comunicação e arte

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  • FACULDADE DE COMUNICAO SOCIALUERJ

    Comunicao e Artes

    18

  • LOGOS

    4 LOGOS 18: Comunicao e Artes

    CATALOGAO NA FONTEUERJ/Rede Sirius/PROTAT

    L832 Logos: comunicao e universidade. - Vol. 1, n. 1 (1990) - . -Rio de Janeiro: UERJ, Faculdade de ComunicaoSocial, 1990 -

    SemestralISSN 0104-99331. Comunicao - Peridicos. 2. Teoria da informao -

    Peridicos. 3. Comunicao e cultura - Peridicos. 4. Sociologia- Peridicos. I. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.Faculdade de Comunicao Social.

    CDU 007

  • 5LOGOS

    Ano 10, n 18, 1 semestre de 2003

    UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIROCENTRO DE EDUCAO E HUMANIDADESFACULDADE DE COMUNICAO SOCIALReitoraNILCA FREIREVice-reitorCELSO PEREIRA DE SSub-reitor de GraduaoISAC JOO DE VASCONCELLOSSub-reitora de Ps-Graduao e PesquisaMARIA ANDRA RIOS LOYOLASub-reitor de Extenso e CulturaANDR LUIZ DE FIGUEIREDO LZARODiretor do Centro de Educao e HumanidadesLINCOLN TAVARES SILVAFaculdade de Comunicao SocialDiretor: PAULO SRGIO MAGALHES MACHADOVice-diretor: RONALDO HELALChefe do Departamento de JornalismoJOO PEDRO DIAS VIEIRAChefe do Departamento de Relaes PblicasDENISE DA COSTA OLIVEIRA SIQUEIRAChefe do Departamento de Teoria da ComunicaoMRCIO SOUZA GONALVES

    LOGOS 18 Ano 10, n 18, 1 semestre de 2003Logos: Comunicao & Universidade (ISSN 0104-9933) uma publicaoacadmica semestral da Faculdade de Comunicao Social da UERJ e deseu Programa de Ps-Graduao em Comunicao (PPGC), que reneartigos inditos de pesquisadores nacionais e internacionais, enfocando ouniverso interdisciplinar da comunicao em suas mltiplas formas, objetos,teorias e metodologias. A revista destaca a cada nmero uma temticacentral, foco dos artigos principais, mas tambm abre espao para trabalhosde pesquisa dos campos das cincias humanas e sociais consideradosrelevantes pelos Conselhos Editorial e Cientfico. Os artigos recebidosso avaliados por membros dos conselhos e selecionados para publicao.Pequenos ajustes podem ser feitos durante o processo de edio e reviso

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    dos textos aceitos. Maiores modificaes sero solicitadas aos autores.No sero aceitos artigos fora do formato e tamanho indicados nasorientaes editorais e que no venham acompanhados pelos resumosem portugus, ingls e espanhol.

    Editores: Joo Maia e Denise da Costa Oliveira SiqueiraConselhos Editorial e Cientfico: Ricardo Ferreira Freitas (Presidentedo Conselho Editorial), Luiz Felipe Bata Neves (Presidente do ConselhoCientfico), Danielle Rocha Pitta (UFPE), Ftima Quintas (pesquisadorada Fundao Gilberto Freyre), Henri Pierre Jeudi (pesquisador do CNRS-Frana), Hris Arnt (UERJ), Ismar Soares (USP), Luis Custdio da Silva(UFPB), Mrcio Souza Gonalves (UERJ), Michel Maffesoli (Paris V -Sorbonne), Nelly de Camargo (USP), Nzia Villaa (UFRJ), PatrickTacussel (Univ. Montpellier), Patrick Wattier (Univ. Strasbourg), PauloPinheiro (UniRio), Robert Shields (Carleton University/Canad), RonaldoHelal (UERJ) e Rosa Lucila de Freitas (UFL).Capa: Adriana MeloEditorao: Laboratrio de Editorao Eletrnica (LED/FCS/UERJ)Reviso: Denise da Costa Oliveira Siqueira e Luana R. DiasEndereo para correspondncia: Universidade do Estado do Rio deJaneiro - Faculdade de Comunicao Social - PPGC - Mestrado emComunicao - Revista LogosA/C Prof Dr. Denise Oliveira Siqueira e Prof. Dr. Joo MaiaRua So Francisco Xavier, 524/10 andar, sala 10129, Bloco FRio de Janeiro - RJ - BrasilTelefone: (21)2587-7829E-mail: [email protected]

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    Ano 10, n 18, 1 semestre de 2003

    SumrSumrSumrSumrSumrioioioioio

    ApresentaoApresentaoApresentaoApresentaoApresentao

    Joo Maia e Denise da Costa Oliveira Siqueira 07

    ArtigosArtigosArtigosArtigosArtigos

    Comunicao e corporeidadeComunicao e experimentaes com alinguagem na performance 10Fernando do Nascimento Gonalves

    Dana contempornea: objeto de estudo da comunicao 30

    Denise da Costa Oliveira Siqueira

    A dana como estratgia evolutiva dacomunicao corporal 46Christine Greiner

    Transgresses em harmonia: contribuies dana-teatro de Laban 60Ciane Fernandes

    Comunicao e imagemDo erro de paralaxe irrealidade cotidiana 84Sandra Gonalves

    O neo-marajoara em comunicao 108Isabela Frade

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    8 LOGOS 18: Comunicao e Artes

    A potica do grafite e a visualidadedo ambiente urbano 126Charbelly Estrella

    Conexes trConexes trConexes trConexes trConexes transdisciplinaresansdisciplinaresansdisciplinaresansdisciplinaresansdisciplinares

    Msica contempornea: questes generalssimas 148Marcia Taborda

    ResenhasResenhasResenhasResenhasResenhas

    Croce e o Brevirio de esttica: um clssico 163Paloma O. de Carvalho Santos

    Perplexidade e fascnio na manipulao do corpo pela cincia 173

    Fernanda Pizzi

    OrOrOrOrOrientao editorientao editorientao editorientao editorientao editorial ial ial ial ial 180

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    Ano 10, n 18, 1 semestre de 2003

    ApresentaoLogos, comunicao e arte

    Comunicao e arte so campos que se interligamprofundamente e numerosos so os exemplos possveis,a comear pela imagem. Imagem comunicao e arte: cinema e fotografia so meios de comunicaoque exploram a imagem e suas potencialidades.Performance, dana contempornea, teatro-dana soelementos das artes cnicas que levantam questes sobreo sentido, o signo, o significado e ... a imagem.

    Em diferentes nveis, com distintas vises eintenes, vrios autores caros aos estudos da comu-nicao fizeram reflexes sobre a arte, a obra de arte,o artista e a imagem, os meios de comunicao demassa, a comunicao, enfim. Walter Benjamin,Theodor Adorno e Max Horkheimer, Umberto Eco,Gilles Deleuze, Felix Guattari abordaram emdiferentes medidas relaes entre comunicao e arte.

    A revista Logos dedica-se pela primeira vez a essetema com inteno de retom-lo depois, abrindoespao para o pensamento interdisciplinar nos estudosdos fenmenos e processos da comunicao. Arte,tcnica, gnero so conceitos que os artigos e resenhas

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    deste nmero 18 aprofundam. Os artigos enfatizamdois caminhos: comunicao e corporeidade e co-municao e imagem, em abordagens contemporneas.As resenhas enfocam um livro clssico de BenedettoCroce, O brevirio de esttica, pertinente ao tema destaedio, e outro recm-lanado e organizado por AdautoNovaes, O homem-mquina, coerente com questes queos artigos levantam. O objetivo valorizar leiturasnovssimas tanto quanto clssicas.

    A presente edio marca uma mudana nacoordenao da revista. Dr Hris Arnt, professoratitular da Faculdade de Comunicao da UERJ, volta-se para sua pesquisa acadmica. Assumem o projetoos professores Dr. Joo Maia pesquisador doprograma Procincia/UERJ e Dr Denise OliveiraSiqueira que retorna tarefa. A revista tambmassume um compromisso maior com o Programa dePs-Graduao em Comunicao da FCS e reafirmao ideal proposto pela Prof Dr Angela de Faria Vieira,primeira editora, de aproximar comunicao,universidade e sociedade agora em nvel nacional,de acordo com avaliao da Capes.

    Joo Maia e Denise da Costa Oliveira SiqueiraEditores

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    LOGOS

    Ano 10, n 18, 1 semestre de 2003

    Artigos Artigos Artigos Artigos Artigos

    Comunicao e corporeidade

  • Fernando do Nascimento Gonalves

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    Comunicao eComunicao eComunicao eComunicao eComunicao eexperexperexperexperexperimentaes com aimentaes com aimentaes com aimentaes com aimentaes com a

    linguagem na performancelinguagem na performancelinguagem na performancelinguagem na performancelinguagem na performanceFernando do Nascimento Gonalves*

    RESUMOEste artigo discute a comunicao no contexto das artes, particu-larmente no mbito da performance, gnero artstico surgido nosanos 70, que representou um topos de experimentao com a narrativae a linguagem (cnica, corporal, textual e imagtica) e uma expe-rincia de resignificao dos cdigos culturais. Estabelecendo umaesttica problematizadora, a performance constituiu um importanterecurso que no apenas permite repensar discursos e prticas sociaiscotidianas e da arte, mas tambm pensar a comunicao para almde seu aspecto miditico.Palavras-chave: comunicao, performance, experimentao

    ABSTRACTThis article discusses communication in the arts, particularly in the domainof performance art, an artisitic genre from 1970s which represented atopos of experimentation with narrative and language (bodily, textual,visual) and of resignification of cultural codes. Establishing a problematizingaesthetics, performance art was an important resource not only to rethinkdaily and artistic discourses and practices but also to reput communicationbeyond its mediatic aspects.Keywords: communication, performance, experimentation

    RESUMENEste artculo discute la comunicacin en el contexto de las artes, particularmenteen el ambito de la performance art, genero artstico que surgi en los aos 70y que ha representado un topos de experimentacin con la narrativa y ellenguage (escnico, corporal, textual y imagtico) y de resignificacin de loscodigos culturales. Estabelecendo una esttica problematizadora, la performanceha sido um importante aporte no solamente para repensar los discursos ypracticas cotidianas y artsticas, sino tanbin para reflejar acerca de lacomunicacin para all de su aspecto meditico.Palabras-clave: comunicacin, performance, experimentacin

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    Comunicao e experimentaes com a linguagem na performance

    Ano 10, n 18, 1 semestre de 2003

    A performance como fenmeno artstico e delinguagem vem sendo amplamente estudada nosEstados Unidos e na Europa desde a segunda metadedos anos 70. No Brasil, foi primeiramente caracte-rizada como linguagem por Renato Cohen, em suadissertao de mestrado, embora sua prtica jchamasse a ateno de artistas e crticos de arte dopas desde o final dos anos 70, incio dos 80.

