianos se originou na acumulação mercantil (BICALHO, 2005).

A respeito da mistura composta por alianças e negócios entre senhores de engenhos e comerciantes, são válidas as considerações de Rae Flory e David Grant Smith. Segundo os autores, acerca da definição do termo elites coloniais, a dicotomia comerciantes versus proprietários de terras e plantações de açúcar, predominante na historiografia, oferece uma oposição demasiado rígida, que não corresponde às circunstâncias diante do difícil e quase sempre ambíguo contato entre esses segmentos no conjunto da camada superior da sociedade baiana (BICALHO, 2005).

No que respeita a composição social do Recôncavo da Bahia, os referidos autores propõem que o conceito de elite seja corrigido de maneira que inclua certos tipos mercantis no mesmo nível das famílias agrárias. Tal como podemos sugerir para a composição social da capitania do Espírito Santo, à medida que os documentos mostraram que os mercadores tinham propriedades de engenhos. Desse modo, entendemos que a posse de engenhos foi uma estratégia de enobrecimento dos mercadores, transformando o seu êxito econômico em prestígio social e poder político, através de diversos atributos que os faziam penetrar o interior da elite da capitania do Espírito Santo, entre eles, fortuna, a posse de propriedades

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territoriais, desenvolvimento de atividades agrárias, tal como observou Schwartz no estudo sobre a elite baiana (BICALHO, 2005).

Ainda de acordo com os autores, Rae Flory e David Grant Smith, o grupo de mercadores baianos, tanto no século XVII, quanto no século posterior, era composto em sua maioria de imigrantes provenientes do Reino, e em menor número das ilhas atlânticas. Uma vez estabelecidos em Salvador, embora mantivessem seus negócios mercantis, os comerciantes elaboravam estratégias de enobrecimento que aliavam o investimento na aquisição de terras (BICALHO, 2005). Do mesmo modo que observamos na capitania do Espírito Santo. Os documentos inclusive apontaram o quantitativo de propriedades, conforme se verifica no testemunho de Gonçalo Mendes Barbosa, 50 anos: “[...] marcos fernandez monsanto senhor de dous emgenhos e antonio froes senhor de tres emgenhos [...]”. 19Também, Estevão Machado, meirinho da Alfândega, 34 anos, acrescentou: “[...] leonardo froes senhor de tres engenhos [...]”.20

De acordo com os excertos dos documentos, podemos identificar cinco engenhos pertencentes a esses indivíduos na capitania do Espírito Santo, sendo dois de Marcos Fernandes Monsanto e três da família Froes, cujos negócios na capitania eram administrados por Antônio Froes, filho e procurador de Leonardo Froes – talvez os mercadores permanecessem no Reino e deixassem os negócios a cargo dos seus filhos e procuradores. No entanto, havia ainda os engenhos de Luís Correa e Manoel Teixeira, não quantificados nos documentos, mas que revelam a existência de outros engenhos além daqueles cinco que conseguimos quantificar. Ainda o estudo do historiador Luiz Cláudio M. Ribeiro, também apontou a existência de outras unidades produtivas na capitania do Espírito Santo entre as décadas finais do século XVI e 1609,21 embora

19 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

20 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

21 Engenho Santo Antonio, de Henrique Manoel de Medeiros (residente em Lisboa), construído em 1577 na Ribeira da Arittaguape, Vila Velha; Engenho Santo Antonio, de Leonardo Fróes e Henrique Manoel de Medeiros, na localidade

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não podemos atestar que todas as unidades produtivas levantadas no estudo de Ribeiro (2011) continuassem em funcionamento no período da devassa (1618). Assim, ainda não é possível fazer um levantamento preciso da quantidade de engenhos existentes na capitania do Espírito Santo naquele ano.

Embora os documentos mostrem a produção de açúcar e a mercancia associadas, é importante considerar que apesar da maior quantidade de mercadorias pertencerem aos donos de engenhos conforme se registrou no depoimento de Antônio Ribeiro, meirinho do mar, 40 anos: “[...] a mor parte das fazendas que a esta dita villa vem são dos senhores de engenho [...]”,22 a prática mercante também era desenvolvida por homens que não foram identificados como produtores de açúcar, apenas como mercadores, como se verificou no testemunho de Diogo Dias Sanches: “[...] lhe despacharam em caza dele testemunha fazendas que lhe vinhão do reino e da baia [...]”.23 O depoimento de Jorge de Almeida Lobo, 47 anos, citou outro mercador: “[...] Simão luiz mercador estante na dita capitania

de Roças Velhas, Vila Velha, reconstruído em 1592; Engenho de Nossa Senhora do Rosário, de Leonardo Fróes (residente em Lisboa), em Roças Velhas, Vila Velha, construído em 1601; o Engenho São Francisco, construído na localidade de Itaquari termo de Vila Velha, pelo donatário Vasco Fernandes Coutinho foi vendido a Diogo Rodrigues (residente em Évora), parece ter se acabado. Por volta de 1576, no mesmo local, Anrique Rodrigues Barcellos construiu um novo Engenho São Francisco. Este engenho parece ter sido vendido ao mesmo Diogo Rodrigues que cuidou de reconstruí-lo em 1596; Engenho Trindade, construído em 1583 por Miguel de Azeredo em Ribeira de Manicara (ou rio de maguanicara ou maguaricara), ou Ribeira do Coripe, em Vila Velha. Este engenho foi reedificado em 1594. Após outra reedificação em 1609 mudou de nome para Engenho São Miguel e foi vendido para Leonardo Fróes; Engenho de Santtiago de Guaraparim, de Marcos Fernandes Monsanto, merquador, residente em Lisboa, construído em Vila Velha em 1588 (ou 1592) e reconstruído em 1598; Engenho de Nossa Senhora da Paz, de Marcos Fernandes Monsanto, construído em Guaraparim, termo de Vila Velha, em 1599. Em 1618, o mesmo Marcos Fernandes Monsanto, em que pese ser morador de Lisboa, já figurava como feitor da capitania e, junto com seu filho Luis Correa Monsanto, possuía outros 2 engenhos: o de Nossa Senhora do Rosário, em Guaraparim, e outros engenhos em Perocão, localidades pertencentes a Vila Velha (RIBEIRO, 2011).

22 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

23 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

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[...]”.24Tanto Diogo Dias Sanches como Simão Luis não foram apontados nos documentos como proprietários de engenhos, nos levando a entender que ambos praticavam estritamente a mercancia e não se envolviam com atividades agrícolas.

Os mesmos indivíduos envolvidos com atividades agrárias e com a mercancia foram apontados nos documentos como financiadores de crédito, praticando paralelamente o empréstimo à juros. Conforme demonstrou o testemunho de Amrique Lopes de Duenhas, contratador, 39 anos: “[...] marcos dazeredo provedor que foy da fazenda deve muito dinheiro a marcos fernandez monsanto senhor de dous emgenhos, e que sabe mais que o dito marcos dazeredo devia muyto dinheiro a leonardo froes senhor de tres engenhos [...].25

Brás Pinheiro de Araújo, 60 anos, certificou que: [...] o provedor marcos dazeredo que foy deve copia de dinheiro a marcos fernandes monsanto senhor de dous engenhos e sabe que pelo conseguinte deve a amtonio froes procurador de seu pay e sabe que outro senhor jorge pinto almoxarife e procurador digo provedor que foy deve outrosi a leonardo froes muita copia de dinheiro [...].26

Os documentos revelaram ainda as quantias dos empréstimos, como atestou Diogo Dias Sanches, 45 anos: “[...] marcos dazeredo deve a marcos fernandezmonsanto senhor de dous engenhos quinentos mil rés pougo mais ou menos [...]”. Igualmente Lourenço da Villa, 50 anos assegurou: “[...] que o almoxarife jorge pinto deve ao dito leonardo froes perto de setecentos mil rés [...]”. Também, Gonçalo Mendes Barbosa, 50 anos, testemunhou: “[...] o dito almoxarife jorge pinto deve ao dito amtoniofroes senhor de tres emgenhos mill e quinetos cruzados [...]”.

De acordo com esses depoimentos, sabemos que o negociante

24 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

25 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

26 CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

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e proprietário de engenhos Marcos Fernandes Monsanto emprestou a quantia de 500$000 (quinhentos mil réis) mais ou menos ao provedor Marcos de Azeredo e uma quantia não declarada a Jorge Pinto. Por sua vez o almoxarife Jorge Pinto não possuía dívidas com Marcos Fernandes Monsanto; apenas com os Fróes devia quantia equivalente a 700$000 (setecentos mil réis) a Leonardo Fróes (residente em Lisboa) e mil e quinhentos cruzados para Antônio Fróes, que aparece como filho e procurador de Leonardo. Os empréstimos são importantes na investigação das relações que os negociantes e donos de engenho teciam com as autoridades locais, à medida que apontam uma relação de dependência entre esses indivíduos, consubstanciada na relação credor e devedor.

Portanto, por meio da análise das fontes conseguimos perceber que no início do século XVII havia na capitania do Espírito Santo a predominância de uma elite colonial voltada para a ocupação de cargos régios, atividades comerciais e agrárias. Tal como considerou John Norman Kennedy, para a constituição da elite colonial baiana do fim do período colonial, como os mais ricos proprietários rurais, comerciantes, aqueles que ocupavam os mais altos postos da burocracia fiscal e administrativa, e ainda os que integravam os mais elevados graus dos exércitos regulares e locais (BICALHO, 2005).

ReferênciasDocumentação primáriaCarta de Lei (treslado) do Rei [Felipe II], ao Capitão-

Mor da Capitania do Espírito Santo, Gaspar Alves de Siqueira, a ordenar a devassa nos descaminhos da alfândega, e constando dos procedimentos dos culpados, apontou escrivão de confiança para levar essa diligência na alfândega da dita capitania. Anexo: auto de testemunhas (01 doc. 60 fls.) CTA: AHU-ESPÍRITO SANTO, cx. 01, doc. 04, 05. CT: AHU-ACL-CU-007, cx. 01, doc. 04.

Obras de apoio

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BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Conquista, mercês e poder local:a nobreza da terra na América portuguesa e a cultura política do Antigo Regime. Almanack braziliense, n. 2, p. 21-34, 2005.

BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Elites coloniais: a nobreza da terra e o governo das conquistas. História e historiografia. In: MONTEIRO, Nuno G.; CARDIM, Pedro; CUNHA, Mafalda S. da (Org.). Optima Pars: elites ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005, p. 73-97.

BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Modos de governar: ideias e práticas políticas no império português séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005.

FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séc. XVI e XVII). In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria F.; GOUVÊA, Maria F. (Org.). O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 29-71.

FRAGOSO, João. Capitão Manuel Pimenta Sampaio, senhor do engenho do Rio Grande, neto de conquistadores e compadre de João Soares, pardo: notas sobre a hierarquia social costumeira (Rio de Janeiro, 1700-1760). In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria F. (Org.). Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 243-294.

FRAGOSO, João. Modelos explicativos da chamada economia colonial e a ideia de Monarquia Pluricontinental: notas para um ensaio. História, v. 31, n. 2, p. 106-145, 2012.

FRAGOSO, João; BICALHO, Maria F.; GOUVÊA, Maria F. (Org.). O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria F. (Org.). Na trama das

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redes: política e negócios no Império português, séculos XVI e XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

MELO, K. C. Elites em perspectiva: uma discussão sobre hierarquias, composição da riqueza e consolidação dos grupos hegemônicos em São João Del Rei. Oficina do historiador, v. 7, p. 4-22, 2014.

MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O ‘ethos’ nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império e imaginário social. Almanack Braziliense, n. 2, p. 4-20, 2005.

RIBEIRO, Luiz Cláudio M. Modos de ver (1534-1643): o governo da capitania do Espírito Santo na sua primeira centúria. In: Congresso Internacional UfesUfes/Université Paris-Est/Universidade do Minho: territórios, poderes, identidades (territoires, pouvoirs, identités), III. Anais... Vitória: GM, 2011, p. 1-19.

RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial: Brasil, c.1530 - c. 1630. São Paulo: Alameda, 2009.

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Institucionalização do indigenismo no México: O congresso de Pátzcuaro e o

fortalecimento da antropologiaCaroline Faria Gomes1

O México é um país de longa trajetória indigenista. De modo geral podemos dizer que o indigenismo foi uma política formulada por não índios para tratar da população indígena. À época da colônia esse tratamento se traduziu em uma liberdade protegida e um controle político e econômico. De acordo com Manuel Maria Marzal, o colapso da conquista significou o desaparecimento de alguns grupos indígenas por meio de guerras, pestes ou miscigenação com a sociedade colonial. No entanto, havia o desejo de salvar e proteger a população indígena já que seu trabalho era a base da economia colonial (MARIA MARZAL, 1993, p. 15).

Numa concepção ampla vários autores afirmam que o indigenismo designa qualquer preocupação relativa aos indígenas a partir do século XVI. Dentro de tais correntes que analisam o indigenismo a partir da longa duração podemos encontrar os antropólogos Henri Favre e Manuel Maria Marzal que, partindo da premissa de que o indigenismo é toda política formulada por não índios para lidar com a população indígena, iniciam suas análises na época colonial. Ambos autores utilizam os cronistas coloniais, como Bartolomé de Las Casas e Bernadino de Sahagun, para validarem suas análises.

Maria Marzal afirma que o projeto político destinado aos indígenas à época da colônia era o de conservação sob um rígido controle. O desejo de salvar e proteger a população indígena viria da importância de seu trabalho que era a base da economia colonial. De modo geral, o autor divide a política indigenista em três grandes momentos: o colonial baseado na defesa e exploração do indígena; o liberal baseado na assimilação total do indígena pautado na

1 Doutoranda em História pela Universidade Federal do Espírito Santo.

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miscigenação e o integracionista baseado na integração do indígena à sociedade nacional (MARIA MARZAL, 1993, p. 15).

Favre parte da premissa de que a essência do indigenismo seria a presença de uma opinião favorável ao indígena. Nesse panorama ele parte desde Bartolomé de Las Casas para apontar os antecendentes coloniais desse movimento. Ao problematizar o racismo científico do século XIX, Favre afirma que as ideias indigenistas surgiram como uma proposta de miscigenação entre a raça indígena e a raça branca. As ideias de Favre são importantes, pois nos levam a pensar a corrente indigenista como um elemento usado pelos Estados latino-americanos para forjar as nacionalidades baseando-se na mestiçagem (JESUS, 2012, p. 178).

Para a autora Laura Giraudo, tais definições são bastante genéricas. No México o indigenismo alcançou maior relevância, pois se tornou a base ideológica de um movimento de promoção da mestiçagem. No começo do século XX a questão indígena se inseriu na problemática nacional. Nesse sentido o indigenismo pode ser considerado como a principal forma que assume o nacionalismo em alguns países da América latina (GIRAUDO, 2008, p. 40).

Em 1940 a política indigenista avançou com relação a sua institucionalização com a realização do I Congresso Indigenista Interamericano em Pátzcuaro, Michoacán, entre 14 e 24 de abril. Neste congresso estiveram presentes historiadores, etnólogos, antropólogos e sociólogos de todos os continentes. Na delegação mexicana estiveram presentes representantes de várias correntes, como Moisés Sáenz, Alfonso Caso, Manuel Gamio, Vicente Lombardo Toledano, Andrés Molina Enríquez e outros. Quem também esteve presente foi o então presidente mexicano Lázaro Cárdenas. Logo em seu discurso inaugural, Cárdenas afirmou que o objetivo das políticas indigenistas não seria o de indigenizar o México, mas sim mexicanizar os indígenas. No discurso inaugural desse congresso Cárdenas expos que:

México tiene entre sus primeras exigencias la atención del problema indígena y, al efecto, el plan a desarrollar comprende la intensificación de las tareas emprendidas para la restitución o dotación de sus

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tierras, aguas, bosques, créditos y maquinaria para los cultivos; obras de irrigación, lucha contra las enfermedades endémicas y las condiciones de insalubridad; fomento de las industrias nativas; acción educativa con el fin de elevar sus condiciones de vida y para enseñar-les sus derechos y responsabilidades para entrar en la comunidad nacional (SÁNCHEZ, 1999, p. 41).

A solução de Cárdenas passava pela via da reforma agrária. Embora as personalidades da delegação mexicana pertencessem a diversas correntes, todos elas apoiaram a versão cardenista. Consuelo Sanchez afirma que, a princípio, o indigenismo definido no congresso seguiu um sincretismo entre o agrarismo cardenista e as teorias indigenistas formuladas até então, principalmente por Manuel Gamio e Moisés Sáenz. Com o tempo, a vertente puramente integracionista se desenvolveu melhor e se impôs sobre as demais (SANCHEZ, 1999, p. 41).

De maneira geral, as decisões do congresso se deram no sentido de que a incorporação dos indígenas seria tarefa do Estado por intermédio de medidas governamentais de caráter legislativo e administrativo. O propósito era o de integrar os indígenas na vida econômica, social e cultural da nação.

Na tarefa da integração dever-se-ia utilizar as virtudes das “raças” indígenas objetivando o progresso coletivo da nação. O presidente também chamou atenção para a dimensão continental da questão indígena, assim como o pertencimento dos indígenas a uma classe social na tarefa coletiva de produção, ou seja, assim como os mestiços, os indígenas também eram parte importante na produção de riquezas do México e, por conseguinte, no progresso da nação (SANCHEZ, 1999, p. 40).

Nesse primeiro Congresso Indigenista realizado em Pátzcuaro, foram criadas as metas oficiais das políticas indigenistas. Alejandro Marroquín em sua obra “Balance del indigenismo” publicada pelo Instituto Nacional Indigenista em 1972 resumiu as recomendações oficiais no capítulo “Metas oficiales del indigenismo”. De acordo com Marroquín, no âmbito político o congresso recomendou a criação, em cada país, de órgãos para tratarem dos assuntos indígenas. Outra

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determinação importante de ser analisada é a econômica no qual recomendou-se que não se mantivessem os indígenas na produção agrícola, mas que os orientassem para a indústria. De acordo com Marroquín o Congresso colocou a meta de “que no se pretenda mantener el índio em la agricultura; que cuando sea conveniente se le canalice para la indútria” (MARROQUÍN, 1972, p. 24).

A intenção dessa resolução seria a de fortalecer a disciplina dos grupos e conservar os aspectos tidos como positivos deles, ou seja, aqueles que estivessem de acordo com as aspirações nacionais. O desenvolvimento das comunidades deveria ser guiado visando a integração indígena à vida nacional de cada país. Para realização de todas essas tarefas, reuniões periódicas com representantes indígenas de cada país permitiriam conhecer e cooperar com a ação indigenista (BARRE, 1985, p. 36).

As elaborações desse congresso podem ser vistas como uma síntese de como se operacionalizaria a política indigenista mexicana a partir de 1940. Embora a política indigenista seja vista como uma elaboração original e adequada ao “problema indígena”, o autor Hector Díaz-Polanco (1978, p. 20) afirma que na verdade a ação indigenista respondeu à prática do sistema capitalista em geral, que tenta um constante processo de assimilação e destruição das demais formas de contato. Podemos notar a pertinência de tais ideias ao tomarmos como referência algumas resoluções do congresso de Pátzcuaro. O que se esconde por trás da ideia de melhorar a situação econômica das comunidades é o desejo de inserir os indígenas na lógica de produção capitalista. O desejo de orientá-los para os trabalhos industriais traz em seu fundo a vontade de expandir o mercado interno e incorporar ao processo de exploração técnica algumas regiões que até então haviam sido refúgio dos indígenas. Antonio Carlos Amador Gil também corrobora essa ideia ao afirmar que:

A partir dos anos de 1940 e, principalmente a partir dos anos de 1950, podemos citar, como exemplos desta política, os assentamentos étnicos em zonas periféricas, as “regiões de refúgio”, os projetos hidrelétricos e industriais e outros, que visavam eliminar a semi-

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independência econômica e a identidade cultural dos grupos indígenas, para convertê-los num proletariado rural, isto é, numa massa com consciência de classe, mas desprovida de qualquer sentido significativo de identidade étnica (GIL, 2012, p. 311).

Nessa perspectiva podemos entender o indigenismo também como um recurso utilizado pelo governo e pelas elites para perpetuar e reforçar o sistema de poder estabelecido. O limite das mudanças engendradas pelos programas indigenistas seria o de não alterar nem colocar em perigo a estrutura de poder nem os canais de exploração econômica que caracterizavam a sociedade majoritária (WARMAN, 1970, p. 31).

Podemos entender o Congresso de 1940 como um marco na transformação da política indigenista que, antes dele, atuava principalmente no plano da educação, e após o congresso passou para uma dimensão de introdução à produtividade, ao consumo e ao desenvolvimento tecnológico (BÁEZ-JORGE, 2012, p.23). As campanhas de alfabetização empreendidas durante a década de 20 e 30 no México devem ser inseridas no contexto da tentativa dos governos de fundarem um novo pacto social pós revolução e acelerar o processo de desenvolvimento econômico. Via-se na educação o instrumento certo para alcançar uma integração nacional e uma assimilação dos elementos tidos como marginais. Nesse cenário o professor foi tido como de suma importância na mediação do processo de integração. Um exemplo disso foram as grandes campanhas de alfabetização que foram apresentadas como cruzadas contra a ignorância, como as missões culturais de José Vasconcelos.

A partir da década de 1940 a política indigenista ganhou novos contornos. A antropologia passou a ser o caminho para as políticas integracionistas. Sendo assim, ela foi concebida no México como parte de um grande projeto para criar a sociedade nacional baseada na homogeneização guiada pelo Estado. A antropologia serviu como instrumento para a aculturação e assimilação das diferenças no continente americano e como parte de um projeto de Estado para elaboração da identidade nacional (PUIG, 2012, p. 2).

Os antropólogos foram vistos como principais agentes sociais

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e mediadores do processo de mudança sociocultural, e, no caso mexicano, como os executores das políticas públicas de mestiçagem. Para esses intelectuais a função da antropologia enquanto servidora do Estado mexicano era necessária. Essa fusão daria um caráter científico às ações governamentais. Ao mesmo tempo caía-se numa contradição, pois ao passo que alguns indigenistas afirmavam uma vontade de dar voz às culturas indígenas, eles ocupavam importantes cargos políticos e administrativos nas mais diferentes instituições de difusão e aplicação do discurso integracionista estatal.

A valorização da antropologia nessa época pode ser comprovada pela criação de diversas escolas e institutos de antropologia no México que objetivavam pensar os problemas do país. Uma das escolas criadas foi a Escola Internacional de Arqueologia e Etnologia das Américas (EIAEA) criada no final de 1910, que apesar dos esforços dos antropólogos que estiveram em sua direção, como Franz Boas (1911-1912), Jorge Engerrad (1912-1913), Alfred Marston Tozzer (1913-1914) e Manuel Gamio (1915), encerrou seu programa em 1915 devido às instabilidades políticas advindas da Revolução Mexicana. Em 1937 o ensino de antropologia foi reintroduzido a partir da fundação do Departamento de Antropologia (DA), do Instituto Politécnico Nacional (IPN). Esse Departamento já em 1938 passou a ser vinculado ao Instituto Nacional de Antropologia e História (INAH) que também criou a Escola Nacional de Antropologia e História (ENAH) que até a atualidade exerce papel de suma importância nos estudos antropológicos. Em 1950, visando aumentar seu quadro de profissionais, o Instituto Nacional Indigenista (INI) firmou um convenio com a ENAH para que esta oferecesse o curso de Antropologia Social Aplicada, com ênfase nas questões indígenas. Os alunos interessados podiam exercer suas práticas dentro das regiões indígenas trabalhadas pelo INI, e, além disso, ao final de sua formação poderiam conseguir cargos dentre desse órgão. Nota-se com isso que a integração almejada pelo indigenismo dos anos 1910 à 1940 teve como principal mediador a figura do professor, no entanto a partir de 1950 é o antropólogo que ganha destaque na mediação (CASAS MENDONZA, 2005, p. 196).

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As teorias racialistas do século XIX permitiram a elaboração de esquemas que hierarquizavam as sociedades, sob as denominações de inferiores e superiores, e permitiam estabelecer graus de progresso em que cada uma se encontrava. Como vimos, essas ideias foram usadas na tentativa de assimilar as populações indígenas e os integrar à sociedade nacional. Esse processo de assimilação implicava o abandono por parte dos indígenas de suas características culturais vistas como negativas e responsáveis pelo atraso mexicano. O congresso de 1940 expressou uma mudança de atitude ao rechaçar tais teorias baseadas no evolucionismo cientifico para adotar, pelo menos ao nível teórico, a perspectiva do relativismo cultural de origem norte- americana.

A concepção evolucionista será vista como etnocêntrica para doravante buscar uma integração dos indígenas à sociedade nacional respeitando aspectos de sua cultura. No entanto, os integracionistas logo se darão conta da contradição entre o respeito às culturas e a necessidade do Estado de implementar projetos de integração. Afinal, se levassem em conta o absoluto respeito à cultura indígena, o ideal de homogeneização buscado pelo Estado-nação moderno ficaria totalmente comprometido. Diante de tal situação, os antropólogos integracionistas logo buscarão, mesmo que de forma implícita, reintroduzir velhas ideias do etnocentrismo a que tanto haviam criticado. Com isso, as culturas indígenas só passarão a ser respeitadas nos aspectos que não contrariavam a formação da cultura nacional.

As determinações do Congresso de Pátzcuaro resultaram na criação do Instituto Indigenista Interamericano (III). Moisés Sáenz foi nomeado primeiro diretor desse órgão, cargo que ocupou até 1942 quando Manuel Gamio assumiu a direção e se manteve até sua morte em 1960. Segundo as atas do Congresso de Pátzcuaro, algumas das tarefas do III seriam: resgatar o patrimônio cultural indígena; melhorar suas condições de saúde e educação; lutar contra a discriminação racial; defender a propriedade das terras e sua reforma agrária; defender o patrimônio cultural preservando a

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memória histórica dos povos indígenas; preservar a arte indígena; vincular a medicina tradicional à ocidental buscando-se sempre métodos preventivos e campanhas de alfabetização em língua materna.

Esses eram os objetivos oficiais do III, no entanto, é preciso confrontá-los com a prática e os interesses por trás dessas metas. Fala-se em preservação dos valores indígenas, no entanto, só há vontade de preservar os valores que coincidem com a cultura nacional homogênea, dominada pelos valores mestiços. Os demais valores indígenas foram sempre vistos como distantes e folclóricos, como peças de museus a serem preservadas, mas nunca tomadas como condizentes com a realidade e a contemporaneidade. A ideia central indigenista era a de educar os indígenas para que eles abandonassem seus hábitos vistos como atrasados e incompatíveis com a cultura nacional moderna. Podemos questionar até mesmo a ideia de que a ação indigenista empreendida dentro das comunidades era destinada à população indígena já que a finalidade última de tais empreendimentos visava a formação da nação homogênea por intermédio do que os indigenistas chamavam de aculturação (BONFIL BATALLA, 1981, p. 91).

De acordo com Henry Favre, os trabalhos do Instituto Indigenista Interamericano, basearam-se em três princípios fundamentais. O primeiro é de que a questão indígena é de interesse público e urgente, por isso todos os governos devem dar prioridade a ela. O segundo princípio é que tal questão não é de ordem racial, mas de natureza cultural, social e econômica. O último princípio diz respeito à defesa dos direitos indígenas e garantias de que eles terão assegurado o acesso ao progresso econômico e aos recursos modernos ocidentais (FAVRE, 1998, p.104).

Após a criação do Instituto Indigenista Interamericano em 1940, cada país deveria criar seu próprio instituto indigenista. Já em 1943, Colômbia, Equador e Bolívia criaram seus institutos nacionais. A partir daí, outros países como Peru, Argentina, Guatemala e Costa Rica seguiram o mesmo modelo. Seguindo as orientações do

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Congresso de Pátzcuaro, foi criado no México, em 1948, o Instituto Nacional Indigenista (INI). A criação desse instituto fez parte de um projeto associado ao desenvolvimentismo do governo de Miguel Alemán (1946 – 1952) marcado pelo chamado “milagre econômico”, período de forte industrialização baseado na substituição de importações no México. A função desse instituto seria a de elaborar e aplicar a política indigenista no México, através da investigação das comunidades indígenas (BARRE, 1998, p. 104).

De acordo com Casas Mendonza, três princípios nortearam as práticas do INI: a racionalidade das práticas a serem estimuladas, o enfoque regional e o caráter integral dos programas, isso quer dizer que o desenvolvimento deveria atingir um leque de ações (saúde, educação, economia, comunicações, entre outras). Em suma a atuação do INI deveria ser planificada, atingir diferentes campos, e ser aplicada a uma região, mas entendida como um todo articulado (CASAS MENDONZA, 2005, p. 175).

A participação dos antropólogos se tornou vital, pois se considerava que o modelo anterior, que dominou durante a etapa incorporacionista, tinha fracassado por não ter levado em consideração as diferenças socioculturais e os contextos regionais. A direção do INI foi dada ao já destacado antropólogo Alfonso Caso.

Alfonso Caso se formou em Direito na Universidad Nacional Autónoma de México em 1919. Entre 1918 e 1940 foi professor de filosofia da Unam e da Escola Nacional de Leis da Universidade de Chicago. Seu interesse pela arqueologia era latente, tanto que, entre 1930 e 1933 se tornou diretor do Departamento de Arqueologia do Museu Nacional. Uma de suas contribuições mais importantes foram as investigações das culturas zapotecas e mixtecas (NÚÑES LOYO , 2000, p. 34).

Caso buscou definir a população indígena para saber a quem dirigir os esforços integracionistas. Para ele, a definição de índio não poderia ser rigorosa nem absoluta e deveria ser resultado da análise do processo de mestiçagem biológica e, principalmente, cultural. Isso levou a reformulação da imagem do indígena no mundo

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acadêmico. Suas ideias foram influenciadas por figuras como Robert Redfield, que realizou uma investigação sobre Tepoztlán, e Radccliffe Brown, ambos da Universidade de Chicago. Como diretor do INI, Alfonso Caso pretendeu definir quem eram os indígenas do México, para assim poder determinar a quem seria dirigida a ação do INI. No entanto, para Alfonso Caso, os estudos sobre as comunidades impossibilitou a definição do indígena como indivíduo isolado, mas somente como parte de uma comunidade. Esse autor buscou definir o indígena através da comunidade, ou seja, não como indivíduo, mas como um ser integrante de um grupo que com ele compartilha seus valores e seu sentimento de pertencimento, logo a comunidade em seu conjunto é que deveria receber as ações do INI (NÚÑES LOYO , 2000, p. 36). De acordo com Margarita Nolasco Armas (1981, p. 71), Alfonso Caso utilizou quatro critérios para definir os indígenas: o biológico (pessoas com características físicas não europeias), o cultural (grupos que utilizam objetos, técnicas, ideias e crenças de origem pré-hispânica, ou de origem europeia mas adotados e adaptados comoindígenas), o linguístico (pessoas que falam idiomas indígenas) e o sociológico (indivíduos que se sentem parte da comunidade indígena). Sobre a definição do indígena, Alfonso Caso postulou que:

Es indio todo individuo que siente pertenecer a una comunidad indígena; que se concibe a sí mismo como indígena (consciencia de pertenencia) porque esta consciencia de grupo no puede existir sino cuando se acepta totalmente la cultura del grupo; cuando se tienen los mismos ideales étnicos, estéticos, sociales y políticos de grupo; cuando se participa de las simpatías y antipatías colectivas y se es de buen grado colaborador en sus acciones y reacciones. Es decir que es indio el que se siente pertenecer a una comunidad indígena (CASO, 2000, p. 37)

Para Alfonso Caso a discriminação social contra os indígenas os impediam de se expressarem e de se desenvolverem economicamente. O conjunto das comunidades é que deveriam receber os benefícios dos programas integracionistas. Como diretor do INI, Caso teve a tarefa de dar forma e conteúdo ao instituto. Sua função principal foi a de criar um aparato governamental capaz

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de integrar os indígenas, melhorar suas condições de vida e dar verdadeiro valor à comunidade e à arte indígena dentro da cultura nacional (NÚÑES LOYO , 2000, p. 37). Seus esforços passaram pela promoção dos trabalhos artesanais, e o empenho de capacitar as comunidades indígenas, e não só o indivíduo. Uma vez definida as características das comunidades indígenas, deveria então integrá-las a outras comunidades indígenas e mestiças. A integração significaria também descartar os aspectos indígenas vistos como negativos, como as velhas técnicas de cultivo, as práticas vistas como bruxaria, assim como também impedir a marginalização dos indígenas, e cultivar os aspectos tidos como positivos, tais como a produção artística, a vestimenta, as festas tradicionais e outras (NÚÑES LOYO , 2000, p. 35).

Alfonso Caso se interessou por uma integração cujo conhecimento das comunidades seria fundamental. A princípio se deveria estudar e analisar as comunidades para depois criar vias de integração. Vale a pena analisar o projeto de aculturação proposto por Alfonso Caso. Segundo ele:

Existen grupos atrasados que forman comunidades a las que hay que ayudar para lograr su transformación en los aspectos económico, higiénico, educativo y político; es decir, en una palabra, la transformación de su cultura, cambiando los aspectos arcaicos, deficientes- y en muchos casos nocivos, de esa cultura- en aspectos más útiles para la vida del individuo y la comunidad. Lograr esta transformación es lo que se llama aculturación (CASO, 2000, p. 37).

Segundo Consuelo Sanchez (1999, p. 42), Caso afirmava que a ação integracionista consistia em “uma aculturação planificada pelo Governo Mexicano”. A integração que propôs Caso implicava em transformações culturais e econômicas das comunidades indígenas. Essa definição de aculturação deixa claro que, para os antropólogos integracionistas, muitos aspectos da cultura indígena eram nocivos ao projeto de nação mexicana, por isso havia urgência de transformá-los. Para efetivar essa ideia, Caso afirmava que os indígenas deviam se colocar sob direção e controle do Estado mexicano. Somente quando a comunidade tivesse aceitado as trocas culturais indispensáveis é que acabaria a sujeição dessas comunidades ao Estado. Nesse

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caso, quando os indígenas tivessem assimilado a cultura nacional e tivessem desaparecido os inúmeros grupos étnicos, a política indigenista assim como o INI desapareceria.

Vale ressaltar que a teoria da aculturação dominou o cenário das políticas públicas destinadas aos indígenas. Diversos antropólogos mexicanos dissertaram sobre o tema, como Manuel Gamio, Alfonso Caso, Moisés Sáenz e Gonzalo Aguirre Beltrán. Apesar das divergências em alguns detalhes, todas essas formulações foram elaboradas a partir dos estudos vigentes nas universidades norte-americanas onde se destacavam nomes como os de Melville J. Herskovits, Robert Redfield, Ralph Linton e George Foster. De modo geral, esses autores afirmaram que a inter-relação entre culturas distintas, produz um processo de assimilação que dá origem a uma nova cultura resultado dessa síntese. No caso mexicano a cultura que resultaria dessa síntese seria a mestiça que sobreporia seus valores aos indígenas. O que intencionava o INI e seus antropólogos dirigentes era acelerar esse processo através de ações dirigidas pelo Estado (PUIG, 2012, p. 2).

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A estatização da Estrada de Ferro Leopoldina sob a ótica do movimento

sindical (1951-1953)Celio Teixeira Alves Gusmão1

IntroduçãoO presente trabalho teve como objetivo analisar os jornais

Imprensa Popular e Última Hora para abordar a estatização da Estrada de Ferro Leopoldina sob a ótica do movimento sindical de 1951-1953. Ao analisar, o jornal Imprensa Popular, o qual era o jornal do PCB, Partido Comunista do Brasil, concluí-se que o projeto do partido era posto em prática organizando a base dos trabalhadores da Empresa. As denuncias feitas, pelo jornal, tinha como foco, que os trabalhadores tomassem consciência da sua realidade e direcionassem as lutas para a direção da Empresa. Durante a pesquisa ao Jornal, nota-se que essas lutas são ampliadas, a partir das reivindicações pelo aumento de salário passa para o âmbito de outras instituições, exemplo quando os funcionários da Leopoldina brigam para se enquadrarem como servidores públicos e autárquicos na comissão que existia. A postura do Jornal Última Hora era de corroborar com o trabalhismo empregado por Getúlio Vargas. A forma de apoiar as reivindicações do Sindicato pela JCJ era a forma legal e sempre evitar ao máximo o conflito, no qual Vargas seria o mediador desse conflito. Os temas tratados serão condição de trabalho, sindicato, sindicalismo num sentido mais amplo, o PCB na Leopoldina, a empresa Estrada de ferro Leopoldina e a política num sentido mais amplo. Para analise metodológica foi utilizado Adam Przeworsky e E. P. Thompson, os quais nos trazem uma concepção da formação da classe trabalhadora que será debatida.

A Estrada de Ferro Leopoldina foi construída a partir de 1873 e inaugurada em 1886, incorporou diversas empresas de menor porte, espalhando-se por vastas extensões territoriais dos estados

1 Graduado em História pela Universidade Federal do Espírito Santo.

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de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro, superando 3 mil quilômetros, transportando cargas, encomendas e passageiros. Em 1890, a Companhia E. F. Leopoldina adquiriu várias linhas, a saber: Carangola, Ramal de Itabapoana, Ramal de Patrocínio, Araruama (Tronco), Estrada de Ferro Grão Pará, Norte, Juiz de Fora a Piáu, Central de Macaé, Imbetiba a Campos, Campos a São Sebastião, Santo Antonio de Padua, Ramal Férreo de Cantagalo e Santo Eduardo a Cachoeiro de Itapemirim. Em primeiro de julho de 1895, foi inaugurada a estação de Mimoso, na estrada de ferro Santo Eduardo a Cachoeiro de Itapemirim. Em 1891, a extensão total da rede da Companhia Estrada de Ferro Leopoldina era de 2.127, km582, sendo 884, km 117 da Rede Mineira, 1.246, km465 da Rede Fluminense e 37 quilômetros da Rede Espírito-santense, segundo Edmundo Siqueira (1938). A E. F. Leopoldina, vale lembrar, passou por vários governos, dentre os quais, inicia-se no final do Brasil Império e posteriormente Brasil República.

Com os desdobramentos dos fatos narrados acima, em 06/12/1897 foi organizada em Londres a The Leopoldina Railway Company Ltd. Autorizada no ano seguinte, pelo Decreto n. 2.797, de 14/01/1898, a funcionar no Brasil. Seus diretores eram ingleses. Essa empresa, obrigada pelo contrato a cumprir os acordos realizados com as empresas incorporadas, assumiu todos os bens e empreendimentos da E. F. Leopoldina. Com a ajuda do governo e com o passivo existente, construiu e reformou a empresa. Com novas concessões, prolongou os trilhos até Vitória, no Espírito Santo. De Ponte Nova, a ferrovia estendeu-se até Raul Soares e de Carangola a Manhuaçu. A Leopoldina recebeu 2.118 quilômetros de linha, construiu 618 e adquiriu 280 quilômetros.

A cidade de Cachoeiro do Itapemirim foi o ponto final de um dos ramais. Cachoeiro também era grande produtor de café e dali escoava a produção para outras regiões. E havia o trânsito de passageiros que permitia a comunicação com as cidades de Campos e o Rio de Janeiro.

Até 1920, a empresa continuou sendo uma ferrovia cafeeira,

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quando o valor dos laticínios ultrapassou o valor do café. Com salários baixos, condições de trabalho péssimas e perseguições dentro da empresa por parte da diretoria aos ferroviários que reivindicavam melhores condições de trabalho, as greves eram constantes e também constantes as intervenções federais para solucionar conflitos trabalhistas e os déficits. Esses fatores associados à queda do café foi um dos “pecados capitais” cometido pela empresa. Por volta de 1948, havia um total de 2.546 trabalhadores nas estações, distribuídas nas funções de: chefe de estação; ajudantes de estação; fiscais de rodízio; porteiro; guarda salão; cabineiros; bagageiros; manobreiros de pátio; guarda-chaves; trabalhadores; guarda passagens; vigias e folgadores; distribuídos em 307 estações; 200 paradas e 35 postos telegráficos.

Decidida a encampação, as negociações efetuaram-se entre os anos de 1948 e 1949, nas cidades do Rio de Janeiro e Londres. A direção da empresa empenhava-se em garantir um preço de 11 milhões de libras, mas a proposta do Ministério da Viação (aceita pelo Ministro da Fazendo e pelo presidente Dutra) era o de não pagar mais de 7,5 milhões de libras. Havia uma “oposição ácida às negociações” no próprio governo, no mundo da política e dos negócios no Brasil. Os ingleses acreditavam que, por conta dos temores quanto à situação trabalhista na empresa, o governo acabaria aceitando um preço alto. No final de 1948, conforme a expectativa dos britânicos, o governo estava disposto a aumentar o valor. No acordo final, ficou a União responsável por todos os encargos financeiros da empresa, sendo designado um administrador geral para atuar junto à diretoria inglesa, a partir de 30 de abril de 1949. Isto é o que nos coloca a historiadora Dilma Andrade de Paula (2000) em sua tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense com o título: Fim de linha. A extinção de ramais da Estrada de Ferro Leopoldina, 1955-1974.

Pela Lei 1.288, de 20/12/1950, a Leopoldina Railway foi encampada e seu nome oficial passou a ser novamente Estrada de Ferro Leopoldina. O governo brasileiro pagou 10 milhões de libras

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esterlinas pela estrada de ferro, com todo seu material fixo e rodante, instalações auxiliares, bem como todas as propriedades imobiliárias da Companhia do Brasil, estranhas à via férrea. Combinou-se que o material do almoxarifado e dos armazéns de abastecimento seria pago pelo preço de custo. O Governo desobrigava a Empresa de ônus.

Literatura sobre o temaNesta pesquisa, foram utilizados dois autores para o

embasamento: o cientista político Adam Przeworski e o historiador Edward Palmer Thompson. Os dois tratam da formação da classe trabalhadora. Przeworski será importante para entender como a base do operariado da ferrovia E. F. Leopoldina consegue eleger um deputado a partir de uma liderança vinculado ao PCB. Já Thompson mostra que a formação da classe trabalhadora é um processo histórico, que se constrói. Diz que a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe, a qual dependera da exploração, percepção, cultura, cotidiano, a luta de classe.

Przeworski (1991) discute o processo de formação de classes. Inicia dizendo que há dificuldades encontradas pela teoria marxista em analisar a estrutura de classes de sociedades capitalistas concretas já se haviam revelado na época da formação do movimento socialista. Segundo, Marx os processos de formação de classes são vistos como uma transição necessária de uma “classe em si” para uma “classe para si”, formulação essa em que as relações econômicas são classificadas como condições objetivas e todas as outras relações são consideradas como pertencentes a esferas de ações subjetivas. Contudo, Przeworski, em vez de tomar essa formulação por base sugere outra, concebida por Marx, de que as condições econômicas, políticas e ideológicas estruturam conjuntamente a esfera das lutas que tem como resultado a organização, desorganização e reorganização de classes. Assim sendo, as classes devem ser consideras como efeitos de lutas estruturadas por condições

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objetivas que são ao mesmo tempo de ordem econômica, política e ideológica. A partir dessa formulação, Przeworski afirma que uma conseqüência necessária do desenvolvimento capitalista é o fato de que uma certa quantidade de força de trabalho socialmente disponível não encontre emprego produtivo e essa força de trabalho excedente pode torna-se socialmente organizada de várias formas, as quais não são determinadas pelo processo de acumulação, mas sim diretamente pela luta de classes.

Przeworski diz que a ambivalência encontrada no conceito de proletariado proposto por Marx encontra-se na própria dinâmica do desenvolvimento capitalista por ser uma transformação continuada. Cito o autor:

O desenvolvimento capitalista transforma continuamente a estrutura de lugares no sistema de produção e realização do capital, bem como em outros modos de produção que passam a ser dominados pelo capitalismo. Mais precisamente, a penetração do modo de produção capitalista em todas as áreas de atividade econômica resulta na separação de vários grupos da propriedade dos meios de produção ou da efetiva capacidade de transformar a natureza em produtos úteis. Ao mesmo tempo, a crescente produtividade do trabalho diminui, em termos relativos, a utilização da força pelos capitalistas. Em conseqüência, o processo de proletarização no sentido de criação de lugares de trabalhadores produtivos. Essa divergência gera relações sociais que não se enquadram nos termos das classes do modo de produção capitalista, pois conduz exatamente à separação das pessoas de qualquer processo de produção socialmente organizado (PRZEWORSKI , 1991, p. 79).

Portanto, Przeworski argumenta que “proletarização” é um conceito de duplo significado. Em termos da destruição de lugares na organização da produção pré-capitalista e nos primórdios do capitalismo significa separação da propriedade dos meios de produção e da capacidade de transformar a natureza em recursos próprios. Porém, em termos de criação de novos lugares no interior da estrutura do capitalismo desenvolvido, o termo proletarização não denota necessariamente a criação de novos lugares relativos a trabalho produtivo manual. Pois a criação de novos lugares por uma variedade de grupos de status ambíguo não necessariamente precisa

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ser de novos lugares relativos a trabalho manual produtivo. E o autor irá falar que esse hiato que existe na conceituação de proletarização aumentou.

O autor procurará mostrar que a questão da identidade de classe dos trabalhadores não-manuais obriga-nos a reconsiderar toda a problemática da formação de classes. Como agentes históricos, as classes não são determinadas unicamente por posições objetivas, nem mesmo a de operários e capitalistas. Portanto, Przeworski afirmara que a própria relação entre agentes históricos (classes em luta) e os lugares nas relações de produção deve torna-se problemática:

As lutas de classes não tem o caráter de epifenômenos e nem são livres de determinação. São estruturadas pela totalidade das relações econômicas, políticas e ideológicas, e produzem um efeito autônomo sobre o processo de formação de classes (PRZEWORSKI, 1991, p. 86).

E o autor irá argumentar que as posições nas relações de produção, ou quaisquer outras relações, não são mais, portanto, consideradas objetivas no sentido de serem anteriores às lutas de classes. São objetivas apenas na medida em que tornam os projetos específicos realizáveis ou não. E aqui o mecanismo de determinação não é único, vários projetos podem ser viáveis em uma dada conjuntura. E finaliza dizendo que as classes são efeito de lutas que ocorrem em uma determinada fase do desenvolvimento capitalista. Devemos compreender as lutas e o desenvolvimento em sua articulação histórica concreta, como um processo.

Portanto, o autor argumentará que o processo de formação de classes se dá no decorrer de lutas, que são estruturadas por condições econômicas, políticas e ideológicas sob as quais ocorre, e que essas condições objetivas, simultaneamente econômica, política e ideológica, moldam a prática de movimentos que procuram organizar os operariados em classe. Przeworski irá citar Marx e Gramsci a respeito como essas praticas se moldam.

Como afirmou Marx, e Gramsci não se cansou de repetir, é na esfera da ideologia que as pessoas tomam ciência das relações sociais. Aquilo em que passam a acreditar e o que fazem é efeito de um longo

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processo de persuasão e organização por forças políticas e ideológicas engajadas em numerosas lutas pela realização de seus objetivos. As classes não antecederam a prática política e ideológica. Qualquer definição das pessoas como operários ou indivíduos, católicos, francófonos, sulistas, etc. – é necessariamente inerente à pratica de forças políticas engajadas em lutas para manter ou alterar de várias maneiras as relações sociais existentes. As classes são organizadas e desorganizadas em conseqüência dessas lutas contínuas. Partidos que se definem como representantes dos interesses de várias classes e partidos que se pretendem representantes do interesse geral, sindicatos, jornais, escolas, burocracia oficial, associações civis e culturais, fabricas e exércitos e igrejas - todos participam do processo de formação de classes no decorrer de lutas que dizem respeito fundamentalmente à própria divisão da sociedade.

Przeworski cita Thompson, o qual vai concordar com sua definição que a classe é definida pelos homens ao viverem sua própria historia e, no fim, essa é a única definição. Mas explica que não quer dizer que as classes se organizem espontaneamente, significa que as classes são efeitos contínuos da totalidade das lutas, lutas essas que assumem formas especificas conforme a organização das relações econômicas, políticas e ideológicas. A política e a ideologia têm um efeito autônomo sobre os processos de formação de classes porque condicionam as lutas no decorrer das quais as classes são organizadas, desorganizadas e reorganizadas. O autor cita Rosa Luxemburgo, a qual consegue esclarecer melhor a divisão entre luta política e luta econômica na democracia capitalista:

No desenvolvimento pacifico “normal” para a sociedade burguesa, a luta econômica é fracionada, desagregada em um sem-número de lutas parciais limitadas a cada empresa, a cada ramo da produção. Por outro lado, a luta política é conduzida não pelas massas por intermédio da ação direta, mas, em conformidade com a estrutura do Estado Burguês, no estilo representativo, pela pressão sobre o corpo legislativo (PRZEWORSKI , 1991, p. 92).

A partir desse Estado Burguês, os operários se organizam em classes. Przeworski explica que o movimento socialista tem por objetivo buscar essa classe operária, mas que, para ganhar uma

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eleição, é necessário ampliar o termo de classe operária e abarcar essa nova classe que surgiu, segundo o autor, em meados do século XIX nas sociedades capitalistas concretas. Portanto o autor diz que não é o proletariado que está sendo organizado como classe, e sim uma variedade de pessoas, algumas das quais estão separadas do processo de produção. Os processos de constituição dos operários em classe não ocorrem no vácuo, são inextricavelmente vinculados às totalidades dos processos pelos quais coletividades surgem em luta em determinado momento da história. As classes são formadas como efeitos de lutas, à medida que lutam, transformam as condições sob as quais se formam as classes.

Przeworski segue individualismo metodológico para analisar a classe. Seus membros, a partir de escolhas que os indivíduos fazem, norteiam sua escolha para se identificarem como operários ou não, cooperar com outros operários ou não, votar em um partido socialista ou não, mesmo pertencendo ao objetivamente ao operariado.

Thompson (1987) afirma que a classe é um processo histórico se constrói a partir de sua vivência e experiência a partir da luta de classes, diferentemente de Przeworski. Cito uma parte do inicio do prefácio, onde o autor entende por classe:

Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. Não vejo a classe como uma “estrutura”, nem mesmo como uma “categoria”, mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas (THOMPSON, 1987, p. 9).

O autor fala o que acontece quando alguns homens, como resultados de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem e geralmente se opõe ao seu. A consciência de classe afirma que é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe, elas surgem em tempos e lugares diferentes,

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mas nunca exatamente da mesma foram. Thompson ira explicar que, se examinarmos homens durante um período da história de mudanças sociais, veremos padrões em suas relações, suas ideias e instituições. Portanto, o autor entende a classe operária como uma formação social e cultural, surgindo de processos que só podem ser estudados quando eles mesmos operam durante um considerável período da história. Portanto, tanto Przeworski quanto Thompson nos trazem uma visão heterodoxa e inovadora sobre o marxismo.

Análise das fontesNo presente estudo, foram pesquisados dois jornais: Imprensa

Popular e Última Hora, que são disponibilizados na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Ambos eram localizados na cidade do Rio de Janeiro, capital do Brasil à época. O recorte da pesquisa realizou-se nos anos de 1951 a 1953. Primeiramente, importa situá-los nessa pesquisa, pois ambos tinham visões diferentes naquele momento. O Imprensa Popular era uma publicação de esquerda, que focava aspectos da vida da classe trabalhadora, noticiava seus problemas e criticava o Governo. Este jornal tinha um cunho político. Sendo ligado ao PCB, o jornal era visto como uma ferramenta para difundir as suas ideias. Via-se claramente no seu noticiário, por exemplo, propagandas eleitorais de candidatos filiados ao partido. Neste momento, o PCB encontra-se na ilegalidade mais uma vez, de forma que um órgão como este servia ao propósito de divulgar o seu projeto político. Já o Última Hora funcionava como via de apoio ao Governo, ou seja, apoiava o presidente Getúlio Vargas (1951-1954). Esta postura era notória em suas manchetes. O impresso seguia uma linha próxima ao ideário trabalhista, pois, no que se refere às denúncias feitas sobre condições de trabalho do operariado, a forma típica de argumentação remetia à mediação do poder de Estado para buscar a solução de problemas. Aumentos de salários deveriam dar origem a processo de dissídio coletivo na Justiça do Trabalho, por exemplo. A via legítima era concebida no campo desta forma legal de reivindicação dos funcionários das Empresas e, assim, evitando

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o conflito aberto. Portanto, o projeto de Nação do varguismo, era priorizado no Última Hora.

A leitura do Imprensa Popular sobre a Estrada de Ferro Leopoldina em 1952 permitiu revelar seis temas: 1) Condição de trabalho; 2) Sindicato; 3) Sindicalismo em sentido mais amplo; 4) O PCB na Leopoldina; 5) A Empresa Estrada de Ferro Leopoldina; 6) Política num sentido mais amplo. A seguir, tratarei dos seis temas.

A E. F. Leopoldina passou por grandes mudanças durante o Governo de Getúlio Vargas. O tema tratado será sobre a estatização desta. A empresa foi encampada no Governo de Getúlio, mas a “negociata” teria ocorrido anteriormente, no Governo de Dutra. A greve de 1948, durante o Governo de Dutra, foi pela encampação da Leopoldina. Os ferroviários alegavam que a empresa Leopoldina Railway Company Ltd. não vinha cumprindo o contrato, disponibilizando um serviço de péssima qualidade aos passageiros, que as condições de trabalhos dos ferroviários eram ruins, que eram baixos os salários pagos aos funcionários, etc. Além disso, o contrato e o prazo de arrendamento findariam em 1952. Os ingleses queriam vendê-la, mas com uma indenização muito alta. Durante a Segunda Guerra Mundial, o Governo brasileiro havia acumulado créditos na sua balança comercial com o Reino Unido e desejava fazer uso dele, mas o governo britânico suspendeu a conversibilidade da libra esterlina e o crédito de £60 milhões disponível foi limitado, em 1948, apenas ao pagamento de dívidas e à aquisição de empresas britânicas de serviços públicos. A proposta do Brasil para a compra foi de £7,5 milhões enquanto a diretoria da Empresa queria £11 milhões, mas, no final da barganha, a empresa foi comprada por £10 milhões. Houve, então, uma reação nacionalista contra este pagamento, o que gerou falas de parlamentares a respeito da compra. Com a posse de Getúlio Vargas em 1951 esse tema sobre como se deu a encampação da Leopoldina se tornou corrente no Imprensa Popular e no Última Hora. Denúncias eram feitas sobre a “negociata” que resultou da atitude de muitos empresários que, sabendo de antemão da encampação pelo Governo, aproveitaram para compraram

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ações a baixo preço, auferindo grandes lucros, enquanto a estrada permanecia em péssimas condições de funcionamento.

Gerson Moura (2013) aborda esse tema. Ele constata que não é possível afirmar que a encampação da Leopoldina tenha sido uma negociata com as evidencias e sim mais uma questão política, pelo fato do movimento de esquerda está crescendo no mundo e dentro da Empresa. Isso explica a boa vontade do Governo brasileiro em fechar o negócio, mesmo a Grã-Bretanha colocando tantos impedimentos, como aumentando o preço.

Outro fato também noticiado eram as condições de trabalho noticiadas pelo Imprensa Popular e pelo Última Hora. Os dois jornais denunciavam o caso da reestruturação dos cargos dos funcionários da Leopoldina. Segundo os funcionários, a empresa estruturou os cargos, mas não respeito critérios de antiguidade, tempo de serviço e deu um aumento significativo ao pessoal da administração. Essas eram as denúncias a respeito da reestruturação. Diante disso, os empregados reivindicaram que a diretoria respeitasse critérios impessoais. Neste sentido, é interessante notar a postura dos dois jornais. O Última Hora noticiava o quadro da estruturação com o viés político do trabalhismo, afirmando ser necessário que os funcionários que se sentissem prejudicados dessem entrada com processos na Justiça do Trabalho. Diante da situação, a via legal seria a mais adequada. Já o Imprensa Popular noticiava com outra ótica. Ele denunciava o não pagamento de direitos trabalhistas, como o salário família, a licença-prêmio, o desrespeito ao horário de almoço, o corte das diárias para os que trabalhavam nos trens em longas viagens, as escalas de serviço que desconsideravam o descanso entre os turnos e a existência de níveis salariais distintos para os que realizavam as mesmas tarefas, como maquinistas e foguistas, os critérios de promoções não respeitados pela empresa. Desta forma, refletindo a leitura do PCB, o foco se dirigia para as medidas da empresa que buscavam desunir os trabalhadores. Ou seja, mecanismos de disciplinarização da mão-de-obra para combater a solidariedade dos funcionários.

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Durante a pesquisa no Imprensa Popular outro aspecto que evidenciou a presença do PCB na empresa foi a guinada na atitude de não mais apoiar o sindicato. Até a metade do ano de 1952, o jornal apoiava as atitudes do sindicato, mas, com a chegada para eleição sindical, ele mudou de postura e passou a criticar abertamente a direção, pois se preparava para disputar o comando da entidade. O PCB apoiava as lutas e reivindicações dos funcionários. Ele agia na base da empresa, organizando e politizando-a. Especificamente, no jornal, surgem dois movimentos paralelos: uma era um memorial que a agremiação enviou às autoridades reivindicando aumento salarial e melhores condições de trabalho. O outro era o da militância junto aos funcionários públicos e autárquicos, que haviam se unificado em torno de uma pauta única de aumento. O memorial era enviado à diretoria da empresa e outro ao Presidente da República para atender as suas reivindicações. Mesmo que não fossem atendidas, Jorge Ferreira (2011) nos mostra que esse fenômeno era uma prática comum. A partir do Estado Novo foi identificada a prática de enviar cartas, telegramas e memoriais ao Presidente, que montou um serviço para dar-lhes resposta. Desta forma, no caso em questão, chegou a tal ponto de se aberto uma mesa de negociação no Departamento Nacional do Trabalho, mas que também não deu em nada.

Outro ponto noticiado pelo jornal foi a questão da CAP, a Caixa de Aposentadoria e Pensões dos Funcionários da Leopoldina. Havia a denúncia da entidade sobre o aumento que ocorreu para o financiamento de casas para os funcionários, especificamente em Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, que estava sob o comando municipal do PTB e cancelou a concessão de alguns terrenos nos quais seriam construídas casas para os respectivos funcionários. A partir daí, desenvolveu-se uma expectativa de que o sindicato desenvolvesse uma particular militância.

O presidente do sindicato dos ferroviários naquele momento era Dimpino Martins Lessa. A reportagem do Imprensa Popular chegou a enviar a reportagem a estação Central da Leopoldina, conhecida como Barão de Mauá, para saber se os ferroviários

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aprovavam o trabalho do Sindicato. Os relatos foram que aprovavam, pois estavam gostando das reivindicações pelo aumento do salário. Mas, como exposto à cima, o Jornal era neste momento, neutro quanto à diretoria do sindicato. Em novembro, porém, mudou radicalmente, ao ter conhecimento que Dimpino Lessa prosseguiu até a Estação em Campos, onde se encontrava o militante comunista Jacy Barbeto, com o objetivo de tentar recrutá-lo para campanha sindical. Ele se recusou, o que gerou perseguições, inclusive denúncias de que queriam transferi-lo para outro lugar, para, assim, conseguir desorganizar a base que o PCB vinha organizando na Leopoldina. Sabemos pelo trabalho de Leonardo Soares dos Santos (2016) que Jacy Barbeto havia sido enviado com seu irmão pelo PCB a Campos para fazer trabalho de base, o que foi bem sucedido, já que em 1963 ele foi eleito vereador. O PCB tinha grande influência em Campos e entre os ferroviários.

Portanto, quando a entidade passou a atacar a base que se organizava, o jornal mudou de atitude e iniciou o ataque a direção constituída. Antes disso, procurava defender todas as formas de lutas e reivindicações da entidade, não elogiava essa a prática típica do reformismo, mas não deixava de apoiar, tendo em vista a dura repressão desencadeada contra o PCB na empresa desde a greve de 1948. Havia uma orientação por parte dos seus militantes de apoiar qualquer forma de luta e reivindicação estabelecendo um confronto com a Empresa, mesmo que fosse apoiar uma pratica típica reformista que a entidade fazia. O PCB, a partir dessas práticas, mostra uma atitude de se aproximar da realidade dos trabalhadores e conseguir direcionar o foco de luta contra a direção da Empresa. A possível vitória para a direção sindical iria encontrar este trabalho já feito e pronto para um novo salto qualitativo.

A partir desse viés de sindicalismo empregado na empresa, de um sindicalismo construído pela base e sua relação com questões mais amplas devemos ver o tópico de sindicalismo mais ampliado. O PCB tinha seu próprio projeto político, que constava de uma leitura própria do modelo elaborado no primeiro governo de Vargas, que

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era a industrialização via estatal dos recursos naturais em aliança com o capital privado nos outros setores e acompanhando da ampliação dos direitos trabalhistas e sociais, principalmente para o campo. Os seus componentes são bem analisados por Guido Mantega (1987). O ponto do qual partia o projeto comunista era o de identificar os inimigos da modernização capitalista, base para uma futura mudança mais profunda, em direção ao socialismo. Assim, os indicados eram os latifundiários e as empresas estrangeiras (trustes), que lucravam no campo dos recursos naturais e que, portanto, atuavam contra o projeto do PCB. Entre outras palavras, lutar contra o “imperialismo” era ser a favor do monopólio estatal do petróleo e da estatização das atividades econômicas.

Os interesses dos “trustes” eram vistos como de alinhamento com o governo dos Estados Unidos em sua luta contra a URSS e os países socialistas. Sendo encarados como componentes do imperialismo, eles eram tidos como engrenagens fundamentais não só do desenvolvimento do capitalismo nos países centrais como meios para o enfrentamento econômico e militar do bloco socialista. Não é à toa que o PCB desenvolveu, na mesma época, uma mobilização pelo controle das bombas atômicas, a Campanha pela Paz, no bojo da qual também se condenava a Guerra da Coréia e a pressão dos EUA para que o Brasil dela participasse. O PCB, desta forma, identificava os inimigos: os EUA, os trustes, os latifundiários e as lideranças políticas ligadas a esses inimigos, como era o caso do próprio Getulio Vargas. Por fim, o partido via no conflito as conquistas dos direitos trabalhistas e sociais, enquanto o trabalhismo, que também preferia estimular uma visão nacionalista, via Vargas como mediador desse processo de alianças e acordos, no qual a Justiça do Trabalho e os sindicatos deveriam agir em busca da conciliação, evitando ao máximo a luta social.

O destaque pelo partido ao conflito dependia de sua capacidade de mobilização da uma base de apoio e sua politização de certa forma. Em qual sentido ele buscava fazer isso? Denunciado as condições de trabalho, ou mesmo o sindicato que, se não atendia

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aos anseios dos trabalhadores, passava a ser criticado. Mas, para solução desses problemas, era necessário que os trabalhadores entendessem que a luta precisaria se dar de uma forma mais ampla. Nesse sentido, o Imprensa Popular estimulou a categoria a aderir à Central Pró-Aumento de Salários dos Funcionários Públicos e Autárquicos. Ou seja, as denúncias pelo aumento do custo de vida, da falta de vontade do governo Vargas em enfrentar o problema e da necessidade de obter aumentos de salários e controlar preços era constante. A grande questão era a de obter níveis maiores de politização e organização, reunindo os trabalhadores em formas cada vez mais amplas e organizadas de luta. A Comissão Central cumpria um papel neste sentido. Sua pauta era a de um aumento linear para todos os servidores públicos. O sindicato assumiu essa demanda, no entanto, o governo alegou que os funcionários da Leopoldina, pela recente encampação, não poderiam perceber tais tipos de ganho, porque sua situação não estava definida em termos de pertencimento funcional à categoria de servidor público ou de autarquias. Isto dependia de um Projeto de Lei parado no Congresso. Portanto, o Governo se beneficiou de uma medida legalista para justificar o não enquadramento do funcionalismo da Leopoldina.

A postura do sindicato foi a de insistir junto ao Executivo pelo enquadramento dos funcionários da Leopoldina como autárquicos e pela concessão de um aumento específico para eles, como foi descrito acima. Este caminho recebeu destaque no Imprensa Popular, pois era coerente com uma leitura que defendia a unificação dos trabalhadores em níveis cada vez mais amplos. Nesta linha, de unidade e solidariedade, não só no interior da categoria, mas também com relação a outros setores em luta, o jornal noticiou a campanha pelo fundo de greve dos empregados nas empresas têxteis, que recebeu apoiada por parte dos ferroviários da Leopoldina. Nisso nota-se a linha do PCB entre os trabalhadores visando à solidariedade de classe entre os trabalhadores numa forma mais ampla. Vale notar que muitas das notícias deste tipo citam iniciativas que podem ter sido tomadas por grupos ligados ao partido entre os ferroviários e não necessariamente uma atitude ampla do grupo.

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Esta última observação remete às matérias no jornal que permitem identificar a presença do PCB na Leopoldina. O esforço do partido em politizar sua base contra a Guerra de Coréia e a Campanha pela Paz mostra a atuação do partido na base da empresa. Sobre este assunto, Jayme Ribeiro (2011) mostra o empenho do partido em colocar em prática a mobilização popular contra o imperialismo. A contribuição desta pesquisa, por sua vez é a de demonstrar o esforço dos comunistas em popularizar a campanha no interior das empresas nas quais ele buscava crescer. Assim, em fevereiro, o Imprensa Popular mostrou que funcionários de “diversas corporações” e da Leopoldina em particular (provavelmente uma célula de comunistas) saíram em “comando de paz”, para recolher assinaturas do Conselho Mundial de Paz. O termo “comando”, naquele momento, se referia a grupos de militantes que tinham a tarefa de mobilizar para recolher as referidas assinaturas. E, no mesmo mês, eles recolheram assinaturas para um abaixo-assinado em solidariedade a Luís Carlos Prestes. Isso mostra a organização do partido dentro da empresa. Sua prática, além de colher informações sobre as condições de trabalho e preparar uma chapa para a futura disputa pelo comando do sindicato, incluía a tentativa de conquistar apoios para lutas políticas mais amplas, tanto no plano nacional quanto internacional. Falar de Prestes, o líder máximo do PCB, pressionar por sua anistia, comemorar seu aniversário, era uma iniciativa deste tipo.

Os últimos dois temas elencados na leitura do Imprensa Popular são: a empresa Estrada de Ferro Leopoldina e a política num sentido mais geral. Os trabalhadores estavam enviando memoriais ao Presidente para readmissão dos ferroviários que foram demitidos devido à greve de 1948, dentre os quais havia militantes do PCB. Um detalhe importante é o seguinte: em 1951 deu-se a aprovação de um Decreto Legislativo por meio do qual os funcionários demitidos por motivo de greve até então recebiam anistia e poderiam voltar ao serviço. Esta medida, porém, não se deu na Leopoldina. Ou seja, os trabalhadores da Leopoldina que subscreveram o memorial estavam criticando a empresa e o sindicato, visto no episódio como um

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apêndice da administração. A perseguição a comunistas que atuaram na onda de greves de 1948, estimuladas pelo PCB após a cassação dos mandatos de seus parlamentares, se deu em vários lugares, como é o caso da Companhia Vale do Rio Doce, que, a exemplo da Leopoldina era dona de uma ferrovia e também atuava no Espírito Santo. Este processo foi estudado por pesquisadores do Laboratório de Estudos de História Política e das Ideias da Universidade Federal do Espírito Santo (LEHPI/UFES). É o caso dos trabalhos de Maísa Prates do Amaral (2014) e de André R. V. V. Pereira (2013; 2014).

André R. V. V. Pereira (2011) mostra, em outro estudo, a importância da Companhia Vale do Rio Doce no Espírito Santo. O seu papel foi de fundamental importância da modernização conservadora que se processou. Desta forma, os mecanismos de disciplinarização da força de trabalho ali desenvolvidos tiveram impacto na trajetória da classe trabalhadora local. Da mesma forma, a Leopoldina desenvolveu formas de controle semelhantes às da Vale que se mostravam visíveis no momento da pesquisa.

Além destas denúncias, outras serviam para expor a empresa. A primeira remeteu à construção de um palacete em Campos, no estado do Rio de Janeiro, por meio do desvio de materiais da empresa e funcionários na construção da obra. E a segunda se baseava nas críticas à forma como se deu a estatização da Leopoldina, feita a partir de uma negociata no governo Dutra. Neste aspecto, repete o Última Hora, mas com o detalhe de comprometer muitos empresários, que teriam sabido da encampação por antecedência, o que os levou a adquirir as ações da ferrovia por preços baixos. Desta forma, auferiram grandes lucros, enquanto a empresa permanecia em péssimas condições. O PCB era favorável a processos de estatização, mas denunciava a negociata com os ingleses e, de forma diversa do porta-voz do trabalhismo, buscava identificar alianças com o empresariado nacional, bem de acordo com a visão que separava campos de alianças entre estrangeiros e brasileiros de classe dominante que agiam de forma “entreguista”.

