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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Ana Paula Soares Gondim COMPORTAMENTOS E AÇÕES POPULARES NO ENFRENTAMENTO DE DOENÇAS RESPIRATÓRIAS INFANTIS EM UM ASSENTAMENTO URBANO Salvador – Bahia 2007

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Page 1: COMPORTAMENTOS E AÇÕES POPULARES NO … · nesse assentamento. Foram empregadas como técnicas de produção de dados entrevista semi-estruturada, ... Respiratórias Infantis

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Ana Paula Soares Gondim

COMPORTAMENTOS E AÇÕES POPULARES NO

ENFRENTAMENTO DE DOENÇAS RESPIRATÓRIAS

INFANTIS EM UM ASSENTAMENTO URBANO

Salvador – Bahia

2007

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Ana Paula Soares Gondim

COMPORTAMENTOS E AÇÕES POPULARES NO ENFRENTAMENTO DE

DOENÇAS RESPIRATÓRIAS INFANTIS EM UM ASSENTAMENTO URBANO

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Saúde

Coletiva, com área de concentração em Ciências

Sociais em Saúde, do Instituto de Saúde Coletiva da

Universidade Federal da Bahia, para a obtenção do

título de Doutor.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Caroso

Salvador – Bahia

2007

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Universidade Federal da Bahia

Doutorado em Saúde Pública

Título: Comportamentos e Ações Populares no Enfrentamento de Doenças Respiratórias

Infantis em um Assentamento Urbano

Aluna: Ana Paula Soares Gondim

Tese apresentada ao curso de Doutorado em Saúde Pública do Instituto de Saúde

Coletiva da Universidade Federal da Bahia como requisito para o Título de Doutor em

Saúde Pública.

Defesa em: 09 / 03 / 2007 Conceito obtido: Aprovado

BANCA EXAMINADORA

______________________________________

Prof. Dr. Carlos Caroso - Orientador

Prof. Dra. Marilyn Kay Nations

________________________________

Prof. Dra. Carla Costa Teixeira

________________________________

Prof. Dra. Maria Lígia Rangel Santos

________________________________

Prof. Dr. Jorge Alberto Bernstein Iriart

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Dedico este estudo às minhas filhas,

Carol e Bela

E a todas as crianças.

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AGRADECIMENTOS

A realização deste estudo não seria possível se não tivesse existido o desejo de

partilhar juntos emoções, ensinamentos, discussões coletivas e individuais e apoio para

ultrapassar muitas adversidades e, sobretudo, por nossos sonhos;

Adísio, meu companheiro, agradeço pelo apoio em todos os momentos, até nos

mais obscuros e pela compreensão dos distanciamentos espaciais e emocionais;

À minha mãe Zelinda por estar presente, principalmente nas horas mais difíceis,

pela força que tem me dado nesta caminhada;

A minha tia Celeni por estar presente, principalmente nas horas mais difíceis, pela

ajuda tanto material como de energia que tem me dado nesta caminhada;

À minha irmã Ana Cristina Soares pelas sugestões e disponibilidade em

momentos de leitura e pelo apoio de incentivo;

Ao Prof. Dr. Carlos Caroso, meu orientador, pelo apoio e seriedade na realização

desta conquista;

À Profa. Dra. Marilyn Nations, pelo apoio e disposição em contribuir

valiosamente neste estudo;

Aos Professores Dra. Carla Teixeira, Dra. Maria Lígia Rangel e Dr. Jorge Iriart

por suas disponibilidades de tempo para leitura e imprescindíveis contribuições para o

aprimoramento do estudo;

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Agradeço a colaboração dos moradores da Comunidade do Dendê, e em especial

às mães e às crianças que permitiram mostrar seus modos de vida por meio das doenças

respiratórias;

À diretora do Centro de Ciências da Saúde da Universidade de Fortaleza, Profa.

Dra. Fátima Fernandes Vera, por sua compreensão e incentivo para a realização deste estudo;

À Profa. Rita de Cássia, ex-diretora do NAMI, pela compreensão e incentivo para

a realização deste estudo.

À Universidade de Fortaleza pelo apoio financeiro indispensável;

Aos amigos de ontem, hoje e sempre, pela presença nos momentos vividos.

Em particular, agradeço à minha amiga Ana Maria Vasconcelos, pela revisão do

português e orientações sobre o texto.

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“... deve-se sempre começar do começo, por mais óbvio

que pareça o que se observa – ou talvez possa se dizer,

que quanto mais óbvio parecer o que se vê e ouve, mas

se deve desconfiar e buscar desatar tramas.”

Cohn

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RESUMO

Este estudo investiga os comportamentos e ações voltadas para os cuidados com as crianças, que enfrentam as doenças respiratórias infantis ou das pessoas que vivem com essas doenças ao longo da vida em um assentamento urbano em Fortaleza. Tomamos como ponto de partida a análise da semiologia popular construída através de categorias êmicas e identificadas nas narrativas de casos concretos, pelas quais são reconstituídas as experiências dos problemas respiratórios infantis.

O referencial teórico e metodológico adotado foi denominado de sistema de signos, significados e ações desenvolvidos por Corin, Bibeau e outros, aplicado à compreensão e explicação dos comportamentos para enfrentar tais doenças.

O trabalho de campo etnográfico foi realizado com vinte e dois informantes-chave, residentes nesse assentamento. Foram empregadas como técnicas de produção de dados entrevista semi-estruturada, observação participante e informações documentais, tendo essas complementado e facilitado a triangulação de informações.

Os resultados analisados sobre os comportamentos dos sujeitos frente às doenças respiratórias infantis permitiram depreender como dispositivos patogênicos estruturais associados a essas doenças identificados pelos elementos que compõe a cultura, condição socioeconômica, biologia, geografia e política; enquanto a pobreza, o ambiente e a própria história do assentamento constituíram-se como condicionantes estruturantes.

No que se refere à análise do modelo explicativo das doenças respiratórias infantis, observamos que as descrições sobre causalidade, transmissão, manifestações, gravidade, processo terapêutico e preventivo, caracterizam-se sob as óticas cultural, psicológica, espiritual, socioeconômica, política e ambiental. A partir de seus discursos, os informantes produziram uma visão integral de saúde e dessas doenças. Na maioria das vezes, os sujeitos inter-relacionavam os fatores ambientais, sociais, econômicos e psicológicos numa perspectiva multicausal haja vista estarem apoiados em várias formas de tratar e prevenir tais doenças. Constatamos que as mães apresentam reações de cuidado com intuito de promover e construir sólidos vínculos afetivos e emocionais com seus filhos. Verificamos que os diversos comportamentos frente às doenças estão intimamente relacionados ao contexto sociocultural, porém, em grande parte, são influenciados por aspectos como o conhecimento e a disponibilidade de recursos terapêuticos; acessibilidade a recursos do setor comunitário tais como rezadeiras e raizeiros urbanos, uso doméstico de plantas medicinais, e, em alguns casos, constatamos a interferência das emoções, condições sócio-econômicas e da avaliação que fazem parte dos sistemas terapêuticos disponíveis.

Por fim, consideramos esses achados com grande repercussão na vida dessas pessoas, na medida em que há uma integração dos contextos sociocultural, econômico, político e ambiental, nas ações de promoção da saúde infantil. Nesse sentido, percebemos que efetivamente as ações em saúde somente atingirão essas comunidades, quando o universo sociocultural for incluído nas políticas de saúde infantil destinadas a essas comunidades, caso contrário, as ações permanecerão como maneira comunitária de enfrentamento das doenças respiratórias infantis.

Antropologia da saúde, etnografia; doenças respiratórias infantis; comportamentos e ações.

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ABSTRACT

This study investigates behaviors and actions directed toward children’s cares, who suffer by infantile respiratory illnesses or people who deal with these illnesses during their whole lives in an urban settlement in Fortaleza. This research started from a popular semiology analysis, built up according to emics that were identified on categories of true cases narratives, through which are reconstituted the experiences of these infantile respiratory problems. The theoretical and methodological referential adopted was references adopted were named as system of signs, meanings and action, developed by Corin, Bibeau and others, applied to understanding and explanation of behaviors in order to face these illnesses.

This ethnographic field study was carried with twenty two key-subjects in this settlement. Some following data of production techniques were used as interview, the key-subjects’ comments and dossier information, whose propose was to fulfill and make easy the information triangulation. The analyzed results regarding citizens’ behaviors concerning infantile respiratory illnesses allowed us to infer them as structural pathogenic devices to these illnesses culture, social-economic standing, biology, geography and politics; while poverty, environment and their own stories of settlement consisted of a structuring answers of circumstances.

Concerning clarifying model analysis of infantile respiratory illnesses, we observed that descriptions on causality, transmission, manifestations, gravity, therapeutic and preventive processes are characterized under culture, psychological, spiritual, social-economic, political and environmental points of view.

Considering up from their speeches, the key-subjects produced a holistic vision of health as well as of the studied illnesses. Mostly, they interrelated environmental, social, economic and psychological factors in a multi-causal perspective since they were supported in some forms of treating and preventing such illnesses. It was evidenced that mothers presented precaution reactions to promote and construct solid, affective and emotional bonds with their children. We also verified that several behaviors concerning respiratory illnesses are closely related to social-cultural context, but are mostly influenced by other aspects as knowledge and availability of therapeutic resources; accessibility to resources of communitarian sector such as prayer women and people who prepare remedies from medicine plants and in some cases, we observed the interference of emotions, social-economic conditions as well as of evaluation that make part of the available therapeutic systems.

Finally, we consider these findings of great repercussion in these people’s lives, since there is integration of social-cultural, economic, political and environmental contexts and in attitudes that promote infantile health. Hence, health attitudes, effectively, will only reach these communities, when this social-cultural universe get into the politics responsible for infantile health and destined to these communities, on the contrary, the actions will remain as a communitarian way of infantile respiratory illnesses confrontation.

Keywords: health anthropology; ethnography; infantile respiratory illnesses; behaviors and action.

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LISTA DE QUADROS

Pág.

Quadro 1: Estrutura do Sistema de Cuidado com a Saúde - Estrutura Interna...... 70

Quadro 2: Modelo Semântico – Pragmático................................................................. 78

Quadro 3: Elementos da Análise Contextual e Sociocultural dos Problemas de

Saúde em um Grupo.......................................................................................................

80

Quadro 4: Características Gerais e Participação dos Informantes-chave no

Estudo……………………...............................................................................................

105

Quadro 5: Glossário Popular dos Problemas Respiratórios

Infantis.............................................................................................................................

159

Quadro 6: Análise das Causalidades Contextual e Sociocultural das Doenças

Respiratórias Infantis.....................................................................................................

175

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...............................................................................................................13 1 DOENÇAS RESPIRATÓRIAS INFANTIS E POBREZA: UM PROBLEMA DE SAÚDE

PÚBLICA?............................................................................................................................ 20 1.1 Doenças Respiratórias Infantis e seu Impacto..........................................................20 1.2 Presença da Pobreza Infantil no Mundo e no Brasil.................................................23 1.3 Abordagens dos Modelos Culturais das Doenças Respiratórias Infantis ..................28 1.4 Breve Histórico das Ações de Saúde Infantil no Brasil............................................30 1.5 Valor e Poder da Infância na Sociedade Contemporânea.........................................34

2 CONTRIBUIÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS DAS CIÊNCIAS SOCIAIS AOS

ESTUDOS DA INFÂNCIA E DA SAÚDE.......................................................................... 44 2.1 Infância e suas Abordagens na Antropologia e Sociologia da Infância ....................44 2.2 A Doença como um Processo Social e Cultural.......................................................56 2.3 Aplicação do Modelo de Análise de Sistema de Signos, Significados e Ações ........71

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ....................................................................... 84

3.1 Aproximação com o Trabalho de Campo ................................................................84 3.2 Contexto do Estudo.................................................................................................88 3.3 Fases do Procedimento da Pesquisa ........................................................................98 3.4 Seleção dos Informantes-chave ............................................................................. 102

4 EXPERIÊNCIAS DE PROBLEMAS RESPIRATÓRIOS INFANTIS ......................... 108

4.1 Doença Respiratória Acaba com a Infância ........................................................... 110 4.2 Doença Respiratória Domina Toda a Infância ....................................................... 118 4.3 Doença Respiratória com Impacto na Fase Adulta ................................................ 133

5 COMPORTAMENTOS E AÇÕES DE SAÚDE FRENTE ÀS DOENÇAS RESPIRATÓRIAS INFANTIS ...................................................................................... 141

5.1 Identificação e Descrição dos Recursos Terapêuticos Locais................................. 143 5.1.1 Setor Profissional ........................................................................................... 143 5.1.2 Setor Comunitário.......................................................................................... 145

5.2 Identificação, Descrição e Análise dos Signos dos Moradores frente às Doenças Respiratórias Infantis.................................................................................................. 153 5.3 Modelo Explicativo das Doenças Respiratórias Infantis ........................................ 161

5.3.1 Causalidade.................................................................................................... 161 5.3.2 Transmissão................................................................................................... 164 5.3.3 Manifestações ................................................................................................ 165 5.3.4 Gravidade ...................................................................................................... 168

5.4 Ações no Enfrentamento dos Problemas Respiratórios Infantis ............................. 170 6 CRIANÇAS E A VIDA NA COMUNIDADE DO DENDÊ ........................................ 177

6.1 Um Olhar sobre a Comunidade ............................................................................. 177 6.2 Qual é o Espaço Social da Criança na Comunidade? ............................................. 181 6.3 A História de um Assentamento Urbano ............................................................... 193

7 CONCLUSÃO ............................................................................................................ 212

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Anexo 1 – Fotografia Aérea do Local do Estudo (SEINFRA, 2002) ............................... 232 Anexo 2 – Mapa da Secretaria Executiva Regional VI (FORTALEZA, 2001) ................ 233 Anexo 3 – Roteiro sobre a História do Bairro ................................................................. 234 Anexo 4 – Roteiro sobre Saúde e Doença Respiratória Infantil ....................................... 235 Anexo 5 – Roteiro da Reconstrução dos Casos ............................................................... 237

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INTRODUÇÃO

Este estudo parte do pressuposto que a compreensão das doenças respiratórias

infantis deve tomar em consideração a mediação entre os registros médicos e epidemiológicos

e as maneiras como as diferentes comunidades os concebem e reagem frente a sua ocorrência.

Consideramos, assim, que as explicações dadas para as doenças respiratórias são mediadas

efetivamente por grupos humanos, e que sua percepção resulta da combinação entre processos

sociais, culturais, biológicos, geográficos, políticos e ambientais.

Os processos sociais e culturais podem construir importantes variações dos

comportamentos e significados dos sujeitos frente às doenças respiratórias infantis,

constituindo-se em um modelo classificatório popular das doenças respiratórias. Esse modelo

foi tomado para análise neste estudo e é compreendido como uma abordagem êmica1, que

descreve os comportamentos culturais, a fim de desvendar quais são as estruturas relevantes e

seus significados para os membros dessa cultura, os quais identificam seus critérios quanto à

classificação e conceituação dos problemas respiratórios. Embora sejam visíveis as limitações

da compreensão dos contextos locais, é importante levar em consideração os processos lógicos

predominantes em cada contexto como os da família dos sujeitos. Sendo assim, torna-se

fundamental a contribuição da Antropologia para compreender a construção dos processos

culturais e sociais das doenças respiratórias infantis.

Historicamente, os estudos transculturais sobre as doenças respiratórias infantis

foram iniciados e realizados entre 1980 e 90, com o objetivo de identificar e caracterizar os

explicativos das doenças. Porém, essas descrições estudavam, de forma parcial, os fatores

sociais e culturais de um contexto em particular. Podemos citar os primeiros estudos de Gove

1 PELTO, P.J.; PELTO, G.H. Units of observation: emics and ethic approaches. Anthropological. Cambridge: Cambridge University Press, 1978, p. 54-66.

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e Pelto (1994), os de Hudelson (1994) e Hudelson et al. (1995) e, ainda os de Martinez et al.

(1997), desenvolvidos e publicados na América Latina e África. Gove e Pelto desenvolveram,

pela primeira vez, uma sistematização para os estudos transculturais das Infecções

Respiratórias Agudas (IRA) ao utilizarem uma abordagem etnográfica para investigar as

percepções e crenças das mães de crianças com IRA. Para isso, foi utilizado como estratégia

metodológica o Procedimento Avaliativo Rápido (RAP), o qual procura realizar uma

combinação de métodos qualitativos e quantitativos em um curto intervalo de tempo, com

vistas a identificar elementos focalizados na doença, não permitindo, dessa forma, um

conhecimento aprofundado do contexto cultural e social (GOVE; PELTO, 1994;

HUDELSON, 1994; HUDELSON et al., 1995).

O campo das Ciências Sociais em Saúde tem se caracterizado pela constante

discussão sobre os estudos transculturais, que abordam os modelos explicativos das doenças

respiratórias infantis, por meio da identificação e coleta dos termos mais utilizados

regionalmente, descrição dos sinais e sintomas da doença e de práticas mais comuns no seu

manejo, em busca de resolução do problema, cuja estratégia metodológica mais empregada é o

RAP (SCRIMSHAW; HURTADO, 1988).

No entanto, Menéndez (1998) afirma que, a escolha por essa metodologia pode

dar lugar a várias deformidades: hiper-empirismo, a-teoricismo, qualidade duvidosa ou não

estratégica da informação. Ou seja, pode chegar a replicarem-se as características dominantes

das produções epidemiológica e sociológica, as quais, paradoxalmente, foram questionadas.

Enquanto a abordagem qualitativa supõe não apenas o uso de determinadas palavras, mas um

rigoroso controle epistemológico em nível artesanal, mas também um questionamento

metodológico das urgências.

De acordo com Bibeau (1981), os estudos antropológicos devem preceder toda

comparação transcultural. Esses estudos fundamentam o desenvolvimento de uma

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epidemiologia verdadeiramente sociocultural. Para tanto, esse autor propõe uma conjugação

entre as abordagens antropológicas e epidemiológicas no sentido de avançar no debate sobre o

que é específico a um grupo particular e o que é universal por pertencer à natureza humana.

Em antítese a isso, os estudos transculturais podem revelar uma menor variação cultural ou

universal dos comportamentos frente aos problemas respiratórios infantis.

É constatada uma escassez de trabalhos sobre as doenças respiratórias infantis na

perspectiva das Ciências Sociais em Saúde, o que culmina com a inexistência de antropologias

sobre esse tema no Brasil e, particularmente, no Ceará, sobretudo quando se leva em

consideração a magnitude desse problema em todas suas dimensões.

De um modo geral, os estudos antropológicos sobre as doenças respiratórias

infantis não contemplam uma análise dos comportamentos, ações e significados que conferem

a uma dimensão cultural no universo particular e empírico dos grupos sociais envolvidos. Os

estudos antropológicos desenvolvidos no Nordeste Brasileiro, particularmente no Ceará,

abordam temas como doenças diarréicas infantis, mortalidade infantil, alimentação infantil e

amamentação (NATIONS et al., 1984; NATIONS; REBHUN, 1988a, 1988b; NATIONS et

al., 1988; SCHEPER-HUGHES, 1992; MONTE et al., 1997). Tais estudos aplicam uma

abordagem etnomédica para a compreensão dos fenômenos da saúde e doença, os quais

buscam investigar os fatores socioculturais, bem como levantam informações sobre a

taxonomia cultural, etiologia, formas de transmissão, tratamento, prevenção e prognóstico

popular. Contudo, pode-se ainda notar que, em alguns desses estudos, é proposta uma

articulação entre os estudos antropológicos e epidemiológicos, embora sejam estabelecidas

relações complementares entre os primeiros (NATIONS, 1986; NATIONS; AMARAL, 1991;

NATIONS, 1992; GUERRANT; DE SOUSA; NATIONS, 1996).

A compreensão das doenças respiratórias a partir da experiência de adoecer do

sujeito leva a uma descrição mais ampla do seu comportamento diante dessas doenças. Tal

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experiência do sujeito em relação à doença é bem ilustrada por Bibeau (1992) e Bibeau e

Corin (1995). Segundo esses autores, a experiência do adoecimento é fundada em uma

perspectiva global e articula trajetórias individuais, códigos culturais das comunidades,

contexto macrossocial e determinação histórica.

Trabalhamos com a abordagem da antropologia interpretativa, por tornar possível

a integração do contexto cultural com os problemas de saúde e doença, no caso em questão, as

doenças respiratórias infantis que acometem os moradores de um assentamento urbano na

cidade de Fortaleza. Assim, através da visão da realidade e da noção de cultura, manifestada

pela multiplicidade dos comportamentos concretos e da multivocalidade dos discursos sobre

saúde e doença, é possível identificar uma cultura representada em seu modo de vida e no

universo social. Tal cultura, em última instância, se reflete nos comportamentos e significados

que são atribuídos aos problemas respiratórios infantis.

Helman (1994) ressalta um aspecto importante do papel da cultura e enfatiza que

ela deve sempre ser vista em seu contexto particular, o qual é composto de elementos

históricos, econômicos, sociais, políticos e geográficos. Isso significa dizer que a cultura de

um grupo de pessoas, em qualquer tempo, é sempre influenciada por muitos fatores.

A introdução da abordagem de análise interpretativa nos estudos da Antropologia

Médica Americana, no início dos anos 70, permitiu contribuir para uma mudança de

paradigma capaz de desenvolver uma abordagem teórico-metodológica que considere os

significados locais e os variados comportamentos a eles relacionados, antes de realizarem-se

comparações por meio dos estudos transculturais (GOOD; GOOD, 1980; KLEINMAN, 1980).

Além disso, os estudos antropológicos contribuem efetivamente quando se

pretende uma intervenção em saúde que busque uma transformação comportamental das

pessoas, pela mudança da lógica dos programas de saúde que partem das experiências e

significados dos sujeitos em um determinado contexto cultural e social (FINCHAM, 1992).

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Quando não se levam em consideração esses estudos, muitas vezes, as intervenções partem do

pressuposto de que a informação é oriunda de uma transformação automática dos

comportamentos das populações frente às doenças.

Cabe esclarecer que a abordagem metodológica adotada baseia-se na análise da

semiologia popular, compartilhada pelas pessoas em seus sistemas de significados, que são

socialmente enraizados e historicamente construídos. Na visão de Bibeau e Corin (1995), os

sistemas de significados não existem como um corpo de conhecimento explicitamente

conceituado, mas são formados por um conjunto de elementos imaginários, simbólicos,

ritualizados e racionais, os quais compõem a prática social dos indivíduos; tanto é que, quando

moradores se defrontam com doenças respiratórias no cotidiano, constroem e respondem

através de seus sistemas de signos, significados e ações (Ibidem).

Com referência à discussão acima apresentada, realizamos, nesta tese, uma

etnografia focalizada para compreender as relações dos moradores de uma área pobre em um

assentamento da cidade de Fortaleza e suas experiências em relação às doenças respiratórias

infantis. Os moradores desse assentamento apresentam marcas culturais próprias, uma forma

própria de gerir suas relações com o meio urbano, além de sinalizarem as experiências que,

enquanto tais, conduzem a elementos importantes para a compreensão das questões sociais,

econômicas, históricas e culturais relacionadas às doenças respiratórias infantis.

Assim, tomamos como ponto de partida da nossa tese a questão de pesquisa

formulada de maneira a compreender como são construídos e compartilhados os modelos de

interpretações e ações frente às doenças respiratórias infantis dos moradores de um

assentamento urbano (grifo nosso).

Com vista a fornecer possíveis respostas à questão de pesquisa, que delimita os

objetivos do nosso estudo ora definidos, foram elaborados e limitados claramente os aspectos

do objeto em estudo.

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O objetivo principal do estudo foi o de identificar e caracterizar os signos,

significados e ações populares na identificação e interpretação das doenças respiratórias

infantis entre os moradores de um assentamento na cidade de Fortaleza do Nordeste

Brasileiro.

A partir do objetivo geral, elaboramos sistematicamente os objetivos secundários

abaixo, que vieram a orientar a produção do corpus etnográfico desta tese, que foram de:

1. Identificar, caracterizar e analisar os signos relacionados às doenças

respiratórias reconhecidas por moradores desse assentamento, bem como

descrever os significados atribuídos a essas doenças, as reações e cuidados

dispensados aos seus portadores;

2. Identificar e analisar a semiologia popular das doenças respiratórias infantis

entre os moradores desse assentamento;

3. Identificar e analisar as suas ações populares em saúde (preventivas,

terapêuticas, cura, etc.) relacionadas às doenças respiratórias entre os

moradores e;

4. Reconstruir as experiências dos sujeitos frente às doenças respiratórias infantis

nesse assentamento por meio de casos concretos.

Com vistas resolvermos nossa proposta de estudo, tornou-se necessário dividir a

tese em seis capítulos: o primeiro refere-se à discussão de como as doenças respiratórias

infantis são caracterizadas e analisadas no campo da Saúde Pública.

O segundo apresenta as contribuições das Ciências Sociais partindo da

Antropologia da Infância de base nos princípios da Sociologia da Infância à Antropologia da

Saúde com aplicação do modelo teórico da análise dos processos sociais e culturais das

doenças respiratórias infantis, designado como sistema de signos, significados e ações em

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saúde. Esse modelo teórico é uma proposta de investigação na perspectiva da Antropologia da

Saúde que dialoga em uma aproximação da análise interpretativa, fenomenológica e crítica.

O terceiro capítulo compõe o percurso metodológico em que se destacam as

seguintes seções: introdução ao campo; contexto do estudo; descrições das técnicas de coletas

de dados empregadas no estudo; características e descrições dos vinte e dois informantes-

chave que participaram da pesquisa; procedimentos de coleta de dados e descrição do

processo de análise de interpretação e compreensão dos sujeitos com doenças respiratórias

infantis.

O quarto capítulo apresenta a experiência de seis casos concretos de problemas

respiratórios infantis; partindo da noção de experiência da doença, na qual o sujeito situa-se

perante a doença respiratória a fim de permitir-lhe significados e formular rotinas para lidar

com essa doença.

O quinto capítulo apresenta a construção das redes semânticas das doenças

respiratórias infantis a partir da semiologia popular. Apresenta também a análise do modelo

explicativo das respiratórias infantis, fundamentada no modelo proposto por Kleinman (1980),

que descreve os seguintes elementos: causalidade, manifestações, tratamento, gravidade e

noções de prevenção relacionadas às doenças respiratórias infantis.

Por fim, o sexto capítulo apresenta o modo cotidiano de viver dos moradores da

Comunidade do Dendê, o qual foi relacionado com os problemas de saúde e sociais,

particularmente com a experiência dos moradores em adoecer por problemas respiratórios.

Essa descrição parte de uma observação participante na comunidade e das narrativas de alguns

moradores que foram selecionados como informantes-chave.

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CAPÍTULO 1

1 DOENÇAS RESPIRATÓRIAS INFANTIS E POBREZA: UM PROBLEMA DE

SAÚDE PÚBLICA?

Neste primeiro capítulo será identificada a problemática a que se refere este

estudo, a qual é representada pelas doenças respiratórias infantis em contextos de pobreza,

abrangendo as relações de valor e poder da infância na sociedade contemporânea. Para isso,

torna-se necessário considerar algumas referências teóricas fundamentais para situarmos tal

problemática em um quadro mais amplo de cuidados em saúde. A discussão começa com

alguns indicadores epidemiológicos de saúde infantil e de pobreza, em contextos mundiais,

nacionais, estaduais e locais, particularmente em Fortaleza. Em seguida, são considerados

alguns aspectos históricos e sociais da infância no mundo e no Brasil, abrangendo as relações

de valor e poder da infância em nossa sociedade contemporânea.

1.1 Doenças Respiratórias Infantis e seu Impacto

Os estudos epidemiológicos revelam que, indiscutivelmente, as doenças

respiratórias infantis representam um relevante problema de Saúde Pública em todas as partes

do mundo. Apesar dessa constatação, esses estudos também demonstram uma severa

desigualdade em termos de distribuição dessas doenças entre países desenvolvidos e em países

em desenvolvimento. Enquanto de 1 a 3% das crianças com menos de cinco anos de idade

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morrem por doenças respiratórias (pneumonias, bronquiolites e bronquites) nos países

desenvolvidos; os índices aumentam para 10 a 25% nos países em desenvolvimento,

estimando-se que 90% dessas mortes sejam devido à pneumonia (BENGUIGUI et al., 1998).

Em um outro levantamento realizado em oitenta e oito países, foram evidenciadas

as mais elevadas taxas de mortalidade nos países da África, América do Sul e Central para

todas as idades. Embora a situação seja mais dramática para crianças menores de um ano de

idade. Nesse mesmo levantamento, cerca de 25% da população mundial apontaram que os

óbitos por infecções respiratórias agudas no período de doze meses foram de seiscentos e

sessenta e seis mil. Supondo-se que os outros 75% da população mundial apresentem o

mesmo índice, poder-se-ia dizer que, em média, tais doenças ocasionam dois milhões e

duzentas mil mortes por ano (BULLA; HITZE, 1978).

Nos países em desenvolvimento, o agravamento dessas doenças ocorre

principalmente em áreas pobres e pode ser atribuído à degradação da condição de vida

existentes nesses locais, como: precária condição de moradia; falta de saneamento e

deficiência nos serviços de saúde. Tal situação é reforçada pela inexistência de políticas

sociais efetivas, falta de reestruturação do setor público de saúde, precário processo de

urbanização e modernização das pequenas, médias e grandes cidades nesses países - em

particular, no Brasil.

No Brasil, as estatísticas oficiais disponíveis indicam o crescimento de pneumonia

e tuberculose nos últimos anos em decorrência das inadequadas condições de moradias

(HITZE, 1978; BRUCE; PEREZ-PADILLA; ALBALAK, 2000). Esses e outros estudos

demonstram um complexo entrelaçamento de diferentes problemas de caráter social com as

doenças respiratórias, em um contexto cada vez maior de precariedade das condições sócio-

sanitárias (BENGUIGUI, 1987; LIMA; FERNANDES; AMARAL, 1998).

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Os dados do Ministério da Saúde revelam que as doenças respiratórias têm papel

significativo nas mortes e doenças de crianças menores de quatro anos de idade em todas as

regiões do País. Só no ano de 2003, essas doenças ocuparam a terceira causa de morte em

crianças e, em 2005, representaram a primeira causa de internamentos hospitalares pelo

Sistema Único de Saúde (SUS). Como esses dados provêm somente do serviço de saúde do

SUS e nem toda a população é atendida por esse serviço e muito menos pelo serviço privado,

devido à falta de acesso a esses serviços, imagina-se um quadro bem mais dramático das

doenças respiratórias infantis na população pobre brasileira. No Nordeste, a situação é bem

mais grave entre crianças, idosos e famílias pobres que dispõem de menos informações e falta

de atendimento nos serviços oficiais de saúde.

No Ceará, segundo McAuliffe, Correia e Victora (1991), as doenças respiratórias

em crianças são a causa mais freqüente de atendimento ambulatorial do serviço público. Em

2003, essas doenças apareceram como a quarta causa de mortalidade em crianças menores de

um ano de idade e, em 2005, constituíram a terceira causa de internamento hospitalar pelo

SUS (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2006).

Em Fortaleza, as doenças respiratórias em crianças na faixa de um a quatro anos

de idade vêm ganhando expressivo espaço. Em 2005, revelou-se um dado alarmante, quase

metade (45,2%) dos internamentos hospitalares pelo SUS, de crianças nessa faixa etária,

ocorreu por conta dessas doenças (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2006).

Diante do quadro epidemiológico das doenças respiratórias infantis no mundo, no

Brasil, no Ceará e especificamente em Fortaleza, constatamos que tal problema é significativo

na população pobre. E isso nos leva tentar encontrar alguns indicadores comparativos sobre

pobreza no Mundo e no Brasil, particularmente no Nordeste, com o objetivo de identificar

algumas dessas características para os moradores pobres de um assentamento urbano de

Fortaleza a fim de as relacionarmos com as doenças respiratórias infantis.

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1.2 Presença da Pobreza Infantil no Mundo e no Brasil

Os dados internacionais do Relatório da 27a Sessão Especial da Assembléia Geral

das Nações Unidas sobre a criança revelam que a pobreza e a falta de acesso aos serviços

sociais básicos resultam, anualmente, em dez milhões de mortes de crianças com menos de

cinco anos de idade, em todo o mundo. Quase a metade delas ocorre no período neonatal2,

devido às doenças evitáveis e à desnutrição. Esse Relatório também divulga que cem milhões

de crianças ainda estão fora da escola, sendo sessenta por cento delas meninas, e que cento e

cinqüenta milhões de crianças com menos de cinco anos de idade sofrem de desnutrição, além

do vírus HIV/AIDS propagar-se a uma velocidade catastrófica entre populações infantis

(PROGRAMA DO FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2003).

Os dados a seguir reiteram ainda os enormes percentuais quanto à mortalidade

infantil no planeta como: as complicações durante a gravidez e o parto advindas da anemia e

da desnutrição das mães, as quais causam, a cada ano, a morte de meio milhão de mulheres e

adolescentes, bem como provocam danos e incapacidades a tantas outras mais. Mais de um

bilhão de pessoas não dispõem de água tratada; e mais de dois bilhões de pessoas não têm

acesso a serviços de saneamentos adequados. Ainda há pobreza, exclusão e discriminação

persistentes e os investimentos em serviços sociais são insuficientes (PROGRAMA DO

FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2003).

O Relatório também destaca que a carga da dívida externa, os excessivos gastos

militares desproporcionais com as exigências de Segurança Nacional, os conflitos armados, a

ocupação estrangeira, a manutenção de reféns, dentre outros fatores, podem criar obstáculos às

medidas nacionalmente adotadas para lutar contra a pobreza e assegurar o Bem-Estar Social

2 Período neonatal corresponde aos óbitos que ocorrem até 28 dias de vida (ROUQUAYROL; ALMEIDA-

FILHO, 2003).

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das crianças. A infância de milhares de seres humanos continua sendo destruída pela

necessidade de trabalhar em condições de perigo, pela venda e o tráfico de crianças e de

adolescentes, bem como por outras formas de maus-tratos, descuido, exploração e violência.

A experiência alcançada na última década do século XX confirmou que deve ser dada

prioridade às necessidades e aos direitos das crianças em todas as atividades de seu

desenvolvimento (PROGRAMA DO FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2003).

Nos países muito pobres, a pobreza absoluta continua sendo fundamental na

determinação dos diferenciais sociais. Entretanto, nos emergentes, como o Brasil, as

desigualdades relativas, não apenas na renda, mas nas demais condições de vida, adquirem

importância crescente, sem que as diferenças absolutas deixem de ser importantes. Nesses

países, o crescimento da economia é marcado pela maior segregação em que convivem

situações polares de afluência e pobreza, principalmente nos grandes centros metropolitanos,

fato que determina a convivência dos dois tipos de desigualdades: o absoluto e o relativo

(WAITZMAN; SMITH, 1998; NUNES et al., 2001).

No Brasil, convém observar que a pobreza tem características sexuais, étnicas e

regionais. Sendo assim, lares chefiados por negros correspondem a 69% do total de

indigentes, verificando-se ainda que sua renda corresponde a 42% da renda das casas

chefiadas por brancos e a 24% das casas cujos chefes são asiáticos. Além disso, a média de

vencimento mensal é de 2,61 salários para um pardo, de 2,71 para um negro e 5,6 para um

branco. O branco tem, em média, 7,5 anos de estudo, enquanto negros e pardos têm apenas

5,1. A taxa de analfabetismo entre brancos é de 8,4%, ao passo que, entre pardos, essa taxa é

de 20,7% e, entre negros, é de 21,6% (GUILHON, 2001).

É preciso lembrar que a pobreza no Nordeste do Brasil é mais acentuada onde

vivem 30% da população e residem 63% dos indigentes do País. Nessa região, os 50% mais

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pobres detêm 15,4% dos rendimentos, enquanto o mais rico fica com 16,4% (GUILHON,

2001).

A linha de pobreza, definida pelo Governo, é calculada pelo custo da cesta básica

de alimentos: pobres são aqueles que, embora tenham o que comer, não conseguem satisfazer

outras necessidades básicas como habitação, vestuário, transporte e educação. Enquanto os

indigentes são aqueles que não conseguem adquirir a cesta básica de alimentos

(GUIMARÃES, 2000).

Embora a concentração da pobreza brasileira na região Nordeste não seja um dado

novo, ela ganha, certamente, algumas características peculiares em um período mais recente,

quando apontam-se diferenças significativas quanto ao chefe de família, residente em

domicílios particulares, e sua relação com a pobreza. Em um estudo realizado sobre o tema

(Iracema Guimarães, Pobreza, sobrevivência e arranjos familiares, 2000), as principais

observações foram:

há uma maior proporção de mulheres como referências das famílias;

os níveis de rendimento nessa região são os menores do País e as taxas de

atividades dos homens e mulheres são das mais baixas, os homens e, em especial, as mulheres

trabalham mais e são os que têm uma das piores remunerações do País e;

há uma elevada proporção de crianças e adolescentes que vivem em famílias de

indigentes, cuja renda é inferior a ½ salário mínimo (48,2%).

Entretanto, essa definição de pobreza, demonstrada pelos dados, não deve ser

pensada somente como insuficiência de renda, mas como um conjunto de carências sociais,

econômicas, políticas e de saúde. Demo (1996) aponta que a questão da pobreza está ligada à

exclusão política, ou seja, ao problema da desigualdade.

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Entendemos por pobreza política a dinâmica central do fenômeno chamado pobreza e que privilegia a dimensão da desigualdade. Assim, ser pobre não é tanto ‘ter’ menos (carente), mas ‘ser’ menos (desigual). Leva a visualizar, desde logo, que pobreza expressa uma situação de confronto histórico entre os que são menos e mais desiguais, aparecendo sob múltiplas formas concretas. Entre estas, costumamos destacar as carências materiais, como insuficiência de renda, fome, desemprego, etc., todas relevantes, mas ainda não mais cruciais. A condição mais aguda de pobreza é a exclusão de caráter político, historicamente produzida, mantida e cultivada (DEMO, 1996, p. 96-97).

Portanto, a falta de renda, como afirma Demo (1996, p. 94), representa “um

fenômeno decisivo na vida das famílias, mas é, sobretudo, decorrência de precariedade da

cidadania histórica (...). Olhar a pobreza apenas sob a ótica da insuficiência de renda é o

mesmo equívoco”. As diferenças entre ricos e pobres têm gradativamente cedido lugar, nas

sociedades modernas, a formas mais sutis de desigualdades. Nessas sociedades, independente

do nível de desenvolvimento, as desigualdades passam a assumir formas de diferenciais entre

indivíduos situados em distintas posições da organização social (WILKINSON, 1996;

NUNES et al., 2001).

Esse olhar tão impactante sobre os dados epidemiológicos das doenças

respiratórias infantis e da pobreza não respondem a questões como a construção de estratégias

de sobrevivência e de enfrentamento da doença no Nordeste, particularmente em Fortaleza.

Com isso, nos conduzem a realizar uma análise antropológica da relação entre pobreza e

doenças respiratórias infantis para compreendermos como os moradores constroem estratégias

ou práticas de sobrevivências relativas ao acesso à moradia, alimentação, tratamento de saúde,

segurança no bairro e outras necessidades.

Muitos estudos antropológicos caracterizam a pobreza como fatalista (FOSTER,

1953, 1965, 1967a, 1967b, 1967c; DE CASTRO, 1966; LEWIS, 1959, 1966, 1969; PEATTIE,

1968; YOUNG, 1981; ROSS; MIROWSKY; COCKERHAM, 1983). O fatalismo, por sua

vez, é compreendido como uma percepção da incapacidade humana em alterar o curso dos

eventos, nos quais podem ser vistos como determinações do tipo ‘Deus Quis’ ou ‘Destino de

Deus’. George Foster (1965) construiu um modelo de mentalidade fatalista frente à pobreza a

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partir de componentes cognitivos da pessoa, conhecido como ‘the Image of Limited Good’.

Esse modelo foi formulado a partir de uma pesquisa realizada com camponeses mexicanos, no

qual Foster argumenta que os componentes cognitivos podem apresentar bons desejos

(incluindo aspectos não materializados como amor e boa sorte), mas em quantidade limitada;

isto quer dizer, o poder humano pode alterar esses eventos nos quais são vistos como ‘Sorte de

Deus’, de maneira que e a riqueza ou a prosperidade de uma pessoa ou de um grupo

necessariamente pode diminuir a riqueza ou a prosperidade de outros. Esse autor ainda afirma

que os camponeses não procuravam outras formas de ajuda e os componentes cognitivos –

‘the Image of Limited Good’ – destacavam o medo e o ciúme, os quais poderiam ser vistos

como emoções perigosas, capazes de causar doença espiritual (como mal olhado).

A análise fatalista da pobreza foi questionada por outros autores como Oscar

Lewis (1959, 1961, 1966, 1969), que ampliou a visão de pobreza dos camponeses para a

‘Cultura da Pobreza’, que surge a partir da visão desses camponeses como escravo e vítima de

um colonialismo, e leva os mesmos se sentirem menos ajudados e desesperançados nos quais

suas ações preventivas são modificadas de acordo com as circunstâncias. Essa visão é também

controvertida.

Novamente, chamamos atenção para uma questão básica: uma pessoa que tem um

comportamento direcionado a um alvo específico é mais motivada devido à sua situação real,

atual ou derivada culturalmente por meio de uma imagem simbólica? Esse questionamento

está presente em um estudo de Nations e Rebhun (1988a), no qual as autoras realizaram um

estudo em locais pobres de dois municípios da região metropolitana de Fortaleza - Pacatuba e

Guaiuba - e em uma favela do município de Fortaleza - Gonçalves Dias - sobre a percepção

materna e a perda dos filhos por problemas de doença. Elas argumentaram que os

comportamentos das mães frente à pobreza ocorrem prontamente pela estrutura da realidade

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em que vivem, através de uma imagem culturalmente-derivada do mundo, e não por meio de

componentes cognitivos.

Portanto, a relação entre a pobreza e os eventos relacionados à saúde pode ser

melhor explicada com o emprego de uma abordagem antropológica, como é a proposta

discutida no presente estudo, em que se pretende compreender como os processos sociais e

culturais das doenças respiratórias infantis são construídos subjetivamente pelos sujeitos.

1.3 Abordagens dos Modelos Culturais das Doenças Respiratórias Infantis

Uma das abordagens que constituem os modelos culturais das doenças respiratórias

infantis refere-se à epidemiológica. Tal abordagem constitui um dos temas de interesse da

comunidade médica, além da patologia e dos métodos clínicos de cura, como verificamos em

uma consulta realizada ao Banco de Dados Medline. Foram identificados mais de 2.000

estudos sobre a epidemiologia das doenças respiratórias publicados nos últimos quarenta anos,

tais estudos têm como conteúdo predominante a análise de vários determinantes ou a

descrição dos perfis de morbidade e mortalidade dessas doenças. Porém, em nenhum

momento, os estudos contemplam a inter-relação desses elementos com os comportamentos

dos sujeitos frente às doenças respiratórias, o que indica a necessidade de estudos dessa

problemática sob a ótica das Ciências Sociais aplicadas à saúde.

A outra abordagem refere-se à antropológica, tem como interesse investigar a

realidade como os sujeitos percebem a doença. Autores como Nations e Rebhun (1988a,

1988b) e Nations (1992), em seus estudos, demonstram que as mães percebem a doença e a

morte de seus filhos e estabelecem ações de cuidado e prevenção frente a esses problemas de

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saúde. Essas mães apresentaram uma visão mais abrangente da realidade biomédica e

psicossocial do seu filho em relação à doença e à morte, e ainda, identificaram categorias

etnomédicas de doenças não demonstradas pelo modelo cultural biomédico.

De acordo com o modelo cultural biomédico das doenças respiratórias infantis,

sua classificação é considerada complexa, devido à condição biológica das referidas doenças

abrangerem amplas formas, diversas etiologias e distintos níveis de gravidades, tendo em

comum o comprometimento de uma ou mais partes do trato respiratório da criança; suas

manifestações mais comuns são: resfriados, otites médias agudas, amidalites, sinusites ou

pneumonias (GRAHAM, 1990; WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1992). Todavia, há

outras racionalidades de explicação dessas doenças por meio dos estudos antropológicos que

vêem outras dimensões além da biológica como as dimensões sociais, culturais, ambientais e

políticas.

Na abordagem antropológica, alguns estudos revelam que os sujeitos classificam e

reconhecem as doenças respiratórias infantis, constituindo o modelo cultural popular das

mesmas pela identificação de terminologias etno-específicas; da construção de indicadores de

severidade para a doença e do estabelecimento de tratamentos alternativos a serem

empregados. Por intermédio dessa abordagem é possível a avaliação das formas de autonomia

materna para a tomada de decisão de tratamento frente às doenças respiratórias em seus filhos

(HUSSAIN et al., 1997). Portanto, nesse estudo, é tomada como referência a construção do

modelo cultural popular das doenças respiratórias infantis por meio da semiologia popular que

parte da visão dos sujeitos frente a essas doenças.

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1.4 Breve Histórico das Ações de Saúde Infantil no Brasil

Desde 1976, mesmo que tardiamente, surge um movimento mundial de atenção à

Saúde Infantil, mobilizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), orientando os países-

membros a adotarem suas estratégias de prevenção e controle das infecções respiratórias

infantis (GARDNER; FRANK; TABER, 1984).

No Brasil, essas estratégias foram adotadas em 1984, como parte integrante das

Ações Básicas de Saúde da Criança promovidas pelo Ministério da Saúde (TUPASI et al.,

1990; VICTORA et al., 1992). Contudo, as ações coletivas de saúde infantil não chegaram

onde deveriam ter chegado, ou seja, nas comunidades pobres do país.

A partir da década de 1980, notou-se uma intensidade de estudos que abordavam a

análise da estratificação etária da morbimortalidade das doenças respiratórias infantis (TORO-

ALBORNOZ, 1987). Alguns deles influenciaram o desenvolvimento de programas de saúde

infantil por meio da adoção de grupos etários prioritários (VAUGHAN; MORROW, 1997).

Isso levou ou leva as instituições sanitárias, tanto internacionais como nacionais, a

estabelecerem políticas hierarquizantes em relação às crianças. O Brasil tem como exemplo

uma intervenção iniciada em 1984, com a criação do Programa de Assistência Integral à

Saúde da Criança (PAISC), cujo foco estava centrado na criança com idade abaixo de cinco

anos (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1985). Embora seu propósito declarado fora

promover a integralidade na assistência prestada pelo serviço de saúde à criança em geral.

Inicialmente, o PAISC foi implantado nos estados do Pará e Rio Grande do Sul,

posteriormente estendeu-se por todo o País. O Programa objetivava a redução da mortalidade

infantil por infecções respiratórias agudas, em especial, a pneumonia, tendo como proposta

inicial à redução do número de casos graves e de suas complicações, além da diminuição do

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uso inadequado de antibióticos e outros medicamentos (WORLD HEALTH

ORGANIZATION, 1992). As estratégias aplicadas para alcançar tal redução foram:

capacitação dos profissionais de saúde no tratamento padronizado dos casos de infecções

respiratórias agudas; organização dos serviços de saúde; abastecimento regular de antibióticos

na rede pública de saúde e elaboração de um trabalho de ‘educação em saúde’, com o

treinamento de mães da comunidade para a melhoria das práticas de cuidados em relação às

crianças.

Poucos anos depois, em 1990, foi elaborado e implantado um Plano Básico de

Ação para a Proteção da Criança e do Adolescente no Brasil. Esse plano foi produto da

participação do país na Reunião Mundial de Cúpula em Favor da Infância, em que foram

assumidas vinte e seis metas em favor desses grupos etários (sendo dezenove deles referentes

ao setor de saúde), a serem atingidas até o ano 2000. Nesse mesmo ano, o Brasil reiterou sua

posição em favor da Infância com o compromisso governamental pelo Pacto da Infância com

a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Decorridos mais de dez anos de compromisso, os resultados de uma avaliação de

médio prazo de cumprimento das metas somente do setor saúde mostram um relativo

progresso no que tange à situação da saúde da criança brasileira. Verificou-se uma redução

nas taxas de mortalidade infantil, declínio na mortalidade por doenças diarréicas e por

infecções respiratórias agudas, queda na desnutrição protéico-calórica na infância e controle

das doenças imunopreveníveis.

Apesar das ‘melhorias’ verificadas, em 1997, mais de 1,6 milhões de crianças

menores de cinco anos foram hospitalizadas pelo SUS, dentre as quais 60% das

hospitalizações relacionavam-se a problemas respiratórios e às doenças infecciosas e

parasitárias (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2000).

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Uma outra ação estabelecida a partir do Plano Básico foi a criação do Projeto de

Redução da Mortalidade Infantil e da Infância (PRMI) em 1995, por intermédio da Agenda da

Comunidade Solidária. O PRMI visou ampliar a capacidade do setor saúde em atender, de

forma integral, a criança de até cinco anos de idade, além de integrar todas as áreas do

Ministério da Saúde que atuavam em favor da Infância e promoveram a articulação

intersetorial com outros órgãos governamentais e não governamentais.