    Segundo o pesquisador argentino radicado nosEstados Unidos, Jorge Glusberg, a performancepode ser concebida como um fenmeno de arte-corpo-comunicao, status que muito interessa spesquisas contemporneas da comunicao, namedida em que permite retomar suas dimensesprocessual, criadora, esttica e questionadora, nummomento em que essas pesquisas tendem, no raro,a se colar e a se reduzir - aos aspectos de suamediao tecnolgica e de forma pouco crtica.

    No se trata de refutar o fato de vivermos numacultura mediatizada, que se apia cada vez mais emsistemas miditicos e tecnolgicos. Antes, o que sepretende aqui garantir um espao para umpensamento que favorea a investigao de processosculturais onde a comunicao se d no apenas emseu aspecto de transmissibilidade, mas no daexperimentao e da resignificao dos cdigos sociais.

    A discusso sobre a performance vai nos interessarpor ser esta uma arte de fronteira e, ao mesmo tempo,um topos de experimentao com a linguagem(COHEN, 1987), o que nos permite fazer uma srie dereflexes acerca da comunicao como processo -histrico, cultural, poltico e esttico - complexo.

  • Fernando do Nascimento Gonalves

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    A performance como forma de expresso artsticaExpresso tpica dos anos 70 e herdeira direta dos

    ideais libertrios dos anos 60, a performance nasce nafronteira de diversas artes e pode ser caracterizada comouma forma hbrida de expresso dotada de grandemobilidade e capacidade de auto-reciclagem. Trata-sede um gnero artstico que deve ser percebido comoelo contemporneo de um conjunto de expressesesttico-filosficas do sculo XX, da qual fazem parteas seratas futuristas, os manifestos e os cabars dad, aesttica-escndalo surrealista e o happening.

    A performance poderia ser considerada umamanifestao artstica em que o corpo utilizadocomo um instrumento de comunicao e arte que seapropria de objetos, situaes e lugares - quase semprenaturalizados e socialmente aceitos - para dar-lhesoutros usos e significaes e propor mudanas nasformas de percepo do que est estabelecido.

    importante destacar que a comunicaoestabelecida pela performance em nenhum momentoretorna representao. Ao contrrio, ao funcionarcomo um composto de arte-corpo-comunicao,como sugere Glusberg, a performance o faz emdetrimento de uma compreensibilidade linear e de umasignificao que se estabelece no nvel da limitao doscdigos. Cria com isso, a possibilidade daquilo que RenBerger, em suas pesquisas sobre as relaes entre artee comunicao, chamou do funcionamento dalinguagem ao nvel da comunicao artstica. Nesta,a mensagem no seria um dado e no estariaconstituda nem no ato da emisso, nem da transmisso,nem finalmente na recepo, mas se consubstanciaria

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    Comunicao e experimentaes com a linguagem na performance

    Ano 10, n 18, 1 semestre de 2003

    no prprio ato de comunicar (BERGER,1977, p.132).Tal concepo da comunicao a desloca

    necessariamente da noo de transmisso que no raroa banaliza e a reduz nos processos miditicos - para anoo de processo, da comunicao como atoinstaurador, criador, por tanto, de outros possveis darealidade. A mensagem artstica introduziria novidadesem todos os momentos da comunicao e apresentarianovas invenes toda vez que a comunicao operasse.Tal era a proposta da performance. Neste sentido, aperformance, ao utilizar-se de uma linguagem hbrida formada pela apropriao e justaposio de outraslinguagens - e ao basear-se em no-histrias e em no-contextos, provoca no espectador uma recepo que muito mais sensorial do que racional e funcionaexatamente como um topos de experimentao coma linguagem e com a comunicao, como afirmaRenato Cohen, buscando, assim, escapar formalmentede quaisquer delimitaes disciplinares.

    Para compreender esse processo de experimentaocom a linguagem, ser necessrio definir para a per-formance dois projetos: um formalstico (modo deapresentao, linguagem) e um ideolgico (filosfico,poltico), que se interpenetram a todo instante.

    Em seu projeto ideolgico da performance secompromete com a proposta da live art, da qual foiuma das principais representantes a partir dos anos70. Tanto que Glusberg chama a ateno para o fatode que o termo performance apresenta duasconotaes: a de uma presena fsica e a de umespetculo. Mas o carter e a funo desses elementosj no sero os mesmos daqueles das tradicionais

  • Fernando do Nascimento Gonalves

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    formas de teatro e da dana, nem as da pintura ou damsica. Antes, tratam das relaes entre corpo eespao, questionando-as e buscando renovar asprprias prticas artsticas tradicionais.

    Ora, importante compreender que, como explicaGlusberg, as atividades corporais e o prpriocomportamento social esto determinados porconvenes que constituem verdadeiros programasgestuais a que nos sujeitamos, conforme os tempos eas condies da cultura em que vivemos. Neste sentido,a performance buscaria desenvolver programascriativos, individuais e coletivos, sendo que o que importa o processo de trabalho, sua seqncia, seus fatoresconstitutivos e sua relao com o produto artstico(GLUSBERG, 1987, p.53). Neste contexto, a relaoarte-corpo seria encarada como uma relao deenfrentamento, pois atravs dela se produz o estra-nhamento do prprio corpo que se v objetivado atravsde trocas de identidades, posies e formas imprevistasde ocupao do espao, gestuaes e associaes comobjetos e com outras pessoas de forma incomum. Esteestranhamento permite performance funcionar comooperadora de transformaes de condicionamentosgeneralizados e imagens corporais cristalizadas, mesmoque de forma efmera e localizada.

    Estas idias se refletiram em prticas que marcam aconstruo de um projeto formalstico e de uma lingua-gem que, por sua vez, foram tambm reflexos das preocu-paes e das lutas da poca. O incio dos anos 70, sobretu-do, foram marcados pela arte conceitual, que representouum processo de reflexo sobre a arte e o fazer artstico. Aarte conceitual procurou desestetizar a arte num

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    Comunicao e experimentaes com a linguagem na performance

    Ano 10, n 18, 1 semestre de 2003

    momento de freqentes questionamentos sobre o sentidoe a funo da arte frente sua crescente mercantilizao.

    Em seu incio, a performance foi um movimento deresistncia a este processo de mercantilizao, atravs douso recorrente de materiais no-artsticos (lixo, pedaosde madeira e de papel, plsticos e objetos comuns) e doprprio corpo para apresentaes efmeras e no-repetidas, em locais alternativos. Como a arte conceitual,a performance representou mais uma experincia detempo e de espao do que de produo de objetos dearte; o corpo se converteu num meio de expresso maisdireto: da a importncia dos happenings (intervenesrpidas e relativamente simples) e da body art na poca,que mais tarde dariam origem performance.

    Em seu mapeamento, Renato Cohen reivindicapara o projeto formalstico da performance um toposde experimentao com a linguagem. Essa experi-mentao se caracteriza pelo uso da collage comoestrutura, pelo predomnio da imagem sobre o texto- que geralmente se apresenta desarticulado, fragmen-tado - e pela fuso de mdias.

    Para facilitar sua compreenso, definiremos estetopos de experimentao de uma forma que contradizsua prpria natureza - que rejeita rotulaes eapreciaes estticas e lineares. Isto, porm, se faznecessrio para melhor descrevermos seu funcio-namento. Embora a forma de apresentao da per-formance seja mais credora das idias vindas das artesplsticas do que do teatro, para compreender seufuncionamento, adotaremos a conceituao de JacGuinsburg sobre a encenao, que caracteriza aexpresso cnica pela trade atuante-texto-pblico.

  • Fernando do Nascimento Gonalves

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    Nela, devemos entender por atuante no ne-cessariamente um ser humano (ator/performer), mas,por exemplo, um boneco, uma tela de vdeo, como nostrabalhos de Laurie Anderson, ou um simples objeto,como o rdio falante de Guto Lacaz, que pisca enquantofala. Texto deve ser entendido num sentido maisamplo, isto , como um conjunto de signos que podemser simblicos (verbais), icnicos (imagticos) ou indiciais(COHEN, 1987, p.6) e poderiam ser sombra, rudo,fumaa, figuras delineadas pela luz ou a prpria luz. Anoo de pblico tambm passa por uma re-formulao, podendo este ser concebido tambm comoparticipante da cena, como pretendia Appia com suaidia de cena como sala Catedral do Futuro, ondeno haveria mais espectadores e sim, atuantes, nosentido de participantes.

    Com tudo isto, a prpria concepo de espetculoque se modifica. Desde a criao do anti-teatro deIonesco - sem ao, sem personagens precisos, comtextos cheios de palavras inventadas, gestos gratuitose cronologia abolida - ao teatro de Beckett que seguea mesma linha formal, porm marcado pelo tema doabsurdo da prpria da existncia, pela ausncia desentido da vida, pela solido, a idia do nada e da morte. a prpria vida que, ao ser assumida enquanto arte eespetculo, literalmente posta em cena.

    A performance como topos de experimentaocom a linguagem

    Em seu projeto de investigar os condicionamentossociais e individuais, de expor a vida e o cotidiano, aperformance representa um meio privilegiado,

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    Comunicao e experimentaes com a linguagem na performance

    Ano 10, n 18, 1 semestre de 2003

    embora no nico, de viabilizar seus questionamento.Para tanto, vai lanar mo de recursos expressivosconquistados por outros campos da arte e vai tornar-se ela prpria uma expresso artstica de convergncia,hbrida e descolada de rtulos. E ser deste princpioque vir seu potencial criativo.

    Desde Craig, Artaud e Brecht, nas artes cnicas,passando pelo dad e o surrealismo, nas artes plsticas,as questes da linguagem e da comunicao j eramobjeto de grandes questionamentos, sobretudo pelacrise sofrida pela representao. Se cada vez menosas artes moderna e contempornea se permitiriamprender e fixar a frmulas previsveis e redutoras, seriapreciso inovar na linguagem que se dispe a apresentaruma realidade fugidia e fragmentada que assume seuestado de vertigem. No raro, a pesquisa de novaslinguagens e de formas expressivas nasce ou da ne-gao de experincias precedentes, e/ou da exaustodestas e/ou ento da reconfigurao interna deelementos j existentes em outras linguagens. Com aperformance no foi diferente.

    Expresso artstica hbrida por natureza, a per-formance no surge rigorosamente por negao ouexausto, mas por expanso, por experimentos coma mescla e com o excesso. Como linguagem, vai re-sultar de uma verdadeira catlise que incorporaelementos das artes plsticas (o imagtico e a collage),do teatro (a cenografia, a iluminao, os jogos deapresentao, dentro da trade guinsburgiana), dadana (o movimento, os ritmos e os tempos do cor-po), da msica (a capacidade de atingir os sentidospor uma materialidade sonora).