O último tema aparece na questão de reivindicações

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mais amplas. O aumento da majoração do custo de vida devido a isso a reivindicação pelo aumento salarial era tido como de responsabilidade de Vargas. Outra denúncia que se colocava num sentido mais ampliado se referia à atuação da Comissão Mista Brasil - Estados Unidos. Em seu livro, O Segundo Governo Vargas, Maria Celina D’Araújo (1992) mostra o papel desta entidade, constituída por técnicos norte-americanos e brasileiros, que desenvolviam estudos sobre a direção que a industrialização do país deveria seguir, como mostra Helio Silva (2007). Vale notar que o governo de Getúlio, por sua vez, formou um grupo paralelo de técnicos, com orientação diversa à da Comissão, mas não havia condições políticas de ignorá-la, devido à dependência e mesmo expectativa de ingresso de investimentos dos EUA na linha de um apoio semelhante ao Plano Marshall. No caso então da Comissão conforme o Imprensa Popular, seu objetivo era o de vender minério de ferro para construção de bombas atômicas a serem utilizadas contra os países do bloco socialista. Além disso, a ela era considerada um braço do imperialismo na empresa, devido à sua sugestão de que os custos do transporte ferroviário no país fossem sustentados com o aumento das passagens. A articulação entre os dois temas se mostra interessante na publicação. A Comissão era, ao mesmo tempo, agente de uma expropriação de riquezas nacionais, estimuladora da guerra nuclear e defensora de um aumento a ser pago pelos passageiros, apelando, neste caso, em particular, aos moradores dos subúrbios da cidade do Rio de Janeiro.

ConclusõesA finalidade desse trabalho foi a de estudar o processo

de estatização da E. F. Leopoldina, a partir da analise dos jornais Imprensa Popular e Última Hora. Pode-se concluir que o primeiro, sendo uma ferramenta de divulgação do projeto do PCB, se mostrou fiel ao seu projeto. Pouco depois dos eventos aqui narrados, uma chapa liderada pelo partido venceu a eleição para o sindicato dos ferroviários, mas não foi reconhecida pelo Ministério do Trabalho,

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convocando-se novo pleito e resultando em nova vitória dos comunistas. A entidade, presidida pelo capixaba conhecido como Batistinha, assumiu uma postura combativa nos poucos meses que conseguiu se manter no cargo, tendo sofrido intervenção do governo logo após a morte de Vargas. Somente alguns anos mais tarde o mesmo grupo retornaria ao comando da entidade.

Tudo isto nos mostra a relevância do estudo sobre o momento inicial, abordado aqui por meio dos dois jornais, que revelam propostas diversas para a base sindical da mesma empresa. O Última Hora, como demonstrado acima, corroborava apoiando o projeto trabalhista emplacado por Getúlio Vargas. Nas reivindicações dos trabalhadores, sempre destacava a resolução do conflito por meios institucionais. Num sentido de disciplinarização da mão-de-obra, esta via priorizava as formas legalistas e o apelo ao nacionalismo, em particular no sentido da denúncia da venda da empresa pelo governo anterior, o que servia para justificar as más condições encontradas e a suposta dificuldade para resolvê-las. Este entendimento foi questionado pelo PCB, que conseguiu construir uma base na empresa e disputar a representação no seu interior, mas com alguns reveses, seja por meio de formas abertas de repressão a seus militantes, seja pela disputa simbólica com o trabalhismo.

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Marketing político, estratégias de campanha e pesquisas eleitorais

Darlan Silveira Campos1

IntroduçãoNa época de eleições, o tipo de pesquisa mais divulgado é a

quantitativa. Através dela a população descobre quem está na frente nas disputas pelos cargos públicos. Elas são importantes e cumprem bem o seu papel. Entretanto, o grande público não sabe que de forma efetiva as pesquisas fundamentais para as campanhas eleitorais são as de cunho qualitativo. É através deste tipo de pesquisa que candidatos e grupos políticos montam estratégias para as campanhas eleitorais. Para a construção de um trabalho profissionalizado, seja em campanha ou mandato parlamentar, é imprescindível o uso de técnicas de coleta de dados qualitativas e quantitativas. Desde a campanha eleitoral dos governantes à divulgação de suas realizações, depois de eleitos, as ações são pensadas de maneira estruturada, planejada e profissional.

Neste trabalho, o foco está no entendimento de como as pesquisas são utilizadas durante as campanhas eleitorais e a importância delas na construção das estratégias. A utilização de pesquisas esclarece sobre determinado assunto e dá à comunicação mais subsídios para o desenvolvimento assertivo de seus objetivos.

Para Mendonça, (2001) as pesquisas eleitorais levam a todos as mais recentes percepções da população sobre um determina do fato. Funcionam como indicadores para medir o grau de aceitação dos candidatos em relação aos eleitores revelando as avaliações que as pessoas fazem dos políticos. Elas funcionam como uma fotografia da realidade em um dado momento e demonstram a dinâmica de toda a sociedade.

Na visão de Santa Rita (2002), as pesquisas são utilizadas 1 Pós-graduado em História. Diretor Executivo da República Marketing Político

(http://republicamarketingpolitico.com.br/), analista de pesquisas eleitorais do Instituto Brand Pesquisas. E-mail: [email protected]

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para fazer diagnósticos de determinadas situações, para avaliar conjunturas e cenários e conseguem mapear particularidades de regiões, de classes sociais, de determinados segmentos da sociedade: por idade, por sexo, por escolaridade. Desta forma, as pesquisas eleitorais movimentam hoje um grande número de profissionais, empregam muitas pessoas, têm custos significativos, mas são fundamentais na construção das estratégias eleitorais.

Marketing Político Cid Pacheco (1994) considera que o marketing político ainda

é cercado de desinformação, e controvérsia quanto à sua natureza e abrangência. Segundo ele, por ser uma atividade ainda relativamente recente no campo da política. Antes de tudo é necessário fazer a diferença entre o marketing político e o eleitoral. O marketing eleitoral é um fato não-político que se tornou um dos fatos políticos mais relevantes da política contemporânea, isto porque o marketing vem de fora da política e diz respeito ao mercado. Surge do mercado para o mercado. Mas, sua presença na política não deve ser vista como estranha ao mundo contemporâneo. Da mesma forma que o marketing foi uma necessidade para os mercados complexos da sociedade de consumo de massas, tornou-se necessário para a atuação política em eleitorados massivos, como os das atuais democracias liberais. Pacheco chama a atenção que “é assim que o marketing se associa à política: para atender a uma necessidade histórico-social. É chamado, não por intromissão”.

Para Ney Figueiredo (1994), a atividade de marketing político na América Latina é relativamente nova, em parte pela falta da prática de eleições. O Brasil tem se destacado nas técnicas do marketing político, estando muito mais próximo dos Estados Unidos do que da própria América Latina, sendo que as técnicas se aprimoraram a partir de 1982 com a redemocratização do país e a prática de eleições quase que de dois em dois anos, para cargos proporcionais e majoritários.

O marketing político é geralmente associado à propaganda

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propriamente dita (horário gratuito na TV), sendo o marketing político profissional um fenômeno recente. Rubens Figueiredo acredita que devido às descontinuidades do regime democrático a sua utilização foi retardada, vindo a ser utilizado com maior rigor a partir das eleições majoritárias de 1982. E, para quem pensa que foram Getúlio Vargas e Jânio Quadros os pioneiros do marketing político no Brasil, o autor ressalta,

[...] sempre tiveram sua ‘marca’, que garantia uma grande identidade com o povo. A atuação de ambos, entretanto, pouco tinha a ver com o marketing político moderno. Tratava-se da era da quase pré-comunicação de massa. E tanto um como outro seguiram muito mais seu feeling pessoal do que o conselho de especialistas ou as indicações das pesquisas (FIGUEIREDO, 1994).

Todas as técnicas de comunicação dirigida, de propaganda mercadológica e de relações públicas têm se convertido em aliados do discurso político, quando medir a opinião publica passa a ser indicador para diagnosticar a vida pública e privada. As pessoas são solicitadas a se manifestar em como eleitores, consumidores, opinião pública e trabalhadores. A opinião pública é atualmente entendida e utilizada como o espaço privilegiado de avaliação dos diferentes movimentos e sujeitos da política através das pesquisas de opinião. Outro especialista no tema, Gaudêncio Torquato Rego, destaca que,

[...] a prática política, no Brasil, a par das qualidades inatas, da experiência e da habilidade dos seus agentes, tende a incorporar as vantagens das técnicas e dos processos reconhecidamente eficazes nos países desenvolvidos. Isso não significa que a política brasileira, de repente, passe a substituir seus métodos tradicionais, desenvolvidos ao sabor das culturas regionais, por técnicas importadas. Mas o que se observa é um processo de absorção de conhecimentos da área de marketing pela política, que tem como fundamentação, a competição acirrada entre candidatos, a urbanização das cidades, a influência dos meios de comunicação, a abertura política, a pressão dos grupos organizados, a industrialização e a diminuição do poder dos “coronéis” da política interiorana. (REGO, 1985).

Sobre a inserção do marketing político no Brasil, Ronald Kuntz destaca as peculiaridades do mercado nacional

O mercado eleitoral brasileiro apresenta características distintas de qualquer outro, uma vez que é cercado de altos riscos, infestado de ‘picaretas’, leigos e ‘charlatões’, calotes, fornecedores oportunistas,

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tudo isso regida por uma legislação inadequada e ultrapassada que acabam levando todos - candidatos, partidos, fornecedores - a agir na clandestinidade e ilegalidade, sob os olhos complacentes de uma justiça eleitoral despreparada. (KUNTZ, 1998).

Pesquisa, pesquisa e pesquisaQuando se pensa em eleições, mais que aliada,

A pesquisa é a própria atividade essencial na base do desenvolvimento da estratégia de uma eleição. Três são as mais importantes ferramentas para operar uma campanha e entender o eleitor: a pesquisa, a pesquisa e a pesquisa. (1) a pesquisa para saber o que as pessoas estão pensando; (2) a pesquisa sobre a qual se constrói toda a estratégia eleitoral; e (3) a pesquisa fator fundamental por excelência que permite o desenvolvimento tático da operação eleitoral. (SERPA, 2013)

Apesar da utilização das pesquisas qualitativas ter adquirido um papel importante nas campanhas políticas, ao contrário das pesquisas quantitativas que são divulgadas amplamente pela mídia, elas não alcançam o grande público. O acesso aos seus resultados é restrito aos profissionais que atuam na campanha do candidato que compra esse tipo de trabalho, usualmente utilizado em estratégias de campanha. Conseqüentemente, as pesquisas qualitativas usadas em campanhas eleitorais são pouco exploradas pela Ciência Política e têm pouca utilização nas investigações acadêmicas.

A centralidade das campanhas passou a ser as telas das televisões e sua modernização nas sociedades democráticas constitui um fenômeno mundial irreversível. Usa-se a mídia na construção das campanhas, para persuadir e ganhar o voto do eleitor. O destaque à figura do candidato é maior do que à imagem do partido. Com a personalização das campanhas, os apelos publicitários emotivos com retóricas são mais atraentes que as propostas políticas ideológicas. No Brasil, o HGPE constitui o principal meio de embate dos candidatos envolvidos na disputa eleitoral, conforme Veiga e Godim (2001). Em períodos eleitorais, os meios de comunicação se destacam como elo entre eleitores e seus representantes. As necessidades da população e decisões políticas são efetivadas e legitimadas e se tornam de

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conhecimento público por exposição na mídia.Em seu trabalho, Dias (2000), afirma que tanto os grupos

focais quanto as entrevistas individuais são empregadas em pesquisas mercadológicas desde os anos 50 despertando interesse das mais diferentes áreas do conhecimento a partir dos anos 80. Por sua utilização e crescente aplicação técnica e por ser ainda pouco explorada na literatura científica, é oportuno analisá-la como alternativa às técnicas de dados quantitativos mais tradicionais.

Apesar da atenção crescente dada a estudos sobre campanhas eleitorais, a investigação acadêmica sobre a eficácia dos instrumentos de elaboração de campanhas eleitorais não é muito explorada, assim como a avaliação da efetividade da pesquisa qualitativa no marketing eleitoral.

Dentre os objetivos das pesquisas de cunho político com abordagem qualitativa destacam-se os seguintes:

I) Conhecer os eleitores, mapeando suas demandas e frustrações;

II) Compreender sua percepção acerca do quadro político, apontando aspectos positivos e negativos;

III) Identificar suas expectativas com relação à solução dos problemas sociais;

IV) Avaliar a imagem dos candidatos e as razões para votar ou não nos mesmos e

V) Aferir a avaliação de propostas e programas de governo.Durante o processo de campanha, a pesquisa qualitativa

passa a ter como objetivo a avaliação das estratégias de divulgação por meio da análise do impacto na opinião pública dos programas veiculados pelo Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE) e isto pode vir a ser útil no esclarecimento de questões relativas ao comportamento do eleitor, de grande interesse acadêmico.

A pesquisa qualitativa nos fornece mais a natureza ou a estrutura das atitudes ou motivações que sua freqüência ou distribuição. Seu principal objetivo é explorar a profundidade dos

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sentimentos e crenças que as pessoas detêm e aprender como estes sentimentos podem influenciar comportamentos.

Segundo Dias (2000), entre as técnicas mais utilizadas em pesquisas qualitativas destacam-se: entrevistas não direcionadas, entrevistas semi-estruturadas, as técnicas projetivas, grupos focais. As entrevistas não direcionadas e as semi-estruturadas são individuais, porém diferenciam-se pelo maior ou menor grau de intervenção e direcionamento exercido pelo entrevistador, ao estruturar o tópico pesquisado ou a seqüência de perguntas. São empregadas em pesquisas qualitativas exploratórias, fenomenológicas e clínicas.

Por sua vez, as técnicas projetivas são usadas quando o pesquisador considera praticamente impossível aos entrevistados responderem sobre as reais razões que os levam a assumir certas atitudes e comportamentos. Muitas vezes as próprias pessoas desconhecem seus sentimentos e opiniões a respeito de determinado assunto, sendo incapazes de verbalizar seus verdadeiros sentimentos e motivações. O pesquisador, nesses casos, apresenta um estímulo ambíguo aos entrevistados e observa suas reações no relacionamento com esse estímulo. [...] Apesar de ser utilizada também em pesquisas exploratórias, é uma técnica voltada, essencialmente, para a abordagem clínica da pesquisa qualitativa (DIAS, 2000).

Porém um problema muito encontrado, quando se executa a pesquisa, diz respeito s utilização dos resultados obtidos. O risco está no emprego da pesquisa qualitativa, como resultados conclusivos e aplicado para fazer generalizações em relação à população-alvo. Assim, o ideal é a utilização de pesquisas quantitativas como complemento, buscando-se generalizações dos resultados, ao invés de usá-las mutuamente como concorrentes (HUNT, 1991). Todavia a pesquisa qualitativa possui variações em sua formação, conhecidas como técnicas. No próximo tópico discutiremos especificamente seis destas técnicas de pesquisa.

Grupos de FocoO grupo focal ou grupo de discussão, como técnica de pesquisa

qualitativa, apresenta-se como uma possibilidade para compreender a construção das percepções, atitudes e representações sociais de

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grupos humanos acerca de um tema específico. O grupo de foco (focus group) teve origem na sociologia. Hoje, é amplamente utilizado na área de marketing e também tem crescido em popularidade em outros campos de ação Os grupos focais podem ser usados segundo Veiga e Godim (2001), como fonte principal e suplementar de dados, tanto para subsidiar programas de intervenção, quanto para elaborar instrumentos de pesquisa experimental e quantitativa, e como fonte complementar de dados, ao serem associados às técnicas de entrevistas em profundidade e de observação participante.

As raízes dos grupos de foco estão na diversidade d os métodos de comportamento científico e na psicoterapia. Essas técnicas foram desenvolvidas por Robert K. Merton e descritas em um livro em co-autoria com Patrícia L. Kendall (1956).

A característica da entrevista focal é que os entrevistados são expostos a situações concretas, cujo caráter objetivo é conhecido e foi previamente analisado pelo entrevistador. Eles puderam assistir a um filme, programa de rádio, ler um panfleto ou um anúncio em uma revista ou jornal e assim participaram do experimento psicológico. Em outras palavras, a entrevista foca-se em uma experiência do entrevistado- exposição a uma situação de estímulos. (MERTON, KENDALL, 1956)

Atualmente, a pesquisa qualitativa - especialmente o procedimento conhecido como entrevista de grupo de profundidade, ou grupo de foco - é uma das técnicas de pesquisas mais amplamente utilizadas e válidas. O número de projetos de entrevista de grupo, autorizado a cada ano, excede largamente o número de levantamentos quantitativos, os surveys.

Sua utilização tem uma variedade de propósitos, além dos tradicionais da pesquisa de mercado, uma das suas mais usuais aplicações é o levantamento de informações para subsidiar o marketing eleitoral.

Para Malhotra (2001), em contraste com a pesquisa estatística ou a contagem de indivíduos, nenhuma entrevista de grupo poderá ser precisamente repetida; cada uma será sempre única, o que não quer dizer que a entrevista de grupos não possui regras e protocolos.

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O moderador desempenha um papel chave para o sucesso de um grupo de foco. Ele deve estabelecer relação com os participantes, manter ativa a discussão e motivar os respondentes a trazerem à tona suas opiniões mais reservadas. Além disso, o moderador pode desempenhar um papel central na análise e interpretação dos dados. Portanto, ele deve ter habilidade, experiência e conhecimento do tópico em discussão e deve entender a natureza da dinâmica do grupo.

Segundo Yin (2008), os grupos de foco são geralmente utilizados para a definição de problemas com boa precisão. Podem também gerar rumos alternativos de ação e ajudar na elaboração da abordagem de problemas. Através dos grupos podemos obter relevantes informações para estruturar questionários para os consumidores. Além disso, os grupos nos fornecem subsídios para a geração de hipóteses que poderão ser testadas quantitativamente e para a interpretação de resultados quantitativos obtidos previamente. O focus group constitui-se na técnica mais importante de pesquisa qualitativa.

Entrevistas em profundidadeA entrevista em profundidade é uma entrevista não-

estruturada, direta, pessoal, em que um único respondente é questionado por um entrevistador altamente treinado, para descobrir motivações, crenças, atitudes e sentimentos a respeito de um determinado assunto.

Neste processo o entrevistador inicia com uma pergunta genérica, e posteriormente incentiva o entrevistado a falar livremente sobre o tema. Por sua vez a duração pode variar de 30 a 60 minutos, embora existam casos especiais que podem levar até mesmo horas, dada a natureza do problema Quando aplicada, a entrevista individual pode ser classificada em três categorias distintas, em função do grau de estruturação do guia de entrevista utilizado pelo entrevistador (MARCHETTI, 1995). A saber: entrevista não-estruturada; entrevista semi-estruturada e entrevista estruturada.

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A entrevista em profundidade é uma técnica utilizada em casos especiais quando um grupo de respondentes não resultasse num levantamento proveitoso, quer seja pelo tempo necessário que mais de um entrevistado levaria para responder as perguntas, quer seja pela delicadeza do assunto abordado. Segundo Malhotra (2001) as entrevistas individuais, na maioria das vezes, são utilizadas nos seguintes casos:

I) Para uma sondagem detalhada do entrevistado, quando é necessária uma explicação minuciosa de suas preferências e rejeições.

II) Na discussão de tópicos confidenciais, delicados ou embaraçosos. Neste caso, a entrevista individual é utilizada para evitar constrangimentos e para preservar o respondente da exposição em grupo de temas muito íntimos.

III) Quando, em decorrência de normas sociais sólidas, o entrevistado puder ser facilmente influenciado pela resposta do grupo.

IV) Diante da necessidade de compreensão mais detalhada de um comportamento complicado.

V) Nas entrevistas com profissionais VI) Nas entrevistas com concorrentes que não desejem revelar

a informação em um contexto de grupo VII) Nas situações em que a experiência de consumo de u

m produto é sensorial por natureza, afetando estados de espírito e emoções.

É necessário que o pesquisador reconheça que nem sempre é conveniente utilizar métodos plenamente estruturados (formais) para obter informações dos respondentes. Algumas pessoas podem não querer responder a certas perguntas; ou, mesmo que sejam incapazes disso, o seu comportamento é influenciado por fatores de que eles não têm consciência ou que eles simplesmente não queiram mencionar diretamente em razão de certos mecanismos de defesa (MARCHETTI, 1995). Além do mais, é importante que o pesquisador não somente deixe o entrevistado o mais livre possível

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para expressar suas opiniões, como também possua conhecimentos de psicologia e lingüística (ou contratar profissionais com tal gabarito) para a análise dos dados.

ConclusõesA consolidação da democracia e os avanços tecnológicos

traçaram novos rumos para a vida social e modelaram novos moldes para as disputas eleitorais. Se a própria disputa por si mesma é vulnerável a acontecimentos que fogem ao controle e à previsibilidade, a dinâmica das campanhas exige, a cada pleito, mais profissionalismo, planejamento e estratégias mais seguras e com menor risco. A pesquisa qualitativa veio consolidando-se ao longo da história científica como prática que possibilita o desvendamento de objetos subjetivos que, por sua complexidade, exigem compreensão mais aprofundada dos fenômenos que os envolvem. Em alguns casos, de nada adianta uma pesquisa quantitativa sem antes se ter as qualidades para serem quantificadas.

O eleitor comum é capaz de opinar sobre questões que o afetam diretamente; seu grau de compreensão é maior, quanto mais próximas de sua realidade forem às questões abordadas. Ele também traz consigo a informação, tanto cultural como proveniente da mídia televisiva, de que os políticos deveriam ser os garantidores da funcionalidade da coisa pública, entendida, principalmente, como serviços básicos, habitação, segurança pública, transporte, saúde e educação de qualidade.

Os atores políticos mantêm sua autonomia e constroem suas estratégias ao buscarem visibilidade na mídia, de maneira a se favorecerem e a obterem mais vantagens que seus concorrentes. Este fato obriga os atores políticos a construírem um novo discurso no qual cada vez mais, se vê o declínio dos partidos políticos e o crescente personalismo das campanhas, revelando o despontar de novas formas de fazer política.

As técnicas de pesquisa qualitativa, que fornecem ao eleitor a

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oportunidade de ser ouvido e entendido, são as mesmas que lhe dão espaço para reivindicar, criticar e expressar seus sentimentos.

Profissionais de marketing, pesquisadores, institutos de pesquisas e aspirantes a pesquisadores poderão, com este trabalho, sanar dúvidas que altercam a utilização da pesquisa qualitativa em marketing e conhecer detalhadamente o conglomerado de suas características e variações.

A capacidade de ouvir eleitores, analisar conteúdos e, a partir daí, construir estratégias de campanhas, é que fará a grande diferença nas campanhas vitoriosas. A utilização das pesquisas qualitativas como instrumento do marketing eleitoral está consolidada entre os profissionais de marketing e as pesquisas são percebidas como instrumentos adequados para enfrentar as acirradas disputas que trazem, a cada pleito, novas exigências.

A principal vantagem da abordagem qualitativa é que ela se apresenta como um recurso que permite compreender o contexto pessoal, no caso da técnica de entrevista em profundidade, e grupal, em se tratando dos grupos focais, a partir dos quais são construídas as opiniões e a visão de mundo dos participantes que avaliam os candidatos, os partidos políticos e decidem sobre o seu voto.

As pesquisas, para os profissionais de marketing, funcionam como sinalizadores que vão direcionando o terreno fértil onde poderão jogar suas sementes para que possam gerar frutos. É inegável a sua utilização como um dos instrumentos mais importantes e eficazes na construção de campanhas assertivas.

Referências DIAS, Cláudia Augusto. Grupo Focal: técnica de cole ta de

dados em pesquisas qualitativas. 2000. Disponível em: <http://www.ies.ufpb.br/ojs2/index.php/ies/article/viewFile/330/252> Acesso em: 13 out. 2016.

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“A Verdade sobre a Central brasileira”: O campo político e a esfera pública capixaba

de 1940 – 1949Douglas Edward Furness Grandson1

Debate teóricoO “chão” que dá base a esse trabalho tem origem de dois

autores, um filósofo e o outro sociólogo, Habermas e Bourdieu. Suas leituras atentas às estruturas permitem ao pesquisador observar e captar as nuances históricas da conformação da realidade segundo seus conceitos, que são de esfera pública e campus. Desse modo, para estudar a realidade capixaba, ficou entendido que era necessário observar, num plano mais amplo, a esfera pública, que, como será observado, constitui o espaço de debates privados sobre o estado e suas atribuições; e em um plano intermediário, o campo intelectual, especificamente, aquele dos escritores e colunistas de jornal, por vezes médicos ou políticos. A esfera pública e campo intelectual dão acesso ao campo político estabelecido com o processo de redemocratização brasileira em 1945, após o Estado Novo. Dentro do sistema de trocas simbólicas, a linguagem predominante foi aquela estabelecida pela elite, representada pelo PSD e pela UDN, partidos que tiveram maior peso na Constituinte. Para além disso, uma concepção geral direcionou os discursos dos mais diversos atores, a ideia de equilíbrio, pautada na efetividade das instituições, caso os atores cumprissem suas obrigações.

O período em questão, a década de 40 capixaba, ainda muito marcada pela agricultura e com a maioria da população no campo, é marcada por uma esfera pública restrita, a qual o debate sobre o estado foi monopolizado pela elite dominante, e, principalmente, debatendo temas nacionais fragmentários, haja vista seu reduzido tamanho. Ou seja, os temas amplos da sociedade debatidos nos grandes centros chegavam no Espírito Santo redimensionados,

1 Mestre em História pela Universidade Federal do Espírito Santo.

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reduzidos em comparação ao tamanho que tinha nos principais centros. Mesmo assim, os debates ocorreram, abordando o estado e suas atribuições, no caso em questão, como se verá, o papel de fiscalização de uma empresa estrangeira, a Central Brasileira de Força Elétrica. Como se verá, os debates partiram de jornais cuja propriedade era privada a grupos de interesse, que apresentavam interesses privados como se fossem públicos, ou apresentavam obrigações privadas como sendo públicas.

A contribuição de Bourdieu, em O poder simbólico pertinente, pois aborda os conceitos campus e habitus. Esse autor buscou identificar em grupos específicos da sociedades (intelectuais, artistas, políticos) a existência de um campo que os separa da sociedade. Este, permeado de regras, características e hábitos historicamente construídos tem uma autonomia da sociedade variável, conforme o período. Isso por a sua existência, em qualquer área que seja, deve ser legitimada pela sociedade, cabendo aos membros deste obtê-la. Desse modo, se o campo separa um grupo da sociedade, por sua especificidade, isso é possível através da validade que a sociedade lhe atribui. O habitus, por sua vez, é o capital dos indivíduos que fazem parte do campo, é o “corpus de saberes específicos (teorias, problemáticas, conceitos, tradições históricas, dados econômicos, etc.) produzidos e acumulados pelo trabalho político dos profissionais do presente e do passado” (BOURDIEU, 1989, p. 169). Estes, para fazerem parte do grupo, devem estar munidos de competências de ordem técnica, necessários para as suas atividades. Quanto mais os componentes de um campus adquirem habitus inalcançáveis pela população, maior a sua autonomia frente à sociedade, que se vê, por questões práticas a se verem atendidas por esses indivíduos.

É estabelecido um poder simbólico entre um campus e a sociedade, através do controle deliberado daquele sobre o que chega a esta. O capital simbólico que permite essa relação delimita a ação da sociedade com relação às atividades exercidas pelo campo. Esse fato é explicado por Bourdieu pela oferta e demanda, conceitos importados da economia política. A sociedade que está

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fora do campus é colocada por este enquanto consumidora de seus produtos, e estes são deliberadamente selecionados pelo grupo. São disponibilizados para a sociedade os instrumentos de percepção e expressão de determinada área (intelectual, artística, política), que são limitados de modo que certo número de conhecimentos se mantenha com prerrogativa do grupo, com o fito de manter sua autoridade. Segundo Bourdieu, referindo-se a um campo específico:

O campo da política exerce de fato um efeito de censura ao limitar o universo do discurso político e, por este modo, o universo daquilo que é pensável politicamente, ao espaço das tomadas de decisão efetivamente realizadas no campo [...] a fronteira entre o que é politicamente dizível ou indizível, pensável ou impensável para uma classe de profanos [...] (BOURDIEU, 1989, p. 165).

Portanto, no mercado da política, arte, intelectualidade, os produtos são distribuídos conforme os interesses desses campos, que buscam sua legitimidade social através da manutenção de um poder simbólico frente a seus consumidores, pautado em seu capital simbólico, a delimitação do que é ou não possível. Discordamos do funcionalismo de Bourdieu que trata o agente enquanto “operador prático de construções de objeto” e que considera que a sociedade muito passiva apenas pela via simbólica (e os mecanismo de coerção. Mas sua contribuição é válida, guardada a devida cautela. O campus é formado historicamente, e podemos observar isso com relação ao campo político e intelectual capixaba. Se por um lado, a redemocratização de 1945 mudou o regime político, manteve um campo político com marcas de um governo autoritário. A política nacional, e por sequência regional, foram pautadas pela ação da autoridade na resolução dos problemas nacionais, assim como nas escolhas político- econômicas. Delimitou-se o espaço da sociedade frente aos problemas políticos, que seria apenas o de trabalhar e reclamar dos problemas, quando fossem casos extremos. A classe política deveria resolver esses problemas, pois seriam os órgãos competentes. Com isso, a colocação intencional da sociedade em posição de consumidor foi instrumentalizada pelos políticos que implementaram o processo de redemocratização do país. Esse campo político estruturou, por sua vez, o campo intelectual que

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atuou na esfera pública capixaba. O discurso dominante, pautado em uma noção de equilíbrio, era caracterizado pelo ativismo dos políticos e o simples papel de reclamante da população. Porém, os indivíduos não eram passivos. Tanto no campo político quanto intelectual, havia a adoção de linhas políticas que utilizavam o campus político conforme a conjuntura, e depois mudavam de atitude, confrontando as práticas políticas delineadas pelo poder estabelecidas. O cálculo político entra em cena, dentro da estrutura política das elites capixabas, assim como ocorreu em outros estados da federação. O discurso nacionalista foi articulado tanto por aqueles que se mantiveram dentro do campus, quanto por aqueles que partiram para o enfrentamento. O campo intelectual se torna, desse modo, o meio de acessar as disputas simbólicas travadas entre os agentes políticos no Espírito Santo, pois, ao invés de operar o habitus, havia a possibilidade de confrontá-lo. Por meio dos jornais capixabas isso é passível de observação.

Apontando as limitações de uma abordagem que não fornece o limite preciso entre ações a não intencionais (inconscientes) e a intencionais (conscientes), é feita uma proposta teórica (PEREIRA, 2015) que leva em conta as três temporalidades históricas de maneira alternativa ao uso da ideologia proposta pelos autores acima. Nesse caminho, entende-se que no plano estrutural estão às concepções de mundo, valores, crenças, que são muito vagos e construídos historicamente a partir da experiência humana. Nas conjunturas as coletividades e indivíduos podem se apropriar desses valores, dar-lhes um conteúdo com o fito de organizar ou desorganizar pessoas, de modo a gerar consentimento acerca de um tema, isso feito a partir de um projeto. No plano da ação, para atingir objetivos, são adotadas táticas de convencimento por parte dos atores, chamadas aqui de propaganda.

No campo da esfera pública, a proposta de interpretação supõe que existem ferramentais de análise apropriados para objetos precisos na História Política brasileira, tratando diferentes partidos políticos com diferentes teorias. Para análise de partidos conservadores, como

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o PSD e UDN, que encaram a esfera pública como susceptível apenas de sua ação política, subordinando os demais, as noções de Bourdieu de campus e habitus permitem a análise das ações dos grupos e indivíduos dessas agremiações, que estabeleceram o campo político na redemocratização. Por outro lado, para partidos diretivos, como PCB, PTB e PSB, o conceito de Gramsci de intelectual orgânico se mostra adequado analiticamente, pois, tem como contribuição a análise de grupos com projetos visando o consentimento e a ação, com vistas à transformação. Os dois usos são mediados pela concepção habermasiana de esfera pública. Por fim, eixos temáticos serão expostos, apontando os diversos projetos de nação elaborados para o país na década de 40 por diversos grupos e indivíduos que fizeram uma leitura da realidade nacional, buscando saídas para o problema do subdesenvolvimento e crises econômicas no Brasil.

Aplicando a teoria e identificando a(s) fala(s)A política capixaba, seguindo o delineamento do poder a

nível nacional, foi organizada pelos interventores estaduais, sobre influência de Vargas. Quando se abriu franca concorrência da oposição antivarguista, marcada pelo lançamento do brigadeiro Eduardo Gomes - sem mesmo um código eleitoral! - o governo foi pressionado a dar andamento ao processo. Foi uma manobra inteligente da oposição, que, ciente das pressões internas decorrentes da aliança do Brasil com as democracias, em combate com a ditadura, já deu o processo como inevitável e lançou um candidato. Isso era um estímulo que exigiu resposta do estado. E esse foi o de dar andamento ao processo eleitoral. Vargas acionou seus interventores, que em reunião decidiram sobre o código eleitoral. Também substituiu o ministro da justiça, Marcondes Filho, por Agamenon Magalhães, mais simpático à redemocratização, portanto, mais interessante para Vargas no cargo naquele momento (GOMES, 2005). Logo, surgiram a Lei Constitucional n°9 (ato adicional) de 28 de fevereiro de 45 que chamava eleições gerais, assim como o Decreto Lei n° 7.586, que estabelecia a criação de partidos de âmbito nacional, a legislação

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eleitoral tomou forma. As eleições para presidência da república se dariam no mesmo ano, junto aos deputados da Constituinte, e governadores (HIPÓLITO, 1985).

Do lançamento de Eduardo Gomes, surgiu a UDN. Um mês depois, surgiu o PSD, partido formado pelos interventores de Vargas, os mesmo que estruturaram o processo eleitoral. No Fim de um ano turbulento, com a deposição de Vargas em outubro, o general Eurico Gaspar Dutra, pelo PSD, venceu as eleições. Os deputados e senadores que participaram da Assembleia Constituinte eram, em sua maioria, do PSD e, em segundo lugar da UDN.

No Espírito Santo, esses dois partidos foram os maiores, como efeito do código eleitoral lançado a nível nacional. O interventor Jones dos Santos Neves refundou o PSD, chamando as mais diversas lideranças políticas, incluindo adversários. Foi uma forma de garantir a vitória para a situação. Estratégia eficiente manteria o partido até a eleição para governador, quando as dissidências fizeram personalidades saírem do partido e criarem outras legendas, como foi o caso de Asdrúbal Soares e Atílio Vivácqua, que fundaram, respectivamente, o Partido Social Progressista (PSP) e o Partido Republicano (PR) capixabas (SILVA, 1995). O poder no PSD ficou nas mãos do grupo de Jones e Carlos Lindenberg, coronéis que se mantiveram junto a situação estado novista. Seu poderio no Espíito Santo foi hegemônico, sendo apenas confrontado quando havia dissidências internas e, ao mesmo tempo, uma aliança da oposição, como ocorreu em 1955 e 1962, anos da vitória da coligação democrática (UDN – PR – PSP –PTB -PDC) (PEREIRA, 2014).

Os jornais capixabas, aqueles escolhidos para permitir o acesso ao campo intelectual e ipso facto, político, serviram de veículos de propaganda dos grupos políticos capixabas, sendo A Gazeta e A Tribuna jornais da situação e oposição, marcando a disputa intraelites capixaba. As oposições à esquerda tinham o A Época, de Cachoeiro de Itapemirim, jornal socialista com forte liberalismo, e o Folha Capixaba, jornal comunista. O PTB capixaba não tinha jornal, tendo seus intelectuais escritos nos jornais acima,

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conforme as alianças conjunturais. Um exemplo disso é a presença de Mario Gurgel, petebista, escrevendo em A Gazeta em seu período situacionista.

Cabem melhores apontamentos sobre os jornais. Segundo Martinuzzo (2005) A Gazeta foi um jornal situacionista desde sua fundação em 1919 até 1942, quando foi vendido para Aurino Quintaes e Oscar Guimarães (MARTINUZZO, 2005). A venda não alterou o conteúdo, pois foi mantida a linha política de apoio ao governo oficial. Posteriormente, o jornal passou da situação para a oposição. Em outubro de 1945, foi comprado pelo coronel de São Mateus, ao norte do Estado, para servir de propaganda política para o brigadeiro Eduardo Gomes. Portanto, era udenista. Em 1948, Elosippo Cunha vendeu o jornal, sem saber, porém, a quem. Um grupo com ligações ao seu adversário político o comprou, sendo, de fato, do Carlos Lindenberg. A natureza oculta da negociação pode ser observada na linha política do jornal. Ao invés de saltar novamente da oposição para situação, manteve sua linha política udenista até meados de 1949.

Se A Gazeta saltava, lentamente, de oposição para situação, A Tribuna fazia o caminho inverso. Segundo a compilação de Martinuzzo (2005), o jornal teria sido fundado em 1938, por Reis Vidal, jornalista paulista afinado com o fascismo, e assim teria permanecido até ser vendido em 1950. A informação está equivocada, pois o jornal foi vendido em 1949, para o mesmo Elosippo Cunha que havia sido dono de A Gazeta. O já perrepista tinha a maioria das ações da Gráfica A Tribuna S.A., com 6.600 mil ações entre ordinárias integralizadas e não integralizadas, preferenciais integralizadas e não integralizadas, seguido por Fernando Duarte Rabelo (PDC), com 100 ações, entre outros2. Desse modo, o jornal passou do governismo à oposição.Os jornais de esquerda permaneceram sob o poder da mesma agremiação, mesmo com as dificuldades financeiras.

2 Informações encontrada em A TRIBUNA, na edição do dia 04/06/49, p. 6- 4.

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A Central BrasileiraUm tema fez as mais diversas posições políticas se

manifestarem. Foi a Central Brasileira. O setor energético capixaba, assim como na maioria dos estados brasileiros na década e 40, era provido pelo setor privado. A Light e a Amforp dividiam o mercado, em 70% e 30% respectivamente. A segunda empresa chegou mais tarde, em 1927, enquanto aquela estava instalada nos principais centros desde 1895 (JOELSONS, 2014). Dentro de um contexto de internacionalização do capital norte americano, a Amforp foi criada para atuar especificamente no mercado latino americano. Sua chegada ao Brasil seguiu, segundo Joelsons (2014), as cidades litorâneas não atendidas pela Light. No Espírito Santo e em Cachoeiro de Itapemirim ela era a Companhia Central Brasileira de Força Elétrica. Em todos os estados, a razão social da empresa era distinta, o que se configurava em uma maneira de se esquivar da fiscalização tributária (FERREIRA, 2012). A empresa assumia os serviços de bondes, lanchas, telefone, produção e distribuição de energia elétrica.

Gabriel Bittencourt (2011) apontou para o fato de que, no Espírito Santo a empresa passou a ter deficiências no atendimento de seus serviços. Concessionária desde o governo Florentino Avidos (1924 – 1928), a empresa havia atendido a demanda de energia elétrica e até estimulado o consumo de seus produtos e serviços, o que se alterou na década de 40. Isso foi notável através da publicidade da empresa, o Sr./ ”Seu”3 Kilowatt. Esse personagem foi identificado em vários estados da federação, segundo os trabalhos de Moraes & Araújo (2011), Arruda (2014), Felduhes (2008), Castro (2014), Ávila (2014) e Cadena (2016), em empresas da Amforp. Mas não era um personagem exclusivo a empresa, pois era outra empresa que fornecia os direitos de imagem, e também era norte-americana, Tratava-se da Reddy Kilowatt Inc. Esse personagem, um simpático boneco com corpo em formato de raio, nariz de lâmpada e mãos e pés encapados

3 O Sr. Kilowatt era assim chamado até 1941, quando passou a ser chamado de “Seu” Kilowatt. Se antes o slogan era: “Sr. Kilowatt, seu criado elétrico”, passou a ser chamado de “’Seu’ Kilowatt, o criado elétrico”.

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com borracha isolante fazia a propaganda da empresa. A observação desde sua chegada ao Brasil, especificamente no Espírito Santo, de 1936 até 1950, permitiu identificar 3 fases de sua atuação, que sofreu alterações nas conjunturas. A 1° fase, de 1936 até 1941 configurou-se pelo estímulo ao consumo e enaltecimento das capacidades do Sr. Kilowatt; a 2° fase, marcada pela politização de guerra, na qual o “Seu” Kilowatt passa a ser um soldado, marcada entre 1942 - 1945; e a 3° fase, aquela em que o personagem defendia a empresa das críticas vindas da sociedade civil, política e intelectual.

Já em 1941, na “fase boa” da empresa, a publicidade alternava a defesa de suas deficiências com o estímulo ao consumo, tendo ali o início de crise apontada por Bittencourt (2011). A guerra forneceu ao personagem o argumento para as dificuldades: o racionamento proveniente da conversão da indústria em indústria de guerra. Com o término do conflito, sua atuação foi constantemente marcada pela defesa e justificativa para a situação grave em que a empresa se encontrava. O fim da guerra fez com que o personagem passasse a acusar as causas de sua dificuldade e de sua empresa, a “falta de braços” e a “falta de materiais”.

O campo discursivo em torno da CentralEmbora a esfera pública hegemonizada pelos jornais da

elite, havia uma diversidade de atores políticos, como já citado, na existência de jornais de esquerda, socialista e comunista. Mas, algo salta aos olhos. Pegando Central Brasileira como objeto de estudo, e os discursos referentes às suas deficiências, percebe-se que as opiniões estavam divididas em dois blocos: aquele que defendia a empresa, e o outro, que acusava seu não cumprimento dos contratos. É difícil imaginar, nesse contexto e pelo volume de reclamações feitas contra a empresa, que alguém a defendesse, mas isso ocorreu.

Quando o jornal A Gazeta era governista, ainda dentro do apoio ao Estado Novo de Vargas e propagandeando o seu projeto trabalhista, a visão que a empresa tinha ressaltada era de uma companhia dedicada ao atendimento do consumidor. Logo que o

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jornal passou a ser udenista, abriu-se espaço para as críticas. No início de um período em que as consequências de guerra tornaram-se um argumento fraco diante a população, para o mau atendimento da empresa, a crítica liberal udenista, marcada pelo moralismo, seguiu o que Benevides (1984) havia delineado como marca da agremiação. O médico e colunista, Américo de Oliveira, escreveu desde 1946 até 1949, colunas no jornal A Gazeta, sempre criticando a falta de compromisso da empresa no atendimento ao contrato estabelecido com o governo do estado. A falta de energia elétrica, de bondes em circulação, telefones mudos, falta de lanchas para o transporte de pessoas até Vila Velha, a falta de ônibus na antiga rua do comércio, a cobrança indevida no aluguel dos medidores de energia entre outras coisas, foram às acusações intensamente repetidas pelo médico. Em uma matéria, em resposta a publicidade da Central, que em sua defesa dizia ter tido um pesadelo4 com todas as suas obrigações e altos custos, Oliveira descreveu ter tido um sonho5. Neste, a central havia sido vendida, falida, e todos os serviços da nova empresa, a Transportes Urbanos (TU), foram melhorados. Nessa matéria, o autor escreveu que o novo dono da empresa era um jovem inglês, que falava diretamente ao público, que, por sua vez, pedia trilhos de bonde a localidades desatendidas. O que se percebe é a ideia de equilíbrio. Se a Central não atendia, deveria abandonar a concessão, deixando para uma empresa que cumprisse contratos o serviço. O autor não questionava o fato de a empresa ser estrangeira, nem privada, apenas a inobservância do contrato. Como já foi dito, o jornal A Gazeta passou para Lindenberg, mas isso às escondidas. Em 1949, Américo Oliveira continuava com sua coluna, intitulada Essa Central Brasileira..., Repisando6 suas críticas a Central. Mas algo estranho ocorreu. No fim de seu texto, uma nota da edição do jornal disse que não se responsabilizava pelo que seus colaboradores escreviam. A resposta de Oliveira foi rápida, dizendo que não pedia a

4 “Pesadelo”: C.C.B.F.E. A Gazeta, 07/12/46, p.4.5 “Sonhei...” Américo Oliveira In: A Gazeta, 11/12/46, p.3.6 A coluna Repisando era o nome anterior dado ao espaço dos textos de

Américo Oliveira.

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concordância do jornal, e contribuía ali, com seus escritos, pelo bem da população. Esse evento deixa o sinal de algo mal resolvido. Como o jornal, após três anos de espaço cativo, não só para Oliveira como para outros escritores criticarem a Central, retirava a autoridade do colunista daquela forma? Especificamente no momento em que o jornal fazia uma transição para uma leitura governista?

Nesse momento, um evento promoveu o incêndio nos ânimos, no que concerne a Central Brasileira. A justiça do trabalho obrigou a empresa, no final de 1948, a pagar um aumento salarial aos trabalhadores, assim como efetuar o pagamento do descanso remunerado. A empresa disse que pagaria e pagou, porém, logo entrou com um pedido de aumento das tarifas de serviços, junto ao governo do estado. Isso gerou um grande incômodo dos intelectuais e políticos, pois, em meados de 1948 os serviços da empresa haviam piorado muito, com críticas estampadas nas colunas de reclamação de A Gazeta e A Tribuna7. Aumentar as tarifas como “prêmio” aos serviços da Central era algo absurdo para Oliveira, assim como para vários políticos e intelectuais.

E outra matéria de A Gazeta, de duas páginas, o título dizia: “A verdade sobre a Central Brasileira”. Nesta matéria, a fala simplesmente reproduzia o argumento da direção da multinacional, representada por Joseph Willian Brown, o gerente geral da Central. A falta de materiais e falta de braços geraram dificuldades para a empresa, o que seria uma tendência mundial para o setor de energia elétrica no após a guerra. O aumento salarial dos trabalhadores, portanto, deveria ser compensado pelo aumento tarifário. Abaixo da matéria, a imagem do “Seu” Kilowatt, na qual o jornal questionava se deveria se confiar nas justificativas no “criado elétrico”, de que ele melhoraria seus serviços. A resposta do próprio texto foi positiva. Então fica a pista. O jornal A Gazeta, após ser comprado por Lindenberg, passou a defender a Central Brasileira.

Quando se observa A Tribuna, têm-se mais elementos para 7 Em A Gazeta não tinha uma coluna específica para reclamações populares, ao

contrário de A Tribuna, que Tinha “A Tribuna do povo”. Nesta, várias reclamações eram feitas a Central, mas justificadas pela boa vontade da empresa e solucioná-los.

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conseguir uma resposta a essa mudança. Até maio de 1949 o jornal era de Reis Vidal, sendo um jornal de apoio a Lindenberg e ao PSD. Nos autógrafos das atas da Assembléia Legislativa de 15 de abril de 1948, foi encontrada uma homenagem do deputado pessedista, Waldemar Mendes Andrade ao jornal, que tinha a contribuição de sua agremiação.8 A postura do jornal em sua época situacionista era a de defesa da empresa, reverberando o discurso da Central, os mesmo encontrados em A Gazeta quando situacionista. Emil Sier, um colunista marcantemente liberal, defensor da ortodoxia do mercado, escreveu algumas colunas chamadas: Coisas da Vida: C.C.B. Nesta, defendia o discurso de Joseph Willian Brown e do “Seu” Kilowatt, dizendo que a crise do setor elétrico era mundial, assim como o aumento de tarifas era necessário, pois, para conseguir empréstimos para melhorar os serviços da empresa era preciso ofertar ao mercado números positivos, sendo o resultado negativo ruim para a empresa e para os consumidores. Desse modo, o ponto de vista da empresa era defendido. Logo depois de A Tribuna passar para o grupo do perrepista Lolô Cunha, e do pedecista Fernando Duarte Rabelo, o jornal passa a criticar a Central Brasileira, ou seja, quando passou a ser oposição, voltaram-se as críticas moralistas a multinacional9.

A resposta da empresa a tantas críticas foi uma medida paliativa. Comprou um motor diesel elétrico para instalar na Convertidora, a qual já tinha outro instalado no governo Florentino Avidos. Em julho equipamento chegou, e nos jornais estava estampada a sua chegada, com discursos dos representantes da empresa. A Gazeta teve uma cobertura completa, com a fala direta do gerente geral. A Tribuna, naquele momento, crítica à empresa, recebeu um engenheiro, e não o gerente Brown. Nesse momento identificou-se que as críticas da UDN ou a de seus partidos satélites

8 Autógrafos das atas da Assembléia Legislativa do Espírito Santo em 1948.9 Vale observar que o uso do termo multinacional não foi utilizada pelos

colunistas de A Gazeta , A tribuna e A Época. Américo Oliveira esbarrava na identificação da origem da empresa, mas apenas sugeria, de forma tangencial. Não ia direto ao assunto e ficava nas questões contratuais.

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(PR), como identificou Benevides (1984), eram pautadas na ideia de equilíbrio. Assim que o motor chegou, e uma demonstração de que os serviços melhorariam foi dada, o jornal voltou atrás em todas as suas críticas e se redimiu justificando que:

Esse jornal mesmo não tem deixado de reclamar contra a deficiência dos vários serviços da Central Brasileira, mas o teu interesse único tem sido orientado pra o bem da coletividade. Por isso é que, ao lado da crítica, jamais deixou de reconhecer os préstimos, a utilidade dos serviços da Central Brasileira, a cujos serviços deve nossa capital muito do seu progresso. Eis o que manda a justiça seja dito e que dizemos sem constrangimento, de vez que procuramos sempre evitar quaisquer confusões entre o povo e seus servidores, pois está bem claro que as confusões geram malentendidos se tira pouco ou nenhum proveito. (A TRIBUNA, 14/07/49, p. 8 – 6)

Mas essa ideia de equilíbrio não era restrita aos partidos liberais conservadores. O PSB cachoeirense também seguiu essa linha, sempre reclamando aos contratos. Seria surpreendente perceber a mesma atitude com relação ao PCB, o inimigo mais antigo da Central. Mas isso de um ponto de vista do que Panebianco intitulou de preconceito teleológico10. A linha política do PCB, pautada aliança nacional, defendia a “ordem e tranquilidade”, para que o Brasil se desenvolvesse industrialmente e saísse de um país feudal (MANTEGA, 1984; SANTANNA, 2001; CARONE, 1982). No jornal Folha Capixaba, cuja disponibilidade de fontes está restrita até 1945, o autor dedicado ao tema Central através da coluna Crônicas da cidade, Ivanhoé, sempre remetia ao não cumprimento dos contratos, sem nenhuma menção a origem internacional da empresa, ou politizar a população contra ela. Desde a Aliança Nacional Libertadora (ANL), os comunistas acusavam a empresa de extorquir o povo capixaba, para remeter lucro para o estrangeiro. Segundo Zorzal e Silva (1995), o PCB capixaba foi configurado por membros da ANL. Então porque a mudança de postura? Explicasse

10 O preconceito teleológico a que o autor se refere é dar como dados os fins da organização, e buscar através dos meios, ou seja, a execução de ações como medidor do desvio ou acerto para a consecução daqueles objetivos finais. Para ele, os objetivos são redefinidos pelas lideranças, que tem como objetivo a sobrevivência da organização. Então existe uma articulação dos objetivos, aqueles originários do partido com aqueles necessários a sua sobrevivência organizacional.

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pela linha política do partido, que se adequou ao campo político da elite, sempre referente ao clamor a autoridade, que deveria resolver o problema da Central, com punições legais e maior fiscalização. Vindo de uma ditadura extremamente coerciva, o PCB preferiu não enfrentar a burguesia ou o regime democrático estabelecido, como prevenção ao risco de voltar outro regime autocrático. Mas logo as lideranças perceberam que o governo Dutra havia se tornado uma ditadura vestida de democracia e mudaram sua linha política. Após a cassação da legenda em 1946, e dos mandatos dos comunistas, o PCB foi para o enfrentamento, estimulando greves em todo o país, marcando 1948 com os movimentos paredistas. Logo, o discurso contra a Central Brasileira mudou no Espírito Santo. Em A Gazeta, os discursos dos vereadores da câmara municipal de Vitória eram selecionados e transcritos. Nestes, Hermógenes Lima Fonseca, que havia sido eleito pelo PR quando a legenda do partidão foi cassada, fez discursos incisivos contra a empresa, identificando sua origem, norte americana, mostrando o grupo financeiro do qual fazia parte, assim como os lucros que a empresa tinha, alegando ser injustificado o aumento tarifário pleiteado pela Central. De um discurso que clamava pela autoridade, sem ter criticidade com relação aos interesses estrangeiros no país, os comunistas passaram para um discurso que ia além do moralismo edo legalismo, apontando interesses econômicos geopolíticos estrangeiros espoliadores do povo brasileiro e capixaba. Logo, Hermógenes fez questão de mostrar “QUEM É O BANQUEIRO MORGAN”11, apontando para a sobreposição dos interesses do capital estrangeiro sobre o interesse nacional. Essa existência, segundo ele, geraria um desequilíbrio imanente entre as nações, em benefício da mais poderosa, impedindo o crescimento econômico e social do Brasil. Apesar dos protestos, a empresa conseguiu o aumento de tarifas, e o governo Dutra desfechou um período extremamente repressivo com relação à classe trabalhadora e o PCB. O campo político fechava-se, impondo pela coerção o campo das trocas simbólicas. Quem deveria agir era o

11 Em seu discurso na Câmara dos vereadores de Vitória, fez essa pergunta, que ele mesmo respondeu. “Câmara Municipal”. In: A Gazeta, 17/07/49, p.6.

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Estado e só! Carlos Lindenberg, em uma gestão pautada no corte de gastos, provavelmente queria manter a Central como estava, sem ter custos com uma provável encampação, assim como parecia ter uma relação com a diretoria da empresa.

ConclusãoA política capixaba teve uma contradição fundamental em

sua esfera pública. A energia elétrica, transporte, telefonia estava deficitários, sendo acusados de assim estarem por culpa da Central Brasileira, por políticos, sindicalistas e sociedade civil (RIBEIRO, 2002). O cotidiano da população de Vitória era marcado pelo (des) atendimento da empresa, que nem a suas novelas no rádio conseguia escutar, haja vista que o horário crítico de fornecimento de energia, nos quais aconteciam os apagões, eram de 18:00 até as 22:00, hora de lazer da população. Não houve, porém, a identificação da empresa com sua origem estrangeira, através da inclusão do tema em um debate nacionalista. O PCB o fez, mas estava acossado pela repressão. Mas o fez com a Campanha do petróleo. Esta era uma campanha que emanou do Clube Militar e teve protagonismo do PCB. Na ainda abstração de que havia petróleo em solo brasileiro, sem muitas provas concretas disso, houve uma total identificação do nacionalismo, gerando em solo capixaba, uma grande politização acerca desse tema. A suspeita é de que, essa campanha ganhou relevância por causa do papel dos militares nesse debate, o que gerava legitimidade para a população. Assim, os comunistas, atacados pelo regime, juntaram seu nacionalismo com o etapismo, linha política do partido. Mesmo em confronto com o regime, a Campanha do Petróleo teve uma participação decisiva do comunismo. A contradição é: enquanto um conjunto de fatos concretos ligados a uma empresa estrangeira concreta não gerou uma campanha nacionalista, uma ideia ou a convicção de que havia petróleo no Brasil levou ao surgimento de uma, se não a mais, importante campanha popular do país. Isso em acusação dos trustes estrangeiros. De fato, tanto nas faltas de energia, quanto no medo de serem espoliados os trustes estavam no

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solo brasileiro, e capixaba, em sua restrita esfera pública.

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A Primeira Onda de Nacionalismo: O Cotidiano Japonês durante a Guerra

Sino-Japonesa (1894-1895) nos escritos de Lafcadio Hearn

Edelson Geraldo Gonçalves1

IntroduçãoEsta comunicação tem como objetivo analisar as

demonstrações de nacionalismo no cotidiano japonês observado pelo escritor greco-irlandês Lafcadio Hearn nas cidades de Kumamoto e Kobe durante a primeira Guerra Sino-Japonesa (1894-1895).

Os problemas que norteiam esse texto são: Como foram as demonstrações de nacionalismo testemunhadas por Hearn e porque surgiram? E sobretudo quais foram as conclusões que o autor registrou em seus escritos após observar tal cenário?

As observações de Lafcadio Hearn são relevantes porque mais do que uma testemunha de época, foi um autor renomado do campo dos estudos japoneses, ou japonologia, ramo do orientalismo que lida com o estudo da cultura japonesa.

As fontes principais dessa pesquisa são os ensaios A Wish Fulfilled (Um Desejo Realizado) contido no livro Out of the East(Do Oriente) (1895), escrito por Hearn enquanto vivia em Kumamoto, e After the War (Depois da Guerra) e China and the Western World2 (A China e o Mundo Ocidental), componentes respectivamente dos livros Kokoro(Coração) (1896) e Karma (1918) textos escritos dessa vez enquanto o autor morava na cidade de Kobe. O primeiro texto contém observações de Hearn sobre o período de início da guerra, o segundo sobre o momento imediatamente posterior ao final do conflito, e o terceiro contém reflexões do autor feitas no ano seguinte a guerra. Além disso também consultaremos algumas cartas da

1 Doutorando em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES).

2 Originalmente publicado pela revista Atlantic Monthly de abril de 1896.

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correspondência de Hearn, escritas durante o período do conflito. O texto dessa comunicação terá além dessa introdução mais

três tópicos: Lafcadio Hearn e a Era Meiji; no qual faremos uma contextualização geral sobre o autor e o período no qual ele viveu no Japão, indo até o desfecho da Guerra Sino-Japonesa, Lafcadio Hearn e a Guerra Sino-Japonesa; em que nos ocuparemos da forma como Hearn abordou esse evento em seus escritos, do início ao fim do conflito. Finalmente na conclusão abordaremos o entendimento de Hearn sobre o peso da vitória japonesa nos rumos que o país tomaria a partir dali.

Lafcadio Hearn e a Era MeijiO escritor greco-irlandês Lafcadio Hearn (1850-1904) fez

carreira como jornalista, tradutor e escritor nos EUA. Em 1890 partiu para o Japão com o projeto de fazer estudos sobre a cultura japonesa.

Uma vez no Japão Hearn adquiriu a cidadania do país, constituiu família e trabalhou como professor (nos níveis médio e superior) e jornalista, enquanto conduzia suas pesquisas sobre a cultura japonesa, que renderam quatorze livros, compostos de ensaios, relatos de viagem e contos.

Lafcadio Hearn chegou ao Japão no ano 22 da Era Meiji, período histórico iniciado em 1868, com o fim do regime político anterior, o Shogunato Tokugawa, e a restauração do poder do Imperador, figura afastada do governo efetivo do império desde 1185, quando iniciou-se o Shogunato, que teve a família Minamoto como primeira dinastia. Esse processo foi chamado de Restauração Meiji, que iniciou um novo modelo de governo, que veio acompanhado de medidas modernizantes que visavam tornar o Japão “civilizado”, aos olhos das potências industriais do século XIX.

Essas medidas modernizantes (igualdade legal, educação universal, conscrição, sistema de saúde, voto censitário, etc.) visavam reverter a situação na qual o Japão se encontrava desde 1854, ano

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da abertura dos portos japoneses às nações estrangeiras, em que o Shogunato; ameaçado pelo poderio militar moderno dos EUA e outros países, foi sujeitado à uma série de tratados desiguais, sendo obrigado a conceder direito de extraterritorialidade a estrangeiros e abrir mão do controle das taxas tarifárias, sendo que a única garantia positiva conseguida pelo Shogunato junto aos estrangeiros foi a de que o tráfico de ópio praticado na China não se estenderia ao Japão. Esses tratados geraram muito descontentamento doméstico desde seu início, principalmente em razão de estupros e assaltos cometidos por ocidentais, e que permaneciam impunes, sendo denunciados pela nascente imprensa japonesa (GORDON, 2003, p. 50).

O governo Meiji herdou essa situação do Shogunato Tokugawa, e buscou fazer o possível para revertê-la, adotando para isso as medidas modernizadoras que já mencionamos, e também uma tentativa de ocidentalização dos costumes, com ações como o encorajamento do individualismo e do liberalismo, mudanças na aparência (vestuários e cortes de cabelo ocidentais) e na alimentação (consumo de carne) (SANSOM, 1951, p. 378). Essas atitudes buscavam fazer o Japão ser visto como civilizado pelas potências ocidentais, na esperança que isso viabilizasse a revisão dos tratados desiguais (BURUMA, 2003, p. 33-34).

No entanto tal objetivo não foi alcançado, e a modernização de tipo ocidentalizante que se projetara no início da era Meiji começou a perder fôlego a partir da década de 1880, dando lugar na década de 1890 a um projeto de modernização conservadora, com ênfase no nacionalismo e na valorização das tradições (BURUMA, 2005, p. 34).

Essas tradições eram muitas vezes “tradições inventadas”, conceito que nas palavras de Hobsbawm (2002, p. 9), é definido da seguinte forma:

Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente e; uma continuidade em relação

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ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com o passado histórico apropriado.

No caso japonês as tradições inventadas surgiram principalmente em um processo que Ian Buruma (1984, p. 200-201) chama de “samuraização” da nação, procedimento pelo qual buscou-se inculcar os pretensos valores do antigo estamento samurai (elevado a novo modelo de cidadania); como a lealdade, e a disposição ao sacrifício, nos grupos de todas as origens sociais.

Tal processo se deu principalmente através do uso do sistema educacional, no qual o governo Meiji, nas palavras de Will Durant (1954, p. 918) “fez de cada escola do país um campo de treinamento militar e um berçário do ardor nacionalista”, e segundo David Landes (2000, p. 9) “também inculcando a disciplina, obediência, pontualidade e um honrado respeito pelo Imperador”.

Ainda segundo Landes (2000, p. 9): Essa foi a chave para o desenvolvimento de uma identidade nacional transcendendo as lealdades paroquiais nutridas pelo shogunato feudal. O Exército e a Marinha completaram o trabalho. Sob a identidade do uniforme e da disciplina, o serviço militar universal varreu as distinções de classe e de lugar. Isso nutriu o orgulho nacionalista e democratizou as violentas virtudes da virilidade.

As forças armadas foram de fato um dos campos privilegiados pela modernização Meiji desde seu início, tanto que “país rico, exército forte” era justamente um dos lemas principais do país, e sob isso repousava a memória das humilhações da década de 1850, ocorrido que o Japão buscava evitar no futuro (DURANT, 1954, p. 918).

Antes da década de 1890 as forças armadas japonesas foram testadas em uma expedição contra nativos de Taiwan em 1874 e em um conflito interno (a Revolta de Satsuma ou Guerra Seinan) em 1877; mas foi apenas em 1894 que o Exército e a Marinha Imperiais enfrentaram seu primeiro grande desafio internacional, uma guerra contra a China governada pela dinastia Qing.

Essa guerra foi motivadapelo choque de interesses do Japão e da China em relação a Coreia. O Japão pretendia ter acesso ao

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mercado coreano, para exportar têxteis e importar arroz e soja, o que foi proibido de fazer em 1882, quando por uma medida protecionista o rei coreano Gojong (1852-1919) proibiu o comércio com o Japão (KIKUCHI, 1993, p. 70).

A China por sua vez a muito considerava a Coreia como seu protetorado, e quando explodiu na Coreia uma rebelião camponesa que seu governo não foi capaz de reprimir, a Revolta de Donghak3 em 1894, a corte coreana solicitou o apoio de tropas chinesas, e com isso, valendo-se de um tratado militar firmado com a China em 1882; que dava ao Japão o direito de tomar uma ação correspondente a qualquer medida militar chinesa, também enviou tropas à Coreia (PETERSON, MARGULIES, 2010, p. 133).

Uma vez que a revolta camponesa foi sufocada a Coréia se tornou o campo de batalha, e o prêmio da Primeira Guerra Sino-Japonesa.

A campanha japonesa foi rápida, e na época considerada surpreendente (DURANT, 1954, p. 918), tendo a Marinha japonesa derrotado a Frota do Norte da Marinha chinesa no Mar Amarelo ainda em 1894, abrindo caminho para a incursão das tropas japonesas na Manchúria e a ocupação da península de Liaodong.

O governo chinês rendeu-se em fevereiro de 1895, e em abril do mesmo ano fechou com o Japão o tratado de Shimonoseki, que concedia formalmente a independência coreana, mas na prática colocava o país sob a influência japonesa (PETERSON; MARGULIES, 2010, p. 133), cedendo também ao Japão a ilha de Taiwan, a província de Liaoning, as ilhas Pescadores, além de uma suntuosa multa.

Em razão de temores sobre um possível avanço russo sobre a Índia e o desempenho que o Japão demonstrou no conflito contra a China desde 1894, a Inglaterra iniciou uma aproximação mais

3 Uma revolta orquestrada pelo movimento religioso Donghak (“Ensinamento Oriental”, um culto sincrético que soma Confucionismo, Budismo, Xamanismo, Taoísmo e magia) e camponeses descontentes com a corrupção dos oficiais políticos do sul da Coréia (PETERSON; MARGULIES, 2010, p. 130-132).

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estreita com o Japão, visando-o como um aliado na Ásia (DURANT, 1954, p. 918). Esse cenário deu origem ao tratado Aoki-Kimberley de 1894, que datava o fim dos tratados desiguais (o grande objetivo do governo Meiji) para 1899, além de abrir caminho para o Tratado Anglo-Japonês de 1902.

Lafcadio Hearn e a Guerra Sino-JaponesaQuando a Guerra Sino-Japonesa se iniciou em 1894, Hearn

havia a pouco tempo se mudado da cidade de Matsue, na prefeitura de Shimane da ilha de Honshu, para a cidade de Kumamoto, a prefeitura de mesmo nome na ilha de Kyushu. Em ambas as cidades Hearn exercia o cargo de professor de inglês no ensino médio.

Antes mesmo da guerra, em 1893, em uma carta a um amigo, em que comentava sobre as redações de seus alunos de Kumamoto, Hearn (1910, p. 120) já relatava que os jovens “expressavam francamente sua repulsa por estrangeiros” em muitas redações “expressavam um desejo de guerra”motivado sobretudo por um sentimento de revolta em relação ao tratamento dos ocidentais aos povos subjugados como o Havaí e a Índia. Nessa carta Hearn (1910, p. 120) acreditava que “O Japão está partindo para a retaliação, por todos os tratamentos arrogantes que já recebeu” e que os funcionários estrangeiros no país seriam “secretamente desprezados, ou odiados, ou ambos. Certamente desprezados como mercenários, e odiados como superiores”.

Ainda sobre esse assunto Hearn (1910, p. 120-121) comenta:Claro que com os alunos eu sou como um irmão mais velho; não há problema aí. E eu não tento por em cheque seus sentimentos sobre estrangeiros, eu prefiro encorajá-los. Eu encorajo-os porque é patriótico, porque é justo, porque indica recuperação nacional. O que eu sempre desencorajo são tais observações tais como “o Japão é apenas um pequeno país”, “[os japoneses são] idólatras ignorantes”, etc. Todas essas noções eu combato, e critico fortemente. Ensino-lhes o respeito pelas suas próprias crenças, pelas crenças do povo comum e pelo seu próprio país. Sou praticamente um traidor da Inglaterra [na época Hearn tinha cidadania inglesa] (ahn?) e um renegado. Mas na ordem eterna das coisas, eu sei que estou certo.

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Quando a guerra estava para se iniciar em 1894 Hearn (1906, p. 175) enviou a um amigo nos EUA uma carta com o seguinte apreensivo parágrafo:

Bem, agora dois perigos me ameaçam. Em primeiro lugar, a imensa reação do Japão, — reafirmando sua individualidade contra toda influência estrangeira, o que resultou na demissão da maioria dos funcionários estrangeiros de alto-salário; em segundo lugar, a guerra com a China. Os japoneses — essencialmente uma raça guerreira, [...] provavelmente irão vencer as batalhas iniciais, mas se a China ficar encurralada, amarga e seriamente, ela vai vencer a guerra. (Provavelmente, suas chances serão arrancadas dela por intervenção estrangeira.) Mas o que quer que seja no final desta enorme complicação, o Japão vai esvaziar seu tesouro. As chances de funcionários do governo [permanecerem em seus empregos] estão diminuindo: meu contrato vai apenas até março, e as chances [de eu continuar empregado] são 0.

Como podemos fora a apreensão por razões pessoais, Hearn nesse momento tinha dúvidas de que o Japão venceria a guerra, contando com certeza apenas com vitórias nas batalhas iniciais. Essa não era uma postura incomum no período em que a guerra se iniciou, sendo que em 1896, comentando a guerra a posteriori o próprio Hearn (1918, p. 114) cita o exemplo da London Press, que publicou a opinião de que dez mil chineses “poderiam facilmente conquistar o Japão”.