Com o propósito de reduzir a mortalidade infantil no País, outras estratégias foram

criadas objetivando priorizar o atendimento às populações de maior risco e revitalizar o nível

de atenção primária em saúde, que resultaram em duas ações concretas implementadas pelo

Ministério da Saúde. A primeira foi a incorporação nas políticas de saúde dos governos

federal, estaduais e municipais do Programa Saúde da Família e Programa dos Agentes

Comunitários de Saúde, como mecanismos de reorientação do modelo assistencial da atenção

primária em saúde. A segunda concerne à estratégia de Atenção Integrada às Doenças

Prevalentes na Infância (AIDPI), preconizada pela OMS e pelo Fundo das Nações Unidas

(UNICEF) e direcionada ao atendimento primário em saúde. Nessa estratégia, destaca-se a

proposta de integração das ações promotoras de saúde da criança que contempla ações

preventivas e curativas e o fortalecimento da participação da comunidade e das mães no

cuidado e na proteção à criança (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001).

Comprovadamente essa estratégia de Atenção Integrada às Doenças Prevalentes

na Infância promoveu a redução da mortalidade por infecções respiratórias agudas, segundo os

dados demonstrados em um estudo realizado por Benguigui (2003) que revelou um declínio

nas taxas de mortalidade das infecções respiratórias agudas em dezessete países americanos

logo após a sua implementação. Sobretudo, o referido autor reforça o envolvimento da

comunidade, particularmente da família, no processo terapêutico e de cura dessas doenças.

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Embora a política da OMS insista há tanto tempo em reduzir a mortalidade das

respiratórias infantis pelas atualizações e inovações em termos de ações, pode-se perceber um

distanciamento dessa ação macro em relação à ação local, ou seja, entre os profissionais da

saúde e os sujeitos que sofrem as doenças. Como o resultado de um estudo que revelou logo

após a implementação da estratégia AIDPI no Brasil, em 1996, em seis capitais brasileiras:

Fortaleza, Aracaju, Belém, Brasília, Recife e Rio de Janeiro, um desconhecimento dos

profissionais sobre essas ações. Os resultados apontaram, curiosamente, profundas

deficiências na atenção padronizada das infecções respiratórias agudas e indicaram uma

necessidade urgente de treinamentos voltados para prática clínica dos profissionais de saúde.

Além de revelar uma visão limitada dos profissionais de saúde sobre a dimensão social e

cultural das doenças respiratórias infantis (AMARAL et al., 2000).

No Brasil, atualmente, a principal intervenção no cuidado com a saúde das

crianças pobres é desenvolvida pelo modelo assistencial do Programa Saúde da Família (PSF),

o qual busca integrar a estratégia do AIDPI. Para o PSF, a organização de demanda é um

importante elemento para o planejamento de atenção primária em saúde que leva em

consideração a identificação de grupos sociais prioritários, especialmente de crianças e

mulheres. Algumas práticas de atividades de promoção social e de educação em saúde são

desenvolvidas visando atender as necessidades identificadas nos referidos grupos, como os

programas de atenção integral à criança, e à mulher em sua fase reprodutiva.

Autores como Levcovitz e Garrido (1996) afirmam que a essência do PSF é

enfatizar a atenção à família e não apenas ao indivíduo; ter uma visão ativa de intervenção em

saúde, cuja finalidade é agir preventivamente e organizar a demanda; permitir maior

integração com a comunidade e apresentar um enfoque multiprofissional e interdisciplinar. No

entanto, essas ações ainda reforçam as práticas hierarquizantes e fragmentadas em saúde,

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embora, paradoxalmente, seu princípio seja o de assegurar as condições necessárias à

manutenção e reprodução da vida humana de forma integral em suas diversas dimensões.

Por fim, essa breve descrição histórica das ações de saúde infantil no Brasil, com

destaque às intervenções de controle das doenças respiratórias infantis, revela um panorama

preocupante relacionado à efetividade e eficiência dessas medidas. Em grande parte, isso se

verifica porque as informações culturais e sociais não são consideradas relevantes, mas,

avaliadas como acessórias ou desnecessárias nas intervenções. Entretanto, os estudos

antropológicos demonstram a grande influência que as dimensões sociais e culturais exercem

sobre a adoção de comportamentos de risco e de prevenção ou mesmo sobre a utilização dos

serviços de saúde (MONTE et al., 1997; AMOFAH, 1998; SIMIYU; WAFULA; NDUATI,

2003).

1.5 Valor e Poder da Infância na Sociedade Contemporânea

Como compreender o valor e o poder da infância na sociedade contemporânea em

um contexto objetivo representado por crianças inseridas em um corpus familiar, vivendo em

um espaço social, designado por um assentamento urbano da cidade de Fortaleza, onde sua

realidade é constituída de elementos simbólicos e de condições estruturantes – como a

pobreza?

Iniciamos essa indagação conduzindo a uma primeira ordem de base conceitual, a

qual compreende a noção de espaço social e realidade. Bourdieu (2004, p.133) define espaço

social como “forma de um espaço (várias dimensões) construído na base de princípios de

diferenciação ou de distribuição, constituídos pelo conjunto das propriedades que atuam no

universo social”, e que, portanto, destaca-se como um universo em que há uma atuação por

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parte dos agentes por intermédio da força e do poder, definido por suas posições relativas a

esse espaço. Diante dessa definição, entende-se que o poder da criança na sociedade pode ser

visto como uma posição relativa, devido ao seu espaço de propriedade atuante, bem como

pode ser caracterizado pelo seu capital cultural e capital simbólico, no qual o autor aponta,

respectivamente, como um estado incorporado, que pode ser juridicamente garantido por sua

legítima posição como agente do grupo.

De acordo com Bourdieu (2004), a percepção do mundo social só é essencial

quando incorpora as estruturas objetivas do espaço social, como a questão da pobreza na vida

das famílias dessas crianças no mundo social vivido por eles, tal como eles são, a aceitarem-

no como natural, mais do que rebelarem-se contra elas mesmas, a oporem-lhes possíveis

diferentes, e até mesmo antagonistas. Para o referido autor, a descrição como imposição da

realidade, ou seja, o sentido da posição como sentido daquilo que se pode ou não se pode

permitir a si mesmo ou, o que é a mesma coisa, um sentido das distâncias, a marcar e a

sustentar, a fazer e a respeitar. A descrição é resultado dessa constituição social e só pode ser

vista em seu exterior, ou seja, por pessoas externas ao grupo, como as pessoas sobrevivem a

essa pobreza? Vista pelo sujeito de fora desse espaço social de pobreza como uma indagação

e não vivida. Esse sentido de pensar a realidade não é consciente, percebe-se mais no sentido

metafísico e Bourdieu (2004) o afirma como uma espécie de cogito revolucionário da

consciência coletiva de uma entidade personificada.

A segunda ordem é de base empírica dos aspectos históricos e sociais que

sustentam a presença da infância em nossa sociedade contemporânea, compõe a configuração

do cenário presente em um assentamento urbano da cidade de Fortaleza. Tendo como

propósito compreender a função social e histórica quando a criança adoece por problemas

respiratórios. Podemos dizer que a criança mobiliza a família quando está doente? Ela tem

algum valor histórico e social em seu contexto?

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Segundo o pensamento de Phillipe Ariès (1981), a criança passou a existir no

campo social somente depois do século XVI. Antes desse período, no mundo ocidental, a

criança parecia não se diferenciar do adulto, sendo reconhecida como um ‘adulto em

miniatura’, por isso, não recebia um tratamento diferenciado.

A descoberta da criança começou, sem dúvida, no século XIII, e sua evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e XVI. Mas, os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se particularmente numerosos e significativos a partir do fim do século XVI e durante o século XVII (ARIÈS, 1981, p. 65).

A pesquisa de Ariès (1981) demonstrou o caráter histórico e social da criança, ou

seja, a criança pôde ser inserida como o resultado de um longo processo social que envolveu

transformações na organização da sociedade. Desde o ponto de vista da esfera privada das

famílias até a esfera pública do convívio social. A criança, como uma categoria socialmente

construída, permitiu a adoção de práticas sociais condutoras do processo de formação da

identidade sociocultural infantil.

Essas práticas resultaram na assistência, saúde e educação que atingiram seu objetivo e se validaram como opção ao enfrentamento da questão social, conforme adotaram um caráter universal, obrigatório e de responsabilidade do Estado (MENDONÇA, 2002, p. 2).

A assistência voltada para os segmentos pobres da sociedade, particularmente para

as crianças pobres, em qualquer sociedade do mundo ocidental onde predominou um enfoque

antiliberal, evoluiu a partir da hipótese de que o sujeito em formação, devidamente assistido,

chega à maturidade pelo exercício do direito de se auto-aperfeiçoar. Só então ele gozaria de

sua cidadania plena ou de um conjunto de direitos que se articulam progressivamente como

um sistema de proteção social que envolve o Estado e sua família (MENDONÇA, 2002).

No entanto a idéia de Ariès (1981) sobre a concepção universal da evolução da

criança foi questionada e novas pesquisas foram propostas nessa área. Piore (2004), em seus

estudos sobre a ‘História das Crianças no Brasil’, afirma que a idéia de evolução da criança no

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País ocorreu de forma muito lenta, devido às características do mesmo, como a presença da

pobreza nos lares, o qual estava apoiado no antigo sistema colonial e, posteriormente, em uma

tardia industrialização, não houve muito espaço para que essa evolução florescesse

precocemente quando foi comparado aos países ocidentais, em que o capitalismo instalou-se

no alvorecer da Idade Moderna.

As duas razões para o atraso social da criança no Brasil apontado por Piore (2004)

foram: inicialmente, devido ao atraso da escolarização, as escolas jesuíticas eram poucas e

surgiram no século XVI, sobretudo, para poucos. Os jesuítas demonstravam uma afeição pelas

crianças quando desenvolveram a estratégia para uma catequese ancorada na educação dos

pequenos indígenas, em que crianças órfãs, trazidas de Portugal, atuavam como mediadores.

Na percepção dos jesuítas, as crianças eram mais doutrináveis, por conseguinte, facilitava o

início do processo da catequese (PIORE, 2004).

A segunda razão referiu-se à precária intimidade da sociedade brasileira, de lares

monoparentais, mestiçagem, pobreza material e arquitetônica, exemplificada nos espaços onde

se misturavam indistintamente crianças e adultos de todas as condições. Outras razões dessa

precariedade estavam associadas à presença de escravos e à forte migração interna, capaz de

alterar os equilíbrios familiares, a qual desencadeou uma proliferação de cortiços no século

XIX e de favelas nos séculos XX e XXI. Esses fatores contribuíram para a formação da noção

de privacidade, que até bem recentemente era encontrada no Brasil, de maneira diferenciada

daquela como era concebida na Europa urbana, burguesa e iluminista (PIORE, 2004).

Assim, a atuação social da criança no Brasil ocorreu lentamente, não foram

implementados instrumentos que permitissem a adaptação ao novo cenário mundial, como a

presença de um sistema econômico que exigisse a adequação física e mental dos indivíduos a

essa nova realidade (PIORE, 2004). Paralelamente, no campo da Medicina Social, a partir do

século XIX, foi adotada no país uma política denominada higienista, a qual reduziu a família e

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a criança a um estado de dependência ao modelo biomédico, recorrendo até os dias atuais. A

apropriação das práticas médicas da infância fez-se à revelia dos pais, por meio de conselhos

higiênicos sobre a educação das crianças (COSTA, 1999).

Tal política utilizou amplamente a tática jesuítica, em que se apropriava das

crianças e as separava dos pais, em seguida, devolvia-as às famílias convertidas em soldados

da saúde. Conforme Costa (1999), as técnicas empregadas no modelo higienista são

consideradas responsáveis pela eficiência da educação médica no Brasil.

O modelo higienista está baseado na disciplina dos corpos e constituem em

intervenções sobre os sujeitos. Esse modelo ainda é visto como um conjunto de normatizações

e preceitos a serem seguidos e aplicados no campo individual, já que produzem um discurso

sobre a boa saúde francamente circunscrita à esfera moral (PAIM; ALMEIDA-FILHO, 2000).

No século XVIII, a assistência social à criança foi manipulada pela religião e

tomada como uma propriedade familiar. Enquanto no campo da saúde essa mesma criança foi

considerada uma apropriação do Estado, entretanto, sua legitimidade inexistia, haja vista dar

lugar a uma posição puramente de instrumento secundário dentro da família, cujo título era de

escravo. Já no século XIX, a assistência à criança é novamente utilizada como instrumento do

poder, dessa vez contra os pais e em favor do Estado.

Em meados do século XX, o papel do Estado no País se firmou como interventor

das ações de assistência à criança, inicialmente com a promulgação do Código de Menores, de

1927; em seguida outras iniciativas de proteção foram consolidadas. No campo da saúde, por

meio do emprego de ações preventivas, como os programas de vacinação e referentes ao

campo social, surge a obrigatoriedade do ensino fundamental no período entre 1930 e 1943.

Outras iniciativas de assistência social, criadas pelo Estado, foram implantadas uma delas é a

Política de Bem-Estar do Menor (PNBEM), entre 1964 e 1988, pela criação da Fundação do

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Bem-Estar do Menor (FUNABEM); bem como a formulação e implantação do Estatuto da

Criança e do Adolescente (ECA), no início dos anos 90.

Mais recentemente, novas formas de atuar com as crianças e adolescentes vêm

sendo experimentadas na sociedade brasileira por diferentes organizações não

governamentais, especialmente na área de educação e de formação do trabalho (ALVIM,

1994; RIZZINI, 1995; VOGEL, 1995). Contudo, em decorrência do processo de globalização

e do neoliberalismo, a partir da segunda metade do século XX, o Estado enfraqueceu suas

funções sociais, tornando as ações assistenciais de proteção às crianças extremamente

fragmentadas e fragilizadas (COSTA, 1997).

A elaboração da política de assistência social a partir da Constituição de 1988,

integrada ao Sistema de Seguridade Social, deve ser considerada como outra iniciativa. Essa

política é constituída por um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade

civil que se voltaram para a proteção à família, maternidade, infância, adolescência e velhice;

o amparo às crianças e aos adolescentes carentes; a integração dos jovens no mercado de

trabalho; a habilitação, reabilitação e a integração de pessoas portadoras de deficiência.

Desde 1924, os direitos da criança foram identificados como um instrumento

internacional de direitos humanos. Existem também declarações que não implicam em

compromisso, pois se tratam de convenções e pactos tratados por força de lei para promover o

exercício do direito da criança.

Para Therborn (1993), os direitos da criança foram definidos tardiamente,

obedecendo a uma lógica inversa à definição dos direitos sociais do homem trabalhador, uma

vez que não dependiam exclusivamente da regulação na esfera da produção. A evolução dos

direitos sociais coincidiu com o avanço de conceitos de Bem-Estar-Social da sociedade

contemporânea que elegeu a educação e a saúde, bem como estabeleceu a universalização e

obrigatoriedade da atenção educacional e sanitária às crianças. Essas são condições mínimas

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para o desenvolvimento do sujeito dentro de marcos da civilização, além de outras formas de

assistência que conferem à família como renda e trabalho.

O Relatório da Situação Mundial da Infância, elaborado pelo Fundo das Nações

Unidas para a Infância (UNICEF), em 1996, assinala a importância de se respeitar os direitos

da criança e garantir as reivindicações justas que a sociedade contemporânea deve atender.

Entre estas se devem destacar o direito do Bem-Estar, social e da saúde da criança,

gradativamente apropriado em seu processo de desenvolvimento.

No Brasil, ao longo das cinco décadas anteriores à declaração dos direitos da

criança, foi constituído um conjunto de políticas sociais que se aproxima do modelo de

produtividade e desempenho industrial (TITMUSS, 1974) ou conservador (ESPING-

ANDERSEN, 1996) do Estado de Bem-Estar. Durante os anos 80 e 90, a política social

brasileira tornou-se alvo de um conjunto de pressões e de demandas pela sua alteração

proveniente tanto do processo de transição e de consolidação democrática quanto dos

constrangimentos originários do quadro de crise econômica que o País enfrentava (DRAIBE,

1995). Por um lado, observou-se uma tendência no sentido de a questão social ganhar

relevância na agenda pública da transição democrática. Por outro, tratava-se de um contexto

em que adquirira expressão a proposta de descentralização e de maior participação da

sociedade na elaboração e implementação das políticas públicas de âmbito social.

Durante os anos 80, manifestava-se, no Brasil, um quadro de pronunciada crise

econômica que repercutiu de maneira incisiva nos anos 90, paralelamente ocorreu um

processo de redemocratização das políticas sociais, reordenando-as para um sistema de

proteção social, o qual considera os princípios da descentralização, participação social e

universalização da atenção, bem como a procura pela redução da exclusão social e garantia de

maior eqüidade. Ao mesmo tempo, tornou-se inadiável a redefinição de políticas sociais para

reduzir a pobreza entre crianças e adolescentes (MENDONÇA, 2002).

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Nesse momento, o País optou por adotar políticas sociais de caráter

compensatório, enfatizando a ação reformadora para o equacionamento da questão social

como minimizado, em função da necessidade de um novo regime democrático, onde os

governos civis subseqüentes respondiam aos imperativos da administração macroeconômica

brasileira. Dessa forma, as variáveis de ajustamento econômico foram indutoras de ações de

política social de caráter emergencial e compensatório, além de constituírem importantes

fatores de constrangimento da ação reformadora nos anos 80 e 90 (TORRE, 1987, 1993).

A reordenação das políticas sociais nas últimas décadas conduziu a uma

modernização dos processos sociais que envolvem a infância e a adolescência no Brasil. Ou

seja, a imagem da família brasileira foi reconstruída e, assim, devolveu-lhe a responsabilidade

de criar e educar seus filhos, a partir de suas condições materiais. Logo, prioritariamente, a

criança permaneceu junto aos pais, isso exigiu das políticas públicas um maior enfoque quanto

ao ambiente social onde estão inseridos crianças e adolescentes, e assim atendeu às

necessidades do grupo familiar. A política de atendimento passou a ser centrada não apenas no

indivíduo, mas estava ao alcance de suas relações sociais, quer sejam os demais membros

familiares, quer sejam as comunidades onde eles vivem (MENDONÇA, 2002).

As políticas do setor de saúde também contribuíram consideravelmente para a

modernização dos processos sociais. Os indicadores de saúde: longevidade, esperança de vida

ao nascer e taxa de mortalidade infantil mostraram uma contínua e progressiva ‘melhora’ nas

duas últimas décadas (1980-1990) do século XX, associada aos investimentos realizados na

infra-estrutura de serviços de saúde e saneamento e ao aumento da cobertura dos serviços de

saúde. Ao longo dos anos 90, aprofundou-se a definição mais precisa de programas de saúde

para a população total e para grupos específicos como a mulher, a criança e o adolescente,

dentre outros, ao adotarem uma perspectiva mais coletiva e preventiva.

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Ainda nos anos 90, a característica mais marcante da evolução das intervenções

públicas na área social relacionou-se com os processos de descentralização e focalização dos

programas de políticas sociais. Essa evolução ocorreu em meio a um quadro de fortes

restrições fiscais, fazendo com que o padrão brasileiro de proteção social se afastasse também

das configurações residuais (TITMUSS, 1974) ou liberais (ESPING-ANDERSEN, 1996) do

Estado de Bem-Estar social e da saúde (DRAIBE, 1995, 1997; CAJUEIRO, 2004).

No Brasil, atualmente, a assistência social à criança pobre incide na estratégia do

‘Bolsa-Escola’, que apresenta um caráter preventivo de cuidado com as crianças na primeira

infância, objetivando que elas cresçam em condições mais favoráveis (GUILHON, 2001). O

programa Bolsa-Escola é financiado pelo Fundo de Combate à Pobreza, com previsão de

recursos na ordem de R$1,7 bilhões e duração prevista para dez anos (SILVA E SILVA,

2001).

De acordo com o panorama da criança aqui apresentado, pode-se verificar um

movimento cíclico das políticas sociais pela participação mais efetiva da criança e, em alguns

momentos históricos, a criança esteve ausente das ações do Estado, porém, em outros, era

assumida como propriedade do próprio Estado. A fragmentação das ações é característica

desses movimentos das políticas assistenciais do país. Pensamos que essas ações

institucionalizadas sejam percebidas no campo micro, ou seja, no cotidiano das crianças que

vivem a realidade ora apresentada.

Como tentamos demonstrar ao longo desse capítulo, na perspectiva de eleger

elementos de interesse para revisar os aspectos relacionados às crianças e às doenças

respiratórias em seu macrocontexto histórico e social, aos quais nos referimos anteriormente,

constatamos uma visível produção de desigualdade social, econômica e epidemiológica das

doenças respiratórias infantis no mundo, no Brasil, no Ceará e, especialmente, em Fortaleza.

Assim, conduzimos a uma questão social e cultural presente nessa pesquisa: Como vivem os

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moradores pobres de um assentamento urbano na cidade de Fortaleza, os quais

desenvolvem estratégias de sobrevivência e convivência com a pobreza, cercando-se de

saberes e ações populares para lidar com as doenças respiratórias infantis em seu

cotidiano?

Compreendemos que essa questão será respondida pelas histórias cotidianas dos

moradores tanto no âmbito da família como nas relações com sua vizinhança, onde eles

compartilham, cotidianamente, suas condições concretas práticas e estratégias de

sobrevivência para lidar com a criança.

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CAPÍTULO 2

2 CONTRIBUIÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS DAS CIÊNCIAS SOCIAIS AOS

ESTUDOS DA INFÂNCIA E DA SAÚDE

Neste capítulo, apresentamos os principais pressupostos teóricos e metodológicos

que fundamentam a análise dos processos sociais e culturais das doenças respiratórias infantis

a partir das contribuições das Ciências Sociais aos estudos da infância e da saúde. Primeiro,

mostramos as principais linhas de pensamento que cercam a temática da infância na

abordagem da Antropologia e da Sociologia da Infância. Em seguida, expomos uma

abordagem interpretativa da Antropologia da Saúde para o entendimento da doença como um

processo sócio-cultural e, finalmente a aplicação do modelo de análise do sistema de signos,

significados e ações para a compreensão das doenças respiratórias infantis entre os moradores

de um assentamento urbano na cidade Fortaleza.

2.1 Infância e suas Abordagens na Antropologia e Sociologia da Infância

Antes do século XX, a categoria ‘criança’ não era referida no campo científico

nem no campo social. O século XX foi marcado pela descoberta da infância como objeto de

estudo, podendo ser denominado como ‘século da criança’, contudo os estudos antropológicos

e sociológicos sobre a infância ocorreram tardiamente em relação a outros campos do

conhecimento. Até 1968, a Enciclopédia das Ciências Sociais não havia incluído qualquer

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referência a respeito deste tema, e somente no início da década de 1980 ocorreram os

primeiros encontros científicos interdisciplinares e internacionais no âmbito das Ciências

Sociais, com objetivo de discutir a infância (SILVA; NUNES, 2002).

As mudanças ocorridas nas Ciências Sociais, no século XX, resultaram e

refletiram em um aumento dos estudos sociológicos e antropológicos sobre a infância. Os

estudos mais conhecidos na Antropologia da Infância foram desenvolvidos nas décadas de

1920 e 1930, por antropólogos norte-americanos ligados à Escola de Cultura e Personalidade,

especialmente Margaret Mead, uma das mais interessadas nos estudos das crianças e

adolescentes na época. No final de sua carreira, ela criticou a formação dos antropólogos

ocidentais, pois influenciados pela História Européia nem sempre consideravam as crianças

como seres sociais completos (SILVA; NUNES, 2002).

Os estudos de Mead foram importantes para a Antropologia da Infância por

contribuírem em diversos aspectos: no desenvolvimento de uma descrição moderna dos povos

primitivos através da análise dos estudos comparativos de semelhanças e diferenças entre

grupos humanos; na compreensão de diversos aspectos da personalidade contemporânea das

crianças e adolescentes e; na discussão da formação dos adolescentes em relação à escola,

família e sociedade.

Em um de seus primeiros estudos sobre adolescência, realizado em Samoa, ilha

habitada por polinésios no sul do pacífico, em 1926, a cientista procurou verificar os efeitos da

civilização sobre as mudanças no ser humano, na idade da puberdade. Os aspectos mais

significativos desse estudo em que a autora classificou como “dados impalpáveis e centros das

perturbações na vida dos jovens adolescentes” (1961, p.34) foram: a situação familiar, as

relações sexuais, envolvendo os tipos de amizades, lealdades e responsabilidades pessoais

entre os adolescentes. Sua descrição e comparação resultaram em uma leitura das adolescentes

samoanas que apresentavam temperamentos semelhantes às da cultura norte-americana,

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embora percebida uma zona de capacidade intelectual possivelmente mais estreita, mostrando

uma uniformidade de conhecimentos, habilidades e atitudes e um desenvolvimento metódico e

regular em um ambiente flexível, mas estritamente delimitado pela família (MEAD, 1961).

No início da década de 1970 houve uma tentativa ‘tímida’ de se criar a

Antropologia da Criança, com a introdução do artigo formulado por Charlotte Hardman

(1973) intitulado ‘Can there be an Anthropology of Children?’, o qual enfatizou a existência

da criança e a necessidade de ultrapassar a visão comum de que a criança nada mais é do que

um receptáculo dos ensinamentos que lhes são passados pelos adultos. Segundo essa autora “a

criança constitui um grupo social que pode e deve ser estudado, especificamente por si só, não

por extensão de outros” (SILVA; NUNES, 2002, p.13). No entanto, essa tentativa não obteve

destaque por apresentar problemas metodológicos como a coleta de poucos dados

etnográficos.

Logo em seguida, Norman Denzin (1977 apud PROUT; JAMES, 1997) levantou

uma polêmica sobre a Sociologia da Infância quando disse que não existe nem nunca existiu

uma Sociologia da Infância e, advogava prioridade para o interesse e respeito pelo tema.

Assim, ficou absolutamente evidente a lentidão desse processo de afirmação de uma nova área

de estudos antropológicos e sociológicos sobre a infância.

Quase uma década depois da tentativa da criação de um campo específico na

Antropologia, em 1982, na London School of Economics, realizou-se um seminário que reuniu

antropólogos, psicólogos, historiadores e sociólogos, cujo objetivo seria chamar a atenção

para um tema negligenciado, a saber, como as crianças adquirem a cultura de seu grupo.

Quatro anos depois, outros encontros ocorreram no King College, e posteriormente no Canadá

e Zimbábue, denominados de Ethnography of Childhood Workshops. Esses últimos,

realizados a partir de dados fornecidos por uma pesquisa européia, ‘Childhood as a Social

Phenomenon’, que agregou dezenove países e inaugurou, em definitivo, o espaço de

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investigação científica, para legitimar a importância da infância e realizar uma reflexão das

Ciências Sociais sobre temas específicos como a saúde (PROUT; JAMES, 1997).

No decorrer da segunda metade da década de 1990, alguns importantes centros de

investigação sobre a infância estabeleceram-se, por exemplo, o Center for the Social Study of

Childhood (University of Brune/UK); o Center for Child-Focused Anthropological Research,

na Norwegian University of Science and Technology, que também edita a revista Childhood: a

Global Journal of Child Research; o Centro de Documentação; a Informação sobre a Criança

(Universidade do Minho/Portugal) e o Concerted Action Committee of Health Services

Research (COMAC-HSR) da Commission of the European Communities, dentre outros. Foram

criadas novas disciplinas curriculares nos cursos de graduação e pós-graduação na área de

ciências, destacam-se as áreas de sociologia, psicologia, pediatria, antropologia, bem como

seminários e congressos para exposição e debate de idéias. Além disso, surgiram linhas de

financiamento para pesquisas e publicações especializadas sobre o tema infância (SILVA;

NUNES, 2002; TRAKAS; SANZ, 1992).

No início dos anos 90, a Sociologia da Infância ganha ebulição e gradualmente

cativa mais e mais investigadores. Países como Inglaterra, Noruega e Dinamarca são

considerados as nascentes da Sociologia da Infância. As iniciativas e esforços realizados nas

décadas de 1970 e 1980 permitiram à antropóloga Allison James e ao sociólogo Alan Prout a

identificação da emergência de um novo modelo para o estudo da infância, conscientes de que

estavam diante de duas questões epistemológicas importantes: por um lado, o modelo estava

mais para um potencial conjunto de possibilidades de intenções sobre a infância do que um

conjunto de postulados teóricos solidamente desenvolvidos; e, por outro, as linhas de estudos

sobre a infância deveriam ser de importância vital e prioritária para o desenvolvimento desses

estudos na Sociologia (PROUT; JAMES, 1997).

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Assim, foi concebido um novo modelo sociológico e antropológico para os

estudos da infância fundamentado em seis princípios teóricos (PROUT; JAMES, 1997):

1. A infância deve ser entendida como construção social e assim fornecer um

quadro interpretativo para os primeiros anos de vida humana. A infância, por

oposição à imaturidade biológica, não é nem uma característica natural nem

universal dos grupos humanos, mas deve aparecer como um componente

específico estrutural e cultural das várias sociedades;

2. A infância deve ser considerada como uma variável de análise social, tal como

gênero, classe ou etnicidade, pois estudos comparativos revelam mais uma

variedade de ‘infâncias’ do que um fenômeno único e universal;

3. As relações sociais e culturais das crianças são merecedoras de estudo em si

mesmas, independentemente da perspectiva e dos interesses dos adultos;

4. As crianças devem ser vistas como ativas na construção e determinação de suas

próprias vidas sociais e na sociedade em que vivem. As crianças não são apenas

sujeitos passivos de estruturas e processos sociais;

5. A etnografia é um método particularmente útil ao estudo da infância. Permite à

criança participação e voz mais direta na produção dos dados antropológicos do

que normalmente é possível, por meio das pesquisas experimentais e;

6. A infância é um fenômeno em relação a qual uma dupla hermenêutica das

Ciências Sociais está presente, ou seja, a proclamação do novo modelo da

Sociologia da Infância também deve incluir e responder ao processo de

reconstrução da infância na sociedade.

Nesse ponto, envolvemos a criança como um dos sujeitos de nosso estudo, cuja

experiência de estar doente por problema respiratório e suas relações familiares,

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particularmente a materna, são componentes essenciais para interpretarmos a construção

social e cultural de seu processo de adoecimento.

Além da concepção de um novo modelo teórico para a Sociologia da Infância

Contemporânea, Prout (1992) propôs a reformulação de velhos conceitos, considerados pilares

convencionais como a noção de desenvolvimento e socialização da criança. Esses dois

conceitos estavam fortemente influenciados pelo pensamento psicológico e, essa influência

dificultava o entendimento da infância em relação ao modo de pensar em seu contexto sócio-

político.

Urgentemente, foi empreendida uma revisão epistemológica por Prout (1992), sem

a qual não adiantava multiplicar as pesquisas centradas nas crianças. Os primeiros estudos

sociológicos e antropológicos sobre a infância perduravam os conceitos evolucionistas e

funcionalistas, confundiam-se as etapas de maturidade biológica e de desenvolvimento social

da criança, e considerava-se toda e qualquer atividade da criança como importante apenas à

medida que fornecia indicações sobre sua futura participação e integração no mundo dos

adultos. O modelo de desenvolvimento infantil construído por Jean Piaget, a partir da década

de 1940, é crucial para entendermos a reformulação desses conceitos na Sociologia da

Infância, uma vez que a influenciou e, simultaneamente, foi influenciado por ela (PROUT,

1992).

Para Prout (1992), a teoria epistemológica de Jean Piaget, baseada em um

pressuposto do desenvolvimento cognitivo, a partir da experiência social da criança, é

centrada em um ataque pré-determinista do poder e da persistência de um modelo explicativo

no desenvolvimento da criança que interage com sua natureza e seu ambiente social. O autor

afirma que essa descrição não é a infância, não é ainda criança específica, mas ‘a criança’ que

constantemente aparece em ambos os títulos e textos de Piaget.

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Em suma, a criança individual é construída em torno de suposições de

naturalidade e universalidade da infância, ou seja, a ‘criança’ é como uma manifestação

corporal do desenvolvimento cognitivo da infância enquanto a maturidade representa todas as

crianças. Como a tradição intelectual ocidental está centrada na racionalidade científica, ‘a

criança’ representa uma espécie de laboratório para os estudos de formas primitivas da

cognição as crianças passam a fazer parte desse laboratório a fim de sejam estudadas.

Representadas como fase pré-racional, as crianças de várias idades foram usadas para

descobrir o processo seqüencial da racionalidade emergente da mesma (PROUT, 1992).

Segundo o pensamento de Prout (1992), durante a década de 1950, as Ciências

Sociais estavam absorvidas pelo positivismo e funcionalismo; portanto, as explicações

científicas para os processos de aprendizado das crianças davam-se pela participação da

mesma na sociedade e, das quais resultavam bem socializadas e ajustadas.

Nesse período a atenção nem sequer incidia sobre o processo de aprendizagem

que, entretanto, era vivido pela criança. Tonkin (1982) demonstra que a importação do modelo

psicológico para a Sociologia gerou confronto entre o indivíduo enquanto instância das

espécies e o sujeito enquanto instância da sociedade. Ou seja, o confronto ganha outros

contornos, mas permanece uma dificuldade em entender a permeabilidade entre os estágios de

maturidade biológica que, de fato, modificam e ampliam possibilidades da criança, bem como

o verdadeiro lugar que a criança ocupa na sociedade enquanto aprendiz que foi, é e será.

A socialização, contudo, foi identificada como o mecanismo pelas quais as regras

sociais eram transmitidas às gerações sucessivas. Prout (1992) considera que a socialização

tenha falhado no fazer ‘como’, sendo freqüentemente ignorada ou encoberta. O processo de

socialização fora visto como um psicologismo, algumas palavras marcaram esse período, tais

como: assimilação e indução, que inibiam uma discussão de um caminho preciso em que as

crianças poderiam tornar-se sujeitos conhecidos na sociedade.

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A concepção de ‘socialização’ mudou de uma ‘enculturação’ (integra a criança à

sociedade, por intermédio da formação de indivíduos ajustados social e emocionalmente aos

padrões de comportamentos e aos papéis sociais de uma ordem estabelecida) a uma

socialização dinâmica e historicizada da cultura, em que as crianças passam a ser consideradas

seres plenos, e não adultos em miniatura (PROUT, 1992). Atores sociais ativos capazes de

criar um universo sociocultural com uma especificidade própria, produtor de uma reflexão

crítica sobre o mundo dos adultos (SILVA; NUNES, 1992).

No modelo psicologista implicitamente dualista, no sentido de que o indivíduo se

dá pelo cogito pré-existente em que está fora da sociedade. O dualismo, replicado e não

criticado da teoria da socialização, é tradicional. As crianças eram reconhecidas como

imaturas, irracionais, incompetentes, não sociais e aculturadas, e os adultos eram maduros,

racionais, competentes, sociais e culturados (PROUT, 1992).

Na perspectiva atual, podemos compreender que a categoria ‘criança’ tem uma

conotação de algo original a dizer, socializa-se ao longo de uma relação dialógica com o

mundo à sua volta de tal modo que, justificadamente, sua vivência, representações, modos

próprios de ação e expressão devem constituir objetos da pesquisa social. Onde tornamos

significativa a compreensão da função social da criança no estudo ora apresentado.

No entanto, tal visão continua não sendo fácil, pois depende de um reexame de

nossas próprias avaliações sobre os fatos culturais da infância. Apesar das mudanças

introduzidas pelo novo modelo, o que se sabe sobre a criança continua sendo o que os adultos

sabem sobre ela, e não o que a criança tem a dizer de si mesma, chocamo-nos porque não

estamos preparados para a ‘maturidade e sofisticação’ das crianças em entender o mundo e o

seu lugar nele (BUTLER; SAHW, 1996 apud SILVA; NUNES, 2002).

Dizemos mais, a categoria ‘criança’ é utilizada como a categoria ‘mulher’, ‘mãe’ e

é utilizada como um tipo da categoria universal da ‘criança’. Foi com essa explanação

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tradicional que Hastrup (1978) chamou de ‘semântica biológica’. Os fatos biológicos da vida

como nascimento e infância são constantemente usados como explicação dos fatos sociais da

infância. São poucos os relatos que tomam a infância ou a criança como um componente

cultural.

Mesmo reconhecendo a existência de uma ‘semântica biológica’, elegemos as

mães de crianças que sofrem de problemas respiratórios como sujeitos potenciais que podem

estabelecer formas culturais e afetivas significativas para compreendermos os processos

sociais e culturais dos problemas respiratórios infantis.

De acordo com Prout (1992), não há dúvida de que o crescimento da abordagem

interpretativa nas Ciências Sociais, especialmente o interacionismo simbólico e a

fenomenologia social conduziram a novas direções nos estudos sobre a infância.

Particularmente, adotaram como interesse a criança como ator social e a infância como um

tipo particular de realidade social. Enquanto a tradição interpretativa concedeu aos aspectos da

vida cotidiana a mudança cultural como um processo detalhado e de reflexão crítica, de

análise da esfera sociológica. Sendo assim, essas duas características da Sociologia

interpretativa têm combinado com o crescimento de interesse particular na perspectiva de

grupos menores na organização social e contextos. Nesta tese, em particular, o envolvimento

de crianças e suas famílias são imprescindíveis para compreensão da construção social e

cultural das doenças respiratórias infantis.

Assim, a vida social é conduzida pelas atividades dos atores sociais, que carreiam

os significados e ações com base em suas crenças e perspectivas. Prout (1992) indica que o

modelo de explanação de vida social requer em segurar os significados dos participantes em

contexto específico.

Deve-se lembrar sempre do alerta dado por Martins (1993) de que as Ciências

Sociais dariam um passo importante no seu desenvolvimento se reconhecessem que são as

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crianças, nos dias atuais, os principais críticos sociais. Portanto, nesse estudo, foi utilizada a

categoria ‘criança’ como um agente social e dinâmico na construção do seu processo de

adoecimento, pelo seu modo de agir em seu grupo social.

Bluebond-Langer (1978) citado por Prout (1992) rompeu efetivamente com a idéia

de considerar a criança como um mero ator social e reconhece na criança um agente que pode

interpretar e interagir na construção do seu mundo social. O referido autor clama ainda para

uma discussão no interior da Sociologia da Infância em relação à ação e à estrutura da vida

social da criança. Essa discussão baseia-se na determinação de um comportamento social a

partir de um sistema de organização social, por conseguinte, a criança é ativa e produz

significados nesse sistema.

A emergência dos estudos sobre a criança como uma categoria social silenciosa,

ou silenciada, já foi colocada em paralelo com o processo que levou ao surgimento dos

estudos sobre a mulher, nos anos 70, e que revolucionou as teorias sobre gênero na

Antropologia. A grande diferença é que as crianças, diferentemente das mulheres, talvez não

possam desenvolver a própria etnografia, ou pelo menos não da mesma forma. Temos que

deixar o campo aberto para toda e qualquer possibilidade, bem como correr riscos e assumir as

conseqüências dessa escolha teórica e metodológica.

Segundo Jenks (1996), nas mais recentes investigações sociológicas sobre a

infância, já é possível identificar, pelo menos, a existência de quatro abordagens principais:

1. A infância como construção social. Essa abordagem desmonta/ desconstrói

conceitos positivistas e funcionalistas, como a universalidade da infância para

defender sua pluralidade e diversidade. Tem implícito um papel político, pois

liberta a criança do determinismo biológico e insere uma epistemologia própria da

infância nos domínios do social;

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2. O mundo social da infância como um mundo à parte. É cheio de significados

próprios e não um mero mundo de fantasia e imitação, precursor do mundo adulto.

Essa abordagem enfatiza a infância como socialmente estruturada, mas não

familiar para os adultos e, portanto, passível de ser revelada apenas por meio de

pesquisa, e recomenda que se façam etnografias;

3. As crianças como grupo minoritário. Tem-se desenvolvido no âmbito de uma

sociedade desigual e discriminatória, de relações do poder adulto sobre os rumos

da infância. Considera-se a criança como um outro silenciado e pretende-se dar-

lhes voz, apelando para que as pesquisas se façam ‘para’ as crianças e não apenas

‘sobre’ as crianças e;

4. A criança como categoria sociocultural. A criança volta a ter características

universais e emerge de constrangimentos específicos à estrutura social em que é

inserida; ou seja, sua manifestação pode ser considerada um fato social que varia

de sociedade para sociedade, mas que é uniforme dentro da mesma sociedade.

Tais abordagens mostram o quanto é preciso desenvolver estudos em relação à

infância, localizando-os e engajando-os em dicotomias presentes na teoria social, pois fazem

parte de uma série de outros debates em curso nos dias de hoje: agência – estrutura; universal

– particular; global – local; continuidade – mudança. Autores como Jenks (1996) afirmam ter

havido um significativo progresso nas investigações, porém continuam a chamar atenção para

a lentidão desse processo ao dizerem que ainda há todos os possíveis aspectos a serem

considerados, em que se verificam incompatibilidades como possibilidades de galgar as

fronteiras que esboçam essa temática.

Até a última década do século XX, o tratamento dado às crianças na Sociologia

Médica constitui um reflexo do tratamento que lhe foi dado pela Sociologia da Infância. Prout

(1992) chama atenção para os problemas metodológicos gerados dessa relação. Entre eles, ao

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que se refere ao tipo de pesquisa, pois muitas delas relacionam-se diretamente à Psicologia do

desenvolvimento e tendem a interpretar o pensamento da criança, quando repetem questões

sobre a doença como um produto dos estágios do desenvolvimento cognitivo de Piaget.

Enquanto outros estudos tendem a comparar as respostas das crianças com as dos adultos e

estabelecem estágios da doença como os estágios piagetianos, já que realizam uma ‘mágica’

para tal base cognitiva.

Os problemas surgem a partir da união dos conceitos psicológicos e sociológicos,

quando o enfoque da pesquisa passa a ser o ambiente social em que a criança vive,

investigam-se suas atitudes e crenças sobre a doença. Muitas vezes utilizam-se instrumentos

como questionários e inventários, produzem-se dados sobre a vida social das crianças,

personalidade materna, seu nível sócio-econômico, estado de saúde e história da criança que

conduzem a um amontoado de variáveis independentes e estágios variados sobre a doença

(PROUT, 1992).

É necessário o entendimento de um modelo teórico que construa a criança como

um produto social e, segundo Prout (1992), também é importante considerar o aspecto

referente ao elevado potencial da criança em resistir ao determinismo social. A criança deve

ser vista como parte ativa no processo de socialização, que pode refletir em vários contextos

sociais (no hospital, na moradia ou na escola).

Chamamos atenção que nos estudos psicossociais são coletados dados da criança

como informante, enquanto nos estudos da Sociologia Médica, isso é uma situação rara. A

criança tem sido e continua sendo excluída desses estudos. Muitas vezes são silenciadas; na

década de 1960, realizou-se um estudo clássico sobre as práticas dos serviços de saúde na

Inglaterra, o qual incluiu crianças com menos de quinze anos, mas os pesquisadores não

permitiram o uso de suas vozes de maneira direta, e elas foram substituídas pelas vozes das

mães (PROUT, 1992).

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Paradoxalmente, a discussão reconhece que há uma influência do psicologismo da

infância em relação à Sociologia da Infância. Assim, o contexto social deve ser considerado

não como mero somatório dos processos sociais e culturais, mas sim uma ligação teórica dos

estudos empíricos, a fim de se conceber um texto único para a reconstrução da prática social,

em que estão envolvidos crianças e adultos. No presente estudo, procuramos minimizar essa

tensão aproximando-se da Antropologia da Saúde, por meio da compreensão da construção

dos processos sociais e culturais dos sujeitos, que são crianças e adultos que vivenciam os

problemas respiratórios em sua realidade social.

Sinteticamente, apontamos para uma configuração da infância, indicando suas

dimensões sociais e culturais para efeito de articulação com nossa proposição teórica, que

privilegia o esquema conceitual da criança como categoria sociocultural.

2.2 A Doença como um Processo Social e Cultural

Na abordagem da Antropologia da Saúde sobre a doença, esta não deve ser um

evento primariamente biológico, mas concebida inicialmente como um processo vivenciado

cujo significado é elaborado por episódios culturais e sociais, e depois como um evento

biológico, vividos por crianças e adultos. A doença não é um estado estático, mas um processo

que requer interpretação e ação no meio sociocultural, o que implica em uma negociação de

significados na busca da cura das doenças respiratórias (STAIANO, 1981).

Assuntos pesquisados pela Antropologia da Saúde a partir da década de 1970 não

diferenciam muito dos que tradicionalmente faziam parte dos estudos de etnomedicina: as

crenças, as práticas terapêuticas, os especialistas de cura, as instituições sociais, os papéis

sociais dos especialistas e pacientes, as relações interpessoais e o contexto social, econômico e

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político. Segundo Langdon (1995), o que diferencia essa perspectiva da etnomedicina

tradicional é a relativização da biomedicina e uma preocupação com a dinâmica da doença e o

processo terapêutico.

O enfoque tradicional da etnomedicina é a identificação das categorias da doença,

segundo o grupo estudado, reconhecendo-se o que é definido como doença, como é

classificada e quais os sintomas que são identificados como sinais da doença, tudo isto varia

de cultura para cultura e não necessariamente corresponde às categorias da biomedicina

(FRAKE 1977; LANGDON; MACLENNAN, 1979).

Laplantine (1986) argumenta que a etnomedicina integra em seu campo de

pesquisa a interpretação etiológica da doença pelos doentes, que concerne em seu essencial às

sociedades que evoluíram fora da nossa área e, de maneira subalterna, às camadas marginais

de nossa própria sociedade que recusam ou escapam à medicalização.

A nova abordagem da Antropologia da Saúde segundo o pensamento de Langdon

(1995) aponta três mudanças de ênfase e enfoque: 1 – o conceito da cultura como dinâmico e

heterogêneo; 2 – a perspectiva da doença como um processo sociocultural, e; 3 – o conceito de

doença como experiência.

Essas mudanças ocorreram na dinâmica cultural sobre a relação saúde/doença, que

trabalham um conceito de cultura fundamentalmente diferente daquele presente nos trabalhos

de Ackerknecht, Rivers e Clements. Segundo eles, a cultura existe a priori da ação. Consiste

em normas, práticas e valores vistos como anteriormente estabelecidos e fixos que

determinam os pensamentos e as atividades dos membros de uma cultura. Assim, a cultura é

vista como um sistema fixo e homogêneo, no qual todos os membros compartilham as

mesmas idéias e agem igualmente (LANGDON, 1995).

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Com o desenvolvimento da Antropologia simbólica, o conceito de cultura passou

por uma reconceitualização significativa. Cultura é definida como um sistema de símbolos que

fornece um modelo de e um modelo para a realidade (GEERTZ, 1989). Esse sistema

simbólico é público e centrado no ator, que o usa para interpretar seu mundo e para agir de

forma que também o reproduza. As interações sociais são baseadas em uma realidade

simbólica, constituída por significados, e por sua vez, constituem as instituições e relações

legitimadas pela própria sociedade. A cultura é expressa na interação social, na qual os atores

comunicam e negociam os significados. Aplicado ao domínio da medicina, o sistema de saúde

é também cultural e de significados, ancorado em arranjos particulares de instituições e

padrões de interações interpessoais. É aquele que integra os componentes relacionados à saúde

e fornece ao indivíduo as pistas para a interpretação de sua doença e para as ações possíveis.

A partir da década de 1970, estudiosos da Antropologia Médica Americana

introduziram a teoria interpretativa ao empregarem o conceito de cultura formulado por

Geertz (1989), na abordagem da saúde e da doença (KLEINMAN; EISENBERG; GOOD,

1978). Trata-se de um conceito semiótico por dizer que o homem é criador de significações.

Geertz parte da referência de Max Weber ao afirmar que “o homem é um animal inserido em

tramas de significações que ele mesmo tece”, onde a ‘cultura’ é o conjunto de tramas cuja

análise não deverá dar origem a uma ciência experimental à procura de leis, mas a uma ciência

interpretativa, à procura do significado. A explicação consistiria, pois, na interpretação de

expressões sociais (só) enigmáticas a superfície.

De acordo com Uchôa (1997), essa definição estabelece uma ligação entre formas

de pensar e agir de grupos específicos que ressaltam a participação da cultura na construção de

todo fenômeno humano. Enquanto procura com o auxílio do estilo dos narradores, a retórica

de privilegiar as maneiras pessoais de contar algo que pertence a um fundo cultural comum,

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feito de um mesmo imaginário compartilhado, de uma presença de espírito semelhante, de

uma relação respectivamente comum, a palavra e a língua.