  • Fernando do Nascimento Gonalves

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    S que este processo de catlise e mescla representaum exerccio com a linguagem que extrapola a simplescriao artstica individual, exatamente por se produzira partir da circulao e da mutao de idias, conceitos,atos e imagens. Neste exerccio so produzidos dediferentes formas no apenas formas expressivas, mastambm sentidos de existncia atualizados no cotidiano.Como processo criativo, estas operaes de catlise emescla passam por toda uma formulao de estilos emodos de vida que so produzidos no a partir dacriatividade/genialidade individual do artista, mas dedomnios mais amplos, que atingem, acredito, o mbitodaquilo que Deleuze e Guattari chamaram deproduo de subjetividade.

    Com o termo subjetividade, Guattari (1999,p.33) pretende trazer para o mbito do coletivo umaexperincia assumida e vivida por indivduos em suasexistncias particulares, gerada a partir da circulaode informaes em diferentes esferas (social,econmica, poltica, cultural, sexual, familiar, artstica).Na verdade, como afirma Guattari, a subjetividadeest em circulao nos conjuntos sociais.

    A esto presentes, por exemplo, os usos da lngua eda fala, os arranjos estticos das vestimentas, as marcasimpressas no prprio corpo, como a tatuagem e o pierc-ing, as formas de se organizar um discurso, de apresentar-se ao outro, de fazer arte. Essas prticas, porm, noso centradas no sujeito. Antes, so enunciados coletivosou formaes discursivas que constituem o que Deleuzee Guattari chamaram de agenciamentos coletivos deenunciao. Os enunciados no so palavras ouproposies, so precisamente essas formaes

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    Comunicao e experimentaes com a linguagem na performance

    Ano 10, n 18, 1 semestre de 2003

    discursivas que se forjam a partir de uma srie complexade conexes, os agenciamentos. Os enunciados, explicamDeleuze e Guattari (1977, p.124), so precedidos pelaenunciao, que desempenha a funo de conectoresdesses enunciados.

    A idia de enunciao presente nessa noo desubjetividade to pouco se atm aos atos da fala ou sdiversas prticas semiticas em si. Antes, diz respeito aum funcionamento, a um tipo de engrenagem queproduz uma srie de outras engrenagens, atravs dasquais discursos e prticas no apenas se articulam emquanto tal, mas nascem j enquanto engrenagens de umagenciamento. Deleuze e Guattari acreditam, portanto,que no h enunciao individual ou mesmo sujeitode enunciao, e sim, um agenciamento coletivo deenunciao. A enunciao precede o enunciado, namedida em que este ltimo j seria a engrenagem de umagenciamento, ou seja, de toda uma srie de conexes. neste sentido que todo enunciado coletivo.

    Ao tratar dos jogos de poder implcitos na fala edas formas pelas quais possvel empurrar a lnguaem direo a seus limites para propiciar experinciassingulares, Janice Caiafa (1997, p.5), prope exatamenteo exerccio, no nvel da linguagem, de novas expe-rincias subjetivas e da produo de novos enunciados. nessas operaes que linguagem (criando rupturas)e comunicao (insubordinando-se contra os discursosdominantes e a transmisso de palavras de ordem mots dordre -, como escreve Deleuze, em Mil plats),no mais se prestam a gramaticalidades. E se asubjetividade est no campo do social, devem existirpossibilidades de agenciamentos poticos concretos

  • Fernando do Nascimento Gonalves

    22 LOGOS 18: Comunicao e Artes

    em diferentes instncias do cotidiano, que instauremindisciplinas, instabilizando toda uma ordemsincrnica, social, poltica (CAIAFA, 1997, p.8).

    Neste sentido, a performance se situaria dentro deum campo de produo de novas experinciassubjetivas com a linguagem artstica e, como veremosmais adiante, com o que Ren Berger chamou decomunicao potica (1977, p.137). Como formaexpressiva, a performance usa ento a mescla para forjarseus processos criativos e abrigaria possibilidades deindisciplinas e de rompimentos com as grandestradies estticas. Com isso, tensiona e amplia asprprias possibilidades do fazer artstico, que podetornar-se capaz de produzir outros agenciamentos egerar novos enunciados.

    A performance como forma de expresso artstica tambm uma tentativa de produzir uma linguagemque no se torne barreira para uma comunicaopotica. No se trata aqui de uma comunicao quese limita ou reduz manipulao de seus cdigos paraalcanar uma inteligibilidade pura ou que busca umasimples transmissibilidade. To pouco trata-se de umaforma expressiva na qual uma idia deve padronizar-se para estabilizar o sistema de transmisso e derecepo dentro de um mecanismo que visa a im-posio de determinadas coordenadas semiticas,para usar um termo de Deleuze.

    Falamos de uma comunicao onde a mensagemno corresponderia, como afirma Ren Berger, a umasignificao necessariamente preestabelecida a priori.Lidamos aqui com uma comunicao que se produznum permanente estado de tenso entre a forma e

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    Comunicao e experimentaes com a linguagem na performance

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    a frmula, entre a mensagem que ativada na fonte ea imagem estabilizada que seu produto (...)(BERGER, 1977, p.124) e cujo fluxo, no contexto deuma comunicao pragmtica, obstruda por umanecessidade permanente de previsibilidade e controle.

    esse fenmeno que parece se dar na performance.A comunicao nela estabelecida tem como princpiouma quebra da representao. Ao funcionar como umcomposto de arte-corpo-comunicao, a perfor-mance o faz em detrimento de uma compreensibilidadelinear e de uma significao que se estabelece no nvelda limitao dos cdigos. Cria com isso, a possibilidadedaquilo que Berger chamou do funcionamento dalinguagem ao nvel da comunicao artstica oupotica. Nesta, a mensagem no seria um dado eno estaria constituda nem no ato da emisso, nem datransmisso, nem finalmente na recepo, mas seconsubstanciaria no prprio ato de comunicar(BERGER, 1977, p.132).

    Nesta concepo de comunicao, vislumbra-se apossibilidade de um novo arranjo entre os signos e asignificao de que uma mensagem pode ser portadora,arranjo este que dado a cada novo olhar promover.Trata-se de uma comunicao onde o sentido no dado a priori, segundo uma regra esperada de deco-dificao e que necessita, portanto, de um outro olharpara instaurar-se (e no para gerar significadosdefinidos): a mensagem e sua significao s seconstituem no arranjo que o outro olhar estabeleceno momento do encontro entre olhar e mensagem.O processo de produo de sentido - e a est suaparticularidade -, condicional sem ser, contudo, condi-

  • Fernando do Nascimento Gonalves

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    cionado. Trata-se, como sugere Berger, de uma men-sagem que questiona o prprio circuito de comunicao.

    No pensemos, porm, que a mensagem poticaseja ininteligvel ou no tenha eficcia. Apenas rompecom a tcnica de transmisso estabelecida, assumindouma lgica diversa da pragmtica, com a qual buscano produzir significados, e sim, efetivar um princpiode questionamento do que est dado e de instauraode novas realidades. A comunicao artstica ou poticabusca enunciar o indizvel, que pode ser, comopropunha Artaud, um estado de esprito, ao invs deum sentimento (ARTAUD,1999, p.37).

    que um sentimento pode ser entendido e, por-tanto, racionalizado e representado, j o estado de esprito,para Artaud, s poderia ser sentido e no representado.Por esta razo, na performance no se representa, seinstaura. Para tanto, seria necessria uma linguagem quese afaste o quanto possvel das amarras impostas pelasregras que anulam a fora de uma mensagem para torn-la compreendida num nico sentido. No que ainteligibilidade seja em si um mal, mas em certascircunstncias ela representa sem dvida um limite para aexpresso de idias que fogem a um determinado modelopr-estabelecido. A inteligibilidade pura representa, nocaso da performance, por exemplo, um limite no em simesmo, mas um limite para a produo de um cdigoque no restrinja tanto o processo de comunicao e quepossa favorecer uma multiplicidade do sentido.

    Comunicao potica e a linguagem-collage na performance

    No campo da arte, seria necessria uma linguagem

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    Comunicao e experimentaes com a linguagem na performance

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    que fosse capaz de comunicar o indizvel no por meioapenas da inteligibilidade, mas por meio de uma empatia,de um contgio de uma emoo, tal como num ritual.No caso da performance, o princpio da mescla e dacollage, caracterstico de sua linguagem, que ir promovereste exerccio de intensificao da expresso e quebuscar viabilizar a expresso do indizvel. importantelembrar que seria inadequado traduzir simplesmente col-lage como colagem. A collage caracteriza uma linguagemde justaposio de imagens que necessariamente nofazem parte de um mesmo sistema de referncia ou deum mesmo tipo de fonte e que aparentemente no tmnenhuma conexo interna.

    Ao analisar a collage, Chnieux-Gendron, demonstrasua filiao com toda uma discusso dos surrealistasacerca da linguagem e da poesia na dcada de 30,especialmente na Frana. Para Andr Breton, a imagem- no sentido da figurao alegrica do texto - e seusjogos com as formas codificadas da linguagem criariamsentido e, portanto, faria um trabalho puramentesinttico, que lhe conferiria uma funo potica(CHNIEUX-GENDRON, 1992, p.76). No campodas artes visuais, ser a collage o campo em que essasreflexes sobre a imagem e a linguagem teriam lugar.

    Seria, sobretudo, com Max Ernst que a collageevocaria a imagem e seria seu equivalente plstico. Ernstpassa a realizar uma justaposio irracional deelementos j prontos, desviando cada objeto de seusentido a fim de despert-lo para uma realidade nova(CHNIEUX-GENDRON,1992, p.79). Na collage deErnst, os fragmentos de imagens so rearranjados comuma determinada inteno expressiva, geralmente a

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    de promover uma releitura sobre algo. Sua funoseria, portanto, semntica e seu funcionamento,metafrico (Id., p.80).

    Em sua proposta de releitura, a collage rene imagensque na realidade cotidiana jamais estariam juntas. Comoexemplo, temos as gravuras que retratam mundosimpossveis, no realismo fantstico de Escher ou deMagritte, em cuja obra decisivamente influente nasobras de Robert Wilson, no teatro, e de Pina Bausch,na dana - vemos uma tentativa de liberar os objetosde suas funes ordinrias, alterar as propriedadesoriginais dos objetos, mudar a escala e a posio dosobjetos, organizar encontros fortuitos, desdobrarimagens, criar paradoxos visuais, associar duasexperincias visuais que no podem ocorrer juntas(TORCZYNER, apud COHEN,1987, p.42).

    Da a collage ser considerado por Cohen um atoentrpico e ldico. Ela brinca com antinomias aomesmo tempo em que causa um estranhamento quetem pelo menos duas funes: a de destacar um objetode seu contexto original e forar uma melhor obser-vao, a exemplo do que fazia Brecht no teatro. Asegunda, mais prxima dos surrealistas e, portanto,das artes plsticas e visuais, a de criar novas uti-lizaes para o objeto em destaque, alm da funoque lhe foi inicialmente atribuda.