Em 1896 Hearn (1918, p. 112-113) também relatou que as causas da guerra ainda não estavam claras, sendo que os comunicados oficiais japoneses abriam muito espaço para o exercício da imaginação. Segundo o autor haveria cinco teorias principais sobre as razões do Japão ter atacado a China: 1) O Japão estaria tentando ter maior controle sobre a China, para evitar que inundasse o país com imigrantes 2) A inteligência japonesa teria descoberto que a China estava se preparando para invadir o Japão 3) O Japão teria declarado guerra para desviar a atenção do público para assuntos menos perigosos para o governo do que os que estavam em pauta4) A guerra teria sido declarada para criar um reavivamento miliar japonês e fortalecer com isso alguns indivíduos chave do governo Meiji 5) O Japão queria apenas testar sua nova força militar.

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Contudo Hearn (1918, p. 113) acreditava que “é seguro dizer que nenhuma teoria oferecida, apenas por si contém a verdade” e exprimindo sua própria opinião; enquanto comentava as críticas internacionais sobre o recém iniciado imperialismo japonês na Ásia, relata o seguinte argumento:

O fato é que a vasta maré da civilização ocidental, envolvendo o mundo, influenciou o Japão e o lançou contra a China, e o resultado é que agora o Império chinês é uma lamentável ruína. As profundas, irresistíveis, basilares forças que colocaram a guerra em movimento vieram do Ocidente; e uma vez que esse fato inquestionável seja reconhecido, todas as críticas ao Japão do ponto de vista moral tornam-se absurdamente hipócritas. Outro fato indubitável que vale a pena considerar é que somente fazendo o que nenhum poder ocidental gostaria de tentar sozinho, o Japão obteve o reconhecimento de seus direitos e de seu lugar entre as nações (HEARN, 1918, p. 114-115).

Ainda segundo Hearn (1918, p. 115): “O espetáculo de poder do Japão e a impotência da China iniciou no mundo ocidental a descoberta de um perigo”, o Japão como um real concorrente na corrida imperialista. E de fato Hearn (1918, p. 117-118) lembra de uma questão; levantada pelo jornal St. James Gazette: Quem poderia resistir aos números do exército chinês armado e comandado pelo Japão moderno? Constatando com isso que o pleno domínio da China poderia colocar o Japão no páreo pela hegemonia mundial tanto quanto Inglaterra, Alemanha e Rússia.

Quando a guerra se iniciou Hearn teve a oportunidade de observar o movimento e o cotidiano das tropas que partiam para a Coreia, uma vez que Kumamoto era uma cidade guarnição, e um ponto de reunião e partida das tropas. Esse cotidiano é relatado em seu ensaio A Wish Fulfilled, presente no livro Out of the East publicado em 1895.

Nesse ensaio, escrito no outono de 1894 (HEARN, 1895, p. 283) o tema principal de Hearn é o relato sobre um diálogo seu com um ex-aluno da cidade de Matsue, que estava servindo nas tropas do exército que seriam mandadas para os transportes em Shimonoseki a partir de Kumamoto, e daí para a Coreia, e que enquanto estava

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estacionado na cidade aproveitou a oportunidade para visitar seu antigo professor. No entanto na introdução do texto Hearn dá um valioso testemunho sobre o cenário que viu.

O primeiro fato ao qual Hearn (1895, p. 281) faz menção é que apesar da agitação militar a cidade estava incrivelmente quieta, sendo os militares “silenciosos e gentis como garotos japoneses em horário escolar”, fazendo também o seguinte comentário:

O entusiasmo da nação estava concentrado e silencioso; mas, sob aquela calma exterior, ardia toda a ferocidade dos antigos dias feudais. O governo foi obrigado a recusar os serviços livremente oferecidos de miríades de voluntários, principalmente espadachins. Se tivesse sido feito um chamado para esses voluntários, estou certo de que 100 mil homens teriam respondido dentro de uma semana. Mas o espírito bélico se manifestou de outras maneiras, não menos doloroso do que extraordinário. Muitos se mataram por terem sido recusados da chance do serviço militar (HEARN, 1895, p. 283).

Hearn (1895, p. 281-282) também chama atenção para as cerimônias religiosas ministradas para abençoar as tropas, sendo essas cerimônias tanto xintoístas (no santuário de Fujisaki, onde amuletos eram distribuídos aos soldados) quanto budistas, sendo os ritos budistas realizados no templo Honmyoji da seita Nichiren, local onde estão depositadas as cinzas de Kato Kyomasa (1521-1611), o antigo senhor de Kumamoto, “conquistador da Coreia, inimigo dos jesuítas, protetor do Budismo”. Segundo Hearn (1895, p. 282) “A armadura, o elmo e a espada de Kyomasa, preservados no santuário principal [do templo] por três séculos, não podem mais ser vistos. Alguns declaram que foram enviados a Coreia, para estimular o heroísmo do exército”.

Ainda segundo Hearn (1895, p. 282): “outros contam a história de que passos ecoam no pátio do templo a noite, o trânsito de uma poderosa sombra, erguida de seu sono nas cinzas para liderar os exércitos do Filho do Céu [o Imperador] mais uma vez a conquista”. Segundo o autor “Sem dúvidas [...] entre os soldados, bravos e simples rapazes do interior, muitos acreditam [na presença de Kyomasa], assim como os soldados atenienses acreditavam na presença de Teseu em Maratona” (HEARN, 1895, p. 282).

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Hearn (1895, p. 284-285) ainda relata que:O Imperador enviou presentes a suas tropas na Coréia, e palavras de afeto paterno; e os cidadãos, seguindo o [seu] augusto exemplo, estavam enviando para cada vapor suprimentos de vinho de arroz, provisões, frutas, guloseimas, tabaco e presentes de todos os tipos. Aqueles que não podiam pagar nada mais caro estavam enviando sandálias de palha. A nação inteira estava subscrevendo o fundo de guerra; e Kumamoto, apesar de nada rica, estava fazendo tudo o que os pobres e ricos poderiam ajudá-la a fazer para provar sua lealdade.

Posteriormente, Hearn escreveu o ensaio After the War componente do livro Kokoro publicado em 1896. Nesse texto o autor comenta mais detalhes sobre o cotidiano durante o período de guerra, relatando que os japonesas jamais tiveram dúvidas de sua vitória, estando “Do início ao fim [...] certos de sua própria força, e da impotência da China” (HEARN, 1910, p. 90). Hearn (1910, p. 91-95) ainda observa demonstrações cotidianas de nacionalismo, relatando que nas brincadeiras das crianças, a guerra moderna substituiu as guerras dos samurais, sendo a guerra também inspiração para pinturas, peças de teatro celebrando episódios heróicos, artesanato e roupas. E segundo o autor até o momento imediatamente anterior a assinatura da paz nacionalistas fanáticos ainda atentavam contra as vidas de diplomatas chineses (HEARN, 1910, p. 95).

Para Hearn (1910, p. 96) a vitória sobre a China teve também o efeito de atiçar os ânimos populares contra a Rússia (que logo após a guerra interveio diplomaticamente em conjunto com França e Alemanha para evitar que o Japão tomasse posse de Port Arthur), o império vizinho cujos interesses estavam em rota de colisão com os planos do governo Meiji (DURANT, 1954, p. 918). O autor relata que a guerra com a Rússia foi evitada por razões econômicas, mas o povo não perdoa os governantes por isso (HEARN, 1910, p. 98).

Para Lafcadio Hearn (1910, p. 89) a vitória japonesa sobre a China representou a regeneração do Japão através da guerra, “A ressurreição militar do Império” sendo o dia da vitória sobre a China “o verdadeiro dia de nascimento do Novo Japão” (HEARN, 1910, p. 90), agora marcado pelo nacionalismo e por um futuro fecundo de promessas.

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Considerações FinaisComentando os resultados da Guerra Sino-Japonesa em um

ensaio do livro Out of the East, Lafcadio Hearn (1895, p. 234) afirma que a autonomia do Japão “está praticamente restaurada, [e] seu lugar entre as nações civilizadas parece estar assegurado” afirmando que isso foi conseguido “pela primeira verdadeira exibição de seus novos poderes científicos de agressão e de destruição”.

Essas observações de Hearn atestam os resultados positivos obtidos pelo governo Meiji ao abandonar o projeto de modernização ocidentalizante que marcou seu início e abraçar um projeto nacionalista e imperialista. O nacionalismo (de fato a primeira grande onda de nacionalismo do Japão Imperial) foi notável nas observações cotidianas feitas pelo autor desde o período anterior à guerra, até o início do conflito e sua posteridade. Essas observações mostram o sucesso da samuraização dos valores nacionais levada a cabo no final do século XIX.

Assim para Hearn o saldo desse novo projeto do governo japonês foi o sucesso, assegurando pela força seu lugar entre as nações civilizadas, e criando uma promissora perspectiva de futuro, por isso o dia da vitória sobre a China foi “O verdadeiro dia de nascimento do novo Japão”.

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O surgimento da imprensa periódica no Espírito Santo e as transformações na vida

política no século XIXFernanda Cláudia Pandolfi1

IntroduçãoApesar do Correio da Victoria (1849-1872) ter sido

frequentemente mencionado na reconstituição e análise da sociedade capixaba (Bastos, 2007; Ferreira, 2010; Campos, 2006), ainda está por se fazer uma análise mais pormenorizada que enfatize o impacto desse periódico como o primeiro jornal a introduzir novas ideias e valores nos embates políticos que se travarão no período. O objetivo dessa comunicação é analisara atuação e o impacto desse jornal no cotidiano da política.Em termos mais amplos, a pesquisa visa contribuir para a historiografia do oitocentos, enfatizando a especificidade do Espírito Santo no conjunto das províncias que constituíam o Brasil no século XIX, em momento importante da constituição do Estado e da sociedade civil.

O tema proposto insere-se no campo da história política, com ênfase nas articulações entre política, cultura e sociedade. Tais relações ganharam destaque, principalmente, com a literatura que utilizou o conceito de “espaço público” de Habermas (1984). O espaço público, nessa literatura, é caracterizado como o surgimento de um domínio entre o Estado e sociedade onde inicialmente literários e jornalistas e, posteriormente, grupos diversos do povo, ajudaram a moldar uma “opinião pública” que contrabalançava o poder absolutista dos Estados e influenciava a configuração da política. Partindo dos insights iniciais de Habermas, muitos autores têm chamado atenção para as conexões entre política e cultura, enfatizando as formas de manifestação do privado no espaço público e, dessa forma, enriquecendo o conceito com questões referentes à

1 Pós-Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista FAPES/ CAPES.

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honra, gênero e etnicidade na analise da política (Piccato, 2010b)2.Uma das contribuições seminais para a história da imprensa,

ainda não explorada por historiadores brasileiros é o trabalho de Elizabeth Eisenstein (1979), que analisa de que modo o advento da imprensa no Ocidente alterou o ambiente físico e intelectual de homens e mulheres, mudando especialmente a maneira como eles se relacionavam com o passado. Nesse processo, segundo a visão da autora, a imprensa teria possibilitado a consolidação de uma noção mais clara de época e lugar, permitindo que os próprios letrados enxergassem o passado disposto diante de seus olhos através da internalização das tabelas mentais de tempo e do reconhecimento dos anacronismos. Nesta mesma perspectiva, Lynn Hunt (2009) sublinhou o papel da imprensa na criação da empatia quanto à noção dos direitos humanos, mostrando que novas sensibilidades não se explicam somente pelo contexto social e cultural, mas também pelo modo que as mentes individuais compreendem e remodelam esse contexto.

O trabalho utilizará essas ideias para pensar especificamente questões como as seguintes: de que forma a imprensa periódica capixaba contribuiu para moldar a forma de os letrados se relacionarem com o passado e com a política? Que impacto teve a imprensa na disseminação de ideias e na configuração de um espaço público na província do Espírito Santo? Em que medida ela contribuiu para a formação de uma identidade local e nacional?

A imprensa no século XIX e o jornal Correio da VictoriaO estabelecimento e expansão da imprensa no Brasil na

primeira metade do século XIX estiveram diretamente relacionados à formação e ampliação do espaço público da vida política. Influenciados principalmente pelas análises de Habermas (1984) e/ou Koselleck (2012), uma série de trabalhos vem trazendo contribuições sobre o impacto do surgimento ou expansão da imprensa periódica nos embates políticos na primeira metade do século XIX (Morel,

2 Para uma resenha crítica sobre essa literatura ver Piccato (2010a).

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2005, Fonseca, 2006; Silva, 2006). Neste momento os periódicos, que se auto-atribuíam a missão pedagógica de educar e informar os leitores a respeito das ideias liberais e constitucionais, constituíam-se no principal locus de articulação de grupos políticos e de projeção de homens letrados na política. A considerável liberdade de imprensa então vigente no país propiciava a manifestação de discussões acirradas entre os periódicos que disseminava acusações, intrigas e rumores que, de fato, influíram nos rumos da política (Pandolfi, 2014a; 2014b).

O Espírito Santo, porém, não vivenciou em sua plenitude este momento da imprensa, tendo somente um único número do jornal Estafeta publicado em 1840. Tal fato, possivelmente, ajude a entender porque as relações políticas entre as elites locais e dessas como governo central no Espírito Santo na primeira metade do século XIX ocorreram em geral sem conflitos de maiores dimensões, comparativamente à turbulência política de outras províncias. Isto não significa que os conflitos não tenham ocorrido, mas que estes, quando eclodiam, tendiam a ser resolvidos de forma relativamente pacífica. Por exemplo, os conflitos entre as elites ocorridos no período da Independência foram resolvidos a favor das hierarquias estabelecidas desde os tempos coloniais (Goularte, 2014). Durante toda a década de 1840, momento da formação do partido liberal e conservador na Corte, especificamente, não se verifica qualquer polarização política relevante entre as elites, havendo somente menções a existência dos Caramurus e Peroás, grupos surgidos a partir de divergências religiosas e que poderiam estar correlacionadas a diferenças políticas (Siqueira, 2011).

Apenas no final dessa década (1849), começa a circular O Correio da Victoria, que permanecerá em circulação até 1872, período que abrange quase toda a fase de apogeu do Império, iniciada com a consolidação do Estado Imperial a partir de 1850 e finalizada com a lenta e progressiva perda de legitimidade da monarquia a partir de 1875 (Carvalho, 2012, p. 83). O aparecimento do Correio da Victoria em 1849 introduziu, para todos os efeitos, a imprensa periódica no

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Espírito Santo, não significando isto que as elites políticas e os demais leitores estivessem totalmente isolados das discussões anteriores que podiam evidentemente ser acompanhadas em outros periódicos.

Considerado um jornal político, literário e noticioso com circulação bissemanal, o Correio da Victoria teve como primeiro proprietário e redator o secretário do governo Pedro Antônio de Azeredo. Quando de seu surgimento, foi estabelecido um contrato com o governo provincial no qual este periódico se comprometeu na publicação dos atos oficiais por dez anos em troca de remuneração previamente estabelecida (Bittencourt, 1992; Zanandrea; Frizzera, 2005).

Outros periódicos surgiram durante os vinte e quatro anos de circulação do Correio da Victoria. O primeiro foi o jornal Regeneração publicado de 1853 a 1856. Bissemanal, literário e tido como imparcial, teve como proprietário e redator Manoel Ferreira das Neves que era professor da cadeira de primeiras letras na Capital. Entre julho e outubro de 1856 circulou O Capichaba, caracterizado como político e noticioso. Em 1857 foram publicados cinquenta números do O Semanário e em 1859 dezesseis do O Aurora (Zanandrea; Frizzera, 2005). Com o aparecimento de outros periódicos na década de 1860 configurou-se mais claramente as cisões entre as elites locais. Dos periódicos surgidos na década de 1860 até 1873, localizamos em pesquisa preliminar A Liga, O Amigo do Povo, O Monarchista, O Tempo e o Jornal da Victória.

Correio da Victoria: um novo espaço para a política?O Correio da Victoria possuía um cunho declaradamente

oficial, cuja característica aparece claramente definida no primeiro número. Em sua primeira coluna intitulada “Prospecto”, a imprensa é definida como veículo de comunicação entre os povos cultos. Também, aparece definida como meio de instrução popular e uma das “mais palpitantes” necessidades de todas as classes. A missão da imprensa segundo este periódico era “sagrada e sublime”, tendo como objetivo moralizar e doutrinar a humanidade, guiando-se pelos

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conhecimentos das artes e das letras para combater a superstição. Sua missão, assim, aparece claramente como grande divulgador

e propulsor do progresso. O Correio da Victoria (17/01/1849) se colocava como objetivo contribuir para o melhoramento social e material da província do Espírito Santo, pois como o mesmo redator justificava, a falta de um periódico levava os habitantes da capital a recorrer aos jornais da Corte e de outros lugares para a se informar.

A falta de uma tipografia da província era vista naquele momento como prejudicial aos interesses materiais da província. Nesse sentido, acreditava-se que a instalação da imprensa iria tirar a província de uma “espécie de abatimento”, uma vez que caberia a imprensa divulgar a existência de abundantes recursos naturais na província como, além dos rios navegáveis, tantos outros que pudessem despertar o interesse e ambição dos povoadores. Com isto, almejava-se elevar o Espírito Santo ao lugar de importância junto às demais províncias do Brasil (Correio da Victoria, 17/01/1849).

Se o redator mencionava que o invento de Gutenberg promoveria a prosperidade material e importância do Espírito Santo no quadro das demais províncias do Brasil, também foi enfático quanto aos males e prejuízos que a imprensa poderia trazer. Todavia, acreditava que estes poderiam ser neutralizados. Para isso, logo no primeiro número advertiu os leitores que o estabelecimento da tipografia no Espírito Santo não seria uma arena de conflitos, de “torpes recriminações” e “aleivosas diatribes”. Não caberia em sua folha, segundo o mesmo, a “polêmica vergonha”, como as que se referiam aos assuntos referentes à vida privada.

Afirmava, portanto, ser a finalidade do Correio da Victoria (17/01/1849) mais nobre: promover o melhoramento material, publicar os atos oficias e disseminar notícias de escritores eruditos. Com a finalidade do jornal então esclarecida, o redator apresenta a estrutura do jornal, o que oferece um guia importante para orientar a pesquisa nos demais números. Assim, o periódico seria composto por:

I) “Parte Oficial”: composta pelos atos do governo provincial.

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II) “Chronica Nacional e Estrangeira” – aborda notícias do interior e exterior através de estratos tirados de outros periódicos.

III) “Parte Commercial”: relativa às transações mercantis.IV) “Declarações” – contém os dias de partidas dos correios.V) “Folhetins” – publicava contos românticos de autores

como, por exemplo, Victor Hugo, Alexandre Dumas, Eugéne Sue, Balzac, cuja finalidade era “prendar a atenção dos leitores”.

VI) “Correio da Victória” – destinada aos “artigos de fundo” e notícias da Corte.

VII) “Variedade” – formada pelos assuntos que não se encaixasse nos outros tópicos.

Ficou estabelecido no contrato da tipografia com o governo que este último deveria pagar por cada folha a quantia de 10$000 reis, bem como o prazo de dez anos de “privilégio exclusivo”. O caráter oficial do Correio da Victoria é reiterado no artigo 9 do contrato que proibia o empresário de aceitar correspondência que contivesse polêmica individual, artigos que ofendessem qualquer cidadão e anúncios com insultos diretos e indiretos. Para assegurar que não fossem feitas críticas ao governo, o artigo 10 estabelecia que o jornal, por ser oficial, não poderia dirigir censuras aos atos do governo, tanto no âmbito geral quanto provincial.

Como se pode perceber, o jornal não almejava o debate de opiniões divergentes e de crítica ao governo, mas a promoção do progresso material. Nesse sentido, embora à primeira vista pareça não ter se proposto exercer um papel no sentido de explicitar divergências em público, os referenciais teóricos utilizados já mencionados sugerem a hipótese deste jornal ter exercido um papel mais importante na política da época.

Provavelmente a “Parte oficial” constituía a sessão que menos atraía a atenção dos leitores. Era constituída de leis, decretos, projetos de lei que versavam em geral sobre nomeações, gratificações e salários dos servidores, criação de escolas, reparo de obras e aprovação de orçamentos para vários organismos ou áreas administrativas. Para

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se salvaguardarem de denúncias de que tais atos oficiais pudessem ser alterados pela tipografia, estabeleceu-se formalmente que fossem submetidas cópias rubricadas pelo secretário do governo, ficando o empresário (no caso a tipografia) obrigado a entregar na secretaria do governo cem exemplares do periódico a ser remetidos às autoridades e aos órgãos da província (Correio da Victoria, 24/01/1849).

Na sessão oficial é possível visualizar as diversas atribuições dos administradores das rendas, dos componentes da secretaria do governo, assim como os projetos apresentados na Assembléia Provincial e os membros que a compunham. Divulgavam-se também salários, gratificações e algumas vezes os nomes de funcionários que conviviam mais diretamente com a população como professores, porteiros, missionários e os que tinham sob sua incumbência a cobrança de impostos (Correio da Victoria, N.1 a N.50).

Aparentemente tais informações sugerem poucos elementos para os objetivos dessa pesquisa por não tratarem efetivamente de conflitos entre grupos políticos. No entanto, elas indicam que a organização e administração da província estavam acessíveis a mais pessoas por meio do Correio da Victoria, propiciando a acumulação de uma experiência compartilhada e a visualização de contradições na esfera pública. Tais dados poderiam ser posteriormente checados e comparados, estabelecendo parâmetros para grupos e indivíduos posicionarem-se, por meio de críticas e intervenções de forma mais sistematizada nos assuntos públicos. A leitura,ainda em andamento, dos demais números do Correio da Victoria, juntamente com a dos demais jornais surgidos nas décadas de 1960-70, poderão fornecer elementos para uma abordagem mais aprofundada sobre esses aspectos.

Ao contrário da natureza árdua e técnica da sessão de publicações oficiais, a de “Variedades” continha pequenas histórias que provavelmente atraíam a atenção de um público mais amplo de leitores como, por exemplo, comentários trágicos e algumas vezes cômicos sobre relacionamentos pessoais3.

3 Ver “O Casamento Fatal” (Correio da Victoria, 17/01/1849, p.4) e “Os

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Em outras seções, era comum aparecerem temas como relatos sobre a organização dos aldeamentos de indígenas, cuja principal finalidade segundo o periódico era incutir o desejo da civilização entre os índios errantes, com destaque especial para o Aldeamento Imperial Afonsino, e escritos sobre o estabelecimento e organização da colônia alemã. Ambos os temas ilustram o objetivo do jornal de mostrar como a província se organizava rumo a modernização, civilização e progresso material, o que, como lembrava o jornal, contribuía para elevar o grau de importância do Espírito Santo frente as demais províncias.

Outro tema frequente era os relatórios da Assembléia Provincial que se esmeravam em destacar a tranquilidade em que se encontrava a província do Espírito Santo no meio da convulsão geral que abalava outras províncias. Afirmava-se que, com exceção de um ou outro motim de tropas insubordinadas, essa província era a “atalaia da tranquilidade” e que nela inexistiam dissenções políticas. A província do Espírito Santo era saudada como “o mais firme baluarte das instituições juradas”, cujo motivo apresentado para isso era a afirmação da não existência de partidos políticos na província (Correio da Victoria, 27/01/1849, p. 1).

Apesar de exaltarem essa tranquilidade pública no que se refere às disputas entre grupos políticos, a segurança individual e da propriedade era motivo de preocupação. Por exemplo, o jornal via com preocupação os diversos ajuntamentos de negros fugidos – os quilombos, denunciando que esses escravos estavam sobre a proteção de “acoitadores” que os empregavam em sítios da região.

O acontecimento que mais causou tensão quanto a este aspecto foi a insurreição do Queimado. Em vários números, o Correio da Victoria acompanhou o motim, de seu início até a prisão e o julgamento dos escravos envolvidos (ver, por exemplo, Correio da Victoria, 11/04/1849, p. 3).

Um dos objetivos do trabalho foi identificar um vocabulário político típico do Correio da Victória. Nesse sentido, identificamos

Herdeiros Logrados” (03/03/1849, p.3-4).

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nas notícias internacionais uma tendência a posicionar-se a favor das monarquias constitucionais em detrimento das repúblicas. Em relatório do presidente da província Dr. Antonio Pereira Pinto publicado no Correio, por exemplo, o respectivo autor criticou a Revolução Francesa em sua fase referente ao ano 1793, comparando-a com um “colosso com pés de barro” e com meteoros, por ter durado somente enquanto o seu brilho fascinava as “inteligências mais exaltadas”. Por isso, segundo o autor, a Revolução teria desaparecido, assim como muitas de suas vítimas, sem que seus princípios se enraizassem (Correio da Victoria, 31/01/1849). Em outro relato que foi retirado do Diário do Rio, o jornal deixa claro sua tendência monarquista, ao mencionar a fuga de Luiz Felipe e de toda a família Orleans, assim como o rei da Prússia que deu uma Constituição “muito liberal” aos seus povos. Assim, as notícias internacionais relatadas convinham ao posicionamento do jornal, que apesar de posicionar-se a favor do governo monárquico constitucional, não deixava de lembrar como eles poderiam ser frágeis tanto no Brasil quanto na Europa.

A principal contribuição do trabalho até o momento foi mostrar que a circulação do Correio da Victoria, além de dar publicidade aos decretos governamentais e divulgar os acontecimentos da província e de demais regiões do Brasil, permitiu ampliar o escopo das discussões políticas, ao disponibilizar a acumulação de uma experiência compartilhada e a visualização de contradições na esfera pública.

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Políticas públicas para a zona rural: Serviço Social Rural e as leituras

conservadoras do papel do Estado (1951-1952)

Irlan de Sousa Cotrim1

IntroduçãoEm 19 de junho de 1951 o então Presidente da República

Getúlio Vargas envia mensagem ao Congresso Nacional propondo a criação do Serviço Social Rural. A alegação apresentada na época pautava-se no crescente fluxo migratório da população trabalhadora da zona rural para os grandes centros urbanos.

O Serviço Social Rural foi alvo de constantes debates dentro e fora da Câmara dos Deputados. Vários argumentos foram dados. Dentre eles destacamos os deputados federais Galeno Paranhos do Partido Social Democrático (PSD), Novelli Júnior (PSD), Celso Peçanha do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e Ruy Santos da União Democrática Nacional (UDN), os três últimos, no dia 22 de junho de 1951, apenas três dias após o envio da mensagem por Vargas, debateram o projeto em sessão plenária.

Dentro desta problemática, este trabalho tem por objetivo analisar os discursos em torno da criação dessa política de contenção do êxodo rural da época, bem como compreender as disputas de poder que provocava a saída em massa dos camponeses e o quanto interferiam nas interpretações dos parlamentares no que diz respeito à abrangência do Serviço Social Rural.

Neste sentido entendemos que a discussão empreendida e que levou anos para culminar em 1955 na aprovação da lei definitiva do Serviço Social Rural, entre 1951 e 1952, teve uma forte concepção autoritária e conservadora como discurso hegemônico, o que permaneceu posteriormente nas discussões da política

1 Graduando em História pela Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista do PET Cultura.

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assistencialista no pós-governo de Vargas. Tal interpretação é herança do pensamento elitista sobre o homem rural, como indolente e preguiçoso, desprovido de saneamento básico e educação apropriada ao trabalho na terra, legada de uma literatura modernista.

Autoritária no sentido de que apesar do Serviço Social Rural ter sido fruto também da pressão de sindicatos rurais, mesmo regionalizados – principalmente durante a campanha de Vargas em 1950 – quem mais se interessava pelo PL não foi consultado. Conservadora no sentido estrutural da leitura da realidade que mostrava os problemas referentes às péssimas condições de vida – sanitária, educacional, salarial – atribuindo o Estado como o único responsável por este esquecimento da população rural sendo esta tida como ignorante e vítima das circunstâncias.

Assim sendo a hipótese defendida neste trabalho é que a solução para o problema do êxodo rural seria de caráter conciliatório. Os interesses dos latifundiários deviam ser contemplados pelo Serviço Social Rural, no sentido de manter o trabalhador rural no campo, melhorando as condições de trabalho, mas sem interferir na forma pela qual o trabalho na gleba era estruturado. Entre outras palavras, o Serviço Social Rural teria a finalidade de melhorar as condições sanitárias e permitir uma educação campesina que girasse em torno do trabalho na terra, bem como a ideia de que com essa política o êxodo rural iria diminuir.

Primeiramente discutiremos as literaturas sobre o tema da terra, bem como autores que versam sobre o segundo governo de Vargas. Posteriormente abordaremos a crônica dos eventos nos quais a fonte primária se encontra e por último desconstruiremos o discurso dos deputados supracitados, bem como demonstraremos como a nossa inferência foi originada.

Dessa forma, este trabalho se revela um esforço em entender as políticas para a zona rural sob a ótica daqueles que não tiveram voz na arena pública: os trabalhadores rurais e os pequenos agricultores (autônomos). Isto, a partir dos discursos dos deputados,

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da análise documental proposta por Jacques Le Goff (1990) – a desdocumentalização do documento – e de um relatório impresso em 1952 sobre a primeira Missão Rural no município de Itaperuna (RJ). Esta documentação secundária foi redigida no intuito de auxiliar o Governo Federal da época nas discussões sobre o Serviço Social Rural.

O segundo governo Vargas e o meio rural: literatura sobre o tema

A temática em torno do Serviço Social Rural2, por si só, não possui muitos estudos acadêmicos. Porém, a relação do Governo Vargas com setores ligados a zona rural são inúmeras. Tais leituras apontam para o caráter conciliatório da política varguista, no sentido de que para se manter no poder, Vargas fez alianças com forças partidárias e opositoras.

Sobre este aspecto, Maria Celina D’Araújo traz uma grande contribuição com a obra O Segundo Governo Vargas (1951-1954): democracia, partidos e crise política (1992), apresentando um estudo desde a eleição de Getúlio Vargas em 1950, até a crise política iniciada em meados de 1953 que culminou no então suicídio do presidente em agosto de 1954.

A autora demonstra em seu livro como Vargas no início de seu segundo mandato, democraticamente eleito, praticou uma política apartidária. D’Araújo divide o segundo governo Vargas em duas fases: a primeira (1951-meados de 1953), marcada pela política conciliatória implantada pelo presidente, principalmente pela composição de seus ministérios, fechados para temas como nacionalismo e trabalhismo. Isto na visão da autora teria sido o reflexo de um conflito interno dentro dos setores da burguesia industrial da época, cabendo ao presidente na ocasião, medir esforços para apaziguar as desavenças internas. A segunda fase do segundo governo Vargas seria marcada pela virada política empreendida pelo presidente, considerada por alguns como uma guinada à esquerda,

2 Representado agora pela sigla SSR.

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entre 1953 até agosto de 1954.Essa “virada” empreendida pelo Governo estaria evidenciada por dois marcos: a reforma ministerial de junho-julho de 1953 e a instrução 70 da Sumoc (Superintendência da Moeda e do Crédito), datada de outubro desse mesmo ano, tida como um golpe contra os grupos comerciais em prol da industrialização – o que teria desgostado boa parte dos setores econômicos dominantes. Interpretada como urna guinada para a esquerda, a nova orientação teria despertado a reação direta da classe média e dos grupos econômicos, em aliança com as Forças Armadas, contra o Governo. O conflito intraburguês passa a um plano secundário frente à ameaça do movimento de massas consentido e até mesmo incentivado pelo Ministério do Trabalho (D’ARAÚJO, 1992, p. 21).

Assim sendo, a autora atribui a crise de agosto de 1954 ao fracasso desta política conciliatória.

No tocante as organizações políticas da época, há que se fazer uma ressalva no que diz respeito à relação partido e filiado. Apesar dos partidos terem uma carta-programa, aprovada em convenções nacionais, seus filiados poderiam se mostrar contrários a certas proposições e por vezes serem contra um colega do mesmo partido.

Isso explica a divisão proposta por Renan Vinícius Magalhães (2015) em O Segundo Governo Vargas e o Trabalhador Rural: propostas políticas por uma legislação trabalhista no campo (1950-1954), dissertação de mestrado, a qual o autor defende a tese de que embora o Serviço Social Rural tenha sido uma política cuja finalidade consistia na melhoria da vida do trabalhador rural, na realidade, reafirmou o poder de exploração dos grandes proprietários.

Magalhães percebe pelo menos três grupos de deputados no decorrer dos debates sobre o SSR. Distintos em termos de concepção da aplicabilidade e as condições desse projeto de atender aos trabalhadores rurais. Esses grupos são denominados por ele como os opositores, os otimistas e os radicais. Opositores porque em seu discurso não acreditavam na viabilidade do PL no Brasil. Segundo o autor, diziam que o Brasil não possuía infraestrutura, como por exemplo, a falta de médicos e a forma pela qual o Estado convenceria os profissionais a atender àquela população que vivia na penúria,

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como eles adjetivavam a vida das pessoas que moravam no campo. Os otimistas acreditavam no projeto, porém não mexiam nele. A própria questão agrária, de distribuição de terras (reforma agrária) não era mencionada pelos parlamentares otimistas. Já os radicais reconheciam a importância do PL para a classe trabalhadora rural, porém acreditavam que apenas com uma ruptura estrutural (queda dos latifúndios, do capitalismo, etc.) a vida dessas pessoas viria a melhorar. Estes fizeram algumas ponderações no projeto. Vale ressaltar que dentro de partidos considerados oposição ao governo Vargas aderiram ou reiteraram sua discordância com o PL do SSR, o que indica que o locus do deputado pesou mais que uma unidade político-partidária (MAGALHÃES, 2015).

Outro fator importante a ser destacado é a biografia daqueles deputados que se encaixariam dentro desta divisão ideológica proposta por Magalhães. O lugar de fala desses deputados influenciou o modo pelo qual cada um se posicionou. Um exemplo seria o deputado udenista Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque3 (UDN-RJ), que se mostrava a favor do projeto, e segundo Magalhães, foi um dos que mais se destacou entre os otimistas. Este parlamentar nasceu em Alagoas e seus pais eram pequenos agricultores. Assim, vale ressaltar que nenhum dos deputados cujos discursos serão analisados a posterior tiveram aproximação com o meio rural de forma acentuada, tampouco viveram na zona rural.

No tocante ao grupo o qual Galeno Paranhos (PSD), Novelli Júnior (PSD) e Celso Peçanha (PTB), de acordo com a análise

3 “Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque nasceu em 1906, no estado de Alagoas, era filho de pequenos proprietários rurais. Em 1926, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou em empregos sem muito prestígio. Em 1927, começou a trabalhar como administrador de uma fazenda, ocasião em que se envolveu em diversos conflitos armados por questões de terras, chegando a ficar preso em Petrópolis. Ainda enquanto administrador, Tenório destacou-se pela forte repressão aos trabalhadores em greves, e foi aos poucos comprando porções de terras desvalorizadas que, com o tempo, se valorizaram. Na década de 50 ele se candidata e é eleito deputado federal, com grande prestígio, sobretudo das classes populares. A ligação de Tenório com as classes populares, e com a população rural, foi significativa; era considerado o PTB dentro da UDN. Tenório era de origem rural, e seu prestígio e caminho para a política também se deu por vias do seu contato com o campo” (MAGALHÃES, 2015, p. 71).

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feita por Magalhães (2015), seriam estes pertencentes ao grupo dos otimistas, uma vez que em seus discursos esses deputados proclamavam seus colegas para que juntos planejassem o projeto de lei do SSR. A nosso ver, apenas Ruy Santos (UDN) se encaixaria no grupo dos opositores, não apenas ao projeto, mas também a todo o esforço empreendido pelo governo federal da época, no sentido de desqualificação da oposição petebista.

Em Documento/monumento, último capítulo do livro História e Memória, de Jacques Le Goff, este aborda como o trato documental foi sendo alterado durante as épocas dentro da historiografia. Para este trabalho optamos por utilizar a análise documental no que tange a sua desdocumentalização, ou seja, reinserção do documento – Diários da Câmara Federal – em sua época, aproximando-nos das percepções de sua época original.

O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-verdade. Todo o documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo (LE GOFF, 1990, p. 548).

Dando prosseguimento à literatura sobre a temática do SSR, Leandro Souza Moura e Paulo Emílio Matos Martins em artigo publicado nos anais do V Encontro de Estudos Organizacionais da ANPAD (2008), O “Coronel” e o Espaço Organizacional: os Coronelismos de Enxada e Eletrônico como formas de poder, apresentam uma discussão acerca do termo coronel no contexto urbano e rural, bem como o poder exercido por esta figura.

Concordamos com os autores quanto à influência política dos coronéis. Porém, discordamos dos mesmos no que diz respeito a uma manipulação ou uso da ignorância política ou erudita do trabalhador rural. Partimos do pressuposto que trata-se de contratos de trabalho de trocas mútuas, contratos de trabalho firmados entre proprietário e colono, nos moldes de um colonato. Numa relação dessas, pode-se inferir que as decisões políticas também se valiam desse sistema de colonato e não como manipulação, mas sim por trocas de favores.

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Assim sendo, essa forma de enxergar as relações coronelistas no Brasil, simplificadas em uma manipulação dos opressores aos oprimidos, reduz a problemática política que se pode obter, uma vez que o SSR se revelou como uma forma de extensão de direitos trabalhistas para o campo, acatada pelo Governo Federal da época, discutido entre os parlamentares que tinham em suas retóricas ideologias concernentes aos grupos aos quais estavam inseridos e que podiam ou não ser aceitas.

As discussões sobre o Serviço Social Rural no cenário político

Clifford Andrew Welch (2016) fez um estudo sobre a reorganização da vida rural no Brasil durante o Estado Novo. Esta bibliografia expõe que a problemática da terra estava em voga ainda no primeiro governo Getúlio Vargas, além de mostrar as disputas e os anseios de setores ligados a latifundiários e sindicatos rurais. O autor derruba a tese básica de que no Estado Novo, no primeiro governo de Vargas e mesmo no Governo Provisório (1932-1936), não tenha havido uma preocupação com questões agrárias (WELCH, 2016).

Isso permeou todo o Estado Novo com convenções e eventos fomentados por diversos setores da sociedade. Em 1º de maio de 1941, Vargas discursou no estádio do Vasco da Gama, dirigindo-se aos trabalhadores rurais, algo que se repetiria muito durante a sua campanha futura em 1950. Segundo Welch (2016), duas semanas após este discurso, fazendeiros e empresários, além do ministro do trabalho da época se reuniram em São Paulo no I Congresso Brasileiro de Direitos Sociais.

Embora todos argumentassem contra a aplicação das leis de trabalho urbano ao campo, eles não se opunham ao conceito de incorporar a sociedade rural à estrutura corporativista do Estado Novo. Concordando em que a organização “racional” do setor era fundamental ao progresso econômico do Brasil, fizeram suas contribuições de forma muito mais cooperativa que em tom de confronto. De fato, os porta-vozes dos agricultores aproveitaram as ambiguidades do discurso de Vargas para enfatizar os problemas produtivos gerais e não os problemas específicos ou as condições de

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seus trabalhadores (WELCH, 2016, p. 91).

A autora ainda escreve sobre o caráter oligárquico que o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) que se sobressaía ao caráter federativo, ou seja, rixas internas ou facções internas que discordavam mesmo da carta-programa do partido. D’Araújo (1996) alega que o estatuto do PTB sofria contínuas alterações, tomadas de decisão intra-partidárias eram feitas sem o amparo legal, respeitando a realidade na qual o partido estava vivendo na época.

De acordo com Magalhães (2015), questões rurais sempre estiveram na pauta da campanha de Vargas e nas eleições de 1950 não foi diferente. Apesar da questão agrária não ter sido a principal política defendida durante a campanha, em suas várias viagens as regiões norte e nordeste e em cidades rurais do sudeste Vargas fazia questão de prometer políticas para a extensão dos direitos trabalhistas da zona urbana para a zona rural. Dentre as propostas, podemos elencar a extensão da Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), instituição do salário mínimo, melhoria das condições de saúde e educação voltada para o campo e reforma agrária. Porém, o projeto aprovado em 1955, bem como a discussão defendida pelo grupo dos otimistas, facultou pela assistência médico-sanitária à reformas consideradas radicais demais.

Ainda segundo o autor, jornais da época como o Correio da Manhã – documento analisado em sua dissertação de mestrado – transformavam a semântica desses discursos de Getúlio, e o fazia com o intuito de despertar a população.

Desse modo, a intenção do jornal se totaliza, indicando o perfil de Vargas, e do PTB, em alinhamento à classe patronal, e o trabalhador sendo o mero recurso para angariar votos. Contudo, essa interpretação revela uma das faces do jornal em atribuir à classe trabalhadora a posição de passividade, uma não consciência de seus interesses e desejos, assim, os operários são apresentados como meros manipulados pelo líder carismático (MAGALHÃES, 2015, p. 40).

Assim sendo o pensamento autoritário do jornal nos revela qual era a posição política deste na época, de que a população – sobretudo a mais carente e distante do saber erudito – eram manipulados pela

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retórica de Vargas, bem como daqueles que estivessem acima da massa popular. Na documentação secundária constatamos que esta concepção influenciou nas propostas apresentadas pelos membros da 1ª Missão Rural de Itaperuna (RJ), bem como esse discurso está presente nas falas dos deputados analisados e por fim, como isso permaneceu nas discussões posteriores a 1952, chegando até em 1955 com a aprovação do Serviço Social Rural.

Magalhães no último capítulo de sua dissertação faz um levantamento de alguns dos projetos e anteprojetos apresentados entre 1951 até 1954, posteriores ao projeto 84/1951 apresentado por Galeno Paranhos (PSD) até o PL nº 2.613, de 23 de setembro de 1955, que instituía o Serviço Social Rural. Houve projetos que beneficiavam muito mais a classe trabalhadora rural, especialmente o pequeno agricultor autônomo e os empregados. Porém, como as outras tentativas de avanço esses projetos foram arquivados. Em 11 de outubro de 1962 o Serviço Social Rural foi extinto, tendo suas atribuições absorvidas pela SUPRA (Superintendência da Política Agrária).

O debate em torno do Projeto “Serviço Social Rural”Em 10 de abril de 1951, Galeno Paranhos discursou sobre o

Projeto de Lei no 84/1951, que dispõe sobre a criação do Serviço Social Rural. Alguns artigos versam sobre questões de financiamento do serviço, bem como multa para os donos de terras punidos por alguma infração ou descumprimento de algum artigo do PL e da arrecadação das taxas referentes. Nosso objetivo neste trabalho não é discutir o PL, mas sim analisar os discursos que se faziam da realidade da vida rural e buscar compreender como tais discursos foram formados, buscando entender o que falam, calam e deixa implícito e as possíveis razões disto.

Galeno Paranhos aborda na justificativa a questão do êxodo rural. Alega o esquecimento da população rural como à causa do imaginário destes que na cidade urbanizada como uma nova chance de vida e de trabalho com melhores condições e salários mais

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compensadores. Sem habitação higiênica, sub-nutrido, mal vestido, sem instrução, sem assistência médica, mal remunerado, enfim, vivendo esquecido de todos, o que lhe resta a fazer é abandonar a gleba e procurar a cidade, onde a falta de preparo técnico e de melhor adaptação, contribuirá para agravar a crise urbana, perambulando pelas favelas. Desta vida sem objetivos passa para a vadiagem, para a faina dos expedientes e, finalmente, para o crime, gerando esse estado de permanente alarma em que vivem as famílias ameaçadas na sua tranquilidade pela ação ininterrupta dos malfeitores [...]. Por outro lado, a produção agrícola vai decrescendo devido à falta de braços para o trabalho (BRASIL, Diário do Congresso Nacional, 10. Abr. 1951).

O parlamentar ainda ressalta que nem mesmo os estrangeiros que vêm trabalhar no campo resolveriam a problemática do êxodo rural, sendo assim de extrema importância a aprovação do SSR, um projeto que tem por objetivo melhorar a vida do homem no campo, por meio do assistencialismo, visando à permanência desses trabalhadores na zona rural.

Aqui temos o problema do êxodo rural e as possíveis explicações para a ocorrência do fenômeno que Paranhos deu. Destacamos a forma pela qual o deputado qualifica os trabalhadores rurais como esquecidos e sem os serviços considerados básicos para o homem, apontando esta carência como o motivo pelo qual o camponês deixa a gleba para tentar a vida na cidade. A tentativa dessa explicação apesar de evocar a vida difícil no campo, cala sobre as relações de trabalho, bem como a forma pela qual o trabalho no campo era estruturado4. Este discurso esconde as diversas formas de trabalho no campo. E deixa implícita a ideia de que esses trabalhadores são vítimas da omissão do Estado, que além de esquecer esta gente, também perde a oportunidade de fazer investir neste tipo de negócio.

Paranhos ainda cita o artigo 156 da Constituição Federal de 1946:

A lei facilitará a fixação do homem no campo, estabelecendo planos

4 Mais adiante demonstraremos com o auxilio de uma fonte secundária uma das formas de contrato de trabalho.

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de colonização e de aproveitamento das terras pública. Para esse fim, serão preferidos os nacionais e, dentre eles, os habitantes das zonas empobrecidas e os desempregados (BRASIL, 1946).

Assim sendo, Paranhos atribui a falta de assistência do Estado em se fazer um esforço maior que o já feito, expresso neste artigo da constituição. O deputado ainda fala sobre a educação que os camponeses não tiveram acesso, atribuindo a isso o fato de irem despreparados para a zona urbana engrossando as estatísticas da violência. Aqui temos o discurso conservador no sentido de que explica a violência a partir da falta de educação apropriada – o que segundo a fala de Paranhos, leva o indivíduo ao ócio.

Em nosso entendimento este tipo de interpretação é legado de um imaginário do homem do campo, sobretudo do pequeno agricultor, como o caipira. Entre outras palavras, um imaginário pautado na personagem do Jeca-Tatu, construído pelo escritor – neto do Barão de Itararé – Monteiro Lobato. Criado a partir da ótica elitista de Lobato que responsabilizava o caipira ao atraso nas técnicas de trabalho na terra, o indolente e o desprovido de educação apropriada e de hábitos pouco higiênicos (VASCONCELLOS, 2009).

Em 22 de junho de 1951, Novelli Júnior se posicionou sobre o Serviço Social Rural, e teve apartes de Celso Peçanha e Ruy Santos – além de uma pequena participação do então deputado Ranieri Mazzili5. Debate sobre a importância da saúde, saneamento básico e educação rural (profissionalizante para o trabalho no campo) para a fixação do povo rural no trabalho campesino. A favor do SSR, faz no fim de sua fala um apelo aos colegas deputados para que após as ponderações e possíveis mudanças, o PL de Paranhos e de Vargas seja aprovado e levado ao Senado Federal.

Ruy SantosEssas missões rurais com a extensão do território nacional, com a fraca densidade de população verificada aqui e ali, não passam de poesia e de demagogia do Ministro da Educação.Celso Peçanha

5 Acreditamos que sua participação neste debate não acrescentou algo novo na discussão. Por isso, seu discurso, apenas uma breve fala, não foi relevante para nossa análise e, portanto, optamos por suprimi-la.

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As missões rurais, culturais não foram idealizadas pelo atual Ministro da Educação. Já as temos no Brasil. No Estado do Rio, no município de Itaperuna, com grande êxito, as missões rurais têm trabalho e estou informado que têm prestado excelentes serviços. [...]. Eu ficaria muito satisfeito se o atual Ministro da Educação, que vive pensando em evitar que o Brasil tenha bacharéis, cuidasse dessas missões rurais [...].Ruy Santos[...] que uma missão passa e deixe o doente, isto não resolve, é pura demagogia.Celso PeçanhaEu não disse que a missão rural vivia solucionar, resolver o problema, mas que colaboraria no programa que vossa excelência está desenvolvendo.Novelli JúniorA educação, todos nós sabemos, é por excelência o agente fixador do homem no solo [...]. Mas, a educação especializada, educação no campo, para o homem do campo levada até ele por professores especializados, educação para o trabalho [...]evitando a criação de mais uma dessas unidades de nome pomposo, com uma cauda astronômica de funcionários, classificados e catalogados nas vinte e cinco letras do alfabeto e que nada realizam em benefício da Nação (BRASIL, Diário do Congresso Nacional, 22. Jun. 1951).

Esse excerto nos revela um discurso autoritário no sentido de que coloca os trabalhadores rurais como vítimas do abandono e do esquecimento do Estado. Aqui temos o papel do Estado como agente de proteção da permanência do trabalhador rural no campo. Esse discurso fala dos problemas mais perceptíveis que atingem a gente rural. Deixa claro que o êxodo rural é fruto da omissão e do esquecimento de políticas públicas estatais para com os camponeses. Esse discurso cala sobre os contratos de trabalho feitos entre os camponeses empregados com seus patrões, bem como cala a desigual disputa entre os pequenos agricultores autônomos frente à concorrência com os grandes latifundiários. Outro ponto crucial que é silenciado, ou apenas dito pelos deputados radicais, como a pauta da reforma agrária. Esse mesmo discurso deixa implícita a ideia de que os trabalhadores seriam vítimas de sua ignorância e da falta de assistência estatal, uma critica ao governo federal, ao mesmo

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tempo deslegitima e rouba o protagonismo dos trabalhadores rurais e de seus sindicatos de serem atores e participar das discussões na arena pública.

Em 1952 foi publicado um relatório sobre a Missão Rural realizada no município de Itaperuna (RJ). O intuito desta empreitada foi justamente auxiliar a gênese do Serviço Social Rural. Este relato foi feito pelo grupo que promoveu atividades com a população desta cidade rural. Foram realizados trabalhos como extensão rural, clubes agrícolas infantis, economia doméstica, oficinas de corte e costura e cursos de enfermagem (BRASIL, 1952, p. 26-43).

Este relatório aborda a vida na região, o clima e os moradores. Há ênfase ao tratar da mecanização da atividade agropecuária, ligando esta ideia ao conceito de prosperidade. As condições sanitárias são vistas como o resultado do esquecimento da região e a ignorância dos moradores em não saberem os princípios básicos da higiene. Neste sentido, os campesinos seriam vítimas de sua própria ignorância. Leva em conta dois principais fatores: ignorância e falta de recursos. Porém atribui a escassa verba dos trabalhadores à ignorância no cultivo e no comércio.

Podem ser encontradas no município várias modalidades de trabalho rural: colonato, parceria agrícola e salário diário. Daí as seguintes denominações dos trabalhadores rurais: colono, meeiro, terceiro, diarista, etc. Via de regra os contratos de trabalho são verbais. Na maioria dos casos o que se observa é uma combinação de dois ou mais dos sistemas citados. O regime de colonato é quase sempre adotado no para a cultura cafeeira, e nele o proprietário entrega ao trabalhador determinado número de cafeeiros para tratar. Em geral o colono pode dispor de terras para o seu plantio exclusivo. À parceria agrícola, em geral, para as culturas anuais. O assalariado é o que recebe por dia de trabalho , livre ou cativo, isto é, sem refeições ou com elas (BRASIL, 1952, p. 26-27).

Esse discurso fala do ponto de vista daqueles estranhos ao meio rural. Se reduz a crítica da falta de acesso dos campesinos à educação formal, à falta de recursos e a falta do Estado. Cala sobre o poder dos grandes latifundiários, bem como as relações entre o meio rural e o meio industrial, embora mencione os tipos de trabalho, não há uma preocupação em se investigar estes tipos de contratos

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verbais. Deixa implícito que os trabalhadores rurais seriam vítimas da sua própria ignorância. Este tipo de leitura conservadora e elitista da realidade da zona rural ignora o ponto de vista dos trabalhadores no sentido de tê-los como vítimas ou incapazes, reféns de sua miserável vida e condições insalubres de trabalho. Associa-se a isso a ideia de retrocesso gerada através da falta de mecanização do meio rural.

Ao final, este trabalho dá algumas sugestões para os governantes quanto à gênese do SSR. Algumas são dignas de nota. Alegam que as atividades da 1ª missão rural brasileira provou que a ação do SSR pode ser possível, uma vez que se adaptou a realidade rural brasileira; a função sine qua non deste PL seria ir ao encontro desta população; a prioridade do SSR atender as cidades rurais conforme sua especificidade6.

Dessa forma, como podemos constatar a leitura conservadora da realidade da vida rural e das condições de trabalho foi predominante no PL do Serviço Social Rural. E apesar da pressão dos sindicatos rurais e de setores considerados mais radicais dentro dos partidos que compôs a bancada do Congresso Nacional da época, o que foi aprovado em 1955 foi uma política mais conciliatória que realmente uma ruptura com a exploração do trabalho nos campos.

Considerações finaisComo podemos observar, ao longo deste trabalho nosso

esforço em tentar compreender como os discursos em torno do Serviço Social Rural foram concebidos nos revela que a pauta rural

6 Cada cidade seria dividida conforme seu grau de progresso: as cidades decadentes são aquelas que no passado já foram desenvolvidas. O trabalho exercido nelas seria o de recuperação. As primitivas seriam as que não tenham acompanhado o desenvolvimento das suas vizinhas e, portanto estariam atrasadas. Seriam regiões sub-desenvolvidas ou atrasadas. O trabalho seria de desenvolvimento econômico-social. O terceiro grupo trata-se das regiões emergentes, em pleno desenvolvimento, mas que pelas circunstâncias tenderam a um crescimento desordenado. Estas seriam objeto de trabalho de orientação. “A escolha, para início do Serviço Social Rural, poderia recair sobre um ou outro desses três tipos de zonas rurais ou sobre mais de um, simultaneamente, conforme fosse revelado de maior interesse do ponto de vista nacional” (BRASIL, 1952, p. 192).

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sempre foi discutida dentro da política brasileira. A pressão de agremiações rurais durante a campanha de Vargas em 1950, bem como a própria ascensão de Getúlio Vargas em 1932 ao governo federal – apenas 3 anos após o crash de 1929 que abalou muitas fazendas cafeeiras, por exemplo – demonstram que o trabalho na terra precisou e muito da assistência governamental, tanto do lado dos latifundiários quanto dos setores industriais urbanos e finalmente a condição do trabalhador rural e autônomo.

Os valores que estavam em voga na época como o trabalhismo, a assistência e o contexto do crescente êxodo rural desde a década de 1920 acarretaram na discussão de políticas públicas destinadas a realidade do trabalho no campo. Porém, o que o SSR representou, ao final das contas, foi uma política que visou conciliar interesses e proteger outros, além de se revelar também como uma arena de conflitos políticos.

Desse modo, o Serviço Social Rural pode ser entendido como uma conciliação de interesses que mesmo tendo raízes nos movimentos sindicalistas teve sua participação calada ou pormenorizada por aqueles que detinham a hegemonia dentro da arena pública, portanto, tinham vez e voz para atuarem dentro de parâmetros muito bem estabelecidos.

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Defensores da Ordem e Conciliadores da Nação: a atuação da imprensa liberal

conservadora no processo de emancipação política da América Portuguesa (1821)

Jorge Vinícius Monteiro Vianna1

A matriz da linguagem liberal conservadora: o iluminismo português

Em Portugal, o Iluminismo teve campo fértil durante o reinado de d. José I (1750-1777), por intermédio da política de orientação racional e pragmática (com o objetivo de fortalecer o poder central do Estado monárquico português) implementada por Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal. Em particular, destacou-se a implementada reforma na Universidade de Coimbra, em 1772, que refletiu um importante grau de consolidação das ideias ilustradas em Portugal. Entretanto, um absolutismo propriamente ilustrado consolidou-se no reinado de d. Maria I (1777-1792) e na regência de d. João VI (1792-1816), com a importante participação na administração estatal de diversos indivíduos (muitos naturais da América portuguesa) educados na reformada Universidade de Coimbra e na Academia Real de Ciências de Lisboa, criada em 1779, e que também constituiu um importante espaço de circulação, divulgação e discussão das novas ideias ilustradas. Assim, no final do século XVIII, o pensamento ilustrado foi difundido na América portuguesa por meio dos altos funcionários, juristas, naturalistas e professores régios a serviço da Coroa, além do gradual aumento da circulação de livros no âmbito da pequena população letrada, apesar da vigilância da censura. Esta circulação comprovou-se por meio das devassas abertas por ocasião das inconfidências do final do período colonial, que elucidaram a penetração do pensamento ilustrado tanto nos influentes proprietários da colônia e membros do clero, quanto em alguns escravos e libertos, que, mediante a interpretação

1 Doutorando do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Espírirto Santo.

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do mundo em que viviam, davam sentidos às novas ideias do século (NEVES, 2001, p, 296-299).

Todavia, ao falarmos de Iluminismo não podemos pensá-lo dentro de uma homogeneidade ideológica. Segundo Francisco Falcon, fica bem demonstrado a “falácia de supormos, com relação ao próprio Iluminismo, uma unidade de princípios e uma autoconsciência que não correspondem, de maneira alguma, à pluralidade inerente às várias tomadas de consciência do movimento ilustrado”. (FALCON, 1994, p. 16-17). Diante dessa pluralidade do que genericamente denominou-se de Iluminismo, a Ilustração ibérica constitui-se por meio de características específicas e, por isso, o ambiente de ilustração português mesclou a força da religião católica com as novas propostas de secularização e pragmatismo que influenciaram diretamente na própria formação das elites política e intelectual atuantes no cenário político de 1820 a 1823 (NEVES, 2003, p. 49). Por sua vez, o “iluminismo português foi essencialmente Reformismo e Pedagogismo. O seu espírito era, não revolucionário, nem anti-histórico, nem irreligioso como o francês; mas essencialmente progressista, reformista, nacionalista e humanista” (CARVALHO, 1985, p. 81).

No mundo luso-brasileiro, destacou-se o importante papel unificador da Universidade de Coimbra em formar uma elite com homogeneidade ideológica e de treinamento capaz de atuar decisivamente no cenário político da primeira metade do oitocentos, no Brasil imperial. Coimbra foi capaz de evitar o maior contato de seus estudantes com Iluminismo libertário francês, formando uma elite letrada identificada com noções reformadoras, aos moldes das Luzes portuguesas (CARVALHO, 2007, p. 65-92). Esses ilustrados brasileiros, sobretudo depois da transferência da Corte para América, identificaram-se com a formação de um grande império luso-brasileiro, atuando com o objetivo de orientar a Coroa com projetos reformistas. Mesmo indivíduos perseguidos, como Hipólito da Costa, acusado e preso por atuar na maçonaria, não defendiam princípios separatistas entre Brasil e Portugal (DIAS, 1968, p. 149).

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Logo, no final do século XVIII e início do oitocentos, evidenciou-se o papel do ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, d. Rodrigo de Souza Coutinho, afilhado de Pombal. Baseado em uma política reformista, d. Rodrigo preocupou-se diretamente em evitar no Império português as experiências vividas pela América do Norte, com a independência dos Estados Unidos, bem como também o radicalismo político ocorrido na Revolução Francesa. Ao mesmo tempo, buscou fortalecer Portugal em relação às demais potências européias, organizando em torno do próprio Estado português um núcleo de intelectuais brasileiros (no qual podemos destacar José Bonifácio, Hipólito da Costa, José J. de Azeredo Coutinho, José da Silva Lisboa, entre outros) imbuídos de formarem um círculo de discussões que valorizassem a necessidade de reformas nas instituições políticas, econômicas e sociais no Império português. Para d. Rodrigo, a América deveria ser tratada como a parte sustentadora da monarquia portuguesa e, por isso, Portugal deveria crescer juntamente com os seus domínios marítimos, especialmente o Brasil, pois, sozinho, tornar-se-ia apenas uma província da Espanha. Em suma, este projeto reformador objetivava a criação de um forte império luso-brasileiro, não deixando de representar uma oportunidade de estabelecer mudanças no quadro político, mas sem desintegração social. Formou-se, desta forma, a chamada geração de 1790, que, tendo na monarquia o sistema ideal, refutou qualquer perspectiva separatista como uma forma de solucionar os problemas do Império português (MAXWELL, 1999, p. 157-207).

Referenciais teóricos e metodológicosInfluenciados por esta perspectiva reformadora que ganhava

espaço desde o período pombalino, essa elite ilustrada aproveitou a penetração das novas ideias e formou, na ótica das mitigadas luzes portuguesas, um núcleo no qual se moldou uma nova cultura política (NEVES, 2003, p. 32). Como nos esclarece Serge Berstein, uma cultura política, além de ser um importante fator na explicação das

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motivações de um ato político de um indivíduo, é, simultaneamente, um fenômeno coletivo compartilhado por diferentes grupos sociais. Doravante,

Submetido à mesma conjuntura, vivendo numa sociedade com normas idênticas, tendo conhecido as mesmas crises no decorrer das quais fizeram idênticas escolhas, grupos inteiros de uma geração partilham em comum a mesma cultura política que vai depois determinar comportamentos solidários face aos novos acontecimentos (BERSTEIN, 1998, p. 361).

Nessas premissas, o círculo de intelectuais brasileiros da denominada geração de 1790, formado em torno de d. Rodrigo, e em importante quantidade aqueles que se formaram na Universidade de Coimbra reformada, constituíram durante o processo de emancipação política da América portuguesa a elite coimbrã. Uma elite que simpatizava com um liberalismo de cunho conservador, execrando qualquer perspectiva revolucionária como forma de criticar as práticas do Antigo Regime (NEVES, 2003, p. 86-87). Para esses homens, a crítica deveria ser feita através de um paradigma cosmopolita reformador, visto que era imprescindível o estreitamento dos laços entre Brasil e Portugal, principal forma de manutenção dos vínculos que os prendiam à civilização europeia, de onde vinham seus próprios valores cosmopolitas de renovação e progresso. Entre seus principais representantes, destacaram-se Francisco Vilela Barbosa, José Bonifácio de Andrada e Silva, José Joaquim da Rocha, Francisco Sampaio, José da Silva Lisboa, entre outros importantes nomes da elite política e intelectual que atuaram decisivamente no processo que elevou a autonomia política brasileira (DIAS, 1986, p. 162).

José da Silva Lisboa (1756-1835), nomeado visconde de Cairu em 1826, foi um dos principais representantes desta elite luso-brasileira, atuando intensivamente na esfera política como panfletário e jornalista durante o processo de Independência do Brasil. Estudioso de latim desde os oito anos de idade, o futuro visconde tornou-se bacharel formado em direito canônico e filosófico pela Universidade de Coimbra, em 1779. Lecionou grego e filosofia racional e moral na Bahia (onde nasceu) até 1797, quando

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foi nomeado deputado e secretário da Mesa de Inspeção da mesma cidade. Durante o governo joanino, conseguiu importantes cargos, como o de desembargador na criação do Desembargo do Paço, em 1808, e logo depois o de censor da mesma instituição, em 1815, ficando responsável pelos exames das obras destinadas à impressão no Rio de Janeiro. Enfim, Cairu foi um exemplo claro de um intelectual e político formado no modelo da Ilustração portuguesa e representante direto do pensamento coimbrão.

Menos comprometida com a questão da unidade do império luso-brasileiro e mais receptiva ao pensamento iluminista francês, devido à leitura de diversos livros proibidos que circulavam por trás da censura, apresentou-se no jogo político da Independência, a elite brasiliense, que, de forma geral, buscava ascender na esfera pública, colocando em primeiro plano o ideal de soberania popular. Podem-se destacar como principais nomes dessa elite, João Soares Lisboa, José Clemente Pereira, Joaquim Gonçalves Ledo, Januário da Cunha Barbosa, Cipriano José Barata, Joaquim do Amor Divino Caneca, entre outros. (NEVES, 2003, p. 86-87). Em nossa visão, esta elite não representou um grupo ideologicamente homogêneo, contudo, foram das folhas impressas desses indivíduos que se consolidaram as principais argumentações críticas ao projeto político da elite coimbrã.

Para a principal tarefa de leitura de nossas fontes primárias (periódicos), este trabalho adota como sugestão metodológica às formulações de J. G. A. Pocock e Quentin Skinner, autores que se destacaram devido à incisiva atuação na renovação do estudo da história das ideias políticas nas décadas de 1960 e 1970 na Universidade de Cambridge. Na tarefa de identificar a importância que as linguagens e o vocabulário político assumiram no processo de Independência do Brasil, visa-se, portanto, reforçar a necessária articulação entre texto e contexto, pois, nesse sentido, abre-se uma importante possibilidade de se entender o que cada autor pretende ao formular ou responder determinada questão, ou até mesmo, porque contesta, repele, privilegia ou ignora certas perspectivas e visões

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sociopolíticas. Conforme o próprio Skinner, quando se retoma os termos de um determinado vocabulário normativo apresentado por um agente com o intuito de descrever seu comportamento político, é possível identificar as “limitações aplicáveis a esse mesmo comportamento”, visto que, “a fim de explicarmos por que tal agente faz o que faz, será preciso referirmo-nos a seu vocabulário, já que este com toda a evidência se delineia como um dos fatores a determinar sua ação” (SKINNER, 1996, p. 12).

Primeiramente, é necessário enfatizar que quando se fala em “linguagens” busca-se significar “idiomas, retóricas, maneira de falar sobre política, jogos de linguagem distinguíveis, cada qual podendo ter seu vocabulário, regras, precondições, implicações, tom e estilo” (POCOCK, 2003, p. 65). Por isso, o historiador do discurso político precisa investir sua análise tanto na aprendizagem destas “linguagens” quanto nos “atos de enunciação” que serão emitidos nessas “linguagens”. Necessita, portanto, “mover-se de langue para parole, do aprender as linguagens para o determinar os atos de enunciação que foram efetuados ‘dentro’ delas”. Sua ação seguinte deve buscar os efeitos desses “atos” sobre o comportamento de outros agentes que utilizaram ou estavam expostos ao uso destas linguagens, bem como também os efeitos sobre as linguagens nas quais os próprios atos foram efetuados. (POCOCK, 2003, p. 66).

A tradição como ponto cardial: a construção da linguagem política liberal conservadora na imprensa da Corte do Rio de Janeiro (1821)

As duas expressões do vocabulário político que definiram a “dissolução final dos laços coloniais entre Brasil e Portugal foram separação e independência”. Entretanto, tais noções só apareceram no conjunto dos escritos no decorrer de 1822, pois, ainda no início do mesmo ano, a recomendação da imprensa enfatizava a união entre os dois reinos. Ao longo de 1822, a proposta de separação política foi ganhando consistência entre as elites política e intelectual, ao mesmo tempo em que as medidas das Cortes de Lisboa iam se

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concretizando como despóticas e causadoras da desunião entre Portugal e Brasil (NEVES, 2003, p. 220-222). Desta forma, no final de 1822 e no desenrolar de 1823, o vocábulo independência afirmou-se na linguagem política dando margens a escritos nos quais o conceito assumiu claramente o sentido de separação e ruptura (NEVES, 2003, p. 222). Porém, ainda nos finais de 1821 e início de 1822, essa clareza de sentido não se constituía.

Em outubro de 1820, chegavam ao Brasil as primeiras notícias sobre o movimento constitucionalista ocorrido em Portugal, no dia 24 de agosto do mesmo ano, na cidade do Porto. Seus atores buscavam em nome da nação, do rei, da religião católica e de uma Constituição reverter o quadro de instabilidade política e de caos econômico encontrado em Portugal. Para tanto, precisavam garantir dois pontos essenciais capazes de assegurar no país a consolidação de um sistema político liberal. O primeiro era transformar as Cortes consultivas (características do Antigo Regime) em deliberativas, assegurando a preparação de uma Constituição que limitasse o poder do rei ao poder Legislativo. O segundo direcionava-se em prol de reformas nas relações econômicas no interior do Império português, para mudar o quadro econômico deixado pela transferência da Corte para América (NEVES, 2003, p. 229).

Em sua Corte no Rio de Janeiro, d. João VI, inicialmente, preocupou-se em declarar a ilegalidade das Cortes convocadas pelos revolucionários do Porto. Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, d. João deparou-se com algumas possibilidades de reações ao movimento. Primeiramente, poderia agir por meio de uma dissolução das Cortes pela força. Outra possibilidade era simplesmente aceitá-la, porém, optou por uma tentativa de controlá-las (SILVA, 1988, p. 07).

Diante desse quadro e juntamente com alguns burocratas, ministros e conselheiros de Estado (principalmente Tomás Antônio de Vilanova Portugal), d. João preferiu assumir uma postura de compromisso, mas recorrendo à noção tradicional das antigas Cortes. Desta forma, buscou esvaziar o caráter deliberativo proposto

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pelos constitucionalistas portugueses, objetivando legitimar as convocadas Cortes apenas com seu tradicional caráter consultivo. (BASILE, 2000, p. 194). Contudo, mesmo com a tentativa do rei e de seus ministros de preservar as estruturas absolutistas de governo e evitar no Brasil o contágio das ideias do movimento constitucionalista, em 1º de janeiro de 1821, o Grão-Pará foi a primeira província a aderir ao movimento vintista, sendo seguida, em 10 de fevereiro, pelo governo baiano.

No Rio de Janeiro, nos primeiros dias de fevereiro de 1821, ainda persistia o impasse sobre qual membro da família real deveria ir para Lisboa. No dia 23 do mesmo mês, publicaram-se dois decretos – um do dia 18 e outro do mesmo dia 232 – que acabaram por gerar uma resposta, em 26 de fevereiro, dos militares da Divisão portuguesa, dando início ao movimento constitucionalista no Rio de Janeiro.