A idéia de cultura compartilhada pelos membros de um grupo passa por um

enfoque na praxis, na relação entre a procura do significado e na ação dos eventos. Essa

abordagem enfatiza os aspectos dinâmicos e emergentes do grupo. A cultura emerge da

interação dos atores que estão agindo juntos para entender os eventos e procurar soluções. O

significado dos eventos, seja doença ou outros problemas relacionados à saúde, emerge das

ações concretas tomadas pelos participantes. Tal visão reconhece que a inovação e a

criatividade também façam parte da produção cultural. Portanto, cultura não é mais uma

unidade estanque de valores, crenças, normas, etc., mas uma expressão humana frente à

realidade. É uma construção simbólica do mundo sempre em transformação. É um sistema

simbólico fluído e aberto (GEERTZ, 1989).

Partimos da noção que a doença na criança e no adulto é uma construção

sociocultural. Os atores internalizam as noções simbólicas da doença, expressas pelas

interações do grupo no qual eles participam, interpretam as mensagens contidas nas atividades

culturais, mas agem segundo suas percepções, influenciadas em parte pelos significados

culturais que circulam no seu grupo, mas também por suas próprias subjetividades e

experiências particulares.

Assim, podemos reconhecer que a subjetividade implica que nem todos os

indivíduos de uma cultura são iguais no seu pensamento ou na ação frente à doença ainda que

isso ocorra em grupos mais isolados e distantes de outras culturas. É uma visão que permite

heterogeneidade, não somente porque as culturas estão sempre em contato com outras que têm

outros conhecimentos, mas também porque os indivíduos dentro de uma cultura, por serem

atores conscientes e individuais, têm percepções heterogêneas devido a sua subjetividade e

experiência que nunca são iguais às dos outros. Essa visão ressalta que a relação entre

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percepção e ação frente à doença conduz a uma heterogeneidade e subjetividade diferenciada,

resultando em implicações na nova visão sobre saúde-doença (LANGDON, 1995).

A perspectiva interpretativa introduzida na abordagem da saúde e da doença teve

como precursores Eisenberg (1977), Susser (1973) e Fabrega (1977; 1978) que influenciaram

autores como Kleinman, Eisenberg e Good (1978) e Jean Benoist (1983). Os primeiros

estudos interpretativos e em sua maioria pesquisas anglo-saxônicas, desenvolveram

terminologias sobre a categorização da doença, segundo o idioma e as dimensões biológica e

cultural dos pacientes e estruturas do sistema médico local. Na língua francesa, dispõe-se

apenas de uma categoria da doença (maladie), enquanto a língua inglesa possui tripla

terminologia: disease (a doença tal como ela é apreendida pelo conhecimento médico), illness

(a doença como é experimentada pelo doente) e sickness (um estado muito menos grave e

mais incerto que o precedente, tal como o enjôo em viagens marítimas, o aperto no coração e,

em geral, o mal-estar) (LAPLANTINE, 1986).

Nos estudos de Eisenberg (1977) sobre a categoria illness, ela deve ser reservada

para caracterizar a experiência subjetiva e o sofrimento do paciente, enquanto a categoria

disease explica a anormalidade na estrutura ou função dos órgãos ou sistemas do corpo. Para

Fabrega (1977; 1978), illness designa os comportamentos socioculturais ligados à doença em

uma dada sociedade. Termo que reservou até 1972 apenas as interpretações não ocidentais da

doença e da saúde, por exemplo, as abordagens tradicionais médicas orais (populares e

eruditas) ou as abordagens tradicionais organizadas em um corpus de conhecimentos escritos

e elaborados por especialistas como os médicos eruditos (homeopatia). Enquanto a categoria

disease seria a apreensão propriamente biomédica da doença, única fundamentada em um

conhecimento objetivo dos sintomas físicos do paciente, por parte da prática médica.

Para Laplantine (1986), as interpretações se mostram insuficientes porque a

categoria illness tornou-se tão extensiva que acaba por confundir as dimensões psicológica e

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social, quando se trata de articulá-las. No entanto, ele não reconhece como inútil tais

interpretações, mas conceitua que a doença é subjetivamente experimentada (illness) e tal

como é cientificamente observada e objetivada (disease), e que a prática biomédica consiste

em reintegrar totalmente a primeira à segunda.

Neste sentido, Laplantine (1986) revela a existência de outras classificações sobre

doenças que contrariam os princípios da universalidade e da medicalização das doenças e do

homem, que são sustentadores de ordem médica em uma sociedade como a nossa. Tendo em

vista a compreensão que o ser humano é um ser de relações e de simbolizações, sem as quais

não há vida, nem construção cultural. Argumenta-se ainda que não seja possível interpretar as

doenças, nem no interior de uma patologia individual, nem tão pouco de uma patologia

coletiva, sem considerar o corpo como um todo, movido por uma mesma força vital (ou

energia) que concretiza o princípio de identidade entre o biológico e o simbólico.

Posteriormente, Young (1982) incorpora um terceiro termo, doença (sickness),

como uma desordem relacionada às forças macrossociais (econômica, política e institucional)

determinantes e condicionantes, bem como acrescenta à experiência do adoecimento o reflexo

da opressão política, privação econômica e outras fontes sociais de miséria humana.

Jean Benoist (1983) relacionou os sentidos ao conceito de sickness, que explica as

condições sociais, históricas e culturais da elaboração das representações do paciente e das

representações do médico, e isso qualquer que seja a sociedade considerada. Ele resume que

essa terminologia deve designar o “processo de socialização de disease e illness”.

Estudos realizados no Brasil re-classificam as terminologias de doenças em:

doença (sickness), patologia (disease) e enfermidade (illness) (COELHO, 1999). Enquanto

autores como Uchôa (1997) reafirmam em seus estudos os termos definidos por Kleinman

(1980): doença processo (disease) no paradigma da biomedicina que é o mau funcionamento

ou a má adaptação dos processos biológicos, fisiológicos e/ou psicológicos no indivíduo,

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constituindo o espaço privilegiado de intervenção da biomedicina; doença como experiência

(illness) enfatiza a percepção individual, que representa as reações pessoais, interpessoais e

culturais da doença ou desconforto, sendo a doença percebida pelo sujeito. A chamada illness

é formada pelos fatores culturais regidos pela percepção, explicação e avaliação de

experiências desconfortáveis, os quais estão embutidos nos complexos processos familiar,

social e cultural.

Nessa perspectiva interpretativa, autores como Uchôa (1997) e Young (1976)

afirmam que a experiência da doença não deve ser considerada como um simples reflexo do

processo patológico no sentido biomédico do termo; ela é concebida como uma construção

cultural que se expressa em formas específicas de pensar e de agir. Complementando a

afirmação, o significado da doença em outras culturas não deve se limitar aos sistemas

diferentes de nomeação e classificação de doença (GOOD, 1977; 1994).

Consideramos, nesse sentido, a doença como um processo e não como um

momento único nem uma categoria fixa, mas uma seqüência de eventos que tem dois

objetivos pelos atores: (1) entender o sofrimento no sentido de organizar a experiência vivida,

e (2) se possível, aliviar o sofrimento. A interpretação do significado da doença emerge por

intermédio do seu processo. Assim, para entender a percepção e o significado, é necessário

acompanhar todo o episódio da doença: o seu itinerário terapêutico e os discursos dos atores

envolvidos em cada passo da seqüência de eventos. O significado emerge do processo entre

percepção e ação. Um episódio apresenta um drama social que se expressa e se resolve por

estratégias pragmáticas de decisão e ação (LANGDON, 1995).

Utilizamos no presente estudo o termo ‘doença’ como processo e ‘doença’ como

experiência no mesmo sentido empregado por Langdon (1995), que caracteriza a doença como

processo, em termos gerais como: (a) o reconhecimento dos sintomas do distúrbio como

doença, (b) o diagnóstico e a escolha de tratamento, e (c) a avaliação do tratamento.

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O Reconhecimento dos sintomas: os eventos são iniciados com o reconhecimento

do estado de doença baseado nos sinais que indicam que o todo não vai bem. Quais sinais são

reconhecidos como indicadores de doença que depende da cultura. Não são universais, como

pensados no modelo biomédico. Cada cultura reconhece sinais diferentes que indicam a

presença de doença, o prognóstico e as possíveis causas. Esses sinais, em várias culturas, não

são restritos ao corpo ou sintomas corporais. A situação ambiental, seja do grupo ou da

natureza, faz parte também de possíveis fontes de sinais a serem consideradas na tentativa de

identificar a doença.

O Diagnóstico e a escolha de tratamento: uma vez que um estado de sofrimento é

reconhecido como doença, o processo diagnóstico se institui para que as pessoas envolvidas

possam decidir o que fazer. O momento inicial normalmente acontece dentro do contexto

familiar, onde os membros da família negociam entre eles para chegar a um diagnóstico que

indicaria qual tratamento deve ser escolhido. Se não chegam a nenhum diagnóstico claro, pelo

menos eles procuram um acordo, por intermédio da leitura dos sinais da doença e, portanto, de

qual tratamento deve ser escolhido. No caso de tratar-se de uma doença leve e conhecida, a

cura pode ser um chá ou uma visita ao posto de saúde. No caso de ser uma doença séria com

sintomas não-usuais ou interpretados como resultante de um conflito nas relações sociais ou

espirituais (por exemplo, quebra de tabu), talvez o xamã ou outro especialista em acertar as

relações sociais seria escolhido primeiro. Não é possível predizer a escolha, pois essa vai ser

determinada pela leitura dos sinais da doença negociada pelos participantes.

A Avaliação: uma vez que o tratamento foi feito, as pessoas envolvidas avaliam os

seus resultados. Em casos simples, a doença some depois do tratamento e todos estão

satisfeitos, mas, freqüentemente, a doença continua. Assim, é preciso rediagnosticar a doença,

baseado na identificação de novos sinais ou na reinterpretação dos sinais. Com o novo

diagnóstico, um outro tratamento é selecionado, realizado e avaliado. As etapas se repetem até

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que a doença seja considerada como terminada. Casos graves ou prolongados envolvem vários

eventos de diagnóstico, tratamento e subseqüentes avaliações. Freqüentemente a doença torna-

se uma crise que ameaça a vida e desafia o significado da existência. Muitas pessoas e grupos

são mobilizados no processo terapêutico e os significados da doença no contexto mais

abrangente (relações sociais, ambientais e espirituais) são explorados. Por intermédio dos

episódios da doença, os quais envolvem diagnósticos, tratamentos e avaliações sucessivas, as

pessoas procuram os sinais extracorporais, tais como nas relações sociais ou nos movimentos

cosmológicos, para compreender a experiência de sofrimento.

O processo terapêutico não é caracterizado por um simples consenso; deve ser

melhor entendido como uma seqüência de decisões e negociações entre várias pessoas e

grupos com interpretações divergentes a respeito da identificação da doença e da escolha da

terapia adequada. Há duas fontes principais de divergências: uma se encontra na própria

natureza dos sinais da doença e a outra nas diferentes interpretações das pessoas (LANGDON,

1995, p. 03).

Em primeiro lugar, os sinais da doença não são, por natureza, claros. Eles são

ambíguos, causam interpretações divergentes entre pessoas, mesmo que elas compartilhem do

mesmo conhecimento e classificação diagnóstica. Frake (1977) notou isso entre os Subanum,

duas pessoas quando concordam com os sintomas que indicam uma doença, freqüentemente

na prática identificaram o mesmo caso diferentemente. Talvez porque interpretaram os

sintomas de modo diferente ou reconheceram sintomas diferentes. Pode-se dizer que o mesmo

acontece na biomedicina. Não há sempre um consenso entre os médicos ao examinarem o

mesmo paciente. Na teoria, as classificações das doenças, segundo seus sintomas, podem ser

bem organizadas em categorias discriminadas sem aparência de ambigüidade, mas na prática,

um sinal de doença não é necessariamente claro e fácil de interpretar devido a sua própria

ambigüidade (LANGDON, 1995, p. 06).

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Em segundo lugar, os diferentes diagnósticos de uma mesma doença aumentam

consideravelmente quando os participantes no processo representam diferentes

conhecimentos, experiências e interesses no caso em pauta as doenças respiratórias infantis.

Entre os membros de um grupo, nem todos possuem o mesmo conhecimento, devido a vários

fatores: idade, sexo, papel social, redes sociais e alianças com outros (i.e. pessoa comum,

especialista em cura, pajé) (LANGDON, 1995, p. 06). Em uma situação de pluralidade de

grupos étnicos e sistemas médicos, como no caso da saúde dos moradores em um

assentamento urbano, tal situação pode ser mais complexa. Por isso, cada passo do episódio é

caracterizado por visões dos diferentes participantes e negociadas suas interpretações da

indicação de tratamento, cada um exerce seus diferentes conhecimentos, experiências e

poderes presentes.

Langdon (1995) afirma que o conceito da doença como experiência é bem

entendido como um processo subjetivo, construído por contextos socioculturais e vivenciado

pelos atores. A doença não é mais um conjunto de sintomas físicos universais observados em

uma realidade empírica, mas um processo subjetivo no qual a experiência corporal é mediada

pela cultura. O exemplo mais simples é a questão da dor. Sabemos que membros de culturas

diferentes experimentam e expressam suas dores diferentemente (WOLFF; LANGLEY,

1977).

Até em uma mesma cultura, a dor é experimentada de maneira diferenciada entre

os sexos. Nos descendentes dos açorianos na Ilha de Santa Catarina, os homens negam sentir

dores e sintomas de saúde na mesma freqüência que as mulheres (ELSEN, 1984 apud

LANGDON, 1995). A dor no parto é outro exemplo, enquanto as mulheres de algumas

culturas enfrentam o parto com grande medo da dor e expressam a experiência de parto como

uma terrível dor, outras mulheres de outros lugares ou classes passam pela experiência com

pouca referência à dor. Por exemplo, as índias Siona da região Amazônica fazem pouco drama

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sobre o parto natural. Na primeira vez, a nova mãe vai dar à luz acompanhada pela mãe ‘no

mato’ ou por outra mulher com experiência. Em gravidezes subseqüentes, simplesmente ela

dá à luz sozinha e volta para casa. Hoje, no Brasil, há um movimento em favor do parto

natural, como as mulheres mais velhas falam que o parto é dolorido sempre algum anestésico

é aplicado, mas mulheres que participam do movimento de parto natural falam que o parto dá

um certo tipo de ‘incomodação’, não exatamente dor, até os minutos finais, e que essa dor é

facilmente esquecida (LANGDON, 1995).

Mas, a autora não enfatiza que simplesmente a dor se manifesta de modo

diferente, dependendo da cultura, um fato que parece ser bem estabelecido. A relação

corpo/cultura vai bem além da questão de sofrimento físico. O corpo serve para o ser humano

como uma matriz simbólica que organiza tanto sua experiência corporal como o mundo social,

natural, e cosmológico. O que o corpo sente não é separado do significado da sensação, isto é,

a experiência corporal só pode ser entendida como uma realidade subjetiva na qual o corpo, a

percepção dele e os significados se unem numa experiência única que vai além dos limites do

corpo em si.

A descrição é bem ilustrada no caso de grupos indígenas, como explicar o que

significa ser uma criança e quando se deixa de ser criança. Por exemplo, no caso dos Xikrin,

uma etnia indígena de língua jê, que mora no Pará e se autodenomina Mebengokré, para quem

o corpo de um novo ser humano vai sendo criado durante a gestação, gradativamente, por

meio das relações sexuais; não há, portanto, um momento único de concepção, seguido da

formação do corpo, mas sim uma formação contínua. Como mais de um homem pode

contribuir para essa formação, o bebê pode ter mais de um pai, que será reconhecido e

reconhecerá sua paternidade ao participar de um ritual público quando do nascimento do bebê.

Quando o bebê tem ainda o corpo em formação, ‘mole’, como eles dizem, os genitores devem

respeitar os cuidados com seu próprio corpo que, se infringidos, causariam mal ao corpo do

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bebê. Essa é uma fase crucial, mas a ligação fundada na gestação perdura e se revelará com

toda força em situações de crise, como doenças (COHN, 2005).

Outro grupo indígena da região Amazônica relaciona a doença no corpo como

sendo o momento quando a força da vida está em declínio, e se não curado, a doença leva à

morte. O sintoma mais importante da doença é a perda de peso, e quando uma pessoa está

doente, ele diz literalmente ‘estou morrendo’. Morrer é um processo para eles, não um

momento e, a doença assim como a velhice são processos de morrer (LANGDON, 1995).

Nas últimas décadas, há uma tendência não apenas na Antropologia, mas também

nas ciências médicas de se reconhecer que a divisão cartesiana entre o corpo e a mente não é

um modelo satisfatório para entender o fenômeno saúde, doença e cuidado. As representações

não expressam somente o mundo, mas a experiência vivida, eles também são incorporados ou

internalizados a tal ponto que influenciam os processos corporais. Estudos sobre a ‘doença de

criança’ no Nordeste Brasileiro, e que buscam romper com a explicação meramente biológica

da doença (NATIONS; REBHUN, 1988a, 1988b; NATIONS, 1992), apontam que as crianças

pobres e nordestinas, as quais morrem por ‘doença de criança’, rompem com a explicação do

paradigma biomédico clássico, particularmente no caso da diarréia em que é visível a inter-

relação de fatores biológicos, sócio-ambientais, culturais e espirituais, os quais apontam para

um modelo holístico de explicação das doenças.

Em um outro estudo, também realizado na região Nordeste, o qual abordou sobre a

mãe pobre e seus sentimentos frente ao filho, realizado em 1992 por Scheper-Hughes,

apresenta uma etnografia da vida, doença e morte das crianças nordestinas, bem como coloca

em destaque a negligência e culpabilidade materna frente às mortes de seus filhos. Segundo

ela, “falta um sentimento maternal apropriado nas mulheres pobres” (1992, p. 406).

No final da década de 1970, Kleinman (1978) marcou o início de uma nova

abordagem da Antropologia Médica Americana ao designar o sistema médico como um

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sistema cultural e estabelecê-lo como espaço de pesquisa antropológica. O sistema cultural é

definido como simbólico e de significado, que constrói a realidade social e a experiência da

pessoa, mediadas entre fatores internos e externos do sistema médico. Os fatores internos são

os aspectos psicológicos, comportamentais e comunicativos. Por outro lado, os fatores

externos são os aspectos sociais, políticos, econômicos, históricos, epidemiológicos e

tecnológicos (KLEINMAN, 1978).

Kleinman (1978) estabeleceu uma relação sistemática da doença e da forma de

tratá-la nas diversas sociedades que compõem um sistema cultural. Nele é possível estabelecer

a descrição da doença como um idioma cultural, bem como vincular crenças sobre as causas, a

experiência dos sintomas, os padrões específicos de comportamentos, as decisões de

definições de tratamentos alternativos, a prática terapêutica atual, a evolução terapêutica e a

cura da doença.

O referido autor ainda adverte que uma análise isolada de um desses componentes

pode distorcer a natureza do mesmo e a sua função em um contexto específico de um sistema

de cuidados em saúde, em uma possível comparação transcultural.

De acordo com Kleinman (1978, 1980), os sistemas de cuidado com a saúde não

podem ser comparados a partir de seu contexto local, haja vista o mesmo produzir importantes

variações dos determinantes políticos, econômicos e sociais. Além disso, as comparações

podem revelar diferenças significativas no tamanho de seus sistemas particulares e em seus

setores. Por isso, ele propõe um sistema de cuidado em saúde pluralístico que inclua a

modernização médica e a indigenização capaz de afetar o comportamento e compreensão nas

instituições.

O modelo de sistema de cuidados com a saúde como estrutura interna, proposto

por Kleinman (1980, 1986, 1988), é um método de análise de rede de semântica que

identificou três setores sociais: o popular, o profissional e o folk (Quadro 1), definindo-os

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como um sistema cultural local, ao mesmo tempo em que sistematizam os modelos

explicativos empregados por diferentes categorias de pessoas para lidar com os episódios de

doença. Em cada um dos setores, médicos, curadores, pacientes e respectivos membros de

suas famílias possuem diferentes significados dos modelos explicativos para a etiologia, os

sintomas, a fisiopatologia, o curso e o tratamento das doenças. As diferentes explicações são

cultural e socialmente construídas e necessitam ser negociadas no processo da cura. O sistema

de cura necessita ser avaliado em diferentes níveis analíticos: psicológico, fisiológico, social e

cultural.

QUADRO 1: Estrutura do Sistema de Cuidado com a Saúde – Estrutura Interna

Fonte: KLEINMAN, A. Concepts and a model for the comparison of medical systems as cultural systems. Social Science Medicine, New York, v. 12, p. 85-93, 1978.

No olhar de Kleinman (1980), o setor popular é o mais amplo, por se constituir de

indivíduos, famílias, redes sociais e atividades comunitárias, pelas quais, crenças vivenciadas

por pessoas não especializadas ou pelos próprios indivíduos que buscam, informalmente, a

Crenças Escolhas e Decisões

Normas Relações

Interações de Contexto Instituições

Setor Profissional

Setor Folk

Pontos de Interação, Entrada e Saída

Pontos de Interação, Entrada e Saída

Setor Popular Individual Família Social

Comunitário

Linhas de Tangência

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cura pelas orientações dessas pessoas. O autor referencia que ambas as sociedades Ocidentais

e Não-Ocidentais, entre 70% e 90% das doenças, estão gerenciadas unicamente pelo domínio

deste setor.

Kleinman (1978) explica que o setor profissional compreende os profissionais

terapêuticos sindicalizados e legalmente reconhecidos, sendo que, em muitas sociedades, ele

está ligado à medicina científica moderna; enquanto o setor folk seria a experiência do sujeito

mais voltado para o sistema de crença do indivíduo em curandeiros não profissionais.

Entretanto, Rodrigues e Caroso (1996); Caroso et al. (1997) e Caroso; Rodrigues;

Almeida-Filho (1998), em estudos com populações pobres na Bahia, readaptaram esse modelo

e consideraram apenas o setor profissional e o setor comunitário. E o setor comunitário foi

considerado o mais importante em qualquer contexto, constituído por indivíduos, famílias,

redes sociais, crenças e atividades comunitárias e outras práticas não profissionais, no sentido

que é visto por Kleinman, como setor popular e setor folk.

Segundo Kleinman (1978), as doenças processos (diseases) são comumente

associadas aos modelos explicativos dos profissionais praticantes (modernos ou indígenas),

nas quais são relatadas teorias especiais sobre nosografia e a causa da doença. Entretanto,

esses modelos freqüentemente separam o público geral do tradicional e envolvem um acesso

limitado a grupos da elite. Nas sociedades mais modernas, a doença experiência (illness) está

associada ao modelo explicativo do setor da cultura popular e folclórico, cuja doença é

articulada com pessoas não técnicas, que apresentam relação com problemas da vida. Essa

última categoria é freqüentemente documentada com achados dos curadores que trabalham

com explicação cosmológica, a qual estabelece uma relação sensível entre as explicações

sociológicas e psicológicas. Esse autor ainda chama atenção para o conflito que surge a partir

da construção cultural do sistema de cuidado com a saúde, revelando uma base de status

discrepante entre o poder e a relação entre os participantes-chave do sistema.

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Ao serem considerados os aspectos teórico-conceituais, discutidos anteriormente,

enfatizamos como importante analisar a relação entre as doenças respiratórias infantis e os

moradores de um assentamento urbano, constituídos por crianças e adultos pobres, bem como

suas relações sociais, resultados das forças externas do grupo, e que acabam refletindo uma

realidade do grupo. Nesse sentido, enfrentamos um desafio de construir um sistema de

cuidado com a saúde frente às doenças respiratórias infantis, vivenciado e construído

culturalmente pelos moradores com o intuito de melhorar a saúde das crianças pobres em

assentamentos urbanos.

2.3 Aplicação do Modelo de Análise de Sistema de Signos, Significados e Ações

Esse item apresenta o modelo teórico do sistema de signos, significados e ações

em saúde proposto por Ellen Corin (1992a, 1992b, 1995); Corin; Bibeau; Uchôa (1993);

Bibeau; Corin (1994) e Uchôa; Vidal (1994) e representa uma investigação na perspectiva da

Antropologia da Saúde aproximando da análise interpretativa, fenomenológica e crítica. Tal

modelo foi empregado nesse estudo com o propósito de compreender a construção dos

processos culturais e sociais a partir dos casos concretos de doenças respiratórias infantis.

O sistema de análise resulta em um modelo interdisciplinar do sistema de cuidado

com a saúde em um contexto biocultural e suas relações, inter-relacionando os fatores sociais,

psicológicos e ambientais com a doença respiratória e sua cura. Para Uchôa (1997), o sistema

permite comparar os diversos modelos explicativos e interações entre os modelos culturais

médicos.

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Um outro arcabouço do modelo teórico-metodológico é a análise das redes

semânticas, formulada por Good (1994; 1977), que trata a doença como uma narrativa

marcada por uma rede de perspectivas. O autor propõe um novo entendimento da doença em

relação à linguagem médica e do paciente, a partir do desenvolvimento de uma nova teoria da

linguagem médica que reforça a concepção de doença do paciente e possa reduzir as

semânticas médicas a ostensivas ou denominar as funções da linguagem. O conhecimento dos

múltiplos pontos de vista não impede que se conduzam estudos transculturais ou que se

utilizem unidades de análise para a elaboração de hipóteses e realização de estudos

comparativos. O reconhecimento das redes para o entendimento dos significados das

linguagens médicas pode ser usado em vários contextos comunicativos.

No entanto, o termo ‘redes semânticas’ não tem significado ou método uniforme.

Pesquisas etnográficas são desenhadas para o mapeamento de padrões simbólicos, associados

a um termo médico, que seja chave; enquanto as categorias de doenças, sintomas e práticas

médicas são importantes nos estudos, pois estão centradas nos significados e tradições das

doenças (GOOD, 1994; 1977).

A abordagem semântica procura explicar e identificar as reações de

comportamentos em um modelo popular do sistema de signos, significados e ações das

doenças respiratórias infantis, porém as reações não podem ser identificadas separadamente

dos seus contextos socioculturais (BIBEAU; CORIN, 1994). O universo semântico dos signos

e ações dos moradores relacionado às doenças respiratórias infantis está explícito nas

dinâmicas da própria Comunidade do Dendê através de seus códigos culturais centrais e

ligados às concepções dos moradores.

Para Uchôa (1997), a abordagem interpretativa vem relativizar o naturalismo

médico da biomedicina, abrindo-se, assim, para outras formas culturais de construção de

realidades médicas quando demonstra não haver correspondência exata entre os modelos

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profissionais, que geralmente são as intervenções em saúde (preventivas ou terapêuticas) e os

modelos populares do paciente, orientados das percepções e dos comportamentos das

comunidades. A autora ainda afirma que, nessa abordagem, o universo sociocultural de

populações específicas deixa de ser visto como obstáculo principal à efetividade de

intervenções para ser encarado como contexto que deve ser levado em consideração, tanto no

desenho de pesquisas quanto no planejamento de intervenções adequadas às características

dessas populações.

No percurso metodológico das doenças respiratórias infantis dentro do modelo de

análise do sistema de signo, significado e ações, é necessário fazer uma leitura, ao mesmo

tempo, compreensiva, explicativa e interpretativa como forma de superar as dificuldades de

análise dos materiais etnográficos, pela confluência de informações sobre os principais

códigos e categorias-chave do contexto cultural da Comunidade do Dendê. Para tanto, é

necessário seguir algumas regras básicas e, assim, serem construídas interpretações

antropológicas confiáveis:

1 - adquirir familiaridade com a superfície da realidade da Comunidade;

2 – olhar atrás das cenas e ler as entrelinhas;

3 - trilhar os passos dos adivinhos; e

4 – dedicar-se a um esforço cooperativo e criativo (BIBEAU; CORIN,1994).

O programa de âmbito internacional visando promover estudos comparativos entre

“Sistema de signos, de significados e de ações em saúde mental”, em países da África,

Europa, América Latina e América do Norte, desenvolvido por Corin e colaboradores a partir

de 1991, tem como proposta a constituição sobre novos métodos de estudos comparativos de

bases sociais e culturais dos problemas de saúde mental. Na abordagem do grupo, as

explicações privilegiam os signos (comportamentos), assim como as reações que predominam

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face aos sujeitos que apresentam esses problemas. Contudo, esse método não se encontra

limitado aos estudos da saúde mental e pode ser empregado para outros estudos em outros

aspectos do comportamento em busca de explicações sobre as maneiras como as pessoas

reagem quando se deparam com problemas concretos em suas vidas (BIBEAU, 1992; CORIN,

1995; BIBEAU; CORIN, 1994; 1995; UCHÔA; VIDAL, 1994; UCHÔA, 1997; ALMEIDA-

FILHO et al., s/d.).

No campo da saúde mental, a abordagem visa compreender os processos sociais e

culturais por meio da construção, expressão e evolução dos problemas psiquiátricos, no

sentido de contribuir para modelar as manifestações das desordens psiquiátricas. Parte da

noção que a comunidade constrói, de maneira específica, o universo dos problemas

psiquiátricos, marcado principalmente por esse ou aquele sintoma, privilegiando essa ou

aquela explicação e encorajando certos tipos de reações (CORIN, 1990; UCHÔA, 1997).

Autores como Uchôa et al. (1997) consideram que esse modelo seja aplicável em

outras áreas do campo da saúde, como na área das doenças crônicas e/ou endêmicas.

Adicionalmente, Uchôa e Vidal (1994) enfatizam a importância desse modelo em relação à

formulação de conceitos e à construção de componentes metodológicos, a sua contribuição

para o melhor conhecimento dos sinais e sintomas de uma doença considerada relevante por

populações específicas, bem como na descrição das interpretações culturais associados aos

problemas de saúde e doença.

Segundo Uchôa (1997), o referido modelo é considerado um prolongamento do

grupo de pesquisadores da Antropologia médica de Harvard. Esses pesquisadores adotaram

uma abordagem interpretativa na possibilidade de desenvolver estudos referentes às entidades

nosográficas ocidentais em diferentes contextos para a análise da construção semântica que

confere às doenças e emoções em suas especificidades culturais, bem como a noção de

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experiência da doença e do adoecimento que conduz a um processo subjetivo e expresso em

formas particulares (GOOD, 1977; KLEINMAN, 1980).

A proposta de análise da construção dos processos sociais e culturais dos

moradores da Comunidade do Dendê em relação às doenças respiratórias infantis preocupa-se

em compreender como os moradores legitimam e definem certas experiências de sentir-se mal

frente às doenças e como comunicam e negociam os significados dos seus sofrimentos e

aflições, e dos sofrimentos dos outros.

Os significados da experiência vivida configuram-se em uma perspectiva

interpretativa e fenomenológica como construções culturalmente herdadas e utilizadas em

situações concretas como o adoecer (CORIN et al., 1992a; 1992b; 1995). A partir dessa

premissa, podem-se abstrair importantes implicações pragmáticas. Primeiro, há uma variação

dos comportamentos das doenças entre as sociedades de acordo com os diferentes sistemas

culturais, fatores ambientais e aspectos históricos. Logo, os indivíduos de uma sociedade

apresentam características particulares quanto à idade, gênero, classe, etnia e expectativa da

doença que refletem no comportamento de seu mal-estar, o qual é aceitável em seu sistema

cultural. Segundo, as medidas terapêuticas utilizadas, bem como a decisão de tentar o

tratamento, dependem dos significados culturais e das expectativas relacionadas à experiência

pessoal com a doença (KLEINMAN, 1980; RABELO; ALVES; SOUZA, 1999).

Bibeau (1992) afirma em seu texto sobre “Hay uma enfermidad em las americas?”

que o modelo do sistema de signos, significados e ações é uma proposta de metodologia

alternativa de investigação na perspectiva da Antropologia Médica que busca uma

aproximação da análise interpretativa, fenomenológica e crítica. Afirma ainda que a

Antropologia Médica latino-americana tem muitas dificuldades para se livrar dos principais

modelos teóricos que influenciaram historicamente e continuam modelando. Esse autor e

Corin (1994) desenvolveram o modelo ora citado, apontado para um processo metodológico

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que está organizado em três momentos: primeiro lugar: o ponto de partida é o discurso das

pessoas e seus pontos de vista sobre a realidade; segundo lugar: um quadro para estudar a

difícil questão da causalidade por intermédio da noção de ‘dispositivo patogênico estrutural’

e; terceiro lugar: contra as tendências das etnografias gerais da comunidade, ou seja, pretende

reduzir a extensão da investigação etnográfica e delimitar claramente desde o início das

fronteiras de investigação.

As três características desse modelo relacionadas à metodologia são:

1) Ser factual e comportamental, o trabalho de campo tem como ponto de partida

um levantamento de dados, eventos, ações e dos comportamentos, tal como se apresentam

cotidianamente na vida das pessoas sobre os quais a Antropologia da Saúde conduz sua

investigação; ele procura esclarecer a relevância do problema de saúde, reconhecer as

categorias dos problemas de saúde e das doenças que se destacam no conjunto de problemas,

presentes no grupo em particular;

2) A Narratividade deve reconhecer os relatos populares espontâneos sobre os

casos de pessoas conhecidas que vivem várias categorias de problemas e reconstruir

sistematicamente os casos ativos e retrospectivos pelos relatos dos informantes-chave: roteiros

de entrevista sobre a reconstrução de signos (primeiros signos e evolução), sobre a clareza da

explicação dos sintomas e do sistema de explicação da ação realizada para buscar uma solução

ao problema de saúde. A essas primeiras séries de perguntas relativas aos signos e às causas

da doença podem-se acrescentar perguntas sobre as reações do entorno, frente à situação e

sobre os processos empreendidos para encontrar uma solução ao problema de saúde. Tal

conjunto de reações e de processos faz parte do que se chama sistema de ação, que é um

conjunto de ações e de comportamentos no qual a estrutura lógica interna não compreende,

senão o pano de fundo da semiologia popular e do sistema interpretativo existente dentro da

comunidade em estudo. Por essa razão, o colocamos sobre uma aproximação ‘semântico-

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pragmática’ dos problemas que se encontram na comunidade (Quadro 2). A finalidade é

compreender, de modo sistemático, como podemos esclarecer e empregar estratégias

implícitas de definição de categoria de doença respiratória infantil e de reconhecimento de

caso da categoria em questão, bem como analisar as narrativas das pessoas sobre sua

experiência dessa doença e de seus pontos de vista sobre a realidade. Na maioria das vezes,

podemos identificar semelhanças, parentescos e analogias, além de estabelecer seu modo de

viver, em um plano analítico, de continuidades e descontinuidades de acordo com uma

variedade flutuante de critérios que foram identificados na comunidade do estudo (BIBEAU,

1992; BIBEAU; CORIN, 1994; ALMEIDA-FILHO, 2000).

QUADRO 2: Modelo Semântico – Pragmático

Semântica Pragmática

Moldes para

a Ação (Blueprint)

Fonte: BIBEAU, G. Hay una enfermidad en las Americas? Otro camino de la antropologia médica para nuestro tiempo. In: CONGRESSO DE ANTROPOLOGIA, 1992, COLOMBIA. Resumos. Santa Fé de Bogotá: Universidad de Los Andes, 1992. p. 2-31.

3) A Hermenêutica re-coleciona as múltiplas interpretações e discursos locais tais

como: comentários explicativos dados pelos informantes-chave pelos relatos sistemáticos dos

casos de doença respiratória infantil; discursos públicos dos líderes de grupos e com as

Sistemas de Signos

Sistemas de Significados

Campo Campo Social Cultural

Sistemas de Ações

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pessoas da comunidade; ‘vozes nativas’ dos intelectuais e investigadores que falam do interior

dos grupos e comunidades; e um trabalho cooperativo com os intérpretes locais para

desenvolver uma hermenêutica propriamente antropológica. A hermenêutica de segundo nível

deve ser construída por interpretações de segundo nível, prolongando as interpretações nativas

que traduzem-se em outra linguagem ou fazem emergir os sentidos que podem escapar aos

atores sociais envolvidos neste estudo. Para prevenir os perigos inerentes ao emprego da

hermenêutica, desenvolvemos uma estratégia que combina a submissão ao texto dos discursos,

no qual retiramos com violência esses mesmos textos. Resgatamos por intermédio de

subtextos com fidelidade o conjunto dos discursos dos outros, antes de penetrarmos no interior

desse discurso e de organizá-los ao redor de categorias centrais do estudo da doença

respiratória infantil (BIBEAU; CORIN, 1994).

O modelo se propõe a fazermo-nos repensar a explicação sobre causalidade dos

problemas respiratórios infantis sob três categorias centrais: condições estruturantes,

experiências organizadoras coletivas e dispositivos patogênicos estruturais (Quadro 3). As

condições estruturantes compreendem o macrocontexto e incluem as restrições ambientais, as

de poder político, as bases de desenvolvimento econômico, as heranças históricas, as

condições cotidianas de existência e a heterogeneidade do grupo em estudo. Os

condicionantes operam como elementos de modulação da cultura e limitadores da liberdade de

função da espécie e da ação individual. Os dispositivos patológicos estruturais constituem uma

múltipla influência de elementos como a cultura, fatores sócio-econômicos, biológicos,

ambientais e geográficos. As experiências organizadoras coletivas implicam elementos do

universo sociosimbólico de pessoas da comunidade que atuam no sentido de manter a

identidade dessa comunidade, seus sistemas de valores, sua organização social, articulando

para a formação dos sistemas de respostas sociais perante os problemas respiratórios infantis

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da comunidade em estudo (BIBEAU, 1992; BIBEAU; CORIN, 1994; ALMEIDA-FILHO,

2000).

Quadro 3: Elementos da Análise Contextual e Sociocultural dos Problemas de Saúde em um

Grupo

Fonte: BIBEAU, G. Hay una enfermidad en las Americas? Otro camino de la antropologia médica para nuestro tiempo. In: CONGRESSO DE ANTROPOLOGIA, 1992, COLOMBIA. Resumos. Santa Fé de Bogotá: Universidad de Los Andes, 1992. p. 2-31.

O estudo etnográfico de uma cultura se enriquece freqüentemente dos

esclarecimentos inesperados; logo, nos aproximamos da cultura local pelas temáticas

transversais importantes como os temas de saúde, doença, morte, fecundidade, nascimento,

parentesco e da sobrevida biológica e social de um grupo. Os sujeitos com saúde e doença se

articulam, em efeito, diretamente a numerosos aspectos da vida social e são objeto de

tratamento simbólico que forçam o investigador a ler a questão de saúde-doença sobre o pano

de fundo da concepção do mundo e do sistema de representações que prevalece na cultura

estudada. Dessa forma, a tendência a superculturalizar as representações e as práticas das

pessoas é freqüente nesses estudos (BIBEAU, 1992).

Experiência Organizadora

Coletiva

Dinâmica Social e Cultural

Sistemas de Signos, Significados e Ações

Dispositivos Patológicos Estruturais

Dispositivos Terapêuticos Estruturais

Maiores Problemas Coletivos

Condicionantes Estruturantes

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Sob a perspectiva da Antropologia Limitada ou Focalizada, Bibeau (1992) afirma

que alguns elementos devem ser contemplados como: a Antropologia Médica, que deve

procurar estudar a problemática da saúde a uma etnografia mais ligada a essa questão; a

relação saúde-doença serve de cenário da concepção de mundo e do sistema de representações

que prevalece na cultura estudada; o espaço patológico e terapêutico se apresenta, em efeito,

em todas as sociedades como espaço de fronteiras abertas e porosas. O importante é esclarecer

as ligações organizadoras do sistema, as categorias centrais que servem de pivô na arquitetura

geral.

El espacio patológico y terapéutico se presenta, en efecto, en todas las sociedades como un espacio con fronteras abiertas y porosas: estas deben ser vistas como situándose en un carrefour, en la medida que la patología y la terapia hacen comunicar las concepciones cosmológicas, los modos de organización socio-político y familiar, las maneras locales de pensar y explicar las cosas, así como la concepción que tiene de la persona, del cuerpo y de la vida general (BIBEAU, 1992, p.20).

Na etnografia focalizada, o investigador não pode se satisfazer com uma

etnografia geral, entretanto parece ser muito mais proveitoso separar qualquer setor específico

da cultura e da vida social que pudesse estar mais ligado à gênese, à interpretação e à solução

do problema, como os problemas respiratórios infantis em um assentamento em Fortaleza.

Os fragmentos da etnografia focalizada podem ser identificados sobre a base de

uma revisão crítica de trabalhos anteriores realizados sobre o mesmo tema, ou sobre o

conhecimento geral que dispõe o antropólogo a respeito da sociedade em estudo. As fronteiras

dessa etnografia são arbitrárias, o essencial para o antropólogo é estar aberto e vigilante ao

amplo terreno, muito bem conhecido ao conjunto de trabalhos gerais sobre a cultura do grupo

em estudo (BIBEAU, 1992).

A etnografia focalizada está ligada a uma temática como o fenômeno saúde-doença e terapia que se apresenta como uma dimensão transversal, invade, a qualquer sorte, o conjunto da vida social e cultural de um grupo, sempre da cultura onde trabalha o antropólogo. Neste ponto, é necessário fazer a distinção entre os seguintes aspectos: por um lado, o estudo das instituições terapêuticas centrais, como o xamanismo nas sociedades indígenas e a ritualização da possessão por espíritos nas sociedades africanas. Por outro lado, o estudo de fenômenos que são certamente muito importantes para a ‘gente’, como, a questão da diarréia, das doenças respiratórias e

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dos problemas de saúde mental. Cada um desses aspectos particulares da cultura permite desenrolar todas as dimensões destes problemas e esclarecer os seus significados. A dificuldade que se coloca ao antropólogo consiste em saber identificar as dimensões, partes e aspectos da cultura que deve estudar para compreender o fenômeno patológico parcial que vai ser explorado (BIBEAU, 1992, p. 20-21) (TRADUÇÃO).

O autor supracitado ainda sugere uma vinculação desses dados ao sistema de

signos, significados e ações com os diversos elementos particulares da cultura e da vida social.

Mas deve-se considerar que, pelos discursos das pessoas, há muitas maneiras de se estabelecer

uma rede complexa de ligações entre representações, ações, valores culturais, organizações e

condições cotidianas de vida. Muitas tramas ou diagramas, com efeito, paralelamente criam

descontinuidades e contradições ao âmago dos sistemas de pensamento e de ação. Portanto, é

importante esclarecer, quem são os laços de organização do sistema ou as categorias centrais

que servem de pivô da arquitetura geral. Mas ainda, o autor afirma que esses eixos maiores

fornecem, de alguma maneira, um esboço que se abre sobre múltiplas possibilidades.

Sabe-se que as interações entre as pessoas com problemas de saúde e seus

familiares dão-se pela compreensão da organização social e da cultura local, as quais resultam

da construção do contexto que se exprime pelos seguintes elementos: o modo de vida das

pessoas, comportamentos compartilhados, instituições sociais, valores e crenças locais,

sistema de normas vigente, modos comunitários de agir e da reconstrução da história do

bairro. Isso nos permite lidar com o seu universo e oferecer um significado à sua experiência

pessoal e coletiva do fenômeno estudado. Embora seja reconhecido que tais elementos da

cultura apresentam um número de códigos limitados, de outra forma, os mesmos são

reconhecidos como códigos culturais fundamentais. Sendo assim, o papel do investigador é

fazer pressuposições culturais para colocar os diversos fragmentos da cultura em relação com

o restante. Portanto, a interpretação do fenômeno da saúde-doença é aberta e porosa para

exercer um trabalho semiótico (BIBEAU, 1992).

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O texto é uma máquina porosa que exige do leitor um trabalho cooperativo, enfurecido para encher os espaços não ditos e já ditos deixados em branco [...] o texto não é outra coisa que uma máquina pressuposicional (ECO, 1985, apud BIBEAU, 1992, p. 25) (TRADUÇÃO).

Devido à preocupação de como limitar a etnografia, deve-se ter em mente aspectos

bem específicos e devolver o princípio da coerência total. O antropólogo deve fornecer algum

parâmetro pouco arbitrário para responder a essa questão.

O critério fundamental da etnografia não reside na teoria, mas na prática que ela se

desenvolve, observando as dimensões simbólicas da ação social – arte, religião, ideologia,

ciência, lei, moralidade, senso comum – de uma forma que não elas se distanciem dos dilemas

existenciais da vida em favor de algum domínio empírico que não conduza emoção, contudo

deve-se mergulhar no meio delas. A prática antropológica é a etnográfica, e é somente a partir

dela que se pode avaliar o conhecimento e o saber antropológico. A etnografia é, sobretudo,

uma descrição densa e não se limita a estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever

textos, ordenar genealogias, desenhar mapas, completar um diário. O etnógrafo deve encarar

seu trabalho de campo como uma multiplicidade de estruturas conceituais complexas,

sobrepostas e interligadas, estranhas, irregulares, não explicitas que, depois de captadas, ele

deve explicar (GEERTZ, 1989).

A descrição etnográfica interpretativa é ‘microscópica’, circunscrita, particular,

mas está aberta a questões mais abstratas e interpretações mais amplas. O problema é a

passagem de um contexto ‘doméstico’ para um contexto ‘concreto espacial-temporal’ quanto

às áreas, épocas e questões de dimensões superiores (GEERTZ, 1989).

A respeito das características de uma demonstração etnográfica, Agar (1982)

sugere descobrir a maioria das categorias de eventos ou cenas culturais; ele define os fatos

pela observação de interações, atos, objetos e lugares que podem ser designados por suas

próprias cenas como regras, rotinas, ‘parafernálias’ e ambientes; e explicar a distribuição de

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fatos com respeito a um outro, isto é, ao produzir instruções que antecipem ou planejem as

cenas.

Na investigação etnográfica, o antropólogo mergulha ‘num contexto cultural’, num sistema de signos já interpretados pelos próprios observados, mas ainda reinterpretáveis pelo observador. O objeto de estudo antropológico é uma cultura determinada, mas o estudo desse objeto é uma interpretação de interpretação. Pois o antropólogo não transfere a cultura real viva que ele estuda para um texto escrito, como se transfere um objeto para um museu. O ponto central da análise antropológica localiza-se na “ação social” onde se articula “a lógica informal da vida real” perpassando pelas várias formas culturais e as diferentes significações dos fatos observados [...] O que realmente interessa ao etnógrafo é fixar, ou na fórmula de Ricoeur, “inscrever” o discurso social relatado em fatos ou palavras, o dito, o enunciado. O dizer circunstancial o faz passageiro, momentâneo e mecânico, permitindo fazer apenas uma descrição superficial sem atingir a significação, só o fato consumado se integra na cultura, na tradição, na história e só aí adquire significação objetiva, isso é, para além da intenção de quem o escuta (CASAL, 1996, p.80).

Na perspectiva que o tomamos, o desafio do modelo do sistema de signos,

significados e ações das doenças respiratórias infantis é o de defender uma aproximação de

uma dupla hermenêutica da abordagem êmica, semiológica e praxiológica dos sujeitos

envolvidos no estudo, em uma tentativa de ser interpretativa a partir de dois ângulos

complementares. De um lado, por meio da experiência dos sujeitos, tal como revelada por

suas ações, o que permite uma interpretação e contextualização de primeiro nível, pelo

contraste do sistema de signos, significados e ações das doenças respiratórias infantis a partir

das histórias individuais dos casos particulares. Por outro lado, a etnografia focalizada das

doenças respiratórias infantis torna-se possível a uma interpretação e contextualização de

segundo nível, pois permite relacioná-la às questões sociais e culturais, bem como a uma

comparação do grupo em estudo (BIBEAU, 1992).

Diante desses aspectos teóricos, passamos a examinar os contextos coletivos e seu

impacto na gênese dessas doenças respiratórias infantis, mas enraizada numa antiga

preocupação entre a interação indivíduo-grupo e nas relações entre as condições individuais e

coletivas de vida, permitindo de modo a explorar as correlações sócio-simbólicas com o

contexto cultural local.

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CAPÍTULO 3

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Este capítulo tem como objetivo apresentar os procedimentos metodológicos

aplicados para a construção do sistema de signos, significados e ações das doenças

respiratórias infantis em um assentamento de Fortaleza, denominado ‘Comunidade do Dendê’.

O corpus de dados resultante da pesquisa é constituído por narrativas das experiências

individuais, familiares e comunitárias e praticantes dos dois setores do sistema de cuidado

com a saúde: o profissional e o comunitário.

3.1 Aproximação com o Trabalho de Campo

O primeiro contato com a Comunidade do Dendê coincidiu com o começo de

nossas atividades de ensino na Universidade de Fortaleza (UNIFOR), em 1997, através das

atividades de campo da disciplina de Epidemiologia em alguns cursos de graduação da área da

saúde como Terapia Ocupacional, Odontologia e Enfermagem. Muitos projetos de pesquisa,

ensino e extensão dessa universidade são desenvolvidos nessa comunidade. Apesar de alunos

e professores procurarem amenizar o sofrimento das pessoas que vivem no local, através da

disponibilidade de recursos como o serviço do Núcleo de Atenção Médica Integrada (NAMI),

e/ou os projetos de extensão por meio dos cursos profissionalizantes, essas pessoas enfrentam

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cotidianamente em suas vidas ausência completa de estruturas de vida, bem como precárias

condições de moradias adequadas.