    Ao recriar imagens e objetos, o artista o faz porinsatisfao com o atual, no sentido deleuziano, ebusca sempre instaurar um outro possvel para arealidade (o real). O artista nunca toma a realidadecomo definitiva. Visa, atravs de um processo deelaborao onrica, chegar a uma outra realidade que

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    no pertence ao cotidiano, mas que existe como umvirtual, que pede para ser efetuado (DELEUZE,PARNET,1998, p.174). A utilizao da collage na per-formance permitiria esse exerccio de efetuao deoutros possveis da realidade.

    exatamente esta dimenso da criao, nointencional e no deliberada, que se faz ausente noteatro racionalista e que foi duramente atacada porArtaud. Para ele, o teatro tradicional no liberaria aspotncias vitais do homem. Mas a collage comoestrutura de linguagem possibilitaria, alm do resgatede impulsos no intencionais na criao, umdistanciamento produzido pela recriao da realidade.Ernst, ao propor um homem com cabea de guiano separa Arte e Vida, antes sugere uma outra leiturapara os acontecimentos da vida:

    Se a collage evoca por excluso erecusa, portanto, por definio, o mundocodificado, ela impe por justaposio e,portanto, por sntese uma releitura de talmundo. Isso porque a sntese proposta pelacollage no um fim em si mesma, mas incitaa desmembramentos infinitos, que so aspossibilidades de reler o mundo (FLUSSERapud COHEN,1987, p. 45).

    Portanto, o uso da collage na performance reforaaquilo que Cohen considerou o uso de uma linguagemmais gerativa que normativa, tanto ao nvel do verbal,quanto ao do imagtico. O trabalho com o fragmentofaz-nos entrar num outro discurso que estaria maisprximo da livre-associao, o que implica, por sua vez,a importncia do colador, no caso, o performer.

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    Na performance, que usa a collage como estrutura delinguagem, a figura do performer/encenador e no maisdo autor/diretor passa a ser fundamental. ele quemir efetuar a materialidade sgnica dos elementos quefazem parte da ao performtica. Na verdade, tantonas atuaes solo, quanto nas de grupo, o princpio omesmo, com a diferena de que nas apresentaes solo o prprio performer que toma para si o processo daencenao, concebendo e atuando ele prprio.

    Algumas vezes, o performer, sem outros recursosque no o seu trabalho com o corpo e com a palavraarticulada, torna-se efetivamente a prpria obra em aoou, se quisermos, a obra passa a ser a prpria atuaodo performer. No caso das encenaes de grupo, caberao encenador organizar as diferentes formas deinterveno, nas quais os performers devero criarfiguras vivas, como nos trabalhos de Robert Wilson,onde os atores no trabalham o aprofundamentopsicolgico, mas recebem treinamento para lidar com autilizao do tempo e do espao.

    o princpio de collage que permite performanceestabelecer uma relao diferenciada com os elementoscnicos que compem um espetculo. Seu projetoformalstico privilegia a forma em detrimento docontedo e da linha narrativa. Nele, os elementos cnicosno tm uma clara preponderncia entre si, o que vaidepender da necessidade de uma cena ou do efeito queela exija. Nem mesmo o performer ser sempre essencial.Em alguns casos, pode ser to importante quanto umboneco ou um vdeo, um rudo ou um jogo de ilumi-nao que produz sombras e objetos imagticos queso os prprios atuantes de uma cena.

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    A eliminao da cena convencional, de inspiraoaristotlica (com incio-meio-e-fim), no elide,contudo, sua carga dramtica. Ao contrrio, fornece performance uma ferramenta privilegiada, enquantoforma de expresso, para materializar disposiesinteriores, aspectos da imaginao que irrompem emcena aparentemente de forma irracional, mas queso coerentes com o estado de vertigem em que mui-tas vezes estas disposies e as situaes imaginativasse produzem. Da Cohen atribuir performance acaracterstica de um drama abstrato:

    A eliminao de um discurso maisracional e a utilizao mais elaborada designos fazem com que o espetculo de per-formance tenha uma leitura que antes detudo uma leitura emocional. Muitas vezes oespectador no entende (porque a emisso cifrada), mas sente o que est acon-tecendo. Na performance, a inteno vaipassar do What para o How. Ao se rompero discurso narrativo, a histria passa a nointeressar tanto, e sim aquiloque estsendo feito. (COHEN,1987, p.49)

    Com isso, fica evidente a caracterstica da perfor-mance em operar uma comunicao que se faz noinstante. A performance constri, atravs de sualinguagem-collage, uma relao muito particular com otempo e com os arranjos que este pode oferecer comos signos que ela materializa. H intervenes quepodem durar alguns minutos, outras podem durarvrias horas, como as pera-teatro de Robert Wilsone as mega-performances high-tech de Laurie Anderson.

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    H intervenes que no se repetem mais que umavez, outras j so passveis de serem reapresentadas,porm sempre com variaes. H, finalmente, perfor-mances que so concebidas para serem apresentadasapenas em certos lugares e apenas por certos perform-ers, respectivamente, por suas qualidades geogrficasou corporais intrnsecas. O tempo perde em cronologiapara ganhar em intensidade.

    Na performance, a valorizao do momento daao d s intervenes uma caracterstica de rito, noqual o pblico entra como que numa comunho como espetculo: abolida a distncia entre a cena e oespectador, produz-se ao invs de uma relao defruio, uma relao de empatia. O ritmo doespetculo gira tambm em torno desta comunhoque afeta o pblico da mesma forma que o faz com aperformance que est sendo apresentada.

    Existe, assim, na performance, uma potncia doinstante, que tira do fragmento e do instantneo suasingularidade. Na performance, a comunicao se constituienquanto poesis, pelas qualidades plsticas da collage de tem-pos, memrias e afetos, capazes de dizer e comunicar oindizvel, numa poca que parece preferir privilegiar aproduo de uma repetio banalizadora, ao invs deproduzir singularidades, numa poca em que nem semprese reflete, no mbito da prpria comunicao, sobre osefeitos da hipercomunicao que se produz.

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    Referncias bibliogrficasARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Rio de Janeiro: MartinsFontes, 1999.

    BERGER, Ren. Arte e comunicao. So Paulo: Paulinas, 1977.

    CHNIEUX-GENDRON, Jacqueline. O surrealismo. So Paulo:Martins Fontes, 1992.

    COHEN, Renato. Performance como linguagem: criao de umtempo-espao de criao. So Paulo: Perspectiva, 1989.

    CAIAFA, Janice. Poticas e poderes na comunicao. In: BENTZ,Ione. (Org.) O olhar esttico na comunicao. Coleo Comps.Petrpolis: Vozes, 1997.

    DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix. Kafka: por uma literaturamenor. Rio de Janeiro: Imago,1977.

    DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Dilogos. So Paulo:Escuta, 1998.

    GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. So Paulo:Perspectiva, 1987.

    GUATTARI, Flix. Caosmose. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

    GUATTARI, Flix e ROLNIK, Suely. Micropoltica: cartografiasdo desejo. 5 ed. Petrpolis: Vozes, 1999.

    Fernando do Nascimento Gonalves professor adjuntoda Faculdade de Comunicao Social da UERJ,

    Doutor em Comunicao e Cultura pela UFRJ,pesquisador de comunicao e arte.

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    Dana contempornea:Dana contempornea:Dana contempornea:Dana contempornea:Dana contempornea:objeto de estudo daobjeto de estudo daobjeto de estudo daobjeto de estudo daobjeto de estudo da

    comunicaocomunicaocomunicaocomunicaocomunicaoDenise da Costa Oliveira Siqueira*

    RESUMOAs artes cnicas se mostram rico espao para anlise da culturae da sociedade. Nesse universo, a dana se apresenta comolocus de expresso de idias e ideais, de construo edesconstruo de movimentos e sentidos. Este artigo investigaa dana realizada como arte como um interessante objeto deestudo da comunicao, podendo ser analisada dos pontos devista tcnico e esttico.Palavras-chave: comunicao, dana, tcnica

    ABSTRACTIn the universe of the scenical arts, the contemporary dance configures alocus of expression of ideas and ideals, of construction and deconstructionof movements and senses. This article investigates the dance created as artas an object of study of communication analyzed technically and aesthetically.Keywords: communication, dance, technics

    RESUMENEn el universo de las artes cnicas, la danza contempornea se presentacomo locus de expresin de ideas e ideales, de construccin e desconstruccinde movimientos y sentidos. Este artculo investiga la danza realizadacomo arte como uno objeto de estudio de la comunicacin, analizado delpunto de vista tcnico y esttico.Palabras clave: comunicacin, danza, tcnica

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    Dana contempornea: objeto de estudo da comunicao

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    No podemos passar sem uma concepo de mundo e dohomem, sem uma filosofia. No podemos passar sem idias,

    mas tampouco sem poesias, msicas, romances, paracompreender nosso ser-no-mundo, ou seja, para conhecer.

    (MORIN, 1998, p.315)

    Voc tem sede de qu? Voc tem fome de qu? A gente noquer s comida, a gente quer comida, diverso e arte.A gente no quer s comida, a gente quer sada para

    qualquer parte. A gente no quer s comida,a gente quer bebida, diverso, bal... (Tits)

    Em um universo tecnologizado, em que tcnicase tecnologias so criadas para produzir e fazer girar aeconomia globalizada, as poticas, as artes parecem,muitas vezes, ser postas em lugares distantes dasdemais esferas da vida em sociedade. Arte, cultura,tecnologia, economia, no entanto, fazem parte de umtodo. Entender cada uma dessas partes ajuda aentender o todo; entender o todo possibilita com-preender melhor essas partes que se misturam, quesofrem contgios.

    Um dos campos dentro do universo da arte con-tempornea que se mostra rico espao para anliseda cultura e da sociedade o das artes cnicas. Dentrodele, a dana se apresenta como locus de expresso deidias e ideais, de construo e desconstruo demovimentos e sentidos. Torna-se, portanto, inte-ressante objeto de estudo.

    A partir desses pontos, o objetivo deste texto mostrar a dana realizada como arte, com intenocnica, profissional, como um objeto de estudo do

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    campo da comunicao, podendo ser analisado do pontode vista tcnico dada a preparao formal necessriapara o trabalho em cena -, e tambm do ponto de vistaesttico que sua qualidade de arte justifica.

    Dana: do corpo cenaFenmeno plural e complexo, a dana possui

    variadas definies e pode ser entendida de muitosmodos: como arte, ritual, tcnica, terapia, diverso,forma de expresso e meio de comunicao. Pensaras danas, implica, ento, em refletir sobre um campoque , antes de tudo, cultural, mas tambm esttico,tcnico e ldico. Nesse universo, o espetculo de dan-a ou dana cnica um dos modos de manifestaoe implica em treinamento, aprendizado profissionalcom vistas ao domnio tcnico.