Na manhã do dia de 26 de fevereiro de 1821, reuniram-se na Praça do Rocio importantes tropas dos corpos militares, como o Batalhão de Infantaria nº 3, o Batalhão de Caçadores da Corte, o 1º Regimento de Cavalaria do Exército, a Brigada Real da Marinha, o Batalhão dos Henriques, entre outros. Exigiam do rei o juramento da Constituição que estava sendo elaborada em Portugal, a revogação dos decretos de 18 e 23 de fevereiro e a substituição de membros do Ministério. Convocou-se, consequentemente, o Senado da Câmara na grande sala do Real Teatro de São João, onde se pronunciou, nas palavras do príncipe d. Pedro, a leitura em voz alta de um decreto no qual o rei assegurava aos vassalos brasileiros à sanção da Constituição que estava sendo elaborada em Portugal, aceitando-a

2 O decreto datado 18 de fevereiro de 1821 determinava o encaminhamento de d. Pedro para Portugal, “munido de Autoridade e Instruções necessárias” para executar as medidas que o rei julgava “convenientes”, ouvindo as “representações e queixas dos povos” para se estabelecer a “tranquilidade geral” do reino português e promover as “reformas e melhoramentos” na “Constituição Portuguesa”. Já no decreto de 23 de fevereiro de 1821 há uma convocação dos procuradores das câmaras das cidades e principais vilas do Brasil, para que se formasse uma Junta de Cortes, para realizar exames das leis discutidas no Congresso de Lisboa, propondo melhoramentos que fossem considerados “úteis ao Brasil”. Cf. Gazeta Extraordinária do Rio de Janeiro, nº 3, 24/02/1821.

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e aprovando-a para o reino do Brasil. Tal leitura foi recebida com repetidas vivas ao rei, à religião, e à Constituição. Às 11 da manhã, com a chegada de d. João à praça, reafirmou-se o juramento já feito pelo filho nas palavras do próprio pai. O clima de festa continuou à noite, no próprio Real Teatro de São João, com novas saudações e vivas à família real, diante de uma grande iluminação do teatro e edifícios públicos e particulares da cidade (Gazeta do Rio de Janeiro, nº 17, 28/02/1821; Suplemento à Gazeta do Rio de Janeiro nº 17. 28/02/1821). Por fim, em uma negociação articulada pelo príncipe, acabou-se por evitar uma adesão imediata à Constituição espanhola.

Ainda no rastro do mesmo movimento, em 7 de março, d. João assinou dois importantes decretos que anunciavam o seu regresso à Portugal, com a consequente permanência do príncipe d. Pedro como regente, e a convocação das eleições para a nomeação dos deputados brasileiros para as Cortes de Lisboa (BASILE, 2000, p. 195).

O dia 26 de fevereiro no Rio de Janeiro acabou por marcar e enfatizar o deslocamento do espaço político para cena pública, pois a movimentação política não se realizou apenas no âmbito de uma negociação palaciana, isto é, restrita ao espaço privado. O movimento, além de representar uma participação ativa e representativa do príncipe como domador da cena pública, reafirmando sua imagem e importância política no turbulento contexto, enfatizou o papel predominante que a rua passava a desempenhar na cultura política da época (SOUZA, 1999, p. 99).

Seguindo as análises de Cecília Helena L. de Salles Oliveira, a manifestação constitucionalista do dia 26 de fevereiro representou uma articulação dos homens que formavam, segunda a autora, o “grupo liberal” fluminense (como Joaquim Gonçalves Ledo, Januário da Cunha Barbosa, Clemente Pereira, Manuel dos Santos Portugal, entre outros) com vários oficiais da tropa de linha e milícias. Representou também uma união desses homens contra os principais representantes da nobreza emigrada, da alta burocracia portuguesa (como os ministros Vila Nova Portugal e Silvestre Pinheiro), das

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famílias mais poderosas e dos grandes comerciantes do Rio de Janeiro (como Carneiro de Campos, Fernandes Viana, Nogueira da Gama e Carneiro Leão) que, entre os fins de 1820 e início de 1821, lutavam pela permanência de d. João no Brasil (OLIVEIRA, 1999, p. 107-108).

O grupo de Gonçalves Ledo, principal porta-voz do “Povo” e da “Tropa”, mantinha laços estreitos com os atacadistas portugueses e fluminenses e proprietários de fazendas e engenhos do Recôncavo da Guanabara e Campos de Goitacazes. Entretanto, o dia 26 de fevereiro apresentou toda a capacidade de articulação desse grupo com outros diferentes setores sociais, como pequenos proprietários, funcionários públicos, tropas-de-linha e milicianos, artesões, advogados, bacharéis, e uma importante leva de imigrantes portugueses (que ainda buscavam se ajustar às relações de mercado). (OLIVEIRA, 1900, p. 160-161). Logo, foram às necessidades de evitar o fortalecimento da nobreza emigrada e dos grandes comerciantes da província que uniram estes diversos setores sociais, visto que tinham como objetivo comum frear qualquer tentativa daqueles que estavam ao redor do governo joanino de perpetuarem o monopólio da administração pública, da representatividade política e do mercado (OLIVEIRA, 1999, p. 114-117).

Em fevereiro de 1821, consolidou-se na cena pública a existência de interesses e projetos políticos diferentes e divergentes, que abriam caminho para o estabelecimento de um jogo político cotidiano que caracterizou todo o processo de Independência do Brasil.

Devido ao sucesso inicial da articulação do grupo de Ledo, no dia 26 de fevereiro, José da Silva Lisboa, alguns dias depois, lançou o periódico Conciliador do Reino Unido, representando uma resposta imediata ao grupo de Ledo, Clemente Pereira e Cunha Barbosa.

O ilustrado baiano que, desde os fins do século XVIII, ganhara prestígio político ocupando importantes cargos na administração do período joanino, articulava-se com o grupo dos nobres emigrados e grandes comerciantes que vinham acumulando fortuna com a

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presença da monarquia portuguesa no Rio de Janeiro, devido ao domínio que exerciam em importante parte do mercado da província (diante relações comerciais que ultrapassavam os próprios limites provinciais) e no monopólio da ocupação de cargos estratégicos da administração (OLIVEIRA, 1990, p. 158).

No efêmero periódico que teve a sua circulação restrita a sete números durante os meses de março e abril de 1821, Silva Lisboa não negava a importância dos acontecimentos do dia 26 de fevereiro, mas deslocava a ação do “Povo” e da “Tropa” para a atuação do príncipe d. Pedro e do rei d. João VI, elegendo-os como atores principais dos acontecimentos, em uma tentativa de esvaziar a ação política do grupo de Ledo. Dando parabéns aos moradores naturais do Rio de Janeiro e a todos os outros integrantes do Reino Unido pelo andamento dos acontecimentos (que ocorreram sem desordem e tumulto), o redator caracterizou o dia 26 como um dia “esplendido, em que o Sol, redobrando a carreira, pareceu raiar no horizonte, e subir ao Zenith com superior brilho em um Céu puro”. Assim, o rei pela “mediação” do príncipe real declarou, após ouvir o “seu fiel Povo”, o “Proceder franco e generoso, a Resoluta e Forme Vontade” de fazer o “Maior Bem”, ao mesmo “Povo”, sempre “amante” do seu rei (Conciliador do Reino Unido, nº 1, 01/03/1821).

Por meio do Conciliador, Silva Lisboa da mesma maneira que enfatizava a importância da medida de d. João em elevar o Brasil à categoria de reino, valorizava a necessidade da existência de “Virtudes Cívicas” entre os “Portugueses, natural, ou habitante de qualquer parte do Reino Unido”. Tais “Virtudes” eram necessárias para que se pudesse “verificar o destino da Grande Obra da Constituição”, fruto direto da “Bondade de Sua Majestade Fidelíssima”, que “magnificamente” a proclamou e a prometeu com sua “Real Palavra”, por meio de um “solene Juramento”, no “sempre Assinalado DIA 26 de Fevereiro do corrente ano” (Conciliador do Reino Unido, nº 2, 12/03/1821).

Dia da Salvação e de Regeneração do Reino do Brasil! Dia de espetáculo digno de Deus, e dos homens que arderam em espírito e verdade! Dia, em que a Mão Invisível do Fundador e Regedor da

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Sociedade manifestou as suas riquezas de misericórdia, tocando o coração do nosso Augusto Soberano, para em Seu Nome enviar o Gênio da Harmonia, o Príncipe Real D.PEDRO, como o Anjo da Concórdia, Trazendo tão BOA NOVA: havendo antes o Amável, Inclito e Heróico Jovem, (glória dos olhos de todos os fiéis vassalos) nas mais críticas circunstâncias da segurança pública, sido o Intercessor, e Mediador entre o Trono e Povo, para a Sua Majestade Outorgar a Graça de uma Liberal Constituição, conforme ao Espírito do Século, Empenho de Portugal, Voto do Brasil, e de todos os habitantes dos mais Estados e Domínios da Coroa! (Conciliador do Reino Unido, nº 1, 01/03/1821).

Por intermédio de uma linguagem liberal tradicionalista, José da Silva Lisboa objetivava apresentar o rei e o príncipe como os principais atores do movimento constitucionalista do Rio de Janeiro. A ação popular, por conseguinte, era apresentada como secundária e subordinada à ação legítima dos representantes da família de Bragança. Nessa perspectiva interpretativa, a legitimidade do Império português advinha da tradição monárquica, elemento crucial em um momento de incertezas políticas. Por isso, para o futuro visconde de Cairu, a “Arte das Artes do Bom Governo” consistia em “fazer o povo rico e prosperado, constituindo-o religioso, obediente, tratável e polido; sendo todos os indivíduos docemente enlaçados no dourado cinto da Subordinação às Autoridades Legítimas”. Em suma, era a “subordinação às Autoridades Legítimas” e tradicionais que garantiria ao reino do Brasil o progresso liberal e constitucional sem a necessidade de radicalizações políticas na esfera pública (Conciliador do Reino Unido, nº 1, 01/03/1821).

Todavia, durante a publicação do Conciliador, Silva Lisboa não se restringiria em colocar o príncipe e o rei à frente dos acontecimentos de 26 de fevereiro. Mesmo fazendo parte do grupo dos três periódicos, de curta duração, que iniciaram suas circulações no primeiro semestre de 1821 e que apresentavam um entusiasmo em prol da família real e da defesa do rei3, o redator, nos três últimos

3 Os três jornais são: O Bem da Ordem, do cônego Francisco Viera Goulart, O Amigo do Rei e da Nação, de Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, além do próprio Conciliador do Reino Unido, de José da Silva Lisboa. Segundo Isabel Lustosa, eram jornais escritos e publicados por indivíduos que ocupavam cargos públicos ou tinham ligações com pessoas que os ocupavam, além de pertencerem, seguindo

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números do jornal, fez abertas críticas ao decreto de 2 de março, promulgado pelo governo, que determinava uma relativa liberdade de imprensa, dando fim à censura prévia.

O celebrado Orador de Atenas, Demóstenes, na sua imortal Oração = Pela Coroa = indignado com o abuso da fala que faziam os insidiosos Demagogos, para adularem [...] o povo em desonra do Governo e dos Empregados Públicos, logo no Prólogo brandou dizendo = Não se deve negar a pessoa alguma acesso ao povo: mas o abusar desta liberdade para saciar ódios e invejas, não é reto, nem civil (Conciliador do Reino Unido, nº 5, 07/04/1821).

Neste sentido, o futuro visconde de Cairu legitimava o papel dos “Censores Oficiais”, cargo que ele próprio exercia4, caracterizando-os como os “Guardas da Honra da Nação, e da Tranquilidade Pública”, ou seja, os verdadeiros protetores da sociedade contra as “Cartas difamatória” que atentavam à ordem e que geravam as “injúrias por palavras” causadoras de “mortíferas rixas” (Conciliador do Reino Unido, nº 5, 07/04/1821).

Por intermédio do Conciliador, Silva Lisboa não economizou críticas à relativa liberdade de imprensa. Atacando um folheto anônimo que denunciava estar em circulação, continuou defendendo a necessidade da censura prévia. O autor do folheto anônimo caracterizava a censura oficial como uma “prática absurda – operação assassinadora – castração literária”, afirmando que “perguntar, se a Imprensa deve ser livre, ou escrava, é o mesmo que perguntar por outras palavras, se a Monarquia dever ser Constitucional, ou absoluta”. Em seguida, o redator do Conciliador do Reino Unido respondia:

O Autor e Editor de tão indecentes frases e declamações parece ter-se posto fora da real cena da vida. Se a Declaração de uma Monarquia Constitucional tivesse a potência miraculosa de constituir imediatamente a todos os homens sábios, justos, e discretos; e elevar a todos os países do Território Nacional a igual

uma citação de Antonio Candido, a um “ciclo literário de preito ao Rei” (LUSTOSA, 2000, p. 101-111).

4 No período, José da Silva Lisboa exercia o cargo de membro do conselho de censura da Imprensa Régia, cargo que acumulou com o de Inspetor-geral dos estabelecimentos literários, devido a sua nomeação para esta função durante o movimento do dia 26 de fevereiro. (LUSTOSA, 2000, p. 101).

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grau de civilização, para ninguém fazer abuso da Imprensa; seriam toleráveis, e até plausíveis, as afirmativas do mesmo Anônimo: mas o fato está em contrário. A declaração da Constituição deixa os povos como se acham, e só destina prepará-los para gradual melhoramento, promovendo a Instrução Pública, o que sempre é de efeito lento, e tardio. Entretanto, não deve o Estado ficar sem a defesa natural, exposto aos arrancos do Prelo, pela súbita insurreição do violento espírito de partidos [...] (Conciliador do Reino Unido, nº 6, 14/04/1821).

As preocupações do censor ligavam-se ao possível aumento da circulação de escritos pelas ruas que a falta da censura prévia poderia causar. Em tempos de censura prévia, a possibilidade de impedir e dificultar o grupo de Ledo de expor e defender seus princípios políticos e, consequentemente, adquirir maior legitimidade e aceitação nos espaços públicos, era extremamente maior.

Outras folhas impressas publicadas em 1821 deram continuidade à exposição da linguagem política liberal conservadora inaugurada por Cairu na Corte do Rio de Janeiro. O periódico Amigo do Rei e da Nação chegou ao ponto de explicar o movimento constitucionalista de 26 de fevereiro no Rio de Janeiro como desdobramento natural dos garbosos triunfos da monarquia portuguesa. A narrativa factual e progressista iniciava-se com os benefícios adquiridos pelo Brasil que, a partir de 1500, passou a fazer “parte da Lusa Monarquia”. Posteriormente, passava pela recuperação da glória portuguesa legatária da ascensão da Casa de Bragança e do fim das extorsões espanholas, em 1640, mas só confirmada pela ação estratégica do Brasil em salvar Portugal da “tormenta” que ameaçava a “Europa inteira”, em 1808. Por fim, o Brasil acolhendo decisivamente “em seu seio” o “Imperante” português, logo foi “levantado à Dignidade de Reino”, em 1815, tendo, em seguida, seu nome “eternizado” devido o “portentoso Dia 26 de Fevereiro de 1821”, data em que se marcou no Brasil a “Época de sua maior Glória” (O Amigo do Rei e da Nação, 1821, s/p) A utilização dessa linguagem objetivava tanto deslegitimar qualquer interpretação que caracterizasse os movimentos liberais e constitucionalistas que se espalhavam nas principais cidades da

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América portuguesa como resultados da pressão e soberania popular quanto construir a imagem reformadora e liberal do monarca português, transformado, dessa maneira, no grande condutor e salvador do Império português. Dessa forma, as páginas de outro periódico, o Bem da Ordem, davam a d. João VI as rédeas do processo político que enfraqueceria o Absolutismo em Portugal, ou seja, os movimentos liberais e constitucionalistas eram apresentados como dádiva régia, ação que deveria despertar nos portugueses dos dois hemisférios maior admiração e respeito em relação ao “mais Justo dos Monarcas” (O Bem da Ordem, n. 01, 1821, s/p).

Em suma, por meio da linguagem liberal conservadora, as experiências do passado eram a bússola sagrada para que os caminhos incertos dos necessários – mas perigosos – avanços liberais não se transformassem em comoções políticas ameaçadoras da ordem social. Nesse sentido, o periódico O Bem da Ordem exclamava aos “Compatriotas” portugueses para que se mantivessem em atenção em relação ao “espírito de novidade e impaciência” que ganhava força e que imprudentemente buscava “reedificar um novo Sistema sobre as ruínas do antigo”. Dessa forma, eram as experiências desordeiras e sanguinárias que tinham acometido a Europa, principalmente a França, provas suficientes de que as modificações no sistema político do Império português deveriam respeitar tanto a tradição quanto o espírito reformista, visto que o tempo era o único elemento capaz de aperfeiçoar todas as obras da humanidade (O Bem da Ordem, n. 03, 1821, s/p).

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Disputas sobre a morte e o morrer no imaginário oitocentista capixaba: os

relatórios de presidente de província como fonte de pesquisa

Júlia Freire Perini1

É possível, com alguma frequência, acessarmos por meio dos relatórios de presidente de província do Espírito Santo os apelos para que a gestão da morte sofresse alterações na capital capixaba na segunda metade do século XIX. Acreditamos, portanto, que perscrutando as falas dos presidentes de província, poderemos apreender como esses indivíduos representavam o morrer e pensavam em estratégias para alterar os rituais funerários na província capixaba.

Nesse sentido, pretendemos compreender as lutas por representação que envolviam a morte no Espírito Santo, nos focando, como foi dito acima nos grupos que disputavam a maneira de conduzir os rituais funerários e os argumentos apresentados em torno do tema em debate no que tange as questões sobre higiene, memória e imaginário religioso.

O pedido presente no documento administrativo a seguir, por exemplo, possuía uma mensagem explícita direcionada para vários grupos da sociedade. O então presidente Filippe José Pereira Leal rogou por um cemitério que, segundo seu entendimento, deveria ser construído fora da cidade e dentro dos padrões de higiene estabelecidos pela ciência da época. O autor do pedido direcionava a sua fala para alguns grupos específicos dentro da comunidade capixaba, dentre eles, profissionais que cuidavam da salubridade do espaço público e da saúde dos moradores da província; religiosos; ilustrados residentes no Espírito Santo e também políticos, possivelmente para os que ocupavam as cadeiras da Assembleia Legislativa local:

É ainda debaixo da mais dolorosa impressão, vendo o luto e a

1 Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo.

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tristeza derramados por toda esta cidade, sinal do sentimento das perdas irreparáveis por que cada um passou, narrando-vos com o coração apertado, os males, que ainda lastima esta capital, que em nome da religião dos vivos, e salubridade pública, vos peço, e proponho uma medida, que reputo das mais vitais, e urgentes para esta capital, falo-vos da criação de um cemitério afastado do seu centro. Demonstrar a utilidade, e conveniência de medida tão reconhecidamente salutar, e religiosa, seria ofender o bom senso, e ilustração dos escolhidos da província, e fazer chegar ao vosso conhecimento os males, e abusos, que resultam dos enterramentos nas igrejas [...]Esta medida, [o estabelecimento de um cemitério com seções separadas para cada confraria] que reclama a religião, e a civilização, há sido adotada em quase todas as províncias, que, em virtude de leis confeccionadas por suas respectivas assembleias, tratam de edificar seus cemitérios. Legislai, senhores, neste sentido, e deixai que o governo, por meios persuasivos, vença os preconceitos do povo, fazendo-lhe conhecer os perigos que resultam das inumações nos templos [...](Relatório com que Felippe José Pereira Leal, presidente da Província do Espírito Santo, abriu a sessão ordinária da respectiva Assembleia Legislativa, no dia 23 de maio do corrente ano. Victoria: Typographia Capitaniense de P. A. d’Azeredo, 1851. p. 15.)

O relatório, com seu tom de apelo, nos leva a pensar que houve uma tentativa por parte do presidente da província, de convencer e sensibilizar alguns setores da sociedade para que pudessem ser implementadas mudanças nos rituais funerários com o intuito de melhorar as condições de salubridade da população. Algumas estratégias foram utilizadas pelos administradores públicos na tentativa de convencer setores da sociedade resistentes às modificações dos costumes funerários.

Na esteira da conquista do imaginário dos grupos obstantes à proibição dos sepultamentos nos templos católicos, foi traçada uma relação direta entre o cuidado com as necrópoles e o respeito à memória dos seus entes queridos. Portanto, construía-se o argumento de que alterar a localização dos enterramentos era parte da boa conduta religiosa que devia tratar com reverência seus mortos, lhes fornecendo um local digno, sem violações posteriores

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e o cuidado com a higiene deste espaço. Este último item transitava entre dois argumentos fortes em favor do deslocamento espacial dos cemitérios, pois ele servia também para defender os preceitos científicos da época que propagavam ideias como a importância da escolha adequada dos locais para ocorrerem os sepultamentos.

Além disso, o documento em questão também revela que os debates sobre a mudança da gestão da morte na virada da primeira para a segunda metade da centúria oitocentista estavam voltados, em um primeiro momento, para a proibição dos enterramentos dentro das igrejas. As autoridades administrativas capixabas se colocavam em seus documentos oficiais como interessados em enfrentar obstáculos e resistências às transformações da maneira de lidar com os rituais funerários.

Tomando como referência o trecho do relatório apresentando, podemos notar que o presidente Filippe José Pereira Leal deixou explícitas algumas posições em relação aos problemas causados pela proximidade dos mortos no cotidiano dos moradores de Vitória. Em 1851, ele afirmara que não era mais necessário explicar o porquê do deslocamento geográfico dos cemitérios para fora dos templos e para longe do centro urbano. Mediante tal apontamento, podemos inferir que já havia um debate no meio político e em alguns nichos da sociedade que aceitavam tal proposição como correta.

Nos círculos médicos, por sua vez, as correntes mais proeminentes na tentativa de dar explicações sobre as formas de transmissão das epidemias no século XIX brasileiro eram os assim chamados “contagionismo”, bem como o “infeccionismo”.De acordo com Sidney Chalhoub, os contagionistas entendiam que existia um veneno específico que causava a moléstia, uma vez produzida a substância, ela poderia se espalhar entre os demais indivíduos, seja de maneira direta, por meio do contágio, seja de forma indireta, com o contato com a respiração do ar que rodeava o indivíduo achacado pelo mal ou objetos infestados pela patologia. A outra concepção médica em voga nos anos de 1850 era a dos infeccionistas. Para os seguidores dessa concepção, as infecções

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eram oriundas das substâncias pútridas emanadas da decomposição de vegetais e animais que se espalhavam pelo ambiente. Eles defendiam também que os miasmas infecciosos transmitiriam as moléstias no local de sua propagação (por meio dos miasmas pútridos). No entanto, as doenças também poderiam se proliferar de pessoa para pessoa. O indivíduo são poderia adquirira moléstia caso compartilhasse o ambiente com alguém que estivesse infectado por alguma enfermidade.

Entendia-se, portanto, que a disseminação da mazela não acontecia por meio do contato, mas sim pela contaminação do ambiente. Em outras palavras, o doente alterava a salubridade do local que, por sua vez, poderia transmitir o problema de saúde (CHALHOUB, 1996, p. 64). Os infeccionistas acreditavam que o ar pútrido, as águas paradas, os vapores nefastos eram responsáveis pela transmissão de doenças para a população, por isso, os adeptos dessa vertente advogavam pela eliminação dos focos de contágio das moléstias, quais sejam: regular a presença de matadouros, drenar pântanos, proibir os enterramentos nos templos, entre outras providências.

Perante esses esclarecimentos a respeito dos preceitos da medicina oitocentista, podemos estabelecer uma correlação entre as falas de Filippe José Leal Pereira e as tentativas de convencimento dos seus interlocutores (políticos legislativos, demais setores letrados da população e comunidade religiosa) em relação a mudança de hábitos necessárias para aplacar as epidemias reinantes em Vitória nos anos de 1850 e 1851. Em função disso, o presidente da província tentou sensibilizar parte da população letrada a encampar o discurso higienizador na capital. Em alguns momentos de sua fala, Leal Pereira demonstraria a intenção de buscar apoio para mudanças estruturais e legislativas que à luz dos conhecimentos científicos da época poderiam evitar o que para ele provocou choro, luto e tristeza na província capixaba.

Grande parte desses transtornos poderia ser atribuída aos surtos epidêmicos de febre amarela enfrentados pela província na

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década de 1850. No mesmo decênio, a varíola também fez vítimas fatais (TEIXEIRA, 2008, p. 368-369). No Espírito Santo, estimou-se que cerca de 200 pessoas morreram em decorrência da febre amarela2.A estimativa da população total da província capixaba no ano de 18553 era de 49000 habitantes (DAEMON, 2010), ou seja, 0,4% das pessoas atingidas pelo flagelo foram vitimadas fatalmente. O presidente da província à época considerou esse número bastante modesto, mas mesmo assim, é plausível pensar que ele tenha demonstrado preocupação em evitar um quadro sanitário como o de outras partes do império brasileiro. Filippe Leal possivelmente soube o que se passou na província vizinha, Rio de Janeiro, no que se refere ao ataque da febre. Por lá, o ataque da doença teria sido bem mais agressivo ao longo da década de 1850. De acordo com José Pereira Rego, entre os cariocas, a febre chegou a acometer 90.658 pessoas4, causando 4.160 mortes, aproximadamente, o que representava 1,5% dos habitantes acometidos pela patologia foram a óbito. A população local era de 266 mil habitantes (Lobo, 1978, p. 225-6 apud Rodrigues, 1999).

Muito mais impactante do que as doenças já citadas, foi a chegada da cólera ao Espírito Santo. De acordo com os estudos de Sebastião Franco o número total de mortos chegou a 1700 no ano de 1855. Considerando novamente a estimativa populacional do período, podemos afirmar que essa moléstia atingiu fatalmente em 3,5% o número de contagiados (FRANCO, 2014, p. 124). Vê-se, portanto, que em termos de percentual de mortes, o Espírito Santo sofreu um abalo ainda maior. Concordando com S. Franco, é válido citar, entre os efeitos negativos do surto colérico, a redução

2 Relatório com que Felippe José Pereira Leal, presidente da Província do Espírito Santo, abriu a sessão ordinária da respectiva Assembleia Legislativa, no dia de 25 de julho do corrente ano. Victoria: Typographia Capitaniense de P.A. d’Azeredo, 1850.

3 Não encontrei nenhuma estimativa populacional do Espírito Santo para o ano de 1850. A mais próxima encontrada foi a do ano de 1855. O primeiro censo de dados demográficos foi realizado a partir do ano de 1872.

4 REGO, José Pereira. Esboço histórico das epidemias que têm grassado na cidade do Rio de Janeiro desde 1830 a 1870. Rio de Janeiro,Typographia Nacional, 1872.

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do número de trabalhadores que, consequentemente, alterou a dinâmica produtiva da província (FRANCO, 2014, p. 124).

Retomando a justificativa científica do período para transformar os hábitos, temos ainda a eliminação dos focos de contágio de doenças como uma meta a ser perseguida. Um desses locais de origem dos contágios seria os templos religiosos, pois abrigavam corpos de cadáveres de forma inadequada, inclusive os dos vitimados pelas epidemias. As instalações escuras e mal ventiladas das igrejas contribuíam para a retenção dos odores considerados maléficos para a saúde humana, em razão disso, o hábito de sepultar dentro dos templos passou a ser alvo do discurso médico e político, assim que as epidemias começaram a atormentar a vivência citadina. Relevante também é o fato de que os argumentos a favor da mudança dos costumes tinham como uma afronta à religião o costume de continuarem os sepultamentos dentro dos locais de culto. Tal como foi mencionado no excerto do relatório acima:“Demonstrar a utilidade, e conveniência de medida tão reconhecidamente salutar, e religiosa, seria ofender o bom senso, e ilustração dos escolhidos da província, e fazer chegar ao vosso conhecimento os males, e abusos, que resultam dos enterramentos nas igrejas [...]”.5

Não é incomum encontrarmos entre os argumentos contrários aos sepultamentos ad ecclesiam a ideia de que a casa de Deus deveria ser um lugar livre dos odores e vapores advindos dos corpos putrefatos. Esse foi um claro sinal de rompimento do sentimento de familiaridade entre vivos e mortos. Tal posicionamento ficou explícito também em um trecho da edição 5 do jornal Correio da Victória do ano de 1849:

Em verdade, é uma profanação converter a casa de Deus, que só deve rescender aroma das flores, e o cheiro dos incensos em depósitos de miasmas tão nocivos à saúde daqueles, que no silencio dos templos, de envolta com fervorosas orações, procuram o bálsamo salutar, que a religião católica ministra aos que compreendem, e

5 Relatório com que Felippe José Pereira Leal, presidente da Província do Espírito Santo, abriu a sessão ordinária da respectiva Assembléia Legislativa, no dia de 25 de julho do corrente ano. Victoria: Typographia Capitaniense de P. A. d’Azeredo, 1850. p.16.

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invariavelmente creem nos seus mistérios (Correio da Victória, 1849, edição 5)

Nesse sentido, é possível falarmos de uma forte influência dos conhecimentos médicos na forma de imaginar a morte entre os membros da elite letrada local. Novas preocupações em relação aos cuidados com os mortos surgiram desde pelo menos 1849 no Espírito Santo. Isso é perceptível, dentre outros fatores, a partir de uma mudança em relação à vigilância olfativa dessas pessoas. O cheiro da morte, que há muito tempo era familiar para os que frequentavam as igrejas, começou a incomodar e para além disso, começou a ameaçar a saúde de quem entrava em contato com ele. Esses elementos associados aos episódios dos óbitos provocados pelas moléstias foram essenciais para a mudança na maneira de pensar a morte. A combinação desses acontecimentos levou a pelo menos três proposições na província capixaba àquele período: 1) o fim dos sepultamentos nos templos, 2) o afastamento dos cemitérios do centro da capital e, por fim, 3) a divisão da necrópole em setores para que cada confraria tivesse seu espaço reservado dentro do campo santo.

Mediante a esse contexto, vemos que com o avançar dos anos, surgiriam discussões sobre qual deveria ser o local adequado para receber o cemitério na capital. A Ilha do Príncipe, região relativamente distante do centro da capital, foi, inicialmente, escolhida pelas lideranças locais para abrigar a necrópole. De todo modo:

É este o lugar próprio para declarar-vos, que o governo imperial não pode ceder a Ilha do Príncipe em consequência de constituir ela um próprio nacional, do qual só a Assembleia Geral pode dispor: foi esta a resposta que obtive tendo-a solicitado na conformidade da lei nº 16 de 30 de julho do ano passado. Cumpre que delibereis alguma coisa a este respeito, porque o estabelecimento de um cemitério fora desta cidade é uma necessidade indeclinável. Pessoas competentes, a quem tenho consultado sobre este objeto, me dizem que o fronteiro à referida Ilha do Príncipe há um terreno tão apropriado como ela para o cemitério; e a ser isto assim, me parece mais vantajosa a ideia de ser ali estabelecido, porque, dispensando

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a ponte, haveria economia de tempo e dinheiro. (Relatório de presidente de província Sebastião Machado Nunes abriu a sessão ordinaria da respectiva Assembléa Legislativa no dia vinte e cinco de maio, Victoria, Typ. Capitaniense de P.A. d’Azeredo, 1855, p. 14)

Como perceptível na fala do presidente de província, Sebastião Machado Nunes, em 1855 houve resistência para a alocação dos sepultamentos na região em questão. Mas, esse não foi o único problema enfrentando por quem desejava modificar o local do cemitério em Vitória. Além do obstáculo mencionado no fragmento acima, temos que a província e seus cofres públicos alegavam não contar com muitos recursos financeiros. Assim, Pedro Leão Veloso exporia esse empecilho no seu relatório em 1860:

É necessidade urgentemente sentida para esta província a de cemitérios decentes; a assembleia provincial no intuito de provê-la, votou a lei n. 13 de 14 de julho do ano próximo passado, que foi por mim sancionada, tinha entre mãos o trabalho do respectivo regulamento, estou porém que essa lei pouco poderá melhorar a situação em razão dos minguados recursos das municipalidades. (Relatorio com que o exm. sr. commendador Pedro Leão Velloso, ex-presidente da provincia do Espirito Santo, passou a administração da mesma provincia ao exm. snr. commendador José Francisco de Andrade e Almeida Monjardim, segundo vice-presidente, no dia 14 de abril de 1860; acompanhado do relatorio e appensos com que o mesmo exm. sr. vice-presidente fez a abertura da Assembléa Legislativa Provincial no dia 24 de maio do corrente anno; e do officio com que passou a administração da provincia ao exm. sr. dr. Antonio Alves de Sousa Carvalho. Victoria, Typ. Capitaniense de P.A. d’Azeredo, 1860, p. 6)

Portanto, é perceptível que existiu uma dificuldade para encontrar o local adequado, sendo os consensos em relação a tal proposição menos frequentes do que os dissensos. Os cofres públicos não despendiam de todos os recursos necessários para a realização da obra e além disso, havia outro fator em questão: o que os fiéis pensavam a respeito dessa modificação geográfica dos enterramentos? O que eles estariam pensando a respeito do fato de que eles poderiam não mais ter seus corpos inumados nas cercanias de suas igrejas?

Sobre isso, podemos dizer que havia bastante tensão

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envolvida, caso contrário não teríamos o tom de convencimento e argumentativo em função de uma medida higiênica. Tampouco teríamos a correlação entre forma de se vivenciar a morte e preconceito em relação às mudanças na forma de inumar os corpos:

Legislai, senhores, neste sentido, e deixai que o governo, por meios persuasivos, vença os preconceitos do povo, fazendo-lhe conhecer os perigos que resultam das inumações nos templos [...] (Relatório com que Felippe José Pereira Leal, presidente da Província do Espírito Santo, abriu a sessão ordinária da respectiva Assembleia Legislativa, no dia 23 de maio do corrente ano. Victoria: Typographia Capitaniense de P. A. d’Azeredo, 1851. p.17, grifo nosso.)

Acreditamos, portanto, que o morrer interferia diretamente no viver. Isso se deve por diversas razões. A primeira delas decorria do fato de que quanto mais próximo do altar e da casa de Deus o indivíduo fosse enterrado, melhor poderia ser suas chances de salvação e de triunfo no dia da ressurreição. A proximidade física com o altar, que representava o núcleo principal da igreja, influenciava a percepção espiritual acerca do além-vida. As igrejas, segundo a interpretação de João José Reiseram a Casa de Deus, e em meio as imagens de santos e anjos, esses locais davam abrigo aos mortos até a o dia da tão esperada ressurreição do fim dos tempos prometida aos cristãos católicos. A proximidade geográfica entre o cadáver e todo o aparato religioso que compunha a decoração dos templos representava o que Reis denominou ser um modelo da contiguidade espiritual que os fiéis ansiavam quando chegassem em outra dimensão espiritual, no caso o céu, entre as almas e as divindades. Em outras palavras, a igreja era um caminho que dava acesso ao paraíso prometido por Deus (REIS, 2012, p. 171).

Ainda de acordo com o autor de A morte é uma festa, outro motivo pelo qual as pessoas no oitocentos desejavam ser enterradas nos templos referia-se ao fato de que elas poderiam continuar a fazer parte do mundo dos vivos e poderiam ser rememorados em suas orações. Além disso, eles estariam, segundo Reis, no centro de vários acontecimentos importantes daquelas sociedades. Nas igrejas, celebravam-se momentos importantíssimos da vida cristã: batismo, casamento e morte. A vida política também ocupava

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aquele espaço, pois nele se realizavam eleições, auditórios de júri e discussões políticas (REIS, 2012, p. 171-172). Nesse sentido, soava de forma bastante desconfortável a proposição da proibição dos enterramentos. Uma década após o primeiro surto de cólera e após as acaloradas discussões dos anos 1850, o meio termo encontrado pela Câmara Municipal responsável pela construção do cemitério público na cidade de Vitória seria a construção do campo santo público no terreno do Convento São Francisco. Sobre isso, o relatório de presidente de província de 1864 nos traz:

Conquanto se tenha consumido perto dos trinta contos de réis dos cofres provinciais com o cemitério público desta cidade, ainda este não está concluído, e ao contrário muito resta a fazer-se. Situado na colina em que se acha o Convento São Francisco e contíguo a este, parece-me apropriado o lugar, e suficiente o terreno para ele destinado, entretanto o seu recinto não está todo convenientemente defendido da invasão de animais. [...] Contrista ver-se ofendida a memória dos mortos expostos seus restos a serem pisados pelos brutos. (Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do Espirito Santo no dia da abertura da sessão ordinaria de 1864 pelo 1o vice-presidente, Dr. Eduardo Pindahiba de Mattos. Victoria, Typ. Liberal do Jornal da Victoria, 1864, p. 45).

No entanto, essa solução não agradou a todos, pois essa localização permanecia no perímetro urbano, em uma região central. Ademais, parte dos médicos da capital não concordavam que o terreno do Convento São Francisco fosse adequado. Esse era o caso de Manoel Goulart que passou, as décadas de 1870 e 1880 reclamando das condições sanitárias da capital e afirmando que as necrópoles situadas no centro da cidade seriam “focos-fermente de moléstias”. A posição de alguns cemitérios, dentre eles o de São Francisco, também incomodava muito, pois os médicos sanitaristas acreditavam que as necrópoles poderiam espalhar miasmas pútridos pela cidade em dias de vento muito forte e infectar fontes de água que abasteciam a população (PIVA, 2002, p. 122).

Conclusão

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Assim como em outras localidades do Brasil oitocentista (São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Florianópolis), o Espírito Santo foi assolado por epidemias que contribuíram para modificar os costumes fúnebres em meados do século XIX. No entanto, cada uma dessas localidades possui seus caminhos e descaminhos que culminaram na proibição dos sepultamentos, afastamento os cemitérios dos centros das cidades e resultando na posterior laicização desses espaços.

Como vimos nas fontes apresentadas, o debate relacionado ao fim das inumações nos templos se avolumaram com a chegada das moléstias que acometeram a população capixaba. Entretanto, mesmo com esse elemento novo, as divergências afloraram e constituíram-se como obstáculos e resistências às transformações dos hábitos fúnebres. Desse modo, a segunda metade do século dezenove foi palco de disputas de vários grupos compostos por alguns políticos e médicos que promoviam debates em favor das mudanças já apontadas acima. Foi possível perceber, portanto, que os políticos sofreram bastante influência dos conhecimentos médicos que encampavam as alterações na forma de gerir o morrer.

É também perceptível nas fontes discutidas que os discursos político e médico favoráveis às modificações dos costumes funerários enfrentaram resistência por parte da população local. Assim, quem seriam essas pessoas e quais seriam os motivos exatos de sua objeção a este processo? Ademais, teriam elas se organizado de alguma maneira com o objetivo de se opor às mudanças propostas pelo poder público e pelo saber médico? As respostas a tais perguntas estarão no cerne de nossas preocupações no capítulo seguinte.

ReferênciasCHALLOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na

Corte imperial. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1996. DAEMON, Basílio Carvalho. Província do Espírito Santo:

sua descoberta, história cronológica, sinopse e estatística. 2. ed. Vitória: Secretaria de Estado da Cultura, Arquivo Público Estadual

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do Espírito Santo, 2010.FRANCO, Sebastião Pimentel. Pânico e terror: a presença

da cólera na Província do Espírito Santo (1855-1856). Almanack, Guarulhos, nº07, p.117-136, 2014.

OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Espírito Santo. 3. ed. Vitória: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo: Secretaria de Estado da Cultura, 2008.

PIVA, Izabel Maria da Penha. Sob o estigma da pobreza: a ação da Irmandade da Misericórdia no atendimento à pobreza em Vitória – ES (1850-1889). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2005.

PIVA, Izabel M. da P.; SIQUEIRA, Maria da Penha S. A Santa Casa da Misericórdia de Vitória: ação da irmandade no atendimento à pobreza em Vitória – ES (1850-1889). Revista Agora, Vitória, nº2, p. 1 – 26, 2005.

REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. 6. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: NOVAIS, Fernando A. (Org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 - 1998. p. 96-141. 2v.

RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos Mortos na cidade dos Vivos: tradições e transformações fúnebres na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1997.

RODRIGUES, Cláudia. A cidade e a morte: a febre amarela e seu impacto sobre os costumes fúnebres no Rio de Janeiro (1849-50). História, Ciância e Saude Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 6, nº 1, p. 53-80, Junho, 1999.

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Tribunal do Júri: competência para apreciação de crimes eleitorais no Brasil

(séc. XIX)Lara Ferreira Lorenzoni1

Introdução O Tribunal do Júri surge no Brasil no século XIX, conseguindo,

num determinado ápice, atingir uma competência de julgamento em matéria criminal muito ampla, quase irrestrita. Isso abrange o que hoje se tem pela expressão “crimes eleitorais” (terminologia anacrônica para a época em questão, por isso sendo utilizada entre aspas).

Nesse trabalho, tratar-se-á brevemente sobre a instituição do Tribunal Popular no Brasil oitocentista, bem como o momento histórico em que ela obteve maior relevância jurídica e abarcou os crimes políticos, relacionados à estabilidade e independência do Império e, por conseguinte, crimes advindos do processo eleitoral vigente. Isso serviu de resistência liberal às forças imperais centrífugas, causando grande incômodo às elites, que, até então, detinham o monopólio do direito de dizer o direito.

Implementação do Júri no Brasil: aspectos gerais O Júri brasileiro, inspirado na instituição inglesa jury,

foi implementado no Brasil no início do século XIX, mais especificamente em 1822. De acordo com Thomas Flory (1986, p. 181), essa instituição remonta desde antes da Independência, pois “El decreto de las Cortes del 12 de julio de 1821 creó el sistema de jurado para juzgar los delitos de la prensa en Portugal [...]. Esta ley se extendió a Brasil el 18 de junio de 1822”. Pelo decreto de 18 de junho de 1822, criava-se um tribunal de juízes de fato, composto por homens bons, honrados, inteligentes e patriotas, nomeados

1 Mestranda em Direito Processual do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Espírito Santo.

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pelo Corregedor do Crime da Corte e Casa, pelo Ouvidor do Crime nas províncias que tivessem Relação, ou, nas demais, pelo Juiz da comarca (NEQUETE, 1973). Embora previsto legalmente desde a mencionada data, a primeira atuação prática do Júri somente realizar-se-ia em 1825, para sentenciar um delito de injúrias expressas.

A instauração de um tribunal composto por cidadãos, homens comuns do povo, com a competência de definir juridicamente o destino de seus pares, é consequência direta do triunfo dos ideais liberais. No Brasil, houve grande influência da chamada Revolução do Porto, de 1820. A incorporação dos corolários desse movimento transcorreu rapidamente entre os componentes das elites políticas e intelectuais da América Latina. Houve pronta adesão do Pará e da Bahia e, em seguida, do Rio de janeiro. O ano de 1821 coverteu-se, dos dois lados do Atlântico, num marco de resistência liberal e constitucionalista, esboçando-se uma nova cultura política. Até porque, convém enfatizar, a maior parte da geração atuante nessa época passara por uma Universidade de Coimbra reformada em 1772, segundo os moldes ilustrados portugueses, que serviu como instrumento de homogeneização desses indivíduos em termos de valores e padrões de comportamento. Nesse contexto de constitucionalismo, liberdade burguesa e leis, afirma Bartolomé Clavero (1997, p. 136) que “El jurado era la pieza que defínia la posición de índole constitucional en este ámbito de la justicia que interesaba cardinalmente a las libertades”. Na mesma linha, John Hostettler (2004, p. 9): “[...] the jury is the anchor which holds a government to its constitution”.

No entanto, as pretensões eram essencialmente reformadoras, com poucos traços revolucionários. Dessa feita, havia uma inclinação muito maior à ideia de um grande Império luso-brasileiro do que à de um separatismo político, de maneira que “[...] buscavam o novo, mas simultaneamente queriam manter o antigo, principalmente no que tange às estruturas socioeconômicas” (NEVES, 2013, p. 77).

O debate de ideias liberais foi estimulado por publicações - restritas, obviamente, às elites -, que se encarregaram de realizar

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a divulgação da cultura política da Ilustração ao mundo luso-brasileiro. Esses escritos, vindos de Lisboa, ou mesmo impressos no Rio de Janeiro e na Bahia, constituíam-se, predominantemente, de folhetos, panfletos políticos e periódicos, gerando um clima febril por todas as partes, como no Maranhão, no Pará, em Pernambuco e até mesmo em locais de menor expressão. Essa literatura passou a ser discutida em novos espaços de sociabilidade, como os cafés, as academias, as livrarias etc, fazendo com que as ideias esclarecidas importadas da Europa influenciassem diretamente nas principais posturas acerca do âmbito político (NEVES, 2013).

Tudo isso, é claro, dentro do contexto de um justiça de leis, universalizante e tecnicizada, posto que uma justiça de juízes, restrita aos poucos escolhidos pelo rei para ser a própria encarnação do justo, jamais daria abertura a que meros mortais - leia-se, cidadãos - pudessem ter acesso ao nobre e quase que celestial ato de decidir judicialmente.

IndependênciaCom o retorno de D. João VI a Portugal, em 26/04/1821, fica

no comando do Brasil, agora na categoria de Reino Unido a Portugal, o seu herdeiro e então príncipe regente, D. Pedro. Este, atendendo ao requerimento do Conselho dos Procuradores das Províncias, convoca uma “Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Brasil”, em 03/06/1822. A partir de então, testemunhou-se uma sucessão de acontecimentos que culminariam na Independência do Brasil, em setembro daquele ano (GONÇALVES; SILVA, 2012).

A ebulição de ideias liberais, é claro, foi um fator determinante nesse processo. As novidades, porém, chocavam-se com as antiguidades, ainda muito remanescentes. Apesar de estremecida a tradição do absolutismo português, a Independência de 1822 foi uma fase pacífica e muito mais reformista do que propriamente revolucionária na História do Brasil.

Isso não significa, contudo, que todo o processo de

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concretização de um Brasil independente, posterior ao metafórico grito do Ipiranga, tenha sido desprovido de conflitos. Aliás, o que se sucedeu foi justamente o oposto: ao longo do século, houve diversas revoltas de caráter centrífugo-separatista por todo o reino do Brasil, o que pode parcialmente ser explicado pelo fato de que o brado de independência deu-se de cima para baixo. Significa dizer, por mais que pudesse haver clamor popular pela libertação do jugo português, em nenhum momento, deixou de predominar, na prática, uma conformação política orquestrada pelas elites, para as elites e à maneira das elites. Tanto é assim que se mantiveram o regime monárquico e, ainda, um membro da dinastia de Bragança no mais alto escalão do poder (apenas alguns dos grandes paradoxos pelos quais a História desse país é tão fortemente marcada). Se o Brasil independente conseguiu manter-se unificado e coeso após o “grito do Ipiranga”, isso se deu às custas de muito sangue dos seus próprios nativos.

Com a interferência da Inglaterra, Portugal pôs como exigência ao reconhecimento oficial da independência do Brasil o pagamento de uma indenização no montante de dois milhões de libras esterlinas. Além disso, cumpre destacar que “[...] A escolha de uma solução monárquica em vez de republicana deveu-se à convicção da elite de que só a figura de um rei poderia manter a ordem social e a união das provîncias que formavam a antiga colônica” (CARVALHO, 2015, p. 33).

Os brasileiros não tiveram, pois, a experiência de, após a Independência, governarem-se a si mesmos, como república: conservaram-se nas mãos de um príncipe português, o que não agradava em nada aos nacionalistas. Um príncipe que não estava sozinho, mas muito bem respaldado por uma judicatura antiga, colonialista, elitista e ao sabor de seus próprios privilégios.

Nas décadas posteriores à Independência, a camada profissional dos juízes constituiria-se num dos setores da unidade e num dos pilares para a construção da organização política nacional. O que distinguia a magistratura de todas as outras profissões era o

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fato de que ela representava e desenvolvia formas de ação rígidas, hierarquizadas e disciplinadas, que melhor revelavam o padrão favorável a práticas burocráticas para o exercício do poder público e para o fortalecimento do Estado. Nesse ângulo, dos seguimentos principais à formação das instituições brasileiras na primeira metade do século XIX, como Judiciário, Clero e Militares, a magistratura foi, indiscutivelmente, a “espinha dorsal do governo” (CARVALHO, apud WOLKMER, 2006, p. 92).

De todos os setores burocráticos herdados de Portugal, a magistratura era a que dispunha de melhor estrutura e coesão internas. “Tratava-se de uma camada privilegiada, ‘treinada nas tradições do mercantilismo e absolutismo portugueses’” (WOLKMER, 2006, p. 92). Nesse contexto, eram os magistrados, pois, não só os funcionários por excelência do Estado nascente, mas também o principal instrumento de articulação da unidade e da consolidação nacionais.

Assim, é possível observar que, na prática, o poder judicial estava identificado com o próprio poder político, embora, institucionalmente, suas funções fossem distintas. O governo central utilizava-se dos mecanismos de nomeação e remoção de Juízes para administrar seus interesses, fazendo com que a Justiça fosse partidária, ao passo em que o cargo era utilizado como moeda de troca entre aliados. Dessa maneira, o Juiz tinha uma duplicidade de conduta, na medida em que atuava tanto como aplicador da lei, quanto como agente partidário, aliado ou adversário das facções locais, o que gerava enorme descontentamento por parte dos liberalistas, pois ia de encontro aos seus ideias mais básicos na concepção de Direito e de Estado.

Note-se, outrossim, que o Brasil independente nascia sob uma centralização monárquica forte e, não fosse o suficiente, sob a liderança de um Imperador português. A reação dos setores mais progressistas da sociedade brasileira era inexorável, pois “[...] O banho liberal, irradiado dos acontecimentos portugueses e brasileiros dos dois últimos anos, não permitia [...] a passiva adoção

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do sistema absolutista” (FAORO, 1984, p. 279). Em todo o Império, os homens expressavam sentimentos como o de que “‘[...] El tiempo de la subyugación colonial há llegado a su fin; ahora tenemos una Constitución cyuo significado es... Libertad’” (FLORY, 1986, p. 75).

Por isso, na composição da administração judicial brasileira, na década de 1820, a hostilidade entre o Parlamento – pleno de convicções progressistas - e o Imperador deu origem a uma série de reformas. Algumas instituições, como as dos juízes leigos, serviram aos propósitos oposicionistas dos liberais, sob o argumento da proteção dos cidadãos contra os caprichos de D. Pedro I, um monarca considerado estrangeiro e autoritário (CAMPOS, 2009, p. 222). Uma outra medida liberal foi a instauração do Supremo Tribunal de Justiça, pela Lei de 18 de setembro de 1828, que constituir-se-ia de dezessete juízes letrados, tirados das Relações por suas antiguidades, com duas conferências por semana, além das extraordinárias, com mais da metade do número de membros (COLLECÇÃO DAS LEIS DO IMPERIO DO BRAZIL, 1878, p. 36-42).

Some-se a tudo isso a crise judicial que se instalou após a Independência, mais precisamente, decorrente da falta de pessoal especializado, pois a fuga de magistrados para o campo política provocada escassez de juristas para a atuação prática, principalmente nos anos vinte.

Dessarte, pode-se dizer, a primeira grande reforma liberal foi, também, uma reforma no sistema judicial, devido, inclusive, à carência de membros do poder judiciário, e que o Tribunal do Júri foi, certamente, uma importante resposta liberal ao quadro geral de inoperância, elitismo, colonialismo e centralização conservadora que subsistia.

Constituição de 1824 Antes mesmo da Independência, D. Pedro, então príncipe

regente, a fim de conferir uma estrutura jurídico-administrativa ao Reino Unido do Brasil (nessa época, pertencente ao Reino Unido

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de Portugal e Algarves), convocou um Conselho de Procuradores Gerais das Províncias. O objetivo era o de examinar os grandes projetos de reformas administrativas e propor as medidas que lhes parecessem mais urgentes ao Reino. É a partir desse conselho que sai a proposta de convocação da Constituinte, oficializada por meio do decreto de 3 de junho de 1822, posteriormente dissolvida pelo próprio convocante, já Imperador do Brasil naquele momento, em 12 de novembro de 1823. Nas palavras de LOPES (2011, p. 256), “[...] Assegurada a independência e a união das provínciais, foi preciso dissolver a Constituinte (1823) para afastar os liberais radicais [...]” (grifo nosso). E prossegue o autor, dizendo que: “A proclamação do imperador2, do dia seguinte à dissolução, mostra o discurso da ordem contra as tentativas dos radicais, liberais exaltados” (2011, p. 259, grifo do autor).

A abertura dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte que iria redigir a primeira Constituição brasileira dar-se-ia somente em 3 de maio de 1823. Depois da dissolução da primeira Constituinte, sob a acusação de que esta não atendia ao juramento de defesa à integridade do Império, D. Pedro I forma um Conselho de Estado composto por dez homens de sua confiança e sob sua presidência, com a incumbência de elaborar o Projeto de Constituição, e com o suposto intuito de se produzir uma Constituição “duplicadamente mais liberal do que a extinta Assembleia acabou de fazer” (GONÇALVES; SILVA, 2012, p. 4). Este Projeto foi outorgado pelo Imperador como a Constituição Política do Império.

A Constituição do Império teve vigência de 25/03/1824 a 15/11/1889, sendo a Carta Magna de maior longevidade da História

2 “‘As prisões agora feitas serão, pelos inimigos do Império, consideradas despóticas. Não são. Vós vedes, que são medidas de polícia, próprias para evitar a anarquia e poupar a vida desses desgraçados, para que possam gozar ainda tranqüilamente [sic] delas, e nós do sossego. Suas famílias serão protegidas pelo Governo. A salvação da pátria, que me está confiada, como Defensor Perpétuo do Brasil, e que é a suprema lei, assim o exige. Tende confiança em mim, assim como eu a tenho em vós, e vereis os nossos inimigos internos e externos suplicarem a nossa indulgência. União e mais união brasileiros, quem aderiu à nossa sagrada causa, quem jurou a Independência deste Império é brasileiro’” (LOPES, 2011, p. 260).

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do Brasil. Outra marca inerente a esta Lei Maior é a usurpação da vontade constituinte dos governados, dado seu caráter unilateral, de outorga, relegando o diálogo com a sociedade. Segundo GONÇALVES & SILVA (2012, p. 3), “[...] o Imperador chamou para si todo o poder constituinte, sendo esta a última usurpação da Monarquia”.

A Constituição de 1824 estabelecia: um governo monárquico unitário e hereditário; a existência de quatro poderes - o Legislativo, o Executivo, o Judiciário e o Moderador (este acima de todos os demais e exercido exclusivamente pelo Imperador) -; o Catolicismo Apostólico Romano como religião oficial, com a Igreja submissa ao Estado, podendo o Imperador conceder cargos eclesiásticos; a definição de quem era considerado cidadão; eleições censitárias, abertas e indiretas; que o Imperador não responderia pelos seus atos judicialmente, ou seja, era juridicamente irresponsável. No mais, destaque-se que foi uma das primeiras constituições do mundo a incluir em seu texto um rol de direitos e garantias individuais (GONÇALVES; SILVA, 2012).

A Lei Magna Imperial não adotou a forma clássica de repartição dos poderes em Legislativo, Executivo e Judiciário. Por meio de seu artigo décimo, sob a inspiração de Benjamin Constant, instituiu-se um quarto poder: o Poder Moderador. Na dicção do art. 98, o Poder Moderador definia-se como a chave de toda a organização política, destinado privativamente ao Imperador, com o objetivo de lhe conceder prerrogativas para que velasse sobre a manutenção da Independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes políticos. Também chamado de Poder Real, Poder Imperial, Poder Neutro, ou Poder Conservador, teve sua atribuições enumeradas no art. 101 do texto constitucional. Segundo Gonçalves & Silva (2012, p. 7), “[...] Outorgou-se ao Imperador grande poder de ingerência política, podendo inclusive decidir da ocupação do poder, fazer a alternância entre os homens e partidos quando bem desejasse”.

De fato, no âmbito do Poder Executivo, o Imperador dispunha de amplos poderes para nomear e demitir Ministros de Estado.

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Quanto ao Poder Legislativo, poderia livremente nomear Senadores, convocar ou prorrogar a Assembleia Geral, dissolver a Câmara, sancionar projetos, bem como aprovar ou suspender interinamente as resoluções das assembleias provinciais. É por isso que Faoro (1964, p. 293) depreende, ipsis verbis: “A coroa, armada com o poder moderador, que lhe permite nomear e demitir livremente os ministros, conserva o comando da política e da administração [...]”. Já Gonçalves & Silva (2012, p. 7) observam que “A ingerência no Poder Judiciário também era marcante. O Imperador poderia suspender os Magistrados, perdoar e moderar as penas impostas aos reús por sentença, como também conceder anistia”.

No entanto, a interferência sobre o Poder Judiciário tornou-se mais limitada ao longo da década em relação aos outros, devido às investidas descentralizantes dos liberais nessa área. Nesse sentido, o Juizado de Paz e o Tribunal do Júri tiveram um papel determinante na contenção da faceta absolutista-centralizadora do governo imperial. Por isso, autores como Thomas Flory (apud WOLKMER, 2006) entendem que as modificações liberais realmente importantes no primeiro império são a criação dos Juízes de Paz, em 1827, e o estabelecimento do sistema participativo de Jurado, introduzido pela Carta Imperial de 1824 e consagrado pelo Código de Processo Criminal de 1832. A propósito, “[...] merece atenção [...] a instituição do Tribunal do Júri, que representou as aspirações de autonomia judicial e localismo, em maior grau do que as decisões do Juiz de Paz [...]”(WOLKMER, 2006, p. 94-97).

A instituição do Júri Popular foi, por conseguinte, uma peça-chave nesse projeto de construção de uma nação brasileira. Dessa forma, com todo o aparato centralizador que a Carta Constitucional trazia em seu bojo – apesar de carregar, também, frise-se, características progressistas -, a Corte Cidadã foi um elemento muito importante de resistência liberal à época em análise.

Observe-se que uma Justiça independente e contraposicionada ao poder central era algo inédito em terras brasileiras. No período colonial, o sistema judicial esteve a todo o tempo à serviço da

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metrópole: as estruturas jurídicas e administrativas estavam imediatamente subordinadas aos níveis mais altos do governo, nos quais Tribunal Superior e coroa sentavam-se um ao lado do outro, sendo frequentemente impossível distingui-los. Quando um monarca português desejava regulamentar algum aspecto crucial da vida na colônia, raramente recorria às tropas militares, intendentes reais, ou coletores de impostos: na maioria das ocasiões, enviava juízes dotados de amplos poderes de administração, de modo que o poder judicial burocrático chegou a estar implicitamente identificado com a administração real. Os magistrados profissionais do domínio colonial eram verdadeiros substitutos locais do monarca, e a força de suas decisões provinha tanto da autoridade pessoal derivada dele, quanto da lei (FLORY, 1986).

Dessa forma, diziam os liberais, era preciso que os juízes fossem independentes do poder central e eleitos localmente, em vez de serem nomeados pelo rei. A própria Constituição de 1824 fazia alusão ao estabelecimento de um novo Juiz de conciliações local, e de um sistema de Jurados. Uma melhora das condições judiciais seria, decerto, um benefício bastante palpável, por isso, “[...] la cuestión judicial provocó gran cantidad de retórica oficial sobre la reforma en los años inmediatamente posteriores a la Independencia (FLORY, 1986, p. 71).

Outro fator determinante a tal ânsia por novidades foi o fato de que, no Brasil, houve, logo após a Independência, um reconhecimento formal da validade da legislação portuguesa como base para funcionamento do Império, pois “[...] uma das apenas seis leis aprovadas pela Assembleia de 1823, declarava ‘em vigor a legislação pela qual se regia o Brasil até 25 de abril de 1821 [...]” (GARRIGA; SLEMIAN, 2013, p. 203).

A primeira tarefa dos legisladores, portanto, era e de dotar o país de um quadro legal e institucional próprio. Era preciso constituir os quadros do Estado e reformar as instituições do Antigo Regime, quais sejam: a Justiça, o Governo, a Fazenda e a Guerra. Em todas essas alçadas, houve enfrentamento de ideias e alterações

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importantes. Os exemplos mais destacáveis, na primeira metade do século, foram os dois códigos promulgados: o Criminal (1830) e o de Processo Criminal (1832). Conforme dito alhures, enquanto não se alterava a legislação, a Assembleia Constituinte, pela Lei de 20 de outubro de 1823, mandou aplicar no país as leis, regimentos, alvarás e outras normas editadas pelos reis de Portugal até 1821. Entre elas, naturalmente, estavam as Ordenações Filipinas de 1603. A Carta Constitucional de 1824, vislumbrando essa próblemática, assim dispunha em matéria de legislação: “[...] ‘organizar-se-á quanto antes um Código Civil, e Criminal, fundado nas sólidas bases da Justiça, e Eqüidade’ (art. 179, XVIII)” (LOPES, 2011, p. 258).

O sopro liberal no sistema judicial brasileiro, apesar de toda a mentalidade reformista, relativamente lenta e, em muito, moderada, foi capaz de provocar rebuliços por demais interessantes e, ainda, importantes na trama da História do Direito no Brasil, que merecem maior atenção e sobre os quais passa-se a tratar de forma mais detalhada.

Júri e “Crimes Eleitorais”A instituição do Jurado antecedeu a Independência,

porquanto a lei criadora desse sistema em Portugal estendeu-se ao Brasil já em 18 de junho de 1822. Em seu limiar, ao conselho de jurados, cabia julgar unicamente os crimes de abuso de liberdade de imprensa3, sendo que a primeira ocorrência deu-se somente numa

3 “Na época da convocação da Assembleia Geral Constituinte do Brasil, o regente, preocupado também com a manutenção da ordem tradicional, referendou um decreto, em 18 de junho de 1822, contra os abusos da imprensa em relação ao Estado. O pretexto foi a crítica do Correio do Rio de Janeiro às eleições indiretas para a Constituinte, que, continha ‘doutrinas criminosas’. Era preciso, por conseguinte, evitar excessos ou, de acordo com o próprio texto da lei, cumpria evitar que, ‘ou pela imprensa, ou verbalmente, ou de qualquer outra maneira, propaguem e publiquem os inimigos da ordem e da tranquilidade e da união, doutrinas incendiárias e subversivas’, que, ‘promovendo a anarquia e a licença, ataquem e destruam o sistema que os povos’ deste Reino, ‘por sua própria vontade, escolheram, abraçaram e requereram’. Por conseguinte, se o governo aceitava, ou parecia aceitar, alguns dos princípios liberais, não perdera, porém, todos os ranços do Antigo Regime” (NEVES, 2013, p. 93-94).

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sessão de junho de 1825, a fim de se sentenciar um delito de injúrias expressas.4

Com a Independência, iniciou-se um amplo processo de construção do sistema judicial brasileiro, em que o Tribunal Popular teve grande destaque. Em 1823, uma das primeiras leis aprovadas pela Assembleia Constituinte reiterou a competência dos membros do Júri para julgar assuntos relacionados à liberdade de imprensa. Quando a Assembleia foi dissolvida, essa lei foi posta em vigor por decreto.

Decerto, numa estrutura demasiado concentrada, os liberais ansiavam por reformas capazes de reduzir os poderes do Imperador, desconfiados do interesse de Pedro na sucessão do trono português e acreditando numa suposta intenção de reunir as duas coroas. As suspeitas tornaram-se ainda mais graves com a morte de D. João, em Portugal, em 1826. No plano jurídico, essa desconfiança contra o poder central traduzia-se numa necessidade de incessante fiscalização dos magistrados especializados, representantes por excelência da coroa no processo judicial. No Código do Processo Penal de 1832, inclusive, estava previsto um capítulo inteiro para a denúncia contra crimes de responsabilidade dos empregados públicos, podendo-se encaminhar tais pleitos tanto aos órgãos executivos (governo e presidentes de província), como às autoridades judiciárias a quem competia o fato.

Em meio a tal ordem de coisas, apostou-se em Juízes leigos para exercer a justiça, como Juízes de Paz e Jurados, e na própria formação da Guarda Nacional, conforme explicita Andréa Slemian (2011).

De acordo com Flory (1986), a criação do sistema de Jurado no Brasil assemelhou-se muito à do Juizado de Paz, que ampliou a

4 Sobre esse caso, Nequete (1973, p. 44) formula o seguinte: “Segundo ENÉAS GALVÃO, foi em 1825 que se executou pela primeira vez a lei de 2 de outubro de 1823, no julgamento do crime de injúrias publicadas no Diário Fluminense de 25 de abril contra o Intendente Geral de Polícia da Corte, Francisco Alberto Ferreira de Aragão. Outros, no entanto, apontam a João Soares Lisboa, redator do Correio do Rio de Janeiro, como o primeiro a comparecer perante o Tribunal do Júri, que, aliás, o teria absolvido”.

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brecha entre a magistratura profissional e os liberais, representando uma franca investida contra a elite judicial, e revestindo-se de um caráter eminentemente político, sendo tanto uma reação ao viciado sistema judiciário, como uma defesa liberal contra as aspirações absolutistas e recolonizadoras portuguesas.

Com a Lei de 20 de setembro de 1830, sob o título “Sobre o abuso da liberdade de imprensa”, lançaram-se bases mais concretas para a organização do Júri no Brasil. Em seu título III, definiu-se que em cada vila e cidade do país haveria um Conselho de Jurados, cuja eleição ocorreria sob o comando dos Vereadores. Nas capitais, escolher-se-iam sessenta homens e, nas demais cidades, trinta e nove.

Podiam ser Jurados todos os cidadãos que pudessem ser eleitores, sendo de reconhecido bom senso e probidade, excetuando-se Senadores, Deputados, Conselheiros, Ministros de Estado, Bispos, Magistrados, Oficiais de Justiça, Juízes Eclesiásticos, Vigários, Presidentes, Secretários de Governo das províncias e Comandantes das Armas e dos Corpos de 1ª Linha, consoante previa o art. 23 do Código de Processo Criminal, a fim de se preservar os Juízes leigos da hierarquia governamental. O requisito da elegibilidade em segundo grau somente excluía os brasileiros com menos de vinte e cinco anos e aqueles que ganhavam menos que duzentos mil réis ao ano, o que era uma renda relativamente baixa no Brasil desse tempo (LOPES, 2011).

No título IV, o diploma supracitado definiu a organização binária da Justiça Popular, estatuindo dois conselhos: o Júri de Acusação e o Júri de Sentença. O primeiro conselho (Júri de Acusação ou de Pronúncia) compunha-se de 23 membros sorteados ao azar por um menino; o de Sentença contava com 12 membros. A sessão era presidida pelo Juiz de Direito. o Conselho de Pronúncia escolheria por escrutínio secreto e por maioria absoluta seu presidente e seu secretário, consoante conteúdo do dispositivo 243 do Código de Processo Criminal de 1832 (BRAZIL, acesso em 13 out. 2016).

O Júri de Acusação estabelecia preliminarmente a existência

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ou não de crime a ser judicialmente apreciado, analisando as provas trazidas no bojo da acusação. Já o Conselho de Sentença declarava a culpa ou não do acusado, cabendo ao Juiz de Direito ditar a sentença, sendo esse virtualmente seu único papel direto em todo o procedimento (FLORY, 1986, p. 186-187).

A introdução do Tribunal do Júri no ordenamento brasileiro enfrentou a forte oposição daqueles que, tais quais os juízes profissionais, tinham interesses na manutenção da unidade nacional, advogando ser a descentralização instrumento incapaz de evitar o caos e a desordem. Fato é que o Código de Processo Criminal de 1832 delegou vastas atribuições populares e independentes, em detrimento dos Juízes de Direito nomeados. O art. 5º do referido diploma legislativo regulou a existência de um Conselho de Jurados em cada termo do Império. Além disso, os arts. 151 e 152 da Constituição Imperial determinavam que:

‘Art. 151 – O Poder Judicial é independente e será composto de juízes e jurados, os quais terão lugar assim no cível como no crime, nos casos e pelo modo que os Códigos determinarem’.‘Art. 152 – Os jurados pronunciam sobre o fato e os juízes aplicam a lei’ (MARQUES, 1997, p. 38).

Por sua vez, a única ressalva que o Código de Processo Criminal de 1832 fez à competência do Júri foi com relação aos crimes praticados por empregados públicos, senão, veja-se:

Art. 155. A formação da culpa dos empregados publicos compete:§ 1º Ao Supremo Tribunal de Justiça nos crimes de responsabilidade dos seus membros, e dos das Relações, dos empregados do Corpo Diplomatico, e dos Presidentes de Provincia.§ 2º A’s Relações ou (nas Provincias, em que ellas não estiverem collocadas) á autoridade judicial, que residir no lugar, nos crimes de responsabilidade dos Commandantes militares, e dos Juizes de Direito.§ 3º Aos conselhos de investigação nos crimes de responsabilidade dos empregados militares.§ 4º A’s justiças ecclesiasticas nos crimes de responsabilidade dos empregados ecclesiasticos para imposição sómente das penas espirituaes decretadas pelos Canones recebidos (BRAZIL, acesso em 31 out. 2016).