Em muitos levantamentos realizados sobre os problemas de saúde nessa

comunidade, dentre os quais alguns indicam os problemas respiratórios como um dos mais

comuns na vida cotidiana dos moradores, e também, presentes em seus próprios discursos

quando que visam garantir o atendimento no serviço do NAMI e, em outros centros de saúde

e/ou hospitais próximos do local.

Em 1998, foi realizado um dos primeiros levantamentos da Comunidade do Dendê

sobre a sua situação de saúde e de educação. Verificou-se que a região apresentava

aproximadamente 1.935 famílias, com elevada presença de jovens: 60% da população que ali

residiam encontravam-se na faixa etária entre 6 e 15 anos de idade e com baixa escolaridade,

cujo registro apontou que apenas metade desses jovens freqüentava a escola; mais de um

quarto (27%) eram donas de casa e analfabetas e 58% delas não completaram o ensino

fundamental; com uma média de 2,1 crianças menores de cinco anos por família; e em mais de

quarenta porcento (45,0%) das moradias apenas uma pessoa trabalhava. Em grande parte das

casas, a água escorria e empoçava nas ruas, evidenciando-se um aumento da poluição

ambiental e proliferação de vetores de doenças. Com relação aos problemas de saúde, o maior

foi atribuído à hipertensão (50,4 casos/1.000 habitantes), doenças infecciosas e parasitárias

(50,2 casos/1.000 hab.), alcoolismo (31,0 casos/1.000 hab.), problemas cardíacos (20,9

casos/1.000 hab.), problemas renais (11,2 casos/1.000 hab.) e problemas mentais (9,8

casos/1.000 hab.) (PORDEUS et al., 1999).

Várias vezes indagamo-nos sobre os resultados obtidos nessas atividades

acadêmicas, haja vista muitos dos estudos terem revelado uma dissociação entre o modo de

vida das pessoas e o processo saúde-doença nessa realidade. Nos ‘olhares’ daquelas pessoas,

tornava-se visível a degradação econômica e social e a segregação de espaços, estigmatizadas

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nas manchetes dos jornais como um local ‘violento’, associado à expansão do consumo e

tráfico de drogas. Portanto, ao retornarmos à comunidade, tivemos, de alguma maneira, uma

nova experiência, por não nos encontrarmos no papel de uma docente que atravessou os muros

da universidade com seus alunos para observar os lares dos moradores, para logo em seguida,

voltar ao espaço acadêmico. O retorno seria diferente, estava realizando um trabalho

‘solitário’ que é a pesquisa etnográfica. Este estudo buscava compreender e explorar, pelos

relatos dos moradores, os modos de viver e as diversas maneiras como eles experimentam os

problemas respiratórios, como parte dos problemas sociais mais amplos.

Em fevereiro de 2002, fomos ao encontro de uma amiga e ex-aluna de um curso

de especialização que morava vizinho à ‘favela’, nos ‘apartamentos’, denominação usada por

ela, que nos recomendou, primeiramente, muita cautela e cuidado, quando fosse andar sozinha

na ‘favela’.

Essa amiga, além de nos apresentar os vários moradores antigos, no início,

acompanhou-nos no trabalho de campo. Naquele momento, sentimos ter iniciado nosso

aprendizado sobre o modo de vida das pessoas pobres da Comunidade do Dendê. As primeiras

informações foram estimulantes. Todos externavam a vontade de falar sobre a comunidade e o

tema, ou seja, sobre os problemas de saúde, relacionados com as doenças respiratórias. Ali

estávamos nós, bem no meio dos conflitos sociais que, segundo a mídia, amedrontavam as

pessoas, mas que elas demonstravam clara intenção de falar sobre o tema.

O primeiro momento da coleta de dados foi de aproximação com o campo, por

meio do Núcleo de Assistência de Medicina Integrada – NAMI -, unidade de saúde ligada à

UNIFOR. Na época da nossa primeira aproximação com o campo, fazíamos parte de uma

equipe que realizava um censo da comunidade para levantar dados sobre problemas de saúde

na população local e seu território. Em alguns momentos, acompanhamos as visitas aos

domicílios com o objetivo específico de identificar os informantes-chave. Na ocasião, ao

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mesmo tempo, percebemos o distanciamento que os instrumentos fechados de coleta de dados

estabelecem com referência à compreensão da realidade.

Muitos comentários a respeito de como me comportar no local foram narrados

pelos próprios moradores da comunidade, como: “não venha de carro”, “ande sem relógio ou

jóias”, “desta maneira as pessoas irão reconhecer que você é uma pessoa simples”.

Conseqüentemente, para andar de porta em porta, a estratégia do “não chamar a atenção”, ou

seja, não ser uma “pessoa estranha” foi útil para nos aproximarmos da vida desses moradores.

Ao chegarmos ao local do estudo, percebemos um cotidiano socialmente perverso;

a experiência, por parte dos moradores adultos e crianças, frente às doenças respiratórias, em

grande parte, relaciona-se às condições ambientais e sócio-econômicas.

A sensação de medo que tivemos do local ocorreu como conseqüência das leituras

dos jornais e em assistir aos telejornais locais que apresentavam a comunidade como

esconderijo de bandidos, traficantes e criminosos. Em que a banalização da imagem da

violência é fortalecida, muitas vezes, por um processo muito antigo de estigmatização dos

pobres.

Além desse sentimento de exclusão por parte dos moradores, havia um sentimento

de abandono social, pois os moradores não têm qualquer perspectiva de melhoria da vida. No

tocante à inserção dos seus moradores nos movimentos reivindicatórios, pode-se observar a

distância de várias dissidências em termos de pequenas lideranças. Não há grupos bem

definidos de defesa da comunidade, mas pequenos grupos que lutam por seus interesses

particulares e individuais, como os grupos dos idosos e algumas lideranças comunitárias bem

pontuais.

O nosso envolvimento no local se deu com a ajuda dos próprios moradores que, ao

saberem da nossa presença e da nossa intenção, revelavam casos infantis e de adultos com

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doença respiratória. Às vezes ocorria um impasse ético provocado por perguntas tais como: “o

que a senhora pode fazer para resolver esse problema?” ou “será que a senhora vai melhorar

o serviço?” Tais indagações ocorriam freqüentemente; por mais que enfatizássemos nossa

posição de pesquisadora, que buscava conhecer a realidade das suas vidas, não podendo fazer

previsões ou promessas com referência às intervenções no local.

Tendo em vista a necessidade de compreender o contexto social e cultural, pelos

elementos de seu cotidiano, tornou-se necessário obter os dados etnográficos entre os

moradores, constituídos por suas narrativas sobre a vida cotidiana e a reconstituição do

histórico da comunidade, para compreender como ele vem a se formar e assumir a atual

configuração que apresenta.

3.2 Contexto do Estudo

A Comunidade do Dendê está situada no bairro Edson Queiroz, zona sudeste de

Fortaleza; ela é destaque por ser uma área de expressivo crescimento imobiliário desde a

década de 1970. No início de sua expansão e valorização, em 1976, com a construção de

alguns conjuntos habitacionais, vizinho ao bairro como Cidade 2000, que resultaram na

migração de pessoas vindas desse local, além da instalação de grandes empreendimentos,

como universidades privadas, o centro de convenções, o Fórum Clóvis Beviláqua e o shopping

center de grande movimentação na cidade, um dos maiores do Estado (XIMENES, 2004).

O referido bairro é caracterizado por apresentar uma das menores taxa de

densidade da cidade de Fortaleza. Sua área física é de 1.601 ha., conta com 5.847 domicílios e

densidade populacional de 3,6 hab./ha. No bairro, moram 20.291 habitantes, sendo 9.590

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homens e 10.701 mulheres. Além de apresentar uma alta valorização imobiliária por atender

principalmente às demandas das classes média e alta da cidade (FUNDAÇÃO INSTITUTO

BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2000).

Segundo o censo do IBGE, a Comunidade do Dendê é composta por 2.214

domicílios particulares entre domicílios permanentes e improvisados. A densidade

demográfica estimada é de 51,48 hab./ha. A população é de 9.730 pessoas, sendo 5.085

mulheres e 4.645 homens, esse contingente representa 44% da população do bairro que mora

em uma área pobre. O índice está bem acima da média geral das pessoas que moram em

bairros periféricos ou em favelas de Fortaleza, e que corresponde a 23,02% (FUNDAÇÃO

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2000).

Por um lado, a cidade de Fortaleza, com especificidades locais e regionais, aponta

alguns elementos característicos como as organizações populares com vistas à obtenção de

melhoria urbana, as quais não são recentes e obedecem a uma lógica descontínua.

Para Barreira (1992), os movimentos urbanos expressam uma metrópole em fase

de expansão, consubstanciando transformações na esfera do poder político, a partir da

visibilidade da moradia e pobreza urbanas como questões sociais. Os moradores da periferia

urbana são, assim, categorias símbolos do fenômeno das diferenciações que põem em questão

a modernidade da cidade e apresentam o reverso das ‘vitrines’ de residências. Por outro lado,

os bairros populares em Fortaleza são evidências das desigualdades, da dignidade aviltada no

contraste entre a pobreza e a riqueza, que há uma modernidade em expansão, na qual a

pobreza começa a fazer parte da paisagem natural. Acrescentam-se a isso os bairros de classe

média que concentram bolsões de pobreza, como a Comunidade do Dendê, exemplo desse

tipo de ocupação urbana, no qual os contrastes são claramente percebidos, pois ela se encontra

em um dos bairros de maior valor imobiliário da cidade de Fortaleza.

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Na ‘periferia’ de Fortaleza, constatam-se três modalidades de ocupações de acordo com o

Centro de Treinamento em Desenvolvimento Econômico Regional – CETREDE (1981):

A primeira, construída pelo próprio Estado (os conjuntos habitacionais);

A segunda, realizada pela especulação imobiliária pelo parcelamento do solo em áreas sem

infra-estrutura e;

A terceira relaciona-se à implantação de moradias deficientes com a ocupação por invasão,

cujo resultado é o ‘favelamento’. Assim, a Comunidade do Dendê situa-se na última

modalidade.

O processo de expansão da cidade de Fortaleza, historicamente, deu-se em fins do

século XVIII, quando a vila de Fortaleza se desligou da capitania de Pernambuco e surgiram

duas possibilidades de expansão do comércio: uma de comércio direto com Lisboa e a outra

de expansão do mercado externo que surgiu com a guerra da Independência dos Estados

Unidos. Naquele período, investiu-se muito mais na produção de algodão em áreas próximas a

Fortaleza, outrossim, o porto ganhou uma nova dimensão e passou a exportar para a

Inglaterra, além do algodão, peles, açúcar e farinha. Com isso, Fortaleza, gradativamente, se

firmou em relação às demais cidades do Estado (CENTRO DE TREINAMENTO EM

DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO REGIONAL, 1981).

O primeiro projeto urbano da cidade Fortaleza, data de 1812 a 1823, elaborado

pelo engenheiro José Silva Paulet, que mostra a planta de uma cidade com ligeira expansão ao

longo da margem esquerda do riacho Pajeú e uma aglomeração de edificações entre a praia e o

centro da cidade, onde se localiza hoje a Avenida Pessoa Anta.

Nesse projeto existem algumas estradas e atalhos estreitos de acesso às áreas de

interesse econômico, os quais formam um sistema radial ao núcleo central da cidade e

algumas ainda coincidem com as atuais Avenidas Francisco Sá e Bezerra de Menezes, e Rua

Marechal de Deodoro. A vila se ampliou sem maiores preocupações urbanísticas. O projeto

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seguiu diretrizes de um traçado urbano da vila, sendo influenciado por projetos europeus, que

propuseram um traçado em xadrez, cuja origem se dá nas proximidades do correio central até

a calçada do mercado, a Rua Senador Alencar. Mas, a implantação e a implementação do

referido projeto foram adiadas em virtude de perturbações políticas e da emancipação da vila

Fortaleza para cidade. Somente duas décadas depois, o projeto foi retomado e atualizado para

a nova realidade (CENTRO DE TREINAMENTO EM DESENVOLVIMENTO

ECONÔMICO REGIONAL, 1981).

Entre as décadas de 1930 e 1940, começou-se a observar o ‘inchaço’ da cidade,

mas especificamente quando da seca de 1932. Em 1920, a população registrava 78.536

habitantes, todavia a mesma passou a 180.185 habitantes em uma década, o que representou o

acréscimo de 424% em termos de população.

Somente na década de 1960, houve a necessidade de se realizar um plano diretor

urbano. Precisamente, em 1963, foi incluída a melhoria da circulação urbana (sistema viário e

transportes), da infra-estrutura, dos aspectos de caráter social, cultural, assistencial, de saúde,

religioso e recreativo, com o intuito de disciplinar espacialmente o crescimento populacional e

as atividades por ela exercida, bem como a expansão futura da cidade. Surgiu, em 1971, o

Plano Diretor Integrado da Região Metropolitana de Fortaleza (PLANDIRF) a fim de usar

racionalmente a ocupação do solo. Deve-se destacar que havia uma preocupação histórica em

elaborar um plano, mas não em executá-lo, não havia planejamento nem continuidade de

propósitos (CENTRO DE TREINAMENTO EM DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

REGIONAL, 1981).

No período de 1976 a 1985, observou-se uma enorme expansão e uma profunda

transformação na paisagem urbana da cidade. Os recursos naturais como as dunas e os

recursos hídricos disponíveis já não representavam impedimentos à ocupação e muitos deles

desapareceram. As invasões aos assentamentos impróprios, como as favelas, em que no ano

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de 1972 foram registradas 83 novas favelas (19.960 pessoas) e em 1985 chegaram a contar

232 favelas (385.045 pessoas).

A Comunidade do Dendê foi uma dessas 232 áreas de assentamento espontâneo à

época. As características naturais da área, bem como a implantação de estabelecimentos como

vetor de crescimento, universidades privadas e o shopping center favoreceram

consideravelmente a expansão dessa comunidade (FORTALEZA, 2001).

Em 1995, estimou-se um déficit habitacional de 85 mil unidades habitacionais,

cuja posição é de a quinta cidade mais populosa do País e a terceira em déficit habitacional

relativo (19,10%) (FORTALEZA, 2001).

De acordo com o censo do IBGE, a cidade de Fortaleza tem área territorial de 312

quilômetros quadrados e uma população residente de 2.141.402 habitantes (FUNDAÇÃO

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2000).

Os fatores que contribuíram para a expansão urbana em Fortaleza foram: as

distorções das políticas sociais que não estavam contempladas nas políticas econômicas; a

ausência de ações para resolver os problemas sociais, os quais nunca foram tratados

devidamente como prioritários e; a inexistência também de um planejamento social que

viabilizasse suas metas. Outro fator foi o fluxo migratório, ocorrido na década de 1980,

Fortaleza foi citada como a cidade que apresentava maior dinâmica populacional entre as

cidades do Nordeste ao concentrar 1/3 dos habitantes do estado do Ceará. A Região

Metropolitana de Fortaleza, em 2000, representou 59% da população de todo o estado

(CENTRO DE TREINAMENTO EM DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO REGIONAL,

1981; BAR-El et al., 2003).

Ao contrário de outros centros mais desenvolvidos do Brasil, em Fortaleza, o

processo de industrialização não precedeu a urbanização. Alguns estudiosos como Bar-El et

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al. (2003) afirmam que o crescimento eficaz geralmente é acompanhado por um processo de

industrialização e de urbanização, que poderia resultar em uma descentralização dos grandes

centros urbanos para áreas periféricas (cidades secundárias). Pelo contrário, em Fortaleza,

verificou-se um incremento demográfico, um ‘inchaço’, resultado da expansão das atividades

econômicas terciárias, uma vez que a população deslocada não encontrou ali empregos

industriais e nem a oferta de trabalho e, até os dias atuais permanece abaixo do esperado. Um

exemplo dessa situação, ocorrido no ano de 1997, apontou que o setor de serviço atingiu

51,6% de participação na economia de Fortaleza, enquanto a indústria participou com apenas

20,2% da mão-de-obra disponível no mercado (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS

PARA O DESENVOLVIMENTO, 2000b).

Outro fator relacionado com a expansão urbana de Fortaleza foi a carência de

investimento econômico. O modelo de industrialização, desenvolvido para o País, intensificou

a desigualdade social entre as capitais devido ao aumento da concentração de renda entre as

camadas superiores das populações urbanas. Houve, também, segregação em relação às de

baixa renda, sendo necessário o desenvolvimento de políticas que incentivassem

investimentos em habitação, equipamentos comunitários (educação, saúde e lazer) e infra-

estrutura (saneamento básico), de maneira a atingir as camadas mais baixas da população das

cidades. Segundo o Atlas do Índice de Desenvolvimento Humano de 2000, Fortaleza é

exemplo do aumento da desigualdade social, o percentual de renda apropriada pelos 20% mais

pobres e os 20% mais ricos, no ano de 1991 foi de 2,3% e 69,3%, enquanto, em 2000, esse

índice atingiu 1,9% e 70,2%, respectivamente (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS

PARA O DESENVOLVIMENTO, 2000a).

Os estudos sobre moradias da população de baixa renda em Fortaleza enfatizam a

autoconstrução que se propagou em grandes espaços desequipados, o crescimento de favelas e

a precariedade do inquilinato popular estão vinculados às formas de acumulação e reprodução

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do capital. Tais espaços constituem territórios (espaços de identidade), expressão de

desigualdade socioespacial, também estigmatizados como, em particular, a Comunidade do

Dendê que demonstra esse comportamento. As opiniões dos moradores surpreendem por não

se reconhecerem como uma área de favelamento “antigamente isso aqui, era a favela do

Dendê, hoje o pessoal não aceita mais chamar favela...” (Maria, ex-líder comunitária, 47

anos) (grifo nosso).

O processo de urbanização da autoconstrução de moradias é caracterizado como

um urbanismo de risco, ou seja, é aquele marcado pela inseguridade, quer do terreno quer da

construção ou ainda da condição jurídica da posse daquele território. As terras onde se

desenvolvem os mercados de moradia para os pobres são justamente aquelas que, pelas

características ambientais, são mais frágeis, perigosas e difíceis de ocupar com urbanização.

As chamadas Áreas Urbanas de Risco na cidade de Fortaleza são: encostas íngremes, beiras de

córregos, áreas alagadiças, vias férreas, dunas, prédios abandonados. As construções nessas

áreas raramente são estáveis e a posse sempre precária e irregular. O risco é, antes de tudo, do

morador. O barraco pode deslizar ou inundar com chuvas, a drenagem e o esgoto podem se

misturar nas baixadas – onde a saúde e a vida estão assim ameaçadas (HOERNING, 2005).

Em apenas cinco anos, de 1999 a 2004, a Região Metropolitana de Fortaleza

aumentou de 4.500 para 17.000 quanto ao número de famílias que vivem em áreas de risco,

estima-se que existam mais de cem áreas de risco, nas quais residem mais de 69 mil pessoas

nessas áreas (HOERNING, 2005).

A área de risco da Comunidade do Dendê é conhecida como ‘Baixada do Aratu’ e

‘Baixada do Dendê’ ou simplesmente ‘Baixada’, compreende-se como uma micro-área,

considerada área de manguezal, localizada às margens do Rio Cocó, classificada como Área

de Preservação Permanente – APP e faz parte dos 375 hectares de manguezal da bacia desse

rio, principal bacia hidrográfica da cidade de Fortaleza.

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A expansão na área não ocorreu de forma contínua, acelerou-se no ano de 1994

quando o Governo do Estado do Ceará remanejou famílias para pequenas casas, construídas

em terreno do próprio bairro ou em outras áreas da cidade. Como as novas casas não foram

suficientes, manteve-se o excedente de vinte famílias abaixo do ‘paredão’ que, segundo

compromisso fixado em placa no local, seriam remanejadas posteriormente. Sendo assim, não

somente as vinte famílias remanescentes como muitas outras começaram a vislumbrar a

possibilidade de assegurarem, em futuro próximo, uma casa, mesmo na Baixada ou em outro

local, por meio de mutirões ou outra forma de aquisição promovida pelo Governo. Trata-se de

uma área abaixo do nível da rua, às margens do rio Coco, onde vivem 250 famílias (DINIZ,

2001).

Os moradores da Baixada ocupam o local há mais de dez anos, oriundos de outros

bairros de Fortaleza (50%), do interior do Ceará (20%) e de outros estados (10%). Cerca de

70% das moradias são de alvenaria e 30% de taipa (XIMENES, 2004).

Diniz (2001) realizou um estudo sobre as inter-relações entre saúde e meio

ambiente na Baixada do Aratu na Comunidade do Dendê. Observou-se que a degradação do

meio ambiente associada à pobreza dos moradores os torna vulneráveis como cidadãos, pois

não dispõem de meios objetivos para desenvolver papéis significativos na vida social. O nome

‘Baixada do Aratu’ é proveniente da característica topográfica da área, constituindo-se em um

baixio ou barranco, onde vivem duas espécies de crustáceos conhecidos popularmente como

Aratu.

Segundo dados oficiais, em 1996, 35% da população de Fortaleza recebiam menos

de um salário mínimo, enquanto 70% recebiam até três salários mínimos, os quais se

enquadravam como baixa renda, tal situação é caracterizada como bastante grave

(FUNDAÇÃO INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2000). O

bairro Edson Queiroz não se distancia desse cenário de Fortaleza, a renda mensal per capita

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do bairro equivale a três salários mínimos. Nesses dados estão refletidas as condições

financeiras dos moradores da comunidade que depositam a esperança de mudar suas vidas por

iniciativas individuais, tais como se pode perceber no fragmento de discurso apresentado

abaixo,

“Eu vou empregar alguma coisa pra vender em casa mesmo, eu lhe juro pela fé de Deus, (...) há 2 anos atrás apareceu um curso para gente fazer de farmácia viva, aí eu disse, eu vou nessa porque eu já tô vendendo é raiz, essas coisas de remédio (Aninha, comerciante, 33 anos).

As políticas de Saúde Pública da cidade de Fortaleza, nos últimos anos, vêm se

adequando à estratégia do Programa Saúde da Família, proposto pelo governo federal, no

sentido de reorientar os serviços de saúde locais no nível primário de atenção. A estratégia

está centrada na família, compreendida a partir do seu cotidiano. Isso possibilita às equipes de

saúde uma percepção maior do processo saúde/doença e com intervenções que vão além de

práticas curativas.

A estratégia do Programa Saúde da Família foi criado pelo Ministro da Saúde,

Henrique Santilio, em dezembro de 1993, juntamente com um grupo de trabalho formado por

diversos atores: secretários estaduais, municipais, representantes de universidades, serviços de

saúde comunitária do Hospital da Conceição, coordenação do Programa Médico de Família,

UNICEF e OPAS, com o objetivo de discutir a proposta de implantação de um novo modelo

assistencial no Brasil. A estratégia Saúde da Família foi lançada oficialmente pelo Ministério

da Saúde em março de 1994, com o propósito de organizar a prática assistencial em novas

bases e critérios, em substituição ao modelo tradicional de assistência, orientada para a cura de

doenças e para o hospital (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2000).

Em Fortaleza, esse modelo foi implantado em fevereiro de 1998, foram formadas

trinta e duas equipes de saúde da família. Em 2001, o contingente foi ampliado para cento e

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sete equipes distribuídas nas seis Secretarias Executivas Regionais (SER) da cidade de

Fortaleza e atualmente está em fase de expansão.

Desde 1997, a cidade de Fortaleza foi dividida em seis Secretarias Executivas

Regionais (SER), de acordo com a reforma administrativa ocorrida nesse mesmo ano, cujos

pontos centrais foram: a descentralização e a intersetorialidade da cidade. A divisão teve como

objetivo proporcionar a melhoria das condições de vida da população da região sob sua

gestão, no que diz respeito ao desenvolvimento territorial e meio ambiente, como também ao

desenvolvimento social da cidade. Cada secretaria é administrada por um secretário que

desenvolve o papel de prefeito, cujas atribuições e poderes permitem tomar decisões para

melhorar as condições de vida da população residente nos diversos bairros pertencentes à

regional por ele administrado, além de prestar serviços, identificar problemas e articular o

atendimento à população, tendo em vista as peculiaridades sociais e urbanas de cada local

(FORTALEZA, 2001).

A Comunidade do Dendê pertence à SER VI do município de Fortaleza. Na SER,

a população deve dispor de um conjunto de serviços como educação, saúde, ocupação, renda,

habitação, cultura, limpeza e esporte. Atualmente, essa secretaria é responsável por vinte e

sete bairros e sua abrangência limita-se ao norte com a Regional II, cujo limite é o Rio Cocó e

o bairro Luciano Cavalcante, ao Sul com o município do Euzébio, Leste com o Oceano

Atlântico e Oeste com as Regionais IV e V, cujos limites são os bairros do Aeroporto,

Serrinha, Itaperi, Dendê, Mondubim e Prefeito José Walter. Ademais, a cobertura do PSF

estende-se em 19.000 famílias que compõem as dezenove equipes de saúde da família

presentes nessa regional, não há equipe de saúde da família vinculada ao bairro Edson Queiroz

(ANEXOS 1 e 2).

Na perspectiva do processo de reordenamento da atenção básica de saúde, o

município vem avançando, como o funcionamento do Programa Saúde da família. No qual se

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propõe priorizar a assistência à família, enquanto grupo de risco, na agenda da política social,

constituindo-se como um dos fatores condicionantes do Programa Saúde da Família.

Podemos dizer que a Comunidade do Dendê conta com os seguintes serviços de

educação: duas escolas mantidas pelo governo do Estado (Ensinos Fundamental e Médio);

duas creches, sendo uma mantida pela prefeitura de Fortaleza e uma outra creche vinculada a

uma instituição filantrópica.

As principais organizações sociais existentes são as associações de moradores, os

grupos de jovens e de idosos e o conselho comunitário. As organizações são responsáveis pela

oferta de cursos profissionalizantes aos membros da comunidade.

3.3 Fases do Procedimento da Pesquisa

O trabalho de campo iniciou-se, em 2002, com a observação do espaço geográfico

e identificação dos informantes-chave e continuou o tempo de coleta até final de 2005. Os

instrumentos de coleta e registro de dados utilizados nesta pesquisa foram aplicados e

combinados em momentos distintos. Além disso, o trabalho de campo permitiu uma interação

muito próxima com vários informantes em diversas situações e diferentes contextos.

Cotidianamente, visitamos as casas das pessoas que compuseram o grupo de estudo. Em

muitas ocasiões, participamos de eventos sociais e rotinas de trabalho, eventos domésticos

particulares, situações de conflitos familiares, manifestações festivas e comemorações,

conversas pelas ruas da comunidade e visitas na feira semanal do bairro. As observações

foram registradas em caderno de campo e diário de campo, nos quais constaram todas as

informações relevantes que possibilitaram compreender o contexto sociocultural local.

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Neste estudo, procuramos realizar uma conexão entre os aspectos sociais,

econômicos, históricos e culturais relativos à ocorrência de doenças respiratórias em crianças

de maneira a dar maior profundidade e densidade à compreensão dessas doenças no contexto

em estudo. Para tanto, foi realizada uma etnografia focalizada sobre as doenças respiratórias,

no intuito de compreender as relações da experiência dos moradores dessa comunidade com o

processo saúde-doença. Para compreender a etnografia focalizada das doenças respiratórias

infantis em uma comunidade pobre de Fortaleza, remetemo-nos a diferentes tipos de técnicas

de coleta de dados: entrevista semi-estruturada, observação participante e registros, os quais

são complementares e foram utilizados na triangulação das informações.

Foram incluídos, no estudo, vinte e dois informantes-chave, levando-se em

consideração diferenças de seus contextos e cenários, a descrição dos aspectos mais comuns e

as diferentes abordagens sobre os comportamentos e práticas das doenças respiratórias

infantis. Além disso, observamos a empatia com o entrevistador e a disponibilidade para a

entrevista e observação.

As entrevistas com os informantes-chave foram conduzidas em locais da

preferência dos informantes, na maioria das vezes em suas próprias residências. As questões

foram abordadas como parte de um fluxo de conversação natural a fim de possibilitar a

expressão de objetivos explícitos deste estudo, como a compreensão da doença e das práticas

em saúde. Com vistas a proteger a identidade dos informantes-chave, utilizamos nomes

fictícios para cada um deles ao longo do texto.

Esta pesquisa utilizou como proposta metodológica o modelo de signos,

significados e ações, desenvolvidos por Corin (1992a, 1992b, 1995) e Bibeau (1992), o qual

permite uma sistematização dos elementos do contexto que participam da construção de

maneira típica em relação ao pensar e agir desses informantes diante das doenças respiratórias,

assim, esse modelo é baseado na reconstrução dos casos concretos.

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O estudo foi dividido em três fases, apresentadas a seguir. Em todas as fases foram

utilizadas entrevistas semi-estruturadas, a observação participante e registros de documentos:

Fase 1: Reconstrução do histórico da comunidade e identificação dos problemas de saúde;

Fase 2: Identificação e descrição dos comportamentos e ações dos sujeitos frente às doenças

respiratórias; e

Fase 3: Reconstrução dos casos de pessoas com doenças respiratórias infantis.

Na Fase 1, foram produzidos dados sobre as trajetórias pessoais com uso de

entrevistas semi-estruturadas com informantes-chave com vistas a reconstruir a história da

comunidade, bem como identificar e registrar, sistematicamente, as categorias classificatórias

e as concepções dos moradores acerca dos problemas respiratórios. Procurou-se também

identificar os problemas de saúde considerados mais relevantes para a população, por

intermédio de relatos espontâneos sobre os casos de pessoas que vivem ou viveram o

fenômeno em questão. Nessa fase do estudo, o conteúdo dos registros gerais sobre os

comportamentos relacionados aos problemas respiratórios orientou a busca dos dados para as

fases posteriores. Todas as entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas.

Outra técnica de coleta utilizada foi a observação participante, visando à

identificação das diferenças entre gerações, origem, mudança percebidas, identificação de

problemas no bairro e na comunidade, bem como ao processo migratório (ANEXO 3). A

observação sistemática da vida cotidiana da comunidade veio a ser muito importante na

identificação, descrição e compreensão das características locais no que se refere às:

1) Principais serviços disponíveis (serviços de saúde, escolas, creches, mercados,

farmácias, mercearias, praças, igrejas, feiras, creches, etc.);

2) Disponibilidade e circulação de informações (onde a população consegue obter

informações dentro e fora da comunidade);

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3) Formação e manutenção de grupos formais e informais (grupo de jovens, clubes

de assistência comunitária, creches, encontros de pessoas em bares, praças e feiras, grupo de

idosos e grupos de capoeira para crianças e adolescentes);

4) Identificação das lideranças locais (pessoas que exercem atividades de liderança

comunitária formal e informal) e como elas atuam na promoção de ações comunitárias na

comunidade; e

5) Identificação de crianças com problemas respiratórios e sua participação na

vida social da comunidade.

Além dessas duas técnicas, foram coletados documentais bibliográficos, tais

como: dados censitários sobre a situação histórica, social e econômica em relação às doenças

respiratórias infantis no Brasil, no Ceará e em Fortaleza; dados censitários e mídia sobre as

condições de vida na cidade de Fortaleza e na área.

Na Fase 2, o estudo realizou um registro sistemático das categorias classificatórias

e das concepções dos moradores acerca dos problemas respiratórios infantis por meio de

entrevista semi-estruturada. Esse instrumento procurou caracterizar a vida na comunidade e

sua associação com a percepção, interpretação e reações pertinentes à saúde e aos problemas

respiratórios entre os moradores e agentes terapêuticos. As observações sistemáticas

identificaram e descreveram os comportamentos relevantes frente aos problemas respiratórios

a fim de compreenderem as maneiras populares de denominar e classificá-los, a partir das

informações fornecidas pela entrevista com os informantes, através do conteúdo dos registros

gerais. É importante frisar que também foram sistematizadas as descrições dos

comportamentos por informantes-chave (ANEXO 4).

Na Fase 3, o estudo realizou uma reconstrução de casos através de entrevistas

semi-estruturadas com o objetivo de registrar diversas narrativas dos informantes para

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recontar a história e trajetória de pessoas com problemas respiratórios, bem como ressaltar a

percepção dos comportamentos, a reação da família/comunidade, a gravidade atribuída aos

problemas respiratórios e tratamentos aplicados. Neste instrumento, foram abordados os

seguintes aspectos: identificação e descrição dos comportamentos, com relação aos problemas

respiratórios e aos problemas de saúde, em geral; explicação das causas, sintomas e

conseqüências das doenças respiratórias; explicação das ações realizadas na busca de solução

para o problema; reações ao problema, mais precisamente às primeiras manifestações do

problema; agravamento e melhora das pessoas doentes; manifestações sucessivas do

problema; explicações do problema, a partir da reconstrução dos casos ativos e retrospectivos

e a busca por serviços terapêuticos (ANEXO 5).

3.4 Seleção dos Informantes-chave

Pelto e Gretel (1996) reconhecem que um dos principais estágios iniciais do

trabalho antropológico é o uso dos informantes-chave como fontes de informação sobre sua

cultura. Os autores afirmam ainda que os informantes são úteis quando a observação direta

não é possível, sendo a fonte de informação principal os indivíduos que participam de uma

determinada cultura.

Os antropólogos geralmente acham que somente um pequeno número de

indivíduos em uma comunidade são bons informantes-chave, porém essa técnica deve ser

parte integrante da observação participante. As notas de campo das pessoas mais envolvidas

na ação, os informantes-chave, são as que, em geral, mais fornecem informações e, por fim,

devem-se verificar e avaliar os dados fornecidos pelos informantes-chave e utilizar outras

técnicas complementares. Uma das características mais importantes dos informantes é a

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posição que ocupam em uma sociedade. Muitos antropólogos acreditam na especial relação

com líderes políticos, entre outras pessoas importantes, porém não se deve descuidar da

pessoa comum, que ocupa posição especializada ou que tem experiências relevantes para o

propósito do estudo.

Assim sendo, o processo de seleção dos sujeitos do estudo foi orientado por

critérios como: pertencerem a diferentes heterogeneidades sociais (atividade ocupacional,

renda familiar, nível de escolaridade, religião, posição social). Foram, portanto, representados

por pessoas que enfrentaram, em algum momento de suas vidas, as doenças respiratórias;

mães com filhos, independente da idade dela ou do filho; mães que tiveram perdas (morte de

filhos pequenos); mães cujos filhos, em algum momento, apresentaram quadro de problema

respiratório (agudo ou crônico); mães que têm dois ou mais filhos com alguma doença;

agentes terapêuticos somente do setor comunitário do sistema de cuidados em saúde: parteiras,

rezadeiras urbanas, farmacista de farmácia comercial, raizeiros urbanos, pessoas que cuidam

de crianças, em diferentes contextos, como creches e escolas; pessoas que cuidam das

crianças, tais como familiares residentes na mesma moradia ou vizinhos que tenham ou não

relação de parentesco: pais, irmãos, dentre outros parentes, amigos ou profissionais que

cuidam de crianças na comunidade.

Os informantes-chave foram escolhidos devido à relevância do objeto a ser

investigado, isto é, pessoas que vivenciaram as doenças respiratórias infantis ao longo de suas

vidas e por distribuição etária. Foram formados três grupos de informantes de acordo com as

três fases da pesquisa. Assim, os grupos foram organizados no estudo a partir das

características que incluem o nome, idade, ocupação, tempo de moradia no bairro e posição

social. O quadro abaixo apresenta os informantes com as características que se constituem

para o estudo, este quadro descreve as características gerais dos informantes, com

predominância do sexo feminino, idades entre 19 e 77 anos. A maioria tinha baixa

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escolaridade (ensino fundamental incompleto), com fonte de renda baixa e variável entre R$

50,00 e 240,00. Todos referiram, em algum momento de suas vidas, ter vivenciado algum

problema respiratório (QUADRO 4).

QUADRO 4: Características Gerais e Participação dos Informantes-chave no Estudo

Grupos Nome* Idade Ocupação Tempo de moradia Condição social

2 e 3 Aline 23 anos Dona de casa 14 anos Mãe de Kalina

1 e 2 Aninha 33 anos Raizeira 27 anos Agente terapêutico

1 Diana 64 anos Diarista 41 anos Moradora antiga

1 e 2 Fabiana 46 anos Dona de casa 18 anos Avó de Viviane

1 e 2 Floriano 30 anos Desempregado 22 anos Pai de Vicente

2 e 3 Florinda 34 anos Dona de casa 9 anos Mãe de Alex

1 e 2 Francisco 30 anos Professor de

capoeira

22 anos Líder da Associação

de Moradores

2 e 3 Glória 28 anos Doméstica 1 ano Mãe de Maria e João

1 e 2 Joana 74 anos Parteira 24 anos Moradora antiga

*Todos os nomes foram modificados.

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Grupos Nome* Idade Ocupação Tempo de moradia Condição social

2 e 3 Josefa 27 anos Doméstica 5 anos Mãe do Gabriel

1 Juca 64 anos Radialista 30 anos Ex-líder comunitário

1 e 2 Manoel 23 anos Farmacista Não mora no bairro Agente terapêutico

1 e 2 Manoela 19 anos Dona de casa 5 meses Mãe do Vicente

1 e 2 Maria 47 anos Líder comunitária 28 anos Fundadora da

associação de

moradores

2 e 3 Polina 32 anos Doméstica 22 anos Mãe de Cláudio

1 e 2 Raimunda 77 anos Rezadeira 10 anos Agente terapêutico

1 Sandra 32 anos Manicure Desde que nasceu Filha de Diana

1 Soraia 44 anos Dona de casa Desde que nasceu Moradora antiga

1 e 2 Sueli 48 anos Diretora da creche 21 anos Moradora antiga

1 e 2 Vânia 24 anos Dona de casa Oito anos só na

baixada

Mãe de Gustavo

1 e 2 Vicência 53 anos Rezadeira 23 anos Agente terapêutico

2 e 3 Zequinha 38 anos Detetive 20 anos Experiência com a

doença desde criança

*Todos os nomes foram modificados.

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Os dados coletados foram analisados através da proposta da teoria dos signos,

significados e ações associados às doenças respiratórias infantis, ou seja, os comportamentos

de uma pessoa com problema respiratório, interpretações desde a etiologia, gravidade, reações

dos membros da família e da comunidade até as práticas de tratamento e de prevenção frente

às doenças respiratórias infantis.

As categorias analíticas foram agrupadas e selecionadas nos textos que poderiam

corresponder a uma categoria ou mais categorias de informação para a análise de conteúdo.

Utilizou-se como recurso um programa de análise qualitativa (QSR Nudist) que se apresenta

como valioso instrumento para a análise de dados não estruturados.

Os resultados gerados serão apresentados nos próximos três capítulos desta tese;

um capítulo abordará a análise do espaço social da criança na Comunidade do Dendê; outro

capítulo construirá a análise do sistema de signos, significados e ações dos moradores frente

às doenças respiratórias infantis; e um outro em que foram particularizados seis casos

concretos e ativos de problemas respiratórios infantis, houve, portanto, uma necessidade de

relacioná-los.

3.5 Aspectos Éticos:

Todos os informantes-chave foram antecipadamente informados do estudo,

respeitando-se os preceitos da ética segundo a resolução 196/96 do Ministério da Saúde,

bem como o direito de desistir em qualquer tempo do estudo sem sofrer nenhum prejuízo

ou ônus. Os informantes que aceitaram em participar do estudo, em momento algum

tiveram seus nomes citados, ou foram prejudicados de alguma forma e todas as

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informações obtidas tiveram caráter sigiloso, receberam esclarecimentos do andamento do

estudo todo o período de realização do estudo.

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CAPÍTULO 4

4 EXPERIÊNCIAS DE PROBLEMAS RESPIRATÓRIOS INFANTIS

Neste capítulo, apresentamos as reconstruções de seis casos de problemas

respiratórios infantis entre os moradores da Comunidade do Dendê, que tomamos para

discussão com vistas a caracterizar sua construção social, bem como compreender e comparar

como os moradores envolvidos percebem, expressam e compartilham os significados sociais

dos seus problemas respiratórios.

O ponto de partida foi a noção de experiência da doença pela qual o indivíduo

situa-se perante os agravos à saúde, atribuindo-lhes significados e formulando rotinas para

lidar com os problemas respiratórios. Para isso, a doença deve ser entendida como um

processo subjetivo, na qual a experiência corporal é mediada pelo contexto sociocultural e

vivenciada pelo indivíduo, não entendida como mais um conjunto de sintomas orgânicos e

universais observados por meio de realidade empírica.

A experiência da doença relaciona-se, também, com as experiências corporais, os

significados intersubjetivos e as narrativas individuais refletidas nas práticas sociais e

mediadas por seus comportamentos. A mesma oferece um processo de reconstrução da visão

de mundo a partir das relações individuais, familiares e comunitárias, em que a noção de

saúde e de doença é considerada uma construção social e cultural, pois o sujeito é doente de

acordo com a classificação de seu grupo e em função de critérios e modalidades que ele

próprio pode fixar (KLEINMAN, 1988; GOOD, 1994).

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Para nos aproximarmos da experiência do adoecer, propomos um olhar

semiológico popular dos problemas respiratórios infantis, visando associar o discurso à ação

do sujeito, ou seja, que procura ver o sentido (significado) ligado às ações do sujeito. Desta

forma, o enfoque teórico tem início na pragmática, remontando-se à semântica (BIBEAU,

1992). Logo, as ações foram apreendidas mediante os casos concretos de problemas

respiratórios infantis entre os moradores da Comunidade do Dendê. Por essa via, remonta o

universo das percepções e dos significados ao tempo em que procuramos determinar o

impacto dos diferentes elementos do contexto pessoal, social e cultural sobre a construção

social e a evolução das reações e dos comportamentos (signos), nos quais surgem entre os

moradores que sofrem e são imediatamente afetados por problemas respiratórios.

Para reconstruir a experiência dos moradores com problemas respiratórios infantis,

iniciamos com a análise das redes semânticas de significados, modelo formulado por Byron

Good (1977, 1994), realizado via registro sistemático de domínio associado ao âmago dos

símbolos e sintomas léxicos médicos, em que o domínio reflete e provoca formas de

experiência e relações sociais, nas quais constituem-se os problemas respiratórios infantis.

A partir das interpretações das redes semânticas de significados realizamos uma

discussão e comparação de seis casos diferentes que, em momentos e com sujeitos diferentes,

revelam ser doentes ou conviver com doentes com problemas respiratórios infantis. Os níveis

de interpretação dos seis casos estudados partiram da experiência de reconhecimento da

etiologia e da terapêutica utilizada para lidar com três categorias de problemas respiratórios

infantis, ou seja, asma, pneumonia e cansaço, como identificados e reconhecidos pelos

moradores da Comunidade do Dendê como mais prevalente entre as doenças que atingem as

crianças. Para análise, dividimos em três momentos distintos em que a doença surgiu na

infância dos moradores da citada comunidade, a saber:

1 – Doença acaba com a infância;

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2 – Doença domina toda a infância e;

3 – Doença tem impacto na fase adulta.

Partimos das narrativas das mães e familiares de crianças que vivem com

problemas respiratórios e alguns doentes que seguem até a fase adulta com esses problemas.

Tornou-se possível as identificação e análise das significações tanto das mães como de suas

crianças que as constroem quando trata-se de seus problemas respiratórios e das informações

que recebem a respeito dos mesmos. Para a análise, não apenas a fala da criança que constrói

narrativas, mas a comunicação com as crianças foram estabelecidas através dos gestos,

articulada com linguagem verbal, ou uma mistura desses aspectos.

4.1 Doença Respiratória Acaba com a Infância

“Foi nove horas da noite que ligaram dizendo que ele já tinha morrido. Agora eu faço como diz: Acho que foi Deus mesmo que chamou ele, porque se fosse pra ser meu, né, ele não tinha bolado por tanto hospital e tinha ficado bom, néra (não era) pra ser meu não” (Josefa, mãe de Gabriel).

Gabriel representa o caso em que a infância foi interrompida quando surgiu um

problema respiratório. Ele não havia completado um ano de idade, estava apenas com cinco

meses quando morreu, segundo a versão dos médicos por pneumonia. Sua história foi contada

por sua mãe, Josefa, de 27 anos, pele queimada do sol, fala muito baixo e pausadamente.

Grávida de seis meses e ainda sofrida com a morte de Gabriel, o seu primogênito.

Josefa mora há uns cinco anos na parte mais baixa da Baixada; morava antes no

Maranhão, em Poção de Pedras. Casou-se assim que chegou ao local, vive com Carlos, cerca

de quatro anos, em uma casa, de piso de terra batida e paredes de taipa, forrada de plástico,

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doado pela defesa civil, composta por um único cômodo em que moram ela, Carlos, sua irmã

e sobrinha.

O seu companheiro é guardador de carro de uma rua em um outro bairro de classe

média, diariamente sai de casa para trabalhar no final da tarde para noite, costuma ir de

bicicleta e sua remuneração aumenta nos finais de semanas, chegando a faturar até dez reis

por noite.

Desde o nascimento de Gabriel, Josefa não trabalha fora de casa. Ultimamente ela

divide uns trabalhos manuais como crochê com sua sogra, por sua vez, sua sogra paga pelo

seu serviço, embora considere o valor muito baixo, mas não se queixa devido à sogra também

ajudar comprando comida para ela e seu marido.

De acordo com sua irmã Mariana, antes da morte do Gabriel, aproximadamente há

um ano atrás ‘ela sentia alegria de viver’. Esse fato não se verifica com a segunda gravidez,

uma vez que: ‘até agora não comprou nada para o filho que vai nascer e não é alegre’.

Gabriel nasceu às duas horas da manhã do dia 19 de setembro de 2001, em uma

maternidade pública, conhecida como ‘Maternidade dos Armadores’; muitas mães da

comunidade costumam ir a esse local para ter seus filhos. Ele nasceu de parto normal, mas

Josefa recorda que não conseguiu vê-lo após o parto somente no outro dia.

Quando fala do Gabriel, Josefa fica em silêncio e de voz muda, ao mesmo tempo

passa uma alegria quando relembra do desenvolvimento do corpo e da espontaneidade do seu

filho considerava-o uma criança ‘gorda’ e ‘danada’:

“Ele engordou foi muito mesmo, mamava, porque ele era muito comelão. Dei o peito bem uns três meses, depois só dava mingau a ele (...). Aquela mamadeira assim miudinha num enchia a barriga dele, de jeito nenhum. Porque não tem aquelas mamadeiras médias né, pois era daquelas mesmo que eu dava a ele. Eu dava, ele não queria nem beber água de chuquinha bebia era no copo... Meu nenê tinha dois meses e já era danado, com quatro meses ele já tava querendo se sentar” (Josefa, mãe de Gabriel).

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O cuidado com Gabriel é algo relembrado na narrativa de Josefa, preocupava-se

muito com a comida do ‘bebê’, como chamava Gabriel, segundo ela, “o bebê nunca passou

fome”. Enquanto ela e o marido chegaram a passar fome, várias vezes deixarem de comprar

seus próprios alimentos para garantir o leite do filho. Além disso, procurava-se em mantê-lo

sempre limpo, costumava lavar a roupa do ‘bebê’ separada de toda a família, recorda que

comprava sabão de coco; e depois que adoeceu por problema respiratório, passou a dar banho

nele com água morna e eucalipto para o “catarro não pregar”.

Antes das primeiras manifestações de problemas respiratórios em Gabriel, ele

desenvolveu uma hérnia, segundo Josefa os médicos informaram que não precisava fazer nada

que sumiria quando ele completasse um ano. Mesmo com esse conselho médico, ela resolveu

levá-lo a uma rezadeira urbana na própria comunidade, que rezou no umbigo dele. Mas,

apesar da tentativa ele continuou com a hérnia.

Segundo sua mãe, seu primeiro problema respiratório foi manifestado por um

sintoma corporal a ‘febre’, Gabriel tinha uns quatro meses de vida. Josefa, imediatamente,

associou a febre à mudança de comportamento do filho, devido ao fato de não manifestar

nenhuma emoção como o choro, percebeu que seu filho na estava bem, estava quieto e logo

recorreu a um hospital público em outro bairro, no qual o serviço médico diagnosticou um

caso de pneumonia:

“Foi só uma febre, ele teve febre com uns 4 meses. Levei lá pro Gonzaguinha. Eu cheguei lá, a enfermeira me mandou ficar, ela disse que ele ia ficar internado, aí eu fiquei com ele. Passei bem uns 15 dias (...) no hospital. Eles disseram que ele tava com pneumonia (...). Eu senti que ele não tava bem não. Ele chorava muito pouco, ele não chorava muito não (...). Só teve uma vez lá, que bem de manhãzinha ele começou a se espreguiçar. Acho que ele tava dando era bem começo de convulsão, ele tava todo se tremendo. Eu chamei a enfermeira e ela disse que era por causa que ele tava tomando remédio, que ele ia melhorar, tava melhorando, fiquei doida nesse dia. Não, eu não vi o médico lá não. Depois dos 15 dias quando a febre passou, ele recebeu alta. Aí eu vim me embora. Aí quando ele adoeceu eu não levei ele pra lá mais não” (Josefa, mãe de Gabriel).