    Ao entender a dana como arte preciso consi-derar o que Eco observou: que a obra de arte umamensagem fundamentalmente ambgua, umapluralidade de significados que convivem em um ssignificante (1969,p.22).

    A dana ganhou conotao de arte (termo de-rivado de ars, artis, em latim, e que corresponde aogrego techn) ainda na Antigidade Grega. Na IdadeMdia, Ars - conjunto de regras e preceitos para dizerou fazer bem qualquer coisa - denotava ofcio,profisso e era dividida em arte servil e arte liberal.As artes liberais, aprendidas nos livros (gramtica,retrica, aritmtica, msica, entre outras) eramconsideradas prprias ao homem livre em razo deexigir uma formao apropriada. A arte servil eraconsiderada inferior, incluindo a fabricao de objetos

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    Dana contempornea: objeto de estudo da comunicao

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    de uso cotidiano e a escultura, a arquitetura e a pintura.Provavelmente reforou-se a a distino moderna entreo fazer artstico, inspirado e o fazer tcnico, repetitivo,mecnico enfim, o dualismo entre pensar e fazer.

    Tomado como um meio de comunicao, um es-petculo de dana ou representao cnica deixatransparecer, atravs de movimentos realizados comtcnica especfica, aspiraes e insatisfaes sociais,culturais e estticas. Rene, portanto, pensamento euma ou vrias tcnicas para transform-lo emmovimento coreografado. Como escreveu PascalRoland, un corps idal que proposent au regard desspectateurs les pices de danse, un corps utopique que tente dexprimenter et de montrer les danseurs.1 (1998, p. 14)

    Esse corpo utpico capaz de realizar saltos,piruetas, quedas e suspenses que corpos no trei-nados so incapazes de realizar; ou pode, mesmo do-minando a tcnica, construir movimentos comuns,levar para o destaque do palco uma seleo de gestose movimentos cotidianos. Essa possibilidade ca-racterstica da arte contempornea leva ao ques-tionamento sobre o que dana e o que constituisimples movimento. A coregrafa alem PinaBausch faz isso com maestria. Seus intrpretes tmtreinamento intensivo, suas audies so aulas de bal,mas so gestos cotidianos, palavras, silncios o quese v nos espetculos de sua companhia, a WuppertalTanztheater. Em outro plo, a brasileira Renata Mellousa sua formao de atriz e bailarina para encaminhar,em palavras e movimentos suas (nossas) dvidas sobrea dana contempornea. O mesmo tipo de ques-tionamento que Bausch levanta no espetculo Cravos2

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    - pea em que, em determinado momento, coloca umbailarino mostrando virtuosismo ao realizar passos debal e perguntando se era aquilo mesmo que a platiaqueria ver - Mello leva ao palco na abertura de Slices3quando faz uma espcie de monlogo danado.

    Compreender uma dana implica em dominar ocdigo cultural no qual ela se insere: a que contextose refere, em que tempo foi criada, por quem remontada e interpretada. Mitos, questes ancestrais,problemas contemporneos e urbanos podem surgirem cena, ser revisitados. A ttulo de exemplificao,em se1, a coregrafa Ana Vitria e sua companhiade dana contempornea recorrem tradio iorubdos orixs para tratar de sua prpria busca de iden-tidade, de suas razes baianas. Nesse caso, um espe-tculo de linguagem contempornea recorre aelementos tradicionais de uma determinada cultura:no espao cnico se vem elementos de inspiraono candombl reconstrudos de modo refinado, cominteno esttica, mas sem o compromisso religioso/ritualstico das cerimnias nas quais foi inspirado.

    Na dana cnica a relao entre coregrafo,intrpretes, tcnicos e pblico constitui-se em relaosocial interdependente. Desse encontro estabelece-se uma rede de informaes da qual resulta oespetculo. O criador se inspira e cria a partir de suasreferncias culturais; o intrprete imprime suasprprias marcas corporais pea que dana; o pblicofaz leituras, constri significados a partir, tambm,de suas referncias. Aplausos, standing ovations, vaiasou silncios comunicam suas leituras e podem ouno servir de informao ao criador.

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    Dana contempornea: objeto de estudo da comunicao

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    O espetculo como manifestao estticaAristteles, com a Potica, foi um dos primeiros

    pensadores a sistematizar um estudo sobre a temticaesttica. Como disciplina, no entanto, esse camposomente se estabeleceu no sculo XVIII. EnquantoKant veria a esttica como conhecimento,Baumgarten a entenderia como sistemtica do estudodo belo e seria essa a noo mais freqentementeadotada a partir de ento.

    O filsofo grego se ocupou especialmente datragdia - apogeu das manifestaes artsticas daAntigidade Clssica - mas tambm da comdia, damsica, da pintura e da poesia, artes interligadas emum espetculo grego. O tema central de suasinvestigaes diz respeito imitao/representao(mmesis), que o autor entende ser a relao entre anatureza e a arte prtica, a semelhana - ou imagem -da natureza com a obra de arte. A imitao atravs daspalavras seria, para Aristteles, a mais importante, aque s se realizaria na poesia: O poeta um imitador,como o pintor e qualquer outro artista. E imita neces-sariamente por um dos trs modos: as coisas, tal comoeram ou como so; tal como os outros dizem que so,ou que parecem; tal como deveriam ser (1999, p. 70).

    Essa imitao no deveria ser exatamente comoo original a que se reporta. Ao artista cabe melhor-lo para servir a uma funo pedaggica. Desse modo,para Aristteles,

    Uma vez que a tragdia a imitao deseres melhores do que ns, necessriocopiar os bons retratistas; estes, aoreproduzir o original, a um s tempo

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    respeitam-lhe a semelhana e o tornam maisbelo. Assim tambm devem agir os poetas;ao imitar personagens fracos ou detemperamento forte, ou providos de outrosdefeitos de carter, devem elev-los, mas sempermitir que sejam o que no so. (1999, p.55)

    A questo da imitao pertinente ao estudoesttico da dana. Durante sculos o objetivo da danapode ter sido o de imitar a natureza, imitar o prpriohomem em seus atos cotidianos. No sculo XX,porm, a dana moderna, a expressionista e acontempornea se distanciaram das narrativas ebuscaram outros formatos, utilizando a linguagemcorporal de um modo coordenado, mas sem preten-der imitar o real. A pantomima, o mimo ou a m-mica o fazem. As novas formas no precisam imitar,mas podem recorrer a esse recurso.

    Aristteles trabalha, ainda, com o conceito decatarse (ktharsis) que significa purgao, tanto nosentido mdico quanto no moral. A arte provocariano homem a catarse para purific-lo de suas ne-cessidades violentas e desejos passionais. Teria, por-tanto, uma funo harmonizadora, no deixando queuma sociedade se desagregasse. A noo de harmoniaconcatena-se com o que Aristteles entende por belo:O belo, seja num ser vivente, seja em qualquer coisacomposta de partes, precisa ter ordenadas essas partes,as quais igualmente devem ter certa magnitude, nouma qualquer. A beleza reside na magnitude e naordem (1999, p.46).

    Conceito fundamental esttica, o belopode ser entendido como aquilo que

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    desperta algum sentimento no homem; umideal, portanto, baseado na experincia, nacultura. Como ideal pode ser comparado aum determinado belo ideal, perfeio dobelo. Em arte contempornea o belo nonecessariamente est ligado ao harmnico,proporcional. O pouco harmnico,desagradvel, desequilibrado, enfim, trans-gressivo, pode ser valorizado.

    As idias de Aristteles foram acatadas ou rechaadaspor vrios autores. Um dos conceitos com os quaistrabalha e que foi retomado por Hegel justamente ode catarse. De acordo com Hegel, a catarse, o alvio detenses, est relacionada com o pthos - estado desensao, de sofrimento, de afetividade, enfim, umaspecto subjetivo. A obra do artista expressa o pthos, opoder da alma, contedo essencial da racionalidade e davontade livre. O pthos representado e exteriorizadoindicaria o verdadeiro domnio das artes.

    Hegel foi o cunhador da noo de histria emprocesso (tudo existe em devir), sofrendo forteinfluncia das idias emancipatrias da RevoluoFrancesa e do idealismo francs. Fiel a esses ideais,entendia a obra de arte como espao para expressode mensagens cujo contedo expressaria uma idia,e cuja forma seria expresso e realizao dessecontedo. O que, hoje, uma obra de arte em nssuscita , alm do direto aprazimento, um juzo sobreo seu contedo e sobre os meios de expresso e aindasobre o grau de adequao da expresso ao contedo(HEGEL, 1974, p. 100). No entanto, o autor mostraque se a arte serve para tornar o esprito consciente

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    dos seus interesses, no constitui o mais elevado modode expresso da verdade. Assim, no teria com-promisso com a categoria de verdade, sua atuao sedaria em outra esfera.

    Retomando o tema explorado por Aristteles naPotica, Hegel escreve que a arte no deve ser apenasimitao, no pode ser apenas lembrana, tem quedespertar a alma. O belo no deve ser, ento, con-fundido com imitao. A arte cultiva o que humano.Isso fica claro quando o autor escreve: A ambiodo artista pode bem ser a imitao; no essa, porm,a funo da arte. Ao realizar uma obra artstica, ohomem obedece a um interesse particular, impelidopelo anseio de exteriorizar um contedo particular(1974, p. 104).

    Em O belo artstico ou o ideal, Hegel defende a idiade que a obra de arte confere ao contedo do ideal aforma concreta da realidade exterior (portanto,obedece a regras fixas de regularidade e simetria),acrescentando a matria sensvel. Deve haver umacordo entre a subjetividade e o contexto, pois a obradeve dialogar com o pblico.