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Dessa forma, a jurisdição ordinária em matéria criminal de qualquer outra autoridade que não fosse o Júri foi extinta, mantendo-se apenas as do Senado, do Supremo Tribunal de Justiça, Relações, Juízos Militares (para conhecer de crimes puramente militares), e juízos eclesiásticos, no que se referia às matérias espirituais. Os crimes ficaram sob a competência do Conselho de Jurados, e, aos Juízes de Paz, restou julgar sobre “[...] as contravenções às posturas municipais e os crimes a que não fosse imposta a pena de multa até ‘cem mil-réis’, prisão, degredo, ou desterro até seis meses” (MARQUES, 1997, p. 39). Campos (2009, p. 225) chega a afirmar que “De acordo com o Código de Processo [de 1832], a instituição do Júri passou a conhecer todos os crimes, cumprindo finalmente o que a Constituição já havia prometido desde 1824 [...]” (grifo nosso).

Disso, pode-se depreender que a competência para o julgamento dos “crimes eleitorais” encontrava-se prevista na segunda parte do Código Criminal de 1830, referente aos “crimes públicos”, sob o título “Dos crimes contra a existencia politica do Imperio”. Esses abrangem os: “crimes contra a independencia, integridade, e dignidade da nação” (capítulo I); “crimes contra a constituição do imperio, e fórma do seu governo” (capítulo II); “crimes contra o chefe do governo” (capítulo III) (BRAZIL, acesso em 13 out. 2016).

Os crimes eram classificados, na legislação processual, como públicos, particulares e policiais. Públicos eram os delitos que atentavam à boa ordem, à administração pública, à existência política do Império, ao livre exercício dos Poderes Políticos, à segurança interna do Império, à tranquilidade pública, ao Tesouro, à Propriedade Pública e, finalmente, ao livre gozo e exercício político dos Cidadãos. Os crimes particulares, por sua vez, tratavam-se de atos contrários à liberdade individual, à propriedade e à pessoa. Abrangiam os homicídios, os infanticídios, a calúnia, etc. Já os crimes policiais eram

[...] as ofensas à religião, à moral e aos bons costumes, as sociedades secretas, os ajuntamentos ilícitos, a vadiagem e a mendicância, a utilização de armas de defesa, o fabrico e o emprego de instrumentos para roubar, a apresentação sob nome suposto e títulos indevidos,

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bem como o exercício ilegal da imprensa (BETZEL; CAMPOS, acesso em 15 out. 2016).

Logo, os crimes relacionados aos procedimentos eleitorais estavam englobados pelo arsenal de competências apreciativas do Júri.

Resta dizer que o Tribunal Popular foi recebido com grande entusiasmo, até porque, como ilustra Parreira (2005, p. 64), “No Brasil, o liberalismo uniu-se ao sentimento nacionalista, também contrário ao governo de um rei, que manteve a forma de administração colonial após a independência”. Portanto, nota-se que a implantação do Tribunal Cidadão em território nacional, numa visão geral, foi uma tentativa política dos liberais, no plano jurídico, de retirar das mãos do soberano o poder concentrado, instituindo-se, por meio de normas legais, mecanismos de descentralização, com o intuito de aumentar a autonomia das autoridades locais. Para Thomas Flory (1986) o júri foi a culminação lógica do princípio da participação popular aplicada ao judiciário, de modo que sintetizou os ideais de autonomia judicial e localismo.

ConclusãoFoi em meio a uma conjuntura de conflitos entre forças

políticas divergentes e entre entendimentos variados de calorosos debates que, em 1822, o Júri foi instituído no Brasil pelas Cortes Portuguesas. Em 1832, o Código de Processo Criminal concedeu ao sistema de Jurados atribuições amplíssimas, que incluíam a apreciação de crimes atinentes às eleições, transformando o instituto em instrumento de ataque à elite judicial togada, sendo-lhe admitidos como membros até mesmo analfabetos, o que colocava o Brasil como uma das nações de legislação mais liberal do mundo. No Brasil, o Tribunal popular ameaçou diretamente o judiciário profissional, desde muito enleado a jogos escusos de poder com a coroa, colocando o cidadão como protagonista das batalhas judicializadas.

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As perspectivas de estudo sobre o Partido Trabalhista Brasileiro capixaba (1945 –

1964) sob os dilemas de Angelo Panebianco e contribuições de outros (as)estudiosos

(as) do trabalhismoLucian Rodrigues Cardoso1

Introdução As leituras teóricas e interpretativas sobre os partidos como

organizações servem como base e ponto de partida para se estudar o PTB e o trabalhismo no Espírito Santo. A partir destas, propõe-se um trabalho revelador, porque parte para o debate sobre trabalhismo presente na literatura que ora versa sobre o plano nacional, ora em estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. Trata-se, portanto, sob o julgo de um passado específico, analisar os conceitos e teses da literatura sobre os partidos em um caso particular, entendendo as idiossincrasias do cenário político capixaba e sua interação e inter-relação com a esfera nacional da política.

O PTB/ES sob os dilemas de PanebiancoSegundo a tese de Angelo Panebianco (2005) é fundamental,

para entender a evolução e história de um partido político, o estudo do seu momento de formação, visto que sua dinâmica de intervenção no ambiente externo é tributável ao modo como o partido resolveu suas questões conflitivas, através do estabelecimento de suas regras básicas de convivência e negociação.

Assim, seguindo o teórico, torna-se necessário estudar como os partidos resolveram seus dilemas organizativos, típicos do momento de fundação dessas organizações políticas, e construiu sua trajetória para os momentos posteriores até a fase de institucionalização. O primeiro dilema corresponde ao fato de que os partidos possuem

1 Mestrando do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo.

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objetivos a cumprir conforme sua ideologia, entretanto, estes tendem a ser relegados a segundo plano em favor de sua sobrevivência ambiental, nem sempre condizente com o cumprimento dos objetivos oficiais da organização. Então, torna-se fundamental perceber como o PTB capixaba resolveu este dilema: em que medida um partido, a priori nascido para promover o carisma de Getúlio Vargas tal como defender seu legado sob as leis trabalhistas, ampliando-as para o campo, se preocupou mais em sobreviver com ações mais pragmáticas num ambiente pouco urbanizado em cuja dominação política baseava-se em laços tradicionais e clientelísticos, ou foi fiel a seus princípios programáticos. Ou seja, torna-se fundamental investigar como o PTB do Espírito Santo resolveu a equação do dilema objetivos x sobrevivência.

Sobreviver ou cumprir os objetivos depende em grande medida do segundo dilema, qual seja a tensão entre a distribuição de incentivos seletivos e coletivos. Enquanto estes cumprem a função de assegurar a participação coletiva, tal como têm o caráter de produzir identificação dos defensores com a organização através de projetos que visam cumprir certos ideais, os incentivos seletivos são distribuídos de forma desigual e apenas para alguns membros. Os seletivos, portanto, se tratam de meios de garantir a continuidade organizativa e o equilíbrio entre as hierarquias internas, que disputam entre si o controle dos cargos na burocracia partidária ou na administração pública. Entretanto, os dois tipos de incentivos comportam um dilema visto serem contraditórios. Desta maneira, a ideologia interna do partido sofre uma dupla pressão. De um lado, porque, principal fonte dos incentivos coletivos, ela garante a identidade da organização em face aos seus defensores, de outro porque deve ocultar o caráter dos incentivos seletivos para os defensores da organização e também para seus beneficiados. Ou seja, a ideologia organizativa deve ser levada em consideração na adoção de estratégias de divisão dos incentivos, constituindo-se um limite para o poder dos líderes, visto ser temerário perder o apoio de atores que não recebem incentivos seletivos. O peso de um ou de outro pode variar de acordo com o partido e com sua história, porém,

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o desequilíbrio entre um e outro incentivo pode levar ao colapso da organização, que depende tanto da continuidade da máquina partidária, garantida pelos seletivos, quanto do apoio eleitoral, garantido pelos coletivos. Deste modo, cumpre identificar como o PTB capixaba resolveu este dilema acima citado, visto, nacionalmente, ter sido um partido criado a partir da burocracia do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio do Estado Novo, tal como a partir de uma identificação muito forte com a figura de Getúlio Vargas. Será necessário analisar como o partido em âmbito local lidou com a necessidade de distribuir incentivos seletivos, sobretudo através da burocracia do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e suas instituições correlatas (IAPs; DRTs; Juntas de Conciliação e Julgamento da Justiça do Trabalho etc.), em contextos, tanto em que operavam essa estrutura (como na fundação da agremiação), como em contextos em que não operavam - durante o Governo Dutra, por exemplo. Assim, torna-se necessário assentar o desenvolvimento do dilema de formação incentivos seletivos x coletivos na dependência do sucesso político de Vargas para conseguir negociar cargos na burocracia estatal (seletivos), assim como promover a distribuição de incentivos coletivos visto tal ator ser a encarnação do projeto político de ampliar e cumprir a legislação trabalhista.

O terceiro dilema consiste no conflito de estratégias com que o partido se depara no momento de instituir respostas ao ambiente externo em que atua, consistindo então na dicotomia adaptação x dominação. No primeiro caso o partido absorve fatores do ambiente para se adaptar à suas demandas, através de mudanças de suas estratégias partidárias, com intuito de obter sucesso eleitoral. Já no segundo caso a organização intervém no ambiente, visando moldá-lo ao seu projeto político, tal como influenciando em associações ou sindicatos etc. Os dois eixos do dilema podem ser implementados ao mesmo tempo devido as diferentes arenas em quais um partido político deve atuar, tornando-se mais fecundo pensar em ambientes, em que estes são intercomunicante e independente ao mesmo tempo e exigem respostas diferentes aos seus desafios. O que pode diferenciar, pender-se para um lado ou outro da balança, é

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o ambiente ser mais hostil ou não a ideologia organizativa, assim como a distribuição dos incentivos. Segundo Panebianco, quanto mais incentivos coletivos são distribuídos, mais a organização tende a dominar o ambiente; por outro lado, quanto mais são os incentivos seletivos, menos forte torna-se a instituição, tendendo-se a adaptação ao meio sob negociações fisiológicas. Entretanto, cabe ao estudo proposto perceber esta dicotomia no caso do PTB nacional, visto que, com o desenvolvimento partidário e hegemonia do partido na máquina estatal sobretudo do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, o que se percebeu foi uma maior distribuição de incentivos coletivos, ao mesmo tempo que, uma reformulação do trabalhismo após a morte de Vargas em que promoveu-se o reformismo nacionalista e mobilizador como projeto político, ou seja, os incentivos seletivos não levaram o partido diretamente a uma situação de mais adaptação que intervenção no sistema político brasileiro. Em se tratando do PTB capixaba, torna-se fecundo analisá-lo sob a perspectiva dialética ao cenário nacional de maior urbanização no período de 195-64, visto o estado ter, até posteriormente o período estudado, a maior parte de sua população morando em zonas rurais e uma economia agrária-exportador. Ou seja, é sintomático que o partido em sua seção local tenha optado por estratégias diversas ao plano nacional, visto o ambiente capixaba exigir respostas diferenciadas na resolução dos outros dilemas.

O quarto dilema formativo de um partido assenta-se na resolução dos conflitos internos por liderança entre os grupos. Assim, as decisões são tomadas, geralmente, por coalizões ou acordos entre os grupos majoritários de uma agremiação, fazendo surgir uma coalizão majoritária e uma ou outras minoritárias. Entretanto, pelo fato das decisões dependerem de acordos entre os grupos, um torna-se o árbitro do outro, resultando na tentativa de cada grupo desenvolver mecanismos para aumentar sua liberdade de ação frente aos outros. Dito isso, Panebianco ilustra este dilema sob a oposição liberdade de ação x constrangimentos organizacionais, em que, quanto mais uma coalizão dominante possui a primeira, mais chances terão de interferir no ambiente externo, e quanto mais

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constrangimentos há nas relações entre os grupos internos, menos capacidade de agir seguramente frente ao ambiente externo será possível pela coalizão dominante.

Posto nestes termos, Angelo Panebianco reconhece a importância da ideologia organizativa e dos objetivos oficiais, não sendo estes, como em outras literaturas, reféns de arbítrios dos líderes ou usados como simples dissimulador das ações. Mudanças nessas esferas dependem de profundas mudanças organizacionais, e quando estas ocorrem chama-se o processo de sucessão dos fins, fenômeno que ocorre com certa raridade. Na resolução dos dilemas organizativos é mais comum, segundo o autor, observar-se outro fenômeno chamado de articulação dos fins, em que há um tolerado desvio entre os objetivos oficiais e a ação partidária.

No esforço por resolver os dilemas organizativos fundamentais da formação de um partido, Panebianco apresenta um modelo interpretativo acerca desse processo: a institucionalização. Neste, a instituição cresce em número e solidifica sua estrutura garantindo sua continuidade. Assim, durante a consecução dessa fase, segundo o modelo relativizado pelo próprio autor conforme cada caso aplicado, o partido passaria da ênfase em incentivos coletivos para os seletivos; de uma ideologia manifesta (com objetivos explícitos e coerentes) para um estado de latência ideológica (com objetivos vagos, implícitos e contraditórios); para um estado de progressiva redução da liberdade de ação dos líderes; estratégias desenvolvidas mais para adaptação que enfrentamento ou modificação do ambiente externo.

Conforme Panebiaco, o meio se estudar a ordem organizativa de um partido é a investigação de sua estrutura de poder, ou seja, a forma como o poder é distribuído, se reproduz e modifica as relações dentro da organização. O poder, por sua vez, depende do controle sobre as zonas de incerteza por parte dos grupos partidários, derivando-se em acordos, lutas e negociações por parte desses grupos, não, sendo, porém, o poder uma propriedade de um líder, tampouco um processo recíproco entre as partes influentes.

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Na definição alternativa de poder do referido autor, trata-se de uma relação de troca desigual entre um líder e seus seguidores, porém, essa liderança só pode ser cumprida se levada em conta as exigências e expectativas dos outros, que exigem algo em troca ao submeterem-se. Nesta lógica, os líderes são os que mantêm o controle sobre a maior parte das zonas de incerteza garantindo a estabilidade da organização, tal como a manutenção da ordem interna a seu favor. Ou seja, eles devem ter o controle da competência técnica, das relações com o ambiente externo, da comunicação interna, das regras formais, do financiamento e do recrutamento, que se configuram as principais zonas de incerteza nas relações horizontais (que envolve as lideranças) e verticais (entre líderes e membros).

Estas relações acima citadas são enquadradas por Panebianco em alguns tipos de agentes: eleitorado cativo, que é o objetivo da distribuição de incentivos coletivos; membros de base do partido, geralmente não ativos e normalmente mais dependentes de incentivos coletivos; núcleo ativista, composto por militantes chamados de crentes (ativos, mas dependentes de incentivos coletivos) e os carreiristas (dependentes de incentivos coletivos). Neste último, os carreristas, assentam-se a “pedra no sapato” dos líderes, visto serem aqueles que possuem contato estreito com os crentes e, também, desse grupo emergirem novas lideranças e resgates da ideologia na luta interna pela ascenção no partido. Nesse sentido, cabe aos líderes cooptarem os carreiristas, através de sua disposição em aceitar incentivos seletivos, ou expulsá-los. Desta maneira, a análise dos carreiristas e sua dinãmica de luta com as lideraças dentro do partido explicam em grande medida os jogos verticais e horizontais de poder.

E estes jogos são protagonizados tanto por tendências (grupos fracamente organizados), quanto por facções (grupos fortemente organizados). Estas podem atravessar o partido verticalmente, assim como se resumirem a espaços específicos; aquelas tendem a serem construídas pelo topo, sem participação da base. Quando tendências ou facções se unem, formam as coalizões, em que a majoritária irá

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dominar o partido. Em um partido execssivamente faccioso, tal coalizão não teria uma profunda homogeneidade, fazendo com que as facções flutem de lado a lado no que concerne a luta pelo equilíbrio de forças. Entretanto, essas flutuações das facções não devem ser desconexas com a a ideologia partidária, nem tampouco distante dos objetivos oficiais do partido, correndo-se o risco de perda de credibilidade para o grupo.

Ao investigar a forma como os partidos enfrentam os dilemas organizativos, tal como seus grupos agem perante as zonas de incerteza e o ambiente de atuação, a análise pode municiar-se de instrumentos para avaliar o nível de institucionalização de um partido, sendo este uma variante de baixa à alta institucionalização. Dito isso, o teórico classifica os partidos em partidos oposicionistas, governistas e carismáticos. Os primeiros tendem a contar com um processo de maior institucionalização que os governistas porque dependentes de se encontrar mecanismos e recursos de manutenção não oriundos do governo. Já os carismáticos, geralmente, não conseguem avançar a uma maior institucionalização, com exceção de raríssimos casos em que a há a dispersão do carisma do líder para o partido.

Os pressupostos teóricos que Panebianco apresenta-se fecundo para uma releitura parcial do caso do Partido Trabalhista Brasileiro na esfera nacional, tal como municia uma investigação do partido na esfera local, em sua dinâmica com o ambiente político capixaba e brasileiro.

As contribuições dos (as) estudiosos (as) do trabalhismo para uma análise do PTB/ES

Avançando a leituras de apoio acerca do tema trabalhismo e PTB e suas contribuições a proposta de pesquisa, recorda-se que O Partido Trabalhista Brasileiro representava um projeto de nação promovido e levado a cabo pelo Estado brasileiro, pautado pela configuração da classe trabalhadora como um ator político como bem enfatizou Angela de Castro Gomes (1988). Apropriando-se

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dos símbolos, tradições e demandas históricas dos operários e seus representantes, o PTB conseguiu ressignificar e apresentar como algo novo o projeto de país pautado em ideias já correntes no seio da classe trabalhadora brasileira.

Desta forma, havia a coexistência de ganhos materiais – adquiridos através dos benefícios da legislação social - e ganhos simbólicos, sendo o principal o reconhecimento dos trabalhadores como um dos atores influentes na agenda e nas disputas políticas do país, uma vez que era tributada a esta classe o direito a expressar-se, defender suas ideias, reivindicar suas demandas, etc. Como discorre Capelato (2001), introduziu-se uma nova cultura política em que o Estado cumpriu o papel de intervir nas relações sociais ao mesmo tempo em que atendia a reivindicações sociais, políticas e subjetivas da sociedade.

Benevides (1989) contribui ao debate através do estudo das disputas entre o PTB, o adhemarismo e o janismo pelo apoio dos trabalhadores em São Paulo, sendo este fato um dos motivos do enfraquecimento do PTB paulista, já que havia dificuldades em se consolidar os diretórios municipais por causa da oscilação e fragmentação das lealdades das lideranças, ora apoiando Jânio Quadros, ora apoiando Ademar de Barros. No Espírito Santo, dentro do trabalhismo, competiam as figuras do líder conservador Tenente Rubim com o sindicalista Saturnino Mauro na formação do partido - e com Rubens Rangel durante os anos posteriores. Rivalizava também com os pessedistas Carlos Lindenberg e Jones dos Santos Neves, além da competição com o PCB. Assim, à exemplo do que fez Benevides, estudar as rivalidades, os diferentes debates, as disputas, as alianças e as coligações políticas e a experiências administrativas em que figuraram o PTB capixaba faz-se mister para compreender a trajetória e os rumos políticos do trabalhismo no Espírito Santo.

A literatura acerca do tema, sobretudo após a abordagem inaugural de Castro Gomes (1988), fazem, em geral, referência ao projeto trabalhista como aquele que lutava pela defesa de um Estado interventor e promotor da unidade e justiça social, com ênfase nas

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questões da saúde pública, educação, arte popular, higiene mental e segurança social do operário, bem como aquele que lançou a classe trabalhadora como um importante ator político através da vinculação que perpassa todo período democrático: PTB-sindicato-Estado. Como fator legitimador desses pressupostos, residia o nacionalismo, que, como observam Elina Pessanha e Regina Morel (2001), servia de neutralização dos conflitos sociais, visto que não era pautado pela defesa de uma classe em particular, mas, apesar disso, era lido, defendido e apropriado de formas diferentes por cada uma. Sob este ponto de vista, elucidar a maneira como era entendida a ideologia nacionalista no discurso dos trabalhistas capixabas serve também como base para se entender as posições no que tange ao projeto trabalhista e suas diferentes frações.

Acerca de diferentes frações, no seio do Partido Trabalhista havia variações e discordâncias nos entendimentos tanto do que ‘deveria ser’ o trabalhismo, como em ‘de que forma’ proceder para torná-lo viável e uma realidade. Como ressalta Lucilia Delgado (1989), havia, por parte dos doutrinários reformistas, propostas de trabalhismo mais autônomo e autêntico, rivalizando com algumas mais ‘flexíveis’ e fisiológicas, defensoras do mito getulista, qual seja os getulistas-pragmáticos, assim como havia uma espécie de misto entre as outras duas, os pragmáticos reformistas. As classificações de Delgado nos ajudam como modelo a ser verificado na experiência da atuação política dos petebistas em solo capixaba.

Além disso, Jorge Ferreira (2005) faz considerações acerca da radicalização de figuras importantes do PTB entre os anos 1961-4, em que se pregou uma participação mais direta dos trabalhadores na vida institucional do país, propondo a modificação da atuação controlada e elitizada dos atores políticos falando pelos trabalhadores. À luz desta constatação, importa analisar se o PTB capixaba foi simpático a esta nova ideia de mobilização ou se partilhava da defesa de outra forma de participação dos trabalhadores.

Miguel Bodea (1992), por sua vez, ressalta que com exceção do Rio Grande do Sul, o PTB, em seu início, não arregimentou

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intelectuais de esquerda, não possuindo também propostas socialistas em suas bases. Desta maneira, o PTB gaúcho surge por esforço de três vertentes, com origens e integração no partido distintas e em etapas e formas diversas.

A primeira vertente dizia respeito a denominada corrente sindicalista, que abarcava lideranças sindicais que se forjaram, sobretudo, no Estado Novo. Núcleo inicial do partido, era considerada a vertente fundadora da agremiação. Esta fração cindiu com o PSD gaúcho logo nos primeiros anos da redemocratização, o que marcou a trajetória política de ambos, dificultando futuras composições ou alianças entre as duas siglas regionais.

A segunda vertente era a corrente doutrinária-pasqualinista. Composta por intelectuais progressistas (bacharéis e profissionais liberais), eram seguidores da doutrina do advogado Alberto Pasqualini. Suas ideias comportavam temas sociais reformistas, baseadas no trabalhismo britânico em maior grau e, em menor grau, na socialdemocracia europeia. Antes de integrar o PTB, estes elementos formaram a União Social Brasileira (USB), movimento por meio do qual Pasqualini e seu grupo defendiam suas bandeiras e pensamentos.

Desta maneira, o PTB gaúcho teria uma característica distinta da agremiação trabalhista no contexto nacional, posto que fora a única seção, segundo Bodea (1992), que absorveu um movimento de esquerda - reformista, mas portador de um certo grau de elaboração doutrinária. A USB ocupava, de fato, pelo menos uma parcela do espaço político reservado à Esquerda Democrática nos outros estados. Ou seja, era uma esquerda democrática que optou por integrar-se no PTB e não na UDN, como ocorria em nível nacional. No caso gaúcho, isto teria dupla consequência. Por um lado, o PTB adquiriu, desde sua fundação, uma conotação de “partido de esquerda” e não apenas “partido popular” ou simplesmente “legenda popular” como tendia a ser nos estados com maior peso política e econômico do país. Já, por outro, sobrava pouco espaço para o Partido Socialista Brasileiro no Rio Grande do Sul.

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Já a terceira vertente que formou o PTB gaúcho diz respeito à corrente pragmático-getulista, que adentrou o partido durante o ano de 1946, após o pleito presidencial. Esta corrente era composta essencialmente de políticos profissionais saídos do PSD por orientação de Vargas. O objetivo imediato era fortalecer o partido no pleito estadual de 1947. Jango, por exemplo, se filiara ao PSD em 1945, mas também esteve entre os que se transferiram por intermédio de Vargas.

Ao que parece, no Espírito Santo, como não se nota uma entrada de um grupo socialista conciso no PTB, a exemplo da USB no Rio Grande do Sul, sobrou espaço para atuação, inclusive sindical, de um partido como o PSB na cidade de Cachoeiro de Itapemirim, sul do estado, como pudemos perceber na pesquisa que constituiu o livro sobre os 80 anos do Sindibancários/ES2. Desta forma, o PTB capixaba nasceu e estava nas mãos de representantes das elites agrárias e mercantis e não havia um grupo de pressão considerável tendendo o partido para esquerda. Por isso, um político mais à esquerda e voltado às demandas populares e sindicais, como o petebista Mario Gurgel, ao que parece, sofreu diversos reveses intrapartidários quando, por exemplo, assumiu a Prefeitura Municipal de Vitória. No Rio Grande do Sul, o PTB nasceu primeiramente de esforço dos sindicalistas, que comandaram por um bom tempo o partido, tanto que, a princípio, eram contra entrada de profissionais liberais e “políticos profissionais” na legenda. Cabe investigar em que medida a agremiação trabalhista capixaba recebera influência de correntes sindicalistas e vertentes socialistas ou mais progressistas em sua formação, tal como, a forma como ocorreu a negociação dos conflitos entre os interesses das mais diversas correntes formativas da seção capixaba.

Já a terceira vertente que formou o PTB gaúcho diz respeito à corrente pragmático-getulista, que adentrou o partido durante o

2 O livro foi fruto de pesquisas de grupo coordenadas pelo Prof. Dr. André Ricardo Valle Vasco Pereira (UFES), sendo formado por Charles Torres Bertochi, Júlia Ott Dutra, Lucian Rodrigues Cardoso e Rodrigo Lima. Apesar de concluído, o trabalho final ainda não foi publicado pelo referido sindicato.

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ano de 1946, após o pleito presidencial. Esta corrente era composta essencialmente de políticos profissionais saídos do PSD por orientação de Vargas. O objetivo imediato era fortalecer o partido no pleito estadual de 1947. Jango, por exemplo, se filiara ao PSD em 1945, mas também esteve entre os que se transferiram por intermédio de Vargas.

Por fim, Bodea (1992) observa-se o ano de 1954 como um marco para o trabalhismo gaúcho, posto que demarca o encerramento de um ciclo em que predominou as lideranças de Vargas e Pasqualini no partido. Após a morte do primeiro e a derrota eleitoral do segundo, os herdeiros do trabalhismo gaúcho, Brizola e Jango, assumem a direção máxima do partido, em que as bandeiras anti-imperialista e reformistas marcariam o novo período de 1954 a 1964. Brizola assumiria a liderança regional e Jango seria o expoente maior do trabalhismo brasileiro. Faz-se necessário e oportuno também o estudo de como esta transição foi percebida e influenciou os rumos do partido e do trabalhismo capixaba. Cabe, então, apreender como estava organizado e as formas de atuar do PTB no cenário político capixaba antes e depois deste ciclo de formação e consolidação rumando à fase de ressignificação da doutrina em que confluíram, no caso gaúcho, as três correntes formadoras da legenda trabalhista.

Avançando ainda as leituras, tratando do ínterim de 1952 e 1954 em que João Goulart adquiriu papel de destaque no cenário político brasileiro e trabalhista, Márcio Sukman (2014) opta por uma abordagem que destaca a consolidação de Jango como uma das maiores lideranças do país. Através da noção de trajetória social, o trabalho propõe desmistificar a imagem frágil de um ex-ministro, ex-vice-presidente e ex-presidente do PTB que o liderou por mais de dez anos, constituindo um período de grande crescimento para a agremiação. Assim, O surgimento de Jango no cenário e PTB nacionais seria o início de um movimento de renovação do trabalhismo, pautada por prática política de mobilização dos trabalhadores, articulada por meio da estrutura sindical oficial, em torno da melhoria das suas condições de vida e do bem-estar para a

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classe laboral. Na hipótese de Sukman (2014), a relação de Jango com os

trabalhadores perpassa por três faces distintas: ministro do Trabalho; presidente de um partido político; e amigo dos trabalhadores. Assim, o ator se mostrou um aliado e tornou-se uma referência de liderança popular. O período de ascensão de Goulart no cenário político nacional é identificado com o processo concomitante de rotinização do carisma depositado em Vargas. Neste, Vargas tratou de transferir seu poder excepcional para uma agremiação política, qual seja o PTB, tendo como herdeiro de seu legado à pessoa de Goulart.

Tal processo, segundo Sukman (2014), seria dividido em dois momentos. O primeiro diz respeito a formação de uma organização ainda incipiente, através do protagonismo de líderes secundários na sociedade e movimento sindical. Em seguida, a rotinização se efetivaria através da dispersão do carisma, ou seja, tais lideranças secundárias ganhariam uma espécie de legitimidade, tendo independência e autonomia junto ao eleitorado, mas que, entretanto, se apresentaria como herdeiras políticas do então chefe.

Entretanto, o processo de herança do carisma de Vargas não fora algo tranquilo e fácil, posto que contou com oposições e resistências dentro do partido, passou - no caso de Goulart - por uma derrota eleitoral para o senado por Rio Grande do Sul em 1954. Porém, contou também com os louros de sua eleição para a vice-presidência do país em 1955.

Destarte, o trabalho do autor torna-se referência para se investigar como foi assimilada e recebida pela seção capixaba a entrada de Jango e novos atores, tal como Brizola, no leme do trabalhismo. Cumpre analisar se este processo de rotinização do carisma do chefe adquiriu profundidades suficientes para afetar o partido num cenário político periférico, com atores comprometidos com as elites agrárias e mercantis. Além disso, tornar-se-á relevante perceber como foi a assimilação desse novo discurso reformista, nacionalista e mobilizante imbuídos nas novas bandeiras do PTB nacional, porém em um estado com as forças produtivas do

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capitalismo ainda pouco desenvolvidas, tal como com uma classe operária ainda em formação e ambiente marcadamente rural com predomínio de relações clientelísticas.

Conclusão Em suma, as leituras teóricas e interpretativas fornecem

subsídios para se estudar o projeto político e prática trabalhista no Espírito Santo, com vistas a investigar e analisar as congruências e especificidades do trabalhismo e ambiente sociopolítico capixaba em relação ao plano nacional.

Numa época em que o tradicionalismo figurava na sociedade predominantemente agrária do Espírito Santo cumpre elucidar em que medida um estado com as forças produtivas do capitalismo ainda pouco desenvolvidas oferecia condições para assimilação e desenvolvimento de um programa mais progressista de um partido trabalhista, em especial, o PTB, que ocorreu durante o processo de institucionalização do partido.

O PTB capixaba enquanto agremiação representante do trabalhismo, num cenário de disparidades regionais e retórica de nacionalismo no país, reforçou os aspectos tradicionais e a instabilidade de projetos no Espírito Santo. Aventa-se, assim, que, mesmo num período em que, em contexto nacional, os reformistas esquerdizantes já mostravam seu vigor para hegemonia partidária a partir da década de 50, a ideologia influenciava muito pouco nas dissensões e debates entre as lideranças do trabalhismo capixaba, fazendo com que bandeiras e agenda desta corrente política fossem relegadas a segundo plano em solo capixaba.

Pensando nisto, partiremos da premissa de um Partido Trabalhista Brasileiro assentado nacionalmente em bases urbanas. Porém, abordaremos este partido em um estado marcadamente agrário, em que as cisões e disputas facciosas giravam em torno de questões muito mais pragmáticas e de cunho tradicional, que em termos ideológicos, algo tributário a uma democracia que

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se pretendia moderna. É através da análise das fontes escritas e da percepção de época dos atores e testemunhas da época que buscaremos as respostas para os problemas ora levantados.

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e sindicato em São Paulo (1945-1964). São Paulo: Brasiliense, 1989.BODEA, Miguel. Trabalhismo e populismo no Rio Grande

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americano em discussão.In: FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 167-203.

CARDOSO, Lucian Rodrigues. Entre a raia miúda e o black tié: a administração de Mario Gurgel na Prefeitura de Vitória (1957 – 1958). 2013. Monografia (Graduação em História) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013.

CARDOSO, Lucian Rodrigues. Aos amigos, a política! A administração de Mario Gurgel na Prefeitura de Vitória (1957-1958) sob a visão do petebista Luiz Buaiz. In: X Encontro Regional de História da ANPUH-ES, 2014, Vitória. Anais do X Encontro Regional de História da ANPUH-ES, 2014.

DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. PTB: do getulismo ao reformismo (1945-1964). São Paulo: Marco Zero, 1989.

DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. Trabalhismo, nacionalismo e desenvolvimentismo: um projeto para o Brasil. In: FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 167-203.

FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular, 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

GOMES, Angela Maria de Castro. A invenção do trabalhismo.

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poder nos partidos políticos. São Paulo: Martins Fontes, 2005.PESSANHA, Elina G. da Fonte; MOREL, Regina Lúcia.

Classe trabalhadora e populismo: reflexões a partir de duas trajetórias sindicais no Rio de Janeiro. In: FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 167-203.

SUKMAN, Márcio André. A trincheira dos trabalhadores: João Goulart, PTB e o Ministério do Trabalho (1952-1954). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014.

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Cairu na condição de Censor Régio: contribuições para o fortalecimento do

Poder RealMarcela Portela Stinguel1

José da Silva Lisboa nasceu na Bahia em 17 de Julho de 1756. Foi estudar na Universidade de Coimbra e em 1779 se formou em Direito Canônico e Filosófico. Retornou à Bahia em 1780 onde foi nomeado ouvidor da Comarca de Ilhéus e também em 1782 professor de Filosofia Racional. Em 1793 retorna e Coimbra e em 1797 é nomeado pelo Príncipe Regente Deputado Secretário da Mesa de Inspeção da Agricultura e Comércio da Bahia tendo assim que retornar ao Brasil.

Visconde de Cairu foi uma figura emblemática: era um extremo conservador político e um admirador do liberalismo econômico. O brasileiro se norteou em Adam Smith quando o assunto era economia e Edmund Burke quando se tratava do campo político. Os ensinamentos de Smith e seu liberalismo eram muito bem quistos pelo visconde bem como o conservadorismo de Burke uma vez que era contra as mudanças que iam de encontro à ordem social.

Relevante colocar que certamente os dois teóricos citados acima contribuíram de forma decisiva na formação cultural do brasileiro, contudo, não foram os únicos. Cairu foi influenciado também pelos grandes clássicos, sobretudo ingleses, ou aqueles que embora não fossem nascidos na Inglaterra, atuavam em campo britânico. Nomes como David Hume, Jeremy Bentham e Thomas Malthus foram amplamente mencionados em suas obras. Para o brasileiro, eles representavam a superioridade naquele tempo.

A pátria dos Bacons, Newtons e Lockes tem o magistério do Universo e a primazia da indústria, depois das composições econômicas dos senhores David Hume, Jacques Stewart e Adam Smith que, por sentença de conhecedores, não só emparelham,

1 Pós Graduanda em História pela Universidade Federal do Espírito Santo.

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mas tem incontestável superioridade a todos que trilharam a sua tão despenhada carreira que, ou conduz as Nações ao templo da memória, ou aos antros da selvageria (LISBOA, 1956, p. 97).

Quando a Família Real esteve na Bahia em janeiro de 1808, Lisboa foi um defensor das aberturas dos portos às nações. Devido a sua influência foi nomeado professor de Economia Política e convidado a seguir com a realeza para o Rio de Janeiro.

A vinda da Corte para o Brasil fez com que houvesse mudança em vários aspectos. A abertura dos portos às nações amigas, o fim do monopólio português, a instalação de fábricas dado o isolamento português devido às ocupações do exército napoleônico no país ibérico e a imprensa implantada uma vez que era necessária a impressão de atos governamentais e a divulgação de notícias de interesse da Coroa.

O advento da imprensa no Brasil não se deu em um vazio cultural, mas já havia por aqui relação de transmissão. De acordo com Marcos Morel (MARTINS; DE LUCA, 2008), a circulação de palavras não se restringia aos letrados, mas ultrapassava as fronteiras sociais. E foi dentro desse contexto que houve efetivação “[...] de um espaço público de crítica quando as opiniões públicas assim publicizadas destacavam-se dos governos [...]” (MARTINS; DE LUCA, 2008, p. 30).2

O objetivo inicial da Impressão Régia datada de 13 de Maio de 1808 era imprimir a legislação e papéis diplomáticos uma vez que a Coroa Portuguesa havia se transferido para o Brasil. Somente em 27 de Setembro de 1808 o Desembargo do Paço se tornou o órgão responsável pela censura no Brasil e em 02 de Março de 1821 houve suspensão daquela com influência pela Revolução do Porto.

O Desembargo do Paço foi responsável pela liberação de obras e se apresentava como um tribunal régio, porém eram os

2 Na presente obra, Marco Morel se atenta para o fato de que a “[...] circulação de palavras – faladas, manuscritas ou impressas – não se fechava em fronteiras sociais e perpassava amplos setores da sociedade que se tornaria brasileira, não ficava estanque a um círculo de letrados, embora estes, também tocados por contradições e diferenças, detivessem o poder de produção e leitura direta da imprensa” (2008, p. 25).

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anseios do Rei que conduziam o órgão, pois “[...] todo o sistema de censura se apoiava integralmente na sua vontade e nos seus deveres para com os súditos baseados em princípios e poderes sustentados pelo absolutismo” (CARNEIRO, 2002, p. 98).

O recorte deste artigo será na época em que José da Silva Lisboa foi um dos responsáveis pela Imprensa Régia do país. Em 24 de Julho de 1808 foi criada uma junta para administração régia onde foram denominados José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, José Bernardes de Castro e Mariano Fonseca. Dado o forte apreço de Dom João VI para com Cairu, ele foi nomeado por decreto em 27 de Setembro 1808 Censor Régio da Impressão Régia.

A nação brasileira nasce e cresce com a imprensa. Uma explica a outra. Amadurecem juntas. Os primeiros periódicos iriam assistir a transformação da Colônia em Império e participar intensamente do processo. A imprensa é, a um só tempo, objeto e sujeito da história brasileira. Tem certidão nascimento lavrada em 1808, mas também é veículo para reconstrução do passado (MARTINS; DE LUCA, 2008, p. 8).

Nos tempos da Colônia a polícia fiscalizava de maneira severa as livrarias sobretudo aqueles que continham referência aos temidos ideais franceses presentes nos livros advindos da Europa. Com a abertura dos portos em 1808, tais livros entraram com mais facilidade no país e certamente foram tomadas providências para coibir a entrada.

A imprensa áulica na época da censura era valorizada devido ao fato de que nessa época o Absolutismo já se encontrava em sua fase de desgaste. Assim, a referida imprensa tinha como intuito enaltecer esta forma de governo bem como rechaçar as ideias que não eram a seu favor. Tem-se como exemplo a Gazeta do Rio de Janeiro, a Idade de Ouro do Brasil, Variedade ou Ensaios de Literatura e O Patriota. Haviam ainda os jornais que circulavam fora do Brasil tidos como exemplo também da imprensa áulica: Reflexões sobre o Correio Brasiliense e O Investigador Português.

Os censores se tratavam deHomens esclarecidos que defendem as ideias da Ilustração para organização de uma nova sociedade, que, entretanto, não aceitam

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uma revolução nos moldes franceses. As reformas pautadas na razão eram bem vistas para se evitar os perigos de uma convulsão social que poderia abalar os alicerces tradicionais da sociedade luso-brasileira, idealizada sobre a fé e a razão (NEVES, FERREIRA, p. 115).

O que devia ser censurado era o que pudesse abalar a religião e a moral. Eram elaboradas listagens com os livros bem como as características das obras que deviam ser censuradas. Os critérios para que houvesse a interdição se baseavam, sobretudo, eram religiosos, morais e políticos.

Contudo, esse trabalho de censura ocorria de forma desorganizada e morosa. Não haviam critérios estabelecidos para o procedimento da censura.

A confecção das listas pela alfândega era, por vezes, confusas e incompletas. Além disso, era a tarefa do censor extremamente dificultosa, pois “[...] a falta de critérios claros, a dificuldade de acesso ao Index de livros proibidos e as listas mal elaboradas desencadeavam não apenas dúvidas, mas também desavenças e disputas entre os homens de confiança do monarca” (CARNEIRO, 2002, p. 104).

José da Silva Lisboa era considerado um censor zeloso. Mesmo que a obra observada por ele não apresentasse conteúdo possivelmente perigoso, se o autor, por ventura, fosse admirador de autores subversivos, tal obra seria proibida de circular em território brasileiro. Exemplo disso foi História da Europa Moderna de Bonaville. Este escritor admirava escritos de Voltaire e Rousseau e mesmo a obra citada não apresentando teor contra a religião e o bom andamento do Estado, foi censurada pelo futuro Visconde de Cairu.

Os pedidos de impressão solicitados ao Desembargo do Paço, apesar de não serem muitos, também eram analisados com rigor. De fato, havia o medo de conter premissas dos ideais franceses e quando haviam estas, eram solicitados aos escritores que mudassem o conteúdo dos escritos para conseguir a solicitação para impressão.

Outra atuação de Cairu como censor régio se deu em 1818

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quando se deparou com duas obras suspeitas: Histoire Philosophique e Histoire du Brésil. A primeira obra era proibida, pois podia ser de Raynal. E a segunda constava críticas à Coroa e à sua política.

Ainda em 1818, o mesmo censor barrou a obra Des Colonies do autor De Pradt isto porque o livro era contra a escravidão, havia projetos de Napoleão e não se mostrava favorável ao estabelecimento da Coroa na América.

A religião era um dos norteadores da censura e essa tinha o papel de defensora da fé. José da Silva Lisboa em 1819 se atentou para uma obra de Thomas Chalner intitulada Revelação Cristã. Tamanha foi sua preocupação que solicitou que o referido livro fosse enviado para ele em mãos para que assim pudesse ser averiguado.

Visconde de Cairu se tratava de um homem erudito e juntamente com Dom João VI almejava resoluções dos problemas brasileiros fazendo uso de medidas pombalinas.

Na condição de um dos responsáveis pela Impressão Régia, fez valer de seus poderes e publicou várias obras. Esses escritos refletiam a linha na qual Cairu se apoiava: o Liberalismo econômico e conservadorismo político.

Na ocasião, o Estado de fato abrangia todo o espaço político e Cairu, como defensor árduo da Monarquia, refletia e exaltava essa estrutura.

Cairu quando esteve à frente da Imprensa Régia publicou 14 livros sobre diversos assuntos.3

I) Observações sobre o comércio franco do Brasil (1808);II) Reflexões sobre o comércio de seguros (1810);III) Refutações das reclamações contra o comércio inglês,

extraídas de escritores eminentes (1810);IV) Razões dos lavradores do Vice-Reinado de Buenos Aires

3 Os livros citados não foram as únicas publicações de José da Silva Lisboa na época em que foi Censor Régio. Foi publicado pela Impressão Régia O Conciliador do Reino Unido, jornal composto por sete números datado de 01/03/1821 a 25/04/1821.

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para a franqueza do comércio com os ingleses contra a representação de alguns comerciantes e resolução do governo (1810);

V) Observações sobre a franqueza de indústria e estabelecimento de fábricas no Brasil (1810);

VI) Observações sobre a posteridade do Estado pelos liberais princípios da nova legislação do Brasil (1810);

VII) Memória econômica sobre a franqueza do comércio dos vinhos do Porto (1812);

VIII) Ensaio sobre o estabelecimento de bancos para o progresso da indústria e riqueza nacional (1812);

IX) Extrato das obras políticas e econômicas de Edmundo Burke (1812);

X) Memória da vida pública de Lord Wellington (1815);XI) “Apêndice” à Memória da vida pública de Lord Wellington

(1815);XII) Sinopse da legislação principal do Sr. D. João VI pela

ordem dos ramos da economia do Estado (1818);XIII) Memória dos benefícios políticos do governo del rei, nosso

senhor D. João VI (1818);XIV) Estudos do bem comum e economia política (1820).Serão analisados cinco livros acerca da linguagem política4

utilizada por Visconde de Cairu de forma a engradecer a figura real e também a Monarquia: Observações sobre a franqueza de indústria e estabelecimento de fábricas no Brasil, Observações sobre o comércio franco do Brasil, Extrato das obras políticas e econômicas de Edmundo Burke, Reflexões sobre o comércio de seguros e Razões dos lavradores do Vice-Reinado de Buenos Aires para a franqueza do comércio com os ingleses contra a representação de alguns comerciantes e resolução

4 Quentin Skinner (POCOCK, 2003) alega a importância de se resgatar as intenções do autor quando da elaboração de seus textos. Para tanto, o historiador deve se ater não somente em decodificar tais intenções, mas também se familiarizar com o contexto linguístico da época. J. G. A. Pocock (2003) coloca que o historiador deve analisar em qual situação o autor se encontrava bem como o que ele pretendia tornar legítimo ou invalidar.

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do governo.I) Observações sobre a franqueza de indústria e estabelecimento

de fábricas no Brasil: os comerciantes portugueses e brasileiros sabiam que com a abertura dos portos haveria uma diminuição dos lucros. Assim, tentaram “[...] manter e obter privilégios que lhes garantisse a posição de proeminência no Brasil” (FARIA JÚNIOR, 208, p. 290). Nessa obra, Silva Lisboa critica esses privilégios. E o fim desses proporciona, de acordo com Cairu, o desenvolvimento e riqueza da nação. O brasileiro escreveu esta obra Cairu quando gozava de sua condição como estadista e interventor da política econômica do Brasil. Na citada obra, o escritor enobrece o governo na seguinte passagem:

Como é plausível e nobre o pensamento de se mostrar o Governo sempre liberal e generoso em adiantar a indústria do povo, e favorecer com especialidade aos que pretendem empreender tarefas difíceis, e dispendiosas (LISBOA, 1999, p. 37).

II) Observações sobre o comércio franco do Brasil: nesta obra Cairu desenvolve a ideia de que o governo francês resultado da Revolução Francesa age de forma irracional frente a assuntos econômicos tomando como base as reformas estatais. Observando o Brasil e dada a concorrência com produtos estrangeiros (leia-se ingleses), os comerciantes que antes da abertura já atuavam no Brasil, deveriam abaixar seus preços para se manterem no mercado. Procurava desmistificar a ideia de que a abertura traria prejuízos ao mesmo tempo que reafirmava que os interesses do Estado deveriam se sobrepor aos interesses individuais.

A figura do Rei foi amplamente elevada como pode-se notar na seguinte passagem:

Por isso suplico a V.A.R. a graça de publicar, sob o Amparo de seu Augusto Nome, as presentes Observações sobre a primeira, e magnífica obra com que V.A.R. Foi servido honrar a minha Pátria (que tem nome fausto, e alusivo a tão grande sucessos). Pondo aí o sólido, e profundo alicerce, ou, para melhor dizer, a Pedra Angular do Edifício da Civilização, e Novo Império, que declarou vir criar, pois estou convencido, que a franqueza do Comércio, regulada pela Moral, Retidão, e Bem Comum, é o princípio vivificante da ordem social, e o mais natural, e seguro meio da prosperidade

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das Nações. Animei também a este empenho, porque V.A.R. tem protegido benignamente os meus trabalhos, que tenho dado a luz sobre os Princípios do Direito Mercantil, e Economia Política, onde já expressei os meus sentimentos patrióticos, e ardentes desejos que tenho da glória da V.A.R., e que aqui reproduzo, na esperança de os ver completamente realizados na rápida, e brilhante carreira, com que V.A.R. avança a imortalidade de seu nome (LISBOA, 1808, [?]).

III) Extrato das obras políticas e econômicas de Edmund Burke: Cairu neste livro traduz cinco textos de Edmund Burke, o pai do conservadorismo moderno. Ainda no prefácio deste livro de autoria de José da Silva Lisboa, consta críticas à Revolução Francesa onde havia o prevalecimento de “[...] paixões animais e destruição da ordem estabelecida” (LISBOA, p. 4). O brasileiro considerava Burke o principal antagonista da Seita Revolucionária.

No prefácio Cairu coloca que o inglês em seus escritos aborda que somente a “[...] doce influência da verdadeira Religião, e o progresso da cultura do espirito, podem diminuir erros e vicias dos homens, e fazer durar e florescer os Impérios” (LISBOA, 1812, p. 6).

IV) Reflexões sobre o comércio de seguros: Logo nos primeiros parágrafos há exaltação da figura do Rei.

Ajunte-se pois mais este esmalte é Joia verdadeiramente Soberana, com que SUA ALTEZA REAL brindou o Brazil [sic], apenas honrou este novo Mundo com SUA REAL PRESENÇA. (LISBOA, 1810, p. 5)

A obra discorre de forma a colocar o comércio de seguros como recompensatório. Se atenta para os seguros navais de forma a expor as utilidades das companhias de seguros para manutenção das fortunas dos particulares.

V) Razões dos lavradores do Vice-Reinado de Buenos Aires para a franqueza do comércio com os ingleses contra a representação de alguns comerciantes e resolução do governo: Nesta obra, Cairu coloca que a Argentina se encontrava numa situação em que a receita da Fazenda se esgotara e a saída, portanto, era propiciar a entrada em seu mercado de produtos ingleses e exportar os argentinos.

A exemplo de outras obras, também há exaltação real:Tive porém mais forte motivo para este trabalho; e é, pelo paralelo

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entre os Regulamentos diminutos e vacilantes das outras Nações, e o Majestoso, e verdadeiramente Imperial Sistema Econômico Político, que SUA ALTEZA REAL, O PRINCIPE REGENTE Nosso Senhor, Se Dignou adoptar neste Estado, manifestar-se, a todas as luzes, o incomparável benefício que gozamos [...]. (LISBOA, 1810, [?]).

Os livros de José da Silva Lisboa listado acima, em sua maioria, contavam com o selo “Com Licença de S.A.R.”, ou seja, Com Licença de Sua Alteza Real. Dessa forma, deveria contar com a aprovação do Governo para ser publicado. Tratavam de assuntos de Economia Política e “[...] encontrava-se também a mão pesada do Estado: os livros dessa disciplina eram editados como se ela fosse parte integrante dos discursos do poder do Estado” (ROCHA, 1993 p.51).

Importante frisar que as obras de Cairu foram relegadas por diversos historiadores por considerarem-na de pouco valor. Alegavam que José da Silva Lisboa se preocupava de forma prioritária na narrar somente os fatos heróicos da Realeza. Contudo, deve-se recorrer à historiografia, pois, de acordo com Valdei Lopes de Araújo

[...] não como quem busca a justificação para nossa própria ciência, mas procurando reconstruir os contextos específicos nos quais ela fazia sentido e atuava como força história. A partir desse deslocamento, a história da historiografia tem deixado de ser uma atividade complementar e justificativa para se tornar uma importante ferramenta no conhecimento das realidades históricas (NEVES, 2011, p. 77).

Estudar Visconde de Cairu, quer concorde ou não com seu posicionamento político e econômico se faz importante, pois permite compreender o seu discurso que ilustrava uma ampla defesa do constitucionalismo através de um soberano monárquico e a divisão dos poderes com deputados eleitos pelo povo.

Referências BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução em França.

Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982.

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CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (Org.). Minorias silenciadas: História da censura no Brasil. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, FAPESP, 2002.

FARIA JÚNIOR, Carlos de. O pensamento econômico de José da Silva Lisboa, Visconde de Cairú. 2008. Tese (Doutorado em História) – Programa de História Econômica, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

LISBOA, José da Silva. Observações sobre o comércio franco do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1808.

LISBOA, José da Silva. Razões dos lavradores do Vice-Reinado de Buenos Aires para a franqueza do comércio com os ingleses contra a representação de alguns comerciantes e resolução do governo. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1810.

LISBOA, José da Silva. Reflexões sobre o comércio de seguros. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1810.

LISBOA, José da Silva. Extrato das obras políticas e econômicas de Edmundo Burke. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1812.

LISBOA, José da Silva. Observações sobre a franqueza da indústria, e estabelecimento de fábricas no Brasil. Brasília: Senado Federal, 1999.

LISBOA, José da Silva. Princípios da Economia Política. Rio de Janeiro: Pongetti, 1956.

MARTINS, Ana Luiza; DE LUCA, Tania Regina (Org.). História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008.

MONTENEGRO, João Alfredo de Sousa. O discurso autoritário de Cairu. 2. ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000.

NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das et al. (Org.). Estudos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: FAPERJ: FGV, 2011.

NEVES, Lucia Maria Bastos P. das; FERREIRA, Tânia Maria T. Bessone da C. O medo dos “abomináveis princípios franceses”:

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a censura os livros nos inícios do século XIX no Brasil. Acervo Nacional, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 113 – 119, jan. / jun. 1989. Disponível em: < http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/media/omedo.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2016.

POCOCK, J. G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: EDUSP, 2003.

QUINZO, Maria D’Alva Gil; WEFFORT, Francisco C. Os clássicos da política: Burke, Kant, Hegel, Tocqueville, Stuart Mill, Marx. 7. ed. São Paulo: Ática, 1998.

ROCHA, Antonio Penalves. A difusão da Economia Política no Brasil entre fins do século XVIII e início do século XIX. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 13, n. 4 (52), p. 47 – 57, out. / dez. 1993.

SILVA, Bruno Diniz. Linguagens políticas em José da Silva Lisboa (1808-1830) Caderno de resumos & Anais do 2º. Seminário Nacional de História da Historiografia. A dinâmica do historicismo: tradições historiográficas modernas. Ouro Preto: Ed. UFOP, 2008. Disponível em: <http://www.seminariodehistoria.ufop.br/seminariodehistoria2008/t/diniz.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2016.

SMITH, Adam; MALTHUS, T. R.; RICARDO, David. A economia clássica: textos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1978.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

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A Vigilância da Polícia Política Sobre os Professores da Rede Estadual de Ensino do

Espírito Santo no Ano de 1979Márcio Gomes Damartini1

O presente artigo analisará a vigilância da Polícia Política Capixaba sobre os trabalhadores em educação da rede estadual de ensino do Espírito Santo a partir da análise da documentação disponibilizada no Arquivo Público do Estado do Espírito Santo (APEES).

Esse processo de vigilância iniciou-se em 1979, ano da entrada de Eurico Rezende no Governo do Estado, situação que não significou melhoria para o magistério capixaba. De acordo com (SOARES 2005, p. 183), se as esperanças dos professores eram reduzidas no Governo anterior, reduziram-se mais ainda, principalmente porque o novo chefe do Executivo, quando era líder do Governo no Senado, possuía linha conservadora, posicionando-se contra a Constituinte e a Anistia, ainda que tenha discordado do deputado estadual Edson Machado quando este acusou a presidente da União dos Professores do Espírito Santo (UPES) Myrthes Bevilacqua de ser subversiva.

A aproximação do Governo com o magistério foi tentada através do Secretário de Educação, Stélio Dias, contudo alguns episódios deixaram claro para os trabalhadores em educação que a distância entre Eurico Rezende e o ex-governador Élcio Álvares era somente no discurso. A “manutenção” do atraso no pagamento dos professores contratados, os monitores – que para tentar receber em dia fizeram inúmeros movimentos grevistas – é um exemplo da semelhança. Outro ponto que os unia era o descumprimento da lei.

O ex-governador afirmara que as leis são muito bonitas no papel, mas impossíveis de serem cumpridas. Já o governador em exercício declarou que “acreditava na morosidade da Justiça”.

1 Professor da Rede de escolas públicas da Secretaria Estadual de Educação do Espírito Santo.

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Para piorar ainda mais sua situação Eurico Rezende não atendeu a principal reivindicação feita pelos professores: o reajuste salarial.

Segundo (SOARES, 2005, p. 183), a manutenção do tratamento dado ao magistério pelo Poder Público fez a UPES trilhar o mesmo caminho da Confederação dos Professores do Brasil (CPB), ou seja, afastar-se dos governos militares devido ao não cumprimento das promessas feitas aos docentes. A presidente da entidade nacional, Telma Cançado, apontava que a greve, além dos resultados financeiros e sociais, traria benefícios à sociedade. Portanto, as paralisações dos professores seriam ”justas e necessárias”.

No caso do Espírito Santo, essa movimentação dos trabalhadores em educação, e seu consequente afastamento do Governo, acabaram levando o magistério a ficar em Assembleia Geral Permanente em 1978, uma forma mais incisiva de cobrar os direitos que já vinham sendo negados há vários anos. Essa movimentação, somada à ameaça de greve, colocou o Poder Executivo numa “saia-justa”, visto que a luta dos professores capixabas extrapolou as fronteiras do Estado. Mantendo o nível da tensão, o magistério continuou se reunindo em assembleias, contudo não mais a permanente, mais as realizadas no Colégio do Carmo. Todo esse processo de luta chamou a atenção das autoridades e o magistério passou a ser vigiado pela Polícia Política Capixaba.

O ano de 1979 e o início da vigilância ao magistério capixabaA maioria dos documentos arquivados pelos agentes da

Polícia Política durante o período que antecedeu a primeira grande assembleia dos professores da rede estadual de ensino do Espírito Santo, que aconteceu no dia 30 de abril de 1979, no Colégio do Carmo, teve origem nos jornais de circulação diária. Em relação à rotina de vigilância, o roteiro foi o traçado por (FAGUNDES, 2012, P.17): recolhimento de recorte de jornais e panfletos, bem como a realização e “socialização” dos relatórios das assembleias entre os órgãos da repressão, inclusive fora do Estado. Os documentos eram organizados em pastas, para facilitar a identificação.

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O primeiro documento2 coletado pelos agentes é datado do dia 21 de março: uma reportagem do jornal O Diário, com o título: “UPES pede que SEDU recupere escola”. A matéria destaca que um grupo de pais, liderados pela presidente da UPES, entregou ao Secretário de Educação, Stélio Dias, um documento solicitando a restauração do prédio escolar localizado em Porto de Santana, Cariacica. Aproveitando o ensejo, Myrthes Bevilacqua destacou que o magistério entregaria ao Secretário uma pauta de reivindicações da categoria. Conforme destacado por (FAGUNDES, 2012, p. 16) os documentos3 coletados pelos agentes durante aquele mês tiveram como tema a luta dos professores pelos seus direitos, principalmente a exigência de melhores salários. Os outros pedidos constavam no documento que a UPES sempre entregava aos Governadores no início dos seus mandatos bem como as outras autoridades: o Memorial.

A reportagem4 do jornal A Tribuna, de 31 de março, demonstra que o magistério realizou uma assembleia no dia anterior, e o principal encaminhamento foi a entrega do Memorial aos Secretários de Estado da Educação, da Fazenda, da Administração e do Planejamento. Os presentes também deliberaram que haveria um novo encontro dos docentes, no dia 30 de abril, para analisar as soluções dadas pelo Governo. Como a movimentação dos professores efetivos ainda não era intensa, não foi dada nenhuma ordem de serviço para que os agentes fossem vigiar os participantes. Contudo, os monitores já se movimentavam para ter não somente os salários em dia, mas também outros direitos.

2 O Diário, 21/03/1979. p. 171. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

3 A Gazeta 23/3/1979 e a Tribuna, 31/03/1979. p. 172 e 173. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

4 A Tribuna, 31/03/1979. p.174. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

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As matérias5 dos jornais A Tribuna e A Gazeta, do dia 6 de abril, mostram que o processo que exigia a assinatura da carteira de trabalho para um grupo de 48 professores contratados, com efeito retroativo a época em que ingressaram no Estado, podia ser julgado à revelia, caso não houvesse resposta acerca dos questionamentos feitos pelos ingressantes num prazo máximo de 30 dias. Essa forma de luta, jurídica, iria posteriormente juntar-se à luta política com a deflagração do movimento grevista por parte desses docentes, mesmo sem apoio explícito da UPES e sem contar com a anuência dos efetivos. No decorrer do mês de abril, as reportagens6 destacaram as reuniões realizadas pelo Secretário de Educação e de Administração para responder aos pedidos feitos pelo magistério.

Concomitante a essas reuniões, os docentes capixabas através da UPES entregaram ao secretário Stélio Dias, no dia 20 de abril, um documento7 solicitando a extensão de carga horária para os professores efetivos e contratados. Contudo, diante da divulgação, através do jornal A Gazeta de 26 de abril8, de que o Governo do Estado não estipulara o piso salarial para professores ativos e inativos, fez a UPES admitir que greve poderia ocorrer na segunda feira.9

A resposta do Governo às reivindicações do magistério foi 5 A Tribuna, A Gazeta, O Diário 06/04/1979. p.175 a 177. Arquivo Público

do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

6 A Gazeta 07/04/1979. 12/04/1979. Jornal da Serra 16/04 a 21/04/1979. A Tribuna p.178 a 183. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

7 Carta ao Secretário de Educação p.01 a 04. 20/04/1979. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

8 A Gazeta. 26/04/1979, p. 185. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

9 A Gazeta. 27/04/1979, p. 186. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

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dada através de um longo documento10, com cerca de 30 páginas, entregue ao magistério em 30 de abril e assinados pelos secretários de Educação Stélio Dias, de Administração e Recursos Humanos, Marcelo Antônio de Souza Basílio, de Planejamento Arlindo Vilaschi Filho e da Fazenda, Orestes Secomradi Soneghet. Para essa assembleia o governo não mandou somente os secretários, já que uma considerável estrutura foi montada para vigiar os professores, revelando assim o modus operandi da Polícia Política, que neste caso não funcionou a contento.

A Assembleia do Dia 30 e seus DesdobramentosBaseado nas pesquisas de (FAGUNDES, 2012, p. 17), podemos

vislumbrar a rotina dos agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) para vigiar os professores reunidos em assembleia. Primeiramente, foi aberta uma pasta11 para abrigar o relatório e os panfletos referentes ao dia 30 de abril. Na capa estava carimbado termos como “confidencial”, ”ação rotineira“, conforme destacou o autor. Outro ponto que chama atenção e faz parte do modus operandi dos agentes é a linguagem com a qual se referem às pessoas vigiadas, neste caso, o termo “elemento”.

De acordo com o descrito no relatório12, foi determinado pelo secretário estadual de Segurança Pública, general José Parente Frota, a vigilância da assembleia que, nesse caso, foi realizada por uma equipe de agentes do DOPS chefiada pela comissária Maria da Penha e uma equipe do SII (Serviço de Investigação e Informações),

10 Resposta do Governo ao Memorial. 27/04/1979. P. 05 a 35. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

11 Pasta para arquivo do relatório da Assembleia de 30/04/1979 e 01/05/1979. P.36. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

12 Relatório da Assembleia de 30/04/1979 e 01/05/1979. P.38-40. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

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chefiada pelo escrivão Valdir Xavier. Os agentes deveriam se infiltrar entre os professores para detectar possíveis elementos estranhos à classe. Conforme o relatório, houve a descoberta de pessoas que não pertenciam ao magistério capixaba, com destaque para o ”elemento“ conhecido como professor Tadeu. O grande problema, segundo (SOARES, 2005, p. 184), foi que o agente policial Jones Custódio de Paula, que estava responsável por fotografar o evento, foi descoberto pelos organizadores da assembleia.

Conforme nos aponta (HORTON; HUNT, 1980, p.146) no processo de institucionalização, ou seja, no estabelecimento de rotinas padrões e procedimentos para tornar uma ação previsível e rotineira é essencial o elemento humano, pois as organizações funcionam mais suavemente quando podiam atrair pessoal competente. Algumas vezes se viam prejudicadas por elementos que não se ajustavam aos papéis que lhe eram atribuídos. Esse “desajuste”, que ocorreu nessa assembleia, comprometeu toda a operação, pois um dos pontos essenciais para o êxito da operação, o sigilo, foi comprometido.

Os organizadores das assembleias do magistério designavam pessoas que pudessem identificar pessoas que não pertenciam à categoria. Com a descoberta o professor Tadeu, conforme o relato tentou tomar a máquina do agente. O deputado estadual Dilton Lírio e o assessor jurídico da UPES, Joaquim Silva, tentaram fazer o fotógrafo entregar o filme. Como a situação tendia a se agravar, um dos chefes da operação, Valdir Xavier, teve que intervir para que o fotógrafo não sofresse nenhum tipo de agressão.

De acordo com (SOARES, 2005, p. 183), como encaminhamento da assembleia do dia 30, que contou com a presença do secretário de Educação Stélio Dias, os três mil professores decidiram ficar em Assembleia Geral Permanente, visto que o índice de reajuste salarial de 40% foi considerado insatisfatório. Excetuando os docentes efetivos, que buscavam um índice maior de reajuste e constituíam a maior parte dos associados da UPES, havia cerca de 13.000 monitores que pressionavam tanto por questões salariais

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como também pelo aumento do número de vagas no concurso de ingresso, visto que a quantidade de 2080 cargos não contemplava nem 20% dos professores contratados. Conforme o relatório datado de 01 de maio pelos agentes, foi marcada uma reunião para dar prosseguimento à assembleia, ação que também teve vigilância dos agentes da repressão.

Como destaque no relato da atividade, os agentes identificaram a presença do professor Tadeu, “elemento” causador do incidente do dia anterior. Como ele estava sendo alvo de observação pelo DOPS, foi solicitado pelo delegado Adão Rosa sua condução ao cartório do órgão para averiguar e esclarecer sua participação na assembleia, visto que não era pertencente ao magistério capixaba. Segundo o mesmo relato, o “elemento” foi identificado como Benedito Tadeu César, natural de São Paulo, morando em Vitória há dois anos, professor de sociologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), tendo como grande motivação, de acordo com os agentes, insuflar os docentes da rede estadual para realização da greve, sendo que, após os esclarecimentos, foi liberado. Na pasta que consta o relatório estão anexados panfletos13 apreendidos no dia da manifestação. Finalizando a operação em 03 de maio de 1979, o delegado do DOPS enviou ao Secretário de Segurança Pública todo o material da operação.14 Dando continuidade às atividades da Assembleia Geral Permanente, o magistério capixaba realizou um evento no dia 5 de maio.

Segundo o relatório15 assinado pelo chefe da Assessoria Técnica para Informações e Contra Informações (ATICI), José Pio Lemos, a assembleia foi realizada no Colégio do Carmo, que ficou

13 Panfletos, p. 52 e 53. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

14 Ofício de encaminhamento ao Exmo. Sr. Secretário de Estado da Segurança Pública. 03/05/1979. P.54. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

15 Relatório da Assembleia de 05/05/1979. P.58. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

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com as dependências quase todas tomadas. O assunto principal do encontro – a deflagração da greve, caso o Governo não concordasse em estabelecer um teto mínimo de 6000 cruzeiros para o magistério – não foi discutido. De acordo com o relatório, os professores que usaram o microfone deixaram claro certo receio em participar do movimento grevista, com medo de represálias que poderiam acontecer. No final do relato foi destacado que se o Governo, até o dia 10, não atendesse as reivindicações, seria deflagrada a greve. Na pasta, na qual foi arquivado o relatório, constavam documentos16 da UPES conclamando os professores, que não foram à reunião, para participarem da assembleia seguinte, prometida para dia 10 de maio e tendo a votação sobre a greve como pauta principal. Devido à convocação feita no último encontro, esta assembleia foi uma das mais tensas realizadas pelo magistério, inclusive com a presença de centenas de alunos fora do local do evento apoiando a luta dos professores. A forma como se comportaram os órgãos da segurança pública nessa ocasião acabou ocasionando um atrito entre eles.

Conforme relatório17, a assembleia, realizada no mesmo local da anterior, iniciou-se às 14:30h e terminou às 17:45h. Devido à eminência da greve, os ânimos estavam extremamente exaltados, inclusive com divergências em relação à postura da presidente Myrthes Bevilacqua Corradi, como ocorreu na fala do segundo orador, o professor João Carlos Simonetti, que conclamou o magistério para a greve. Segundo o relato, neste momento, devido à exaltação dos ânimos, a presidente da UPES perdeu o controle dos trabalhos. Contudo, o momento mais tenso ainda estava por vir, principalmente devido à ação da Polícia Militar fora do local da assembleia.

Segundo descrito no relato do agente, para combater a algazarra

16 Cartas aos professores. 59-63. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

17 Relatório da Assembleia de 10/05/1979. P.64-66. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

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de um grupo de alunos, a PM comandada por um cabo lançou gás lacrimogêneo em direção aos estudantes, o que causou uma grande correria. Percebendo o clima pesado, a presidente Myrthes pediu aos professores que permanecessem no local, “pois havia polícia lá fora, e já havia um aluno machucado no hospital devido à ação policial”. Dando continuidade aos trabalhos, a presidente solicitou que todos se colocassem de pé e cantassem o Hino Nacional. Na sequência, os oradores continuaram a exigir a greve. Myrthes pediu que houvesse uma salva de palmas para os alunos que apoiavam o movimento e, em seguida, todos rezaram o Pai Nosso. A presidente destacou que a estratégia utilizada foi para evitar que a situação saísse do controle e houvesse gente machucada. “Tive que pensar numa saída, então comecei a cantar e rezar. Estava na mesa e havia confusão em todo o lugar. Graças a Deus evitei uma tragédia”.