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Dessa experiência ela se ressente pelo esforço que fez para manter o bem-estar do

filho e vivo, por exemplo: por ter ficado muito tempo junto ao filho no hospital e, em nenhum

momento, existiu por parte da equipe médica uma aproximação para lhe explicar o que estava

acontecendo com seu filho. Relembra ainda, que teve que se desfazer de alguns bens tanto

para se locomover como para se manter no hospital, como afirma ‘fiquei sem ter dinheiro aí

depois ele morreu’.

Após receber alta hospitalar do primeiro internamento, poucos dias depois,

Gabriel teve novamente febre e não chorava muito, dessa vez Josefa, resolveu não voltar ao

mesmo hospital, procurou outro por temor do serviço médico oferecido e não percebeu

mudanças no filho, foi então que buscou um outro hospital para tratar o filho:

“Tinha medo daquele hospital e levei pra Francisco Sá, onde ele morreu. Eu levei ele pro Albert Sabin, antes de eu levar ele pra Francisco Sá, eu levei ele pra lá. Foi até de noite, lá onde eu bati o raio-X dele, o médico disse que não deu nada (...). Depois ele foi piorando de novo (...), dando febre de novo, de manhãzinha ele não dava febre não. As febres dele só era das cinco horas em diante. Ele não chorava não. Aí resolvi levar pro Francisco Sá, internaram quando cheguei lá e não deu nem tempo pesar ele” (Josefa, mãe de Gabriel).

Ao ser internado novamente, Josefa recorda que Gabriel manifestou sintomas

nunca visto por ela antes como vômitos de cor preta (hemoptise), que também foi eliminado

pelo nariz. Desesperou-se ao ver o filho nessa circunstância, lembra:

“Fiquei foi apavorada lá dentro, não sabia o que era aquilo. Fiquei doida com ele no hospital; correndo por lá uns cantos. Ele foi logo pro oxigênio. Ele vomitava uma borra véia preta, preta pelo nariz. Foi obrigado emborcar ele assim, acho que é porque já tava sem vida mesmo né. Fiquei lá direto, uns dizia que era infecção, outros dizia que não era” (Josefa, mãe de Gabriel).

A explicação de Josefa para a etiologia popular da pneumonia dá-se por influência

do meio físico, como tomar banho com água fria ou mudar de um ambiente frio para um outro

mais quente; de acordo com o modelo etiológico de Laplantine (1986), essa descrição refere-

se ao modelo exógeno.

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Os sintomas manifestados por Gabriel, no momento de sua alta hospitalar,

segundo sua mãe relata, foram: ‘o pulmão limpo’, chegou a realizar um exame de Raio-X e o

médico atestou que o pulmão do filho não tinha nada. Ao chegar a sua casa, o filho manifestou

também ‘cansaço’ e ‘febre’, para ela esse é um quadro de pneumonia. Embora, o médico

atestasse não tratar-se de pneumonia por ter ‘liberado a criança’.

Para Josefa, há dois níveis de gravidade para a pneumonia, pneumonia como

‘forte’ e ‘fraca’. A pneumonia forte é entendida por ser tratada somente em hospital, enquanto

a pneumonia fraca por ser tratada em casa e ser rapidamente curada. Essas descrições são

percebidas por meio de manifestações em membros de sua família, como sua irmã e sobrinha.

Nos dois níveis de gravidade é importante a busca por serviços médicos, segundo sua

narrativa:

“Pneumonia que tem por uma causa, aquelas que dão fraca, eles dão medicamento e passam outros pra dar em casa. Diz assim não deu pneumonia, mas leve os medicamentos pra ficar dando a ela em casa, pra evitar, aí ela fica tomando e pronto, evita. Pneumonia é forte, mas ela mata (...). Minha irmã já teve pneumonia. Lá de casa só quem teve pneumonia mesmo foi só minha irmã (...). Eu não sei, posso até acreditar. Num sei quando é que o pulmão numa chapa tá limpo quando é que num tá. O médico disse que tinha olhado também. Num sei se é porque ele num quis dá o medicamento na criança, também porque quando ele deu, três horas ao meio deu um medicamento e deu um soro nele no braço, depois mandou dá três aerossol, eu dei os aerossol nele. Num sei se ele cansado ainda pode levar pra casa, mas eu num tenho nada não” (Josefa, mãe de Gabriel).

Apesar de Josefa proferir a expressão “Deus chamou” como uma busca para se

resignar ou até mesmo dar conforto diante do perigo anunciado pela morte de Gabriel,

evidenciamos alguns momentos em que Josefa lutou para que o filho não morresse. Como as

práticas religiosas e atitudes de proteção de cuidado frente à criança:

“Rezar também. Fiz tanta promessa com São Francisco. Fazia tanta da promessa (silêncio)... Mas era porque ele não tinha mesmo capacidade de escapar mesmo não. Eu digo é assim já que ele morreu é porque Deus precisou né dele. Às vezes o pessoal pergunta se eu não penso nele, não me preocupo. Eu digo assim “ele é quem deve se preocupar comigo porque onde ele tá ele não tá sofrendo e eu to”, eu digo assim” (Josefa, mãe de Gabriel).

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Na última internação de Gabriel, segundo sua mãe, ele passou por várias

experiências de sofrimento, no entanto, elas sempre ocorreram no sentido de procurar

recuperar a saúde do filho:

“Ele já tinha sofrido demais dentro do hospital. Ele num chorava, mas, podia furar ele onde quisesse. Furaram pra dar um medicamento dele, até na cabeça eles furaram. Diz que era pra ficar melhor de dar os medicamentos. Disseram pra mim só que iam dar uma injeção pra ele, pra ver se ele resistia ao medicamento aí lá né lá tinha a hora né que o medicamento ia fazer efeito, foi o tempo que eu vim pra casa.... Ele já tinha morrido. Eu pensava também que ele ia ficar bom” (Josefa, mãe de Gabriel).

Josefa, em sua narrativa, preocupava-se com o bem-estar de Gabriel e quando saiu

do hospital percebeu nele algumas mudanças comportamentais como ‘não voltou mais

esperto’. Recorda-se ainda depois desse fato que ele manifestou diarréia, e procurou

novamente a rezadeira, afirmando que seu filho estava com ‘quebrante’. Realizou, assim, um

tratamento religioso, contudo não resolveu o problema do ‘quebrante’ do seu filho: “Ele não

ficava bom... Todo dia mandava rezar”. Para ela, esse problema é devido a sua relação com os

vizinhos, sua vizinhança que olhava ‘mau’ para Gabriel e com isso mantinha o filho em casa,

como explica:

“O quebrante ficava bom uns dois dias depois, bastava sair com ele assim. Às vezes, eu saia com ele assim, o pessoal começava a se admirar dele e pronto. Vinha ali, ele não achava graça mais, ele já chegava em casa se vazando. Aí eu até parei de deixar mais o pessoal andar com ele. Ele só andava de tardezinha, porque o pessoal botava o olhão (...). O pessoal disse que tinha muito né, mas, eu usava uma pulseirinha vermelha no braço dele” (Josefa, mãe de Gabriel).

Por conta dessa relação comprometida, ela resolveu romper sua relação social com

os vizinhos e com a comunidade, como afirmou, nem pensava em não levar o filho à creche,

mas fazia planos para mudar de estrutura da vida, levar à outra creche:

“Na creche eu também num botava não, o nenê eu não ia botar ele. Hum eu tava esperando ele completar o que? Se ele tivesse vivo mesmo só os quatro anos mesmo ou então três anos mesmo eu ficava ensinando ele em casa, fazendo dever: a e i o u que é só o que eu sei fazer mesmo. Aí eu ia arrumar um dinheirinho pra mim botar ele pra estudar particular mais assim mesmo” (Josefa, mãe de Gabriel).

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Constantemente no discurso de Josefa está presente a importância da criança em

seu espaço social, porém referia-se que as crianças da Baixada ‘viviam na lama’, por sofrerem

algumas privações como: precárias condições de moradias, ausência de água tratada e escola

para todas as crianças, contudo reconhece que há uma ‘bondade’ por parte dos funcionários da

companhia de energia elétrica por não cortarem as ligações clandestinas das casas em que há

crianças. Apesar dessas dificuldades, ela tem um sentimento de prosperidade em relação à ela

e aos pais dessas crianças no sentido de que possam melhorar de vida, embora perceba-se uma

falta de ação e esperança por intermédio das instituições governamentais:

“Desde quando eu cheguei aqui que essas casas aqui pra dentro vão sair, vão fazer é, botar pra sair pra fazer vila de casas em outro canto, pra tirar muitas crianças da lama aí, mas num tira, já tá com um bom tempo que eu cheguei do Maranhão é sempre essa conversa ainda tá rolando e nunca saiu. E eu acho que nem vai sair, é como essa tal de fome zero os pessoal vieram aqui em casa eu me cadastrei disse que ia chegar, que ia chegar até o dia de hoje. Eu acho que foi, tá bem com um mês, dois mês por aí assim que eu me cadastrei. Era os bombeiro que tava coisando, botando os nomes... Tavam dizendo que lá na Rocinha que já tavam por aqui né. Por causa que o cadastro foi só até aqui e naquela outra banda de lá que é a mais que necessita, pra ali pra cima eles não botam pra cima do paredão eles não cadastram não. Só esse lado que cadastra quando vem essas coisas assim só é mesmo pra banda de baixo que é o pessoal que necessita mais” (Josefa, mãe de Gabriel).

Quanto ao diagnóstico popular da pneumonia, aqui demonstrado, revela que a mãe

sabe reconhecer quando o filho manifesta os primeiros sintomas de pneumonia. Resultado

semelhante aos estudos realizados em outros locais como em Karachi no Paquistão

(HUSSAIN et al. 1997) e em Belo Horizonte (CALDEIRA; FRANÇA; GOULART, 2001). O

estudo de Hussain et al (1997) foi conduzido entre 1992 e 1993, com o objetivo de analisar

como as mães percebem e tratam seus filhos frente à pneumonia, considerando uma categoria

universal. Os achados desse estudo revelaram que dois terços das mães diagnosticam primeiro

a pneumonia antes do serviço de saúde. No outro estudo, Caldeira, França e Goulart (2001)

realizaram um estudo de caso-controle sobre a mortalidade infantil pós-neonatal e mostraram

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que as mães reconhecem precocemente as doenças mais prevalentes para o óbito infantil que

necessitam intervenção médica, como são os casos da pneumonia e da diarréia.

Embora Josefa não tenha enfatizado a não atenção dos serviços de saúde,

percebemos que seu medo de retornar ao serviço possa ser devido à ausência de qualidade do

serviço de saúde ou até ao atendimento inadequado, o qual, por conseguinte, gerou em Josefa

uma necessidade de buscar outros serviços para resolver o problema de Gabriel. Tal percepção

aproxima-se do resultado dos estudos de Caldeira, França e Goulart (2001) que também

revelaram que os serviços médicos não dão a devida atenção às crianças, pois não atenderem

suas necessidades ou seus riscos antecipados.

Nesse relato de uma mãe pobre, ela não apresentou uma atitude fatalista frente à

morte de Gabriel quando tal atitude é comparada a os resultados de Nations e Rebhun (1988a),

os quais apontam em seus estudos que o fatalismo das mães, frente à morte do filho, se

expressa somente após a morte dele – post factum – antes da morte do filho as mães tentam

‘salvar’ seus filhos. O referido estudo foi realizado nos municípios Pacatuba e Guaiuba do

estado do Ceará, entre 1979 e 1986, nos quais participaram vinte e duas mães em que seus

filhos morreram por doença de criança. As autoras enfatizam que o fatalismo das mães

decorre do comportamento pelos componentes internos da cognição, portanto não deve ser

percebido como negligência, por outro lado, elas identificam uma conformação de ações

preventivas frente à doença da criança devido às suas carências estruturais.

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4.2 Doença Respiratória Domina Toda a Infância

Três casos concretos quanto à experiência do adoecer por problemas respiratórios

foram comparados, os quais dominam toda a infância da criança. Um caso de criança (Kalina)

que já nasceu com um problema respiratório. Enquanto os outros dois casos de crianças

(Cláudio e Alex) adquiriram problemas respiratórios em momentos diferentes da infância.

“Ela já nasceu assim. Ela já nasceu com problema respiratório. Saí de lá, aí a médica disse: mãezinha tenha bastante cuidado porque essa criança nasceu muito prematura e ela não vai ter uma reação pra essas doenças que tem aí pelo meio do mundo... Por isso que sempre eu tive esse cuidado” (Aline, mãe da Kalina).

Kalina é uma menina de quase quatro anos de idade, é filha única, mora com seu

pai e sua mãe. Segundo sua mãe - Aline, Kalina nasceu prematura e de parto normal, carrega

consigo um problema respiratório. Sua história foi contada por sua mãe, de 23 anos, dona de

casa, casada, concluiu o ensino médio e um curso de informática em uma escola pública de

um outro bairro e, também nunca trabalhou. É natural de Fortaleza e mora no bairro há

quatorze anos e sua casa está localizada na área ‘elitizada’ da comunidade, conhecida como

‘Aldeota’. O corpo de Aline é franzino e magro, mas de postura reta ao falar e olhar para

alguém, fixa seu olhar na pessoa com quem está conversando.

Segundo sua mãe, a avaliação da médica que acompanhou Kalina durante o

nascimento dela, considerou-a uma criança prematura e grave, mas ao mesmo tempo foi

classificada como normal. Ela nasceu de sete meses em uma maternidade pública, conhecida

como ‘Maternidade César Cals’, considerada como referência em atendimento ao prematuro,

em Fortaleza. Sua mãe relembra que o parto de Kalina foi normal, mas mal chegou a ver a

filha depois do parto.

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Para sua mãe, ela foi um bebê ‘tão pequenino e fininho’ e, ainda recorda “nasceu

tão miudinha, que você via a veia bem fininha, num era nem o couro era só a pelezinha bem

fininha como um sapinho, era só o cantinho da bundinha, num tinha carne ainda, o rosto era

todo perfeito, cabeluda que ave Maria!”.

No outro dia do seu nascimento, sua mãe se deu conta dos problemas que, tanto

ela como kalina, iriam enfrentar o resto de suas vidas. Os médicos informaram a Aline sobre

os vários problemas que poderiam surgir em Kalina. Ela nasceu com sérios problemas no

pulmão e coração, por conta desses problemas ficou internada em uma unidade de terapia

intensiva por dois meses, mesmo com todos esses problemas, sua mãe via em Kalina uma

alegria de viver:

“A bicha era sorridente e danada dentro da incubadora, elas precisaram amarrar ela com a fralda que era pra ela, ela rodava na incubadora todinha. Era pressa pra nascer, pressa pra vir ao mundo; aí eu botava o dedinho na mãozinha dela, ela apertava; com todos os problemas que ela nasceu, ela era ativa, tinha muita saúde, como a doutora disse: ela tem sangue de ferro, sangue dela aí é forte pra agüentar isso tudo aí... Era problema de coração, teve uma anemia muito forte, ela tomou sangue também uma bolsa de sangue, ela danada perdia tanta veia, danada demais as mulheres faziam era amarrar ela, amarrar o corpinho dela que era pra ela não ficar bolando perigoso era ela bater a cabeça aí elas amarraram, ela disse que ela tava com problema de coração, pulmão e nasceu com anemia” (Aline, mãe da Kalina).

Sua mãe segue a religião neopentencostal ‘Igreja Universal’, buscou esse recurso

tanto para agradecer como para pedir a vida da sua filha e um conforto para enfrentar essa

situação.

“Tanta coisa que eu fiquei foi, valha meu Deus eu tenho que ir na igreja que é pedir a Deus pra ela sobreviver. Senti eu peguei lá tem uma igreja a universal, a catedral da universal. É que é a mãe de todas as igrejas que tem por aqui, aí eu entrei lá aí eu pedi a Deus que o meu Deus, meu pai ou leve ela agora ou então não leve mais tarde porque mais tarde eu já vou estar muito apegada a ela. Disse, pedi a ele né? Aí peguei rezei pedi a ele isso” (Aline, mãe da Kalina).

A mãe de Kalina tem como concepção para o seu cuidado, que nem mesmo a avó

materna de Kalina sabe cuidar bem dela. Ela acredita que esse cuidado surgiu da sua

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experiência no momento do nascimento de Kalina por conta de tantas recomendações médicas

para cuidar da kalina em casa:

“A médica disse: tem que ter bastante cuidado com ela e fazer de tudo pra que ela não fique doente. Elas falaram também que criança assim é muito carinhosa, muito carente. Ela disse que desse muito amor a ela e ela é raivosa que só (...) As enfermeiras que falou e perguntou se alguém tinha morrido disto. Se eu tivesse passado mais uns dois dia com ela em casa, com uma semana ela não tinha escapado. Ela saiu daqui mole, eu queria que você visse, parecia mesmo que ela ia morrer” (Aline, mãe da Kalina).

A concepção de cuidado da mãe de Kalina refere-se em manter o ambiente

doméstico sempre limpo e organizado, e suas atitudes de cuidados dedicadas à Kalina são:

arrumação e limpeza da casa e no tipo de alimento que é oferecido à filha, sendo essas as mais

comuns e motivo de grande preocupação:

“O cuidado que eu tenho com ela é assim não deixar ela, ela num pode pegar um tipo de pó, pode ser até o pó do ‘Kisuqui’ (refresco em pó) ela tem alergia ela começa a espirrar; perfume, ela tem alergia também, aí eu tenho esses cuidados; urso de pelúcia eu não deixo ela encostar, gato assim de rua, quando ela pega nos gato porque diz que gato solta pêlo como fala aí eu não deixo ela pegar porque ela cansa, toda vida que ela pegava em gato ela gritava e cansava então o cuidado é esse. Poeira eu não deixo ela ficar, quando eu vou arrumar a casa eu tiro ela e arrumo sozinha, depois passo um pano espano em tudo, aí eu entro e boto ela pra dentro, aí o cuidado é esse fazer de tudo que ela não leve poeira, porque o problema é esse, o cansaço dela é esse, porque se ela gripar, a tosse dela é seca. Quando ela começa a tossir aí que dar o cansaço” (Aline, mãe da Kalina).

Com essa concepção de cuidado, a mãe de Kalina considera-se uma ‘mãe

cuidadosa’, a qual tem como visão de ‘mãe cuidadosa’ aquela que já nasce com certos

elementos de caráter social e comportamental frente à saúde do filho com a finalidade de

protegê-lo e manter seu bem-estar, esses elementos não são adquiridos. Os elementos de

caráter social, referidos por Aline, seguem determinadas regras sociais como ‘ter

responsabilidade’ e ‘reagir’, ‘ser atenta ao filho’. Já os elementos comportamentais referem-se

as suas atitudes como seguir as recomendações médicas, mas, ao mesmo tempo, ela rompe

com as recomendações em detrimento de preservar à saúde do filho, como modificar a dose

do medicamento da filha, que é uma maneira de protegê-la de conseqüências que o

medicamento possa ocasionar:

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“Uma mãe cuidadosa é uma mãe ter responsabilidade, já nascer com responsabilidade ser atenta ao seu filho como é que é a reação dele né agora sai uma propaganda que diz você conhece o seu filho pelo olhar como eu aprendi minha filha também pelo olhar e pela reação dela também eu já vou atrás dos outros pra mim poder aprender né pra mim fazer igual a eles, nem tudo também por exemplo passa um remédio é tanto eu num dou aquele tanto eu dou menos porque eu sei que vai afetar esse remédio gardenal dela eu não tomo o tanto que ela passava a mulher passou 33 gotas pra ela tomar eu num dava 33 dava só 25 gotas porque, porque eu sabia que tava afetando ela e tava afetando a parte cerebral dela que é também muito grave isso aí. Tinha feito o exame acusou que ela não podia mais tomar, aí eles tiram assim, por exemplo, ela tava tomando 33 gotas hoje eu dava 33 durante o dia e a noite amanhã eu dava 32 vai baixando tinha que tirar baixando porque esse remédio é forte não podia tirar de uma vez porque é como diz um drogado ele usa droga se ele deixar assim totalmente se ele num tiver um acompanhamento lê vaio ficar naquela ânsia de tomar de novo. Então a médica falou não tire de uma vez vai baixando aos poucos todo dia ela me explicou lá. Fiz todos os dias você tira uma gotinha aí vai baixando as gotinhas, se não. Ela deu de novo agora isso, a médica disse que ela vai ter que tomar porque ela deu de novo. Graças a Deus não só febre que eu cuido da febre, só é febre” (Aline, mãe da Kalina).

A primeira manifestação de problema respiratório de Kalina foi aos sete meses e

iniciou com os seguintes sintomas: “gripe”, “febre bem alta” e “diarréia”. Depois de uma

semana tentando tratar em casa, sua mãe resolveu procurar um recurso terapêutico, o primeiro

recurso que buscou foi o serviço médico hospitalar em que estava acostumada levar a filha, ao

avaliarem Kalina, disseram que ela estava com “pneumonia”, mas Aline desconhecia

totalmente essa situação devido ao cuidado que tinha com sua filha:

“Com 7 meses ela teve uma febre muito alta e eu não sabia o que era uma semana a menina com febre e diarréia direto, aí eu corri pro Albert Sabin; quando cheguei lá, fizeram todo tipo de exame e tudo que eles descobrem o que é que a criança tem pelo sangue, aí eu corri, quando chegou lá, a menina tava com começo de pneumonia que eu não sei como foi que ela pegou porque eu tinha tanto cuidado nela dava remédio que elas passava; todos os remédios que ela passou eu comprei pra gripe, pro sangue, tudo... Tava gripada, com febre e diarréia. Valha meu Deus! O que é isso? Eu num vou ficar em casa com essa menina, assim não! No primeiro dia, era febre normal e uma espirradeira direto porque eu tenho problema de estalecido, e ela ficou eu acho também, aí ela começou a derrama, derrama no nariz e começou a febre aí eu me preocupei, eu também ficava em casa dando remédio e não passava a febre de jeito nenhum não passava, podia dá o remédio que fosse” (Aline, mãe da Kalina).

A explicação da mãe da Kalina sobre a etiologia popular do problema respiratório

da filha vem dos antecessores familiares, tanto por sua parte como do pai de Kalina, “o bisavô

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dela morreu com esse problema de pulmão”, refere-se ao modelo endógeno, proposto por

Laplantine (1986).

Por conta desses problemas, Kalina não freqüenta nenhuma creche da

comunidade, devido sua mãe pensar que ela vai adoecer muito mais, assim, procurava

justificar sua permanência em sua casa para cuidar de Kalina.

A mãe de Kalina constrói uma hierarquia de sintomas para as manifestações dos

problemas respiratórios que ocorrem na filha, divididos por etapas de agravamento desses

problemas; inicialmente surgem os sintomas mais simples como ‘espirros’, ‘catarro’, ‘nariz

escorrendo’. O outro momento deve-se ao ‘catarro’ que promove uma obstrução na respiração

e ela começa a tossir, pode ser ‘tosse seca’, devido ao “catarro que gruda no pulmão”.

Portanto, a ‘tosse seca’ pode gerar a fase mais grave dos problemas respiratórios, que é o

cansaço. O último estágio seria a asma, a qual, segundo sua visão, se não for cuidada, terá

como destino a morte da filha. Sendo assim, para ela, deve ser estabelecida uma estratégia de

prevenção ao perceber que Kalina inicia uma gripe para evitar problemas mais graves:

“Acho que no nível de espirrar e escorrer logo aquele catarro né que gruda lá por dentro que eu não sei como é eu é aí tampa a respiração da criança e a tosse que ela tem é seca, não sai também; acho que fica tudo grudado no pulmão. Aí de tanto ela tossir, e tossir, se eu não der o remédio logo, ela cansa, então quando ela der a primeira tosse e o primeiro espirro, já tem que dar o remédio e eu não queria isso porque a criança se torna dependente de remédio né. Mais aí eu tenho cuidado com essa gripezinha dela; o negócio é não deixar ela ter gripe, se ela tem gripe, ela já vai ter febre” (Aline, mãe da Kalina).

Sua mãe faz uma distinção entre a pneumonia e o cansaço, para ela o cansaço

pode manter a criança viva, se for cuidada e pode passar com o crescimento da criança e

assim, o corpo da criança vai ‘reagindo’ e o corpo ‘fica saudável’ a essa doença. Enquanto a

pneumonia pode matar em semanas, caso não seja tratada e ainda há vários tipos de

pneumonias, classifica-se como pneumonia aguda e crônica. A pneumonia aguda, quando a

criança não precisa ser internada, recebe os medicamentos e vai continuar tomando o

medicamento em casa. Enquanto a pneumonia crônica precisa de internamento. Segundo ela,

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esse conhecimento ela obteve através de leitura de textos em livros e cartazes, costuma ler os

cartazes nos serviços de saúde em que busca atendimento.

As estratégias de tratamento estabelecidas pela mãe da Kalina são: uso de

medicamentos para evitar o cansaço, embora tenha receio em fazer uso desses medicamentos

por achar que eles podem trazer algum problema como “secar o pulmão da criança”.

O caso da Kalina não foi considerado curado. Mas, sua mãe acredita que a “crise”

está regredindo a cada ano devido ao seu crescimento. A crise ocorre por problemas exógenos

como o ambiente e o clima. O caso é totalmente aderente e dependente ao tratamento do setor

profissional, no caso das manifestações de cansaço da filha, com o uso de medicamentos

alopáticos.

“Ele já teve pneumonia quando ele era mais pequeninho pegou uma pneumonia muito forte que eu passei quase um mês internada com ele no hospital Alberto Sabin. Na época ele tinha uns dois aninhos, pneumonia mesmo forte mesmo” (Polina, mãe de Cláudio).

Cláudio é um outro caso que representa a infância dominada pela doença

respiratória desde os seus dois anos de idade. É um menino de dez anos de idade, que mora

com a mãe, o irmão mais velho e dois tios. Teve também uma irmã que morreu com um ano

de idade e quem cuidava dela era sua avó materna, segundo sua mãe ela chegou a ser

internada, mas não sabe da causa da morte da filha. Sua história foi contada por sua mãe,

Polina, de 32 anos, mulher de cor morena clara, separada, vaidosa, mantém as mãos presas à

cintura e as pernas sempre movimentadas quando sentada e fala baixo. Sua mãe desde os oito

anos de idade habita a Comunidade do Dendê, ela lembra quando chegou ao local não tinha

apartamentos nem muitas casas construídas.

Antes da morte da sua avó materna, sua mãe Polina já havia mudado de casa,

devido à separação dos seus avós. Polina mudou-se para outra casa com sua mãe e seus

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irmãos, sendo no mesmo bairro. A mãe de Polina morreu há 23 anos atrás, em um acidente, na

Avenida Engenheiro Santana Junior, foi atropelada quando ocorreu uma das primeiras greves

de ônibus em Fortaleza. Na época do acidente, Polina estava com 19 anos, já tinha Pedro, o

filho primogênito, de três anos e estava casada. A partir dessa época Polina teve que assumir a

criação dos seus seis irmãos pequenos e do seu filho Pedro.

Embora os pais de Cláudio morassem juntos, os proventos de sua casa advinham

das atividades realizadas por sua mãe Polina, que chegou a trabalhar como catadora de entulho

e passou a fazer serviços domésticos. Segundo ela, chegou a pedir esmola, passou fome e

disse: “Vi a fome mesmo e nunca fui roubar, nunca fui me prostituir, nunca matei ninguém,

quando a fome apertava eu chegava numa casa e pedia eu posso varrer sua casa, eu posso

varrer o seu quintal eu posso juntar o seu lixo”. Sua mãe é domestica há dez anos, trabalhando

sempre nesse bairro, e nas horas vagas ela está aprendendo noções em cabeleireiro; no mesmo

local em que trabalha, há um salão de beleza.

Os pais de Cláudio viveram juntos durante quinze anos, no entanto sua mãe se

separou devido perceber que seu pai mudou de comportamento em relação a ela, o qual

passou a ser violento e agressivo: “ele virou um monstro, ele me batia”; passou desconfiar

dela: “usava blusa de manga cumprida, eu não podia botar a cabeça fora, se eu chegasse do

meu trabalho com a cara bonita eu apanhava, eu vivia com a cara quebrada” e; não ajudava na

criação dos filhos. Descobriu que as mudanças foram decorrentes da sua inserção como

usuário de drogas e esse para ela foi o principal motivo da separação, não admitia de maneira

alguma que seu marido tivesse esse tipo de comportamento. Embora ela reconhecesse que

tomou essa decisão em relação ao marido, teve que enfrentar sozinha um dos irmãos, que atua

no tráfico de drogas do bairro. Depois da separação, ela casou-se novamente, dessa segunda

união, separou-se quando completou cinco anos e não teve nenhum filho. Atualmente ela vive

somente para família, ou seja, para criação dos filhos.

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Cláudio reconhece que sua mãe exerce um controle sobre ele e seu irmão, que

constantemente ameaça-os por meios violentos (agressão verbal e física) para que não se

envolvam com o tráfico drogas, particularmente as agressões ocorrem, mas com seu irmão

mais velho. Para Polina, essa situação seria reconhecer que falhou na criação dos filhos, já que

sequer imagina os filhos sendo entregues à polícia. E isso fica claro quando diz: “Eu não

quero mais antes uma boa morte pra mim e eles, do que eu ver eles apanhando da polícia”.

Quando se refere aos cuidados de Cláudio e do irmão, Polina considera-se uma

‘mãe cuidadosa’, mas reconhece que não tem muito tempo para ficar com os filhos. Polina

tem uma visão de ‘mãe cuidadosa’ que deve apresentar afeto aos filhos; além disso, deve ter

elementos de caráter social e comportamental frente a eles com a finalidade de protegê-los e

manter bem-estar deles, e que não deve, necessariamente, se resumir apenas à atenção à saúde

dos filhos. Os elementos de caráter social referidos por Polina são os mesmos descritos por

Aline - mãe de Kalina -, devem seguir determinadas regras sociais como ‘ter

responsabilidade’ e ‘reagir’, ‘ser atenta ao filho’. Enquanto os elementos comportamentais

referem-se as suas atitudes de como construírem-se rotinas de diálogo e aproximação com os

filhos para saber o pensam, saber dos acontecimentos da escola, como uma maneira de

protegê-los e construir vínculos de carinho e amor aos filhos:

“É prestar bem atenção, porque eu acho que mãe que observa os seus filhos mesmo, ela sabe quando ele tá errado quando ele tá certo (...). As mães que realmente ama seus filhos, elas têm que prestar bem atenção neles, observar aquelas mães que trabalha o dia, à noite, dá o carinho, conversar com eles, observar se realmente ele está indo pro colégio. É olhar a agenda dele, é olhar o caderno se realmente eles foram pro colégio, participar das reuniões pra saber se ele tá freqüentando, está sempre alerta. Eu não sou uma mãe de tá sempre dando carinho, eu não tenho tempo, mas, minha Nossa Senhora, eles me amam; eu digo, vai morar com teu pai, eles dizem, não eu quero a senhora. Então, eu acho assim, a mãe que realmente ama seus filhos, ela tem que cuidar dos seus filhos com mais atenção” (Polina, mãe de Cláudio).

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A primeira manifestação de problema respiratório surgiu em Cláudio quando ele

tinha uns dois anos de idade, foi “pneumonia”, sua mãe recorda que ele ficou internado quase

um mês em um hospital público.

Cláudio é o único caso em sua casa que tem problemas respiratórios. No entanto,

sua mãe destaca que os problemas respiratórios são constantes e seqüenciais, ou seja, a gripe

se manifesta sempre primeiro, e depois o cansaço. Diz ela: “Só o Cláudio tem esse problema

de gripe e cansaço assim”. Apesar de a mãe reconhecer que seu caso é o único em casa, ela

recorda que um de seus irmãos manifestou sintomas que pareciam “asma”, mas curou-se

sozinho: “Meu irmão teve problema de asma, mas ele, graças a Deus, ele se curou”.

As constantes manifestações em Cláudio estão relacionadas ao ambiente, de

acordo com sua mãe: “Meu filho não pode pegar uma poeirinha que ele já fica cansado e o

nariz todo tempo entupido, é um fungado de nariz, é facílimo de gripar”.

Percebemos que os problemas respiratórios em Cláudio mudam sua rotina como

brincar; suas brincadeiras ficam mais restritas ao ambiente da casa e em assistir aos programas

da televisão, fazendo sozinho; também a rotina de sua casa muda e a mãe fica mais atenta a

esses problemas. Além disso, começa a fazer recomendações a ele como: “Fico falando pra

ele não ficar muito na poeira, não fazer coisas que ele não deve, como ele brincar na calçada

quente; ele brinca na escola na hora do recreio, o terraço que é mesmo que fogo no chão aí e

brinca na areia quente, ele gosta de brincar e assistir televisão”.

Segundo sua mãe, Cláudio é o filho que mais reclama de doença “ele sente dor de

cabeça, ele diz, anda todo tempo com o nariz escorrendo, doendo entupido”, quando começa a

manifestar “cansaço” como a dificuldade de respirar. Ela chama pela mãe e sente que vai

morrer como afirma ele: “mãe eu tô morrendo”.

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A mãe de Cláudio estabelece um procedimento de rotina para empregar os

recursos terapêuticos disponibilizados em casa quando surgem os problemas respiratórios em

seu filho; entretanto tal procedimento depende do nível de gravidade do problema respiratório

manifestado em Cláudio: Para os casos de gripe e de pneumonia “fraca”, geralmente cura-se

com preparações caseiras (lambedores caseiros) e de remédios à base de plantas medicinais,

usando as plantas (malva e courama) da feira semanal que ocorre aos sábados na comunidade.

Para o caso de cansaço, usa-se um kit doméstico, pela combinação das plantas e de

medicamentos alopáticos: “Às vezes dou mel com limão, passo vick, dou massagem de vick

aqui no peito dele, mas bem pra baixo pra ele não ficar sem ar. Dou nas costas, mas ele

ultimamente gripa fácil”.

Há casos em que Polina recorre ao serviço médico para resolver o problema

respiratório de Cláudio; para ela a pneumonia também pode ser classificada como “muito

forte” e quando manifesta esse tipo, leva-o ao hospital. Sua mãe compreende que esse tipo de

doença, a pessoa sente uma dor muito forte nas costas, e quando realiza um exame de Raio-X,

percebe uma ‘mancha no pulmão’. Apesar de não construir uma dependência do serviço

médico para ela mesma, reconhece que busca esse serviço quando o Cláudio adoece e não

pode resolvê-lo em casa através de medidas terapêuticas caseiras:

“Quando eu posso amenizar em casa uma gripe, eu posso curar, cuidar em casa, eu cuidei (...). Já cuidei de muita criança, então eu tenho aquela base, então eu tomava muito remédio pra febre, remédio pra dor nas costa, aspirina, chá de limão, eucalipto, alho e com aspirina pra gripe; aí, quando é uma coisinha simples, aquele remédio ali resolve, vai amenizar, ele vai acabar. Mas, quando é uma coisa mais séria, aquilo não vai melhorar, vai cada vez pior” (Polina, mãe de Cláudio).

Sua mãe não segue uma religião fixa, mas acredita em Deus, quando seu filho

Cláudio apresenta problemas respiratórios pede ajuda espiritual, reconhecendo que Deus está

presente em sua vida, ela diz: “E graças a Deus, que Deus tava olhando pra mim, graças a

Deus”.

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Cláudio não foi considerado como curado. Mas, sua mãe acredita que a ‘crise’

estava regredindo a cada ano devido o seu crescimento. Esse caso aplicou diversas técnicas de

cuidado (medicamentos, plantas medicinais, etc.), no qual mutuamente e não se excluíam, pois

sua mãe empregava várias medidas terapêuticas como uso de plantas medicinais e

combinando com medicamentos alopáticos para lidar com os problemas respiratórios mais

simples de Cláudio.

De fato, a classificação dos níveis de gravidade das manifestações dos problemas

respiratórios infantis descritos pela mãe de Cláudio, como sendo um dos mais graves a

‘pneumonia forte’, embora o seu contexto sociocultural que conduza a essa graduação das

manifestações nosológicas populares locais, foi evidenciada em um outro estudo essa mesma

classificação de gravidade no estudo de Loyola (1984, p. 130). Este estudo foi realizado no

município de Nova Iguaçu entre 1976 e 1979, que visava analisar o controle do uso do corpo,

pelas instituições religiosas, médicas e escolares. O referido estudo demonstrou que a

pneumonia, a bronquite, a poliomielite e a difteria como os problemas que põem em risco as

vidas das crianças, exigindo assim cuidados médicos, em que a pneumonia é percebida como

uma complicação grave da gripe ou como muito forte ou mancha no pulmão. Comparamos

com os nossos, verificamos uma semelhança quanto à classificação de gravidade e descrição

dos sintomas. Embora em nosso estudo, tenham sido identificados como forte e fraca ou

aguda e crônica as pneumonias.

“Ele não é de novinho, ele pegou esse problema com 9 anos né (...). Eu nunca tinha pegado serviço direto pra todo dia ir e vir (...). Sempre era diária (...). Aí peguei serviço direto todo dia indo todo dia de segunda a sábado né (..). O que eu ganhei, o lucro foi pro meu filho pegar essa asma” (Florinda, mãe de Alex).

Alex é o caso que representa uma parte da infância dominada por uma doença

respiratória grave. É um menino, de onze anos, mora com mãe, pai e seu irmão mais novo, de

cinco anos. Sua história foi contada por sua mãe Florinda, de 34 anos, uma mulher de cor

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morena clara e olhos acastanhados, franzina, que se mantém sentada e perna cruzada,

simpática com conversa irônica da sua própria condição de vida.

Para ela, o que levou o surgimento do problema de asma em Alex foi a sua rotina

de trabalho fora de casa, justificando assim: “Eu passei o que um ano direto todo dia indo todo

dia de segunda a sábado, durante sete meses, lá era de carteira assinada, o ganho era um

salário, era bom! Mas, eu tive que sair por causa do problema nesse tempo que eu passei lá.

Ele se internou duas vezes. Meu filho nunca tinha sido internado por nada, né”.

Some-se a isso um outro motivo alegado por Florinda diante do surgimento da

asma em Alex recai em uma postura de alteridade, designando-se agressora de si mesmo, no

sentido externo ou fora da sua responsabilidade, percebidos na sua narrativa, “o lucro foi meu

filho pegar essa asma”.

Alex mora há nove anos na área da Baixada, antes morava na parte de cima da

comunidade, com seus avôs paternos, seus pais e seu irmão. Agora mora em sua própria casa

com sua mãe, pai e irmão. No último ano, seus pais oficializaram sua relação marital, já

viviam há dez anos conjugalmente.

A rotina de sua mãe mudou depois do surgimento do seu problema respiratório,

lembra que em períodos anteriores, quando sua mãe tinha que dormir no local de trabalho,

suas folgas costumavam acontecer aos domingos, dia em que ela se dedicava à limpeza da sua

casa e à lavagem da roupa da sua família. No período em que sua mãe dormia fora de casa,

quem cuidava dele e do irmão era seu pai, segundo a mãe, o pai não se dedicava tanto aos

filhos. Hoje, as atividades de sua mãe estão mais direcionadas a serviços que exigem muito da

sua presença no local como passar e lavar roupa ou, às vezes, realiza faxina, porém o tempo

ela emprega fora de casa não corresponde a um dia de trabalho. Ademais, está participando de

cursos de arte para confeccionar velas ornamentais, sabonetes e caixas de presente. Seu pai,

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Chico, realiza serviços temporários como pintor, pescador, carpinteiro e hidráulico, mas

segundo a mãe, ele é analfabeto, não sabe escrever e nem ler nada.

Segundo Florinda, o único filho que manifestou a asma foi Alex, no entanto, o

outro filho manifestou outro problema respiratório ‘cansaço’, que considera menos grave em

relação à asma; ela resolveu a situação buscando o serviço médico local, o NAMI, e afirmou

que: “A doutora passou salbutamol, e aí não foi pra frente à doença”, acrescenta que procurou

controlar o comportamento do seu filho quando não permitiu que fosse brincar fora de casa

“não deixei ele fazer arte e, não virou asma”.

Florinda ainda lembra que o filho mais novo, André, adoeceu de outro problema

respiratório quando tinha uns dois meses de vida, segundo sua mãe, ele sentiu “febre

constante”, posteriormente o serviço médico atestou tratar-se de uma “pneumonia”:

“De primeira, quando ele era pequenininho, teve aquela tal de como é o nome mulher? Aquela bicha veia que a gente tem, precisa tomar sete injeção, pneumonia (...) Ele era muito doentinho quando era pequeno” (Florinda, mãe de Alex).

Sua mãe Florinda comenta que André ‘já nasceu doente’ de pneumonia, indicando

uma concepção de etiologia popular relacionada com eventos ocorridos no período de sua

gestação; no caso, representado por picada de cobra. O agravo à saúde corporal da mãe passou

diretamente ao corpo do feto, fazendo com que a manifestação da pneumonia surgisse logo

após o nascimento do bebê. Uma evidência disto para ela é a analogia entre a aparência da

pele do seu bebê com a pele de cobra, que para ela ficou ‘descamada’ como a do animal

agressor:

“Ele já nasceu doente por causa de uma mordida de cobra que eu levei com sete meses de grávida, e foi aqui em casa. Ela pregou, tava escuro, taquei a mão assim, mas era uma cobra (...), outra vez fui receber o leite com uma colega e desmaiei, eu num tava com fome, não tava doente, tava com sete meses de grávida, mas não tava doente. (...) Arrumei o ultra-som, tudo normal, quando o menino nasceu, nasceu com a pele sensível, assim bem lisinha, ele era vermelho além do normal. Aí, quando ele completou uns dois meses, ficou enrugadinha, parecia couro de cobra. Nesses dois meses, o ouvido dele vazava pus, muito escuro, era quase verde né, e antes dos três meses, ele teve pneumonia. Além

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desse problema da pele, eu vivia mais no pronto-socorro infantil da UNIFOR do que em casa, lá no Meireles, no posto três, no CIES, lá no Albert Sabin também fui, fui lá naquela Dra. Libânea do centro que era de pele, era sabonete, glicerina pura, pra pele, aí pra pneumonia foi sete injeção de óleo, sabe, e aqueles remédios” (Florinda, mãe de Alex).

Depois dessa primeira manifestação da pneumonia em André sua mãe afirma que

ele não tem mais nenhum problema de saúde, quando lembra, invoca no nome de Deus, “Ah,

Meu Deus. Aí eu sei que passou, hoje em dia ele não sente nenhuma dor na unha, se não for

uma gripe”. Mas, reconhece que tem paz mesmo que o problema de asma de Alex não tenha

sido resolvido: “Hoje em dia é que eu estou tendo mesmo paz, e ao mesmo tempo não é total

por causa dessa asma né, já foi um dilema, aí Jesus, já foi um dilema”.

A primeira manifestação de problema respiratório que surgiu em Alex, como já

apresentado, ele tinha nove anos de idade, foi “asma”, sua mãe recorda que ele foi internado

quatro vezes em um hospital público, distante de casa devido a esse problema.

Uma expressão utilizada por Florinda, quando percebe que estão iniciando as

manifestações de asma em Alex, é “abala o menino”; são descritos os seguintes sintomas

como “tosse” e “cansaço”. Sua mãe estabelece alguns cuidados frente a essa situação, pela

adoção do uso de medicamentos alopáticos, orientados pelo serviço médico, adquiriu até

equipamento de aerossol para tratar de Alex em casa, e quando responde a esses recursos,

busca o serviço médico local:

“Assim o menino passa a noite, em tempo de morrer, como ele já tem costume de fazer isso né? Porque assim ele, ele se abala, abala no sentido assim de ficar doente quando muda à temperatura, quando vai chover, passa assim dois, três dias chovendo pronto ai pam! Começa a fazer sol´aí tudo já abala o menino; já começa naquela tosse e eu entro é com Salbutamol, com Prednisona pra ir combatendo né, mas a temperatura, parece que o mormaço, o frio, ou o calor, sei lá, é que faz com que mude alguma coisa, aí ele fica doente, cansado, quando da pra gente, tanto é que eu comprei um aparelho de aerossol pra poder combater né pra não tá todo tempo na UNIFOR. Aí, eu vou na UNIFOR porque é o lugar que eu vou mais que é bem pertinho, aí a doutora Luciana e a doutora Marília, as duas que me atende né. Elas passa aquela Amoxicilina na veia, e ele toma aquele remédio, toma o soro; aí a gente vem embora, ela passa o Salbutamol e o Prednisona e os aerossol e eu fico dando nisso pra poder não internar” (Florinda, mãe de Alex).

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Para Florinda, as manifestações dos problemas respiratórios estão relacionadas

entre si e não se excluem mutuamente, a saber: ‘pneumonia’ pode ser representada por

‘catarro’ ou ‘gripe mal curada’; ‘asma’ são irmãs da ‘pneumonia’, ‘asma’ e ‘bronquite’; além

disso, ela desenvolveu uma hierarquia da gravidade do problema respiratório: surge o primeiro

problema, que seria a ‘gripe’; em seguida, a ‘pneumonia’, posteriormente a ‘asma’ e por fim a

‘bronquite’ e ‘bronquite alérgica’, os quais ela acredita não ter ‘jeito’ de tratar. Esses últimos

problemas são temidos pela mãe, para ela se seu filho manifestar um desses problemas ela está

próximo da morte:

“Eu acho que a pneumonia também é catarro, assim, gripe mal curada. A asma, a pneumonia e a bronquite são irmãs. Porque primeiro vem a gripe, depois a irmãzinha pneumonia, aí vem a asma e a bronquite. Quando tá na bronquite, aí quase sem jeito” (Florinda, mãe de Alex).

Florinda relaciona o surgimento das complicações da asma à estratificação e

discriminação sociais dos moradores da Baixada que sofrem de problema respiratório, quando

esses buscam recursos médicos profissionais. Para ela, as pessoas de outros locais da

comunidade vêem os moradores da Baixada como ‘porcos’, por serem desprovidos de

recursos estruturais e viverem na parte baixa da comunidade. Assim sendo, não podem

adoecer por bronquite, considerada por ela uma doença de rico. Ao perceber que o filho está

adoecendo por asma, leva-o ao hospital, caso seja bronquite, associa que o destino do seu filho

será o cemitério, por não ter não recursos materiais para cuidar da recuperação do mesmo:

“Tem jeito, mas só gente rica que pode, que nós que somo pobre, quando tá com bronquite, o caminho é o cemitério. É, porque a gente não tem recurso. É, o pessoal chama, porque desse paredão pra cá já é área de risco; sabe, desse paredão pra lá mora gente e pra esse lado de cá, só mora porco. Nesses hospitais, a gente é excluída, sabia? Hoje em dia, na nossa comunidade, ali na Aldeota, é lá num sei aonde, num sei o que. Sabe por que? Pelo seguinte, o pessoal não dá valor pra quem mora nesse lado de cá do paredão, por que? Você só vale o que tem, tá entendendo? Se eu tiver, eu valo alguma coisa, se não tiver nada, você não vale é nada, é em qualquer canto desse jeito, seja é desse jeito, em todo canto” (Florinda, 34 anos mãe de André).

Na narrativa de Florinda sobre o comportamento como um fator promotor do risco

de doenças, percebe-se o julgamento moral relacionado às complicações da asma, como o de

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exclusão social e desigualdade. Os moradores da Baixada são considerados ‘porcos’, e sua

compreensão de gravidade da doença é frequentemente relacionada à situação de pertença a

diferentes classes sociais. Identificam-se, assim, as doenças de rico e de pobre. Problemas

respiratórios como bronquite e pneumonia, nesse modelo classificatório, seriam relacionados,

respectivamente, a ricos e pobres. Sendo assim, no presente estudo, deixamos claro que, no

imaginário popular, há uma idéia de estratificação social da doença semelhante aos estudos

realizados em outros grupos culturais e de categorias de doenças diferentes como HIV/AIDS

(FARMER, 1999, p. 78). O estudo de Farmer (1999) foi realizado em Porto Príncipe, no Haiti,

entre 1994 e 1999, com pessoas portadoras de HIV/AIDS, e revelou que as pessoas que

adoecem por HIV/AIDS são submetidas a uma violência estrutural, por nascerem na pobreza e

que esse é um destino comum a elas.

4.3 Doença Respiratória com Impacto na Fase Adulta

Comparamos dois casos concretos da experiência do adoecer por problema

respiratório, os quais foram conduzidos à fase adulta. Um exemplo é caso de uma mãe

(Glória), que passou o problema respiratório para seus filhos. Há também o outro caso de um

homem (Zequinha) que adquiriu problemas respiratórios ainda criança e permanece com eles.

“Porque a minha parte da asma, depois que eu tive eles, passou pra eles. Eu nunca mais senti depois que eles nasceram. Mas, aquele problema, eu preferia ter ficado do que eles. Eles sofre. O meu de cinco anos teve, ele teve a asma; fizeram ali no Hospital todo tipo de exame dele de todo, mas não deu nada” (Glória, mãe de Maria e João).