    Em A idia e o ideal, o autor escreve que a obraartstica deve sobrepor-se realidade, na medida emque inspira o homem a alcanar a alma e a vontade,completando a experincia que tem da vida eevocando sentimentos a fim de que as experinciasda vida no nos apanhem insensveis e a nossasensibilidade permanea aberta a tudo quanto ocorrerfora de ns. (1974, p.106). Segundo o filsofo,

    esta sensibilizao obtida pela arte, nocom o recurso a experincias reais, mas

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    apenas com a aparncia dela, sobrepondo,por meio da iluso, as produes artsticas realidade. Esta iluso da aparncia possvelporque, no homem, toda a realidade tem deatravessar, para alcanar a alma e a vontade,o meio intermedirio que a intuio e arepresentao formam. (...) o homemcapaz de se representar em objetos que noso reais, como se efetivamente o fossem.(HEGEL, 1974, p. 106)

    As abordagens de Hegel e, principalmente, deAristteles, dialeticamente provocam polmica einfluenciam at hoje o trabalho de atores, encenadorese pesquisadores de artes cnicas. Um dos importantesdramaturgos que refutou idias de Aristteles foiBertold Brecht. Em O sentido e a mscara, o filsofoGerd Bornheim analisa a questo, explicando a posiode Brecht ao contestar a funo da catarse. Para Brecht,

    Se o espectador deve ser purgado decertos sentimentos, ele engolido peloespetculo, no sentido de que a sua atividade gasta, usada. O importante, contudo, no aliviar o homem ou melhorar a sua alma,mas despertar a atividade do espectadorenquanto ser social. A catarse torna pacficoo homem em relao ao mundo; oespectador passa a sentir-se em casa nomundo, como se este fosse eterno.(BORNHEIM, 1992, p.28)

    Para o dramaturgo, o teatro deve funcionar comoestmulo para a viso crtica do espectador, buscandodespertar a platia. Assim, assumiria uma dimenso

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    pedaggica (e poltica) e jamais de entretenimento: oteatro deve mostrar que o mundo, longe de ser eterno, regido por valores que devem e podem ser mo-dificados (id). Nesse sentido, Brecht criou, no augede sua obra, o que chama de efeito pico ou dedistanciamento que consiste no emprego de certosrecursos cnicos, atravs dos quais o espectador possavencer sua passividade e assumir uma atitude crticadiante do espetculo, e a posteriori, diante do mundo(id).

    A reflexo sobre a viso poltica de Brecht importante em um momento em que parece nohaver muito destaque para a questo da dimensoformadora do trabalho cnico. Em sociedades arcai-cas danava-se com inteno ritualstica, mgica. Asdanas pediam fartura, fertilidade, proteo, vitriaou cura e, em geral, a separao entre quem danavae quem assistia no era to rgida quanto passou a sera partir do Renascimento. Os rituais, as procissescontavam com a participao da comunidade,misturando os papis de atuante e audincia. O carterritualstico/catrtico da dana foi paulatinamentedeixado de lado a partir do Renascimento e mantidoapenas nas cerimnias religiosas das quais a danafaz parte ainda hoje ou em eventos especficos comoas rave parties, nas quais a catarse tambm buscada.

    O espetculo no OcidenteO espetculo um dos espaos nos quais imitao,

    pthos e cartase esto presentes de forma incisiva. elemento fundamental da cultura ps-moderna e daera da informao. Sua origem se perde no tempo,antecedendo a Roma Antiga, com o binmio po e

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    circo (panis et circenses), ideologicamente, o alimentoe o entretenimento que deveriam ser dados ao povopara que se mantivesse submisso. Hoje, se tornoufator de importncia na comunicao mediada porveculos de alcance massivo e, ocupa espao cada vezmaior tanto no processo de transmisso de infor-mao quanto no de educar/ formar.

    A histria do espetculo mostra que desde asprimeiras manifestaes religosas pblicas queimplicaram em complexos rituais (musich, para osgregos), o espetculo teve como tarefa transmitirmensagens, formas de interpretar e de se relacionarcom o mundo. At ser levado ao palco ou ganhar afuno de entreter monarcas, o espetculo demonstrouter um carter educativo/formador, capaz de orientarplatias portando contedos simblicos.

    Borba Filho registra, em sua Histria do espetculo,que mesmo durante o surgimento da comdia, naGrcia Clssica, o espetculo estava ligado religio,mas portava elementos simblicos pertinentes cultura na qual estava inserido: Da procisso dio-nisaca destacou-se um grupo que deu origem tra-gdia, enquanto outro se separou da parte profanadas festas a Dionsio, conhecido a princpio comokosmos. (BORBA FILHO, 1960, p.28)

    A relao do teatro grego com a religio era in-tensa. O prprio fato de haver um deus dos es-petculos, festas e entretenimento denota a relao.Sendo o teatro como um templo, durante as ence-naes os sacerdotes tinham lugares reservados: Oprprio deus (Dionsio), como esttua, assistia representao (...) Tudo comeava com a procisso

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    que, partindo do templo, dirigia-se para o teatro, con-duzindo a imagem de Dionsio. (op.cit., p.34)

    O contato entre espetculo e religio perdura ata contemporaneidade. A Igreja Catlica, no perododa Idade Mdia, quando grande parte das populaeseuropias era formada por analfabetos, utilizou osautos para pregar e combater o paganismo. O teatrolatino originou-se dos ritos religiosos, de diversoselementos pagos e de referncias ao teatro grego.Havia, at mesmo, uma aproximao visvel entreas iniciaes secretas e as primeiras tentativas deteatro. (BORBA FILHO, 1960, p 38). Essa relaoainda se mantm na contemporaneidade, a exemplodos cultos evanglicos televisionados, do movimentocarismtico catlico e das cerimnias do candombl(que a j citada coregrafa Ana Vitria explorou nosespetculos s, Orikis e Trnsito, ressaltando asqualidades dramticas desses ritos religiosos).

    O desenvolvimento do espetculo acompanhouas mudanas ocorridas na cultura. Quando, a partirdo Renascimento, as artes comearam a seguir o ca-minho da secularizao, outros elementos se tornaramimportantes fontes de influncia. Princpios eco-nmicos se refletiram no fazer artstico. No capi-talismo, a arte se tornaria fruto de um modo de pro-duo que teria caractersticas semelhantes s dosistema econmico: em lugar de trabalhar para ummecenas, os artistas (msicos, atores, escritores,pintores) passaram a trabalhar para o mercado, paraconsumidores annimos.

    Ao fazer parte de rituais religiosos, passar parapopulares praas pblicas, chegar at os sales da

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    Dana contempornea: objeto de estudo da comunicao

    Ano 10, n 18, 1 semestre de 2003

    aristocracia e, finalmente, ocupar palcos de tipoitaliano, arena ou picadeiro, o espetculo se espraioupor diversos segmentos da cultura. A poltica, aeconomia, e no sculo XX, a comunicao de massae a publicidade, adotaram-no como elemento fun-damental, sempre aliado utilizao de recursos tc-nicos e tecnolgicos.

    Consideraes finaisSe arte, em sua origem etimolgica, ofcio, ento,

    corresponde tcnica, utilizao sistemtica de meiospara atingir um fim. O artista usa a tcnica - e poderecorrer tecnologia - para atingir um fim, o de ex-pressar-se. justamente dessa necessidade de expressoque se pode fazer uma das pontes entre arte no caso,a dana cnica e a comunicao. Todo espetculo partede uma inteno comunicativa. O artista pode nointencionar transmitir contedos, educar ou formar;pode at pretender nada comunicar. No entanto, nopode impedir que o processo de comunicao se de-senrole a partir de sua atuao em cena: o pblico vaireagir, o prprio atuante re-age em resposta e o fluxocontinua. Esse processo o que Eco, em sua Obra Aberta,qualifica como a dialtica ineliminvel entre obra eabertura de suas leituras (1969, p.171). No momentoem que pe uma obra no mundo, o artista deixa de serseu dono exclusivo e todos que tiverem acesso a elapodero construir leituras diferenciadas. No essa ariqueza maior que a arte pode legar? No ser issotambm que faz dela um objeto de estudo to singular?

    Na dana contempornea, com sua pluralidade delinguagens, temticas, estilos, tcnicas e intenes,

  • Denise da Costa Oliveira Siqueira

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    isso se torna uma realidade: as obras so abertas aleituras. Essas leituras, no entanto, precisam de umpblico disposto e aberto ao contato com linguagensno-cotidianas, pouco exploradas e at experimentais.O exerccio contnuo de formao de platias fundamental para criar/construir/desenvolver talaptido, tal abertura ou sensibilidade. Somente essaconstruo vai possibilitar a realizao do processo decomunicao a partir da participao em um espetculocnico, em uma obra de arte contempornea.

    Notas1 um corpo ideal que propem ao olhar dos espectadoresas peas de dana, um corpo utpico que tenta experimentare mostrar os danarinos. (Traduo minha).2 Nelken, pea de 1982, apresentada no Rio de Janeiro, noTheatro Municipal, na dcada seguinte.3 Slices, de Renata Melo, foi apresentado no Teatro II doCentro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, em abrilde 2000, dentro da mostra Dana Brasil.

    Referncias bibliogrficasARISTTELES. Potica. So Paulo: Nova Cultural, 1999. Col.Os pensadores.

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    MORIN, Edgar. O mtodo. v. 4: As idias: habitat, vida, costumes,organizao. Porto Alegre: Sulina, 1998.

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    Dana contempornea: objeto de estudo da comunicao

    Ano 10, n 18, 1 semestre de 2003

    Denise da Costa Oliveira Siqueira Doutora emCincias da Comunicao (ECA/USP).

    Professora adjunta da Faculdade de ComunicaoSocial (UERJ). Editora da Revista Logos. Graduada emComunicao (UERJ), escreve sobre dana no caderno

    cultural do jornal Tribuna da Imprensa, no Rio de Janeiro.

    ROLAND, Pascal. Le corps dansant contemporain: la localisationdun non-lieu. Socits: Revue des sciences humaines et sociales,Paris/Bruxelles: De Boeck Universit, n.60, p.13-21, 1998.

    SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira. Corpo, comunicao ecultura: desconstruo e sntese na esttica da danacontempornea. Tese (doutorado em Comunicao) SoPaulo: ECA/USP, 2002. Or.: Prof. Dr. Nelly de Camargo.

    ______. A imagem na dana contempornea: tcnica corporale aparato tecnolgico. In: PEREIRA, Roberto, SOTER, Silvia.Lies de Dana III. Rio de Janeiro, Centro Universitrio daCidade, 2002. p. 53-76.

  • Christine Greiner

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    A dana como estrA dana como estrA dana como estrA dana como estrA dana como estratgiaatgiaatgiaatgiaatgiaeeeeevolutiva davolutiva davolutiva davolutiva davolutiva da

    comunicao corporcomunicao corporcomunicao corporcomunicao corporcomunicao corporalalalalalChristine Greiner*

    RESUMOArte e comunicao no so duas instncias separadas, por isso insuficiente reconhec-las como eventualmente interrelacionadas.Analisando o caso especfico da dana, o artigo sugere que estase organiza como uma possibilidade complexa de especializaodo movimento, elaborada como uma soluo adaptativa do corpono decorrer da sua evoluo biolgico-cultural, tendo como fimltimo a comunicao e o processamento cognitivo das diversaspossibilidades do real. Neste vis, no se pode mais falar em umconceito de corpo como produto, como algo dado e pronto.Palavras-chave: dana, comunicao, corpo.

    ABSTRACTArt and communication are not separate things, so its not sufficient toknow them as eventually related. Analysing the specific case of dance,this article indicates that dance is organized as a complex possibility ofmovement specialization, elaborated as a body solution in its biologicaland cultural evolution with the objective of getting communication andcognitive process. In this way we cant think about a concept of the bodyas a product, something given.Keywords: dance, communication, body.