O professor Júlio Carlos de Oliveira, de Itapemirim, organizador e incentivador da participação dos professores do seu município nos eventos promovidos pela UPES, pegando carona em caminhão de carvão e “comendo o que dava”, estava presente nesta assembleia. “O clima ficou muito pesado quando a polícia lançou o gás lacrimogêneo. Só não houve uma tragédia devido à atuação das pessoas que conduziam os trabalhos”. A solução para acalmar os ânimos funcionou com os efetivos, mas não com os monitores.

De acordo com (SOARES, 2005, p. 184), os professores contratados, mesmo sem o apoio da diretoria da UPES, mas contando com a solidariedade dos alunos que estavam fora do local do evento, declararam-se em greve. O “resultado” da assembleia também não agradou aos agentes que fizeram o relatório devido à ação truculenta por parte da PM. Na parte final do documento, com o subtítulo “ação policial”, ficou explicitado esse descontentamento.

Segundo o relato, a ação dos policiais lançando grande quantidade de gás lacrimogêneo em frente ao Colégio do Carmo na direção dos estudantes causou um grande pânico, visto que o gás chegou ao interior do auditório, gerando um princípio de tumulto e grande crítica à ação do organismo policial por parte dos professores.

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O documento destaca ainda que essa medida serviu para desgastar os órgãos de segurança pública, que deveriam se limitar a observar e levantar os elementos mais exaltados sem qualquer intervenção nos trabalhos, como havia determinado o secretário de Segurança Pública.

Como os professores efetivos não paralisaram suas atividades, a vigilância do DOPS voltou-se para os monitores, que então passaram a pressionar o Governo não somente na justiça, mas também através da greve.

A Vigilância aos Monitores De acordo com a reportagem publicada no Jornal A Posição,

na edição que circulou de 12 a 19 de maio, o assessor jurídico da UPES, Joaquim Silva, fez a defesa de um piso mínimo de CR$ 6.000,00 (seis mil cruzeiros) para o magistério fazendo críticas severas à ingerência política na educação. Contudo, a coragem que sempre marcou o assessor da UPES não foi assumida pelos efetivos, pois, mesmo sem conseguirem o reajuste que queriam, voltaram para a sala de aula com medo do que poderia acontecer. Por conseguinte quem pressionou de forma mais incisiva a União dos Professores e demandou jurídica e politicamente contra o Governo foram os monitores, o que acabou levando os órgãos de repressão a redobrar a atenção sobre esses profissionais.

No documento intitulado Nota de Repúdio18, os contratados faziam pesadas críticas ao Governo, acusando-o de não reconhecê-los. Se auto-intitulavam “párias da educação”, não admitindo mais serem joguetes de políticos interessados somente em votos, solicitando ainda apoio dos professores efetivos. Como esse apoio não veio, os monitores passaram a organizar sua luta e a pressionar a UPES para que desse apoio ao movimento, como aconteceu na assembleia do dia 11 de maio, ação destacada pelos agentes

18 Nota de Repúdio. p. 70. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

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no relatório do dia 21 de maio, com o título: “Movimento” de Professores e Monitores - UPES”19. Como foi exigida identificação, os agentes não puderam ter acesso à assembleia, sendo que, de acordo com o relato, a maioria das 1500 pessoas presentes eram professores monitores que possuíam o apoio dos estudantes da rede estadual e da UFES, pois boa parte deles eram ex- alunos da universidade.

Para cobertura da reunião do dia 12, que aconteceu no Edifício Caparaó, dois agentes foram designados. De acordo com o Jornal A Tribuna20, nesse encontro os monitores debateram se aceitariam a proposta de aumento oferecida pelo Governo e o número de vagas oferecidas no concurso de ingresso. Segundo o relatado pelo agente, houve um grande tumulto por parte dos próprios monitores, o que prejudicou os trabalhos. Um dos agentes foi assediado e teve que se retirar do local para evitar problemas.

No entanto, de acordo com a matéria21 “Monitores terminam greve estabelecendo exigências”, publicada no jornal A Gazeta, de13 de maio, ocorreu o tumulto na reunião devido a presença do líder da Aliança Renovadora Nacional (ARENA) na Assembleia Legislativa, deputado Lúcio Merçon, que tentava justificar a falha do Governo em não colocar o aumento dos monitores no projeto de lei enviado à Assembleia Legislativa, sendo ironizado pelos presentes quando pegava o microfone tentando justificar a ação do Poder Executivo . Para dar término ao movimento paredista, os presentes votaram a favor da proposta de retorno às aulas, aceitando os 46% oferecido pelo Governo, contudo exigindo que não fossem punidos e reivindicando ainda o aumento de mais 54%, dando um prazo para que as autoridades atendessem as exigências e, caso isso

19 Relatório 21/05/1979. P.75-77. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

20 A Tribuna. 12/05/1979 P.196-197. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

21 A Tribuna. 12/05/1979 P.196-197. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980

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não ocorresse, voltariam a paralisar suas atividades. Contudo, nesta mesma matéria, reportagem com o subtítulo “UPES critica ameaças da SEDU” aponta que a relação entre os monitores e o Governo do Estado estava longe de ter um final feliz.

Na reportagem, a presidente da UPES, Myrthes Bevilacqua afirma que está dando todo apoio à greve dos monitores, mesmo que seja considerada ilegal, destacando que não concordou de maneira alguma com as ameaças feitas pelo Secretário de Educação, Stélio Dias, de mandar embora os monitores que não voltassem para sala de aula, contratando outros profissionais para substituí-los. Essa tentativa de aproximação da UPES não surtiu muito efeito, principalmente porque o pequeno grupo de monitores que radicalizou contra o Governo tecia críticas intensas à presidente da entidade, acusando-a de pelega, centralizadora e de atuar como porta-voz do Governador. A partir desse grupo foi organizada a Comissão Aberta dos Professores de Oposição (CAPO), que iria questionar a entidade de forma bastante intensa até o fim do mandato da atual direção, em 1981. Essa radicalização acabou demonstrando a fragilidade do movimento dos monitores.

De acordo com a reportagem22 publicada no jornal A Gazeta, de 31 de maio, somente 26 professores estavam presentes na assembleia e decidiram pela greve mesmo sendo uma ínfima parcela dos 9000 contratados. No início do mês de junho a greve foi deflagrada, contudo foi rapidamente sufocada pelo Governo. Mesmo com a derrota, esse grupo continuou defendendo ações radicais para a conquista dos direitos.

As ideias da CAPO eram oriundas dos grupos de esquerda que, desistindo da luta armada, encontraram nos professores de alguns estados o espaço para a reorganização da luta contra os militares questionando o regime com as greves que aconteceram no final da década de 1970 e início da década de 1980, confrontando-se assim a concepção conciliatória defendida pela direção da CPB. Para

22 A Gazeta. 31/05/1979 P.201. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

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trazer mais educadores para o movimento, houve a organização do I Encontro Nacional dos Professores, que contou com a presença de duas delegações representando os professores capixabas.

A participação dos docentes capixabas nos encontros nacionais realizados pela CPB sempre foram bem marcantes, tendo a professora capixaba Lucília Lamego exercido o cargo máximo na instituição, e a presidente da UPES Myrthes chegando a vice-presidência da Confederação dos Servidores Públicos do Brasil. A diferença desse encontro para os outros que a União dos Professores participou, foram os organizadores. Nos anteriores, a estruturação ficava por conta da Confederação de Professores, sendo que este foi organizado pelos opositores ao trabalho desenvolvido pela entidade nacional. Segundo (JÚNIOR, 2011, p. 57), o objetivo dos encontros – que aconteceram em julho de 1979, em São Paulo, e em 1980, em Belo Horizonte – era a criação de uma estrutura sindical nacional para unificar o movimento dos professores em todo o Brasil.

Um ponto que chamou atenção nesse encontro foi a representação do magistério capixaba, pois, além da delegação organizada pela UPES, havia outro grupo composto por seis professores monitores, mais ligado às ideias defendidas pelos organizadores. Assim, a União dos Professores foi convidada para esse encontro devido à organização que os professores já possuíam no Espírito Santo, mesmo que houvesse maior ligação com a CPB.

Segundo (JÚNIOR, 2011, p. 58), o Primeiro Encontro Nacional de Professores contou com a presença de trabalhadores em educação, oposições e entidades de 13 Estados. Nesse encontro foram debatidos os pontos em comum que unificavam as lutas nos Estados como: as reivindicações básicas, a postura governamental, as dificuldades impostas, os saldos organizativos conquistados, o avanço na consciência política da categoria e as formas de luta utilizada. O autor destaca que a luta dos professores, neste momento existente no Brasil, estava pautada por diferentes concepções. De um lado havia a tese de fortalecimento da CPB numa perspectiva democratizante, evitando o confrontamento com os militares. Essa

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linha política da qual a UPES fazia parte era apoiada pelos comunistas ligados ao PCB (Partido Comunista Brasileiro), PC do B (Partido Comunista do Brasil) e MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de outubro). Do outro lado atuava o grupo chamado “esquerdistas”, que acreditavam na luta de forma mais incisiva, não aceitando diálogo com os governos militares.

A partir desse primeiro encontro foram reiniciados os contatos entre os diversos estados, resultando em reuniões realizadas durante o ano de 1980. Contudo, até chegarmos a julho desse ano a divergência de concepção na construção do movimento dos professores mostrou-se bastante presente no Espírito Santo, e mereceu a vigilância do DOPS.

O Confrontamento da Esquerda Sob os Olhos da DireitaO confrontamento das duas concepções de organização de luta

acirrou-se ainda mais no segundo semestre de 1979. Aparentemente, o grupo de monitores que questionava de forma mais incisiva a direção da UPES era bastante reduzido, contudo contava com apoio de lideranças capixabas e de veículos de comunicação como o Jornal Opinião. Esse embate ideológico foi acompanhado de perto pelos agentes do DOPS. O lançamento oficial do grupo oposicionista à direção da UPES, a CAPO, foi realizado através do informativo23 Pó de Giz.

No documento é relatado que a direção da União dos Professores era porta-voz do Governo. Destaca ainda que os monitores se rebelaram para lutar pelos seus direitos. Questiona a forma conciliatória com que a direção negocia com o Poder Executivo, deixando claro que se articula com setores oposicionistas a essa política, frisando ainda que usa o jornal A Posição para divulgar o que foi decidido no Encontro Nacional dos Professores e não encaminhado pela direção da UPES.

23 Informativo Pó de Giz. P.105. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

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No informe24 intitulado “Corrupção”, o grupo tece pesadas críticas ao governador Eurico Rezende, acusando-o de vários gastos que acabavam por contribuir para esmagar o magistério. Em outro documento25 a comissão denuncia que o acordo de aumento salarial proposto pelo Poder Executivo tinha como único objetivo desmobilizar categoria, e o pior, contando com anuência da UPES. Segundo os integrantes da CAPO, o Governo só atendeu algumas reivindicações de parte do magistério através de pressão, destacando, que os direitos dos monitores, por exemplo, foram conseguidos através da Justiça do Trabalho, e não através mobilização dos docentes.

Aprofundando suas críticas através do documento26 “Precisamos de uma Assembleia Geral”, os monitores destacam que os interesses da categoria não são os mesmos da direção da entidade. Os membros da CAPO lembram ainda que, quando relataram as condições do magistério capixaba no encontro de professores realizado no mês de julho em São Paulo, a presidente da UPES, Myrthes Bevilacqua, prometeu que convocaria uma assembleia geral tão logo chegasse à Vitória, contudo, como não houve a convocação, os monitores demonstraram seu posicionamento no jornal A Posição, de setembro de 1979.

Na matéria, a comissão mostra o seu descontentamento com o Governo do Estado para a sociedade capixaba, e, principalmente, com os rumos tomados pelo movimento de professores, deixando claro que a greve era um dos poucos instrumentos de pressão que a categoria possuía, contudo utilizada somente pelos monitores. Se a situação dos contratados era ruim, os efetivos, cansados de esperar

24 Informe Corrupção. P.106. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

25 As manobras do governo e a nossa reorganização. P.107. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

26 Precisamos de uma assembleia geral. P.108. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

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solução dentro do Estado e não mobilizados para a greve, mais uma vez apelaram para o Governo Federal.

No dia primeiro de outubro, em uma audiência pública, foi entregue ao Ministro da Educação, Eduardo Portella, o documento elaborado de tempo em tempo pela UPES e encaminhado às autoridades: o Memorial27. Dentre as reivindicações havia o reajuste real de acordo com a inflação, pois a gratificação de 40% concedida pelo Governo do Estado podia ser retirada a qualquer momento. Também solicitaram a paridade da remuneração com outros cargos no mesmo nível de formação, questionando a ausência de reajuste aos aposentados e a demissão de professores celetistas e a sua readmissão sem nenhum vínculo.

No dia seguinte ao envio do memorial ao Ministro da Educação, o Deputado Federal pelo MDB, Max Freitas Mauro, fez um discurso28 na Câmara dos Deputados relatando a audiência, ocasião em que destacou que o convite para participar da conversa partiu da presidente da UPES. Em sua fala, o Deputado questionou o Governador afirmando que a situação da educação capixaba era bastante precária, principalmente para os professores monitores. Aproveitando o ensejo, o Deputado convidou o Ministro para visitar o Estado, ressaltando que o Governo Federal deveria garantir o imediato cumprimento da Lei nº 5692 /71, que fixa as Diretrizes e Bases do Ensino Primário e do Segundo Grau. Esse discurso e a movimentação tanto dos professores efetivos quanto dos contratados, revela que o governo Eurico Rezende era bastante parecido com o seu antecessor, Élcio Álvares.

No caso dos monitores, como ambos não tiveram condição ou não priorizaram o pagamento em dia, a situação chegou ao Governo Federal. Outro episódio que revela a semelhança de dois adversários

27 Memorial. 01/10/1979 P.132-137. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

28 Discurso do deputado Max Mauro (MDB/ES). 02/10/1979, p. 121-125. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

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políticos filiados ao mesmo partido é sobre o cumprimento da legislação. O ex-governador Élcio Álvares, no caso da colocação em prática do Estatuto do Magistério, que constava na 5692/71, ironizou que as leis são muito bonitas na folha de papel, mas na prática se tornam inviáveis. Em relação ao atual Governador, um episódio demonstrou que, para não colocar a legislação em prática, o mandatário acreditava na lentidão da Justiça, como frisou o assessor jurídico da UPES, Joaquim Silva.

Silva, tentando obter uma solução para a greve dos médicos, situação em que o Governo do Estado insistia em não cumprir a lei, combinou com repórter do jornal A Tribuna, onde trabalhara, para fazer uma pergunta ao governador Eurico Rezende sobre o descumprimento da lei. A surpreendente resposta revelava como os poderes constituídos faziam uma série de conchavos entre si: “Eu acredito na morosidade da Justiça”. Contudo essa morosidade não era aceita pelos professores contratados.

Como forma de tensionamento e tentativa de ter o salário em dia, um dos poucos direitos garantidos, monitores de várias escolas da Grande Vitória entraram em greve, conforme reportagem29 do jornal A Gazeta, de 09 de outubro, afirmando que só voltariam às atividades quando o Estado pagasse pelo menos o mês de agosto. A matéria, mostrando a movimentação dos professores contratados, foi encaminhada ao Delegado do DOPS através de ofício30, sendo que este solicitou ao chefe da Seção de Operações Especiais um levantamento com informações sobre a greve. A resposta para a solicitação foi dada no dia 24 de outubro31, informando que o movimento foi organizado por membros da classe visando

29 A Gazeta. 09/10/1979, p. 111. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

30 Ofício de encaminhamento ao Sr. Delegado do DOPS/ES. 09/10/1979, p. 112. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

31 Informações sobre a greve. 24/10/1979, p. 113. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

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melhoria salarial e regularização da situação funcional, contudo já tinha terminado. Os monitores capixabas, cansados das promessas sem cumprimento no Estado, resolveram apelar ao Ministro da Educação, Eduardo Portella, e ao presidente da República, João Batista de Oliveira Figueiredo, através do documento32 Manifesto ao Presidente.

No documento, fica bem claro que o atraso salarial dos professores contratados já vem a longo tempo, e que o atual Governo prometeu uma solução, contudo continuou tratando o magistério da mesma forma desrespeitosa com que o fizeram os outros governantes. O manifesto também deixa claro que a comunidade capixaba perdia mais uma vez, e poderia ser penalizada devido à paralisação dos professores. Quem também solicitou ajuda ao Governo Federal para resolver a situação dos monitores foi a UPES.

A entidade enviou uma carta33 ao presidente da República João Batista de Oliveira Figueiredo questionando a política adotada pelo Governo Estadual, que alegava não ter dinheiro para pagar o magistério em atraso, mas gastava com propaganda em diversos meios de comunicação. A entidade pede ainda que seja feita uma emenda à Constituição, para que os monitores, muitos deles com mais de 20 anos nesta situação, possam ter os mesmos direitos dos efetivos. Devido a toda essa situação os professores capixabas tinham pouco a comemorar na sua data.

No dia 15 de outubro – Dia do Professor – aconteceu uma assembleia da rede estadual. Para a vigilância desse movimento foi emitida no dia 12 de outubro uma ordem de serviço34 designando

32 Manifesto ao Presidente. 13/10/1979, p. 144. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

33 Carta ao Presidente da República João Figueiredo. 13/10/1979, p. 126-131. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

34 Ordem de serviço. 15/10/1979, p. 145. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

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três agentes policiais, para que se dirigissem ao local do encontro, depois acompanhassem a caminhada até a Catedral Metropolitana, e posteriormente apresentassem o relatório final. No relato35 feito pelos agentes, foi destacado que a reunião aconteceu, contudo a passeata que estava programada não foi realizada. Essa desmobilização dos professores efetivos acabava atrapalhando a luta dos monitores, pois estes não conseguiam ter apoio para pressionar o Governo, mesmo que se movimentassem com as paralisações36 em vários locais do Estado, tanto na Grande Vitória como no interior.

De acordo com a reportagem37 do Jornal A Gazeta, de 18 de outubro, parte dos monitores voltaram às atividades após receber o salário do mês de agosto, enquanto outros continuaram parados, pressionando o Governo para conseguir outros direitos38. Em todas as reportagens fica bastante claro que esses professores contam com o apoio dos pais e alunos para resolver, de uma vez por todas, a questão do atraso dos salários, ressaltando ainda que poderiam paralisar suas atividades no final do mês, caso não recebessem o mês de setembro. Desse modo, a desmobilização dos efetivos, além de atrapalhar a luta dos monitores, custou um preço caro para si mesmo.

Segundo a reportagem39 de A Gazeta do dia seis de novembro, com o título “UPES registra falhas em novo Estatuto do Magistério Estadual”, além da correção dos erros no documento, dois pontos

35 Relatório. 18/10/1979, p. 147. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

36 A Gazeta. 17/10/1979, p. 205-206. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

37 A Gazeta. 17/10/1979, p. 205-206. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

38 A Gazeta. 19 e 20/10/1979, p. 209-210. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

39 A Gazeta.06/11/1979.P.212. Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

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deveriam ser tomados como prioridade: equiparação salarial dos professores e especialistas com os demais servidores públicos da mesma graduação e pagamento do salário do professor de acordo com o maior título, independente de sua função no magistério. Reforçando a luta pela implantação integral do Estatuto a UPES, segundo o jornal O Diário – edição de oito de novembro – mostrará ao ministro da Educação, Eduardo Portella, as ilegalidades do novo documento.

O ano de 1979 marcou o início da vigilância sobre os professores capixabas. Em 1980, em que pese a ausência de uma ação mais incisiva por parte do magistério e a consequente vigilância pelo DOPS, notabilizou-se pelos encontros nacionais dos professores, organizados pelos dois grupos que disputavam a hegemonia na luta dos docentes no Brasil, sendo que em 1981, mais especificamente no mês de junho, o magistério capixaba realizou a primeira greve de sua história.

Referências FAGUNDES, Pedro Ernesto. Memórias silenciadas: catálogo

seletivo dos panfletos, cartazes e publicações confiscadas pela Delegacia de Ordem Política e Social do Estado do Espírito Santo. DOPS/ES (1930-1985). Vitória: GM Editora / APEES, 2012.

HORTON, Paul B.; HUNT, Chester L. Sociologia. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1980.

JÚNIOR, Amarílio. F. de professores e as organizações de esquerda durante a ditadura militar transdisciplinar. In: ROSSO, S. D. (Ed.). Associativismo e sindicalismo em educação - Organização e lutas. Brasília: Paralelo 15, 2011.

SOARES, Renato Viana. Retrato Escrito: a reconstrução da imagem das(os) professoras(es) através da mídia impressa (1945/1995) . Vitória: ITB, 2005.

Fundos Documentais

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Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: DOPS/ES. Dossiê 13/ Manifestações dos Professores Estaduais e Municipais do Espírito Santo, ocorridas nos anos de 1979/1980.

Jornais e PeriódicosA Posição. Vitória. 12 a 19 de maio/1979A Posição. Vitória. set./ 1979.O Diário. Vitória.8 de Nov./1979

EntrevistasJoaquim SilvaJúlio Carlos de Oliveira

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A construção da nação no pensamento de Edgard Roquette-Pinto

Mariana Calazans Wanick1

IntroduçãoO interesse em discutir nação e identidade nacional nas duas

primeiras décadas do século XX no Brasil é justificado pela força que a questão tinha à época. Como destaca Tânia Regina de Luca em seu livro A revista do Brasil: Um diagnóstico para a (N)ação, os intelectuais brasileiros de início do século XX refletiram obstinadamente o Brasil a fim de abarcar sua especificidade. Sublinhavam os problemas, propunham soluções e defendiam diferentes sonhos e projetos de futuro. Esse, para a autora, é um movimento comum de momentos de crise, transformação ou ruptura, e se torna quase uma compulsão. A busca dos elementos fundadores e de originalidade da nação, a construção de uma identidade capaz de diferenciá-la no confronto com o outro e o esforço para compreender sua atuação no contexto mundial parecem ganhar um novo sentido em momentos de “crise”. Lilia Moritz Schwarcz (1993) sublinha que o período de transição do século XIX para o XX foi de bastante ebulição social, política e intelectual e a Guerra do Paraguai acelera as contradições do sistema. A desmontagem do sistema escravista, preocupação com a questão da mão de obra, o fim do Império, a convivência entre os antigos e novos centros econômicos do país.

As autoras põem em relevância a geração de intelectuais da década de 1870, caracterizada pela diversidade no que se refere à origem social e à área de atuação em relação às gerações anteriores. Esses intelectuais denunciam o imobilismo do Império, a escravidão, o atraso econômico do país. Mas, apesar da esperança frente os eventos de fins do século, Abolição e República, predominou nos primeiros anos do século XX um sentimento de desilusão em relação à recém-proclamada República, como ressaltam Pécaut (1990),

1 Mestranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo.

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Hochman & Lima (1996) e Oliveira (1990). Esse novo regime não apenas não correspondia aos sonhos

desses intelectuais, como também os afastou das funções públicas. A vida republicana passou a ser “dominada” pelas oligarquias cafeeiras e seus interesses. Pécaut (1990) e Oliveira (1990) destacam que a Primeira Guerra exerce papel importante para a recolocação do problema da brasilidade na ordem do dia. Ao retornar como tema central, ainda de acordo com Oliveira, o nacionalismo adquire uma função militante, diferente do nacionalismo ufanista e romântico de fins do século XIX. Este novo nacionalismo recoloca a questão da identidade nacional no sentido de buscar o rompimento com a herança europeia.

Diversos autores discutem os primeiros anos da república brasileira e destacam a importância crucial desses anos para o debate sobre a formação da nação brasileira: Pécaut (1990); Oliveira (1990); Hochman & Lima (1996); Souza (2011), Carvalho (2005). Gomes (2010) em seu artigo História, ciência e historiadores na Primeira República, sintetiza bem algumas questões comuns colocadas por todos esses autores. Para a autora, as ideias e questionamentos do período que corresponde aos primeiros anos da república necessitam de uma nova interpretação, diferente da tradicionalmente consagrada imagem de “República Velha”. A autora nos lembra que periodizar é um ato de poder e a naturalização da expressão “República Velha” não é ingênua, mas teria sido um projeto dos ideólogos autoritários das décadas de 20 e 40 e dos intelectuais do Estado Novo. Por isso, há a necessidade de uma retomada desse período a partir de uma nova perspectiva, como um dos momentos mais frutíferos e ricos para os debates de ideias políticas e culturais no país. A grande questão que se colocava à época era a de como superar o grande problema do atraso brasileiro. Porque, ao contrário do que comumente se pensa, a República Oligárquica é um período de intensa busca por modernidade e de disputas por diferentes projetos de modernização. Outra colocação central da autora para a nossa pesquisa, é de que, apesar da disputa pelos projetos, havia na época um consenso em

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torno da importância da ciência como instrumento fundamental para qualquer tipo de progresso. No Brasil, portanto, a modernização e superação do atraso passavam pela importância de desenvolver a ciência.

Após essa breve justificativa sobre a relevância e a centralidade que as questões sobre a nação e a identidade nacional tinham no Brasil durante as primeiras décadas do século XX, é basilar fazermos algumas considerações teóricas acerca da nação, da nacionalidade e da identidade nacional. A partir de Benedict Anderson é possível definir nação como: “uma comunidade política imaginada- e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana” (2008, p. 32). Imaginada, pois há um sentimento de comunhão e proximidade entre os membros, mesmo sem que a maioria se conheça. Limitada porque todas as comunidades possuem fronteiras, independentemente de serem mais ou menos elásticas. Para Anderson, a nação é soberana porque o conceito nasceu na época do Iluminismo e da Revolução Francesa, é uma particularidade de seu período histórico. A nacionalidade e o nacionalismo são produtos culturais específicos, é necessário considerar suas origens históricas e a maneira como seus significados se transformaram ao longo do tempo. Segundo Benedict Anderson, o que possibilitou imaginar as novas comunidades que formaram a nação foi a interação entre: o capitalismo como sistema de produção; a imprensa, como uma tecnologia das comunicações e a fatalidade linguística humana. As nações se formaram, portanto, a partir da combinação de determinadas transformações que ocorreram na sociedade quando já se tornava latente o enfraquecimento dos laços religiosos e progressivo o questionamento dos poderes dinásticos, em que os indivíduos eram vistos como súditos.

Para o autor, o nacionalismo não deve ser compreendido como uma ideologia, ao lado do socialismo ou do liberalismo, mas como um sistema cultural, análogo a outros que o precederam, como a comunidade religiosa e reino dinástico. Anderson se questiona sobre as razões de a nacionalidade e o nacionalismo terem uma

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legitimidade emocional tão profunda, por que as pessoas são capazes de morrer pela nação? O autor reitera o caráter histórico e inventado dessas comunidades, foram criadas em um determinado momento da história e por certos grupos das classes mais altas, como uma resposta ao surgimento de um nacionalismo mais popular ligado às línguas vernáculas. Mas, onde está a magia do nacionalismo? Por que tantos discutiram sobre ele, mataram e morreram em seu nome? Anderson delineia uma resposta logo na introdução de seu livro: as nações são imaginadas como comunidade, independente das desigualdades e das relações de exploração que existam em seu interior, são sempre concebidas como uma profunda camaradagem horizontal.

Em seu capítulo Patriotismo e Racismo, o autor explora e desenvolve um pouco mais esse ponto, como explicar o apego das pessoas aos frutos de sua imaginação? A chave para esta explicação está no caráter natural dos laços da nacionalidade, não é possível escolhê-los e, por isso, são vistos como laços desinteressados. É semelhante à interpretação mais tradicional acerca da família, que a vê como domínio do amor desinteressado e da solidariedade. Não faria sentido morrer ou sacrificar-se pelo Partido dos Trabalhadores ou, até mesmo, pela Anistia Internacional, porque é possível escolher filiar-se ou não a esses organismos. Morrer pela pátria só adquire significado e supõe uma grandeza moral através das ideias de pureza e desinteresse, que são dadas por meio da fatalidade.

Antes de passarmos à discussão acerca da nação e da identidade nacional no Brasil de início do século XX, consideramos válido destacar alguns pontos sobre a identidade, o pertencimento. Nesse caso, mais especificamente, a identidade nacional. A partir do exemplo de Woodward no livro Identidade e Diferença é possível afirmar que a identidade é relacional, é dependente de uma identidade que ela não é, mas que fornece condições para que ela exista. A identidade brasileira, portanto, se formará na relação com outras identidades, por ser brasileira será diferente da portuguesa, inglesa ou argentina. A identidade será marcada pela diferença, “se você é

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sérvio não pode ser croata” (2000: 9). A construção da identidade é tanto simbólica quanto social, busca a vinculação da identidade a determinados símbolos, como: hino, bandeira, educação primária, heróis e também têm implicações na realidade social, a luta para afirmar as identidades têm causas e consequências materiais. E, justamente, são as discussões de intelectuais de fins do século XIX e princípios do XX a respeito da identidade nacional brasileira que esse artigo buscará apontar, mesmo que reconhecidamente de modo superficial. A partir desses apontamentos mais gerais partiremos para nosso objetivo mais específico, e possível de alcançarmos, circunscrever Roquette-Pinto neste debate e apontar sua concepção de identidade nacional e suas propostas para a transformação do país em uma nação.

A partir dessa breve consideração teórica acerca das identidades, é momento de nos questionarmos como os brasileiros compreendiam o ser brasileiro nos primeiros anos do século XX. Quais eram as implicações materiais de ser brasileiro? A que símbolos esta identidade estava relacionada? O Brasil era uma nação nessa época? Era uma comunidade imaginada, limitada e soberana?

Nação brasileira, desde quando?No artigo Brasil: Nações Imaginadas, José Murilo de Carvalho

discute de maneira bastante ampla e geral as diversas imagens da nação brasileira da colônia à república de acordo com as visões da elite ou de setores dominantes. Sabemos das limitações deste texto, trata de um recorte temporal muito amplo e não se atenta às especificidades de cada período. Mas, nosso objetivo é justamente utilizá-lo como um ponto de partida, uma visão ampla acerca da questão a fim de que, mais a frente possamos aprofundar as discussões acerca da nacionalidade nas primeiras décadas do século XX por meio da figura de Edgard Roquette-Pinto.

Carvalho (2005) destaca que durante o período colonial o Brasil não era visto como uma unidade, exceto pela língua e a religião. Capistrano de Abreu e Saint-Hilaire denominaram o

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período colonial brasileiro como um arquipélago de capitanias. O que esses diferentes homens tinham em comum era a aversão pelo elemento português, mas não havia entre eles um sentimento positivo que os ligasse. A Conjuração Mineira (1789) e a Revolução Pernambucana (1817) não demonstram um apego à ideia de Brasil. O patriotismo incitado pelos movimentos era limitado às províncias em que ocorreram, era um patriotismo mineiro ou pernambucano. Mesmo após a independência e a formação de um Estado Nacional centralizador e monárquico em 1850, o autor percebe vários indícios de ausência de identidade nacional. O sentimento de identidade ainda era baseado em fatores negativos, apenas em oposição ao elemento português. Apesar do funcionamento das instituições burocráticas e políticas: rei, congresso eleito, partidos políticos e judiciário nacionalmente organizado, a face interna não correspondia a essa imagem, a nação ainda era uma ficção. A nação como ficção à qual José Murilo se refere não é sinônimo da comunidade imaginada de Benedict Anderson. È possível, inclusive, afirmar que ela é fictícia, falsa, porque não é imaginada, as pessoas não se sentem ligadas às outras que não conhecem. O que as une são apenas elementos negativos, vínculos frouxos, como por exemplo, antipatia e aversão aos portugueses.

Ainda de acordo com José Murilo (1998), não houve uma preocupação sistemática da elite imperial em educar a população dentro de um viés de valorização da pátria e do elemento nacional. Mesmo o simples uso de símbolos cívicos como a valorização do hino nacional e da bandeira não foram realizados. A educação primária também não foi utilizada como instrumento de inserção da ideia de pertencimento a uma comunidade imaginada, nação, às crianças. O ensino primário era, desde o ato adicional de 1834, atribuição das províncias e municípios. O governo central não se preocupava em definir currículos e nem em exigir qualquer tipo de educação cívica. Também não havia uma preocupação específica com os museus até por volta de 1870. O Museu Nacional, no Rio de Janeiro, só se estruturou a partir dos moldes dos grandes centros europeus a partir de meados dos anos 1870 com Ladislau Netto e

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depois deu prosseguimento com Batista de Lacerda, que dirigiu a instituição de 1895 a 1915. A década de 1890 é conhecida como a era brasileira dos museus e corresponde ao período de apogeu das instituições internacionais (SCHWARCZ, 1993). A preocupação da elite em definir a identidade nacional se limitava a socializar e convencer setores da própria elite por meio da tutela do ensino superior e de instituições como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro que tinha, grosso modo, a função de escrever a história do país.

No que se refere à educação básica, é válido ressaltar que, de acordo com a Constituição de 1891, competia à União responder pelo ensino secundário e pelo superior e às unidades federativas a responsabilidade pelo ensino primário e normal, à educação popular mais específica (CUNHA, 2010). Cunha (2010) reitera que não há uma ação mais efetiva e direcionada do Governo Federal no que diz respeito à educação primária, já que ficava a cargo dos municípios, que agiam de maneira pouco coesa e planejada. Para este autor, ganha força na década de 20 um movimento contrário à descentralização característica dessa República das oligarquias. Havia uma parcela significativa da intelectualidade que havia perdido a fé na Constituição republicana de 1891 e pleiteava uma transformação que produzisse um poder central competente a fim de coordenar a sociedade.

O território e a diversidade brasileiras eram consenso, mas, mesmo na primeira metade do século XIX, antes da difusão das teorias racistas, a população já era uma questão mais delicada. Era preciso enfrentar a questão da população negra e mestiça, onde situá-la na nação?

Com o fim da monarquia aprofundam-se as questões sobre o que era o país e é possível sublinhar diversas correntes que buscam interpretá-lo. Ainda segundo José Murilo (2005), havia um grupo que buscava reforçar a identidade americana e o ódio às raízes portuguesas, tinha como expoentes: Raul Pompéia e Manoel Bomfim. Já Eduardo Prado e Afonso Celso eram monarquistas

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e defendiam um nacionalismo ufanista, baseado na natureza e até mesmo na exaltação de certos elementos da população. Esses autores citados, que se situam na transição do século XIX para o XX, não consideravam a raça como um empecilho à formação da nação brasileira. Outras correntes desse mesmo período reforçam a inferioridade da raça negra e a degeneração do elemento mestiço e, desta maneira, chegam a negar a possibilidade de desenvolvimento da nação brasileira e de seu progresso. Muitos enxergam a importação de mão de obra europeia como a única solução para o problema racial no Brasil. Dentre os que veem a questão racial como um problema fundamental e um dos maiores empecilhos ao desenvolvimento da nação estão: Silvio Romero, Euclides da Cunha, Oliveira Vianna e Nina Rodrigues.

Como sublinha Schwarcz (1993) havia nessa época uma dicotomia entre “homens de sciencia” e “homens de letras”, que pode ser exemplificada pela polêmica entre Silvio Romero e Machado de Assis. Romero acusava Machado de não se envolver com as questões de seu tempo. Esses “homens de sciencia”, como Romero, geralmente vinculados a centros de pesquisa ou ensino, tenderam a adotar modelos evolucionistas e social-darwinistas, já bastante desacreditados na Europa. O estudo das raças passou a ser o objeto central destes intelectuais de um novo tipo. Esses brasileiros baseavam-se nas considerações de Gobineau, Renan, Le Bon e Taine, já consideradas ultrapassadas na Europa. Gobineau, provavelmente o mais famoso deles, reiterava que a civilização era um estágio acessível a poucas raças e que os mestiços eram decadentes e degenerados.

Ainda de acordo com Schwarcz (1993) é interessante ressaltar que os modelos deterministas raciais foram muito populares no Brasil, mas seu uso foi inusitado e original, não foi uma simples cópia de modelos europeus ultrapassados. A originalidade consistiu justamente na combinação da crença no evolucionismo com os determinismos, geográfico e racial. Determinismo geográfico pode ser definido como a crença em que as condições físicas do meio

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ditavam o potencial de civilização de determinado grupo, já o determinismo racial via toda mestiçagem como erro e degeneração e enaltecia os tipos raciais puros.

Ainda para esta autora, o Brasil dos anos 1890 era saudado pelos cientistas estrangeiros como fenômeno desconhecido, curioso. Especialmente pela questão da mestiçagem, que também era vista pela elite intelectual local como tema polêmico. A autora sublinha que o problema racial é o meio pelo qual é possível apreender as desigualdades observadas e, até mesmo, certa singularidade nacional. Apesar de interessante e particular, a constatação de que o Brasil era um país mestiço gerava novos dilemas para os cientistas brasileiros. O que fazer? Como agir diante de uma nação mestiça? Será que é possível seu desenvolvimento rumo à civilização ou está fadada ao fracasso e à degeneração?

Será que a definição de nação de Benedict Anderson pode ser aplicada ao Brasil das primeiras décadas do século XX? Será que havia uma comunidade imaginada, limitada e soberana no Brasil de princípios do século? Para Carvalho (1998), houve desde a colônia uma série de posições e imagens criadas pelas elites que disputavam entre si espaço como principal projeto de nação. Em relação ao povo, este autor agrupa as diferentes imagens do Brasil a partir da: 1) ausência do povo; 2) visão negativa do povo; 3) visão paternalista do povo. Para este autor, o povo não estava incluído em nenhum dos projetos de nação. E, portanto, podemos inferir que para Carvalho (1998) não é possível definir o Brasil como uma comunidade imaginada no sentido de Anderson, a maior parte da população não se vê contemplada nessa discussão. Às vezes sequer tem contato com os elementos da nação e, dessa maneira, não tem uma identificação, um vínculo com pessoas que não conhece.

Neste momento é válido passarmos à segunda parte deste artigo, tratarmos mais especificamente do debate que surgia nos primeiros anos do século XX sobre o que definiria a nação brasileira e quais seriam seus maiores problemas. Será que para Edgard Roquette-Pinto e os homens com quem discutia e dialogava o

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Brasil poderia ser considerado uma nação segundo a definição de Anderson? Mas, antes, cabe introduzirmos, mesmo que brevemente, nosso personagem.

Afinal, quem foi Edgard Roquette-Pinto?Roquette-Pinto nasceu no Rio de Janeiro em 1884 e faleceu

na mesma cidade em 1954. Foi médico, antropólogo, grande entusiasta do rádio, educador, cientista. Enfim, atuou em uma infinidade de áreas e instituições: trabalhou no Museu Nacional (1906-1935) e, de 1926-1935 foi diretor desta instituição. Atuou como diretor do Instituto do Cinema Educativo (1936-1947); foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Ciências; participou da Academia Brasileira de Letras; da Comissão Rondon em 1912; do Congresso Internacional das Raças em Londres (1911) e da Liga Pró-saneamento do Brasil, que coordenou a campanha pela criação do Ministério da Saúde. Foi também o pioneiro da radiodifusão no Brasil e grande entusiasta da utilização do rádio enquanto instrumento educativo das populações que viviam nas regiões mais remotas e distantes (DE SÁ; LIMA, 2008). Além disso, podemos destacar sua atuação como diretor da Revista Nacional de Educação (1932-1934) publicação organizada pelo Museu Nacional durante sua atuação como diretor da Instituição. Suas principais obras são: Rondonia, Ensaios Brasilianos e Ensaios de Antropologia Brasiliana.

A identidade Nacional para a geração de Edgard Roquette-Pinto

Carvalho (2005) nos dá uma ideia geral da discussão que se passava no início da república, o cientificismo juntamente com o determinismo geográfico e racial impediam ou pelo menos dificultavam a crença de que o Brasil, tropical e mestiço, fosse um competidor sério na corrida da civilização. A partir desse panorama geral é possível esboçar as diferentes visões e proposições sobre o Brasil. Para alguns, a degeneração era inevitável, para outros ela

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poderia ser evitada pela imigração de elementos brancos e, ainda para outro grupo, o problema do atraso brasileiro não estava na miscigenação racial em si, mas nas condições de vida a que os mestiços brasileiros estavam submetidos e na falta de organização do território. O objetivo, tirar o Brasil do atraso, não mudou. A transformação se deu nos mecanismos utilizados para alcançar este fim. Alguns defenderam a imigração, predominantemente de elementos brancos; outros aderiram a campanhas civilizatórias, como a de Canudos ou o Movimento Sanitarista. Houve ainda os que se filiaram ao movimento modernista e outros que se vincularam aos movimentos de reforma educacional baseados em ideias norte-americanas: Escola Nova. Também devemos sublinhar aqueles que se vincularam a mais de um movimento desses. O que todos tinham em comum era a crença na necessidade de tirar o país do atraso em que ele se encontrava e, de fato, formar uma nação brasileira. Roquette-Pinto se posicionava contrariamente à forte influência das teorias de determinismo racial, ele sustentou que o problema brasileiro era uma questão de higiene, não de raça.

Primeiramente, cabe perguntar, como os contemporâneos de nosso autor lidavam com essa questão da nação no Brasil. Será que consideravam o Brasil como uma nação? Para Gilberto Hochman e Nísia Trindade Lima (1996) o debate sobre identidade nacional ocupou um espaço privilegiado no Brasil da Primeira República, era corrente afirmar que o país não constituía uma nação. Era, no máximo, uma reunião de províncias pouco integradas que haviam sido transformadas em estados e agrupadas pela constituição republicana de 1891. Essa constatação se tornou cada vez mais comum com as diversas expedições científicas feitas com o objetivo de “desbravar” o interior. Como exemplos podemos citar: as viagens científicas realizadas pelo Instituto Oswaldo Cruz, como a de Belisário Penna e de Arthur Bernardes (1912), e, até mesmo, a Comissão Rondon, expedição da qual Roquette-Pinto participou também no ano de 1912.

A partir da viagem ao interior, Belisário Penna e Arthur

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Bernardes afirmam em seu relatório de viagem que perceberam o abandono, o tradicionalismo e a ausência de qualquer sentimento de identidade nacional nesses sertanejos. “Raro o indivíduo que sabe o que é o Brasil. Piauí é uma terra, Ceará outra terra. Pernambuco outra [...] A única bandeira que conhecem é a do divino” (PENNA; NEIVA apud HOCHMAN; LIMA, 1996:30). Esses homens do interior se vêem abandonados e sem assistência alguma, não têm: escolas, estradas, polícia, cuidados médicos ou higiênicos. Esses homens do sertão, sertanejos, só têm contato com o Estado no momento da cobrança de impostos, nesses aspectos coercitivos.

Uma das principais tendências desse período é aquela com a qual Roquette-Pinto comunga: compreende a doença como problema crucial para a construção da nacionalidade. Esse movimento agrega importantes setores da elite intelectual, que depois formarão a Liga Pró- Saneamento (1918), e assinala a necessidade de integrar o homem do interior ao país. A visão desses intelectuais sobre o sertão não é idealizada como a dos nacionalistas românticos e ufanistas. O sertanejo era, ao mesmo tempo, forte e rude. Era rude por sua carência de civilização. Ainda de acordo com esses autores, a ruptura com essa visão do campo enquanto um local idílico e exuberante ocorre com a obra Os Sertões de Euclides da Cunha (1902), que foi uma das referências basilares para o pensamento de Roquette-Pinto. Dessa maneira, embora Roquette considerasse Os Sertões como o grande livro do Brasil, considerava equivocada a condenação da miscigenação feita por Euclides. Roquette-Pinto se posicionava contra a ideia central dessa grande obra, de que as “raças fracas” seriam fatalmente esmagadas pelas “raças fortes”. A grande ilusão de Euclides foi considerar inferior gente que era só atrasada e ignorante.

A relação ambígua de Roquette-Pinto com a obra de Euclides sintetiza bem sua visão acerca da questão racial do Brasil, o problema estava no atraso em que viviam as populações sertanejas e não na inferioridade intrínseca ao caráter racial. É fundamental reiterar que a tendência que elege a saúde e o saneamento como principais problemas do Brasil não é hegemônica. Ela convive com

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outras interpretações, inclusive, aquelas que ainda defendiam a tese do branqueamento ainda eram presentes e ganhavam terreno entre intelectuais da época (STEPAN, 2005).

Propostas e açãoComo afirmamos anteriormente, Roquette-Pinto acreditava

que o problema do atraso brasileiro não estava na questão racial em si, o problema não era a deficiência ou falta de capacidade intrínseca aos mestiços brasileiros. A inferioridade não estava na raça, mas na falta de uma proposta de integração desses homens ao Brasil. Eles sequer sabiam o que era o Brasil ou reconheciam os símbolos do país, viviam na miséria e, segundo o diagnóstico da época, à mercê das doenças. O grande símbolo desse movimento é o personagem “Jeca Tatu” de Monteiro Lobato. A história desse personagem representa de maneira exemplar a influência do movimento sanitarista no meio intelectual da época. Inicialmente, “Jeca Tatu era pobre, ignorante, sujo e mestiço (STEPAN, 2005, p. 167)”. Mas, por volta de 1918, ano da fundação da Liga Pró-Saneamento, Monteiro Lobato muda sua opinião sobre “Jeca Tatu”. Ele não é preguiçoso e indolente por pertencer a “um tipo degenerado” ou a “uma raça degenerada”. O problema de seu personagem, que representava o homem do sertão brasileiro, era a falta de alimentação; as doenças, especialmente a ancilostomose; e a falta de saneamento (STEPAN, 2005). O Jeca Tatu, que representa o sertanejo, não é inerentemente inferior ou ruim, mas está improdutivo e indolente devido às condições em que vive. E, desta maneira a responsabilidade por esse comportamento dos “Jecas” do Brasil é da República Oligárquica, que não soube integrar esses homens ao país.

A crença de que o atraso brasileiro não era fruto de uma inferioridade racial intrínseca norteia toda sua obra, tanto em seus primeiros anos de carreira, marcados por sua produção antropológica, quanto em sua maturidade, mais caracteristicamente marcada por sua atuação enquanto divulgador da ciência. È com o intuito de educar essas populações alijadas da civilização e, por isso,

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vista por um grupo como inferiores, que Roquette-Pinto toma uma série de medidas e empreende várias ações de divulgação científica e educação. È possível destacar sua atuação no sentido de oportunizar o acesso ao Museu Nacional para as escolas, especialmente as escolas públicas. E, para isso, buscou adaptar o Museu para receber esse público específico, buscando transformá-lo em um museu pedagógico e educativo.

Inserido nesse propósito de divulgação da ciência, durante sua atuação como diretor do museu, é de suma relevância destacar a criação da Revista Nacional de Educação em 1932. Sobre a revista, Regina Horta Duarte escreve o artigo: Em todos os lares, o conforto moral da ciência e da arte: a Revista Nacional de Educação e a divulgação científica no Brasil (1932-34). Neste texto a autora coloca que a Revista foi publicada de 1932 a 1934 pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro, ela veiculava conteúdos de arte, ciência e história para um público mais amplo. Em todos os números havia a seguinte epígrafe de Roquette-Pinto: “em todos os lares do Brasil, o conforto moral da ciência e das artes.” Ainda sobre a forma da revista, é válido destacar que sua capa era bastante simples, mas o interior da revista tinha muitas imagens.

Moreira; Massarani e Aranha destacam em seu artigo, Roquette-Pinto e a divulgação científica, que Roquette-Pinto foi o criador e principal motor da primeira rádio brasileira, Rádio Sociedade do Brasil, fundada em 20 de Abril de 1923 nos salões da Academia Brasileira de Ciências. Segundo os estatutos da rádio, ela foi fundada com fins exclusivamente científicos, técnicos, artísticos e de educação popular. O Rádio era compreendido como a escola dos analfabetos, daqueles que não tiveram acesso à escola.

O debate da questão racial, fio condutor do pensamento de Roquette-Pinto, também se fez presente na revista e na rádio: a solução para os problemas nacionais não é transformar os mestiços em brancos, mas educar a todos. Como destaca Duarte (2004), a publicação da Revista Nacional de Educação é a coroação de um sonho de mais de vinte anos do antropólogo. É perceptível,

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portanto, a influência significativa de sua teoria antropológica na ação. A proposta de divulgação científica encampada pela revista, pelo rádio e sua atuação no Museu Nacional não se descolam de sua bagagem teórica, é uma tentativa de por em prática seu pensamento teórico. Como se a ciência estivesse cumprindo sua missão social a partir desses aparatos de divulgação, crença amplamente divulgada naquele período.

ConclusãoDe acordo com a concepção de Anderson sobre nação, como

uma comunidade imaginada na qual um grupo de indivíduos se sente ligado entre si por um mesmo vínculo. Consideramos que Roquette-Pinto e seus pares não viam o Brasil como uma nação formada, mas como uma nação em construção. O Brasil precisava ser construído e, por isso, Roquette-Pinto defendia tão arduamente suas visões, propostas e ações sobre o Brasil. Além do mais, Roquette-Pinto foi notável por refutar as visões que negavam a possibilidade de o Brasil formar uma nação dada à sua configuração racial peculiar e mestiça. Ele acreditava na viabilidade de formação de uma nação brasileira a partir da integração dos elementos excluídos da nação por meio da educação e de uma reforma dos costumes a partir da ciência e dos princípios da higiene.

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Os portuários nas páginas do jornal Folha Capixaba (1954 – 1961)

Penha Karoline Pulcherio de Araújo1

IntroduçãoEsta pesquisa, como parte do Programa Institucional de

Iniciação Científica, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES), nasceu após conversa com meu professor e orientador, André Ricardo Valle Vasco Pereira, que me acolheu em seu grupo de pesquisa “Formação da Classe Trabalhadora Capixaba” (http://lehpi.ufes.br/grupos-de-estudos), que faz parte do Laboratório de Estudos de História Política e das Ideias da Universidade Federal do Espírito Santo (LEHPI/UFES).

Utilizei como fonte primária, o periódico do Espírito Santo Folha Capixaba - digitalizado e disponibilizado para a comunidade, por meio da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, sediada no Rio de Janeiro. Jornal este no qual integrantes do Partido Comunista do Brasil (PCB) tratavam de assuntos essencialmente trabalhistas, teciam discursos contra o imperialismo norte-americano e traziam um apanhado global das realizações dos partidos comunistas nacional e internacionais, especialmente os da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Desta forma, com fito de fazer um levantamento e análise de como a categoria dos portuários mobilizou-se, entre os anos de 1954 a 1961, em termos de lutas por melhoria nas condições de trabalho, de representação política, visibilidade em geral, esta pesquisa nasceu. O marco temporal se deveu ao fato de que o arquivo do jornal cobre apenas este período, apesar dele ter sido publicado desde 1945, na base média de uma edição por semana.

Na década de 1950, o país estava em plena transição de um modelo agrário-exportador-coronelista e, sob a égide de um Estado interventor, para o Capitalismo, o que se deu mediante

1 Graduanda em História pela Universidade Federal do Espírito Santo.

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um processo de modernização conservadora (MOORE JR., 1975). No caso específico do Espírito Santo, destaco o trabalho de André Pereira (2011). Dado este contexto, me interessei em observar como a categoria – sobretudo focando subtemas como Greve, Sindicato, Condições de trabalho e Eleições – se mobilizou, se “adaptou”, frente a essas transformações.

Cerca de uma década antes do recorte temporal feito, nos anos de 1940, agora tratando da conjuntura local, o Espírito Santo passava por profundas transformações em sua economia que, por consequência, reverberavam no quadro social. “Era o momento da transição entre o modelo agrário-exportador para o modelo industrial-exportador.” (MACHADO, 2014, p. 6).

A industrialização fora fortemente marcada pela chegada ao Espírito Santo da Companhia Vale do Rio Doce, mineradora estatal, criada em 1942, pelo então presidente Getúlio Vargas, em plena ditadura do Estado Novo. Este acontecimento se enquadra no que é chamado de “2ª Revolução Industrial”:

A 1ª Revolução Industrial implicou em urbanização e aumento relativo dos níveis educacionais dos trabalhadores, já a 2ª gerou urbanização caótica com os reflexos conhecidos em termos de favelização, de caos do sistema de transportes, de ineficiência no fornecimento de serviços públicos básicos (educação, saúde, segurança) para a população em geral. Com o modelo industrial-exportador, a modernização assim produzida gerou uma urbanização caótica, de falência de serviços públicos e de escalada frenética da violência (PEREIRA, 2011, p. 204).

No caso do Espírito Santo, não houve uma preocupação por parte do poder público em preparar o estado, sua região metropolitana, para a instalação de empresas de grande porte, visto que foram se expandindo, ampliando suas atividades em detrimento de uma preocupação com relação às consequências que estas traziam para a sociedade e população pobre em geral.

O presente trabalho abrange marítimos e portuários em geral, abraçando, além das categorias já conhecidas, cuja divisão já estava estabelecida nos anos 1950 em arrumadores, estivadores e conferentes, também a dos doqueiros e catraieiros. Busca-se

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abranger todos esses agentes que, desde o início da colonização, atuaram (e atuam) ativamente no quadro econômico do estado do Espírito Santo. A princípio realizada por índios, posteriormente por escravos, depois por libertos e, nos anos de 1950 e 1960, por trabalhadores de baixa instrução, inclusive analfabetos, o sistema portuário do Espírito Santo, até as primeiras décadas deste século, caracterizava-se por um conjunto disperso de trapiches sob o controle dos capitalistas do setor – os proprietários das agências de consignação e das casas exportadoras (ANDRÉ, 1998). Com o passar das décadas, os trapiches evoluíram para a formação de complexos, públicos e privados, que foram situando e integrando o Espírito Santo dentro do contexto econômico nacional e estrangeiro.

No período considerado:O Estado intervém de forma direta e indireta nas relações de mercado para criar as condições essenciais ao “desenvolvimento e modernização” da economia. Sob esta configuração, Getúlio Vargas implementou uma série de mecanismos protecionistas visando obter o consenso junto à classe trabalhadora que reivindicava melhores condições de vida e de trabalho. (ANDRÉ, 1998, p. 58).

Talvez por esse motivo, seja comum encontrar nas páginas do jornal referências a reuniões onde se homenageava e se reverenciava a figura de Getúlio Vargas entre os marítimos. O próprio periódico raramente tece ataques ao presidente. Isto se deve também ao fato do PCB se aproximar de Vargas numa tentativa de fortalecer sua oposição contra o maior partido de direita à época, a UDN.

Com o esforço para a industrialização, a tradicional sociedade capixaba iniciou um processo de urbanização e começou a desenvolver núcleos operários mais expressivos, formado principalmente por trabalhadores ferroviários e metalúrgicos, além dos tradicionais portuários (MACHADO, 2014).

Constituídos e considerados enquanto “classe trabalhadora”, este é um conceito que precisa ser demarcado. E é aí que entram as contribuições dos teóricos Edward Palmer Thompson e Adam Przeworski. Thompson, em sua obra A formação da classe operária inglesa, defende que a classe operária “faz-se”; ela própria se engendra,

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se retroalimenta. Este conceito, assistimos, é perfeitamente factível vislumbrar no tocante à organização dos trabalhadores portuários no Espírito Santo, ainda que, para se entender determinado contexto, outros estados e a mobilização dos trabalhadores destes, também seja exposta. Ele afirma que a classe é uma espécie oriunda da observação, vivência, experiências dos homens ao longo do tempo, identificando similaridades entre si.

Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. Não vejo a classe como uma estrutura, nem mesmo como uma categoria, mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas. Ademais, a noção de classe traz consigo a noção de relação histórica. Como qualquer outra relação, é algo fluido que escapa à análise ao tentarmos imobilizá-la num dado momento e dissecar sua estrutura. (THOMPSON, 1987, p. 9).

Por experiência, Thompson alega no prefácio da mesma obra, que os trabalhadores relacionando-se uns com os outros, assimilam a diferenciação entre sua posição de explorados e a dos exploradores detentores da força de trabalho. Nestes termos, da parte dos trabalhadores, há uma troca de experiências cuja gênese parte deste contraste. Esta experiência termina por criar uma expressão que ele define como “consciência de classe”:

A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe. Podemos ver uma lógica nas reações de grupos profissionais semelhantes que vivem experiências parecidas, mas não podemos predicar nenhuma lei. A consciência de classe surge da mesma forma em tempos e lugares diferentes, mas nunca exatamente da mesma forma. (THOMPSON, 1987, p. 10).

Sendo assim, uma classe não pode existir descolada da experiência de situações determinadas, nas quais a luta de classes é prioritária no processo de formação de uma determinada classe. Junto a isso, o processo histórico é imprescindível para o entendimento da formação da classe trabalhadora.

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Já o cientista político polonês Adam Przeworski, em seu capítulo “A organização do proletariado em classe: o processo de formação de classes”, presente no livro Capitalismo e Social-democracia, depreende que as condições socioeconômicas, político ideológicas, são quem estruturam a organização, a formação da classe.

Ele rejeita a visão que considera o processo de formação da classe como uma transição necessária e mecânica da “classe-em-si” para a “classe-para-si”, no qual as relações econômicas são classificadas como objetivas e todas as outras como pertencentes à esfera das ações subjetivas. Przeworski aponta o que, a seu ver, são questões na formulação da “classe em si” definida ao nível de “base”, simultaneamente objetiva e econômica, e “classe para si” como o grupo na acepção sociológica do termo, a classe caracterizada pela organização e pela consciência de solidariedade. Dadas essas categorias, o problema teórico e prático passa a ser formulado em termos da transformação das relações de classe “objetivas”, econômicas, em “subjetivas”, políticas e ideológicas. Para o autor, esse tipo de formulação gera duas respostas: determinismo e voluntarismo. Na primeira, as relações objetivas necessariamente se transformam em relações subjetivas, ou seja, as posições nas relações de produção tornam-se “refletidas” nos interesses e ações políticas expressos. Na resposta voluntarista, as condições objetivas não conduzem espontaneamente “por si mesmas” à organização política das classes, que se formam politicamente como resultado de uma intervenção organizada de um agente externo, nesse caso, o partido (comunista). (MACHADO, 2014, p. 9).

O papel do PCB, então, foi o de atuar neste plano, de comando, de direção. Sendo uma entidade perseguida pelas autoridades, seu jornal servia como porta-voz do projeto que elaborou e de diálogo com a classe trabalhadora. Para estudar a relação entre ele e o grupo social em questão, como anteriormente mencionado, quatro pontos foram destacados: as greves, os sindicatos, as eleições, e as condições de trabalho dos trabalhadores marítimos.

O Folha Capixaba, ainda que não carregasse nas tintas em se dizer ou de fato ser um jornal comunista, contava com porta-vozes do partido e espelhava suas diretrizes. Em uma edição do jornal de 1958, o administrador do Porto de Vitória, Ataulfo Virgílio Lobo, procurou o Secretário de Viação e Obras Públicas, manifestando que

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assumiria o cargo mediante o cumprimento de algumas garantias, já que vinha para o meio de um povo em que todos eram comunistas, demonstrando a relevância do espaço obtido pelo partido neste campo de atuação. O partido, aliás, naquele momento, com início nos anos de 1940 trazia o seguinte panorama, tendo como pano de fundo a greve da Companhia Vale do Rio Doce:

Em 1948 (ocasião em que acontece uma greve na Companhia Vale do Rio Doce), passava por um processo de radicalização e de forte oposição ao governo Dutra. Principalmente após a cassação do registro do partido no dia 7 de maio de 1947 e do mandato dos parlamentares comunistas, efetivado em janeiro de 1948 (MACHADO, 2014, p. 7).

Uma vez traçados os conceitos de classe, o papel do Partido Comunista no seio das entidades de classe, e dos próprios trabalhadores, além do contexto político-econômico que atravessava o Brasil e o Espírito Santo, destaco a presença, na capital Vitória, entre os anos de 1957 e 1958, durante o mandato do prefeito Mario Gurgel, que atuou também posteriormente como deputado estadual, tendo presidido a Assembleia Legislativa, o cenário é exposto nas palavras de Lucian Cardoso:

Mostra-se um esforço inicial de promover políticas socioeconomicamente trabalhistas. Essa ação mais programática perderia lugar para um governo redirecionado a máquina administrativa, diante as dificuldades financeiras concomitantes a falta de apoio dos setores mais favorecidos economicamente, devido à forte oposição alimentada pelo jornal A Gazeta, o qual tecia críticas de perfil notadamente conservador a administração de Gurgel (CARDOSO, 2013, p. 88-89).

Esta observação foi feita devido ao fato de que Mario Gurgel foi uma liderança frequentemente citada no periódico e de expressiva presença e participação nos eventos dos sindicatos e associações dos trabalhadores portuários. Seus discursos costumavam serem integralmente transcritos no jornal. Isto é de grande importância para a pesquisa, na medida em que Gurgel foi, como demonstra Lucian Cardoso, uma das principais vozes da linha reformista no trabalhismo capixaba. O PTB, no estado, conforme demonstra Marta Zorzal e Silva (1995), foi um partido dominado por chefes de perfil

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coronelista. Isto deixava pouco espaço para Gurgel. O espaço dado a ele na publicação do PCB demonstra certa capacidade de diálogo com o trabalhismo reformista, o que contrasta com a descoberta de outro membro do grupo de estudos, Celio Gusmão, que também realizou sua pesquisa de Iniciação Científica no mesmo momento que esta. Ao abordar o processo de estatização da Estrada de Ferro Leopoldina, ele percebeu o conflito de projetos entre trabalhistas e comunistas, ao abordar jornais do Rio de Janeiro. Já no caso da categoria dos portuários e marítimos, esta proximidade foi maior, o que pode ter a ver com o isolamento que Gurgel viveu no PTB, demonstrado por Lucian Cardoso, e as limitações do “populismo” apontadas por Marta Zorzal no Espírito Santo.

A fim de trazer os resultados do trabalho de levantamento, entro, no item Resultados e Discussões adiante, nos temas objetivados. Importante narrar que, ainda que obediente à linearidade, tais questões não serão apresentadas em tópicos.

Análise das fontesFoi feita ma análise pormenorizada de discurso sobre todo o

conteúdo concernente aos portuários que possam constar no período supracitado, e também sobre artigos e livros que têm ajudado a traçar um panorama abrangente sobre o período e a categoria estudada. Trabalho, sobretudo, com os conceitos de formação de classe de Edward Palmer Thompson, que defende ser a classe trabalhadora “feita por si mesma”, criada historicamente, mais especificamente um “fenômeno histórico”, desprezando o conceito de “consciência de classe”, e de Adam Przeworski que defende a Teoria da Escolha Racional, segundo o qual os trabalhadores, coletivamente, fazem um balanço da relação custo x benefício na luta por seus interesses. Esta pesquisa segue uma linha que já vem sendo desenvolvida pelo grupo de estudos sobre a formação da classe trabalhadora, que faz parte do Laboratório de Estudos de História Política e das Ideias - LEHPI/UFES, que se dedicou, anteriormente, ao caso da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), com vários capítulos publicados em livro

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coletivo (GIL; JESUS; PEREIRA, 2014). Trata-se de estudar a forma pela qual o projeto do PCB foi organizado e buscou obter apoio junto aos portuários capixabas. Para tanto, o jornal Folha Capixaba se mostra uma fonte fundamental.

No mês de junho de 1954, no estado do Rio de Janeiro, milhares de operários navais, exigiram a demissão do Almirante Lemos Barros, e de seu sobrinho, Conto Lemos. Fora decretada também uma greve de advertência contra as perseguições sofridas pelos operários (muito provavelmente em relação às ações de ambos), e a anulação de suspensões. A greve seria capaz de mobilizar aproximadamente 18 mil marítimos. As reivindicações também se ergueram com vistas a impedir a venda de empresas marítimas brasileiras ao capital estrangeiro, sendo citados com regularidade os trustes norte-americanos, o que revela o discurso do PCB na narrativa.

Em setembro do mesmo ano, os doqueiros capixabas mostraram solidariedade à greve deflagrada por dos operários marítimos paulistas. O fator “unidade”, frequentemente explorado pelas autoridades sindicais, de classe, é notável tanto dentro, como fora do Espírito Santo. As notícias concernentes à classe circulavam entre os estados – e até mesmo entre outros países. A adesão à greve é defendida pela categoria no estado. Segundo Filadelfo Rocha, esta greve seria contra o golpe, pelo aumento de salários e o congelamento dos preços. A “luta contra os trustes americanos” também é uma constante no discurso dos marítimos. Em 4 de junho de 1955, uma reportagem discorre sobre assembleia no Sindicato dos estivadores de Vitória em defesa da Marinha Mercante Nacional contra os trustes americanos, contando com grande assistência e com a presença do vereador Agenor Amaro dos Santos. Os doqueiros, em várias ocasiões, relatam suas duras condições de vida. Morando em barracos, em encostas de morros, mangues, com numerosas famílias, passando necessidades básicas, inclusive fome. A escassez de trabalho também é denunciada, cuja causa, apontam os marítimos em geral, se deve ao fato do Brasil não

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traficar com os países do bloco soviético. Trabalhadores do Rio de Janeiro, no mês seguinte, também se solidarizam com a greve dos marítimos do Rio Grande do Sul, informando que, se eles fossem à greve, nenhum navio singraria a Lagoa de Patos. É importante notar que a referência aos trustes e a defesa do comércio com os países socialistas é apresentada na fonte como fala dos trabalhadores, mas reflete, de fato, o projeto do PCB para a categoria. Ou seja, se alguém de fato usou estas terminologias, tratou-se de militante comunista.

No plano internacional, foi enaltecido o feito dos doqueiros ingleses que, após 26 dias de greve, conseguiram encerrá-la vitoriosamente. Os ingleses lutavam em favor da suspensão da proibição das horas suplementares de trabalho. Em consequência da greve, ficaram retidos 340 navios no porto.

Em Recife, Pernambuco, em janeiro de 1955, os estivadores realizaram uma greve por conta de um grave acidente – depreende-se neste caso, as condições de trabalho que os trabalhadores muitas vezes enfrentavam – que vitimou 24 estivadores que descarregavam tambores de éter do navio “Naven Munice”. O governo foi responsabilizado por permitir o desembarque de material inflamável em local inapropriado. Esta denúncia partiu do deputado Paulo Cavalcanti, filiado ao PSD – ainda que esse tenha feito história no PCB, partido proibido à época, na Assembleia Legislativa. Ao mesmo tempo, Cavalcanti apresentara um Projeto de Lei com vistas a fornecer auxílio às famílias dos trabalhadores.

O governo, seja na esfera federal ou estadual, era constantemente acusado de negligência e protecionismo com relação a empresas estrangeiras que “investiam” contra os interesses nacionais, patrióticos, e tudo faziam a fim de liquidar empresas estatais do seguimento. Nesse sentido, havia advertências para que os portuários não cedessem à acordos de caráter local, pois isto em muito enfraqueceria o fator unidade dos trabalhadores e entidades. As greves, paralisações concernentes ao poderio das empresas estrangeiras, aconteciam em diferentes pontos do País. Havia de fato um esforço para a coesão nacional e o PCB defendia esta perspectiva,

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de maneira coerente com o esforço para articular lutas locais com formas cada vez mais amplas de ações políticas.

Ainda no ano de 1955, os doqueiros santistas entraram em greve por aumento salarial. Esta é uma das reivindicações mais visíveis no periódico. Os doqueiros rechaçaram a proposta de 25%, mantendo-se firmes nos 30% ambicionados. A interferência do governo federal era sentida, e foi duramente criticada pela classe, quando este destitui a diretoria do Sindicato dos Doqueiros de Santos. Nesse caso, porém, dias depois (a greve foi deflagrada no dia 6 de julho), no dia 9, a categoria aceitou o aumento de 25%, temporariamente, afirmando continuarem a pleitear os 5% restantes, mais o abono de Natal, somado à restituição da diretoria da entidade representativa, o que conseguiram ainda no dia 9. Além disso, uma greve referente a aumento salarial também ocorreu no Rio de Janeiro, em 1956. Nela, os marítimos de empresas particulares conquistaram o aumento pleiteado após 3 dias de paralisação. Estes informes e acompanhamentos ajudam a construir a imagem de uma categoria nacional, a se articular, mais uma vez de acordo com o projeto do partido para a categoria.

Em Vitória, no ano de 1959, os portuários ameaçam entrar em greve por conta de medidas imputadas ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) – que se encontrava no governo por meio do vice-presidente João Goulart. As acusações remetiam à possibilidade do partido nomear para o Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Marítimos (IAPM), Antônio Alves Duarte, retirando Pedro Lima do Rosário, do Partido Socialista Brasileiro (PSB).

Ainda em 1959, no dia 25 de dezembro, entraram em greve, em todo o País, os oficiais de Náutica da Marinha Mercante, mais os ferroviários da Leopoldina, ferrovia que abrangiam os estados do Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Distrito Federal. A greve fora aprovada depois dos náuticos não obterem sucesso nas suas reivindicações junto à Comissão da Marinha Mercante, que abarcava o aumento salarial, o reajustamento de cargos e funções, melhorias de pensões em casos de aposentadoria etc.