O primeiro caso de Glória, 28 anos de idade, nascida em uma família pobre; sua

mãe faleceu quando tinha um ano e meio, passou a ser criada por uma amiga de sua mãe,

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sofreu muitas privações alimentares e falta de cuidados; durante toda sua infância e

adolescência sofreu com seu problema respiratório.

Quanto à etiologia popular de asma, Glória implica à herança biológica dessa

doença devido à mãe ter vivido o problema asmático durante toda sua infância e adolescência

em seu corpo e, ao engravidar, essa herança biológica foi passada para os seus filhos, e depois

que nasceram, não sentiu mais nenhuma crise da doença.

O problema respiratório de Glória foi manifestado ainda em sua infância, quando

vivia com sua mãe adotiva, ela apresentou os primeiros episódios de problemas respiratórios

sob a forma de não poder engolir alimento, em seguida manifestava a falta de ar. A mãe

levou-a para o hospital, sendo-lhe prescrito o uso de um medicamento sob a forma de

aerossol. Após essa ocorrência, diagnosticada como cansaço, sua mãe dava sempre lambedor

caseiro logo que iniciava uma gripe.

Qualquer sintoma de doença respiratória do trato superior (gripes, resfriados etc.),

para ela já constituía-se como um sinal de asma. Relatava que estava ‘boazinha’, mas quando

realizava qualquer tarefa doméstica como limpar, lavar ou varrer, e até andar, sentia-se

cansada. Com o passar do tempo, suas manifestações de sintomas respiratórios diminuíram,

afirma que, atualmente, ao andar de pés descalços ou fazer serviços domésticos, não se

manifesta nenhum dos sintomas relatados.

Familiares relatam que seus problemas respiratórios se agravaram devido à falta

de cuidados de sua mãe, que a deixava só com suas irmãs mais velhas, que, por sua vez, não

tinham cuidado com alimentação ‘saudável’, bem como não tinham regularidade com as

refeições:

“Eu acho que o problema dela aí se agravou devido à falta de cuidado, assim, de uma vitamina, uma alimentação saudável. A tia não tinha tempo de fazer. Elas moravam longe da gente né? Lá no outro bairro e a gente aqui, né. Aí, quer

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dizer, é a falta de cuidado mesmo, porque a pessoa não tem uma vitamina no organismo, não pode ter um organismo forte” (Aninha, prima de Glória).

O cuidado com seus filhos é responsabilidade de seu ex-marido, que tem a posse

dos filhos, argumenta ela que seus filhos têm uma alimentação mais adequada. Na hora das

manifestações das crises de asma dos filhos, ela está sempre presente. Nesse momento,

assume o papel de conduzi-los ao hospital e permanecendo lá até que eles se recuperem

completamente ‘quantas noites já passei acordada com ele no hospital, fazendo todo tipo de

exame, ele até já foi para UTI de criança’.

Na narrativa de Glória, são descritas as modificações que ocorrem em seu corpo,

decorrentes da crise de asma, as modificações também já são percebidas em seus filhos:

“É só o puxado mesmo. Fica assim, tipo assim, é fica piando, fica piando aqui no peito assim, a gente olha é uma coisa que eu tenho também, é que se uma pessoa tiver perto de mim, aí se eu tiver perto de cansar, fica piando, fica pi. Às vezes nem quando a gente não fica, ela não passa, ele não passa, por exemplo, eu num to cansada, mas, aí, eu não to cansada, mas eu não to, mas se eu tossir, tossir bastante, aí você vai notar que eu, vou ta com puxada e vou ta piando, mesmo que eu num esteja cansada mas eu vou tossir, vou coisar, aí vá ficar igual um apito, aquele negócio: “pi!”, chega me dá raiva, Aí o cabra véi lá de casa fica coisando, que é menina, tem um pito dentro de tu?” (Glória, mãe de Maria e João).

Os primeiros sintomas de asma que antecipam uma crise em seus filhos são

imediatamente percebidos por ela, sendo frequentemente identificados por categorias de fala

que refletem concepções etiológicas tais como: “qualquer gripezinha, ela já cansa”, às vezes,

iniciam-se com processos de tosse a associam-se às mudanças climáticas, em seguida,

desencadeia-se o ‘cansaço’.

Glória percebe que tanto em seu corpo como no corpo de seus filhos, os sintomas

da asma manifestam-se da seguinte maneira: sentem ‘dor na garganta’, ‘falta de ar’ e, às

vezes, a ‘pele do rosto ficar toda avermelhada’ ou ‘roxa’. A partir dessas manifestações tanto

ela como seus filhos buscam um isolamento do ambiente e do grupo (família ou vizinhos), os

locais escolhidos para tal isolamento são seus quartos de dormir, ficam quietos e deitados,

procuram não manifestar nenhum som ou fala.

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Para Glória, seus filhos serão curados de asma quando atingirem a idade de sete

anos, idade que não apresentarão mais tais problemas. Essa racionalidade popular é reforçada

e legitimada pelo discurso científico do médico, que surge do relato de Glória. A biomedicina

aponta causa de asma de maneira semelhante ao discurso que é reproduzido por essa mãe.

Durante uma das internações de seu filho mais velho, o médico alertou sobre o curso da

doença em seu primeiro filho, que atualmente está com cinco anos de idade, segundo o

discurso médico, da maneira que é interpretado por ela:

“Eu acho que é a fase dele né? Que já ta mudando, eu acho que é a fase, que ele já vai fazer 6 anos e quando ele fizesse 7 anos, o médico falou pra mim, ele já ta mudando, aí a Malena, ainda falta 3 anos até chegar os 5 anos, ainda falta 2 anos pra poder ela ficar da fase dele pra parar; tem que fazer do mesmo jeito, mas nós num dá água gelada pra ela, nós num dá nada assim, que ela, ela tem tudo separado” (Glória, mãe de Maria e João).

Percebemos um sentimento de culpa na narrativa de Glória, independentemente da

vontade que possa acender o passado para os seus filhos seus problemas de saúde. Ela justifica

a culpa por não seguir normas como ficar “cuidando do filho”, especificamente no segundo

caso passando a responsabilidade do cuidar para o outro, ou seja, o pai da criança.

“Quando eu era pequeno, eu tinha. Quando eu era pequeno eu tinha cansaço, como todas as crianças têm problema de cansaço, a maior parte dos problemas toda criança tem, entendeu!” (Zequinha, problema desde a infância).

Zequinha, 38 anos, concluiu o ensino fundamental e é natural de Fortaleza,

demonstra que o problema respiratório, independente da idade ocorre, embora considere seu

problema como doença de criança.

Zequinha tem pele morena e corpo forte, sua voz é calma e baixa, intitula-se como

‘ex-alcoólatra’ e há mais de um ano participa dos alcoólicos anônimos. Mora com a mãe e seu

filho, separou-se da mulher há quatro anos. Tem um irmão mais velho, de 42 anos, que mora

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no mesmo bairro. Atualmente está desempregado, trabalhava antes como detetive e de vez em

quando realiza serviços como fotógrafo.

Sua categoria popular de etiologia da asma apresenta-se sob a forma de reações

alérgicas a fenômenos físicos e naturais, tais como pêlos de animais (cães e gatos) e contato

com mudanças bruscas de temperatura.

As reações, particularmente de Zequinha, são extremamente positivas em

colaborar com os problemas de saúde da Comunidade. Há uma integração de ações

executadas por ele em relação às pessoas que moram na Comunidade: protege, cuida e vigia

seus vizinhos. Atua como líder entre os moradores e nas instituições de saúde localizada

próximas à Comunidade. Auxilia as pessoas da Comunidade em conduzi-las quando precisam

dos serviços. Ele justifica o fato devido ao seu problema de saúde: “quando eu chego lá, todo

mundo me conhece. Se eu entrar no laboratório, fulano de tal: “olhe o Zequinha chegou e isso,

aquilo outro”. Todo mundo me conhece lá, os segurança aquele policial, todo mundo, quando

eu chego lá. Dr. Rui, Dr. Fernando, Dr. Paulo, todo mundo me conhece”.

Seu problema respiratório surgiu ainda quando criança, agravando-se ao longo da

vida, particularmente na vida adulta, segundo ele, por utilizar substâncias nocivas como fumo

e bebida alcoólica. A descrição das manifestações de sua asma, relatado por ele são:

“Vou logo sentindo assim, vai acochando os pulmão, a respiração vai logo acochando. A pessoa vai logo como se tivesse um chiado, um piado e daquele piado vai tampando tudo. Escuto porque, é o seguinte, você tampa o nariz e os ouvidos e respira pela boca que é o mesmo que você colocar aquele coisa na pessoa. Aquele aparelho para escutar o coração, mas é uma coisa que a pessoa num pode se deixar levar por isso daí (...)” (Zequinha, problema desde a infância).

Para Zequinha, as manifestações da asma surgem de uma alteração corporal que

sente como um ‘aperto na garganta’, que se desenvolvem para: ‘aperto no peito’, ‘chiado’ e a

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sensação de uma alteração no estômago; prossegue com a ‘diminuição da respiração’. Assim,

ela se instala. Influenciado e reinterpretando à sua maneira o discurso médico profissional:

“Apertado na garganta, apertado no peito, no pulmão e ele começa assim chiando, como se tivesse um catarro, assim no estômago da gente. Ele vai deixando o estômago da gente curto. Na asma a pessoa procura respirar e não encontra de jeito nenhum, aí se a pessoa se aperrear mesmo, aí é o fim da picada, porque é o seguinte, a asma pode dar aquela parada cardíaca. A asma tá juntamente com o coração da gente e ele fica muito acelerado. Aí com o decorrer do tempo que a pessoa vai indo, vai indo, se a pessoa não tiver um carro perto, uma ambulância, e começar apertar cada vez mais, vai tampando a respiração da gente, tá entendendo, e a pessoa fica sentado, às vezes não pode ficar em p. Quem tem esse problema não pode ficar em pé porque fica pior (...)” (Zequinha, problema desde a infância).

O caso de asma de Zequinha também não é considerado como se já tivesse sido

curado. Mas, Glória acredita que a ‘crise’ em seus filhos está regredindo a cada ano que eles

crescem. Os dois casos são totalmente aderentes e dependentes do tratamento do modelo

biomédico, pois usavam medicamentos alopáticos, entretanto quando surge o primeiro

problema respiratório, a gripe, todos eles fazem uso do lambedor, comprado em farmácia ou

preparado em casa. Nos dois casos foram identificados usos de outras agências terapêuticas

como prática religiosa, por meio da igreja católica ou evangélica, combinado com o modelo

terapêutico biomédico através do uso de medicamentos alopáticos e práticas terapêuticas

tradicionais, como o uso de remédios caseiros à base plantas medicinais.

Nos dois casos, observamos que as conseqüências da asma mais temida por eles

são bronquites alérgicas. Influenciados e reinterpretando, a sua maneira, o discurso médico

profissional, para eles, as crianças que manifestam esse problema estão próximas da morte. O

sintoma mais temido por Glória é uso excessivo de medicamento para tratar a asma, segundo

sua visão, o medicamento pode ‘secar o pulmão' e isso pode desencadear uma falta de ar que a

criança pode morrer. Para Zequinha, o sintoma mais temido é representado por parada

cardíaca, que segundo ele é o fim porque pode levar a morte.

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De acordo com esses dois casos, a asma é considerada uma doença que tem

origem durante infância, podendo seguir até sua vida adulta também, embora possa ser

caracterizada como ‘doença de criança’ e suas crises possam diminuir em termos de

freqüência quando o indivíduo está adulto, devido contato com vícios como o fumo ou bebida

alcoólica. A categoria “doença de criança” foi também identificada em outros estudos

realizados no Brasil: Loyola (1984) e Nations (1992), que estabeleceu critérios de sintomas de

doença da criança.

Todos concordam que a doença mais comum a ser tratada e curada é a gripe, pela

utilização de recursos de casa, como o preparo de remédios caseiros. Por outro lado, a asma

não é uma doença de fácil tratamento e precisa buscar recursos médicos: “... porque já faz um

lambedor, você elimina com um chá de eucalipto, limão e alho, compra ali salbutamol. A

asma não, você vai para doutora”.

No contexto sociocultural da Comunidade do Dendê, as práticas terapêuticas

populares mais comuns aplicadas são as de cunho religioso pelas rezadeiras urbanas, enquanto

outras técnicas terapêuticas são empregadas como o uso de plantas medicinais que são

prescritos por rezadeiras urbanas, raizeiros urbanos ou fazem parte do próprio kit doméstico

de práticas em saúde. Quando alguém é levado para tratamento clínico no início de uma crise,

caracterizada como grave, a crise, a pessoa poderá ser rotulada como ‘doente de asma’,

conseqüentemente conduzir tal rótulo o resto de sua vida.

Nesse sentido, há uma aproximação da noção de estigma de Goffman (1988), a

partir do alinhamento intragrupal, quando um indivíduo se insere em um grupo que ocupa a

mesma estrutura social. Goffman (1988) refere-se ao estigma como uma linguagem de relação

entre atributo e estereótipo, sendo um desses atributos corresponde à identidade social.

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Quando surge o primeiro sintoma de problema respiratório e que se identifica

como gripe, o primeiro recurso terapêutico por ambas as mães é o uso do lambedor, comprado

em farmácia ou preparado em casa, percebemos que essas ações fazem parte do costume local.

A responsabilidade do cuidar e criar a criança recai sobre a mãe, mesmo que sua

presença física não seja contínua ou que o pai esteja presente em sua moradia. A mãe

desempenha papel fundamental no momento da doença da criança, evidenciado em estudos

tais como Scheper-Hughes (1992), Nations (1992) e Calvasina et al (2006), que constatam nas

famílias nordestinas há domínio matriarcal, onde o cuidado da saúde da criança é

responsabilidade da mãe.

Os moradores da Comunidade que experimentaram os problemas respiratórios

foram tratados tanto no setor popular como no profissional. Isso demonstra que não há uma

conduta uniforme em relação à decisão de buscar tratamento em um único sistema terapêutico.

Diferente do que menciona Scheper-Hughes (1992, p. 408), que atribui às mães

títulos como os de negligentes, nesse estudo não identificamos qualquer situação em que a

mãe não apresentasse um sentimento maternal frente ao seu filho e negligência materna.

Constatamos reações de cuidado materno que promovem e constroem sólidos vínculos

afetivos e emocionais com seus filhos.

Tentamos demonstrar em nosso trabalho através dos diferentes comportamentos e

ações frente às doenças respiratórias, os quais estão intimamente relacionados ao contexto

sócio-cultural, sendo em grande parte influenciados por outros aspectos tais como

conhecimento e disponibilidade de recursos, acessibilidade aos recursos do setor comunitário

como rezadeiras urbanas e raizeiros urbanos e outras técnicas terapêuticas como uso de

plantas medicinais (LOYOLA, 1984, p. 138). Em alguns casos, descrevemos uma

interferência da emoção, da condição sócio-econômica e da avaliação que é feita pelos/dos

sistemas terapêuticos disponíveis.

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CAPÍTULO 5

5 COMPORTAMENTOS E AÇÕES DE SAÚDE FRENTE ÀS DOENÇAS

RESPIRATÓRIAS INFANTIS

Neste capítulo acrescentamos o conhecimento sobre a Antropologia das Doenças

Respiratórias Infantis, tomou-se, portanto, como ponto de partida a visão (êmica) dos

moradores da Comunidade do Dendê sobre seus comportamentos e ações frente aos

problemas respiratórios infantis. A importância em analisar a semiologia popular das doenças

respiratórias infantis está em poder contribuir para um melhor entendimento, sob uma visão

integral das ações populares de saúde dessa Comunidade, relacionadas a essas doenças.

Os comportamentos e ações relacionados aos problemas respiratórios infantis são

percebidos pelas mães, que reconhecem em seus filhos tais problemas, ainda na infância, ou

pelas pessoas que vivem-nos desde a infância, perdurando todo o curso de suas vidas,

compreendendo assim, as repercussões sociais e morais em seu contexto particular. As mães,

segundo Boltanski (1984), são atentas à saúde dos filhos, sabem reconhecê-la ao observar

certos sintomas, se a criança está com boa saúde ou doente, e se, na última eventualidade,

buscam os serviços terapêuticos disponíveis no local.

A análise realizada neste capítulo tem como principal informante, as mães de

crianças com problemas respiratórios infantis, que recorrem às redes sociais dos setores

comunitário e profissional do sistema de cuidado com a saúde da Comunidade do Dendê para

resolver esses problemas. O setor comunitário é constituído por diversas agências e agentes

religiosos como: culto-afro-brasileiro como umbanda, raizeiros urbanos, igrejas pentecostais

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(assembléia de deus) e neopentecostais (igreja universal do reino Deus), rezadeiras urbanas,

que empregam os elementos do catolicismo popular, sistema indígena e africano tradicional;

além dessa constituição, há crenças vivenciadas pelo próprio sujeito que busca a cura para

seus problemas ou pelos vizinhos que compartilham dos mesmos. Enquanto o setor

profissional conduz aos serviços médicos especializados como pediatras e clínicos gerais;

aproximando-se do modelo proposto por Kleinman (1980, 1986, 1988). O modelo sugerido

por Caroso et al (1997); Caroso; Rodrigues e Almeida-Filho (1998) e Lima (2000) propõe

uma aproximação do setor popular com o folk, denominando a aproximação de setor

comunitário em saúde, por considerarem um conceito mais amplo e que melhor refletem os

sistemas de cuidados terapêuticos mais abrangentes.

Sendo assim, este capítulo encontra-se dividido em quatro tópicos principais,

construídos a partir da análise do modelo teórico do sistema de signos, significados e ações

das doenças respiratórias infantis da Comunidade do Dendê:

1 – Identificação e descrição dos recursos terapêuticos locais;

2 – Identificação, descrição e análise dos signos dos moradores frente às doenças

respiratórias infantis;

3 – Signos e Significados das Doenças Respiratórias Infantis na Comunidade do

Dendê; e

4 – Ações no Enfrentamento dos Problemas Respiratórios Infantis.

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5.1 Identificação e Descrição dos Recursos Terapêuticos Locais

O pluralismo dos sistemas de cuidado com a saúde é marcado pelas sociedades

contemporâneas, em particular, ressaltamos a Comunidade do Dendê em Fortaleza. Os

sistemas de redes extensivas de práticas terapêuticas populares do setor comunitário, em

conjunto com as práticas terapêuticas do setor profissional do sistema de cuidado com a saúde,

há muito tempo vêm sendo registrados na literatura em todas as partes do mundo (KIEV,

1968; HIGGINS, 1975; WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1975; LIEBAN, 1976;

BIBEAU, 1982; NATIONS; REBHUN, 1988a). Para análise, destacamos especificamente os

setores profissional e comunitário, a seguir:

5.1.1 Setor Profissional

O setor profissional do sistema de cuidado com a saúde da Comunidade do Dendê

limita-se tanto em termos de quantidade como de qualidade do serviço prestado à população

local. Os cuidados de saúde são direcionados às ações primárias em saúde, os quais estão

disponíveis em um centro de saúde vinculado à secretaria de saúde da prefeitura de Fortaleza,

e em uma instituição filantrópica intitulada Núcleo de Atenção Médica Integrada (NAMI),

pertencente à universidade privada.

Embora o Programa Saúde da Família (PSF) tenha sido criado desde 1998, como

uma estratégia de ações de atenção primária em saúde, até o momento, o centro de saúde da

prefeitura, situado próximo à Comunidade, não desenvolve nenhuma dessas ações

relacionadas ao PSF. A responsabilidade dessas ações está a cargo da instituição filantrópica,

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considerada como unidade de referência de saúde do município de Fortaleza.

Conseqüentemente a instituição, conhecida como NAMI, tem como missão desenvolver as

ações no cuidado primário de saúde direcionada, particularmente à saúde da população da

Comunidade do Dendê.

Esse núcleo presta assistência de maneira integral e interdisciplinar aos moradores

dessa Comunidade, visando à melhoria da qualidade de vida deles; além disso, promove um

ambiente de aprendizagem aos alunos da área da saúde da referida universidade. O

atendimento à saúde integra o Sistema Único de Saúde (SUS) do município de Fortaleza. No

NAMI, são realizadas, aproximadamente, 2.500 consultas médicas mensais às famílias da

comunidade, distribuídas entre as clínicas de pediatria (648), ginecologia/obstetrícia (400),

clínica médica (700), neurologia (11), otorrinolaringologia (252), ortopedia (33), cardiologia

(175), cirurgia (50) e consulta de enfermagem (927), a maioria dessas consultas resulta em

prescrições medicamentosas, cujos medicamentos são distribuídos gratuitamente à referida

população.

Quando os moradores precisam de serviços de saúde mais especializados como

realização de um exame de Raio-X ou de uma ultrassonografia, eles saem da Comunidade por

encaminhamentos dos serviços de saúde oficiais existentes no local. Ou então, recorrem a

outros serviços de saúde disponíveis em outros bairros como os hospitais, emergências e

maternidades, tanto públicos como privados. Para isso, os moradores acabam usando algum

meio de transporte (ônibus, táxi, bicicleta, carona, etc.) ou caminham longas distâncias até

chegar nos locais desejados.

Considerado como estratégia de ação básica em saúde, o atendimento ambulatorial

de pediatria, disponível nos dois serviços de saúde oficiais, apresenta demandas sempre

maiores que as ofertas, bem como restrições terapêuticas como a oferta de medicamentos à

população infantil. Devido a essa deficiência no atendimento e na carência de recursos

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disponíveis, as mães desenvolvem estratégias de prevenção à saúde de seus filhos e de sua

vizinhança, bem como buscam atendimento médico para elas obterem medicamentos, que

posteriormente podem ser utilizados por seus filhos ou vizinhos que necessitarem desses

medicamentos. Porém, as mães não apresentam esses problemas, descrevem-nos como

‘sintomas que garantem atendimentos e medicamentos’.

Uma análise mais centrada na ação das mães que falam mais profundamente em

uma ‘necessidade cultural’ instalada em uma ‘necessidade cultivada’, na medida em que ela é

satisfeita pelo serviço de saúde. Isso nos conduz em legitimar uma relação entre o serviço

médico e a evolução dos consumos médicos e resulta em uma produção de serviços médicos

que produz necessidades a esses serviços. Pode ser traduzida na criação de novas doenças ou

novas categorias de sintomas aprendidas pelos pacientes, divulgando-as e ensinando a

linguagem na qual elas podem ser expressas, assinalando assim sua presença no serviço de

saúde (BOLTANSKI, 1984, p.178).

Nesse eixo de reflexão, os medicamentos representam uma apropriação de

recursos terapêuticos de forma simbólica, nos quais elas buscam usá-los em momentos reais

quando necessitam das técnicas terapêuticas (LEFÈVRE, 1991).

5.1.2 Setor Comunitário

O setor comunitário proporciona várias formas de cuidados com a saúde para os

moradores da Comunidade do Dendê. Devemos contar com os agentes terapêuticos, incluindo

rezadeiras urbanas, raizeiros urbanos, ‘farmacistas’, líderes evangélicos e espirituais.

Destacamos, também, as parteiras tradicionais que desempenharam um papel fundamental no

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cuidado com a saúde da criança, através das práticas de cuidado no pré-natal, durante e após o

parto. Algumas rezadeiras identificadas são parteiras tradicionais que desenvolveram suas

funções como parteiras na antiga casa de parto da Comunidade.

As rezadeiras urbanas são caracterizadas, neste estudo, principalmente, por suas

origens no catolicismo popular (LOYOLA, 1984). Os rituais de cura das rezadeiras baseiam-

se no poder da reza e no emprego de plantas medicinais tradicionais durante os rituais

destinados a curar alguns problemas de doenças em crianças como ‘ventre caído’ relacionado

à diarréia, enquanto outros problemas podem atingir tanto criança como adulto: quando em

criança o ‘quebrante’ está relacionado à falta de apetite, febre, moleza e fontanela baixa,

‘cobreiro’ relaciona-se com a transmissão de microrganismos presentes no chão onde passa a

criança pequena, quando anda de pés descalços ou engatinha sobre o chão, e a ‘espremedeira’

está ligada ao problema intestinal em crianças muito pequenas, consideradas crianças de colo.

“A ‘espremedeira’ é um problema que prejudica muito a criança e a gente também. Porque

não pode deixar a criança chorar, porque quanto mais a criança se espreme. Porque a

pessoa não se espreme pra defecar, assim é a criança, aí grita dia e noite. Não deixa nem a

criança dormir nem os pais dormir. Aí abre o umbigo, sangra o umbigo, cresce o umbigo. É

só bem novinha que tem espremedeira. E pra gente adulto também serve. Uma pessoa que

tá com dor de barriga, não tem remédio, aí faz o chá, toma e se cura. Tem outros remédios

que eu ensino. Tem o chá de alho, tem o chá pra espremedeira” (Vicência, 53 anos,

rezadeira urbana).

Uma das normas estabelecidas no processo terapêutico das rezadeiras urbanas com

o intuito de curar o indivíduo ou o animal parte da diferenciação das rezas realizadas entre a

origem da espécie e a idade dos indivíduos envolvidos; sendo assim, é identificada uma reza

específica para as crianças, outra própria para os adultos, diferenciando-as dos animais. Há

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uma flexibilidade do espaço para o ritual de cura que pode ocorrer tanto na casa das rezadeiras

como em outros locais, como a residência do doente.

As rezadeiras da Comunidade apresentam semelhanças, no fato de desenvolverem

a ‘sina’ da reza, por volta dos sete anos de idade. Assim, uma delas percebeu o problema com

essa idade: “Foi assim, eu tava brincando de fazer guisado, de boneca, aí minha mãe contava

que eu fiquei doida, doida, me mordendo, com sete anos”. Outra rezadeira contou-nos: “A

minha mãe ensinava e eu com sete anos ali no meio das rezadeiras, cantando que só uma”.

As práticas terapêuticas exercidas pelas rezadeiras urbanas são reconhecidas como

legítimas no setor Comunitário de saúde da Comunidade do Dendê, e aceitas por seus

praticantes, as mães da Comunidade recorrem a esse agente social com bastante freqüência,

principalmente quando seus filhos ainda são bebês. Tais práticas resistem ao tempo, embora

tenham mudado de formato, as rezadeiras urbanas tentam manter um vínculo com o passado.

No entanto, ocorre um alinhamento e não um confronto com o modelo biomédico considerado

hegemônico: “Tem muitas delas que vão pro médico e o médico diz, olha é micose. Que virou

hoje qualquer coisa, mas as mães vêm pra cá e pede explicação, eu pego e dou”.

Na relação entre rezadeiras e pacientes, Oliveira (1998) destaca que as rezadeiras

são capazes de influenciar o comportamento dos pacientes e ressaltar a importância de suas

atitudes no tratamento pela relação de familiaridade com o seu grupo, por isso não nos

surpreendemos quando Vicência afirmou nesse fragmento de narrativa:

“Mulher, tu sai daqui, vai procurar Vicência no Bairro Edson Queiroz, que ela é uma curandeira muito boa, seu filho vai se curar com ela (...) Aí ela chegou aqui; aí botou na radiadora, aí procurando a mão do menino, aí peguei e fui, quando eu cheguei lá o carro parado com a mulher dentro (...) Aí ela disse: “Cura meu filho que eu lhe pago bem pago” Aí eu disse não curo por dinheiro, agora a recompensa vem de vocês, mas por dinheiro eu não curo, porque Deus só andou curando e ele não cobrou, aí foi eu curei (...) Aí foi comecei a reza, aí foi no outro dia o menino veio (...). Aí o coronel disse “Dona Vicência meu filho tá bem dizer curado, porque não criou negócio de bicho nem nada e as feridas já tá sarando” (Vicência, 53 anos, rezadeira urbana).

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Tomamos como exemplo a história da rezadeira Vicência com vistas a esclarecer

sua formação e atuação na Comunidade, bem como a identificação e descrição dos problemas

respiratórios que surgem nas crianças: Vicência, de 53 anos, nasceu em Itaitinga, município

próximo à Fortaleza, migrou para a Comunidade, vinda de outro assentamento urbano, o

assentamento da Cidade 2000. Do ponto de vista religioso, considera-se espírita, mas não

praticante. Foi levada aos terreiros de Umbanda no início de suas manifestações, quando ainda

era criança “eu sentia muita coisa, uma coisa ruim por dentro de mim, umas vozes. Mas nada

de voz pra fazer o mal, só pra fazer o bem. Umas vozes, e voz foi essa que Deus me deu, essa

sina, e eu tô cumprindo até hoje”.

Seus familiares e vizinhos viam essas manifestações como uma doença mental ou

outras questões envolvidas com religião. Inicialmente, foi levada a um terreiro de Umbanda

por um vizinho, sendo diagnosticada pela entidade da Umbanda como médium de ‘nascença’,

que precisava se desenvolver, classificaram-na como curandeira. Seu processo de iniciação

ocorreu em casa mesmo, por meio de rezas com seus irmãos e sua mãe, que aceitou a sina da

filha, “Tá bom, se a sina dela veio pra isso, tem que ser”.

Na sala de sua casa, ela costuma receber seus clientes locais e até de outros

bairros. Há um altar com imagens de santos da igreja católica. É conhecida como rezadeira e

não curandeira, embora para ela não faça distinção entre as duas denominações. Segundo

Loyola (1984, p. 91), os curandeiros e as rezadeiras estão ligados à tradição católica ou, mais

precisamente, ao catolicismo popular, no qual se define como especialista em cura e não como

agente de alguma religião, prevalecendo a função terapêutica, talvez seja por isso que

Vicência não reconheça a diferença entre as duas especialidades da medicina popular.

A narrativa de Vicência repete o discurso sobre a morte por doenças respiratórias

infantis, presente também nos serviços de saúde e nos documentos institucionais para

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enfrentar esse problema, “esse negócio, que morre muita gente por causa disso...”

(ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD, 1980).

Para descrever um dos problemas respiratórios infantis mais sérios, considerados

por ela, a pneumonia é percebida como uma alteração no comportamento da criança como o

choro, sugere ainda que esse problema não seja resolvido somente por ela, mas reconhece sua

capacidade em diagnosticá-lo e não de tratá-lo exclusivamente: “eu digo se a criança tiver

com pneumonia, que ele tá chorando, tá lutando com ele, é alguma dor, não sei onde é a dor

que ele tá sentindo, eu tenho certeza que ele tá com uma dor. Eu pego teu filho, boto no meu

colo, fico observando ele assim, toco nele todinho, onde doer que a dor tá colocada e eu rezo

no seu filho, quando acabar eu digo: ele tá com começo de pneumonia, a senhora leve pro

médico; quando chega lá, o médico examina e dá certo de pneumonia”.

Apesar da identificação e descrição do amplo quadro nosológico das rezadeiras

urbanas, que também incluem as doenças respiratórias infantis, alguns desses problemas não

podem ser curados somente com o recurso da técnica terapêutica tradicional - a reza, elas

incrementam outras técnicas terapêuticas tradicionais como a aplicação de plantas medicinais,

que para elas são mais eficazes. No entanto, o procedimento terapêutico deve ser

recomendado por elas, que se fundamentam na noção do modelo subtrativo proposto por

Laplantine (1986), no qual ocorre eliminação de líquidos que saem do ‘peito’ da criança por

meio do uso de lambedor, preparado pelas rezadeiras. Embora ela reconheça que também é

preciso realizar uma combinação entre os recursos médicos e espirituais, particularmente, no

caso da pneumonia “porque a pneumonia cura é com os remédios antibióticos (...). Mas a cura

tem que fechar, quando o médico der alta, ela volta aqui pra eu fechar tudo”.

O processo de cura das doenças respiratórias infantis é algo controverso, mas de

acordo com a gravidade da doença reconhece-se que alguns signos podem ser curados, em

decorrência do crescimento da criança ou estão ligados a outros sintomas, como explica

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Vicência “se o cansaço for comum, quando ele completa sete anos se acaba. Se acaba por si

mesmo. Ninguém num dá remédio nem nada. Mas, quando é um cansaço que vira pro

intestino, aí não”.

Entre os diversos agentes terapêuticos do setor comunitário, não ocorre uma

disputa de espaço, no entanto, é visível um poder simbólico de integração moral ao modelo

hegemônico do setor profissional como no caso das rezadeiras urbanas (BOURDIEU, 2004).

A categoria ‘farmacista’ corresponde ao proprietário da farmácia comercial, que

orienta a população tanto sobre os problemas de saúde como os procedimentos terapêuticos,

quanto ao uso de medicamentos alopáticos. A formação dessa categoria, em geral, adquire o

conhecimento da população com finalidade mercantilista:

“Tinha uma experiência com medicamentos desde os quatorze, quinze anos, que eu trabalho com medicamentos; meu pai já teve distribuidora, desde farmácia e mesmo depois a gente tendo mudado de ramo de atividade eu continuei trabalhando com medicamento, como vendedor por ultimo como representante e agora como dono de farmácia, farmacista... Orientar mesmo é no caso receber a receita do, do paciente né e poder atender de acordo com a receita e em alguns casos como o medicamento da linha de ATC, o medicamento que não existe prescrição médica também a gente pode orientar e operar nessa parte” (Manuel, 23 anos, farmacista).

Na Comunidade existe uma farmácia comercial, quando os serviços públicos da

saúde não atendem e nem resolvem os problemas das pessoas que buscam esses serviços, o

próprio setor profissional reconhece que a carência estrutural do serviço de saúde pode

estimular a prática da automedicação (MENÉNDEZ, 1992).

Se bem que o serviço de farmácia está ligado ao setor profissional, reconhecemos

a existência de uma categoria com posição intermediária entre o sistema de saúde oficial e não

oficial, o farmacista, em outros estudos, é reconhecido como farmacêutico-comerciante, que

favorece ao sistema oficial de saúde (LOYOLA, 1984).

Além da farmácia comercial e oficial, encontramos na Comunidade um outro tipo

de serviço terapêutico reconhecido pelos moradores como ‘farmácia do mato’, não

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consideramos um serviço oficial de saúde do setor profissional, mas vinculamos ao setor

comunitário em saúde. Embora muitos moradores busquem esse serviço como mais um

recurso terapêutico local, que encontram à sua disposição plantas medicinais tradicionais

populares e reconhecidas pela própria Comunidade. A responsabilidade desse serviço fica a

cargo da raizeira urbana Aninha, que obteve essa formação a partir de um curso de

capacitação, fornecido pela universidade privada, com o objetivo de despertar o interesse em

lidar com as plantas medicinais e preparar lambedores caseiros e chás para fins comerciais.

A história de Aninha procura compreender esse tipo de serviço disponível na

Comunidade. Há uma placa na fachada de sua casa identificando-a como ‘farmácia do mato’.

Ela é natural de Fortaleza, tem 33 anos, viúva, comercializa esses produtos há muito tempo,

cursou até a segunda série do ensino médio. Há 27 anos mora na Comunidade, em uma casa

de quatro cômodos com seus os pais, um irmão e uma filha de treze anos. A prática religiosa

de Aninha é a Umbanda, buscou essa religião porque sua filha, aos sete anos, manifestou um

problema que não foi resolvido pelo serviço médico oficial, considerado como um problema

espiritual pelos membros da família. Sua filha apresentava um comportamento agitado,

inesperadamente gritava, recusava-se a interagir com outras crianças e chorava o tempo todo.

Aninha é muito calma, mas em alguns momentos se exalta, principalmente, quando menciona

a situação do local onde mora, não do ambiente familiar, mas da vizinhança que manifesta

para ela uma insegurança. Lembra do nascimento de sua filha como um momento de solidão,

ela tinha 19 anos:

“Ave Maria! É como eu, eu me aperreie lá no hospital sozinha. Foi de madrugada e Deus em casa. Em cima da cama, se não fosse a mulher que tava assim. A mulher viu, era minha primeira menina, né? Foi lá no Hospital Batista, o médico veio uma vez me olhar à noite, fazer exame de toque né, aí voltou e disse que eu não ia ter a menina. Ia ter só no outro dia, eu acreditei nele. Passei sete dias sofrendo dela. Aí, veio uma dor horrível que foi o jeito eu me espremer e ele não tava lá. Já tinha descido tava lá embaixo merendando, não sei por onde era. Uma mulher que ia fazer cesárea, ainda bem que ela não tava sentindo dor. Aí ela desceu, foi obrigada descer pra ir buscar o médico lá embaixo. Quando ele chegou, a menina já tava saindo, aí ele não contou conversa, mandou a assistente me levar para outra sala e ela foi me

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empurrando e eu segurando pra menina num descer mais me vendo de dor e ela me empurrando, quando eu me sentei na cadeira que ele disse abra as pernas, não deu nem tempo eu botar aqui, as pernas aqui, ele aparou a menina e a menina desceu. Ele passou até um carão nela. Ele disse, olha se eu soubesse que a paciente já tava neste estado não tinha mandado tu trazer ela, era pra ter me chamado para eu ir lá, atender ela lá mesmo no quarto. Se a criança tivesse caído no chão, ia processar o hospital e eu também. Aí, quer dizer, eu praticamente tive ela bem dizer só” (Aninha, 33 anos, raizeira urbana).

Seu marido morreu quando sua filha tinha um ano e dez meses de idade, eles

moravam em uma casa próxima da sua mãe. Após a morte do marido, voltou para a casa dos

pais. Precisava trabalhar e não tinha com quem deixar a filha e até que ela completasse sete

anos, trabalhou em vários locais, desde agente sanitarista da extinta SUCAM, serviços gerais

em uma construtora até doméstica. Quando sua filha começou a manifestar os problemas de

comportamento, Aninha deixou de trabalhar fora e começou a desenvolver algumas atividades

que não exigissem muito de seu afastamento, como vendas de bijuterias pelo próprio bairro.

Por fim, participou de um curso promovido pela universidade privada para preparação de

saneantes (desinfetantes e água sanitária) e preparação de remédios caseiros à base de plantas,

passou a produzir e comercializar com seu pai esses produtos e hoje, a atividade com a

preparação de produtos à base de plantas medicinais é seu grande comércio.

Há também, no local, outro raizeiro urbano, é um profissional que desenvolve sua

atividade como feirante, que apresenta uma banca na feira semanal, tem variedades de plantas

medicinais de uso popular que os moradores adquirem para uso próprio. Não realizou nenhum

curso de preparação para lidar com plantas, sua formação ocorreu pelo seu interesse em

observar as plantas e passou a cultivá-las, desde sua infância.

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5.2 Identificação, Descrição e Análise dos Signos dos Moradores frente às Doenças

Respiratórias Infantis

Merleau-Ponty (1991) afirma que os signos aclamam por um sentido diante do

contexto em que esses não são postos à parte, pois eles nada mais são senão a maneira pela

qual aqueles se comportam, um em relação ao outro, e pela qual se distingue um do outro.

Nesse sentido, devemos compreender o movimento da fala diferenciado e articulado, bem

como sua gesticulação.

A categoria empírica ‘problema respiratório’ foi identificada por todos os

informantes como referência para doença respiratória infantil, a qual foi referenciada para

identificar todas as outras categorias etnográficas e seus significados a partir dos diferentes

comportamentos (signos), tanto das crianças como dos adultos que experimentaram ou

experimentam esses problemas desde a infância até a fase adulta, os quais receberam ou não

os cuidados tanto do setor profissional como do setor comunitário.

As categorias empíricas, neste estudo, foram compreendidas e descritas por meio

da construção e sistematização do modelo explicativo popular das doenças respiratórias

infantis, em que a doença-processo, proposta por Langdon (1995), foi empregada para

reconhecer os sintomas, descrever o diagnóstico, bem como escolher e avaliar o tratamento.

De outro modo, a doença-experiência dos problemas respiratórios é explicada como um

processo subjetivo, construída por contextos socioculturais e experienciados pelos informantes

da Comunidade. Foram identificadas e descritas doze categorias empíricas diferentes dos

comportamentos (signos) das doenças respiratórias infantis, presentes na Comunidade do

Dendê, porém apenas uma categoria foi identificada e descrita em adultos, a categoria sopro.

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Essas categorias compõem um glossário popular dos problemas respiratórios

infantis da Comunidade do Dendê, apresentados no Quadro 5. A descrição a seguir sumariza

os signos dos sujeitos que enfrentam problemas respiratórios infantis no cotidiano da

Comunidade:

1. Tosse cheia: é um signo de problema respiratório, caracterizado pela ‘tosse

muito forte’, ‘tossezinha’, ‘tosse cheia’. A mesma pode ser uma alteração orgânica no corpo,

como o movimento de produzir tosse e secreção, em que altera o movimento respiratório da

pessoa. Reconhecida pelos informantes-chave como um problema que exige ajuda tanto do

setor comunitário (técnicas terapêuticas tradicionais como preparações de lambedores e chás

caseiros à base de plantas medicinais) como do setor profissional (medicamentos alopáticos

como xaropes) com a finalidade de eliminar o catarro e parar a tosse. Descrita no início de

muitos problemas respiratórios como gripe, cansaço, asma e pneumonia. Pode afetar tanto

crianças como adultos, especificamente, entre as crianças, a tosse conduz a uma atenção maior

por parte dos pais, enquanto a tosse cheia é sinal de que é preciso estabelecer uma ação de

maior cuidado.

2. Tosse seca: é um signo de problema respiratório, caracterizado pela ‘baba que

fica no peito’. A mesma pode ser uma alteração orgânica no corpo, como o movimento de

produzir a tosse, em que altera o movimento respiratório da pessoa. Reconhecida pelos

informantes-chave como um problema que exige ajuda do setor comunitário (técnicas

terapêuticas tradicionais como preparações de lambedores e chás caseiros à base de plantas

medicinais) e do setor profissional (medicamentos alopáticos como xaropes para reduzir

tosse). Descrita no início do cansaço. Pode afetar particularmente as crianças, a tosse conduz a

uma atenção maior por parte dos pais, a tosse seca é sinal de que é preciso estabelecer um

tratamento de imediato por eles.

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3. Falta de ar: é um signo de problema respiratório, caracterizado por uma

sensação do ambiente ‘abafado’ que pode desencadear o cansaço. O mesmo pode ser uma

alteração orgânica no corpo, como a dor psicológica ou até espiritual. Reconhecida pelos

informantes-chave como um problema que exige ajuda do setor comunitário (técnicas

terapêuticas tradicionais como reza das rezadeiras urbanas) e do setor profissional

(medicamentos alopáticos e serviço médico oficial). Descrita no início de muitos problemas

respiratórios graves como a asma e cansaço. Pode afetar tanto crianças como adultos,

especificamente entre as crianças, a falta de ar conduz a uma atenção maior parte dos pais.

4. Sopro: é um signo de problema respiratório, caracterizado por uma sensação

corporal de aperto, desencadeada pelo cansaço. O mesmo pode ser uma alteração orgânica no

corpo, como a dor no peito. Reconhecida pelos informantes-chave como um problema que

exige ajuda do setor profissional (serviço médico oficial). Descrita no início de um problema

respiratório grave como a asma. Atinge somente os adultos que sofrem de asma e conduz a

uma atenção maior por parte dos serviços médicos.

5. Pulmão: é um signo de problema respiratório, caracterizado por uma alteração

orgânica no pulmão ou pode ser também estabelecida por um rompimento de um laço

familiar. Reconhecido pelos informantes-chave como um problema que exige ajuda do setor

comunitário (técnicas terapêuticas tradicionais como reza das rezadeiras urbanas) e do setor

profissional (serviço médico oficial). Descrito no início de um problema respiratório como

tuberculose ou pneumonia. Pode afetar tanto crianças como adultos, especificamente entre as

crianças, o ‘pulmão’ é o órgão que exige uma atenção maior por parte dos pais e familiares.

6. Catarro: é um signo de problema respiratório, caracterizado por uma alteração

orgânica no corpo, ou seja, o ‘corpo inflamado’. Reconhecido pelos informantes-chave como

um problema que exige ajuda do setor comunitário (técnicas terapêuticas tradicionais como

reza das rezadeiras urbanas) e do setor profissional (medicamentos alopáticos e serviço

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médico oficial). Descrito no início de muitos problemas respiratórios como gripe, cansaço,

asma e pneumonia. Pode afetar tanto crianças como adultos, especificamente entre as crianças,

o catarro exige uma atenção maior por parte dos pais.

7. Chiado no peito: é um signo de problema respiratório, caracterizado por uma

alteração orgânica no corpo, ou seja, o ‘peito chia de catarro’. Reconhecido pelos informantes-

chave como um problema que exige ajuda somente do setor profissional (medicamentos

alopáticos e serviço médico oficial). Descrito no início do cansaço. Pode afetar tanto crianças

como adultos, especificamente entre as crianças, o chiado no peito demanda uma atenção

maior por parte dos pais.

8. Gripe: é um problema respiratório comum, caracterizado pelo contato com

outras pessoas, percebe-se uma alteração física, como a tosse. Reconhecida pelos informantes-

chave como um problema que exige ajuda somente do setor comunitário (ajuda por parte da

rede social como família e vizinhos e técnicas terapêuticas tradicionais como preparações de

lambedores e chás caseiros à base de plantas medicinais). Descrita como um dos problemas

respiratórios mais comuns. Pode afetar tanto crianças como adultos, especificamente entre as

crianças, a gripe demanda uma atenção por parte dos pais.

9. Cansaço: é um problema respiratório grave, caracterizado por uma alteração

orgânica no sistema respiratório, ou seja, segundo os informantes-chave, o ‘forgo fica

acelerado’ e ‘chiado no peito’. O mesmo provoca uma alteração orgânica, como respirar com

dificuldade, percebe-se na criança uma mudança comportamental, ela fica quieta e pode levar

à morte da pessoa, mesmo que ela receba cuidados específicos. Reconhecido pelos

informantes-chave como um problema que exige ajuda do setor comunitário (técnicas

terapêuticas tradicionais como preparações de lambedores e chás caseiros à base de plantas

medicinais) e do setor profissional (medicamentos alopáticos e serviço médico oficial).

Descrito no início de um problema respiratório grave como a asma. Pode afetar tanto crianças

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como adultos, especificamente entre as crianças, o cansaço demanda uma atenção muito maior

por parte dos pais.

10. Pneumonia: é um problema respiratório caracterizado por uma alteração

biológica, como infecção, por descuido ou castigo da pessoa. A mesma pode ser uma alteração

orgânica no corpo, como a dor, febre e alteração na respiração, ficando mais rápida,

psicológica ou até espiritual. Reconhecida pelos informantes-chave como um problema que

exige ajuda do setor comunitário (técnicas terapêuticas tradicionais como preparações de

lambedores e chás caseiros à base de plantas medicinais e reza das rezadeiras urbanas) e do

setor profissional (medicamentos alopáticos e serviço médico oficial). Descrita como um dos

problemas mais graves entre os problemas respiratórios. Pode afetar tanto crianças como

adultos, especificamente entre as crianças, a pneumonia demanda uma maior atenção por parte

dos pais.

11. Asma: é um problema respiratório muito grave caracterizado por uma

alteração biológica, como uma infecção, por descuido ou castigo da pessoa. Reconhecida

pelos informantes-chave como um problema que exige ajuda do setor comunitário (técnicas

terapêuticas tradicionais como preparações de lambedores e chás caseiros à base de plantas

medicinais e reza das rezadeiras urbanas) e do setor profissional (medicamentos alopáticos e

serviço médico oficial). Descrita como um problema respiratório que não tem cura, mas tem

tratamento para controlar as ‘crises’. Pode afetar tanto crianças como adultos, especificamente

entre as crianças, a asma demanda uma atenção muito maior por parte dos pais. No adulto esse

problema originou-se ainda na infância.

12. Bronquite: é um problema respiratório muito grave caracterizado por uma

alteração biológica, como ‘catarro recolhido’. Reconhecida pelos informantes-chave como um

problema que exige ajuda somente do profissional (serviço médico oficial). Pode afetar tanto

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crianças como adultos, especificamente entre as crianças, a bronquite demanda uma atenção

muito maior por parte dos pais.

Quadro 5: Glossário Popular dos Problemas Respiratórios Infantis

Signos Descrições

Tosse cheia

Tosse seca

Falta de ar

Pulmão

Catarro

Chiado no peito

Gripe

Cansaço

Pneumonia

Asma

Bronquite

Tosse cheia de catarro; tossezinha; peito cheio;

Tosse sem catarro;

Dificuldade de respirar; angústia; vontade de chorar; o fôlego pára; o peito dói;

Pulmão ver com a chapa; pulmão cheio de ‘coisa de problema de pus’;

Catarro pregado; nariz escorrendo;

Peito faz o som de uma caixa de som velha;

Tosse;

Fôlego fica acelerado; chiado no peito;

Tristeza; dor; medo da morte; gripe mal curada; respiração fica rápida;

Cansaço chega a piar;

Catarro recolhido; catarro junto, agarrado.

Esses signos se aproximam da noção de corpo como espaço de doença, segundo o

pensamento de Foucault (1998), quando afirma existirem diferentes versões de significados

tanto para o doente, no processo de desencadear os sintomas, como para os agentes

terapêuticos, quando procuram os sinais, ao examinarem o corpo do doente e encontrarem

formas visíveis da doença.