    RESUMENArte y comunicacin no son apartadas, por eso es insuficiente reconocerlascomo eventualmente relacionadas. Analizando el caso especfico de ladanza, este artculo sugere que sta se organiza como una posibilidadcompleja de especializacin del movimiento, elaborada como una solucinadaptativa del cuerpo en la evolucin biolgico-cultural, tiendo comofinalidad la comunicacin y el proceso cognitivo de las diversas posibilidadesdel real. As, no se puede ms hablar de un concepto de cuerpo comoproducto, como algo pronto.Palabras clave: danza, comunicacin, cuerpo.

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    A dana como estratgia evolutiva da comunicao corporal

    Ano 10, n 18, 1 semestre de 2003

    Na sua obra antolgica Bandoneon, a coregrafa alemPina Bausch indagava, com humor e sabedoria, em queo tango poderia ser bom para tudo. Motivos nofaltavam, claro, desde o bem estar promovido pelaprtica at a proeza de todo fazer artstico que aciona osistema lmbico (nosso centro vital) e modifica, de formainusitada, estados corporais, como tem explicado emartigos e livros, o neurocientista V.S.Ramachandran.

    Quem se interessa pelo tema pode estudar, porexemplo, uma de suas obras recentemente traduzida parao portugus como Fantasmas no Crebro, uma investigaodos mistrios da mente humana (1998). Discutindo membrosfantasmas e o sentido de Deus, Ramaschandran comeaa indicar um caminho possvel para a discusso danecessidade de se entender o corpo como fundamentodos processos de cognio e percepo. Dois anosdepois, em uma srie de trs volumes da publicao Jour-nal of Consciousness Studies, o prprio Ramaschandraniniciou uma discusso acerca do sentido da arte e da suainstncia neurofisiolgica. Alm do artigo em co-autoriacom W.Hirstein , cientistas como Eric Harth e SemirZeki apresentaram tambm suas pesquisas relativas aotema da construo e da recepo da arte, luz daneurologia, da etologia e da filosofia da mente.

    O debate tem sido bastante acirrado, cheio de pol-micas antigas que giram em torno de oposies fictciascomo a clebre dualidade razo e emoo ou a clssicacorpo e mente. No entanto, apesar das polmicas, entreartistas e cientistas, filsofos e crticos de arte, parece haverunanimidade quanto ao fato de que algo muda e mudasempre quando se exposto ao fenmeno artstico, sejacomo criador ou como espectador. Isso evidenciado

  • Christine Greiner

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    em todas as manifestaes artsticas e no caso especficoda dana tornam-se mais evidentes alguns sinais daprecariedade que caracteriza a condio do estar vivo.

    Voltando ao processo bauschiano, no toa que asanotaes da coregrafa giram sempre em torno do inciode uma busca sem fim, de um espao vazio, do territrioinseguro, sem meta, nem direo. Mas esse apenas ocomeo. Nos momentos seguintes do processo, tudoacaba sendo sistematizado em uma operao analgica,como prprio a todas as linguagens poticas. Sem essasistematizao, o pensamento no se organiza e nocompleta o percurso cognitivo para configurar a ao.

    Os jogos bauschianos, como muitas outras manifesta-es artstico-comunicacionais, flertam com a vertigemsimblica e cruzam linguagens artsticas e no artsticasque se movem com habilidades especficas, partindo docotidiano para a cena. Importa no apenas o movimentoque se v, mas os modos de organizao do pensamento. nesse sentido que a pesquisa elucida uma polmica queassola atualmente a rea de comunicao e indaga atonde vo os limites entre arte e comunicao e at queponto podemos ousar cruzando domnios e transdiscipli-nando conhecimentos, sem cometer impropriedadesepistemolgicas, mas sim, trabalhando a fertilidade doterreno da entropia e no s o das certezas e das codifica-es. princpio, e sem mudar o aparente estado dascoisas, a questo poderia ser desmembrada dessa forma:

    1- Como as teorias da comunicao ajudam a pes-quisa e a criao em arte?

    2- Como os estudos da arte redimensionam as teoriasda comunicao em um fluxo ininterrupto de troca deinformaes?

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    A dana como estratgia evolutiva da comunicao corporal

    Ano 10, n 18, 1 semestre de 2003

    Embora esses pontos j incitem muita discusso, oobjetivo deste artigo chamar a ateno para um problemaimportante que nasce antes de tudo isso, j no comeodo dilema ou do eventual dilogo entre arte e comunicao.Ou seja, nos movimentos que no se v.

    Para seguir adiante na discusso, o problema podeser formulado assim: arte e comunicao no so duasinstncias separadas e, por isso, insuficiente reconhec-las como interrelacionadas.

    Explorando o universo da dana, entre tantas outrasmanifestaes artsticas, este artigo sugere que a danase organiza como uma possibilidade de especializaodo movimento corporal, elaborada como uma soluoadaptativa do corpo, como tem ocorrido no decorrerda sua evoluo biolgico-cultural, a exemplo de tantasoutras habilidades sensrio-motoras (caar, elaborarartefatos, tecer etc). A diferena que devido alta taxade complexidade organizada atravs do tempo, a danapresentifica-se como uma possibilidade eficiente deelaborao de conhecimento e do processamento denexos de sentido. Isso decorre do fato de trabalhar apartir da matriz primria da comunicao: o corpo emmovimento. Ou seja, a dana nada mais do que umprocesso de comunicao altamente complexo eespecializado que emergiu no corpo quando este semostrou apto a elaborar processos simblicos nascidosde caldos culturais. No se trata portanto de estabelecerum dilogo ou uma relao interdisciplinar entre danae comunicao, simplesmente porque no so dois cam-pos estrangeiros, nascidos de territrios distintos. importante destacar ainda que h evidncias no processoevolutivo da arte de que a dana comunicao, assim

  • Christine Greiner

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    como todas as outras manifestaes artsticas. Ao que tudo in-dica, a grande dificuldade que tem impedido essaconstatao parece ser o fato dos estudos da comunicaocontinuarem enredados na busca de objetos, tomandopor garantido que estes s podem ser reconhecidosexternamente ao corpo, como artefatos, produtos ouextenses. Paradoxalmente, a primeira e mais importantemdia da cultura o corpo e a sua descrio como meroinstrumento de algo ou algum, no se sustenta mais.

    O movimento como matriz da comunicaoEm 1987, o americano Mark Johnson lanou uma

    hiptese que comeou a discutir a relao entre corpoem movimento e cognio. The body in the mind: the bodilybasis of meaning, imagination and reason mostrava comose d a incorporao de esquemas de imagens cinticas,ou seja, explica como algo que existe como movimentocorporal origina processos de cognio. Johnsonexplica o exemplo do esquema de recipiente que estligado idia de que existe um dentro e um fora e umfluxo de movimento entre eles. Talvez as nossas aesmais bsicas sejam as de ingerir e excretar, inspirar eexpirar. Aes que, evidentemente, dizem respeito aalgo que entra e a algo que sai. A partir da, o enten-dimento do corpo como um recipiente est em quasetodas as aes e pensamentos que permeiam essa idiano dia a dia. A maioria das aes tem a ver com oentrar e sair de lugares, recipientes, situaes, sonhos,pesadelos e assim por diante. A comunicao tambmnasce dessa possibilidade de entradas e sadas, deespaos, de tempos, de situaes, de si mesmo e dooutro, do grupo e assim por diante.

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    A dana como estratgia evolutiva da comunicao corporal

    Ano 10, n 18, 1 semestre de 2003

    O processo de codificao dos pensamentos tem,portanto, aptido para acionar o cruzamento deestruturas de ocorrncia coerentes, ou seja, deprocessos de comunicao que, no por acaso, tambmacontecem na interface entre o sistema interno e oexterno e, num sentido amplo, representam um tipode relao em uma homologia de probabilidades detransies espao-temporais. Quando o destinatriorecebe uma mensagem codificada, por causa daentropia, ela nunca idntica mensagem formuladapela fonte; vrias transformaes acontecem antes damensagem ser interpretada. A reconverso chave chamada decodificao. A mensagem dita codificadaquando a fonte e a destinao esto em acordo comuma srie de regras de transformao (estruturas coe-rentes) usadas atravs da troca de informaes.

    Muitos tm discutido essa questo, mas o semioticistaThomas Sebeok (1991) chamou a ateno para o fatode que o contexto onde tudo isso acontece muitoimportante e o onde tudo ocorre nunca passivo.Assim, o ambiente no qual toda mensagem emitida,transmitida, admite influncias sob a sua interpretao;nunca esttico, mas uma espcie de contexto-sensitivo.Isso facilmente reconhecido mas o que ainda no sesabe exatamente como o organismo leva em conta oambiente ou como so internalizadas as informaesprocessadas fora do corpo. Mais uma vez, para quemestuda as manifestaes contemporneas de dana,teatro e performance, no h como ignorar algumassimilaridades. J h alguns anos o onde deixou de serapenas o lugar em que o corpo artista se apresenta, trans-formando-se em um parceiro ativo dos experimentos

  • Christine Greiner

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    cnicos. Em vez de lugar, o onde tornou-se umaespcie de ambiente contextual.

    A noo de contexto tambm varia muito. Sebeokdefine contexto como o reconhecimento que umorganismo faz das condies e maneiras de usarefetivamente as mensagens. Contexto inclui, portanto,sistema cognitivo (mente), mensagens que fluemparalelamente, a memria de mensagens prvias que fo-ram processadas ou experienciadas e, sem dvida, aantecipao de futuras mensagens que ainda sero trazidas ao mas j existem como possibilidade. Nestasantecipaes, h tambm uma questo bastante discutidaque a do instinto (PINKER, 1997 e 2000), a pr-disposio comportamental apta a operar antes dequalquer experincia. Processos co-evolutivos entre corpoe ambiente produzem uma rede de pr-disposiesperceptuais, motoras, de aprendizado e emocionais. Nada um bloco monoltico imutvel. Memria envolvenecessariamente esquecimento. Corpo envolve espao dedentro e espao de fora. Ambiente Umwelt, o termoque se refere idia de mundo vivido ou universo subjetivo,como props Jacob Von Uexkull h mais de oitenta anos.

    Este conceito de Umwelt parece pertinente discussouma vez que rompe definitivamente com a idia de umdentro e um fora do corpo independentes. Se Umwelt mundo vivido, tece um imbricamento de informaesvindas de dentro e de fora, mantendo especificidades,mas modificando a viso da pele como um limite paratransform-la em uma passagem. Assim, evidentemente,h uma taxa de preservao que garante a unidade e asobrevivncia dos organismos, de cada ser vivo, mas asua implicao no meio inevitvel e fundamental.