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Perpassando por outra categoria, temos os catraieiros, responsáveis pelas catraias, pequenas embarcações que faziam o transporte, no estado, de passageiros entre o porto de Paul, na cidade de Vila Velha, e a cidade de Vitória e que neste recorte temporal possuía grande demanda – chegando a conduzir milhares de passageiros por dia – também recorreram à greve a fim de se protegerem de medidas tomadas pela Capitania dos Portos. No ano de 1958, foi estipulada uma diminuição no limite de passageiros a serem transportados por viagem, ao passo que as lanchas, pertencentes a empresa americana “Central Brasileira”, proprietária do serviço de lanchas na baía de Vitória e que eram descritas pelos catraieiros como estando sucateadas, sem manutenção e trafegando sem qualquer imposição de limite de passageiros. Os catraieiros entraram em greve por duas horas e montaram uma comissão com fito de exigir a revogação da decisão diretamente na Capitania dos Portos. Antes estipulada a diminuição de 4 passageiros por embarcação/viagem, os catraieiros conseguiram fazer com que esta caísse para 2 passageiros.

Em 26 de setembro de 1960, os portuários de Vitória cogitaram ir à greve caso suas demandas não fossem atendidas. Dessa vez, exigências mais abrangentes: Enquadramento salarial, licença-prêmio, abono familiar e, principalmente, abono salarial. Para isto, nomearam uma Comissão composta pelo Delegado do Trabalho – quase certamente o Delegado do Trabalho Marítimo, dois representantes do Conselho Sindical – que era a entidade que congregava dos trabalhadores urbanos do Espírito Santo, e toda a diretoria da entidade a fim de, em contato direto e frequente com os representantes do Porto de Vitória, viabilizem suas reivindicações.

A greve tinha dia e horário para começar: 0 hora do dia 28, mas foi adiada em virtude de uma proposta apresentada por Carlos Lindemberg Filho, representante do Governo do Estado. A greve já havia sido aprovada pelos doqueiros e estivadores em seus respectivos sindicatos, entretanto, em reunião na noite do dia 27, foi considerada a proposta governista de nomear uma Comissão composta por dois

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representantes da Associação dos Portuários, dois representantes da Administração do Porto de Vitória, um do Governo do Estado, e, por fim, um do Conselho Sindical, a fim de estudarem, em um prazo de 15 dias, a proposta de enquadramento. No mês seguinte, houve vitória parcial dos portuários capixabas: eles conseguiram o pagamento de adicional de periculosidade e de insalubridade, o enquadramento funcional, o pagamento de 100% nas horas extras de trabalho quando feita para terceiros, e que qualquer quantidade de horas feita fora do horário normal, mesmo que fosse inferior a 6h, correspondesse a uma jornada integral. Todo este episódio é de grande relevância na trajetória da categoria e no sucesso da ação do PCB como liderança da formação de classe. O Conselho Sindical foi uma organização que buscou a unificação dos trabalhadores no estado e na qual houve a participação de comunistas e outros setores. A aprovação desta forma ampliada de luta na cobertura do jornal reforça o tipo de direcionamento sugerido para a formação de classe.

Ainda no ano de 1960, na edição que vai do dia 21 a 27 de outubro, o jornal trata de uma paralisação nacional, de 24h, que mobilizara cerca de 150 mil estivadores, e que terminara vitoriosa com o aumento de 35% sobre taxas e salários; o estabelecimento de uma taxa de 5% sobre cargas e descargas destinadas ao Sindicato dos Estivadores, que constituiriam o fundo de férias para concessão do repouso anual remunerado de seus associados, E a extensão da portaria 207.357/56 do Ministério do Trabalho a todos os portos nacionais. Esta portaria estabelecia que somente os trabalhadores matriculados na Capitania dos Portos, até 28 de fevereiro de 1940, pudessem exercer a estiva livre (que era a estiva realizada pela própria tripulação das embarcações), e a publicação, em 15 dias, no Diário Oficial, determinando o retorno das Caixas de Acidentes do Porto de Santos e da Guanabara aos Sindicatos dos Estivadores das respectivas cidades. A categoria manteve a promessa de greve, enquanto o enquadramento de classe não fosse publicado no Diário Oficial até a zero hora do dia 26 de outubro. A paralisação, por fim foi sustada em razão da publicação no Diário Oficial.

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Sobre as condições de trabalho dos portuários, na fonte primária não é destacada grande discussão a respeito. Há uma denúncia feita ao jornal no ano de 1954, pelos operários do Cais do Porto, contra as seções de carpintaria e serraria. Havia uma recomendação para que os funcionários chegassem com 10 minutos de antecedência – sendo o horário de entrada às 7h. Os 10 minutos deveriam ser rigorosamente observados. Caso contrário, os funcionários perderiam o dia, sendo impedidos de exercerem suas funções.

Havia duras críticas a respeito do tratamento dispensado aos trabalhadores do Porto que, independente de possuírem especialização profissional, recebiam salários ínfimos. Salários estes que, não raramente, sofriam atrasos, como no caso em que tiveram que esperar, por razão do falecimento do Secretário da Fazenda, a nomeação do próximo a ocupar o cargo. Nesse caso, os funcionários também pediram que o jornal publicasse o fato de que alguns “protegidos” da administração do porto continuassem trabalhando, fazendo horas extras normalmente. As horas extras - fica entendido - não eram permitidas a todos os trabalhadores.

Os marítimos, com os recorrentes atrasos de pagamento, que chegavam há dois meses, queixavam-se indelevelmente de “passarem fome”, e “não ter como pagar passagem para chegarem ao trabalho”, tendo de ir trabalhar a pé.

No caso dos doqueiros, muitos destes conciliavam seus trabalhos nas docas com as atividades de pesca. A capitania dos Portos quis pôr fim a prática: As docas, ou a pescaria, a pescaria ou as docas. Houve grande descontentamento por parte dos doqueiros, visto que a pesca seria uma espécie de “auxílio financeiro” para que não faltasse comida em suas casas. Os baixos salários e a carestia de vida à época são uma constante praticamente em todas as reportagens.

Em 1956 houve um episódio de “demissão incentivada”. Trabalhadores estavam com salários atrasados, sem previsão de pagamento, mas ao passo que pediam demissão, em 20 dias eram

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indenizados. Em julho de 1956, houve uma demissão em massa. Aproximadamente 300 operários foram demitidos e “devidamente indenizados”. O porto alegava se tratar de consequências da situação econômica que o País atravessava.

O desrespeito às leis trabalhistas eram, na perspectiva dos portuários, uma constante. Os vigias do Porto, 20 no total, com direito a folgas remuneradas, trabalhavam aos feriados e não recebiam extraordinário. Também não tinham horário definido para almoço ou janta.

A ausência de trabalho, que por muitas vezes era justificada pelo fato do Brasil não negociar, comercializar com os países do eixo soviético, “por influência do Departamento de Estado Americano”, comprometia as condições de vida, trabalho dos portuários. Em abril de 1957, foi narrado que, durante o mês de março, o Porto ficara semanas sem receber navio, tendo os trabalhadores tido serviço no máximo 7 dias em todo o mês. Como consequência, “as cozinhas dos operários” chegaram a ficar sem a “farinha e manjuba (peixe)”, alimentos básicos para estes trabalhadores.

Os catraieiros, em especial, eram os grandes críticos e acusadores de “esquemas” da Capitania dos Portos que visavam proteger a Central Brasileira, truste norte-americano responsável por operar o serviço de lanchas de passageiros na Baía de Vitória. Em notícia do dia 25/5/1957, foi relatado que a Capitania cedera a possibilidade de aumento das passagens à empresa americana, ao passo que negara o aumento às catraias. Outra medida protecionista seria o impedimento que pesavam sobre os catraieiros de não instalarem motores de popa em suas embarcações – aos que poderiam fazê-lo tendo condições financeiras. Tal proibição, afirma o periódico, estaria acordada no contrato entre a Central e o Estado. O jornal afirma que: “Foi aí que o povo, reconhecendo a dificuldade dos catraieiros, por livre e espontânea vontade, passaram a pagar, no lugar de 0,50 centavos, 1,00.” Houve resistência por parte da Capitania, mas o aumento seguiu em vigor. Os trabalhadores da Central Brasileira também se manifestaram, ao frisar que, apesar de

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todo o lucro obtido pela companhia, estes não recebem mais que um salário mínimo. A diferença residia no fato de, por serem marítimos, fazerem jus a direitos como salário-família, abonos pagos pelo governo federal etc.

Mais tarde, foi sugerido pelas autoridades que os catraieiros subissem a passagem para Cr$ 2,00, o que foi rechaçado. Enxergou-se aí uma tentativa de fazer migrar os passageiros para as lanchas, que estavam com menor valor de passagem. Em 1959, os catraieiros buscaram legalizar este valor, lutando pelo aumento da passagem junto à Comissão de Marinha Mercante. A precariedade do Cais dos botes em Vitória, necessitando de urgentes reparos, também foi salientada. No mesmo ano, os catraieiros denunciaram perseguição da Capitania dos Portos junto à Central Brasileira, dispostos, segundo eles, a “liquidarem a catraia”, meio de transporte utilizado por grande parte da população. Com tal medida, cerca de 150 catraieiros, à época, perderiam seu meio de sustento. Os catraieiros se viam em completa desvantagem com relação às lanchas. Com piores condições de trabalho, sendo autônomos, viviam em condições insalubres, em “habitações miseráveis e anti-higiênicas”, com numerosas famílias, ainda que atendessem uma demanda de passageiros muito superior ao da Central Brasileira. Os catraieiros foram inclinados a conviver com os grandes projetos industriais, promovidos ao longo do tempo pelas empresas interessadas, juntamente ao governo estadual (MORAES, 2015).

No caso das catraias é importante verificar que, até a década de 1960, estas, juntamente com as lanchas da Companhia Central Brasileira de Força Elétrica (CCBFE), eram basicamente o meio de transporte utilizado pela população entre a Capital e região de Paul e arredores, em Vila Velha, para atravessar a baía de Vitória. Sua decadência se deveu à expansão do sistema rodoviário. Os ônibus, juntamente com as pontes erguidas ligando as ilhas, terminam por suplantar sua utilização, até praticamente seu desaparecimento.

Em 7 de setembro de 1957, foi levantada a questão dos trabalhadores do Portos não saberem se estavam enquadrados como

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funcionários do Estado ou como diaristas. Eles não tinham direito à estabilidade. Assim, era reclamada uma definição. Eles reivindicam o atendimento pelo Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Marítimos (IAPM), visto que não tinham acesso a médicos especialistas, restando a esses pagarem por consultas particulares.

As assembleias eram costumeiras e havia eleições regularmente. Não foi detectada uma diferenciação entre as categorias, sendo constatado, no levantamento, que as mesmas eram anuais, normalmente nos próprios armazéns do Porto – ainda existentes -e contavam com a instituição da diretoria dos sindicatos e associações, como a Associação dos Portuários de Vitória, Associação dos Trabalhadores do Cais do Porto, Associação Beneficente dos Catraieiros, o Sindicato dos Doqueiros, o Sindicato dos Estivadores, etc.

O jornal fazia o trabalho de divulgar as chapas, a realização das eleições, sendo utilizado como meio de convocatória, e também divulgava o resultado dos pleitos. Elegiam-se os presidentes e vice-presidentes, o 1º e 2º secretários, o 1º e o 2º tesoureiros, o procurador, o Conselho Fiscal e seus suplentes. O periódico sempre enfatizara e parabenizara a grande participação dos portuários nestes eventos. Mesmo trabalhadores analfabetos “faziam questão” de se candidatarem e votarem nas disputas eleitorais dos sindicatos e associações dos portuários em geral.

No ano de 1954, quando da presença da reportagem de Folha Capixaba na orla marítima em conversa com doqueiros e estivadores, estes também não deixaram de se manifestar a respeito das eleições no País. Na sede do sindicato, defenderam a necessidade da realização de eleições livres como única forma de, elegendo o povo seus próprios representantes, acabar com um governo cercado por “fome e miséria” e com a manutenção dos trustes estrangeiros no poder. É marcante o uso de termos como “imperialismo” nos discursos atribuídos aos trabalhadores. Fazia-se menção corriqueiramente também ao fato dos “Estados Unidos quererem transformar o Brasil em sua colônia e assim escravizar seu povo”.

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Ainda sobre as eleições nacionais, em 1955, Juarez Tavora, candidato à Presidência da República pelo Partido Democrata Cristão (PDC), apoiado pela União Democrática Nacional (UDN), esteve em Vitória durante sua campanha eleitoral. Em visita ao Sindicato dos Doqueiros, foi sabatinado por estes. Os doqueiros levaram ao candidato questões concernentes à classe trabalhadora e aos interesses nacionais – do micro ao macro. As discussões se encerraram quando Juarez Tavora, ao ser questionado sobre a liberdade, autonomia dos sindicatos, garantiu que, caso eleito, não permitiria que o Ministério do Trabalho interviesse no sindicato ou nas eleições sindicais.

Os sindicatos representavam múltiplos papéis dentro das esferas das categorias marítimas. Locais de mediação, assembleias – concernentes a eleições, administração, orçamento, festas, denúncias (contra colegas, em caso de furtos, e contra as próprias diretorias, em caso de corrupção, perseguição e protecionismo a alguns trabalhadores), são de suma importância e presentes no histórico de lutas desses operários nesse momento. Raramente se vê no jornal qualquer notícia envolvendo os operários onde seus respectivos sindicatos não sejam citados – raramente como “algozes” e majoritariamente como local de apoio, luta, reivindicação. A instituição de novas diretorias costumava contar com a presença de políticos locais, como Mario Gurgel, e o vereador Francisco Sales, tendo saudado a nova diretoria do Sindicato dos Estivadores, em 1954.

Os trabalhadores não sindicalizados eram frequentemente estimulados a procurarem o sindicato de sua classe a fim de fazerem jus a todos os benefícios que a lei lhes conferia, como aposentadoria, benefício quando estivessem doentes, auxílio as suas famílias. A adesão era importante para fins de engrossar as fileiras da classe em busca da unidade nos momentos da luta por melhores condições de trabalho, de vida, conquista e consolidação de direitos.

A confiança dos trabalhadores nos sindicatos ultrapassava qualquer outra em qualquer outro ente. Em 1956, mediante descontos

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de até 20% em seus salários, os doqueiros conseguiram levantar verba suficiente para a construção do edifício-sede de seu sindicato. Obra esta enaltecida seja pela rapidez com que se realizara, seja por sua moderna arquitetura. No prédio, os doqueiros esperavam contar com assistência médica, dentária e auxílio financeiro nos momentos de necessidade. Necessidade esta que fomentou a instalação de uma cantina, em acordo com a Comissão de Abastecimento e Preços do Estado do Espírito Santo (COAP), em 1956, para venda de itens de primeira necessidade – víveres alimentícios, no Sindicato dos estivadores e, posteriormente, no Sindicato dos Arrumadores.

Em 1961, 60 representantes dos sindicatos dos estivadores de todo o Brasil, se reuniram do dia 15 a 19 de novembro, na Guanabara. Liderados pela sua Federação Nacional, tinha por objetivo solucionar o problema da extinção da estiva livre, que já havia sido determinada por lei, e da administração das Caixas de Acidentes de Santos e da Guanabara pelos sindicatos dos estivadores dos respectivos portos, e outras reivindicações.

ConclusãoEstudar a formação da classe trabalhadora capixaba, em um

contexto, dentro de uma sociedade historicamente conservadora, não deixa de ser um desafio. A própria pesquisa só foi possível por contar com um periódico que, a duras penas, sobrevivia graças à publicidade – como todos os outros; entretanto, no caso de Folha Capixaba, a presença dos chamados reclames, chega a ocupar praticamente metade das edições. Este periódico consistia em um instrumento da esquerda, essencialmente tratando de assuntos concernentes às reivindicações trabalhistas, atuando como ferramenta de denúncias de abusos, não cumprimento de acordos entre Estado x trabalhador, patrão x trabalhador etc, além de conclamar as classes à união, à “unidade”.

Graças ao que foi preservado deste jornal, conseguimos traçar um panorama de como os trabalhadores portuários se portavam em meio as mais diversas intempéries e conquistas. É possível

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vislumbrar a importância e atuação dos sindicatos, os momentos em que as greves mostravam-se como única saída, as duras condições de trabalho e sobrevivência, e a militância, a mobilização em torno das eleições.

Volto a repetir que o trabalho traz algo de novo e importante no sentido de se configurar como mais uma fonte de estudo aos estudantes, pesquisadores cujo anseio seja estudar o tema, e como o mesmo pode contribuir para conhecermos ainda mais a tão pouco explorada – ou escrita – história de nosso estado.

Por se tratar de uma publicação com mais de 60 anos, somado aos efeitos do tempo, temos também os efeitos da própria tecnologia utilizada que acaba por, ainda que ajudando a preservar, danificar o documento. Isto, tendo também graduação como arquivista, afirmo com propriedade. Desse modo, nem sempre as letras, palavras, ou mesmo páginas estão legíveis, ainda que não se possa negar o quanto isto é rico, importante, expressivo no seio da pesquisa histórica.

A grande dificuldade talvez tenha sido costurar conceitos, fazer um estudo detalhado sobre um recorte temporal relativamente comprido.

Importante salientar que este é apenas o início de um trabalho que culminará com meu trabalho de conclusão de curso de Licenciatura/Bacharelado em História. Há sempre o que estudar, há sempre o que descobrir, há sempre com o que contribuir. E no tocante aos portuários deste estado e seus séculos de história, com tudo o que foi vivido, transformado, modificado em seu trabalho e, consequentemente, na economia do Espírito Santo, definitivamente ainda há muito que ser feito.

Referências ANDRÉ, Marlene M. A organização do trabalho portuário:

o cotidiano de vida e trabalho dos portuários avulsos. Espírito Santo: EDUFES, 1998.

CARDOSO, Lucian R. Entre a raia miúda e o blacktie: a

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administração de Mario Gurgel na Prefeitura de Vitória (1957-1958). 2013. 91 f. Monografia de Final de Curso (Graduação em História) - Departamento de História, Centro de Ciências Humanas e Naturais, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013. Orientador: Prof. Dr. André Ricardo Valle Vasco Pereira.

FOLHA CAPIXABA, jornal. 1954-1961.GIL, Antonio C. A.; Jesus, Graziela M.; Pereira, André R. V.

V. (Orgs.). Estudos de história política e das ideias, v.1. Vitória (ES): LEHPI/UFES, 2014

MACHADO, Vinicius O. O vereador de Prestes: a atuação de Antonio Ribeiro Granja na Câmara de Cariacica – ES (1947-1951). 2014. 86 f. Monografia de Final de Curso (Graduação em História) - Departamento de História, Centro de Ciências Humanas e Naturais, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2014. Orientador: Prof. Dr. André Ricardo Valle Vasco Pereira.

MOORE JR., Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia. Lisboa, Cosmos; Santos: Martins Fontes Ed., 1975.

MORAES, Arthur F. A modernização ingrata. A decadência do grupo de catraieiros de Paul no contexto da Industrialização da Grande Vitória. 51 f. Monografia de Final de Curso (Graduação em História) – Departamento de História, Centro de Ciências Humanas e Naturais, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2015. Orientador: Prof. Dr. André Ricardo Valle Vasco Pereira.

PEREIRA, André R. V. V. Mais do mesmo: o reforço da integração subordinada do Espírito Santo no sistema capitalista internacional. Sinais (UFES), v. 1, p. 203-232, 2011.

PRZEWORSKI, Adam. Capitalismo e Social-democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

SILVA, Marta Z. Espírito Santo: Estado, interesses e poder. Vitória: FCAA/SPDC, 1995.

THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Trad. Denise Bottmann, 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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A afirmação da Ordem Imperial: Sabinos no banco dos réus

Renan Rodrigues de Almeida1

IntroduçãoA presente comunicação, tendo como área de pesquisa a

História do Direito no Brasil Império, empreende investigação acerca do processo judicial de treze oficiais envolvidos na Sabinada, reconhecidos pelas autoridades legais como os principais militares atuantes na rebelião.

O processo, iniciado no Conselho Militar, foi posteriormente submetido à Junta Militar de Justiça da Bahia, cuja sentença fora recorrida ao Supremo Tribunal de Justiça, revista, e encaminhada para o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro. Neste longo percurso, os embates decorrentes suscitarão uma série de questões no que tange tanto ao sistema jurídico do Império quanto à própria natureza da revolta.

Desta forma, a investigação buscou elucidar o panorama geral da revolução dos sabinos, determinar o funcionamento básico dos tribunais responsáveis pelo processo e problematizar a aplicação das leis no caso concreto dos réus. Para tanto, além de apoiar-se em bibliografia especializada no objeto de estudo, sendo o livro “A Sabinada” de Paulo César de Souza a mais recorrida, a pesquisa focou nas fontes em jornais de época, com maior ênfase no “Correio Official” (RJ).

A RebeliãoA Sabinada foi uma dentre várias rebeliões ocorridas durante

o período regencial do Império brasileiro, mais precisamente, o evento ocorreu entre 7 de novembro de 1837 e 16 de março de 1838, tendo como epicentro a cidade de Salvador.

1 Graduando em HIstória pela Universidade Federal do Espírito Santo.

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Em sua obra, Viana Filho2 (apud Souza 2009, p. 17) apresenta a revolta enquanto legado das inquietações reinantes na província desde a Inconfidência dos Alfaiates, ocorrida em 1798. Do ponto de vista ideológico, a Sabinada adotou como arcabouço ideológico os ideais de autonomia da Revolução Francesa, difundidos em sociedades políticas, lojas maçônicas e periódicos.

De fato, mesmo após a Independência, em 1822, a Bahia nunca fora plenamente pacificada, o que sobremaneira reflete as condições de penúria vivenciadas pela população baiana, desde o século anterior, com o enfraquecimento da economia açucareira e o decorrente deslocamento do eixo econômico para o Centro-Sul. Mesmo sua adesão à ordem imperial só foi conquistada após intenso combate entre tropas portuguesas fiéis ao Estado luso e o “Exército Pacificador” de D. Pedro I. Deste momento em diante, a província foi palco de uma série de revoltas, dentre elas, as agressões contra portugueses manifestadas em episódios como os “Mata-marotos”, recorrentes em todo o período regencial; as sublevações militares; a Revolta federalista em 1832; e a Revolta dos Malês em 1835 (LOPES, 2008).

Em meio a este clima de instabilidade sociopolítica e efervescência ideológica, ganhou projeção a voz do médico, professor e publicista Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira, editor do jornal “Novo Diário da Bahia”. Em suas páginas, o proeminente baiano, cujo sobrenome se tornou designativo da revolta, afirmava que

[...] se os homens constituindo-se em sociedades procuram estabelecer entre eles o melhor princípio de política, que os dirija; devem abraçar sem dúvida, aquele, que lhes consente uma esfera mais ampla para o exercício da Liberdade individual. E se esta faculdade moral dos homens para ser menos anômala com o princípio social, deve identificar-se com as Instituições Republicanas, fica evidente, que o gênero humano somente obterá felicidade, com a aceitação do Governo Democrático (SABINO apud SOUZA, 2009, p. 206).

2 VIANNA FILHO, Luiz. A sabinada – a república baiana de 1837. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. Esta obra não se encontra disponível na Biblioteca Central. Apenas na biblioteca do Senado Federal.

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Segundo Souza (2009, p. 31-32), o separatismo do Rio Grande do Sul deu um ânimo a mais às ideias republicanas de Sabino. A fuga de Bento Gonçalves de sua prisão no Forte do Mar, no dia 10 de setembro de 1837, alarmou as autoridades baianas. Para muitos contemporâneos, a façanha foi facilitada pelos irmãos maçons baianos do líder farroupilha. Seu papel efetivo para a organização e desencadeamento da rebelião dos sabinos, é, no entanto, discutível.

Rumores de uma revolução foram amenizados pelo comandante das Armas, Luiz da França e o presidente da província, Francisco de Souza Paraíso. Sua inação custou caro: no dia 6 de novembro, um grupo de oficiais de primeira linha, em ação conjunta com os civis Francisco Sabino, João Carneiro da Silva Rego e Manoel Gomes Pereira, tomou o controle do Forte de São Pedro, quartel do Corpo de Artilharia (SOUZA, 2009).

Na manhã do dia seguinte, os insurgentes marcharam até o centro da cidade, defrontando-se com as forças do governo. No entanto, não demorou muito para que a maior parte da resistência debandasse para o lado dos rebeldes. Assim, no dia 7 de novembro de 1837, em Assembleia na Câmara Municipal, aclamaram uma ata que, dentre outras medidas, desligava oficialmente a Bahia do Império Brasileiro, adotando o modelo de governo republicano (LOPES, 2008).

O clima de euforia e cortejos decorrentes, no entanto, logo dariam lugar à incerteza em relação ao novo regime estabelecido. Douglas Guimarães Leite (2006) aponta que não tardou muito para que a cidade vivenciasse o êxodo da maior parte de sua elite, incluindo o próprio presidente deposto, Souza Paraíso. De modo contraditório, já no dia 11 de novembro, um grupo de signatários da ata da independência submete à Câmara uma representação escrita solicitando a inclusão de uma emenda que declarava o desligamento da antiga província apenas até a maioridade de D. Pedro II. Nas palavras de Souza (2009, p. 42), a medida tornava a Sabinada uma “revolução suicida”.

Lopes (2008) salienta que a resposta legalista não tardou,

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em contraste à apatia dos rebeldes. Numa ação que se assemelhava àquela adotada em 1823, os grandes senhores de terra do Recôncavo, com auxílio da Corte, organizaram verdadeiro exército contra o governo rebelde, promovendo, ainda, o bloqueio marítimo à Salvador, estrangulando-a com violência e fome. A autora explica ainda que, não obstante,

O governo revolucionário tentou administrar a situação, mas chegou ao limite, permitindo a fuga de mulheres, crianças e idosos da cidade sitiada. Outra prova de desespero se encontra no recrutamento de soldados entre escravos e presos condenados (LOPES, 2008, p. 15).

Em apenas quatro meses, extinguia-se a experiência republicana da Bahia, mais precisamente no dia 16 de março de 1838, deixando um saldo de cerca de 1258 mortos e 2989 prisioneiros do lado dos sabinos, e 594 mortos do lado legalista (SOUZA, 2009).

O calvário dos vencidos estava apenas começando.

O contexto do julgamentoA repressão decorrente da vitória legalista pode ser sintetizada

pela Lei de 30 de abril de1838, constante na edição de número 129 do “Diário do Rio de Janeiro” (1838, p. 1):

Thomaz Xavier Garcia d’Almeida, presidente da província da Bahia. Faço saber à todos os seos habitantes, que a assembléia geral legislativa provincial decreton [sic], e eu sanccionei a lei seguinte:Art. 1º Ficão suspensas, por espaço de dois mezes, as garantias dos §§ 6, 7 e 8 do artigo 179 da constituição, para o fim de serem removidos d’esta para qualquer outra província, os indivíduos suspeitos à segurança publica; bem como para que a respectiva autoridade possa, dia, ou noite, entrar na casa, que lhe fôr suspeita, sem lhe obstarem as formalidades das leis, e mesmo prender, sem culpa formada, os comprehendidos na revolução de 7 de novembro de 1837, podendo formar-lhes a culpa, quando possível seja [...].

Suspendia-se, desta forma, alguns dos direitos individuais básicos garantidos pela Constituição de 1824. Nessas condições, iniciava-se o processo dos treze principais líderes militares da Sabinada, dentre tantos outros militares e civis que aguardavam

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julgamento. Souza (2009, p. 118) aponta, no entanto, que muitos destes outros nunca se sentariam na cadeira de um tribunal: haviam sido sumariamente expulsos da província, enviados para lutar com os farroupilhas ou simplesmente apodreceram nos porões de galés.

Os réusConforme já salientado, as fontes falam de 13 militares

considerados os “cabeças” da Revolução, os quais partilharam o mesmo processo. O jornal fluminense “Correio Official” (1840, pp. 49-50), em sua edição de número 13, aponta nomes e as respectivas patentes de 12 destes réus. Infelizmente, não foi possível descobrir a identidade, muito menos a patente do 13º réu. Assim, doravante, o mesmo será referido como “Oficial desconhecido”. São eles:

I) Tenente Coronel Ignacio Joaquim Pitombo, elevado pelos rebeldes ao posto de Coronel, e comandante de um dos pontos por eles fortificados;II) Tenente Coronel Manoel Marques Cardoso, Ajudante General dos rebeldes;III) Major de artilharia Sérgio José Velloso, General em chefe dos rebeldes;IV) Major de artilharia Inocêncio Eustáquio Ferreira de Araujo, General de divisão dos rebeldes;V) Major reformado José Joaquim Leite, Coronel comandante de divisão dos rebeldes;VI) Tenente Manoel José de Azeredo Coutinho, Tenente Coronel comandante da terceira brigada dos rebeldes;VII) Capitão Manoel de S. Boaventura Ferraz, Coronel e diretor do arsenal de guerra dos rebeldes;VIII) Tenente de Caçadores Pedro Barbosa Leal, Major e comandante da polícia dos rebeldes;IX) Tenente Alexandre Ferreira do Carmo Sucupira, Major comandante de um dos batalhões dos rebeldes;X) Alferes João da Paixão, Capitão e comandante de um corpo dos rebeldes;XI) Alferes Ajudante Rodrigo Xavier de Figueiredo Ardignhac, Major e secretário do comando das armas dos rebeldes;XII) Alferes Manoel Florêncio do Nascimento, Tenente e secretário

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da segunda brigada dos rebeldes;XIII) Oficial desconhecido.

As patentes designadas antes dos nomes dos réus são as oficiais, entregues ainda sob o governo “legal”. As patentes posteriores aos nomes referem-se às promoções oferecidas pelo governo republicano àqueles que participaram ativamente na tomada do poder no 7 de novembro, subindo automaticamente duas patentes na nova hierarquia militar (SOUZA, 2009, p. 40).

Dentre os réus, é sabido que Pitombo, Velloso, Araújo, Leite e Sucupira haviam lutado contra o governo imperial nas rebeliões federalistas já mencionadas neste trabalho.3

Do Conselho de Guerra à Junta de Justiça da BahiaO processo dos réus inicia-se em junho de 1838 com a

convocação de um Conselho de Guerra, órgão criado em 1763. Segundo Adriana Barreto Souza e Angela Moreira Domingues da Silva (2016, p. 365-366),

[...] as bases legislativas desses conselhos permaneceram quase inalteradas até a República. Não eram instituições permanentes. Atendiam a demandas específicas de cada Regimento e organizavam-se em torno destes. Cada Conselho de Guerra devia ser integrado por um presidente [...] e cinco oficiais militares, denominados vogais.

As autoras salientam ainda, e este ponto é importante para o caso dos sabinos, que as patentes tanto do presidente quanto dos vogais não poderiam ser inferiores à do réu, respeitando-se o princípio hierárquico militar (SOUZA; SILVA, 2016).

Ora, assumindo que a rebelião representou uma quebra da hierarquia estabelecida, entende-se o peso que este fato teria para a decisão de oficiais de patente superior.

O Conselho foi presidido pelo coronel Antonio Corrêa Seara, veterano da repressão contra a Confederação do Equador (DORIA,

3 Souza Carneiro. A Sabinada, p. 76; Souza, A Sabinada, p. 165; Tavares, A Independência, pp. 46-9; Defesa do acusado sargento mor Inocêncio Eustáquio Ferreira de Araújo, 23. 06.1838, PAEBa, V, pp. 91-8, esp. 92.

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n. 33, 1942) e comandante de uma das brigadas responsáveis por esmagar a Sabinada (CORREIO OFFICIAL, n. 78, 1838). Os réus foram acusados de

[...] desobediencia a todas as autoridades legaes da Provincia, aos seus superiores, sendo esta extensiva até a pessoa de Sua Magestade Imperial, por ocasião da revolta de 6 de novembro… sendo elles dos principaes criminosos por terem servido no partido rebelde, usando das insignias, e concorrendo para [...] extravio, e furto das armas e munições (CORREIO OFFICIAL, n. 103, 1839).

Todos os réus foram condenados à morte.Pitombo, Ferraz, Ardignhac, Leal e Nascimento foram recomendados à Imperial Clemência (CORREIO OFFICIAL, n. 13, 1840).

À posteriori, o processo foi submetido à Junta militar de Justiça da Bahia. A sentença foi modificada para os seguintes termos: manteve-se a pena capital para Velloso, Sucupira, Araujo e Leite. Coutinho, Ferraz e Paixão foram condenados à prisão perpétua, e os demais, a 20 anos de prisão, exceto o Oficial desconhecido, absolvido (SOUZA, 2009, p. 122).

Embora mais “branda” que a primeira sentença, a decisão da Junta militar da Bahia ainda representava uma derrota para os 12 condenados. A solução aparente era mudar o campo de batalha…

Do Supremo Tribunal de JustiçaCondenados por duas vezes pela Justiça militar, os réus

recorreram então àquela que era, ao menos em tese, a instância máxima de justiça no Império: o Supremo Tribunal de Justiça.

José Reinaldo de Lima Lopes (2010, p.93, grifo nosso), em seu livro O Oráculo de Delfos, discute que a função do Supremo durante o Império era a de examinar as sentenças encaminhadas na forma de recurso de “revista”. Os casos eram revisados com base em alegações de nulidade manifesta (descumprimento de regras que garantissem o contraditório ou a ordem do juízo) ou injustiça notória (descumprimento ou aplicação equivocada da lei material).

No dia 31 de Outubro de 1839, as páginas do jornal fluminense

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Correio Official (n. 103, 1839) apresentavam a decisão tomada pelo órgão, datada de 16 de agosto do mesmo ano, concedendo

[...] a pedida revista pela manifesta nullidade em que laborão o processo e todas as sentenças nelle proferidas. Por quanto sendo nullo todo o processo organisado, e todo o julgamento proferido por Juiz incompetente, e gozando somente os reos militares do privilegio do foro nos crimes - puramente militares - devendo em todos os mais ser processados e julgados perante as forças ordinarias, evidentissima vem a ser a incompetencia com que no foro militar forão os recorrentes processados e julgados [...].

Consoante entendimento dos juízes, portanto, as sentenças decretadas tanto pelo Conselho quanto pela Junta expressavam nulidade manifesta por duas razões essenciais. A primeira, apontava para a incompetência do juízo militar em conhecer dos crimes cometidos pelos réus, os quais são reconhecidos como perpetrados pelo Supremo, “Não podendo porém caber a menor hesitação sobre não serem realmente estes crimes puramente militares [...]” (Ibidem). A segunda consistia na incompetência do foro em julgar alguns dos réus pelo simples fato de os mesmos não serem militares.

Podemos perceber o quão controversas são estas duas questões levantadas pelo Supremo. Ambas serão melhor exploradas no próximo tópico.

Reconhecida a nulidade do processo, que resultou na admissão de revista, os juízes o remeteram aos cuidados do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro para revisão e julgamento (Ibidem), isso porque “Uma vez concedida a revista [...] o Supremo não tomava ele mesmo nova decisão, mas remetia o processo a uma das Relações do Império. Esta não estava obrigada a seguir o entendimento do Supremo e cada uma delas [...] decidia como bem entendesse” (LOPES, 2010, p. 93-94).

De qualquer forma, a decisão acendia uma centelha de esperança para os réus. Se o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro reafirmasse que os crimes cometidos pelos réus não eram de natureza militar, mas sim política, mesmo na pior das hipóteses, nenhum deles seria executado, haja vista que a pena capital para crimes políticos fora abolida pela Constituição de 1824 (BRASIL, 1824).

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Do Tribunal da Relação do Rio de JaneiroA história deste tribunal, de acordo com Rogério de Oliveira

Souza (2001, p. 140), remonta às transformações ocorridas durante o século XVIII, com o deslocamento do eixo econômico colonial do Nordeste para o Centro-sul. Desta forma, sua criação no ano de 1751 atendia principalmente às pressões da sociedade aurífera das Gerais, queixosos das dificuldades em se acionar a justiça através da Relação da Bahia, dada sua distância. Pelo lado da Coroa, encaixava-se em sua política de controle e administração das atividades mineradoras da colônia.

Quanto às atribuições do Tribunal, Arno Wehling (1996?, p. 103, grifo nosso) destaca que

[...] envolviam três situações do ponto de vista jurídico processual. Era uma instância recursal e enquanto tal recebia dois tipos de recursos, as apelações e os agravos. Recebia ações novas nas áreas cível, criminal e do patrimônio estatal, em certos casos. Possuía, também, competência avocatória em situações de juízo criminal. O tribunal não era, portanto, a despeito de seu carácter [sic] geral revisor, exclusivamente recursal.

Recebendo o processo dos 12 oficiais sabinos, através de recurso de revista expedido pelo Supremo Tribunal de Justiça, este tribunal emitiu seu acórdão no dia 4 de janeiro de 1840. A sessão foi presidida pelos juízes Gustavo Adolfo D’Aguilar Pantoja (Relator); Lisboa e Chichorro (Revisores); Cavalcanti, Siqueira e Verneck (Sorteados) (CORREIO OFFICIAL, n. 13, 1840). Lembrando que a revista teve como fundamento a alegação de “manifesta nulidade”, constituída de duas razões essenciais (incompetência do Juízo militar em conhecer dos crimes dos réus e incompetência do mesmo em julgar aqueles que não eram militares), a primeira foi resolvida da seguinte forma:

Accordão em Relação, &c. Que julgão competente o foro militar para tomar conhecimento das culpas dos recorrentes [...]; porque determinando o Codigo Criminal, artigo 308, § 2º, que os crimes puramente militares sejão punidos na fórma das leis respectivas, e o Codigo do Processo Criminal no artigo 8º, que os juizes militares continuão a conhecer dos crimes puramente militares, com a qual disposição concordão o artigo 155, § 3º do mesmo

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Codigo, que estabelece a competencia do foro militar nos crimes de responsabilidade dos empregados militares, e o Art. 171, § 1º, nos crimes do emprego militar (CORREIO OFFICIAL, n. 19, 1840).

Desta decisão, opuseram-se os senhores Pantoja e Chichorro(CORREIO OFFICIAL, n. 13, 1840).

A controvérsia em relação ao foro refletia a própria fluidez com que os contemporâneos encaravam a Sabinada. A este respeito, Lopes (2008) salienta que tanto nos instantes que antecederam a revolta quanto nos primeiros dias de consolidação do governo republicano, jornais e documentos oficiais de fontes legalistas apontavam seu caráter eminentemente político, a exemplo da Cabanagem e Farroupilha, e de liderança civil.

No entanto, com a progressiva organização da reação imperial, o elemento da responsabilização militar começava a ganhar espaço nos discursos legalistas, dentre eles, o do antigo presidente provincial Souza Paraíso. A sublevação das tropas seria, no entanto, fruto da “sedução” exercida por elementos civis subversivos (LOPES, 2008).

Não obstante, à posteriori, o discurso que se consolidou, vigendo até mesmo após o fim da revolta, foi o de um movimento essencialmente militar, como elucidado pelo tenente coronel Alexandre Gomes de Argollo Ferrão, nome proeminente da contra-ofensiva legalista: “é certo que a militares desvairados, e conduzidos pela mais fatal cegueira, se devem os males que nos flagelaram” (LOPES apud PAEBa, 2008, p. 71).

O mesmo discurso pode ser identificado na definição utilizada pelo Conselho de Guerra, responsável por julgar os nossos 13 réus, a respeito da Sabinada: “motim, ou sedição militar, do qual resultou a desastrosa e funestíssima rebelião da Capital da Bahia, [crimes que] não se podem deixar de considerar como militares” (LOPES apud PAEBa, 2008, p. 71).

Por mais tentador que seja explorar o impacto social desses discursos, bem como suas implicações políticas, nos votos dos desembargadores, tal empreendimento excederia a proposta deste artigo.

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Voltando ao acórdão, a segunda questão levantada pelo Supremo, a respeito da incompetência do foro militar em julgar alguns dos réus pelo fato dos mesmos não gozarem deste foro privilegiado, era fundamentada no fato de que Pitombo, Sucupira, Paixão e Nascimento não eram membros do Exército de 1ª linha, mas sim da extinta 2ª linha, composta pelos milicianos (CORREIO OFFICIAL, n. 20, 1840).

Embora o parecer do Supremo, publicado na edição de número 103 do Correio da Manhã, em 1839, não especifique em qual fonte jurídica foi fundamentado, é sabido que a Lei de 18 de Agosto de 1831, de criação da Guarda Nacional (BRASIL, 1831) versava em seu artigo 140 que “Ficam extinctos todos os corpos de Milicias, e Guardas Municipaes, e de Ordenanças, logo que em cada um dos municipios de que forem esses corpos, se tenham organizado as Guardas Nacionaes”. No entanto, o acórdão da Relação do Rio de Janeiro deixou claro que

[...] os officiaes dos antigos corpos de milicias que não vencem soldo não perderão as suas patentes em virtude da Lei [...], antes esta no Art. 141 manda positivamente conservar-lhes as honras annexas aos seus postos, nas quaes se não póde deixar de comprehender o foro militar de que aquellesofficiaesgozavão como militares, segundo o § 49 do respectivo regulamento; hetambem evidente que com razão forão submetidos ao juizo militar alguns dos recorrentes officiaes das extinctasmilicias, apezar de não vencerem soldos e de não haverem pertencido em tempo algum a primeira linha do exercito (CORREIO OFFICIAL, n. 19, 1840).

Desta decisão, foram vencidos os votos dos senhores Pantoja e Lisboa(CORREIO OFFICIAL, n. 13, 1840).

Derrubados os dois argumentos utilizados pelo Supremo para respaldar a nulidade manifesta do processo, passou-se ao veredicto: os recorrentes Sérgio Velloso, Innocencio Eustáquio Ferreira de Araújo, José Joaquim Leite e Alexandre Ferreira do Carmo Sucupira foram considerados os cabeças do motim da noite de 6 para 7 de Novembro de 1837, opondo-se com armas nas mãos às ordens dos seus superiores, concernentes ao serviço. Por sua vez, Ignácio Joaquim Pitombo, Manoel José de Azeredo Coutinho e João da

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Paixão, conquanto não tenham liderado o motim, dele tomaram parte, tendo também pegado em armas contra seus superiores. Enquadravam-se todos eles, na decisão dos desembargadores da Relação do Rio de Janeiro, nas seguintes disposições de Guerra (CORREIO OFFICIAL, n. 20, 1840):

Artigo 1: Aquele que recusar, por palavras ou discursos, obedecer ás ordens de seus superiores, concernentes ao serviço, será condenado a trabalhar nas fortificações; porém, se se opuser servindo-se de qualquer arma ou ameaça, será arcabuzado. Artigo 15: Todo aquele que for cabeça de motim ou de traição, ou tiver parte, ou concorrer para estes delitos ou souber que urdem, e não delatar a tempo os agressores, será infalivelmente enforcado.

Quanto aos demais recorrentes, Manoel Marques Cardoso, Manoel de S. Boaventura Ferraz, Pedro Barbosa Leal, Rodrigo Xavier de Figueiredo Ardignac e Manoel Florêncio do Nascimento, embora não se provasse que foram cabeças do motim, ou que tenham pegado em armas contra seus superiores, o Tribunal da Relação também decidiu que tiveram parte e concorreram para o delito. Fixaram como sentença as penas do Art. 15 supracitado (CORREIO OFFICIAL, 1840, p. 4).

O colegiado do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro condenou a todos os doze sabinos à morte, apesar dos votos contrários dos senhores Pantoja e Lisboa, os quais pleiteavam a aplicação da mesma pena imposta pela Junta militar de justiça da Bahia. Para os réus, estavam esgotados os recursos judiciários, restando-os somente invocar a clemência do Poder Moderador (CORREIO OFFICIAL, 1840, p. 2).

A aplicação da lei condenara os sabinos. Ironicamente, seu descumprimento os salvaria: Com o golpe da maioridade, em 23 de julho de 1840, uma das primeiras medidas do novo Imperador foi anistiar os presos políticos das revoltas regenciais, incluindo aqueles envolvidos na Sabinada. Um desfecho no mínimo inesperado para aqueles que estavam tão certos de seus martírios.

Conclusão

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Compreende-se, à partir das discussões propostas, que o nascente sistema jurídico brasileiro aos poucos criava uma teia de instituições responsável por garantir o funcionamento da lei, na qual seriam julgados os 13 sabinos estudados, membros de uma revolta que se destacou muito mais por suas ideias do que por seus feitos.

Fica claro, porém, que a jurisprudência dos tribunais não estava isenta à influência dos interesses políticos da sociedade imperial, principalmente no turbulento contexto da Regência, e que a sobreposição de suas instâncias por diversas vezes acabava por prejudicar os réus.

As limitações do sistema refletiam as próprias contradições inerentes ao processo de construção de nosso Estado-nacional, no qual a necessidade de ordem por diversas vezes acabava por ignorar a lei escrita, ou ao mesmo interpretá-la em seu proveito.

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Perfil intelectual de Manoel BomfimRuth Cavalcante1

O objetivo deste trabalho é destacar os principais elementos que compuseram o repertório intelectual do brasileiro Manoel Bomfim (1868-1932)2. Bomfim foi um intelectual relativamente constante ao longo da vida. Na sua maturidade não chegou a entrar em nenhuma grande contradição em relação aos seus escritos da juventude. De acordo com Rebeca Gontijo (2003), toda a produção de Bomfim foi marcada por aspectos do Cientificismo e do Civismo. Ele valorizava o saber científico para a compreensão da realidade social, pois acreditava que as ciências ensinavam o caminho do progresso à humanidade. Contudo, ele alegava que o conhecimento científico estava sendo manipulado pelos “filósofos do massacre” a fim de explorar os povos “menos desenvolvidos”. Ele também edificava a importância do patriotismo, considerando o civismo um elemento primordial para o fortalecimento da nação brasileira.

Manoel Bomfim se aproximou muito da Psicologia em obras como O Brasil na História, em que, de acordo com Gontijo, o homem era representado como um ser moral, cuja subjetividade lhe permitia escapar das influências externas (do meio) e internas (da hereditariedade psíquica e/ou biológica). Nesta perspectiva, ele refletia sobre a subjetividade dos sentimentos humanos para destacar a importância da paixão, e, a grande paixão de Bomfim tinha nome: se chamava Brasil, e seus escritos nitidamente tentavam conduzir o público leitor a também desenvolver este mesmo sentimento, incentivando-o a amar as terras e as gentes da nação. De acordo com André Filgueira (2012), Bomfim elaborou a tese de que o amor à terra e o amor à pátria constituíram o ânimo nacional do povo brasileiro. Foi em nome deste amor que portugueses e

1 Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo.

2 Este trabalho faz parte da dissertação de mestrado intitulada: A questão racial pensada entre o “método científico” e a paixão: um estudo comparado entre José Ingenieros e Manoel Bomfim – Argentina e Brasil (1900-1920).

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nativos se uniram e resistiram bravamente contra a invasão francesa e a holandesa. Isto significa dizer que, para Bomfim, a resistência só foi possível porque existia no Brasil uma precoce coesão social entre portugueses e nativos que, unidos, lutaram não pela posse de uma colônia, mas pela sua pátria. Neste sentido, não foram os portugueses nem os nativos a fazer frente à invasão, mas sim o vigoroso e soberano povo brasileiro que, ante a incapacidade da mãe-pátria, lutou para salvar sua tradição. O povo era constituído por nativos, mestiços e portugueses que, juntos, forjaram o espírito de uma nova pátria, e sua tradição nacional veio à tona na resistência contra as invasões estrangeiras. Para Bomfim, a ação popular foi guiada pelo sentimento de patriotismo para defender não a tradição portuguesa, mas uma tradição original que se forjou no próprio Brasil: a tradição brasileira.

Também, numa época em que a legitimidade da produção científica era associada a um saber necessariamente neutro e pautado em métodos racionais, Bomfim rompeu com a neutralidade dominante do discurso cientificista, opondo a suposta impassibilidade, imparcialidade e frieza do caráter científico à relevância da paixão e sua força propulsora nas ações humanas, alegando que paixão nem sempre é cegueira, e nem impede o rigor da lógica. Isto significa dizer que, em suas obras, Bomfim não se envergonhava em dizer o que pensava e em expor suas opiniões; ele escrevia com paixão para fazer reflexões sobre as ciências e não escondia seus interesses pessoais sob a máscara do verniz cientificista. Pode-se dizer que, assim como seus contemporâneos, Bomfim tinha “fé” nas ciências, mas se recusava a usar em suas produções os critérios que legitimavam a produção científica, não sendo neutro nem demasiadamente objetivo.

Outro aspecto marcante nas obras de Bomfim foi a sua crítica ao Positivismo. Entretanto, não se pode negar que ele aderiu a certas concepções positivistas, uma vez que também compreendia as sociedades como organismos regidos por “leis fatais” – sejam elas sociais ou biológicas. Estas ideias organicistas, frequentemente

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utilizadas por ele, faziam parte do arcabouço teórico dos positivistas. Todavia, ele se apresentou ao público leitor como um crítico desta corrente doutrinária. Desde a época da faculdade Bomfim fazia severas críticas à ideologia de Comte, que se esquematizaram, sobretudo, na obra O Brasil nação. O sergipano via com pessimismo a influência desta doutrina sobre o movimento republicano e, para ele, o Positivismo propunha apenas uma “modernização conservadora” do país, pois se voltava muito para o desenvolvimento industrial e a necessidade de formação técnica em detrimento das questões sociais. Segundo o intelectual, o Positivismo era uma doutrina conservadora e tão somente comprometida com a manutenção da ordem capitalista, em que o trabalho dos indivíduos das “classes inferiores”, era tiranizado e espoliado, ou seja, o Positivismo era interpretado por Bomfim como uma ideologia que só beneficiava as classes dirigentes. Aguiar relata que o que mais irritava Bomfim em relação ao Positivismo era o:

Dogma positivista contra a obrigatoriedade do ensino elementar. A pretexto de defender os direitos do cidadão, os seguidores de Comte consideraram a ideia da obrigatoriedade uma ingerência despótica do poder civil num domínio que não lhe competia atuar, ferindo assim, “as atribuições mais sagradas das mães e dos pais” Manoel Bomfim foi extremamente cáustico ao censurar os positivistas por esta suposta defesa dos direitos do cidadão. E não era para menos: afinal, numa sociedade atrasada, inculta e tacanha, onde a maioria da população era compactamente analfabeta e as pessoas instruídas cabiam num bonde, a obrigatoriedade do ensino elementar era, segundo o autor da proposta, Ramiz Galvão, um mecanismo – no fundo, um quebra galho – contra o descaso (fruto da ignorância na maioria dos casos) dos familiares em relação a educação das crianças. Os positivistas não percebiam, ou não queriam perceber, notou Manoel Bomfim, que a obrigatoriedade do ensino não atentava contra a cidadania: atentava, sim, contra “os direitos que tem os pais de condenar os filhos à inferioridade patente do analfabetismo” (AGUIAR, 2000, p. 145).

Por sua vez, Kátia Baggio (1998) pondera que Bomfim foi um antiimperialista. Assim, ele criticou o fato do Brasil ter entrado em guerra contra o Paraguai, afirmando que o interesse do Império brasileiro estava em obter a livre navegação nos Rios Paraná e

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Paraguai para ter acesso mais fácil a todo centro-oeste do território brasileiro. Para o sergipano, foi uma grande torpeza do Brasil Imperial invadir e destruir o Paraguai para impor a sua hegemonia na região.

As análises de Bomfim, formuladas no final dos anos 20, sobre a participação da monarquia brasileira nas guerras do Prata, foram contrárias à tendência dominante da época, que condenava os hispano-americanos e glorificava os militares brasileiros. Especialmente no caso da Guerra do Paraguai, Bomfim antecipou uma visão muito crítica que, décadas mais tarde passou a vigorar (BAGGIO, 1998, p. 120).

Também, seus escritos demonstraram que ele acreditava que os Estados Unidos tinham objetivos expansionistas no continente americano, principalmente na América Central e nas Antilhas. Para ele, a maneira de impedir que a América do Sul fosse dominada pelos “países mais fortes” era deixar de ser uma região de economia essencialmente agrícola. Ou seja, para o brasileiro o desenvolvimento industrial era a melhor forma de superar a dependência externa e fazer frente aos interesses imperialistas dos norte-americanos e europeus na América Latina. Neste sentido, ele defendeu a solidariedade e união entre os países sul-americanos com a finalidade de combater o domínio e a dependência deles em relação às poderosas nações capitalistas.

Por sua vez, Maria Nunes (1997) afirma que Bomfim conhecia as concepções dos teóricos marxistas, como Marx, Engels e Lenin e chegou a interpretar a realidade brasileira utilizando alguns conceitos socialistas, como o conceito de “luta de classes”; mas, como Wilson Martins (1996) demonstra, Bomfim via com desconfiança o fato dos socialistas revolucionários da década de 1920 serem guiados por ideologias totalitárias, demandando por um “governo forte” e culpando a “democracia burguesa” pelos males que assolavam os seus países. Nesta perspectiva, ele rejeitou a “solução comunista” para os males do Brasil e, por esta razão, criticou o movimento tenentista e seu líder Carlos Prestes, pois era totalmente contra a intervenção do exército na política, desejando assim, uma nação plenamente democrática.

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Como destaca Aguiar (2013), ao final da sua vida o pensamento de Bomfim havia se radicalizado. Se em América Latina: males de origem propunha a solução “ilustrada” da instrução popular massiva como “cura” dos problemas nacionais e como o caminho do progresso, em O Brasil Nação, obra produzida mais de vinte anos depois, propôs uma solução revolucionária para os problemas sociais. Sua experiência pessoal no campo educacional e na política o fez chegar à conclusão que os políticos dirigentes não iriam fazer nenhuma concessão em nome dos dominados. Assim, ele passou a defender uma solução revolucionária que contasse com o apoio popular nos moldes da Revolução Mexicana, em nome de uma distribuição igualitária de terras, do acesso universal à educação popular, o direito à greve etc.

Em O Brasil Nação, defendeu que o único meio de acabar com a exploração era através da revolução popular. Baggio demonstra que ele foi influenciado por ideias socialistas, citando Marx, Engels e Blanqui. Contudo, a sua aposta na revolução não significava a adoção de um modelo soviético no Brasil, uma vez que o proletariado nacional não se definia como “classe”, ao passo que o povo era visto como inculto e sem consciência dos seus direitos. Apesar disto, para o sergipano, a revolução não poderia esperar e necessariamente deveria haver o afastamento definitivo dos antigos dirigentes dominadores. Para Bomfim, o exemplo mexicano era muito mais familiar do que o russo, e assim ele propunha que os brasileiros seguissem o modelo mexicano de mudança social, pois ele:

Reconhece e elogia várias iniciativas resultantes do processo revolucionário mexicano: a derrota do poder da velha oligarquia representada pela ditadura de Porfírio Díaz; a difusão maciça do ensino público, principalmente a partir da gestão de José Vasconcelos como ministro da educação; o estímulo ao fortalecimento da identidade nacional, com a valorização da cultura popular e de suas raízes pré-hispânicas; a legislação trabalhista e social; a reforma agrária. Não há dúvida que Bomfim acompanhava atentamente o processo político no México a partir da Revolução de 1910 e, principalmente, as profundas transformações pelas quais o país vinha passando (BAGGIO, 1998, p. 125).

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Enfim, os principais elementos presentes nos escritos de Bomfim podem ser elencados como: valorização das ciências e crítica à manipulação do conhecimento científico com a finalidade de explorar os povos “menos desenvolvidos”; valorização da educação e do patriotismo brasileiro; crítica ao imperialismo assim como às ideias totalitárias dos socialistas; e valorização do povo, considerado como o único elemento capaz de provocar mudanças substanciosas na vida das sociedades latino-americanas, uma vez que, para ele, os Estados estavam mais preocupados com a manutenção do status quo do que com melhorar as condições de vida destas populações.

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BOMFIM, Manoel. O Brasil Nação: realidade da soberania brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

FILGUEIRA, André. A utopia nacionalista em Manoel Bomfim. Revista Em Tempo de Histórias – Publicação do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, Brasília, n. 20, p. 153-163, 2012.

GONTIJO, Rebeca. Manoel Bomfim, “pensador da História” na Primeira República. Revista Brasileira de História – On-line version, São Paulo, v. 23, n.45, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010201882003000100006&script=sci_arttext&tlng=es>. Acesso em: 23 jun. 2014.

MARTINS, Wilson. Profeta da quinta revolução. In: BOMFIM,

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Manoel. O Brasil nação: realidade da soberania brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro, Topbooks, 1996. p. 13-21.

NUNES, Maria. Manoel Bomfim: pioneiro de uma ideologia nacional. In: BOMFIM, Manoel. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 13-25.

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Notas sobre o processo de expropriação das terras indígenas das vilas de Nova

Almeida e Santa Cruz (1850-1889)Tatiana Gonçalves de Oliveira1

IntroduçãoEsta apresentação faz parte do desenvolvimento de minha

pesquisa de doutorado, que pretende compreender o longo processo de expropriação das terras indígenas e integração da mão de obra nativa na província do Espírito Santo. O recorte espacial se delimitará na análise das vilas de Santa Cruz e Nova Almeida, antigos aldeamentos jesuíticos daquela província. A escolha de iniciar a pesquisa no ano de 1850 é importante pois acreditamos ter sido a partir da segunda metade do século XIX que os conflitos agrários, envolvendo as terras indígenas, se intensificaram naquela região, desenrolando-se até o final do regime monárquico. Não que as disputas pelas terras indígenas tenham se encerrado naquele contexto, pelo contrário, elas tomaram formas variadas até os dias atuais. No entanto, nos interessa neste momento entender esse processo à guisa da lei de Terras de 1850 e seus desdobramentos na experiência espírito-santense ao longo do oitocentos.

Nova Almeida, hoje distrito do Município da Serra, foi uma antiga missão jesuítica, denominada Reis Magos, que após a expulsão dos padres se elevou à categoria de vila, em 1759-1760. A freguesia de Aldeia Velha era um povoado pertencente ao município de Nova Almeida, que deste se desmembrou em 1848, tornando-se vila com a denominação de Santa Cruz. Aos descendentes dos Tupiniquim e Terminó aldeados na antiga missão jesuítica “foi concedida uma vasta sesmaria e assegurados os privilégios do Alvará de 8/5/1758. Por essa lei estendiam-se a todos os índios do Brasil os mesmos direitos primeiramente concedidos aos índios do Grão-Pará e Maranhão”. (MOREIRA, 2002, p. 152). A sesmaria conferida

1 Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

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aos índios de Nova Almeida foi dada quando estes ainda estavam sob a tutela dos jesuítas, tendo sido demarcada no livro de Tombo da vila após a expulsão dos missionários.

Em seu artigo intitulado “Nem selvagens nem cidadãos: os índios da vila de Nova Almeida e a usurpação de suas terras durante o século XIX”, Vânia M. Losada Moreira (2002) analisa o processo de expropriação das terras indígenas daquela vila a partir de duas questões que, segundo ela, marcaram a história da comunidade indígena da vila de Nova Almeida, a saber, o processo de perda territorial e a condição “controversa” dos índios considerados “civilizados”.

A Câmara municipal de Nova Almeida e os índios entrariam em conflito pela posse da sesmaria doada. Os representantes do poder político local utilizariam de vários estratagemas para justificar a contínua usurpação daquelas terras. Vânia Moreira nos dá um bom exemplo dessa situação, quando nos relata o caso envolvendo os índios Manoel Francisco de Almeida e Inácio Pereira Samora, que no ano de 1846 entraram com representação ao presidente da província, acusando a perda de suas terras para a Câmara de Nova Almeida. Em resposta às acusações, a Câmara alegaria serem os índios apenas “usufrutuários” da sesmaria por eles ocupada e que não exerciam sobre elas nenhum direito de domínio (MOREIRA, 2002).

No entanto, Moreira questiona essa afirmação, pois a sesmaria concedida aos índios lhes dava título de posse sobre a mesma baseando-se no direito originário. No entanto, esse direito seria negado e o avanço sobre as terras indígenas continuariam e com ele as estratégias da Câmara para deslegitimar a posse dos índios. “Na opinião dos membros da câmara, até mesmo a simples ausência temporária da terra tornava o índio desprovido do direito de continuar na condição de ‘usufrutuário’”. (MOREIRA, 2002, p. 155). O que era muito oportuno para aquela vila, uma vez que de lá eram recrutados muitos índios para o trabalho dentro e fora da província.

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Em outro artigo Moreira analisou essa questão do recrutamento da mão de obra indígena. A partir das correspondências trocadas entre a presidência da província do Espírito Santo e as autoridades locais da vila de Nova Almeida, entre 1822 e 1853, a autora nos mostra como naquela província o uso do trabalho indígena era a base de muitos serviços prestados, e um importante dado para entender a história social daquela região (ALMEIDA, 2010). Pelo cruzamento de dados destas correspondências, Moreira apontou que “o assunto mais tratado na documentação foi sobre o trabalho indígena (58,8%), seguido bem de longe pelas questões relativas às suas terras (23,5%)”. (2010, p. 24). No entanto, a autora demonstra que o tema “trabalho” foi perdendo prioridade nas correspondências, até não ser mais citado no decorrer de 1840. A partir desse momento, a questão das terras indígenas seria o foco principal da documentação estudada pela autora. No entanto, para a Moreira o que entra em colapso a partir de 1840 é o “sistema de governo criado ainda no período colonial e cujo principal objetivo era organizar os índios para trabalharem para o Estado e os particulares”. (MOREIRA, 2010, p. 28). No entanto, persiste a prática desses índios serem recrutados para serviços públicos ou para trabalharem para particulares.

Nesse contexto, a vila de Santa Cruz “passa a acolher muitos índios que perdiam ou vendiam suas terras próximas à vila de Nova Almeida, e iam para lá formar novos sítios”. (ALMEIDA; MOREIRA, 2012, p. 18). Uma breve análise da relação de todos os habitantes da antiga freguesia de Aldeia Velha feita pelo vigário Manoel Antonio dos Santos Ribeiro em 1843, a pedido da presidência da província, revela a incidência de índios provenientes de Nova Almeida.

Este documento também é revelador da composição étnica daquela vila. Em 1843, Aldeia Velha possuía 2.200 habitantes, dentre estes 1.489 foram classificados como índios, 215 Brancos, 118 “Pretos”, além de outras denominações que revelam o processo de mestiçagem, como 09 “Cabras” (mestiço de mulato com “preto”), 29 “Caribocas” (mestiço de “preto” com índio), 17 “Mamelucos” (mestiço de branco com índio), 24 “Mestiços” e 119 “Pardos”.

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As relações entre etnicidade e conflitos agrários marcariam a política imperial, especialmente a partir de 1850 com a promulgação da Lei de Terras. Em estudo comparativo sobre o processo de desamortização das terras indígenas no Brasil e México durante a segunda metade do século XIX, Moreira coloca em debate a relação desse processo concomitantemente a outro, deslegitimação das comunidades étnicas, “a quem foi imposto a necessidade de integração nacional aos moldes assimilacionistas então vigentes”. (2012, p. 69). Esse processo de esbulho das terras indígenas seria, segundo Vânia Moreira, acelerado com a Lei de Terras de 1850 e seus regulamentos. Assim, esta lei teria um efeito nocivo nos patrimônios territoriais indígenas, uma vez que seu “objetivo era o de acabar com o domínio e uso comum sobre várias terras que eles possuíam na forma de sesmarias, missões, aldeamentos, compras e doações”. (MOREIRA, 2012, p. 69).

A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha enfatiza que a partir de Lei de Terras as classificações étnicas ganhariam um sentido particularmente importante dentro da política imperial, pois “os índios tidos com plenamente ressocializados passaram a ser definidos, a partir da lei de Terras, como ‘índios de nome’, ‘índios misturados’ à população geral, ou ainda ‘mestiços’, ‘remanescentes’, ou ‘descentes’ de índios” (CUNHA, 1992, p. 146).

Ainda sobre essas classificações, Maria Regina Celestino (2008) dirá que, o processo de mestiçagem que marcou as relações interétnicas das diversas sociedades indígenas no Brasil colonial e imperial não deve ser lido em oposição à identidade indígena, uma vez que essas classificações poderiam ser acionadas por esses sujeitos diante da necessidade de utilização de seus direitos, associados à categoria “índio”.

Para esses “índios de nome” ou já integrados à lógica social local, o conjunto normativo advindo com a Lei de Terras e seus regulamentos “impôs-lhes a condição de ‘brasileiros’, mandando desamortizar as terras coletivas existentes em vilas e aldeamentos e reparti-las aos ‘remanescentes’ e ‘descendentes’, caso ainda

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existissem”. (MOREIRA, 2012, p. 77). Além disso, Também recomendava “a regularização do direito de posse e propriedade de antigos foreiros e invasores (posseiros) das terras de índios”. (Idem).

Esse contexto se tornou favorável para posseiros, que através da legalização territorial podiam sair dessa condição “para o patamar de uma classe social, cujo traço distintivo passou a ser a grande propriedade rural”. (MOREIRA, 2002, p. 159). Nesse cenário, a condição das antigas sesmarias indígenas era problemática, podendo ser classificadas como terras “devolutas” dependendo, entre outros fatores, de uma condição étnica como legitimadora do direito sobre as mesmas.

O exemplo das disputas envolvendo as terras indígenas nas vilas de Nova Almeida e Santa Cruz foi emblemático das controvérsias que a lei de Terras deixava, uma vez que, não definia em seus artigos o que se entendia como “índio”. Os adjetivos associados ao que se compreendia como “índio puro”, ou seja, “selvagens”, “preguiçosos”, “nus”, “nômades”, não parecia o mais correto, segundo o vigário da vila de Santa Cruz, para definir os índios de sua paróquia. O vigário Manoel Antonio dos Santos Ribeiro, que no ano de 1854 deveria receber o registro das terras possuídas naquela vila, indagaria ao presidente da província se os índios de Santa Cruz deveriam ser classificados de acordo com o que pregava o artigo 94 da regulamentação da lei de Terras, e enquadrados como “menores”, necessitando de tutores (MOREIRA, 2002).

A resposta dada pelo presidente da província do Espírito Santo, depois que este passou a dúvida do vigário ao Secretário de Estado de Negócios do Império, foi de que “os índios residentes naquela freguesia não são os de que se trata o artigo 94 do Regulamento, visto como gozam da plena administração de suas posses, ou bem”. (VASCONCELLOS, 1885, p. 80). Nesse sentido, aos índios de Santa Cruz e também de Nova Almeida seria atribuído o estatuto social e jurídico de “civilizados”, não podendo ser tutelados ou terem suas posses administradas por outrem. Assim, segundo Moreira (2002), estes índios, não sendo nem “selvagens”, nem cidadãos,

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reivindicariam a manutenção de suas terras baseando-se, antes de tudo, no direito originário.

Uma breve análise do Registro Paroquial de Terras de Santa Cruz, feito pelo vigário entre 1854 e 1858, revela que num total de 256 registros recebidos, 144 eram de índios. Estes dados demonstram que no Espírito Santo, como em outras regiões do Império, a capacidade dos índios manterem suas terras variou muito diante das circunstâncias locais, e no caso da vila de Santa Cruz, por exemplo, “os índios conseguiram registrar suas terras de vivenda e cultivo junto ao vigário, inclusive em forma de terras coletivas”. (ALMEIDA; MOREIRA, 2012, p. 22). No entanto, como salienta Moreira (2002), o processo de expropriação continuou junto com a luta por suas terras. Após a Lei de Terras ainda prevaleceu a prática de formação de posses, mesmo que a dita lei reconhecesse apena o título de compra como justificativa de propriedade. Assim, a posse criminosa em terras indígenas seria uma constante na história de formação de latifúndios nesse país. E no contexto analisado, tal prática ainda servia para legitimar a expropriação dos índios, que “desapareciam”, “dispersos e confundidos na massa da população ‘civilizada’” (CUNHA, 1992, p. 145).

Pela análise prévia de alguns documentos, podemos inferir que, em Santa Cruz e Nova Almeida, o processo de desamortização e aforamentos das terras indígenas seria acompanhado da apropriação da mão de obra indígena, que se tornaria a base daquela economia. A relação nominal feita pelo vigário de Santa Cruz em 1843 já trazia algumas informações sobre a organização social do trabalho naquela freguesia. Entre a população indígena, a maioria exercia atividades na lavoura. Entre outras funções desempenhadas por homens e mulheres nativos daquela vila, a alfaiataria, carpintaria, costura, lavoura e olaria eram praticadas pelas mulheres indígenas. Entre os prevaleciam as atividades ligadas à carpintaria e pesca. Cabe ressaltar que dentre estes havia dois negociantes e dois oficiais de justiça. Sendo os dois primeiros agregados de um negociante branco. Já no grupo “miscigenado” temos alguns dados interessantes, por

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exemplo, das 13 mulheres “caribocas”, 9 eram oficiais de justiça. O que numa sociedade oitocentista é sinal de distinção, ainda mais quando naquele contexto, ser mulher e não branca significava, quase sempre, estar à margem social.