Os estudos de Hudelson et al. (1995) e de Hussain et al. (1997), embora realizados

em locais distintos como Bolívia e Paquistão, apontam para resultados semelhantes, como a

categorização das pessoas que identificam a severidade da pneumonia como a asma e a

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bronquite. Entretanto, os referidos estudos analisam somente uma categoria de doença, a

pneumonia, diferente do nosso estudo que identificou uma pluralidade de signos relacionados

aos problemas respiratórios infantis. Mas, evidenciamos uma aproximação entre os resultados

dos dois estudos por identificarmos a asma e a bronquite como manifestações de severidade

para a pneumonia.

As categorias ‘doença respiratória’ e ‘doença do pulmão’ são categorias de

linguagem médica, consideradas universais no modelo explicativo biomédico, entretanto,

essas categorias não foram reconhecidas entre os informantes-chave neste estudo. Na

biomedicina, a classificação da doença, segundo Foucault (1998, p. 218), tende a considerar

uma reação orgânica de um órgão defeituoso que resulta em um sofrimento orgânico ou em

um funcionamento anormal do respectivo órgão, especificamente nesse caso, o órgão seria o

pulmão associado ao sistema respiratório, reforçando a categoria da doença centrada na

medicina fisiológica.

Assim, neste estudo, não descrevemos a classificação das doenças respiratórias

infantis isoladamente como um sofrimento orgânico, sem considerarmos que essas doenças

fazem parte do cotidiano dos sujeitos que sofrem das respiratórias. Entendemos que essa

descrição não pode ser extraída sem a experiência a partir dos valores dos signos, da sua

estrutura lingüística, do caráter constitutivo da espacialidade corporal e da sua importância

para o próprio sujeito e seu grupo (FOUCAULT, 1998).

Kleinman (1988) diz que o significado é inevitável, sobretudo pode ser ambíguo e

sua conseqüência ser significativamente modificada por modificar o lugar da pessoa no

sistema cultural. Sendo assim, pode não ser legítimo que um sintoma seja visto com uma

atenção particular em um determinado contexto histórico e cultural, mas sim os significados

dos sintomas, como ele tem notado em alguns de seus estudos, os significados dependem do

conhecimento local sobre o corpo e sua patologia.

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Verificamos, neste estudo, a existência de diferentes dimensões (biológica,

emocional, corporal e comportamental) de significados para a pessoa doente por problemas

respiratórios. Os tipos de significados das doenças são considerados, apropriadamente,

segundo Kleinman (1988), como uma superfície de denotações, que é ostensiva com

significação convencional dos sintomas, por exemplo, a palpitação como noção de aflição.

Para o autor, há uma tendência natural para atender como auto-evidência de significância.

Mas, esse natural depende, em parte, do entendimento da cultura em particular e não diverge

entre os grupos sociais.

A dimensão biológica dos significados de não sentir-se bem frente aos problemas

respiratórios infantis relaciona-se com a tosse seca, fôlego acelerado e cansaço. Como

interpretação de uma sensação de falta de ar, respiração acelerada e chiado no peito,

respectivamente. Essa dimensão é muito valorizada pelo setor profissional, particularmente

pelo serviço médico oficial.

A dimensão emocional dos significados de não sentir-se bem frente aos problemas

respiratórios infantis relaciona-se à angústia, tristeza e medo da morte. Como interpretação de

uma sensação e desespero de querer respirar e não conseguir. “É uma falta de ar que dá, você

procura assim forgo (fôlego) e não encontra, sabe. Quanto mais você sente que vai morrer”.

A dimensão corporal dos significados de não sentirem-se bem frente aos

problemas respiratórios infantis relaciona-se com a dor e a sensação corporal de aperto. Como

a interpretação da sensação de dor ao respirar e não conseguir realizar o processo mecânico de

respirar.

A dimensão comportamental dos significados de não sentirem-se bem frente aos

problemas respiratórios infantis relaciona-se com a vontade de chorar. Como a interpretação

da sensação de falta de ar ao respirar ou dificuldade em respirar, manifestadas nas crianças.

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Os significados se aproximam do pensamento de Kleinman (1988), nos quais os

significados se apresentam como um problema do paciente, da família e dos agentes

terapêuticos, e cada unidade formula os seus próprios significados. Por outro lado, a visão

individual de cada ator de uma sociedade converge na realidade social do contexto, em

particular, em que são criadas e descobertas as experiências dos significados pelo processo de

encontro das práticas de resistência do mundo real, com seus obstáculos, devido à distribuição

desigual dos recursos terapêuticos, imprevisível e incontrolável problema de vida descrito

neste estudo.

5.3 Modelo Explicativo das Doenças Respiratórias Infantis

Haja vista o local em estudo reconhecer vários signos diferentes para os problemas

respiratórios infantis, construímos uma proposta de modelo explicativo para essa doença a

partir do modelo formulado por Kleinman (1980), seguindo os seguintes elementos:

causalidade, transmissão, manifestações e gravidade, que nortearam a composição complexa

do modelo explicativo popular das doenças respiratórias infantis da Comunidade do Dendê.

5.3.1 Causalidade

No âmbito deste estudo, foi considerado o modelo classificatório da etiologia da

doença, proposto por Laplantine (1986), no qual este autor classifica em dois modelos:

endógeno e exógeno. O modelo endógeno refere-se à compreensão de causa que se exprime,

ao mesmo tempo, nas noções de temperamento, de constituição, de disposições e

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predisposições, de tipo caráter ou astral (os signos do zodíaco), de natureza, de organismo, de

campo, de hereditariedade, de patrimônio genético, de meio ‘interior’, ou seja, as diversas

secreções glandulares, bem como o sangue e de recurso de autodefesa. Enquanto o modelo

exógeno refere-se à causa na qual pode ocorrer uma relação do ser humano com o meio físico:

dá-se pela influência das condições sociais; influência dos planetas; influência geográfica,

climática e meteorológica; ou dá-se pela relação do ser humano com o meio químico e

bioquímico.

De acordo com a classificação da etiologia popular das doenças respiratórias

infantis, o modelo exógeno foi predominante nas narrativas dos informantes-chave,

particularmente entre as mães. Uma das influências mais evidenciada desse modelo exógeno

foi a condição sócio-econômica relatada como: falta de alimentação, ausência de higiene do

domicílio e ausência de saneamento ambiental. Uma das informantes narrou o seguinte:

“Eu acredito que se a gente tivesse o saneamento, principalmente o esgotamento sanitário, eu acho que muita coisa aqui começava a evitar, por exemplo, doença de pele, cansaço. Também é porque, você sabe né? Que tudo vem no vento, a gente não sabe que tipo de micróbio tá circulando dentro de uma comunidade dessa, né?” (Maria, 47 anos ex-líder comunitária).

Enquanto outras mães relataram as condições sanitárias e a influência climática

frente ao ambiente em que vivem, como a ausência de saneamento e a ausência de ventilação

do ambiente, que podem ser demonstradas pela narrativa, a qual expressa uma noção sanitária

da doença respiratória “que tudo vem no vento, a gente não sabe que tipo de micróbio tá

circulando dentro de uma comunidade”. Enquanto outra narrativa relaciona a causa da doença

respiratória infantil aos aspectos climáticos: “num ando em água quente, num como coisa

gelada e tô doente? Às vezes, uma poeirinha de nada, até mesmo disse que uma poeira do

ventilador, a gente já fica doente. Que a gente pode ir limpar a casa dez vezes, pode abrir o

ventilador que ali aparece sujeira no ventilador e do ventilador vai pro nariz da gente, então na

criança mesmo. Tem muita criança por aí que não usa o ventilador”.

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Tais evidências coincidem com o pensamento de Boltanski (1984), ao afirmar que

causas como categorias climáticas são essencialmente muito utilizadas para se falar de

doenças pulmonares ou rinofaríngeas, mas raramente podem ser utilizadas para justificar

qualquer outra doença. Esse autor as justifica pelo princípio da explicação universal, que esse

esquema é utilizado em qualquer caso, quando falta outra explicação e sem que o informante,

aparentemente, sequer tente estabelecer um elo lógico entre o frio, o calor e as doenças das

quais se supõe que eles sejam a causa.

Por outro lado, outros informantes relacionaram à etiologia popular dos problemas

respiratórios com os fatores psicológicos, caracterizando o modelo endógeno e,

particularmente, esses fatores foram constatados mais em adultos:

“Tem hora que eu tô boazinha, tem hora que me bate uma tristeza tão grande, uma angústia, uma coisa assim ruim, sabe, eu choro, choro, dá uma vontade de andar, uma vontade de sumir e dá um ponto final na minha vida, aí tem hora que vem assim, eu sinto falta de ar, muita falta de ar eu sinto” (Polina, 32 anos, mãe de Cláudio).

Quando discriminamos os signos específicos percebemos uma variação quanto ao

modelo etiológico, no caso das gripes consideradas as mais comuns, foram classificadas pelo

modelo etiológico popular como exógenas, influenciadas pelos fatores ambientais como

temperatura elevada, ventilação natural ou artificial, condições climáticas e sanitárias.

Precisamente, os fatores ambientais relatados foram: ‘sol quente’; ‘época de chuva assim a

frieza’; ‘tempo mesmo’; ‘muitas águas colifecais correndo a céu aberto’; ‘tudo vem no vento’;

‘da fumaça’; ‘quentura demais na pele’; ‘vem da frieza’ e ‘pega da poeira quente’.

As formas graves das doenças respiratórias podem estar relacionadas ao cansaço e

à pneumonia, essas foram classificadas como modelo endógeno, devido à hereditariedade, já

citada por algumas mães, as quais percebem que tais fatores estão presentes nos respectivos

problemas respiratórios. Além disso, alguns moradores relacionaram a pneumonia a outras

doenças respiratórias como a gripe, classificada também como um modelo endógeno.

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Algumas rezadeiras urbanas afirmaram que a pneumonia é resultado de outras doenças

respiratórias infantis como a gripe “a criança tem uma gripe (...), aparece já com o problema

de uma dor, a pneumonia dá disso, gripe mal curada”.

Nesses fragmentos de narrativas, percebemos que a etiologia popular das doenças

respiratórias infantis compreende uma influência multicausal com a combinação entre os

modelos endógeno e exógeno. Assim, podemos refletir sobre as diversas dimensões da

etiologia popular dessas doenças e compreender que sua etiologia apresenta uma noção mais

complexa, conseqüentemente, o modelo explicativo popular das doenças respiratórias infantis

está voltado para uma inter-relação entre corpo e ambiente.

Ao contrário dessa evidência, o modelo cultural da biomedicina das doenças

respiratórias infantis é somente influenciado pela dimensão orgânica, sendo predominante a

teoria unicausal. Estudos sobre causalidade das doenças, realizados nessa mesma

Comunidade, identificaram a predominância da teoria unicausal (MOREIRA, 2002).

5.3.2 Transmissão

Para Laplantine (1986), a transmissão das doenças também é classificada como

modelos exógeno e endógeno. O modelo exógeno é representado por uma intervenção

externa, de elemento real ou simbólico, ou seja, uma infecção por microrganismo, espírito

patógeno, fatores ambientais, químicos e bioquímicos. Enquanto o modelo endógeno exprime

uma noção de temperatura, de constituição, de disposição, predisposição e de reação alérgica.

A noção de transmissão fornece importante classificação das doenças respiratórias

infantis e é representada tanto pela doença interna (modelo endógeno) como pela doença

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externa (modelo exógeno). Na doença interna, a hereditariedade vem da família, do pai para

filho, particularmente no caso do cansaço ou asma.

Todos os informantes associaram a transmissão dos problemas respiratórios

infantis aos aspectos externos ou adquiridos. No caso do cansaço, a transmissão pode ser por

fumaça de cigarro, bebida alcoólica, higiene da casa ou saneamento ambiental por parte da

mãe da criança, como “ter uma casa limpa principalmente se nós tivesse uma área, um povo

que alimpasse o bairro, não traria tanta contaminação” e “fosse mais ou menos ratos, barata,

formiga, mosca, onde aparece todas essas doenças”.

Muitos moradores associam essa forma de transmissão dos problemas

respiratórios infantis do modelo exógeno aos aspectos de dimensões sociais e econômicas,

devido aos baixos salários, e na ausência deles quando desempregados, a ausência de

alimentação e a ausência de ajuda institucional por segmentos sociais e educacionais.

Já no caso da pneumonia, os informantes-chave têm como percepção que ‘a

pneumonia pega’, isto no sentido da hereditariedade, de pai para filho, classificando assim

como um modelo endógeno de transmissão.

5.3.3 Manifestações

A febre/febre normal, estalecido/espirradeira/escorre o nariz, tosse com

catarro/tosse sem catarro, gripe, ‘forgo’ acelerado/respiração difícil/falta de ar/aperto no

peito/aperto na garganta/coração acelerado e chiado no peito. Esses sintomas foram

associados pelas informantes aos problemas respiratórios infantis mais comuns.

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Uma mãe explicou que percebe quando sua filha está com problema respiratório,

logo no início das manifestações corporais por coincidir com seus problemas respitarórios “no

primeiro dia era febre normal e uma espirradeira direto, porque eu tenho problema de

estalecido, e ela ficou, eu acho, também, aí ela começou a ‘derrama’, derrama no nariz e

começou a febre” (Aline, 23 anos, mãe de Kaline).

O espaço social da criança pode tornar-se restrito ao seu domicílio, quando surgem

as primeiras manifestações de problemas respiratórios. Uma outra mãe, que lida com crianças

de uma creche da Comunidade, descreve que há uma seqüência de manifestações de

problemas respiratórios infantis que pode impossibilitar o acesso da criança à creche, portanto

constituindo uma relação social do problema respiratório infantil com suas manifestações

iniciais, traduzindo-se em restrições de movimento da criança, como a mãe narra: “frieza, a

gente percebe porque na criança é gripe, e aquele problema de ficar escorrendo o nariz,

começa a tossir e, às vezes, tem até febre e a gente não pode ficar com ela aqui, curando aqui,

porque não tem condições” (Sueli, 48 anos, diretora da creche).

Um pai afirmou que a tosse é a primeira manifestação da gripe, por sua vez,

considera-a como primeiro sintoma de um problema respiratório, que segue sucessivos

sintomas, por conseguinte, confirma-se em um quadro de problema respiratório como: há uma

alteração da respiração, ela fica mais rápida e pode até perder o fôlego, que resulta em uma

manifestação mais grave o ‘cansaço’: “tossiu já é a gripe, chegou a tosse, a gripe acompanhou;

aí o cansaço chegou na hora (...) a gripe acompanha. Ela acompanha a gripe, gripou o cansaço

acompanha (...) Acelera mais a, o ‘forgo’, né, o “forgo” fica acelerado, cansado” (Floriano, 30

anos, pai do Vicente).

Para uma outra informante, uma avó que reafirma que a gripe é o sintoma comum

de problema respiratório e o mais grave deles seria também o cansaço: “quando ela começa a

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gripar, aí ela começa a tossir, aí já começa a cansar, aí fica cansada” (Fabiana, 46 anos, avó de

Viviane).

A descrição do cansaço parte da alteração da respiração como dificuldade em

respirar, relatado por uma mãe:

“Sei logo, a respiração dele fica muito difícil, dificulta muito a respiração dele, começa aí, eu eita! Esse daí vai cansar, aí eu já dou ali, se tiver um lambedor, eu já dou, se tiver uma coisa assim, quando ele começa com a tosse, aquela tosse seca, podes crer que ele vai cansar. Ainda digo assim, esse camarada aí vai amanhecer cansado. É dito e feito, no outro dia ele amanhece cansado, também quando ele começa com a tossezinha dele seca, no outro dia ele amanhece cansado” (Vânia, 24 anos, mãe de Gustavo).

Alguns informantes revelaram que os problemas respiratórios infantis se

manifestam desde a infância como a asma, entretanto a falta de ar é o principal sintoma dessa

manifestação respiratória. Outros informantes associam a falta de ar como um problema

respiratório infantil, independente do tipo da classificação da gravidade do problema, no qual

a emoção ou o medo de morrer ou a sensação de dor poder estar presente pela falta de ar.

Outro signo característico dos problemas respiratórios infantis é a pneumonia, que

se manifesta inicialmente por dores nas costas e, em seguida, desencadeia uma respiração

‘rápida’.

“A dor era tão grande, que ele sentia, chega fazia, respira fundo e rápido, aí assim que eu notei as dores, mandei logo pro médico tirar a dor, disse, tá com uma pneumonia muito grave, operou-se, aí foi pra UTI se operou num dia, quando foi no outro dia morreu (...). Foi o que aconteceu” (Vicência, 53 anos, rezadeira urbana)

O presente estudo se aproxima de outros estudos que relacionam às manifestações

dos problemas respiratórios infantis e à percepção dos familiares das crianças que apresentam

esses problemas. Resultados de outros estudos evidenciam que os familiares das crianças

percebem algumas manifestações dos problemas respiratórios como alteração da respiração

das crianças pequenas, nos quais a percepção da respiração rápida pode ser considerada um

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prognóstico da pneumonia muito antes de ser percebida pelo profissional do modelo cultural

biomédico (PIO, 1986; LANATA, 2003).

5.3.4 Gravidade

Os informantes relacionam à gravidade dos problemas respiratórios infantis como

bronquite asmática, pneumonia forte, pulmão seco, gripe mal curada; também alguns

informantes os relacionam com problemas cardíacos e até com a morte.

Uma informante relata que o problema respiratório mais grave é a bronquite

asmática “tenho medo de bronquite, bronquite asmática, porque leio muita coisa e bronquite é

uma coisa assim, eu imagino que, se a gente não cuidar, nunca mais a gente vai ficar bom,

né”. (Florinda, 34 anos, mãe do Alex).

Na narrativa de uma das rezadeiras urbanas um dos problemas mais graves em

relação à gripe “mal curada” é a pneumonia que pode levar inclusive à morte da criança e, esta

está associada à falta de cuidado da família junto à criança:

“É uma gripe mal curada, a criança tem uma gripe, você não tem cuidado, dá qualquer remedi. A criança fica boa da gripe, mas deixa que o pulmão tá cheio de coisa, de problema de pus, essas coisas. Aí vem outra gripe, em cima da outra, não trata. Vem outra, pronto naquela outra, a criança já aparece com febre, aparece já com problema de uma dor, a pneumonia dá disso, gripe mal curada” (Vicência, 53 anos, rezadeira urbana).

Uma outra forma grave relatada por esta rezadeira foi propriamente a morte da

criança por conta da pneumonia. Isto pode ser constatada na narrativa. “Ela morre, às vezes, a

criança tá tão doente que até na operação a criança morre porque a pneumonia tem que fazer

operação, que tem que botar aquela drenagem, às vezes pra puxar o sangue, se não levar pro

médico, aí morre mesmo” (Vicência, 53 anos, rezadeira urbana).

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Outra informante afirma que, segundo o modelo médico, o problema respiratório

infantil mais grave do cansaço é a asma. No entanto, ela relaciona essa gravidade devido ao

uso constante de medicamentos para controlar o cansaço e pode levar os pulmões a perder sua

característica fisiológica do processo respiratório como ela destaca “ficam secos”. Para um

outro informante que sofre de asma desde à infância, a forma mais grave do problema

respiratório refere-se ao problema cardíaco ou circulatório.

A noção de cronicidade dos problemas respiratórios foi evidenciada em alguns

relatos, como de um pai que afirma que toda a vida da pessoa esse problema pode ocorrer,

repercutindo numa atenção tanto por parte da família como dos serviços de saúde oficiais.

Embora, para ele essa cronicidade já seja vista como a própria gravidade do problema

respiratório do filho:

“Não sei a resposta, não é exata, se a medicina não der uma resposta, é claro que a gente vai imaginar que é pro resto da vida né? Quer dizer, se ele passar dez anos sem ter uma gripe, sempre tendo que cuidar com mel, com suco de laranja isso e aquilo outro (...). Lá na frente vai acontecer o mesmo com dez anos, se ele pegar uma gripe, vai voltar novamente, aí o problema” (Floriano, 30 anos, pai de Vicente).

Percebemos nos relatos que a gravidade está visível ao espaço do corpo, como

corpo doente. Segundo o pensamento de Foucault (1998), o corpo humano passou a ser visível

a partir do século XIX, conseqüentemente conseguimos visualizar como formas doentes nos

quais legitimamos o limite do corpo com a morte. Em nossos achados sobre gravidade das

doenças respiratórias podemos perceber que o corpo conduz a um processo seqüencial de

desvelamento do corpo no momento em que novas feições dessas doenças passam a se

manifestar no corpo doente.

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5.4 Ações no Enfrentamento dos Problemas Respiratórios Infantis

Sabe-se que, em muitas sociedades, as pessoas quando estão doentes ou sofrendo

de algum mal utilizam determinadas medidas terapêuticas que fazem parte do saber popular,

com o propósito de curar e prevenir seus males. Nesse contexto, deve-se levar em

consideração a existência de uma construção social e cultural dos sistemas de saúde em que os

indivíduos interagem entre si (KLEINMAN, 1980).

Portanto, para compreender melhor a relação que se dá entre a Comunidade do

Dendê e o uso de práticas terapêuticas tradicionais populares do setor comunitário em saúde

através do emprego de plantas medicinais, rezadeiras urbanas, preparações caseiras de

remédios, entre outras coisas, dentro do processo de adoecimento das doenças respiratórias

infantis. Consideramos necessário desvelar os sistemas de cuidado com a saúde a partir de sua

construção cultural e social do processo terapêutico das doenças respiratórias infantis.

Os informantes reconhecem que existem várias técnicas terapêuticas, tanto do

setor comunitário como do profissional, indicadas para os problemas respiratórios infantis,

mas para alguns desses problemas eles reconhecem que não têm cura e nem tratamento eficaz,

como no caso do cansaço ou da bronquite asmática. Todos desconhecem um tratamento único

e eficaz para quaisquer que sejam os problemas respiratórios infantis.

Na maior parte das vezes, os moradores buscam o setor comunitário em saúde

para resolver os problemas respiratórios considerados mais simples. Uma informante relatou

que seus filhos, quando crianças, quando adoeciam de gripe, ela não procurava serviço médico

especializado para resolver esse problema aplicava uma técnica terapêutica tradicional como

preparações caseiras de lambedores à base de plantas medicinais:

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“Quando eles gripavam, eu fazia um lambedor de agrião porque o agrião, ele cura até tuberculoso, aí eu fazia, pegava aquele mói de agrião, botava um pouco de jatobá, aí botava a cebola branca também, botava o agrião pra cozinhar, aí quando ele tava pronto, o mel aí eu botava acolá pra esfriar. Depois eu ia lá, botava num pano, coava, botava num vidro, aí começava dar, aí pronto ficavam bom” (Maria, 47 anos ex-líder comunitária).

No entanto, a técnica terapêutica tradicional como preparações caseiras de

lambedores à base de plantas medicinais só é considerada eficaz quando a criança manifesta

somente um sintoma como a tosse. Quando manifestados outros sintomas concomitantes à

tosse como o cansaço, combinam-se com as técnicas terapêuticas do setor profissional

(serviço médico oficial), alguns informantes classificam esses sintomas como um dos

problemas respiratórios grave:

“Quando eles tão tossindo muito, que não dá pra parar, às vezes, fica cansado, aí vai pro hospital, tomar aerossol, aí eles dão aerossol pras crianças, aí aquela que tá assim mais grave, ela não fica na creche, não tem condição, ela fica o tempo todo tossindo, a gente se preocupa né, mas quando é uma tossezinha que com um melzinho de abelha, um lambedozinho dá pra curar, tudo bem, dá pra ficar na creche. Mas, sendo uma criança que fica todo tempo tossindo, tossindo (...) que a gente vê que num tá certo, aí a mãe tem que ir, a gente vai lá chamar a mãe por telefone, se ela tiver no trabalho, ela vem pegar a criança e leva pro hospital” (Sueli, 48 anos, diretora da creche).

Certos informantes classificaram as práticas terapêuticas de acordo com o nível de

gravidade e o tipo de problema respiratório manifestado na criança. No caso das gripes,

consideradas as mais comuns, geralmente usam técnicas terapêuticas tradicionais do setor

comunitário como soluções caseiras e formas de auto-cuidado. O uso de plantas medicinais

cultivadas em suas casas ou adquiridas na ‘farmácia do mato’ e/ou na feira semanal servem

para preparação dos remédios caseiros (lambedores ou chás), os lambedores ao serem

preparados, costumam ser armazenados em casa por pouco tempo; entretanto, combinam as

técnicas terapêuticas tradicionais às técnicas terapêuticas do setor profissional, como o uso de

medicamentos alopáticos, obtidos, muitas vezes, gratuitamente nos serviços oficiais de saúde,

e que também são armazenados em casa.

Percebemos, em alguns informantes, uma dependência do setor profissional para

resolverem as manifestações dos problemas respiratórios infantis, recorrem imediatamente a

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esse setor. A situação é evidenciada em sintomas como cansaço, já que, nesse caso, a cura não

é algo visível ou falado: “quando tá em crise de cansaço ou eu procuro o CIES, ou eu procuro

a UNIFOR” (Vânia, 24 anos, mãe de Gustavo). No entanto, outra informante busca o recurso

terapêutico do setor profissional com a finalidade de aliviar tanto a dor como o cansaço, mas

não condiciona uma situação de dependência:

“Foi só o cansaço mesmo, a febre e o cansaço, pois é, febre. E ela chorava muito, parece que ela sentia uma dor. Não, ela não dizia nada, mas eu sentia que era uma dor porque criança quando chora demais tá sentindo alguma coisa, (...) ficou lá quase um mês no Hospital Geral” (Fabiana, 46 anos, avó de Viviane).

Evidenciamos que algumas mães apresentam autonomia em estabelecer diferentes

estratégias terapêuticas para lidar com cada problema respiratório que ocorre em seus filhos,

algumas delas relatam que tratam a gripe de uma forma diferenciada da asma. No caso da

gripe, elas desenvolvem uma autonomia de definir tanto as técnicas terapêuticas tradicionais

como as técnicas terapêuticas do setor profissional a serem empregadas como preparações

caseiras de lambedores à base de plantas medicinais ou o uso de medicamentos alopáticos: “a

gripe, você já faz um lambedor, você elimina com um chá de eucalipto, limão e alho, compra

ali salbutamol, um xarope, sei lá é mais fácil; a asma não, vai à doutora” (Florinda, 34 anos,

mãe do Alex). No caso da asma, percebemos uma dependência do setor profissional, quando

ela se manifesta na criança, elas costumam levá-la ao serviço da saúde local.

Entretanto, evidenciamos em algumas mães que buscam o setor profissional para

resolver os problemas respiratórios do seu filho como um processo terapêutico repetitivo,

segundo a visão delas: “leva ele pro posto, dá amoxicilina a ele e aí ele fica boa (...), resolve

sim. Às vezes, quando ele tá gripada, a doutora manda dar o vidro todinho, enquanto num

acabar não pára de dar e ele fica boa, aí pronto, só quando ele adoece de novo” (Josefa, 27

anos, mãe de Gabriel, o qual morreu de pneumonia).

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A maior parte das mães faz uma analogia entre a noção de prevenção para os

problemas respiratórios infantis e os seguintes termos das redes semânticas para a prevenção

como: ‘prevenção do câncer’, ‘prevenir pra não ficar doente’, ‘prevenir em relação a tudo se

prevenir pra não faltar o alimento amanhã’, ‘se prevenir pra não ficar doente’ e ‘se prevenir

pra não pegar’.

As ações das mães em relação ao cuidado com os problemas respiratórios infantis

estão ligadas particularmente ao meio ambiente: ‘não ir pro sol, não tomar banho de chuva,

não ir pra quentura’. Especificamente, no caso da gripe, considerada como o caso mais

comum são ‘não ir pro sol, não ir pra chuva, não levar esse mormaço na hora que chove que

levanta um mormaço medonho’.

Os informantes também relacionam a prevenção dos problemas respiratórios

infantis com a restrição de certos comportamentos da criança para evitar a doença. Uma

informante afirma que: “fico falando pra ele não ficar brincando na calçada quente” (Polina,

32 anos, doméstica). Enquanto outra informante argumenta que a prevenção dos problemas

respiratórios ocorre por meio do uso de práticas domésticas como o preparo de lambedor.

Sobretudo, outra agente terapêutica reitera essa ação com medidas profiláticas para evitar

problemas respiratórios específicos como a pneumonia: “na pneumonia é só evitar, e quando a

criança tiver gripada dá um lambedor, dá uma coisa pra puxar o catarro. Não tem problema de

a criança pegar pneumonia” (Vicência, 53 anos, rezadeira urbana).

As mães das crianças da Comunidade do Dendê recorrem a uma complexidade de

estratégias tanto preventivas como terapêuticas em relação às doenças respiratórias infantis,

embora a pobreza esteja rondando sempre as vidas dessas mães e crianças. Além disso,

percebemos que essas mães desenvolveram uma autonomia na escolha do processo

terapêutico das doenças respiratórias infantis, de acordo com o nível de gravidade da doença.

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De acordo com o modelo de signos, significados e ações proposto por Bibeau

(1992), relacionamos as análises da causalidade contextual e sociocultural das doenças

respiratórias infantis com seus dispositivos patológico estrutural e seus condicionantes

estruturantes. Fatores macrossociais como a pobreza, o ambiente e a formação histórica desse

assentamento foram identificados como condicionantes estruturantes desse modelo. Os

dispositivos patológicos estruturais combinam elementos como a cultura, a condição

socioeconômica, a biologia, a geografia do assentamento, o ambiente que esses moradores

vivem e o impacto da política social e de saúde presente nesse assentamento (Quadro 6).

Quadro 6: Análise das causalidades contextual e sociocultural das doenças respiratórias

infantis

Condicionantes Estruturantes

Pobreza

Ambiente

Dispositivos Patogênicos Estruturais

Biologia Condição Socioeconômica

Geografia Ambiente Política Cultura

Signos:

- Tosse Cheia - Tosse Seca - Falta de Ar - Pulmão - Catarro - Chiado no Peito - Gripe - Cansaço - Pneumonia - Asma - Bronquite

Significados:

- Biológica - Corporal - Comportamental - Emocional

Ações:

- Técnicas Terapêuticas Tradicionais - Técnicas Terapêuticas do Setor Profissional

Formação Histórica

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Os elementos acima citados constituem o contexto causal das doenças

respiratórias infantis em um assentamento urbano, aplicando como analogia o modelo de

análise do sistema de signos, significados e ações. Além disso, compreendemos que essa

análise está relacionada com a violência estrutural, particularmente a pobreza presente entre os

moradores do assentamento, segundo Paul Farmer (1999) que a pobreza deve ser vista como

um aspecto de constituição dessa violência, devido às desigualdades sociais, particularmente

desigualdades percebidas entre as diferenças de classes sociais, como evidenciado em nosso

estudo.

Outro elemento interpretado neste modelo refere-se à caracterização dos aspectos

culturais e sociais dos moradores do assentamento urbano frente às doenças respiratórias

infantis, que podem ser classificados como heterogêneos. Verificamos a heterogeneidade a

partir da descrição da história cultural e social do assentamento, onde os aspectos podem ser

mobilizados por questões econômicas que desencadeiam uma fragilidade do grupo, resultando

em feições sociais e culturais diversificadas, sendo um dos efeitos visíveis dessa fragilidade as

manifestações dos problemas respiratórios infantis (FARMER, 1999).

A descrição dos comportamentos e ações entre os moradores da Comunidade do

Dendê que interpretaram seus problemas respiratórios infantis envolve um processo com o

próprio paciente, o agente terapêutico ou o profissional e a visão de mundo dentro da cultura

de cada um deles.

O modelo estudado se propôs a realizar uma analogia com o dispositivo

patológico estrutural e os condicionantes estruturantes, que permeiam a cultura estudada e em

todas as sociedades apresentam espaços de fronteiras abertas e porosas, que comunicam e

reproduzem nas concepções patológicas e terapêuticas os fatores macrossociais, bem como

suas concepções cosmológicas e os modos das organizações sociopolíticas da sociedade.

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Verificamos, no presente estudo, uma influência da pobreza e do ambiente

refletida nos comportamentos e ações dos sujeitos que sofrem os problemas respiratórios na

Comunidade do Dendê, particularmente no sofrer das crianças e de suas mães em seu

cotidiano.

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CAPÍTULO 6

6 CRIANÇAS E A VIDA NA COMUNIDADE DO DENDÊ

Neste capítulo procuramos analisar o modo cotidiano de viver das crianças como

moradoras da Comunidade do Dendê. O trabalho parte de uma observação direta e

participante na comunidade e das narrativas de alguns moradores que foram selecionados

como informantes-chave.

A Comunidade do Dendê é um lugar muito estudado, sua realidade social,

pobreza, sofrimento, exclusão social, percepção de saúde e de saúde bucal (VERAS et al.,

1989; ANDRADE; CARVALHO; SANTOS, 1992; PORDEUS et al., 1999; DINIZ, 2001;

MOREIRA, 2002; NATIONS; NUTO, 2002). Entretanto, a construção do espaço social da

criança, relacionado às doenças respiratórias infantis, nunca havia sido mencionado em outros

estudos, embora seja apresentado como um problema de saúde comum entre os moradores da

comunidade.

6.1 Um Olhar sobre a Comunidade

Muitas informantes-chave narravam suas histórias enquanto limpavam ou

organizavam suas casas, preparavam seus alimentos ou quando estavam em frente às suas

portas de casas, externando seu cotidiano para as pessoas que passavam pelo local. A partir

dessas histórias, construímos vários recortes seqüenciais de fatos que interligavam ‘ações

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naturais’ e um sentimento de sobrevivência, como o fato de ‘cuidar da casa’ para preencher o

tempo em suas vidas diárias.

A primeira visão dessa comunidade pobre é a de um amontoado de casas

desiguais, com fachadas coloridas e outras não externamente definidas, que invadem as duas

principais ruas de acesso à comunidade. Vale dizer que uma rua corresponde à entrada para a

comunidade e à outra a saída; seu contorno é definido por vários depósitos de lixo a céu

aberto, jogado pelos próprios moradores, na falta de coletores apropriados. Crianças pequenas

e maiores brincam e jogam futebol entre a sujeira e animais como gatos e cachorros, que se

alimentam do lixo exposto.

Quando caminhamos pelas ruas, observamos esse cenário em algumas ruas

calçadas estreitas, e, às vezes nem há calçadas, caminha-se pela própria rua. A disposição das

casas sempre muito próximas umas das outras, a maioria delas de parede geminada. Tal fato

evidencia a pouca privacidade existente entre as casas, mas permite, nesse sentido, uma vida

em comum e comunitária. Muitos moradores mantêm relações cotidianas, compartilhadas com

os vizinhos. Entretanto, em alguns casos, o compartilhamento torna-se menos visível na área

próxima aos condomínios fechados.

Nas fachadas das casas das ruas principais de acesso à comunidade ou das ruas

próximas, geralmente, encontram-se portas estreitas e janelas, de cores variadas: branco,

vinho, envernizada ou mesmo sem pintura. A porta de entrada na maior parte das casas tem

vista direta para a rua e; portanto, não há muros. Enquanto nas casas em que há jardins, eles

são estreitos e cimentados, decorados com flores coloridas e folhagens colocadas em jarros de

cimento, pintados à cal ou em latas de óleo ou tinta, que servem como jarro. As casas

próximas à Rua do Comércio e aos condomínios fechados apresentam portões de proteção,

enquanto as casas mais distantes, como na Baixada, não dispõem desses recursos.

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A maioria das moradias é de alvenaria, e muitas moradias que estão localizadas

nas ruas secundárias não têm reboco nem pintura na fachada. Os condomínios próximos são

separados por muros e apresentam entradas únicas. Muitas casas têm piso com cimento

queimado ou apenas terra batida.

Muitas moradias da Baixada são construídas de materiais como taipa, plástico e/ou

papelão, de um só cômodo, comportando mobílias de sala, quarto e cozinha; apresentam ainda

um banheiro localizado na parte externa, precisamente atrás da casa. As moradias são

encontradas em áreas mais baixas da Baixada, comumente construídas como única opção de

moradia daqueles desprovidos de recursos materiais e sociais, com vistas a ter uma fonte de

renda. Ao mesmo tempo, os moradores torcem para que o governo os ajude a sair daquela

condição de moradia e vida, porém, reconhecem que as dificuldades e diferenças sociais

refletem seu poder de reivindicar por direitos como o da moradia adequada, tornando-os

submissos à ajuda externa; esperam que as melhorias surjam de iniciativas governamentais.

Há uma uniformidade na infra-estrutura dos condomínios fechados, bem como das

casas localizadas próximas ao comércio da Comunidade, ou seja, há energia elétrica e

abastecimento de água coletivo, mas sem rede de esgotamento sanitário. A maioria das casas

tem fossa séptica e em outras o esgoto fica a ‘céu aberto’. Há uma desigualdade clara entre as

casas da Baixada e as próximas ao comércio, toda a energia elétrica das casas da Baixada é

clandestina, não há abastecimento de água coletivo e nem rede de esgotamento sanitário. Os

moradores da área buscam água de chafarizes próximos, instalam cisternas ou bombas de água

de procedência inadequada para consumir ou bebê-la. A coleta de lixo passa de duas a três

vezes por semana, na maioria das áreas da Comunidade, porém, na Baixada, esse serviço é

restrito a depósitos localizados em espaços bem definidos e não fazem a coleta individual por

domicílio. No ambiente da Baixada ou nas ruas mais estreitas da Comunidade, percebe-se o

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mau cheiro constante oriundo dos esgotos, e, em período de chuva, eles extravasam para

outros locais e até para dentro das casas.

A comunidade está, geograficamente, dividida em quatro grandes áreas: Baía,

Baixada, Rocinha e Centro. A divisão segue uma lógica de demarcação de território, segundo

a compreensão institucional da principal e mais antiga associação dos moradores reconhecida

no local. A administração atual propõe descentralizar as ações por meio de um plano

estratégico de ação social para cada uma dessas áreas, baseado na identificação de problemas

sociais mais relevantes da Comunidade. No entanto, os problemas sociais da Baixada são

considerados os mais emergenciais.

Entre os moradores, tal divisão não é percebida. Eles reconhecem que há uma

hierarquia social mais do que geográfica, assim, destacam-se três grandes áreas de grupos

sociais: ‘o povo da baixada’, ‘o povo do bairro’ e ‘o povo dos condomínios’, como se

reproduzissem analogias às classes sociais: baixa, média e alta, respectivamente.

Além da divisão social do espaço da Comunidade, a formação de outras áreas

segue uma ordem de regras sociais estabelecidas pelos próprios moradores. Nos últimos anos,

tal ordem é influenciada pelo aumento do tráfico de drogas e latrocínio que ocorrem no local e

referida por moradores e policiais que trabalham no local. Existem regras a serem seguidas

pelos moradores que são impostas por grupos definidos como gangues, que estabelecem locais

onde os moradores devem circular para que surja uma boa convivência com esses. As novas

áreas são denominadas, segundo as delimitações de espaço onde os membros das gangues

residem, como a ‘rua do gelo’ formada pela ‘gangue da rua do gelo’; a baixada forma a

‘gangue da baixada’; o cantinho do céu forma a ‘gangue do cantinho do céu’; a ‘gangue do

cravo’; a ‘gangue do jucá’ e a ‘gangue do AG’ (Aventureiros do Grafite), assim

sucessivamente.

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Torna-se visível e evidente que há uma diferença social e geográfica da pobreza

no bairro entre os moradores dos condomínios fechados, moradores da própria Comunidade e

da Baixada, que correspondem a níveis diferenciados de renda e exclusão social. Deve-se ter

em mente, que a pobreza representa um fenômeno decisivo na vida das famílias, mas é,

sobretudo, em decorrência da precariedade da cidadania histórica, que os moradores da

Baixada não tem acesso a certos direitos, como moradia adequada, serviços (abastecimento de

água e energia elétrica) e não está presente o seu poder reivindicatório de bem-estar do ser

humano.

6.2 Qual é o Espaço Social da Criança na Comunidade?

O espaço social da criança é privilegiado na comunidade. A idade das crianças é

um meio de privilegiar o seu status social: o nascimento dela pode resultar em um casamento

formal ou informal entre os membros da Comunidade ou de outros locais fora da comunidade,

mas pode ser sinal de separação e; dá aos pais uma condição de adulto mesmo em se tratando

de adolescentes.

As mães muito jovens são reconhecidas como não preparadas para cuidar dos seus

filhos, geralmente esses cuidados passam para as avós maternas ou paternas. Os filhos são

desejados por seus pais nos contextos em que as uniões são construídas por uma afetividade

entre homem e mulher, dispostos a formarem laços que podem ser formalizados ou não. No

entanto, muitas mães jovens e solteiras assumem a criação de seus filhos sozinhas, sem

qualquer apoio financeiro ou afetivo dos pais das crianças. Elas, sozinhas, buscam a

sobrevivência de sua própria família e constroem valores morais para a educação dos filhos.

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As crianças costumam nascer em maternidades públicas, localizadas em outros

bairros próximos à Comunidade. No início da década de 1990 existia no local uma casa de

parto, que durante três anos muitos bebês nasceram nessa casa. A criação dessa casa partiu de

uma iniciativa institucional promovida pela Universidade Federal do Ceará (UFC) com

parceria do governo do estado do Ceará, através de um projeto de extensão universitária,

denominado Programa de Atenção Primária de Saúde – PROAIS (ANDRADE; KISIL;

McAULIFFE, 2003).

O projeto deriva de uma experiência anterior, em 1975, considerada inovadora na

época, realizada em zonas rurais próximas de Fortaleza, desenvolvida pelo Prof. Galba

Araújo, intitulada “Parteiras tradicionais na atenção obstétrica em saúde”, cujo objetivo

visava compreender a concepção das parteiras tradicionais em zonas rurais e associar esse

conhecimento popular ao acadêmico, pela formação dos estudantes de medicina e

enfermagem que adquiriam e trocavam experiências com essas parteiras. No entanto, outra

evidência pode ser destacada dessa experiência refere-se à redução da mortalidade infantil por

meio da participação das parteiras tradicionais no pré-natal da gestante, bem como seu auxílio

em partos normais (ARAUJO et al., 1984).

Posteriormente, o PROAIS foi ampliado, dessa vez, para desenvolver estratégias

de promoção com a participação da comunidade, no cuidado com a saúde, resultando em

ações concretas para melhoria da saúde local. Embora existisse a colaboração técnica dos

profissionais e estudantes de graduação da área da saúde para que se tornassem factíveis a

(VER) essas ações (ANDRADE; KISIL; McAULIFFE, 2003).

Logo, a nova feição do programa estimulava as lideranças locais a uma maior

autonomia em termos de organização e de estrutura. Essa organização foi estabelecida em

administrar as unidades comunitárias baseadas no cuidado em saúde coletiva e individual.

Contudo, sua administração e manutenção financeira da propriedade e do pessoal da unidade

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estavam nas mãos destes líderes locais. Por sua vez, exigia uma organização mais formal da

comunidade, através do seu registro junto ao Instituto Nacional da Segurança Social para que

fosse efetivamente institucionalizada e assim pudessem garantir o recebimento do auxílio

médico bem como fornecer os salários das parteiras e a compra de materiais e alimentos para

a unidade de saúde (ANDRADE; KISIL; McAULIFFE, 2003).

As ações do PROAIS foram ampliadas para todos os níveis em saúde,

particularmente na saúde infantil, além disso, foram incluídas outras instituições não

governamentais e até internacionais, como a Fundação Kellog (ANDRADE; KISIL;

McAULIFFE, 2003).

No Ceará, em 1990, havia trinta e três centros de nascimentos intitulados como

‘casa de parto’ e mais de 560 parteiras tradicionais foram treinadas com o auxílio desse

programa. Um dos locais de ocorrência desse treinamento foi a Comunidade do Dendê

(ANDRADE; KISIL; McAULIFFE, 2003).

“Aí fui escolhida, fiquei como a maior parteira que tinha aqui, era eu (risos) (...). Nós tivemos cinco dias de treinamento logo aí, cinco dias de treinamento na Lagoa Redonda, cinco dias no Tancredo Neves. Aí nós tivemos de seis em seis meses, nós temos treinamento, renovar o nosso treinamento sabe, com a Dra. Norma. Aí pronto, nós ficamos empregada. Passamos oito anos como empregada. Só o salário, não tinha férias, não tinha nada. Aí nós queremos qualquer coisinha. Aí quando nós saímos não tinha nada” (Joana, 74 anos, parteira).

Nesse local, realizavam-se o pré-natal das gestantes moradoras da Comunidade e

os partos normais. Trabalhavam doze parteiras na casa, oriundas do próprio bairro, muitas

delas já eram antigas parteiras, foram capacitadas por meio de um curso com duração de seis

meses para que pudessem desenvolver suas atividades na casa de parto. Elas mesmas faziam o

controle das gestantes que moravam na área sob a supervisão de uma enfermeira servidora do

estado. Segundo relatos de algumas parteiras, foram contratadas temporariamente pelo estado

por serviço prestado.

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Atualmente, funciona no local uma creche comunitária vinculada à associação de

moradores e um Centro de Iniciação Profissional (CIP), vinculado ao governo estadual e ainda

são desenvolvidos outros projetos junto ao governo federal (o Comunidade Solidária).

Diante desses fatos, Freedheim (1993) lembra que até 1986, o estado do Ceará foi

governado por Coronéis (a elite rural que dominou a política do estado), essa interferência

política, que existia em todos os níveis, influenciou toda a população. O autor ainda ressalta

que os serviços de saúde eram considerados uma das ferramentas políticas das mais usadas

para influenciar a população. Portanto, as mudanças estruturais que permitissem a participação

da comunidade no nível local de saúde foram vistas por muitos líderes comunitários, como sua

sustentação política, porque forneciam o cuidado com a saúde aos indivíduos ‘selecionados’.

Reforçando assim um sistema de ‘patrão-cliente’, mantido pela própria população, que sempre

foi usada/estimulada/acostumada a esperar ajuda.

Apesar dessa ideologia do sistema ‘patrão-cliente’ estar ainda presente em muitas

atitudes dos moradores da Comunidade, em alguns locais, esse sistema de gerenciamento para

o cuidado com a saúde da Comunidade provou ser uma estratégia eficaz, particularmente no

sentido de baixar os custos operacionais comparando-os aos serviços de saúde formais.

No entanto, podemos somar a isso, que em 1986, o estado do Ceará iniciou uma

reforma política da saúde incrementando o processo de municipalização, em que no ano de

1989, dos 184 municípios foram municipalizados 120. Conseqüentemente, a política de saúde

do estado tomou novos rumos, nos quais a iniciativa da participação da comunidade foi

reprimida, por exemplo, evidenciamos na visão de alguns dirigentes da associação de

moradores uma repercussão da ruptura e repressão percebidas como uma ação inoperante da

diretoria.

Um dos espaços formais de educação infantil que privilegiam as crianças são as

creches. Há duas creches no local, uma é do setor privado e a outra é vinculada à associação

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de moradores e que atende a mais de cem (100) crianças com idade entre dois e seis anos. A

maior demanda das crianças procede da área mais pobre da comunidade, a Baixada. A creche

da associação, conforme a diretoria afirma, depende de recursos do estado, cujos gastos

integrais destinam as necessidades mais imediatas como manutenção. A dirigente da creche

lembra que “o recurso é do Estado (R$ 5.300,00), destinado ao pagamento do pessoal (11

funcionários), à compra de material didático, alimentação e ao pagamento dos encargos

sociais”.

Há um número maior de crianças pequenas que precisam desse tipo de assistência

e, muitas vezes, elas ultrapassam o número de inscritos no programa da creche. A dirigente da

creche em relação a isso informa que: “inscrevem-se cento e vinte crianças e sempre tem a

mais, sempre tem criança a mais porque vem uma mãe e diz ‘eu quero que você coloque

minha filha, se você puder’, e outras chegam a chorar, não têm com quem deixar a criança,

tem que acolher essas crianças pra mãe poder ir trabalhar”.

Nos finais de semana, o espaço físico da creche é cedido a um grupo da igreja

católica que desenvolve diversas atividades por meio de dinâmicas de grupo e alfabetização

das crianças da igreja pentecostal histórico (assembléia de deus), entretanto procuram

envolver as crianças da Baixada (STEFANO, 2007). Ainda é organizada uma feira de

artesanato em frente à creche por algumas pessoas da própria comunidade. Além disso, são

desenvolvidas atividades musicais como grupos de pagode e atividades esportivas (futebol e

capoeira).

Para alguns funcionários da creche da associação, os comportamentos das crianças

que freqüentam a creche são variados, algumas são reconhecidas como ‘pouquinho

agressivas’, devido às desestruturas familiares e sociais dos pais, por serem separados,

alcoólatras ou por falta de recursos financeiros para manter a casa.