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    A dana como estratgia evolutiva da comunicao corporal

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    As chamadas Teorias Evolutivas da Cultura(DAWKINS, 1986, DENNETT, 1991) sugerem aindaque a trama entre o dentro e o fora co-evolutiva,significa dizer que no unidirecional. Corpo e ambienteso contaminados mutuamente e um no influencia ooutro em uma relao do tipo ativo-passivo. Se pareceimportante deslocar a clausura desta dualidade dentro-fora focando, sobretudo, nos processos de interme-diao, igualmente necessrio romper com outrasconcluses estereotipadas pelo senso comum.

    Assim, voltando pesquisa de Johnson, conceitosno so apenas matria do intelecto. Estruturam o quepercebemos, como nos relacionamos com o mundo ecom outras pessoas, e tambm como nos comunica-mos. Nosso sistema conceitual ocupa um papel cen-tral definindo as realidades cotidianas. Mas de acordocom Johnson, o modo como pensamos e agimos, oque experimentamos e o que fazemos em nosso coti-diano sempre matria metafrica, tanto na arte comono cotidiano. Este um ponto muito importante. Co-mo a comunicao baseada no mesmo sistema con-ceitual que usamos para pensar e agir, a linguagem ver-bal uma fonte importante de evidncia para mostrarcomo o sistema. Mas no a nica.

    Para retornar ao objetivo deste artigo, importanteconhecer mais de perto as pesquisas recentes sobremetfora que, de certa forma, so um desdobramentodos estudos citados anteriormente (LAKOFF,JOHNSON, 1998 e 1999).

    Em termos cognitivos, a metfora configura-se comoum conceito e pode ajudar a entender o processo evolutivoda comunicao. Ao comunicar algo, h sempre

  • Christine Greiner

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    deslocamentos: de dentro para fora, de fora para dentro,entre diferentes contextos, de um para o outro, da aopara a palavra, da palavra para a ao e assim por diante.

    A sistematicidade que nos permite entender umaspecto de um conceito em termos de outro (a chave dametfora) vai necessariamente esconder outros aspectosdo conceito e da experincia. Idias so objetos, expresseslingsticas so tambm recipientes e a comunicaoidentifica-se com a ao de enviar das informaes. Maso envio de informaes no pode mais ser restrito aomodelo proposto pela Teoria da Informao de Shan-non e Weaver que apostava na relao emissor-receptor,sem o estudo das contaminaes processadas pelo meio.Quando se diz que um conceito estruturado por umametfora, significa que parcialmente estruturado e quepode ser estendido de alguns modos e no de outros. Asmetforas estruturais so portanto aquelas em que umconceito metaforicamente estruturado em termos deoutros. No h fidelidade fonte.

    O conceito metafrico , portanto, um modo deestruturar parcialmente uma experincia em termos daoutra. A pergunta o que faz parte do domnio bsicode uma experincia? As experincias so fruto de nossoscorpos (aparato motor e perceptual, capacidades mentais,fluxo emocional etc), de nossas interaes com nossoambiente atravs das aes de mover, manipular objetos,comer, e de nossas interaes com outras pessoas dentroda nossa cultura (em termos sociais, polticos, econmicose religiosos) e fora dela. Danar , em termos gerais,estabelecer relaes testadas pelo corpo em uma situao,em termos de outra, estabelecendo, neste sentido, novaspossibilidades de movimento e conceituao.

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    A dana como estratgia evolutiva da comunicao corporal

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    A filsofa Maxime Sheets-Johnstone, desde a dcadade 60 vem desenvolvendo estudos sobre a dana,propondo primeiramente uma anlise fenomenolgicae, aps os 80, uma ponte com alguns cientistas cognitivos.Em sua obra The roots of thinking, explica que na linguagemprimordial a representao corporal produzida de modoa significar. Tem, portanto, um valor semntico e se colocanum contexto evolutivo. H uma transferncia analgicade sentido que metacorporal, a iconicidade processadaentre gestos (ttil-cintico) da fala e o carter cinticoespacial dos processos ou eventos a que se referem. Narepresentao corporal simblica define-se uma semnticaevolutiva que coloca os sistemas animais comunicativosdentro de um espectro mais amplo: modos biolgicos designificao. Sugere que formas humanas e no humanasde comunicao sejam entendidas dentro de uma estruturade referncia no abstrata e que, de modo algum, podeser compreendida como ahistrica.

    Os estudos da representao corporal simblica jforam analisados por autores como Sigmund Freud, noque se refere ao estudo dos sonhos; Susanne Langer,quanto esttica dos objetos de arte; e Leroi-Gourhan,acerca de muitos temas diferentes, incluindo a arqueologiados artefatos pr-histricos. Em todos esses casos o queocorre uma incorporao de um pensamento original.O que Sheets-Johnstone insiste o tempo todo que asemanticidade e a iconicidade vem juntas desde o comeode todos os processos representacionais e so funda-mentais para a comunicao.

    A dinmica cintica da atividade corporal trabalha,em suma, seja qual for o contexto particular, comsmbolos cintico-tteis espontaneamente formados

  • Christine Greiner

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    e analogamente ancorados na percepco viva dasdiversas criaturas e espcies. Os smbolos so estru-turados em experincias pr-corpreas no apenas pelapercepo da fala mas, analogamente, por um tipo depercepo de sonho. Descobrir essas relaes icnicas,ou seja, as que operam por similaridade, que seria ogrande desafio. Sheets-Johnstone est particularmenteinteressada nos padres semnticos desenvolvidos apartir da sexualidade e a relao disso com os pri-mrdios da linguagem e da comunicao.

    O corpo dana, conhece e se comunicaNo final de junho, o coregrafo William Forsythe

    esteve conversando com o pblico no InstitutoGoethe de So Paulo, durante a temporada do Balletde Frankfurt no Brasil, e duas de suas afirmaesdevem ser escutadas com bastante ateno porquevo ao encontro de discusses bastante atuais, inclu-sive as que norteiam este artigo. A primeira diz que adana um campo epistemolgico, ou seja, refere-seao processamento de conhecimento e no pode deforma alguma ser entendida como mero entre-tenimento ou adereo esttico. A segunda afirma que,para danar, o artista precisa entender o que e comose categoriza o mundo. Por isso, em sua companhia,trabalha com uma filsofa, professora da universidadede Frankfurt, que no dita regras para os seusbailarinos, mas ajuda a form-los, o que significaajustar a organizao das idias. o que Forsytheparece buscar ao ler os corpos de seus bailarinos,durante os ensaios e apresentaes. Esse coregrafo- assim como Pina Bausch e muitos outros - chama

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    nossa ateno para o fato de que no se pode falar dedana sem falar do corpo, l de onde brotam os pro-cessos comunicativos.

    Antes de dar continuidade ao texto, preciso deixarclaro que, evidentemente, cognio e comunicao noso sinnimos, nem h uma relao de causa e efeitoentre ambas. A partir dos recentes estudos da Dinmica(VEN GELDER, PORT, 1991; THELEN, SMITH,1997), h um trao comum que o fato de ambas seremprocessuais (apud SHEETS-JONHSTONE,1998, p.266-267). No se trata de uma srie esttica de representaese, nesse sentido, no que se refere comunicao, esta nopode ser restrita a significados dados a priori. Nem tudoo que comunica opera em torno de mensagens jcodificadas. H taxas diferentes de coerncia, incluindo,por exemplo, a comunicao de estados e nexos de sentidoque modificam o corpo. Esses processos tm lugar notempo real de mudanas que ainda esto por vir, noambiente, no sistema sensrio-motor e nervoso. O sentidodo movimento d incio ao processo.

    Este parece um caminho interessante para darprosseguimento a uma pesquisa - da qual este artigo uma tentativa preliminar de levantar algumashipteses que devem ser estudadas no decorrer deuma investigao mais longa - tendo em vista entendero corpo em movimento como matriz da comunicaoe da cognio e a dana como uma especializaoocorrida durante o processo evolutivo do homem eque trabalha basicamente com o movimento me-tafrico. O pensamento metafrico que se organizaa partir de sucessivas e incessantes representaesdo real, desloca a ao cotidiana para os domnios do

  • Christine Greiner

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    simblico. Em termos de estudos da comunicao,tais reflexes so interessantes no sentido de chamara ateno para os modos como se do os processosde comunicao referentes ao real, uma tessitura demapeamentos que se cruzam dentro e fora do corpoorganizando espaos de estado.

    neste sentido que uma dana comunica noapenas o que pode ser sintetizado em significadosdados a priori. A dana comunica o que um corpoespecializado tece como processo cognitivo emtempo-espao e anuncia como possibilidade futura.

    Como sistema aberto e complexo, refaz sentidos que,a despeito da vontade do sujeito, vivem para comunicare, por conseguinte, para transformar os ambientes ondeganham estabilidade suficiente para sobreviver.

    Referncias bibliogrficasBLACKMORE, Susan The meme machine. New York: OxfordUniversity Press, 1999.

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    A dana como estratgia evolutiva da comunicao corporal

    Ano 10, n 18, 1 semestre de 2003

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    Christine Greiner professora do Programa de EstudosPs-Graduados em Comunicao e Semitica e do curso

    de Comunicao das Artes do Corpo (PUC-SP).Coordenadora do Centro de Estudos Orientais. Autora dos

    livros But, pensamento em evoluo e Teatro N e oOcidente. Ps-doutora pela Universidade de Tquio.

  • Ciane Fernandes

    62 LOGOS 18: Comunicao e Artes

    TTTTTrrrrransgresses emansgresses emansgresses emansgresses emansgresses emharmonia: contrharmonia: contrharmonia: contrharmonia: contrharmonia: contribuiesibuiesibuiesibuiesibuies dana-teatro de L dana-teatro de L dana-teatro de L dana-teatro de L dana-teatro de Labanabanabanabanaban

    Ciane Fernandes*

    RESUMOO artigo apresenta e analisa a contribuio de profissionaisbrasileiros ao Sistema Laban e ao desenvolvimentocontemporneo das artes cnicas, trabalhando o conceito deharmonia dentro do contexto ps-colonial e desconstrutivo.Palavras-chave: Dana-teatro, desconstruo, brasilidade

    ABSTRACTThe article presents and analyses the contribution of some brazilianprofessionals to the Laban System and to contemporary upcomings in theperforming arts, portraying harmony within the context of post-colonialism and deconstruction.Keywords: Dance-theater, deconstruction, Brazil

    RESUMENEste artculo presenta y analiza la contribucin de algunos profesionalesbrasileos al Sistema Laban y a los desarrollos contemporneos de lasartes cnicas, retratando la idea de harmona en el contexto poscolonialy desconstrutivo.Palabras clave: Danza-teatro, desconstruccin, brasilidad

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    Transgresses em harmonia: contribuies dana-teatro de Laban

    Ano 10, n 18, 1 semestre de 2003

    Este artigo busca uma redefinio do conceito deharmonia na dana-teatro contemporne