A presença de negros em Nova Almeida e Santa Cruz era muito insignificante se comparada com o restante da composição social dessas vilas. Retomando os dados do documento acima descrito, temos uma relação de 118 “Pretos” em Santa Cruz, para uma população arrolada em 2.020 habitantes. A mão de obra escrava era pouco utilizada nesta região, o que fortalece uma das hipóteses desse trabalho, de que o trabalho indígena é que teria movimentado a economia daquelas vilas. Uma perspectiva semelhante, só que para a colônia, foi trabalhada por John Monteiro em seu livro fundante, Os negros da Terra; índios e bandeirantes nas origens de São Paulo, onde o historiador/antropólogo inovou ao trazer os índios para a formação do mundo do trabalho na capitania de São Paulo. O autor aponta que, nas expedições dos bandeirantes para os sertões, para além de cumprirem seu papel de “desbravadores”, os paulistas traziam os índios para trabalharem como seus escravos no cultivo de trigo que abasteceria as vilas e outras regiões da América portuguesa. E nesse sentido, os paulistas se diferenciaram no “circuito comercial do Atlântico e, desenvolvendo formas distintivas de organização empresarial, tomaram em suas próprias mãos a tarefa de construir uma força de trabalho” (MONTEIRO, 1994, p. 57).

Diferentemente dos índios analisados por Monteiro, os de vila Almeida e Santa Cruz se inseririam no mundo do trabalho como homens livres, sendo agregados nas fazendas, trabalhadores urbanos ou lavradores em suas próprias terras, as que ainda sobravam para eles cultivarem. Em sua visita ao município de Nova Almeida em 1860, o imperador D. Pedro II teceu algumas considerações sobre a economia local, onde a maioria da população parecia viver “da pesca, da lavoura de cereais, do corte de madeiras e dos artesanatos de louças de barro e fiação do algodão. Fabricavam um tecido tão grosseiro que, quando não era utilizado para sacos, só os negros e os

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índios o aproveitavam no ajaezarem as suas roupas”. (D. PEDRO II apud ROCHA, 2008, p. 157-158).

Em sua monografia, apresentada ao departamento de Geografia da Universidade Federal do Espírito Santo, Jaime Bernardo Neto analisou as pequenas propriedades rurais e a estrutura fundiária no Espírito Santo, desde meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX. Segundo Neto, as pequenas propriedades rurais, que predominavam na primeira metade do século XIX, foram dando lugar à concentração de grandes propriedades, oriundas, entre outros fatores, do processo de desapropriação das terras indígenas. Mas, ainda assim, segundo Neto, prevaleceria em algumas regiões a organização socioeconômica em torno da pequena propriedade, voltada para o mercado interno.

[...] havia duas regiões distintas uma ao norte, polarizada em São Mateus, com significativa integração na economia colonial, na qual atuava como exportadora de gêneros de subsistência, sobretudo farinha de mandioca, produzidos em geral nos moldes do plantation; e outra composta pelos demais povoados entre Santa Cruz e Itapemirim, onde predominava a produção de gêneros de subsistência aparentemente mais variada, para abastecimento do mercado interno da província, que não só supria as necessidades locais como era produto de exportação. (NETO, 2009, p. 46).

Em seu Dicionário Histórico, Geográfico e Estatístico da Província do Espírito Santo de 1878, Augusto César Marques, que teve a obra encomendada pelo governo da província em 1875, traz alguns dados sobre a diversidade agrícola na província, apontando entre os produtos de exportação, o algodão, o pescado, e também menciona produtos artesanais, como redes (MARQUES, 1878). Além disso, ele aponta para uma exportação considerável de madeiras, partindo, por exemplo, do porto de Santa Cruz para o Rio de Janeiro. Sobre o comércio de madeiras, o Bispo do Rio de Janeiro, D. Pedro Maria de Lacerda, relatava em seu livro de visitas pastorais, no ano de 1880, quando estava em Santa Cruz, que “junto ao mar grandes toradas de jacarandá, o forte do comércio desta Vila. Usam dividir a árvore em 2 ou 3 toradas, e depois serram ao comprido, e estas caçoeiras (assim chamam) vão para a Corte do Rio de Janeiro”.

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(LACERDA, 1880-1886, p. 161). Além do comércio de madeiras, o Bispo relatava a atividade pesqueira como sendo importante para Santa Cruz e Nova Almeida. Dizia ele que, quando os pescadores de Nova Almeida não podiam sair com suas canoas em tempo de chuvas, eles compravam dos pescadores de Santa Cruz.

Coitada desta gente, quando chuvas e ventos não deixar sair as canoas? Carne não há em Almeida, e como me disse Pe. Casella e outros, às vezes 1 ou 2 vezes por ano é que se mata um boi! É preciso ir comprar carne e também pão em S. Cruz! Se pois não houver peixe, este povo sofre deveras! E agora que a gente era muita na Vila, e ainda que por esta ocasião houvesse mais alguma carne, contudo sem peixe o povo deveria sofrer. Nestas ocasiões quando chegam as canoas com peixe descem da Vila e acodem todos à praia: quando lá cheguei por passeio ainda havia gente. Enquanto eu ali estava assentado, vieram três Índios pescadores moradores nas Frecheiras, que é a parte setentrional da barra e me lançaram aos pés cada um seu peixe mais ou menos grande dizendo que eram um presente. (LACERDA, 1880-1886, p. 103).

Pelo que por ora analisamos, com leituras prévias das fontes e ancorados num debate historiográfico recente, podemos visualizar um pouco do cenário dinâmico das vilas de Nova Almeida e Santa Cruz na segunda metade do oitocentos. E nesse sentido, é possível inferir algumas considerações acerca do modo como os indígenas destas vilas participaram de sua organização social, mesmo que inseridos num processo contínuo de expropriações de suas terras.

As relações interétnicas entre índios, negros, imigrantes e brancos naquela região, longe de significar o “desaparecimento” dos primeiros, confundidos na “massa de civilizados”, resultaram num processo de adaptação desses sujeitos, que assumiriam a identidade de “caboclo” ou de “índio” como formas variadas de viver aquela nova situação. Como bem definiu Maria Regina Celestino de Almeida para a situação dos índios e mestiços no Rio de Janeiro, essas metamorfoses indígenas significaram, antes de tudo, a possibilidade destes acionarem uma dupla identidade de ‘índios mestiços’, que poderiam manipular em função dos seus interesses e conforme as circunstâncias (ALMEIDA, 2008).

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Por uma história dos povos ditos “sem história”[...] sabe-se que os povos ditos sem história são simplesmente, povos cuja história se ignora, e que os “primitivos” tem um passado, como todo mundo. (VEYNE, 1998, p. 27).

Em sua reflexão sobre a escrita historiográfica, Paul Veyne nos lembra que o trabalho do historiador é fazer escolhas, é recortar e delimitar sua escrita. Nesse processo, o que é importante ser lembrado e por outro lado, esquecido, faz parte da operação de escrita da narrativa histórica, não é algo natural. Nesse sentido, este trabalho apoia-se no interesse crescente que historiadores, antropólogos, cientistas sociais, arqueólogos e outros pesquisadores tem demonstrado nas últimas décadas em [re] escrever a história dos índios no Brasil. Desconstruir estereótipos que por muito tempo marcaram a análise dos processos históricos de colonização, como a visão do “índio” no singular, que poderia assumir diferentes facetas no discurso indigenista, “selvagem”, “preguiçoso”, “assimilável”, é um trabalho difícil para quem pretende entrar nessa vereda. No entanto, é urgente continuar essas revisões que tem dado visibilidade à presença indígena na formação do Brasil, e é nesse espaço de reflexão que esta tese se encaixa.

Da Antropologia Histórica e da Sociologia surgiram vários estudos que passaram a utilizar a noção de “adaptação” e “resistência” para compreender as diversas formas de “ser índio”, e que não passavam, necessariamente, pelo confronto direto, mas por outros meios de vivenciar as relações interétnicas. No Brasil, pesquisadores como Marta Amoroso, Cristina Pompa, John Manuel Monteiro, Paula Montero, Izabel Missagia de Mattos, Maria Leônia Chaves de Resende, Maria Regina Celestino de Almeida, Núbia Braga Ribeiro, Vânia Maria Losada Moreira, João Pacheco de Oliveira, entre outros, avançaram ao colocar novas questões a essa temática, dando ênfase as apropriações e as ressignificações das identidades indígenas nos espaços de normatização.

Entre esses estudos, as regiões mais privilegiadas pelos pesquisadores foram o Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e muitas regiões do nordeste brasileiro. Além desses recortes espaciais,

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há também muitas pesquisas na região sul do país. No entanto, o Espírito Santo ainda se encontra na periferia desses recortes, tendo na historiadora Vânia Moreira a principal pesquisadora da história dos povos indígenas daquela região. Nesse sentido, esse projeto visa contribuir com a historiografia referente aos povos indígenas do Espírito Santo, e cotejar um estudo tão importante, que é dar visibilidade para esses sujeitos que atuaram ativamente na organização da vida social e política daquela província.

A região estudada foi e é ainda marcada por conflitos agrários, especialmente, nas terras indígenas dos Tupiniquin, descendentes dos antigos moradores de Santa Cruz e Nova Almeida. Esses conflitos foram estudados na dissertação de Klítia Loureiro, onde a autora analisou processo de modernização autoritária da agricultura no Espírito Santo com a instalação da empresa Aracruz Celulose S/A, na década de 1970. Segundo Loureiro, a chegada da “empresa Aracruz Celulose S/A (1972) em território indígena desencadeou um conflito pela terra, que envolveu as comunidades Tupiniquim e Guarani Mbya. Por sua vez, esse embate engendrou uma luta pelo reconhecimento da identidade étnica dos remanescentes Tupiniquim” (LOUREIRO, 2006, p. 115).

A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) só reconheceria a identidade Tupiniquim em 1975, mas o litígio pelas terras continuaria, sendo que a homologação das duas terras indígenas (TI) só ocorreria entre 2004 e 2010, conforme dados da FUNAI. A TI Caieiras Velhas II foi homologada em 2004, com 57 hectares, e a TI Tupiniquim, homologada em 2010, com 14.282 hectares de extensão (FUNAI, 2015).

No imaginário social capixaba ainda prevalece a ideia, tão disseminada nos discursos colonizadores, de que os povos indígenas são empecilho para o desenvolvimento. Assim, além da miséria em que muitas dessas aldeias vivenciam cotidianamente, dos abusos sobre seus territórios e pessoas, há o preconceito associado à imagem de que esses povos precisam, necessariamente, se “integrar” à sociedade. Um bom exemplo desse discurso assimilacionista foi

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publicado no jornal A Gazeta de Vitória em 2005, pelo colunista Gutman Uchôa de Mendonça.

Na verdade não temos mais índios, trouxeram até uns “guaranis” do Rio Grande do Sul, que formam 15% do universo de 2.000, que dizem existir tupiniquins, que habitam a região [...]. Sou pelo aculturamento definitivo dessa gente, que nos envergonham, que nos humilham diante das nações civilizadas, que ficam reticentes em investir no desenvolvimento nacional. (GUTMAN, Uchôa de Mendonça. Invasão e abusos. A GAZETA, Vitória, p. 3, 8 out. 2005.).

A concepção de “índio puro” em oposição à “civilizados” não é nova, sabemos que tais classificações orientaram os discursos e práticas colonizadoras no Brasil desde a chegada dos portugueses. Cabe a nós, no entanto, desconstruí-los e mostrar sua função dentro dos projetos coloniais, que de modos diferenciados, lidaram com o “outro”, com os primeiros habitantes dessas terras, como inferiores culturalmente e, portanto, necessitando ser “integrados” e “civilizados”.

A pesquisa que propomos problematizará esses discursos historicamente construídos sobre as populações indígenas no Espírito Santo. Dar visibilidade a esses grupos dentro da formação histórica daquela região é também contribuir no presente, contra todo tipo de preconceitos e tentativas de apagamento desses sujeitos na atualidade. Nesse sentido, Vânia Moreira já apontava a importância de estudar o Espírito Santo oitocentista, “não no sentido mais frequentemente estudado e aceito pela historiografia, isto é, como uma província que abrigava muitas tribos de índios puris e botocudos em suas matas e sertões” (MOREIRA, 2010: 35). Mas, ressalta a autora, é preciso compreender que a província também foi uma região muito indígena “porque os índios atuavam no cotidiano de sua vida social e política, contribuindo para moldar e desenvolver a vida local, juntamente com os brancos, os pardos, os pretos e os escravos” (Idem).

Nesse sentido, propomos contribuir para repensar a atuação dos povos indígenas na organização e desenvolvimento do Espírito Santo. A contemporaneidade dessas sociedades indígenas

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passa também pelo reconhecimento de seu papel na história, e consequentemente, sua história no presente.

Considerações finaisRetomemos as considerações do historiador francês Paul

Veyne, que em sua reflexão sobre a escrita historiográfica, nos faz lembrar, contra qualquer reducionismo cultural, ou ambição de uma história total, que o trabalho do historiador é fazer escolhas, é recortar e delimitar sua escrita. Nesse processo, o que é importante ser lembrado e por outro lado, esquecido, faz parte da operação de escrita da narrativa histórica, logo, não é algo natural. As escolhas que organizam os fatos e que os dá inteligibilidade estão ligadas diretamente as nossas preocupações no presente.

Dito de outro modo, como escrever uma história das sociedades indígenas a partir de documentos deixados por homens que tinham interesses em perpetuar imagens estereotipadas, preconceituosas desses sujeitos? Pensando nessa tarefa, o historiador John Monteiro procurou refletir sobre as dificuldades que os historiadores apontavam para não estudar a história dos índios. Para ele, o principal obstáculo não estava nas fontes, uma vez que pela desconstrução do discurso, pela comparação de fontes, pelo crivo do trabalho historiográfico, juntamente com o auxílio de outras disciplinas, como a Antropologia, é possível analisar esses documentos com o rigor necessário para se pensar os índios na história. Mas o problema era o recorte escolhido, o objeto, as escolhas que por muito tempo, pelo menos até a década de 80, não se interessavam em pensar os índios para além da “teoria do extermínio”, o que condenou estes a uma eterna derrota, tanto no passado, como no presente (MONTEIRO, 2001).

Hoje podemos afirmar que tem se consolidado uma historiografia preocupada em inserir os povos indígenas na história e romper com o velho paradigma da “extinção”. É importante que mais trabalhos vasculhem esse passado fragmentado e dinâmico da atuação dos povos indígenas na formação do Brasil. Para isso, é

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importante pensar nas experiências regionais, nas formas diversas e possíveis em que as relações interétnicas entre índios, negros e brancos se fizeram. Um olhar profundo sobre essas relações nas vilas de Nova Almeida e Santa Cruz poderá nos ajudar a visualizar melhor a complexidade desse processo.

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BURKE, Peter. O que é história cultural?. Tradução de Sergio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

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Por ser pobre e cativo: demandas aos governadores da capitania do Espírito

Santo para arbitrar relações senhoriaisThiara Bernardo Dutra1

IntroduçãoAo levantar o problema em torno da interferência do Estado

nas relações escravistas recorreu-se ao estudo das autoridades governamentais da capitania do Espírito Santo entre 1781 a 1821. A partir da análise das correspondências administrativas trocadas entre os diversos níveis de poder na capitania verificou-se os principais assuntos da agenda política local e imperial. Dentre os assuntos, identificou-se aqueles que se tratavam da escravidão, no qual se teve acesso às demandas que chegavam aos governadores da capitania. Na presente comunicação apresentamos, três casos encontrados na documentação que se referem basicamente a demandas envolvendo escravos, em que as autoridades da capitania eram reconhecidas como árbitros desses conflitos. Em face do número reduzido, buscou-se na historiografia as interpretações mais pertinentes para a compreensão dos casos analisados.

Através da documentação analisada observou-se que a resolução dos embates referentes à escravidão, limitava-se às autoridades locais e governamentais da capitania, diante do baixo percentual de correspondências trocadas com o Conselho Ultramarino sobre o tema. Além disso, as correspondências referentes às demandas foram todas confeccionadas no âmbito interno da capitania, pelos agentes da governança ou elementos da sociedade capixaba. Esses registros encontram-se no livro de Correspondências recebidas pelo Governo da Capitania, que parece ter funcionado como importante canal de comunicação entre a população, as autoridades locais e o governo.

1 Mestre em História.

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As demandas Em certa contenda entre vizinhos sobre a questão dos

limites de suas propriedades, em Campo de Minas, distrito da vila de Victoria, no ano de 1800, encontramos alguns escravos solidários às ações criminosas de seu senhor. A falta de demarcação judicialmente definida dos limites territoriais das propriedades, nomeados de “indivisos”, parece ter motivado conflitos entre os habitantes da capitania, ao longo do período colonial.2 Os escravos aparecem na acusação como capangas de seu senhor, o padre João Gomes de Aguiar, responsabilizados por coagir os suplicantes e causar prejuízos à vizinhança por matarem algum gado. A denúncia fora feita por morador daquele lugar e para averiguar a situação fora designado o coronel da Companhia de Caçadores, José Furtado. O oficial observou ser procedente estar “alguns vizinhos queixosos” de um escravo que pertencia ao pároco. Mas, ao perguntá-los se sabiam se era o padre quem “mandava fazer o dito malefício” não souberam responder (APEES, 004, doc. 01).

Diante da incompletude da documentação, não se sabe o desfecho da contenda. No entanto, as palavras utilizadas pelo coronel são representativas da sua compreensão acerca da contestação. Ao utilizar-se do vocábulo “queixoso”, o coronel esclarecia a gravidade da situação, haja vista que estes vizinhos se encontravam ofendidos e, por isso, lançaram mão da querela ao governador a fim de resolverem a demanda. Ao passo que o emprego do termo “malefício” era indicativo do “dano que se faz a alguém” e aplicado em referência a crimes, sendo passíveis de punição e até prisão (SILVA, 1789, p. 251). Não se pode afirmar que as ações criminosas do religioso e seus cativos tenham sido punidas. Mas, na sentença expressa, o oficial não parecia condescendente com os procedimentos denunciados.

Ao estudar a região de Campos de Goitacazes, entre 1750 e 1808, Silvia Lara detectou a ocorrência de conflitos fundiários que contaram com a participação de escravos. Os cativos constituíam

2 A desorganização fundiária fora denunciada pelos governadores Silva Pontes (1800-1804) e Francisco Alberto Rubim (1812-1819).

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instrumentos importantes não só para a manutenção, como também para a defesa das propriedades, “podiam transformar-se, segundo as necessidades senhoriais, numa espécie de milícia particular” (1988, p. 200), encarregada, inclusive, da execução de atentados àqueles que se colocavam contrários ao interesse de seu amo. No entanto, Silvia Lara adverte para o fato de que alguns senhores reconheciam a responsabilidade dos escravos sobre seus atos, abrindo espaço para a existência de limites ao poder senhorial. Visto que “permitia ao escravo ‘julgar’ o acerto ou não da ordem recebida e decidir se devia ou não a executar” (1988, p. 203). Não obstante ao reconhecimento dos “direitos”, parece ter sido a escolha dos escravos orientada pela manutenção da sua sobrevivência, dessa forma, reiterava-se o próprio domínio senhorial.

Como poderia o escravo ter sua condição jurídica de propriedade e, ao mesmo tempo, ser responsabilizado por suas ações, ou ainda, ter alguns direitos reconhecidos pelos seus donos? Apesar da aparente incompatibilidade, o escravo “era reconhecido como uma propriedade com faculdades humanas” (CAMPOS, 2003, p. 37). A admissão da humanidade escrava deve-se ao fato de que a legislação portuguesa se ancorou no Direito romano a fim de conceder as bases legais para a escravidão em seus domínios. Essa apropriação feita em Portugal explica o fato de que, em suas colônias, as relações senhoriais tenham tomado contornos específicos.3

Além dos castigos físicos, constrangimentos e coerção, o reconhecimento de certos direitos aos escravos parece ter figurado como um mecanismo sutil de dominação por parte dos senhores (VOLPATO, 1996, p. 218), ao mesmo tempo em que possibilitou a ampliação dos espaços de liberdade aos escravos. A oportunidade de se casar e constituir família, o acesso a um pedaço de terra e a comercialização do excedente da produção, a mobilidade e, em última instância a aquisição da liberdade por meio das manumissões foram mecanismos utilizados que ajustaram as relações cotidianas entre senhores e escravos em toda a América portuguesa.

3 Para uma comparação com outras áreas escravistas fora dos domínios de Portugal ver: CAMPOS, 2003; MARQUESE, 2004.

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Esses mecanismos possibilitaram a existência de formas de organização no interior das relações cotidianas fora dos padrões imaginados para a escravidão. Exemplo disso foi o caso narrado pelo índio José de Barcellos, morador no sítio da Passagem, na vila da Victória, nos dois requerimentos por ele protocolados na Secretária de Governo. De acordo com o índio, ele fizera um acordo com Francisco dos Banhos, para se casar com uma escrava e lhe assistir ao que fosse necessário. Todavia, passados 15 anos, Francisco dos Banhos não lhe ressarciu os custos com alimentação, parto e curativo que teve com sua esposa e os seis filhos que geraram. Além da dívida, Francisco estava a vender seus filhos para outros proprietários de escravos ao contrário do que fora acordado. Ao ficar no “desembolso de que tem gasto” José de Barcellos recorreu ao patrocínio do ilustríssimo senhor governador, para que o suplicado “lhe satisfaça o que lhe deve, ou aliás lhe deixe seus filhos, como tratou” (APEES, 004, doc. 212).

A ação do governador foi despachar o ofício para que o juiz ordinário da vila examinasse o alegado e deferisse ao suplicante o que lhe fora de direito. No entanto, dois dias depois, o suplicante retornara à Secretária e fizera uma segunda queixa. Em sua súplica relatava que Francisco dos Banhos, diante da autoridade judicial, teria negado o compromisso firmado com ele, por estar bem aconselhado pelo seu sogro, João Correia e por João Ignácio Roiz, um dos compradores de seus filhos. Alega também que o auto confeccionado pelo juiz consta ter o suplicante desistido da ação. O fato, porém, foi que o dito João Ignácio o ludibriou, “prometendo dar quatro dobras” valor referente à compra. Mesmo não sendo de seu interesse desistir, parece ter aceitado. Mas, recebera apenas “bordoadas” por ter procurado o auxílio do governador, sendo vítima de conspiração do sogro do suplicado. Ao relatar o ocorrido, José de Barcellos justifica o motivo pelo qual recorreu mais uma vez à mercê do dirigente da capitania, alegando não ter condições de sustentar uma demanda judicial por ser homem pobre, ainda mais contra aquelas pessoas que “com seu dinheiro” fazem “o que bem lhe parecer” (APEES, 004, doc. 151).

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Infelizmente, não se teve acesso ao desfecho dessa situação. No entanto, esses documentos suscitam algumas indagações. Antes, porém, é necessário salientar que a dita Maria quando casara e após a maternidade vivia na condição de cativa, entretanto, já em 1812 parecia gozar de sua liberdade.4 A primeira questão refere-se ao direito de o escravo se casar, nesse aspecto, o caso ganha maior relevo por se tratar de casamento misto, entre índio5 e escrava, indivíduos que ocupavam diferentes lugares dentro da estratificação social. Em 1707, com a promulgação das Constituições Primeiras do Bispado da Bahia, concedeu-se ao escravo o direito de se casar, podendo unir-se a seus pares ou a pessoas de outras categorias sociais, sem o impedimento de seus senhores que “nem por este respeito os podem tratar pior, nem vender para outros lugares remotos, para onde o outro, por ser cativo, ou por ter outro justo impedimento o não possa seguir” (CONSTITUIÇÕES, 1853, p. 303). A Igreja Católica, com essa medida, incluiu a escravaria ao sacramento do matrimônio. Prática, a propósito, existente no Espírito Santo. Em relação aos casamentos mistos, a historiografia aponta que o matrimônio, entre escravos e indígenas, fora uma realidade na sociedade colonial.

Teria sido o casamento forjado pelo senhor ou uma escolha dos noivos? Não se tem informação de como se deu o enlace entre José de Barcellos e a cativa Maria. No entanto, quanto aos interesses envolvidos em torno do matrimônio, pode-se conjecturar que os três poderiam ser beneficiados. No tocante à escrava Maria, a relação conjugal com um indivíduo livre possibilitava a permeabilidade entre os mundos da escravidão e liberdade, o que se confirma pela condição de liberta em que vivia em 1812, quinze anos após a sua união. O que teria possibilitado sua liberdade, também não se sabe, possivelmente fora comprada por seu esposo, ou barganhada entre

4 Conforme o princípio vigente no Direito romano, “partussequiturventrem”, os filhos dos escravos herdavam a condição da mãe (CAMPOS, 2003, p. 47), ou seja, no momento em que os filhos de Barcellos nasceram sua esposa ainda vivia na condição de escrava, mesmo após a alforria, eles continuaram cativos.

5 A partir da segunda metade do século XVIII, os indígenas foram inseridos na sociedade colonial como indivíduos livres, a civilização dos índios esteve na pauta dos ministros Sebastião de Carvalho e Mello e d. Rodrigo de Souza Coutinho.

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ele e seu senhor, em troca de prestações de serviços, ou ainda, fruto do trabalho do casal no sítio que lhes pertencia. Por sua vez, o índio José de Barcellos poderia ver em Francisco dos Banhos um possível apadrinhamento, visto que, por ser proprietário de terras e homens, gozava de certo status e distinção dentro dessa sociedade. Por fim, a Francisco dos Banhos, o enlace contribuiria para a reprodução do seu plantel, ao mesmo tempo em que dividiria com outrem os custos da manutenção de seus cativos.

Francisco dos Banhos não aparentava ter grande propriedade, aliás, na virada do século XVIII para o XIX, houve o predomínio de pequenas e médias escravarias nesta capitania. Não obstante a sua riqueza, parece que ele soube utilizar o capital simbólico para constituir uma rede de solidariedade com os principais da terra. Haja vista que um dos compradores dos cativos fora Francisco Pinto Homem, um potentado local. Não é difícil imaginar que Francisco dos Banhos tenha se aproveitado do status que detinha perante a sociedade a fim de defender seu interesse, qual seja, a propriedade escrava. Teria ele criado uma rede que o ligava a membros da elite política e econômica locais nesse intento? Ou teria sido artimanha do índio que se sentiu no direito de ter a tutela de seus filhos? A documentação fornece apenas indícios do que ocorrera, ainda assim, através dos sinais deixados é possível vislumbrar a complexa realidade social que se configurou a partir da “expansão do Antigo Regime em perspectiva atlântica” (MATTOS, 2001, p. 155).

A complexidade das relações cotidianas na capitania intensifica-se ao se deparar com documento em que o próprio escravo entrou com recurso na Secretária de governo. Foi o caso do escravo Paulo, da fazenda de Nossa Senhora do Carmo, que em 19 de setembro de 1814 entrou com pedido contra Joaquim de Sant’Anna a fim de receber o que lhe era devido. No requerimento o cativo afirmou ter vendido “um quartel de mandioca a Manoel da Silva Soares, por preço de meia dobra” e por pagamento recebera uma “vaca prenha”. O “trato” firmado era que a vaca ficaria “no mesmo cercado” do comprador. Logo que esta procriou o escravo

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fora avisado para ir ver a sua vaca e a “cria fêmea” que havia parido (APEES, 004, doc. 287).

Com a morte de Manoel, no entanto, a situação tomou contornos diferentes. Este declarara “a seus herdeiros que não só era aquela vaca e cria do suplicante como também a conservassem no cercado”, e assim “o fizeram, e passando esta a parir segunda cria logo o testamenteiro e herdeiro que é Joaquim de Santa Anna fez aviso na mesma forma que o seu pai” ao suplicante. Mas, desta vez, lhe fora pedido que levasse os seus animais para outro lugar. A providência tomada por Paulo fora pedir a seu senhor a permissão para alocar seu gado na fazenda em que vivia. Com a concessão da licença, fora até a propriedade de Joaquim de Sant’Anna, mas, chegando ao local o testamenteiro e herdeiro tentara burlar o acordo e não quisera dar “o que lhe pertencia, mas antes o desenganou que nada tinha, e que lá não tornasse nestes termos” (APEES, 004, doc. 287).

Diante disso, o suplicante, por ser pobre e cativo, recorreu à respeitável presença do governador para que lhe fosse entregue a sua vaca e cria. Alegando ter como prova o próprio testamento deixado pelo pai do suplicado. A ação do governador fora despachar uma ordem ao Comandante do distrito miliciano para que sem perda de tempo examinasse o alegado, entregando ao suplicante o que ele diz ser seu. Após a averiguação, Ignácio Francisco Meirelles informou ao governador Francisco Alberto Rubim, em 2 de novembro de 1814, a veracidade do exposto pelo escravo e a resolução da altercação entre as partes mediante o pagamento de nove mil réis, valor referente ao gado(APEES, 004, doc. 288).

A concessão de um pedaço de terra aos escravos e a oportunidade de comercializarem o excedente da sua produção exemplifica um dos direitos consentidos aos cativos. Esse costume parece ter sido arraigado na capitania, haja vista o reconhecimento dessas relações por parte do governador, Francisco Alberto Rubim, representante do poder central em terras capixabas. Conhecida como “brecha camponesa”, essa relação fora identificada por Ciro Flamarion Cardoso (1987), que empregou a expressão para

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denominar as atividades agrícolas à margem da plantation. Em um sentido restrito, o termo designou também, a economia de subsistência feita pelos escravos por meio da doação de pequenos lotes de terra pelos senhores. Nessa linha, Stuart Schwartz, observou a “brecha” como direito concedido pelo senhor. Aos escravos, no contexto baiano analisado pelo brasilianista, era permitido período de folga, geralmente aos domingos, o qual os cativos utilizavam em benefício próprio. O acerto apresentava-se como mecanismo de dominação, uma vez que “o escravo que é proprietário não foge nem provoca desordem ampla” (SCHWARTZ, 2001, p. 100).

Flávio dos Santos Gomes informa que, via de regra, nas fazendas beneditinas da província do Rio de Janeiro, os cativos “tinham o costume de possuir pequenas roças e até mesmo gado” (1996, p. 280). Além disso, observava que lhes era permitido comercializar os excedentes produzidos, o que se fazia, provavelmente, com taberneiros, outros cativos, quilombolas ou até com os próprios monges. A realidade vivenciada pelos escravos beneditinos aproxima-se daquela experimentada pelo escravo Paulo. Teriam, os carmelitas visão semelhante aos beneditinos no tocante à escravidão? Ao que tudo indica parece ter os religiosos dispensados a seus escravos tratamento benéfico. Vale ressaltar que o comportamento do escravo Paulo encontra eco em outras partes da América portuguesa. Ao negociarem seus produtos, os escravos aproximavam o universo da escravidão e da liberdade, realizando contatos, tanto com seus pares, quanto com homens livres, sejam pobres ou proprietários. Ao procurarem “desenvolver, na medida do possível, sua economia própria” os escravos agiam de maneira a conquistar e alargar “seus espaços de autonomia” (GOMES, 1996, p. 281-283).

Algumas vezes, porém, esses espaços construídos pelos cativos eram limitados pela ação dos oficiais militares, por exemplo, incumbidos de manter o controle da ordem social. Como no caso que fora exposto pelo Comandante Luís José da Costa. Ao fiscalizar a venda de farinha na barra da vila do Espírito Santo, em 1 de novembro

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de 1813, comunicou a prisão do escravo Cipriano, pertencente ao Coronel Bernardino Falcão de Gouveia Vieira Machado, que estava envolvido na “dita venda”. Este fora remetido preso à presença do regente da capitania pelo cabo de esquadra Joaquim José de Jesus (APEES, 004, doc. 112). No entanto, não se sabe se o escravo estivera vendendo a farinha por conta própria ou a mando de seu senhor.

Considerações finaisO contato com a documentação permitiu observar que as

relações cotidianas entre senhores e escravos foram marcadas “pela tolerância de algumas práticas dos cativos” (FERREIRA, 2011, p. 36). Verificou-se também, que as demandas aos governadores, além de variadas, partiram de escravos que sentiam lesados em seus acordos, da população livre, de elementos que configuravam a camada dos homens pobres da capitania do Espírito Santo. Não se encontrou na documentação, nenhum homem abastado requisitando o auxílio das autoridades governamentais. Essa constatação um tanto singular coloca em questão o fato de que, geralmente, o poder político caminhava de mãos dadas com o poder econômico. Ademais, reforça a natureza mais privada das relações escravistas que se apresentam bastantes seguras para os dirigentes, que apenas arbitraram as demandas, quando solicitados, na maioria das vezes, por aqueles que não tinham condições de sustentar uma demanda judicial.

Em vista do caráter mais privado da escravidão brasileira, o recurso às autoridades por homens livres pobres, índios ou cativos chama atenção para a proximidade dessas pessoas para com as instituições coloniais. O que, segundo António Manuel Hespanha, seria a “politicidade” da vida cotidiana (HESPANHA, 2012, p. 125). A proximidade entre a política e o cotidiano era decorrente do próprio caráter microscópico das unidades políticas coloniais. O acesso da população menos abastada, livre ou escrava, aos agentes do poder central na capitania aparece mais expressiva quando se

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observa a documentação que trata de forros e libertos.6 Para além do entrelaçamento entre o público e o privado, a aproximação entre essa população e os governadores, parece encontrar explicação também na forma como se constituiu a própria monarquia corporativa portuguesa.

Caracterizada pela partilha entre o poder real e os poderes locais, por certa limitação do direito legislativo da Coroa pela doutrina jurídica e o uso de práticas jurídicas locais assentadas no costume e, especialmente, no tocante à questão, pela cessão dos deveres políticos perante os deveres morais ou afetivos, a saber, a gratidão, a graça, a lealdade, a piedade (HESPANHA, 2001). Ainda que a sociedade lusa e seus domínios ultramarinos se apresentassem hierarquizados em categorias sociais, todos os indivíduos que compunham o corpo social eram vassalos do Rei. A assertiva encontra fundamento na documentação por hora analisada. A exemplo do posicionamento do juiz ordinário da vila da Victoria, Francisco Xavier Nobre, em referência a uns escravos sublevados que estavam detidos, ele afirmou que “apesar de serem escravos, também são vassalos de S A R” e, por isso, “merecem toda a proteção” (APEES, 004, doc. 38).

Apesar de modesto, o arbítrio dos dirigentes da capitania se deu não só na resolução de alguns conflitos cotidianos pertinentes às relações senhoriais, como também no controle da mobilidade escrava e no combate e repressão quando da ocorrência de fugas, sublevação e formação de quilombos, que não cabem aqui discorrer.

ReferênciasARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO.

Série Accioly. Correspondências recebidas pelo governo do Reino. Cartas manuscritas avulsas, livro 004 (1787-1814).

6 Entre os anos de 1800 a 1814 foram encontrados 10 requerimentos de indivíduos da população de cor, especialmente, pardos, à Secretaria do governo da capitania solicitando ao governador que arbitrasse em favor da resolução de conflito cotidianos. Esse número perfaz 8% do universo total de 124 documentos referente à escravidão. In: APEES, Correspondências recebidas pelo Governo da Capitania (1787-1814), livro 004.

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CAMPOS, Adriana Pereira. Nas barras dos tribunais: Direito e escravidão no Espírito Santo do século XIX. Tese (Doutorado em História) apresentada no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2003.

CARDOSO, Ciro Flamarion. Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Brasiliense, 1987.

CONSTITUIÇÕES Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas, e ordenadas pelo Ilustríssimo, e Reverendíssimo Senhor D. Sebastião Monteiro da Vide: propostas e aceitas em o Synodo Diocesano, que o dito Senhor celebrou em 12 de junho do ano de 1707. São Paulo: Typographia 2 de dezembro de Antônio Louzada Antunes, 1853. p.303. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/222291> Acessado em: 29 set. 2015.

FERREIRA, Ricardo Alexandre. Crimes em comum: escravidão e liberdade sob a pena do Estado imperial brasileiro (1830-1888). São Paulo: Unesp, 2011.

GOMES, Flávio dos Santos. Quilombos do Rio de Janeiro no século XIX. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, cap. 11.

HESPANHA, António Manuel. A constituição do império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Cap. 5.

HESPANHA, António Manuel. Caleidoscópio do Antigo Regime. São Paulo: Alameda, 2012.

LARA, Sílvia H. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

MATTOS, Hebe Maria. A escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo Regime em perspectiva Atlântica.

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In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Cap. 4.

SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portuguesa – recompilado dos vocabulários impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado. Lisboa: TypographiaLacerdina, 1789.

SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001.

VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Quilombos em Mato Grosso: resistência negra em área de fronteira. In: REIS, João José e GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, cap. 9.

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Raízes brasileiras de Thomas MannWander Luiz Demartini Nunes1

A trajetória do artistaThomas Mann foi o segundo filho em uma família de cinco

irmãos. Heinrich Mann, o irmão mais velho de Thomas foi outro conhecido escritor alemão, com quem por vezes manteve uma relação amistosa, e por outras conflituosa como durante o período da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), quando Heinrich adotou um posicionamento crítico quanto à postura alemã, ao passo que Thomas foi um ferrenho defensor da causa germânica, como é possível observar em seus escritos do período como Pensamentos na Guerra e Considerações de um Apolítico. No primeiro texto, Thomas afirma, por exemplo, que os alemães lutavam pelo próprio direito de existirem enquanto alemães, e exaltava a guerra afirmando que:

Toda a beleza e virtude da Alemanha – nós o pudemos ver agora – na paz se poderia por vezes esquecer o quanto ela é bela. Há quem tema que a luta solene em que ela combate pelo seu grande direito à vida a pudesse fazer regredir em sua moralidade, em sua cultura? Ela sairá dela mais livre e melhor do que era. Mas não vemos também que a guerra torna maus e miseráveis os outros, os que portam as insígnias de povos civilizados? Onde está agora a dignidade da Inglaterra? Ela mente tanto que nós nos envergonhamos por ela. E a França? Sua generosidade não afunda numa embriaguez de raiva e histeria vergonhosa? Enquanto para o senso do soldado a guerra aparece como uma esfera de moralidade e honradez, quase como uma operação científica – quanta indecorosidade, quanta devassidão a civil França não considera protegida pelo seu “c’est la guerre” que deita tudo por terra? (MANN, 2010, p. 153- 154).

Posteriormente, com o fim da Primeira Guerra Mundial, o pensamento político dos dois irmãos se aproximou novamente. Ambos foram críticos do movimento nacional-socialista e obrigados depois a se exilarem na década de trinta e durante a Segunda Guerra Mundial.

1 Mestre em História pelo Programa de Pós graduação em História da Universidade federal do Espírito Santo.

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Lübeck: o Berço de Thomas MannLübeck, uma cidade hanseática no norte da Alemanha, foi a

cidade natal de Thomas Mann. A cidade que vivera seu auge entre a baixa Idade Média e a Idade Moderna entrou em declínio com as Guerras Napoleônicas, e com a construção de ferrovias voltadas para outras rotas mais importantes para a política prussiana, a qual a antiga cidade livre de Lübeck tornava-se cada vez mais dependente, ao longo do século XIX.

A família de Thomas possuía destaque na cidade. Seu avô, Johann Siegmund Mann, fora cônsul, e seu pai, Thomas Johann Heinrich Mann tornara-se cônsul na Holanda um mês após a morte do próprio pai. A firma J. S. Mann era um grande negócio de cereais em Lübeck, e o pai de Thomas expandiu consideravelmente os negócios da família, tendo aplicado dinheiro, inclusive, em empresas de navegação. Anos mais tarde, Thomas inspirou-se em sua família para a criação de seu primeiro grande sucesso: Os Buddenbook (1901). A obra gerou muita polêmica na cidade do escritor, visto que muitos sentiram-se ofendidos com a forma caricata com a qual Thomas retratou a sociedade burguesa de Lübeck. Durante muito tempo fora considerado um filho ingrato, e dessa forma o autor não foi saudado em seu próprio berço. Circulavam espécies de “chaves” para os personagens dos livros.

Encontrei a cidade muito agitada com o livro, que para alguns parecia apenas a vingança traiçoeira de um descendente, para outros, a expressão da imprudência desrespeitosa. Mas a todos parecia um preparado asqueroso com o qual um filho malcriado desgraçara sua cidade natal. Por uns tempos eu não sabia o que dizer. Tentei falar das qualidades literárias e artísticas da obra, mas eu era olhado como se tivesse perdido o juízo. Um professor do Katharineum que fora mestre de Thomas Mann gritou-me com desgosto: “Então o senhor acha que ele é um escritor ‘importante’? Eu lhe dei aulas de alemão. Era incapaz de escrever uma composição descente!” (ANTHES apud HAMILTON, 1985, p. 120).

Quando jovem, o escritor era visto como indolente e

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desinteressado, não tecia nenhuma admiração pela escola. Anos depois, tornava-se, concordassem os cidadãos de Lübeck ou não, o maior escritor da cidade. Para um melhor entendimento da relação de Mann com sua terra natal, faz-se necessário um regresso aos primeiros anos do artista.

Os Primeiros AnosComo já fora comentado, a família de Thomas Mann era de

grande importância e influência em Lübeck. Além da direção da firma J. S. Mann, seu pai, senador da cidade, assumiu em 1885 a presidência dos comitês de comércio, navegação e impostos do Senado. Seu sucesso cada vez maior com a firma e política tomavam seu tempo e acabavam por afastá-lo da rotina de seus filhos. Os dois filhos mais velhos não teriam nenhum interesse em dar prosseguimento aos negócios da família, e tanto Thomas, quanto Heinrich dariam sinais bastante cedo ao pai de que o caminho percorrido por ambos seria bem distante da trajetória traçada por ele, ao passo que o senador não dava crédito ao talento literário dos dois. “Seu poder e autoridade na pequena cidade hanseática aumentaram e o futuro de Lübeck começou a ficar em suas mãos. Infortunadamente, o futuro de seus filhos não” (HAMILTON, 1985, p. 37).

Enquanto criança, Thomas tinha seus primeiros contatos com a música por influência de sua mãe, que lia para ele contos e tocava sempre o piano. A casa dos Mann também era o centro de uma vida social, com a realização de bailes e festas. Desse modo, a tendência artística de Thomas Mann originava-se em seu lado materno. Seu irmão, Heinrich, ao demonstrar ao pai que não o sucederia na firma da família, fazia com que a responsabilidade recaísse sobre Thomas, que também não aspirava tal herança. Tudo isso ocorria, para a tristeza do senador, em um momento quando a firma completava o seu primeiro centenário. Thomas Johann Heinrich Mann e Julia da Silva Bruhns tiveram também duas filhas, Julia Elisabeth e Carla Augusta, além de um filho temporão, Carl Viktor Mann, o qual poderia ter sido uma opção para os planos do senador, com a

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rejeição de Thomas e Heinrich, mas o tempo que restava ao patriarca da família Mann era bastante curto para que pudesse ter aplicado seu filho mais novo aos negócios.

Na tentativa de modificar as aspirações de seu filho mais velho, o senador enviara Heinrich a Dresden para que trabalhasse como aprendiz de livreiro, enquanto Thomas aprendia violino em casa e criava seus conflitos na escola. O jovem não possuía qualquer apreço pelo ambiente escolar e nem seus professores por ele. Thomas via na escola uma instituição completamente opressiva e sem sentido. Para ele a escola não possuía a função de criar homens livres, mas sim servos, a escola seria um local para o treinamento da obediência, e o tipo de literatura que encontrava em si mesmo era algo que se opunha a tudo isso. “A escola era, na verdade, uma regra do medo” (MANN apud KURZKE, 2002, p. 21). Comportava-se extremamente mal e caçoava dos professores, fazendo imitações de seus mestres entre os colegas. “Eu desprezava a escola, desprezava-a como um meio. Criticava a maneira como era liderada, e logo no início encontrei-me em uma oposição literária ao seu espírito” (2002, p. 22). O jovem Thomas Mann teve interesse por poucas disciplinas, porém, temas relacionados à literatura exerciam atração sobre ele. Buscava tornar-se uma autodidata em literatura alemã, mergulhando nas obras de Schiller e Heine.

Mesmo sem nenhum resquício de intenção de suceder seu pai nos negócios da família, Thomas sentia algum remorso enquanto acompanhava as saudações em Lübeck ao senador. A firma completava cem anos, o que foi motivo para diversas celebrações na cidade. Mas, pouco depois, seu pai adoeceu e foi obrigado a submeter-se a uma cirurgia. Durante o procedimento descobriu-se que possuía um câncer na bexiga, mas sua morte, em outubro de 1891 deu-se em circunstâncias não muito claras. O próprio Thomas Mann teria afirmado que o pai morrera de septicemia. O senador não perdeu no fim da vida sua precaução de negociador, e antes mesmo da cirurgia a qual seria submetido, havia redigido um novo testamento. Sua falta de perspectiva na sucessão de um dos

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filhos nos negócios da família fez com que ordenasse, em caso de sua morte, a liquidação da empresa. No testamento também foram estabelecidas as diretrizes a serem seguidas pelos tutores de seus filhos, que deveriam ainda tentar evitar suas inclinações literárias, as quais não despertavam esperança no senador, e apareciam também conselhos para a sua viúva.

Tanto quanto possível, eles devem se opor às inclinações de meu filho mais velho para a assim chamada atividade literária, atividade [para a qual] acho que ele não apresenta os requisitos: estudo adequado e conhecimento amplo (...). Meu segundo filho é predisposto a ideias mais dóceis, tem um bom temperamento e certamente encontrará uma boa profissão. Posso esperar que ele garanta o sustento da mãe. Julia, minha filha mais velha, precisa de rígida supervisão. Seu temperamento agitado precisa ser constantemente controlado. Acredito que será mais fácil lidar com Carla e, ao lado de Thomas, ela trará um componente de tranquilidade. Nosso pequeno “Vikko” – Deus o proteja. Crianças temporãs muitas vezes são intelectualmente favorecidas – e ele tem olhos tão bondosos. Possa minha esposa demonstrar firmeza com todos e mantê-los sempre sob controle. Para os momentos em que vacilar, recomendo a leitura de Rei Lear (SENADOR MANN apud PRATER, 2000, p. 33).

Dois anos após a morte do marido, Julia mudou-se para Munique, onde encontraria um ambiente mais liberal do que o de Lübeck. Em Munique Julia participava de bailes de carnaval e chegava a ser mais cortejada do que suas próprias filhas mais novas, como teria ocorrido inclusive com o futuro marido de sua filha mais velha. “O círculo dos frequentadores da casa da ‘Senhora do Secretário de Estado Mann’ teria desagradado os conhecidos de Lübeck e escandalizado seu finado marido” (MISKOLCI, 2003: 27).

Enquanto isso, Thomas permanecia em Lübeck para terminar seus estudos no Katherineum. Foi nesse período que Mann conseguiu pela primeira vez uma publicação de seus escritos na imprensa. Quanto à escola, os professores pareciam aceitar o caráter difícil de Thomas e não procurava realizar qualquer interferência, e o resultado de seu boletim final foi o suficiente para Thomas, relatando um empenho e atenção satisfatórios. Sobre a escola Mann comenta que: “Ela me deixava entregue ao meu destino, que ainda me parecia

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obscuro, mas cuja a incerteza não conseguiu me abater, já que eu me sentia esperto e saudável” (MANN apud PRATER, 2000, p. 36). Em seguida, Thomas se juntou à família em Munique.

O tutor de Thomas Mann encontrou para ele um trabalho em um escritório de seguros contra incêndio. Era uma atividade sem remuneração, com o intuito de afastá-lo de seus sonhos literários. Porém, durante seu expediente o que Thomas realizava era na verdade anotações para textos e romances, com os quais esperava que sua mãe percebesse sua vocação e o deixasse livre da vida comercial, e foi com a ajuda do advogado de sua mãe que obteve sucesso. Mas antes, Thomas deveria ampliar seus estudos e chegou a matricular-se em um curso como visitante para se tornar jornalista. Nesse momento, importantes leituras sobre artes, história e filosofia foram feitas, além disse, teve também desperto um surpreendente interesse pela economia.

Nesse período Thomas publicou sua primeira novela, Gefallen, a qual lhe rendeu elogios do poeta Richard Dehmel. Fez também suas primeiras viagens à Itália, juntamente com Heinrich, para onde retornou no ano seguinte para permanecer por aproximadamente um ano e meio. Foi nessas primeiras visitas à Itália que Thomas conheceu Palestrina, a cidade onde em seu romance, Doutor Fausto, o protagonista Adrian Leverkühn selou um pacto com o demônio. Em Roma, Thomas escreveu seu conto O Pequeno Senhor Friedmann e enviou ao editor Samuel Fischer na Alemanha, o qual pediu-lhe então mais contos para que fossem publicados.

Em sua juventude, a figura de Heinrich afigurava-se como um referencial para Thomas. O caminho que ainda esperava seguir, já era de certa forma percorrido pelo irmão. Thomas escrevera a Grautoff, seu amigo e confidente daquela época sobre a impressão que tinha de si e de seus dois irmãos:

Heinrich já é um poeta, mas também um “escritor”, com um talento intelectual poderoso, versado em sua crítica, filosofia, política... Eu sou apenas um artista, apenas um poeta, apenas uma caricatura cheia de vontades, intelectualmente fraco e socialmente inútil. Seria surpreendente se o terceiro filho, por fim, resolvesse seguir a mais

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vaga das artes, a música? Isso pode ser chamado de degeneração, mas está diabolicamente claro para mim (MANN apud PRATER, 2000: 41).

Raízes BrasileirasPelo lado materno, Thomas Mann descendia de uma

brasileira. Sua mãe, Julia da Silva Bruhns, nascera em 1851, na floresta próxima a Paraty. Johann Ludwig Hermann Bruhns, conhecido no Brasil como João Luiz Germano, pai de Julia, fora um alemão rico que chegou ao país no começo do século XIX, antes do início das imigrações em massa para o país. Nigel Hamilton afirma que D. Pedro II teria convocado o avô de Thomas para uma audiência, tendo ficado surpreso com as ideias do alemão, que se tornou delegado imperial para o interior, “transformou o Piracicaba em rio navegável e alcançou considerável renome como homem de poucas palavras” (HAMILTON, 1985, p. 29). Johann Bruhns casou-se com Maria Senhorinha da Silva, filha de um próspero fazendeiro, o que demonstra seu sucesso econômico, pois, se fosse o contrário, dificilmente o pai da brasileira teria permitido tal união.

Cinco crianças foram fruto do casamento entre Johann Bruhns e Maria Senhorinha, dentre elas, Julia, a quarta filha do casal. A família havia se fixado na Fazenda Boa Vista em Paraty, onde a mãe de Julia morreu em 1856, no parto de seu sexto filho, que também não resistiu. O pai de Julia decidiu retornar à Alemanha algum tempo depois, em 1858, quando um surto de febre amarela chegou à região.

A educação protestante em Lübeck era de grande valor para a família, de modo que Julia perdeu gradativamente sua origem católica e em 1866 completou-se sua conversão definitiva ao luteranismo, quando ocorreu a cerimonia de sua confirmação. O pai regressou ao Brasil, onde se casou novamente, e Julia permaneceu em Lübeck, onde seus laços com sua terra de origem tornavam-se cada vez mais tênues. O português foi sendo esquecido, mas as memórias da primeira infância permaneceriam com a mãe de Thomas Mann. A origem brasileira de Julia, na visão de Thomas

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Mann, o qual considerava-se bem mais próximo de sua mãe do que de seu pai, tornava-a propensa a uma certa musicalidade.

Minha herança paterna e materna divide-se exatamente segundo o modelo goethiano: o do pai a “estatura”, ao menos uma dose disso, e “o jeito sisudo de ser”; da mãezinha”, tudo que G.[Goethe] resume simbolicamente nas palavras “alegria, candura” e a “vontade de histórias tecer”, o que nela assumia formas bem diferentes, é claro. Sua natureza pré-artistica e sensível expressava-se na musicalidade, em seu piano tocado com bom gosto e com aptidão proporcionada por uma formação burguesa consistente, e em sua refinada arte de cantar, à qual devo meu bom conhecimento da canção alemã. Ela foi levada a Lübeck ainda em tenra idade e enquanto durou lá sua lida com as obrigações da casa comportou-se como uma boa filha da cidade e de seus extratos sociais mais elevados; uma corrente interior de propensão ao “Sul”, à arte e à boemia, no entanto, jamais deixou de estar presente (MANN apud KUSCHEL, 2013, p. 34).

Sérgio Buarque de Holanda, em uma entrevista com Thomas Mann, supõe exatamente algo parecido, atribuindo não apenas um aspecto físico, influenciado pelos traços herdados de sua mãe brasileira, mas também suas qualidades de escritor. O próprio Mann confirmou a suposição de Sérgio Buarque ao afirmar que:

Sim, creio que a essa origem latina brasileira devo certa clareza de estilo e, para dizer como os críticos, um “temperamento pouco germânico”. Li apaixonadamente os clássicos alemães, os escritores franceses e russos e, especialmente, os ingleses, mas estou certo de que a influência mais decisiva sobre minha obra resulta do sangue brasileiro que herdei de minha mãe. Penso que nunca será demais acentuar essa influência quando se critique a minha obra ou a de meu irmão Heinrich (MANN apud HOLANDA, 2005, p. 255).

Sérgio Buarque de Holanda afirma ainda que só foi recebido por Mann, em meio a tantos compromissos, já que naquela ocasião acabara de receber o Prêmio Nobel de Literatura, pelo fato de o escritor alemão não desejar perder a chance de falar com um brasileiro. Sérgio Buarque de Holanda também ressalta o grande interesse de Mann pelo Brasil. “Não se cansava de indagar sobre as coisas brasileiras, sobre a nossa vida social, a nossa literatura” (1996, p. 255).

Anos mais tarde, outro escritor brasileiro que também teve

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contato com Thomas Mann foi Erico Verissimo. Em uma viagem aos Estados Unidos, fruto de uma política de boa vizinha entre os dois países quando aumentava a pressão para que o Brasil se juntasse aos Aliados na guerra, os dois teriam se encontrado. Verissimo relatou: “Tomei cerveja, burguesmente, em Denver, com Thomas Mann” (VERÍSSIMO apud KUSCHEL, 2013, p. 125). O brasileiro não levou boas impressões de Katia, esposa de Thomas, ao que parece, pelo fato de frau Mann ter expresso uma certa desconfiança relacionada aos direitos autorais das obras de Thomas Mann no Brasil. Inspirado em sua viagem aos Estados Unidos, Erico criou uma obra chamada Gato Preto em Campo de Neve (1941) o qual possui um capítulo intitulado “Thomas Mann”.

A consciência de sua origem brasileira parecia acentuar-se cada vez mais em Thomas, principalmente em seus tempos de exílio. Esse era, provavelmente, mais um ponto que permitia a Mann opor-se cada vez mais às ideias nazistas de pureza racial que tomavam conta da Alemanha. O escritor, que anteriormente em seu período pré-republicano, se não escondia sua veia brasileira, pelo menos não falava tão abertamente assim no assunto.

Enquanto Adorno observava que os olhos de Mann eram “negros e brasileiros” (ADORNO apud KUSCHEL, 2013, p. 72), por suas raízes sul-americanas, Thomas também fora considerado de origem judaica, já que sua mãe descendia de portugueses, o que para um certo Adolf Bartels o tornava a “‘mistura de sangue árabe, judeu, indiano e negro.’ De qualquer modo, os portugueses seriam ‘o pior de todos os povos europeus, do ponto de vista racial’, segundo Bartels em um artigo para o jornal antissemita berlinense Staatsbürger-Zeitung” (KURZKE apud KUSCHEL, 2013, p. 74).Thomas Mann buscava amenizar tais origens. Consta em seus diários:

Se eu fosse judeu, eu esperaria ter consciência suficiente para não me envergonhar de minha ascendência; como não sou judeu – e isso em nenhuma gota sequer de meu sangue -, não posso desejar que alguém me tome por judeu. Eu descendo de uma família hanseática nobre; meu pai fazia parte do Senado da cidade de Lübeck. (MANN apud KUSCHEL, 2013, p. 74).

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Tais ligações da mãe brasileira de ascendência portuguesa com uma origem judaica ocorriam por uma associação ao fato de que boa parte da população branca do Brasil, no período colonial, ser composta por cristãos-novos, o que transparece inclusive na obra literária de Thomas, quando descreve em A Montanha Mágica o seminário frequentado por Naphta, o qual era também de origem judaica, e diz que “existiam ali jovens provenientes de terras longínquas, sul-americanos de raça lusa, cujo aspecto era mais ‘judeu’ do que o de Leo, e dessa forma o conceito deixou de subir à tona” (MANN apud KUSCHEL, 2013: 78). Tempos depois, quando tal associação incomodava pouco a Mann, a questão ainda emergia. Em 1932 Goebbels afirmava que Thomas era “um escritor vira-lata, com sangue índio, negro e mouro” (GOEBBELS apud PRATER, 2000, p. 253). No ano seguinte começou o seu exílio, e o afastamento da Alemanha poderia tê-lo aproximado do Brasil, visto que outras figuras de destaque perseguidas pelo nazismo exilaram-se no país, como foi o caso de Stefan Zweig e Karl Lustig-Prean, um membro do Movimento dos Alemães livres do Brasil,2 o qual manteve correspondência com Thomas Mann durante vários anos, tendo chegado inclusive a pedir sua intervenção junto às autoridades americanas para que pudesse assumir o cargo de administrador do Teatro Municipal em Augsburgo, na Alemanha ocupada após o fim da Segunda guerra Mundial, ao que Mann respondeu ser impossível naquele momento, onde já não possuía o mesmo prestígio dos tempos de Franklin Delano Roosevelt. Os rumos da política nos Estados Unidos com o início da Guerra Fria o tornaram alvo do

2 Diversos movimentos de caráter anti-hitlerista surgiam entre os alemães emigrados. Na Argentina foi composto um movimento chamado “A Outra Alemanha”, unindo socialistas e social-democratas. No México surgiu o movimento conhecido como “Alemanha Livre”, de inspiração comunista. As rixas, existentes desde antes do exílio, entre socialistas, social-democratas e comunistas impediam que tais movimentos se aproximassem. No Brasil, Karl Lustig-Prean, que já havia se envolvido em movimentos de resistência de língua alemã, mesmo com todas as dificuldades existentes devido ao regime de Vargas, tornou-se um dos presidentes de honra, ao lado de Heinrich Mann, do movimento latino-americano dos Alemães Livres. Porém, não consta que Lustig-Prean, um antigo representante do setor católico progressista na Áustria, tenha se tornado de fato um comunista (KUSCHEL, 2013: 110 – 114).

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Comitê de Atividades Antiamericanas, e em 1952 Thomas Mann partia para um novo exílio na Suíça.

Mann agradeceu a Lustig-Prean pelas informações sobre o Brasil, país de sua mãe. Teria sido justamente do Brasil a primeira imagem de uma terra estrangeira formulada pelo escritor, através de Julia, que sempre relatava aos filhos as memórias de sua primeira infância. Como exilado, como alguém que perdera sua “terra pátria”, Mann afirmava que deveria buscar realizar uma visita à sua “terra mátria”.3 Porém, o escritor nunca chegou a conhecer a terra de sua mãe.

O Movimento dos Alemães Livres é mais velho do que sua existência oficial. No entanto, eu também gostaria de dar as congratulações e agradecer a seus dirigentes e membros do movimento por sua atividade, que contribui para manter no mundo a fé na existência de uma Alemanha melhor, pelo dia em que, um ano antes, a mais alta autoridade do país concedeu-lhe seu reconhecimento. O agradecimento se dirige também ao país imenso e acolhedor que lhes oferece proteção e liberdade de atuação, ao qual me sinto ligado por laços sanguíneos. Cedo soou em meus ouvidos o louvor de sua beleza, pois minha mãe veio de lá, era uma filha de terra brasileira; o que ela me contou sobre esta terra e sua gente foram as primeiras coisas que ouvi sobre o mundo estrangeiro. Também sempre estive consciente do sangue latino-americano que pulsa em minhas veias e bem sinto o quanto lhe devo como artista. Apenas uma certa corpulência desajeitada e conservadora de minha vida explica que eu ainda não tenha visitado o Brasil. A perda de minha terra pátria [mein Vaterland] deveria constituir uma razão a mais para que eu conhecesse minha terra mátria [mein Mutterland]. Ainda chegará essa hora, espero. (MANN apud KUSCHEL, 2013, p. 258)

As origens brasileiras de Thomas Mann não passavam despercebidas a outros intelectuais do Brasil. Lustig-Prean relatou a

3 “A expressão não é uma invenção de Mann. Em Alemão, ela também significa simplesmente ‘metrópole’. É usada, portanto, para descrever a relação de países com suas colônias. Diz-se, por exemplo, que as colônias americanas ter-se-iam desagregado de sua Mutterland Grã-Bretanha. Ou então denomina-se Mutterland um país conde algo surge ou se consolida, torna-se o ‘berço’ de algo. A Inglaterra, por exemplo, é conhecida nesse sentido como a Mutterland do parlamentarismo, e a Grécia da democracia. Com sua analogia, Thomas Mann tinha em vista o cerne político de sua argumentação. O Brasil como sua terra mátria, seu Mutterland, representava para ele naquele momento o oposto do que lhe impingia sua pátria, seu Vaterland”. In KUSCHEL, 2013, p. 118.

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Thomas que Gilberto Freyre falava à Academia Brasileira de Letras da necessidade de convidá-lo para uma visita ao Brasil, para que pudessem honrar o escritor alemão, fazendo com que fosse revelado ao mundo que este era também “meio-sangue brasileiro”. Segundo Freyre, se Rio Branco estivesse no Itamaraty, o nome de Thomas Mann jamais teria deixado de ser associado ao Brasil, e, no entanto, o escritor já passara dos setenta anos sem que nunca houvesse pisado em terras brasileiras. Para Freyre, Mann deveria ser honrado na terra natal de sua mãe, tal como o fora em outros reinos e países, por chefes de Estado e cardeais. Freyre deixava transparecer em seu artigo publicado no jornal Diário de Notícias, de 26 de outubro de 1947, intitulado “Thomas Mann, filho de brasileira”, que o governo brasileiro perdia ótima oportunidade. Segue um trecho do artigo:

A Academia Brasileira de Letras há de permitir que eu lhe dirija a palavra, do subúrbio de província onde resido, não para pedir-lhe uma graça ou sequer um obsequio e sim para recomendar às suas homenagens um grande escritor moderno nascido na Alemanha, mas descendente de brasileiro; e que, entretanto, parece não ter merecido ainda do governo do nosso país um simples convite para aqui realizar conferencias; nem da Academia de Letras, a solene demonstração de que o Brasil se sente um pouco dono da figura tão gloriosa da literatura moderna; um pouco responsável pelo seu enriquecimento, pela sua formação, pela sensibilidade quase de mulher que em Thomas Mann se junta a um dos talentos mais varonis que o mundo intelectual já viu. (FREYRE apud PAULINO; SOETHE, 2009)

Ao dar ciência a Thomas Mann da intenção de Freyre, Lusting-Prean também relatou para o escritor alemão de quem se tratava o intelectual brasileiro, comentando sua presença como professor visitante em universidades americanas. Afirmou que sua obra Casa Grande & Senzala possuía a mesma relevância para a América Latina que Os Buddenbrook possuía para a literatura alemã. Lusting-Prean apresentou o autor brasileiro a Thomas como Dr. Gilberto Freyre, “um dos maiores escritores do Brasil e seguramente o mais importante sociólogo da América Latina” (LUSTIG-PREAN apud KUSCHEL, 2013, p. 265).

Ao longo de sua trajetória, Thomas Mann recebera diversas

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homenagens, diversos títulos de doutor honoris causa, e diversos prêmios, dentre eles, como já foi dito, o Prêmio Nobel de Literatura em 1929. Em resposta a Lustig-Prean, Mann agradeceu mais uma vez pelas notícias do Brasil, que segundo o próprio o teriam comovido e divertido:

Sua simpática carta por sorte chegou a mim no dia 31 de outubro. Agradeço-lhe pelas notícias interessantes. O apelo do Professor Dr. Freyre divertiu-me e comoveu-me. Quase não consigo imaginar de que maneira a Academia Brasileira pudesse atender à sua conclamação. Ela deveria nomear-me membro-correspondente? Claro que seria uma honra e uma alegria para mim. É assim que se dá, no meu caso, em relação à Academia Romana dei Licei (MANN apud KUSCHEL, 2013, p. 267).

Richard Miskolci realizou um estudo acerca do impacto da consciência de uma origem ligada também ao estrangeiro, no caso, ao Brasil, na obra de Thomas Mann, resultando em uma ideia de Mischiling4 em plena sociedade alemã daquele momento. Em sua obra Thomas Mann, o Artista Mestiço, Miskolci demonstra como era a visão que se tinha do Brasil na Alemanha, diante da ótica da eugenia e da teoria dos miasmas, fortes correntes que vigoravam no momento que a mãe de Thomas chegou à Europa (inclusive a tia-avó de Julia esperava que ela e seus irmãos fossem negros) faziam com que o Brasil, com seu clima tropical, fosse visto como local de origem de diversas doenças que acometiam os países civilizados, juntamente com outras parcelas do hemisfério sul. Miskolci aponta que o Brasil não era considerado um país que fosse parte das regiões civilizadas do globo, além de estar ligado à lógica agrário-exportadora e com

4 Miskolci observa que o termo Mischling tem um sentido mais complexo do que uma simples tradução por “mestiço”. Para o autor “A categoria racial com a pior reputação provavelmente era a do Mischling, o qual era considerado único no sentido de que ele não era parte de nenhum grupo étnico. Para Mann, ser um mestiço era um problema porque esta era a causa de seu sentimento de alienação de sua sociedade. O que o incomodava não era sua aparência física, ou não apenas ela, mas principalmente a associação corrente entre origem “exótica” e ideias suspeitas, a qual ligava estreitamente corpo e mente. O que não fosse fisicamente detectado poderia ainda assim ter efeitos em sua forma de pensar, especificamente em sua visão crítica diante da sociedade burguesa (...) O Mischling ou anormal, não um indivíduo simplesmente doente, mas um irremediavelmente degenerado” (MISKOLCI, 2003, p. 110–111).

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sua formação econômica embasada também na mão de obra escrava (MISKOLCI, 2003, p. 111).

Desse modo, suas raízes brasileiras também dialogaram com os antagonismos da vida de Thomas Mann, que apesar de suas atrações homossexuais, por exemplo, buscava o casamento para reprimir tais anseios e para adequar-se à ordem burguesa, e também eram mais um fator na visão de si mesmo como um degenerado, visto que, principalmente o Thomas Mann pré-republicano, era um homem de seu tempo e de seu meio. Porém, isso alcançava um caráter positivo, visto que, para Thomas, o artista era um degenerado, e o que Miskolci buscou demonstrar em sua obra foi justamente isso: a consciência e a influência das raízes brasileiras em seus personagens e em suas obras.

A auto compreensão de Mann como um artista burguês, como um mediador entre duas esferas (ou extremos) da vida social, fez com que suas obras oscilassem entre oposições como pai e mãe, alemão e Mischling, burguês e artista, heterossexualidade e homossexualidade, saúde e doença, razão e loucura. Não a simples oposição, antes a tensão entre o ideal social e sua individualidade é a responsável pela perigosa condição do artista em sua obra. (MISKOLCI, 2013, p. 123).

Desse modo, a consciência de suas raízes também teria contribuído para uma mudança, quando após a Primeira Guerra, o autor de Pensamentos na Guerra e Considerações de um Apolítico abandonou sua linha nacionalista para se opor aos nacionalistas que pregavam a pureza racial.

Referências GAY. Peter. A Cultura de Weimar. Tradução de Laura Lúcia

da Costa Braga. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.HAMILTON, Nigel. Os irmãos Mann: as vidas de Heinrich e

Thomas Mann. Tradução de Raimundo Araújo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Thomas Mann e o Brasil. In: O Espírito e a Letra: Estudos de Crítica Literária I (1920 – 1947).

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São Paulo: Companhia das Letras, 1996.KURZKE, Hermann. Thomas Mann: life as a work of art.

Princeton: Princeton University Press, 2002. KUSCHEL, Karl-Josef. Terra Mátria: A família de Thomas

Mann e o Brasil. Karl Josef-Kuschel, Frido Mann, Paulo Astor Soethe; Tradução de Sibele Paulino. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

MANN, Thomas. A montanha mágica. Tradução Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

MANN, Thomas. Consideraciones de um apolítico. Salamanca: Capitán Swing Libros, 2011.

MANN, Thomas. Doutor Fausto. Tradução de Hebert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

MANN, Thomas. Os Buddenbrook: decadência de uma família. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

MANN, Thomas. Ouvintes alemães! Discursos contra Hitler. Tradução de Antonio Carlos dos Santos e Renato Zwick. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.

MANN, Thomas. Pensamentos na Guerra. Tradução de Mário Frungillo. Revista UFG/ julho de 2010/ Ano XII n°8.

MISKOLCI, Richard. Thomas Mann, o artista mestiço. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2003.

PRATER, Donald A. Thomas Mann: uma biografia. Tradução de Luciano Trigo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

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