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Por outro lado, o espaço da outra creche não foi explorado por caracterizar-se

como um serviço privado e está localizado ‘fora’ da comunidade. Essa creche é apoiada pela

Escola de Magistratura do Estado do Ceará e atende aos filhos de funcionários, juízes e

advogados do setor de magistratura do Estado. O Fórum da cidade localiza-se próximo à

Comunidade e a essa área da creche.

Quando voltamos nosso olhar para a criança do Dendê, por exemplo, vemos que o

cuidado com a criança toma a maior parte do tempo das mães que ficam em suas casas ou de

suas avós paternas ou maternas. Há casos em que a mãe tem que trabalhar fora de casa, por

conseguinte, a avó assume o papel de cuidar da criança, como o de levar o(a) neto(a) à creche

e outras necessidades básicas, como preparo da alimentação. As crianças maiores ou

adolescentes passam a cuidar também das menores. Enquanto outras crianças são levadas por

suas próprias mães aos seus locais de trabalho, haja vista algumas mães manifestarem a

sensação de medo da comunidade quanto às agressões e brigas dos membros da própria

comunidade e por perceberem uma rivalidade entre grupos mais jovens.

Tanto as crianças pequenas andam pelo chão, descalças e sem roupas como as

maiores que já andam ou se arrastam pelo chão ou engatinham em suas casas e/ou jardins.

Percebemos que as crianças circulam livremente por todos os espaços da casa, sem controle

das mães e parentes. Por sua vez, esses não demonstram que exista algum ambiente impróprio

ou arriscado dentro de casa para as crianças, elas podem brincar na cozinha, juntas ao fogão

onde suas mães e parentes estão preparando alimentos para toda a família.

Os filhos pequenos costumam dormir com as mães, quando não têm berço. E os

maiores dormem em redes ou camas que dividem com outros irmãos, em algumas casas, os

cômodos para dormir são salas ou cozinhas.

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Quanto aos cuidados dos filhos, a tarefa é dividida entre a mãe e/ou a avó quando

moram na mesma casa, essa, em muitos casos, é a provedora dos bens da família. Percebemos

que a participação do pai no cuidado com as crianças é muito incipiente na comunidade.

Para alguns moradores, a distribuição geográfica das moradias na comunidade

pode repercutir em maneiras diferentes de organizar o cuidado com as crianças por parte das

mães, alguns moradores que moram fora da Baixada afirmam que as mães das crianças que

moram na Baixada não apresentam uma organização no cuidado com as crianças como: “é

muito dentro da água, num tem como manter a casa assim, bem sequinha, limpa”; enquanto os

mesmos moradores frente às mães que moram em áreas de melhores condições de moradia,

‘no seco’, as casas são organizadas e associam o ambiente ao cuidado com as crianças, como a

mãe “tem bom gosto de cuidar”.

Ao percorrermos algumas casas, percebemos ausência ou insuficiência de

alimentos. Por exemplo, no início da manhã, em algumas casas nas quais as crianças não

saíam, o alimento oferecido era somente um mingau de farinha de mandioca ou café puro, às

vezes, às dez horas da manhã, como primeira refeição do dia. Em outras moradias, no horário

do almoço, eram oferecidos biscoitos industrializados, não havendo nenhuma movimentação

para preparos de alimentos. Por outro lado, as crianças da creche garantem “uma alimentação

diária regular”, segundo a visão de muitas mães e avós de filhos e netos que freqüentam a

creche.

Os espaços de lazer para as crianças praticamente inexistem na comunidade,

alguns pais até se disponibilizam em sair nos finais de semana com seus filhos e não saem

mais por falta de recursos financeiros. Os pais limitam-se em levar os filhos, a pé, para tomar

banho no rio Cocó, local desprovido de qualquer dispositivo de segurança para as crianças

como existência de guarda-vidas no local. Outros locais de lazer, considerados pelas pessoas

da comunidade como não apropriados para as crianças são os bares locais, levados pelos

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próprios pais, alguns informantes comentam: “no domingo, o lazer dessas crianças é o rio

Cocó, a criança se arrisca a ir”, “o lazer do pai é um bar ou um campo de futebol, é uma

cerveja. É isso, não tem um lazer apropriado para as crianças”.

Alguns aspectos do cotidiano e da atividade lúdica das crianças moradoras da

comunidade foram analisados como as rotinas e o brincar das crianças que estão

intrinsecamente ligadas às brincadeiras simbólicas e improvisadas, por exemplo, a mãe está na

cozinha preparando alimentos e a criança está no chão brincando com utensílios da cozinha

como panelas. Os jogos são freqüentes na vida das crianças como o tempo programado na

escola para o futebol ou a capoeira.

Os estudos de Nunes (2002) compreendem melhor a relação da criança e os vários

grupos sociais com o lúdico, cujos resultados desses estudos indicam que o caráter lúdico age

nas mais variadas circunstâncias da vida da criança. Consideramos os jogos como uma espécie

de denominador comum às crianças de todas as sociedades, manifestando universalidade por

meio de infinitas peculiaridades, que realizam e concretizam em sua essência singular e

sociocultural de cada um dos grupos sociais.

A liberdade nas brincadeiras das crianças é modificada de acordo com o espaço

social; quando as crianças estão em casa, percebe-se maior liberdade para brincar, primeiro

elas exploram todos os espaços da casa, sem delimitar um espaço único para brincar; em

seguida, pode-se constatar que o tempo não é estabelecido para brincar. Por outro lado, na

creche ou escola, perde-se tal liberdade, que é, principalmente, delimitada pelo tempo dado

pela rotina da creche, por exemplo:

“Começa quando ela entra, tem uma brincadeirinha ao receber a criança, a menina brinca, vai faz uma brincadeira com a criança, depois a gente, aquela criança que não vem banhada, a gente vai dar banho. Aí, 8 horas, começa a merenda, depois vai ter a brincadeira de rodinha, conversa, aí começa a atividade, por escrita, é brincadeira de música, é esse tipo de coisa. Tem que ter quatro atividades por escrita, duas pela manhã, fora as brincadeirinhas que têm

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roda, conversa, porque tem que ter essa conversa com as crianças” (Sueli, 48 anos, diretora da creche).

Quanto à temporalidade das brincadeiras das crianças que moram na comunidade,

é referido também um caráter sazonal. Nos meses de setembro e outubro, as crianças maiores

entre 8 e 11 anos brincam de peão em suas próprias casas, nas calçadas ou nas ruas próximas

as suas casas; podem estar sozinhas ou acompanhadas por outras crianças maiores. Mas, as

brincadeiras são vigiadas por suas mães ou avós, bem como o tempo de brincar é determinado,

muitas crianças não brincam durante a noite nas ruas porque seus responsáveis dizem que não

é permitido brincar lá. Segundo eles, “as ruas são perigosas para crianças”.

Os espaços para as brincadeiras das crianças podem ser suas próprias casas,

especificamente para as crianças que ainda não andam ou são muito pequenas. A creche

destina-se às crianças entre 2 e 6 anos, para aquelas famílias cujas mães trabalham fora ou

para famílias mais pobres da comunidade localizadas na Baixada. Entretanto, há muitas

famílias pobres que não conseguem matricular suas crianças na creche, as crianças ficam em

casa com algum membro da família, responsável em cuidar das mesmas.

As brincadeiras podem ser estabelecidas pelo sexo da criança, as meninas brincam

de bonecas de plástico como garrafas pet. Enquanto os meninos brincam de bolas, carros e

bonecos feitos de material de plástico das mesmas garrafas. As meninas são as que mais

ajudam nos afazeres de casa, elas cuidam do irmão mais novo, lavam louças e roupas da casa

ou até limpam toda a casa, com isso, deslocam-se para atividades que não são as brincadeiras

das meninas.

Enquanto outras brincadeiras desafiam o próprio corpo da criança. Sabe-se que o

corpo da criança está em constante desenvolvimento e movimento, mas elas vivem motivadas

por emoções e desafios como pular de locais mais altos que a altura do seu próprio corpo. Por

exemplo, em suas casas, as crianças costumam armar redes de dormir acima da cama dos pais

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e em uma altura que não alcançam subir e, com a ajuda de outros irmãos ou amigos vizinhos,

pulam para a cama ou para o chão. Mas, não percebem que essas brincadeiras podem provocar

conseqüências negativas como cair e machucar-se.

“Criança começou a brincar e tinha uma armadozinho de rede e pulou da cama pra segurar no armador, brincadeira de criança, não conseguiu pegar com a mão, mas de cima que ela veio e aconteceu um acidente com ela, que o beiçozinho dela entrou no armador, arrebentou a pele até o nariz dela, ficou aquele pedaço de beiço aqui pra cima, tava brincando como o menino ali no meio da rua” (Floriano, 30 anos, pai do Vicente).

As crianças que participam da capoeira apresentam uma disciplina corporal e

comportamental durante as aulas e no seu cotidiano da escola.

Percebemos a existência de uma violência intra-domiciliar entre os membros da

família como agressões ou insultos entre casais (homem e mulher), especificamente quando o

homem ou mulher são alcoólatras, em situações como na relação entre mãe e filho, quando a

criança é pequena e fez alguma mal-criação como quebrar algo doméstico, dá-lhe uma surra

ou grita com a criança, quando o filho envolve-se com drogas pode ocorrer algum tipo de

agressão física também.

Os pais costumam se orgulhar dos filhos que gostam de estudar, são quietos não se

envolvem com grupos, como as gangues do tráfico de drogas. Mas é sinal de decepção e

fracasso na criação quando o filho se envolve com o problema do tráfico de drogas. Segundo a

visão de alguns moradores que conhecem ou têm alguém da família envolvido com o tráfico

de drogas, afirmam que as crianças que se envolvem, começam como ‘avião’ e em torno dos

12 anos podem estar viciadas, por conseguinte, passam a traficar drogas ou a praticar furtos ou

assaltar os moradores dos condomínios. Alguns usam estratégias para abordar os moradores.

Polina relata que tem “criança drogada... passo pelo meio deles drogados, às vezes, armados,

converso com eles, mas eu tenho medo sabe, de demonstrar que eu tô com medo”.

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Alguns moradores buscam aproximação no sentido da boa vizinhança pelas trocas

e ajudas: “pego amizade com eles, se me pedem um real se eu tiver te dou, uns dizem assim,

eu tô com fome, me dá pra comprar comida, mas sei que vai ser pra loló, pro cigarro de

maconha”.

De acordo com a diretora da creche, algumas crianças quando saem da creche se

envolvem com o tráfico de drogas; comentou o fato com muita emoção, o narrou chorando.

Ao mesmo tempo, manifesta-se um sentimento não visível de derrota quando diz: “aqui na

comunidade, já vi, é uma pena, porque quando você luta pelas crianças, que você vê cheirando

cola, que você vê ela roubando, você sente como se fosse seu filho”. A diretora busca uma

aproximação tanto com as famílias como com as crianças e ela afirma: "ah tia, isso é coisa da

vida aquilo dói porque você lutou, você deu banho e quando chega na idade de 12 anos,

vivendo na droga”. São crianças que passam para adolescência sem um apóio da família e até

incentivadas pela própria família no tráfico por deixarem suas crianças ‘perambulando’ pelas

ruas da Comunidade.

Consideramos para essa discussão o conceito sociológico de família como um

grupo de pessoas que podem estar unidas pelo casamento, laço sanguíneo, ou por adoção,

podendo constituir de uma família simples, ou mais grupos, interagindo com cada um de seus

membros, construindo suas regras ou mantendo uma cultura comum (BURGESS; LOCKE;

THOMES, 1971). Constatamos, assim, no espaço familiar, um ambiente de socialização da

criança, mas que pode ocorrer em outros ambientes institucionalizados como a creche, e em

ambas as situações, evidencia-se a presença de adultos, particularmente na presença da mãe

que a auxilia em seu processo de aprendizagem e socialização (MAYALL, 1996).

O presente estudo verificou uma satisfação das mulheres em serem mães, embora,

muitas vezes, essa decisão não ocorresse de forma socialmente organizada, a maternidade

surgia de uma gravidez não planejada, ou pensá-la numa condição de pobreza? A satisfação

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aparece também em um estudo que compara mães pobres e mães de classe média em bairros

de ocupação irregular de Porto Alegre, verificou-se que essas mães pensam semelhantes

quanto à maternidade, sentem-se satisfeitas (LORDELO; FONSECA; ARAÚJO, 2000).

Descrevemos várias atividades desenvolvidas pela mãe desde o cuidar e preparar a

alimentação da criança, mas existia a presença paterna, embora não fossem percebidas suas

atividades dentro da rotina da casa. As evidências se aproximam das verificadas em um outro

estudo, que revelou que a presença da autoridade paterna, mas as atividades maternas são mais

significativas entre as famílias no subúrbio de Detroit, classificada como família

‘matricêntrica’ (BLOOD; WOLFE, 1960, p. 36).

Outra evidência do estudo refere-se à situação das ações de saúde infantil no

nascimento das crianças em períodos diferentes. Verificamos uma mudança de mentalidade e

até um sentimento de incapacidade dos moradores da comunidade, como se fossem

responsáveis pelas mudanças estruturais e da ruptura. Isso ocorreu em momentos históricos

como a dissolução de iniciativas para o desenvolvimento da comunidade como o projeto de

estímulo à autonomia do grupo pelas escolhas de serviços da saúde como a implantação da

casa de parto.

Segundo a visão dos moradores, eles sentem-se culpados pela não continuidade do

programa. Por outro lado, verificou-se uma apropriação do Estado em prol das mudanças tanto

econômicas como políticas de saúde, promovendo o ‘cumprimento constitucional’ da

municipalização da saúde, não valorizando as ações que já estavam ocorrendo nas

comunidades locais.

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6.3 A História de um Assentamento Urbano

A área onde teve início o assentamento urbano era conhecida como “Dendê”,

alguns moradores mais antigos relacionam o nome Dendê à existência no local de algumas

palmeiras que lembram a palmeira de Dendê, localizada próxima à primeira igreja católica do

bairro. As palmeiras de Dendê, identificadas durante o estudo, não são nativas, foram

cultivadas em vários locais da Comunidade e plantadas pelo próprio fundador da universidade

privada localizada próxima ao local.

A área era também conhecida como bairro Água Fria, e atualmente bairro Edson

Queiroz. Alguns moradores mais antigos lembram dessas mudanças de denominações “aqui,

antigamente, era Dendê, de Dendê passou pra Água Fria, da Água Fria passou pra Edson

Queiroz”.

Soraia relata como uma das moradoras mais antigas do bairro: “nasci no bairro”. É

uma mulher branca de 44 anos, sempre falante e simpática, que poucas vezes sentou-se para

conversar, enquanto andava por toda a casa para organizá-la, além de estar sempre atenta ao

filho pequeno, com quase dois anos de idade, diz que se casou depois dos quarenta anos e

desde quando o filho nasceu, não trabalhou mais. “Eu casei, engravidei, saí do trabalho e tô só

cuidando desse pequeninho aqui e também tenho que dar banho na minha mãe”. Mora com

sua mãe, segundo ela, é “safenada”. Mora ainda com um irmão, cunhada e sobrinhos. O irmão

trabalha na universidade privada localizada próxima a sua moradia.

Sua casa está localizada na área dos sítios, considerado o local mais antigo do

bairro, tem um terreno ao redor da sua casa bastante amplo, inclusive em anos anteriores

funcionava uma vacaria. Conforme observações a casa não tinha estrutura bem conservada,

tinham poucos eletrodomésticos e móveis.

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Tem dez irmãos, o mais velho tem uns cinqüenta e poucos anos. Todos foram

alfabetizados com formação de nível superior. Antes de morarem no bairro moravam no

Icaraí, região metropolitana de Fortaleza. A família ainda tem um terreno no Icaraí. Ela

recorda que não existiam casas no local. O seu pai é falecido há 21 anos e quando morreu

tinha 75 anos. Lembra dele como um dos primeiros moradores do bairro e das dificuldades de

deslocamento tanto para sair como chegar a sua casa, e ainda recorda da ausência de

transporte público no local.

“Ele que saiu abrindo essas varedazinhas porque ele foi praticamente um dos primeiros moradores daqui (...). Então, ali na favela, que é a rua principal do asfalto, antigamente eu ia tomar o ônibus lá pra estudar, peguei o ônibus ali no Iguatemi. Naquela curva ali do Iguatemi pra vir pra cá” (Soraia, 44 anos, moradora antiga).

Na época em que Soraia nasceu, no início da década de 1960, o bairro começava a

ser habitado e dividido por proprietários com poder aquisitivo mais elevado, que adquiriram

terrenos e formavam pequenos sítios para investimento e lazer familiar.

Outras casas foram construídas como a casa da Diana, que mora há mais de

quarenta anos no bairro. O terreno pequeno foi comprado por seu marido, em 1962, morava

antes na Cidade dos Funcionários, bairro próximo ao local. Diana é viúva e tem

aproximadamente 64 anos. Teve seis filhos, sendo quatro mulheres e dois homens, tem ainda

dezesseis netos. Uma das filhas morreu de desidratação aos oito meses de idade, lembra que a

menina nasceu de parto cesáreo. Dois filhos moram no quintal de sua casa e uma das filhas e

duas netas moram com ela na mesma casa. Muitas vezes ela cuida das netas, leva e trás da

escola as netas, porque sua filha trabalha fora, é um serviço autônomo, trabalha como

depiladora, vai aos condomínios do bairro ou às residências de bairros próximos da

Comunidade.

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O corpo de Diana é franzino, sua pele é enrugada e de cabelos grisalhos, costuma

apoiar suas mãos no joelho quando senta. Fala com uma voz muito mansa e baixa. Trabalha

como diarista há 30 anos na mesma residência.

Mudou para o bairro quando seus filhos ainda eram crianças. Construiu sua casa

com paredes de barro e a primeira atitude que teve ao mudar para o local foi construir uma

cacimba. Ela diz que “a água era boa do local, a gente pegava um balde e tirava a água não

tinha esse negócio”.

Na cidade de Fortaleza, o lençol freático é muito superficial, conseqüentemente a

contaminação das águas por agentes biológicos como bactérias ou parasitas é constante.

Quando ela se refere a ‘esse negócio’, reporta-se à contaminação por microrganismos. Mas, a

construção da cacimba conduz recordações tristes, um de seus filhos caiu na cacimba. Ele

tinha uns três anos, diz ela “foi o maior sufoco”; estava grávida de oito meses de uma menina,

que chegou a falecer com oito meses após o nascimento, enquanto o menino sobreviveu ao

triste episódio. Relata que seus filhos viviam com saúde, “era muito difícil eu levar um filho

para o hospital”.

Os primeiros moradores migraram de outros assentamentos da cidade de Fortaleza

como: Verdes Mares, Praia de Futuro e Dunas; ou de outros bairros: Aldeota, Varjota, Cidade

dos Funcionários, Meireles e Papicu; ou de outras cidades do Ceará e; até de outros estados:

Maranhão, Rio Grande do Norte e Paraíba. Os locais iniciais habitados por esses primeiros

moradores foram os espaços entre os sítios e a universidade privada. Oficialmente essa área

não havia estabelecido nenhuma posse de terra e correspondia à área central da Comunidade.

Entre os anos de 1980 e 1990, foram realizados cadastramentos dos moradores para

reconhecer a extensão do assentamento na área e caracterizar os moradores, o cadastro foi

feito pela Secretaria da Assistência Social do estado do Ceará. No local, já moravam pessoas

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proprietárias de sítios e os proprietários informaram que existia um dono de toda a área, bem

antes dos assentamentos, eles foram os primeiros a abrir ruas para permitir o tráfego local.

O caso de Juca ajuda a compreender esse processo migratório para os

assentamentos urbanos. Ele é natural da cidade de Sobral, chegou a Fortaleza em 1953 e foi

morar com a irmã, imediatamente procurando trabalho para fazer. Começou a trabalhar como

engraxate de casa em casa. Ao mesmo tempo, estudava canto e inscrevia-se em programas de

calouros existentes naquela época em Fortaleza, cantava também em casas de shows.

Mora em Fortaleza há 30 anos, onde primeiro morou em um terreno na Avenida

Santos Dumont, próximo a um dos conjuntos habitacionais mais antigos de Fortaleza, Cidade

2000, construído na década de 1970. Saiu de lá devido ao projeto de urbanização e construção

da referida Avenida e descobriu, por conhecidos, que a área estava em expansão; resolvendo

mudar para cá com alguns vizinhos, há aproximadamente 17 anos atrás. Juca é um homem

negro de 64 anos. Tem corpo muito forte e musculoso. Fala de modo sereno, comunicativo e

simpático. Estudou em escola presbiteriana e católica, lê e escreve muito pouco e não concluiu

seus estudos. É compositor e músico, seu estilo é regional, na hora de escrever as letras das

músicas pedia ajuda a um companheiro que já faleceu. Casou duas vezes, atualmente vive

com a segunda esposa, teve três filhos, todos já são adultos e trabalham. Ele foi o primeiro a

montar uma rádio comunitária com o intuito de ajudar as pessoas sem recursos a bancar

despesas, tais como: pagamento de enterros de crianças muito pobres que moravam na

comunidade:

“Eu fiz uma viagem aqui pro lado de Baturité, foi que eu vi lá umas ‘radiadoras’ no ferro alto e um velho que já morreu por nome Moreira. E todos os anúncios tinha nessa ‘radiadora’, e nós não. E eu, até pra botar um anunciozinho, (...), aí eu pesquisei e vi que se eu trouxesse pra cá, era melhor procurar ajudar qualquer pessoa, porque era aqui na minha ‘radiadora’ a donde nós tirava dinheiro pra enterrar as pessoas, porque nesse tempo a situação financeira dos políticos tava grande e num tinha esse ajudo. Aqui com essa ‘radiadora’ foi que eu tirava, um menino se perdia, uma criança se perdia, uma pessoa tava em situação financeira, nós mesmo não pedia o governo, ia

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logo era com a ‘radiadora’ e todo mundo dava e daí nós fomos” (Juca, ex-líder comunitário, 64 anos).

Segundo ele, vieram aproximadamente umas 120 famílias: “viemos todos pra cá,

fiquei aqui sendo a pessoa de frente, me esforçando, conversando e formando uma reunião

comunitária e aí começou essa”. Imediatamente buscou organizar a Comunidade no que se

refere à infra-estrutura através da ajuda de políticos que favoreceram alguns aspectos

estruturais como: energia elétrica. Responsabilizou-se pela colocação das placas de toda a

Comunidade e definiu o nome das principais ruas: “botava umas placazinhas na rua e botava

os nomes”. Recorda também que nenhuma das casas tem escritura.

Os primeiros a chegaram ao local começaram o fluxo de ocupação, a partir de

terrenos localizados próximos à Rua Central, ou seja, a Rua do Comércio, que liga a entrada

da Comunidade até a igreja de São José, final da Comunidade, conhecido como Dendê. Nessa

divisa, ruas e ruelas foram abertas pelos próprios moradores que chegaram posteriormente. A

escolha dos nomes das ruas foi realizada pelos primeiros moradores, nasceu então a Rua do

Comércio: “eu mesmo botei, porque aqui é onde têm os comércios, aonde vamos fazer os

boteco e tudo” (Juca, ex-líder comunitário, 64 anos); a Rua Otávio Rocha: “morava um rapaz

por nome Otávio nesta rua” (Juca, ex-líder comunitário, 64 anos); Rua Lucas Francisco

Antônio; Rua do Contorno (oficialmente Will Morais); Rua Roberto Silva; Rua Ubaitaba;

travessa Cantoneide; Rua Cantoneide; travessa Muritiba.

Um dos casos que promoveu mudanças estruturais na comunidade foi o de Maria,

natural de Ipueiras, 47 anos. Ela veio morar no bairro, em 1975, depois que se separou do

marido. Pensou em morar em Brasília, mas o dinheiro não dava para as despesas dos filhos.

Então ficou na Comunidade e criou os quatro filhos sem nenhuma ajuda do ex-marido.

Estudou até o início do ensino médio e boa parte de sua vida trabalhou como doméstica.

Contava que os filhos estudassem, mas a dificuldade financeira da família favoreceu que eles

procurassem logo alguma forma de trabalho antes que concluíssem os estudos. Um dos filhos

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foi morar no Rio de Janeiro. Maria tem voz firme e sua conversa parece mais um estilo de

discurso, gesticula muito quando fala.

Sua casa foi reconstruída, tem cinco cômodos, antes era de taipa e possuía apenas

um cômodo, onde morava com os quatro filhos pequenos. Hoje, todos os seus filhos estão

crescidos e casados, segundo ela: “eles têm sua própria casa”. Embora todos morem próximos,

em terrenos de mutirão. Uma de suas filhas é casada e passa todo o dia com o filho em sua

casa, seu neto apresenta um problema visual. Quando chega a noite, a filha retorna para sua

residência construída em um mutirão próximo. Todos os mutirões próximos da comunidade

foram incentivados por Maria e as casas de seus filhos foram construídas por meio de mutirão.

Ela é tomada por certo ressentimento de alguns moradores da Comunidade, desde

que foi eleita como a primeira líder comunitária, em 1977, sempre esteve envolvida em

atividades voltada para as melhorias da Comunidade, atualmente dedica-se a um projeto de

segurança para a Comunidade em conjunto com a Secretaria de Segurança Pública do estado

do Ceará, é membro do Conselho Comunitário do bairro.

“Em 77, aí a gente já criou a Associação. Ela foi legalizada mesmo em 83, mas já existia a Associação, o espaço e tudo, num sabe? E em 83, foi que ela foi legalizada, acho que foi nessa faixa aí que ela foi legalizada, me lembro que quando a gente terminou, não foi, porque em 81 foi a Federação depois foi que a gente legalizou, mas já existia uma organização muito forte, muito participativa, muito positiva, num sabe? Era uma organização muito grande que a gente tinha aqui” (Maria, 47 anos, ex-líder comunitária).

A Rua do Comércio é a mais importante e freqüentada da Comunidade.

Praticamente corta toda a Comunidade do Dendê, a qual divide-se em dois mundos totalmente

diferentes. De um lado estão os pobres que chegam até a Baixada, reconhecida como a favela

do bairro, e do outro estão os ricos, representados pelos condomínios fechados de

apartamentos e de casas. Essas construções são uma das mais recentes propostas inovadoras e

em expansão do setor imobiliário em Fortaleza. A Avenida Contorno faz limite com a entrada

do bairro e fronteira com o muro da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), situada em uma

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estrutura do antigo Núcleo de Assistência de Medicina Integrada (NAMI). Os moradores

procuram normalmente essa unidade de saúde, embora a considerem carente quanto aos

serviços de emergência.

O centro que move a economia local é representado pela Rua do Comércio, onde

estão localizados os principais mercadinhos, mercearias, bares e botecos, frigorífico, farmácia,

a rádio comunitária mais antiga da Comunidade, protético e lojas de móveis.

Quanto aos moradores mais antigos, muitos deles residem à Rua do Comércio ou

em suas proximidades, outros moravam em sítios, os que chegaram depois, passaram a residir

em ruas estreitas ou nos becos. Outros espaços são ocupados por condomínios fechados de

apartamentos e de casas para as pessoas de poder aquisitivo mais elevado. Nas narrativas dos

moradores, eles enfatizam que as pessoas residentes nos apartamentos, muitos são professores,

funcionários e alunos da referida universidade situada na vizinhança.

As evidências refletem as sociedades modernas, as diferenças entre ricos e pobres

têm gradativamente cedido lugar às formas mais sutis de desigualdades. Nessas sociedades,

independente do nível de desenvolvimento, as desigualdades passam a assumir a forma de

diferenciais entre indivíduos situados em distintas posições na organização social

(WILKINSON, 1996; NUNES et al., 2001).

Atualmente, espaços disponíveis, como os terrenos particulares e desabitados, são

invadidos por famílias sem moradias ou, em algum momento, já tiveram moradia própria e

perderam por vários motivos como: vender o próprio imóvel. Uma das áreas mais impróprias

para construir moradias é a Baixada, classificada como área de preservação permanente - área

de manguezal.

A Comunidade exprime uma arquitetura bastante peculiar, além de ser visível, a

segregação social entre ‘ricos’, ‘pobres’ e ‘mais pobres’. Aqueles em melhores condições

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econômicas vivem em casas de alvenaria e em sua maioria apresentam mais de dois ou três

cômodos (sala, quarto, cozinha e banheiro). Enquanto outros vivem em condições de vida

insalubres como suas construções de moradias em terrenos inadequados, como alguns

moradores narram: ‘vivo na lama’ ou ‘moro em terreno molhado’ e em sua maioria, as casas

apresentam um só cômodo.

Nas narrativas dos moradores, são descritos comportamentos sociais de quem mora

ou não na Baixada, os quais expressam uma combinação da condição de vida e necessidade de

aquisição de recursos estruturais para sobreviverem. Segundo os próprios moradores da

Baixada, ‘porcos’ são os que moram nesse lugar, representam cidadãos que vivem em piores

condições de vida por não terem acesso à infra-estrutura básica, já disponível aos outros

moradores da mesma Comunidade como: energia elétrica, saneamento básico – água tratada,

coleta de lixo e boas condições de higiene adequada em suas moradias, limpeza pública no

local. Em princípio, esse ambiente não seria um local apropriado para as pessoas viverem.

Os moradores da Baixada sentem-se discriminados e rotulados, “somos todos

iguais aqui na Baixada” (Florinda, dona de casa, 34 anos); “porque tudo é pai de família, só

teve um que matou e esse tá preso” (Vicência, rezadeira urbana, 53 anos). Embora

reconheçam a relação existente entre a posição social e atuação, outros admitem diferenças no

próprio grupo E são visíveis as condições aparentes de recursos de sobrevivência como o

reconhecimento da presença das redes de apoio aos moradores mais pobres “ele ganha cesta

básica” (Vânia, moradora, 24 anos).

Segundo Paugam (2003), a noção de pobreza não é estigmatizante quando se

banaliza, ou seja, quando ela é muito freqüente o conjunto da sociedade não a discrimina. Na

Comunidade, as pessoas que moram na Baixada não são diferenciadas, os vínculos sociais e

familiares não permitem o isolamento dos mais pobres e fragilizados, pelo contrário, buscam

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estratégias para integrá-los, e ajudar os vizinhos, quando é preciso suprir algum recurso

material, como o alimento para subsistência.

6.4 Características Socioculturais da Comunidade do Dendê

A realidade local dos moradores, no início de sua emancipação, contou com a

organização de pequenos grupos reivindicatórios que buscaram recursos como energia

elétrica, abastecimento de água, pavimentação das ruas de maior circulação e legalização pela

posse da terra, que gerou entre os moradores uma conformidade do espaço.

“Lutamos muito pela desapropriação da área, era uma das principais lutas daqui. Naquela época ainda tinha, assim, muita resistência, até hoje ela não foi legalmente desapropriada, mas não tem nem perigo; o pessoal num tem medo, não tem nem perigo” (Maria, ex-líder comunitária, 47 anos).

Apesar de uma mobilização inicial, observa-se uma fragmentação aguçada das

organizações que poderiam reivindicar suas ações institucionais. Na Comunidade, há doze

entidades que buscam mobilizar e organizar os moradores. A associação de moradores mais

antiga, reconhecida pelo governo, foi fundada em 1981, atualmente está sendo modificada no

intuito de padronizar todas as entidades existentes no local.

Tal diversificação é formada por organizações não governamentais, grupos em

defesa do idoso e da mulher, grupos religiosos e grupo das crianças e adolescentes da

capoeira. Por conseguinte, surgem divergências entre os grupos e as ações pontuais não

fortalecidas em virtude do individualismo, um dos princípios do processo de globalização das

sociedades modernas. “Ali quem comanda é a Carla, ali tem grupo de jovens, que faz muitos

anos, aí faz prenda para ajudar a Igreja, ela só comanda aqui mesmo. Aí tem a Laura, tem a

Júlia e ela faz o grupinho dela. Cada qual tem o seu grupo, eu não participo não, sabe, porque

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as pessoas que estão, são muito egoístas, trabalham para a igreja, não melhora nada, tem um

leilão, invés de ajudar a igreja” (Sandra, 32 anos, filha de Diana).

Alguns membros da Comunidade reconhecem que a desintegração e

desarticulação promovem um atraso no desenvolvimento econômico e social da própria

Comunidade, entretanto sentem-se conformadas e complacentes com a situação.

“As lideranças sempre brigavam entre si pelo poder não só essa entidade aqui. Assim, por conta disso, a nossa comunidade está se atrasando. Hoje nós não temos saneamento básico no bairro que poderíamos ter; nós temos em média de quinze mil moradores só nessa comunidade aqui uma média de quinze mil moradores. É, nós temos assim por cima, no NAMI, nós temos treze mil pessoas cadastradas só pra ser atendida. Só as que são escritas então nós temos uma média de vinte e duas mil pessoas a média é essa, não contamos com os apartamentos, não contamos com os conjuntos, só a comunidade do Dendê como é conhecida” (Francisco, líder comunitário, morador há 22 anos).

A proposta da integração de grupos ‘marginalizados’ parte do princípio de que a

maioria da população, em razão da sua condição de pobreza, encontra-se ‘fora’ da sociedade.

É como se a dificuldade de acesso aos produtos e serviços básicos fosse uma decorrência da

ignorância e passividade dessas populações ‘marginais’, ou para utilizar um termo mais

atualizado, os excluídos, isto é, aqueles que estão ‘fora’ por culpa própria, precisando ser

animados, incentivados, esclarecidos, para poderem participar dos benefícios do progresso

econômico e cultural (VALLA, 1998).

O mesmo autor ainda afirma que essa concepção tem raízes fortes em nossa

sociedade e que inspira inúmeros programas governamentais e religiosos há muitos anos, os

quais se desenvolvem com vistas a integrarem os chamados ‘marginalizados’. Esse tipo de

participação obscurece o fato de que os grupos ‘marginalizados’ sempre estiveram dentro da

sociedade, e participam da riqueza de forma bastante desigual. A integração deveria, então,

passar necessariamente pela garantia de empregos, melhores salários, disponibilidade e acesso

aos serviços básicos.

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É percebida uma segregação entre os moradores dos condomínios fechados e os

moradores das casas próximas à área central da Comunidade. Colocam-se como externos ao

grupo, os moradores dos condomínios reconhecem os moradores da Comunidade como um

grupo “perigoso”, “delinqüente”, sendo uma forma unilateral de segregação. Neste sentido,

rompem-se vínculos ou contrariamente buscam sua própria identidade.

As mudanças estruturais e sociais que o bairro sofreu com o assentamento,

compreendido por alguns moradores mais antigos como algo que promoveu desintegração

entre os moradores, geraram uma resistência para aproximar as pessoas que chegavam ao

local posteriormente, além de revelar um preconceito de grupos étnicos.

“Jamais a gente imaginava (...), a gente veio conhecer uma favela quando eles começaram a construir, no início pensava que fossem os ciganos, eles gostam de invadir terra (...) pessoal que invade os terrenos. Naquela época, eram os ciganos, eu lembro que vinha aquele pessoal com aqueles filhos no cavalo, e tinha uma mangueira e eles ficavam em baixo (...), então papai pegava, mandava se retirar, porque senão eles tomavam aquele canto ali, não queria sair mais e se apossava daquele cajueiro e não saía mais (...) a gente achava que favelado fosse cigano” (Soraia, 44 anos, moradora antiga).

O aumento do número de moradias vincula-se também a um sentimento que o local

perdeu, a segurança e a tranqüilidade das pessoas que circulavam livremente nas ruas, até

durante a noite. Para alguns moradores, a “favela está perigosa”, mas referindo-se às áreas

próximas da Baixada, onde é mais visível a pobreza absoluta.

“Tinha que passar por dentro, mas não tinha perigo. Depois que fechou mesmo com muita casa, aí tinha muita morte (...) você não tem coragem de sair aqui à noite pra ir prum canto, pra ir numa Igreja, porque várias pessoas já foram assaltadas por ali. (...) Já teve um estupro de uma menina que vinha do trabalho 9:00h da noite. Foi passando próximo aos apartamentos, tinha um cajueiro, parece que um cara pegou ela e estuprou” (Soraia, 44 anos, moradora antiga).

“Foi quando começou a favela. Ave Maria, não gosto nem de me lembrar. Não imaginava isso. E agora que tomaram de conta de um terreno aí, invadiram o terreno de um homem bom. Isso aí era pra ser um colégio” (Diana, 64 anos, moradora antiga).

Enquanto outros moradores preservam um sentimento de tranqüilidade em relação

ao bairro, justificado por uma visão banalizada da violência. Assim, pode-se observar na

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seguinte frase: “tranqüilo, violência tem em todo canto, mas por aí tem demais, aqui é mais

calmo e todo mundo quer vim” (Juca, ex-líder comunitário, 64 anos).

Os eventos lúdico-culturais encontrados na Comunidade é a quadrilha e a capoeira,

porém a quadrilha ocorre durante os festejos do São João no mês junho, particularmente entre

os jovens. O grupo de capoeira é mantido pela associação de moradores, participam quarenta

crianças com idade entre 5 e 7 anos. Os pais pagam mensalmente R$ 5,00 para manter o filho

nessa atividade, mas há crianças que os pais não têm recursos, e elas são mantidas pela própria

associação. A atividade foi elaborada no sentido de oferecer uma opção cultural para as

crianças que moram na Comunidade.

“Esse trabalho eu vim fazer porque eu não via nenhum movimento dentro da comunidade em relação a isso, tinha a quadrilha e hoje, os grupos mais fortes que existe na comunidade são o de capoeira e de quadrilha, são esses que existe trabalhando essa área cultural certo (...) não existia isso pra você ver algum movimento aqui, alguma coisa você teria que esperar na época política porque nessa é que eles aparecem e trazem as novidades” (Francisco, líder comunitário, morador há 22 anos).

A quadrilha é organizada pelos moradores mais antigos do bairro, as festas juninas

são realizadas em uma quadra construída em um terreno particular, de uma família bastante

conhecida da Comunidade, até pouco tempo atrás chegavam a contratar conjuntos musicais

bastantes conhecidos em Fortaleza, organizavam festivais de quadrilha que chegavam a ter

mais de 1.000 pessoas, cobravam apenas uma taxa de entrada de R$ 0,50 por pessoa. As

pessoas da Comunidade participavam dessas festividades, sobretudo, nesse ambiente festivo.

Atualmente, a comunidade é movida por medo da violência, “este ano, só vamos organizar a

quadrilha, mas as festas, hoje faz medo você fazer” (Soraia, 44 anos, moradora antiga). Como

resultado da organização das quadrilhas, chegam a participar, por ano, até doze quadrilhas,

vindas de outros bairros de Fortaleza somente para dançar no local.

Os mais antigos moradores lembram que havia, no local, outros eventos sociais

como os esportivos, em um campo de futebol, conhecido como campo nacional. Nos finais de

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semanas, as famílias se encontravam para assistir às competições dos times de futebol

formados por moradores. Alguns moradores lembram desses eventos com saudosismo: “ali

era o campo nacional, do lado tem a padaria; lá atrás era um campo de futebol, cansei de ir e

assistir jogo ali”. Atualmente o local está todo ocupado por moradias impróprias.

Outros espaços que são utilizados pelos moradores como espaço de lazer é um

‘terreno da marinha’, localizado no mangue, caracterizado como área de preservação

permanente. No período das chuvas, entre janeiro e março, não é possível jogar futebol no

local, devido ao alagamento da área. Os eventos esportivos são semanais, promovidos pelos

próprios moradores, particularmente entre os homens.

Espaços abertos como as ruas são reconhecidos como as únicas opções de espaço

disponível para as crianças brincarem. No entanto, são vistos como ‘perigosas’ e sem

segurança para as crianças. As atividades de lazer se encontram relacionadas à faixa etária,

porém, praticamente inexiste diversão para as crianças, uma vez que o local não dispõe de

áreas específicas para o desenvolvimento de atividades lúdicas destinadas às crianças.

O lazer na Comunidade passou por mudanças devido à influência de novos

comportamentos, o que pode ser notado na afirmação de “o bairro está muito violento e as

pessoas não têm mais aquele lazer”, referindo-se em ficar nas calçadas conversando com os

vizinhos. Antes, no bairro, segundo os moradores entrevistados, “você podia brincar”, mas no

momento, não há esse espaço e nem tempo para a criança, “você aqui está entregue à

violência, aos marginais”, “o bairro está totalmente diferente”.

Tanto os adolescentes como os idosos não dispõem de espaços destinados ao lazer.

Os moradores não vêem uma boa perspectiva para esses dois grupos. Embora alguns idosos da

Comunidade se envolvam com grupos de apoio de iniciativa da própria universidade privada

existente na vizinhança do bairro, mencionados anteriormente.

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Outro espaço que, caracteristicamente, pode ser visto como de sociabilidade e de

diversão dos moradores é a feira semanal, que ocorre aos sábados pela manhã há uns cinco

anos. Os feirantes são de outras localidades, são comercializados alimentos, plantas

medicinais, materiais de higiene pessoal, roupas, utensílios elétricos, eletrônicos e até móveis.

Durante a realização do evento, podem-se obter alguns serviços, tais como reparos de

utensílios domésticos. Ocasionalmente, ocorrem pequenos furtos que são acometidos por

membros da própria Comunidade. Normalmente, os equipamentos elétricos e eletrônicos são

os mais visados, e ocorrem quando há uma eventual ‘falta de cuidado’ dos feirantes. Os

vendedores não denunciam temendo represálias, alguns vendedores entrevistados preocupam-

se com a manutenção das relações comerciais tal como um que diz ter “necessidade de

continuar ganhando a vida”.

Ainda nos finais de semana, a face da Comunidade pacata, referida durante a

semana, muda, principalmente, no final da tarde do sábado e durante a noite do sábado para o

domingo. Os bares ficam mais visíveis e movimentados, devido à presença de grupos de

adultos e jovens. Os moradores reconhecem que esses lugares são de diversão. Destacam-se o

forró do Zezé que funciona aos sábados durante a noite e aos domingos no período da tarde. O

local não é visto como tranqüilo para diversão entre os moradores que freqüentam ou não o

local, muitas vezes, ocorrem brigas e desentendimentos provenientes do consumo de bebidas

alcoólicas entre os próprios moradores da Comunidade.

De acordo com a associação de moradores, a escola funciona também como um

espaço para aperfeiçoamento e formação de profissões para os moradores da Comunidade,

como o curso de capacitação para baby-sitter, destinado às jovens moradoras. Há uma

improvisação do espaço, entretanto, é visto como positivo para a Comunidade. Embora o

número de vagas seja restrito para 380 alunos distribuídos nos diversos cursos oferecidos à

Comunidade.

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Levando em consideração os participantes deste estudo, observamos que havia

quatro tipos de chefes de família residentes na Comunidade:

1. O chefe de família sendo o pai, cuja família é composta por pai, mãe e filhos;

2. A chefe de família sendo a mãe, cuja família é composta por pai, mãe e filhos;

3. A chefe de família sendo a mãe, cuja família é composta por pai, mãe, filhos e

agregados como pais maternos e por fim;

4. A chefe de família sendo a mãe, cuja família é composta por mãe, filhos, netos

e outros parentes.

As famílias visitadas em seus domicílios eram extensas, encontramos pai, mãe,

filhos e agregados como pais maternos, pais paternos, netos ou não. Os filhos podiam ser dos

pais ou não, filho só da mãe ou filho só do pai. Alguns indivíduos circulavam sozinhos de dia

e de noite pela Comunidade, apresentando comportamentos de embriaguez ou muitas vezes

eram reconhecidos como loucos porque falavam sozinhos; quando se aproximavam das casas

eram afastados pelos próprios moradores ou fechavam as portas evitando qualquer

aproximação, eles geralmente moravam sozinhos ou escondidos em ruelas.

Evidencia-se um reconhecimento social das famílias da Comunidade, pois muitas

delas existem identidades próprias como grupos familiares, a história de Floriano, filho do Sr.

Carlos, um dos antigos moradores da Comunidade explica este reconhecimento. O fato

confere a todos os membros da família uma liberdade para caminhar em todo o bairro:

“Aí passando ali o menino me pediu R$ 0,50 e eu disse que não tinha. Aí esse "num dá aqui, mas lá na frente tu dá". Aí o senhor da bodega disse, rapaz não mexe com ele não, ele é conhecido, é fulano de tal. É filho do “Seu” Carlos, você não o conhece, não mexa com quem você não conhece não porque de uma outra hora você pode se cortar, meu pai é muito conhecido” (Floriano, 30 anos, desempregado).

Floriano morou durante seis anos na região Norte, em Santarém, no Pará e depois

em Manaus. Não está trabalhando e realiza pequenos serviços temporários. Ele diz “só pego

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bico, o último foi de pintor, meus pais moram há vinte e dois anos no Dendê”. Antes de ir para

o Norte, trabalhou no setor de serviços gerais em alguns restaurantes da orla marítima de

Fortaleza, com vínculo empregatício. No Norte, trabalhou como pintor, eletricista e pedreiro e

voltou há três meses. Trouxe uma mulher e dois filhos, sendo que um deles não é

biologicamente seu. Está morando temporariamente com seus pais em uma casa de três

cômodos. Seus pais tiveram seis filhos, somente três estão vivos. A casa dos pais passou por

mudanças estruturais, recorda quando criança da sua casa “era de taipa, era mais pobrezinha”.

Segundo ele, seus pais melhoraram financeiramente e compraram uma casa maior, onde eles

moram atualmente, ele recorda que, no início, parte da casa era feita de uma construção

improvisada de taipa que foi sendo reformada ao longo do tempo para alvenaria.

Outras casas foram adaptadas para comercialização de produtos saneantes como:

água sanitária, desinfetante e plantas medicinais. Os espaços são organizados da seguinte

forma, usam parte da ‘sala de visita’ para esse fim.

As mudanças comportamentais entre os moradores da Comunidade foram

percebidas somente nos últimos vinte anos. Uma delas refere-se a formações de grupos ilícitos

como grupos do tráfico de drogas e grupos que organizam pequenos furtos e roubos no

próprio bairro ou em outros bairros próximos. Alguns membros desses grupos reconhecem

que essas atividades podem ser um meio de vida para obter recursos materiais rapidamente e

serem reconhecidos em todo o grupo.

Os modelos familiares também reproduzem as mudanças e são repassados aos

filhos, conforme afirma Francisco: “geralmente são os filhos que usam drogas que antes os

pais usavam dentro de casa e que aquilo daí influenciava o filho”. Além disso, os moradores

reconhecem que ocorreram mudanças na autoridade dos pais frente aos filhos. Alguns

moradores transferem-nos para as instituições oficiais como: polícia, e se for menor de 18

anos, internam o filho em uma instituição para menores que cometem pequenos atos ilícitos

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como ‘comprar drogas’. Esse poder de ‘corrigir’ o filho, os pais permitem que outros que

estão fora da família façam isso por eles.

“Os próprios pais são os principais causadores do vício do filho, primeiro o pai manda o filho comprar um cigarro na bodega, o pai manda o filho acender o cigarro pra eles, às vezes eu não tenho, assim, certeza mais talvez até o próprio pai peça pro filho comprar droga pra ele, entendeu? É isso o que leva a essa situação que tá cada vez mais aumentando” (Francisco, líder comunitário, 30 anos).

São percebidas mudanças quanto ao tipo de droga ilícita disponível e utilizada na

Comunidade. Segundo alguns moradores, a droga mais usada antigamente era a maconha,

hoje, além da maconha, usam-se cola, loló, cocaína, medicamentos psicotrópicos, conhecidos

como ‘aranha’, pedra, conhecida também como “crack”. Essas mudanças da diversificação

dos tipos drogas têm uma relação com o aumento populacional e social da Comunidade.

Alguns moradores dizem que ‘os pais não combateram’ o consumo de drogas dos seus filhos,

e hoje, muitas famílias são sustentadas por meio desse recurso, assim, o trafico é permitido

dentro da família.

As drogas são consumidas durante o dia ou à noite, em ruas pequenas, geralmente

os grupos mais expostos são de jovens que fumam cigarros de maconha, conhecidos como

‘baseados’; a ‘aranha’ é bastante usada nas festas dos mais jovens, já o crack ou pedra pode

ser comercializado por R$ 10,00 e as pedras bem pequenas por R$ 5,00. O grupo é formado

por empatia e vizinhos próximos. Por outro lado, a cola é mais usada entre as crianças e a loló

é vendida em algumas bodegas da Comunidade.

O comércio de drogas forma e mobiliza grupos locais como as crianças, utilizadas

como avião. Elas levam as drogas de um lugar para outro da Comunidade. Esse comércio

gera, entre os moradores, o medo da violência e o confronto direto entre traficantes e

moradores e também provoca ‘silêncio’ e ‘passividade’ das pessoas. Essa afirmação é

reiterada pelo seguinte depoimento: “a gente não pode fazer nada, é sofrer duas vezes, vê o

sofrimento, voltar pra casa chorando e continuar no sofrimento sem você poder fazer nada”.

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A violência e o tráfico de drogas são os maiores problemas sociais eleitos pelos

moradores e policiais que trabalham no local há mais de oito anos para controlar esses

problemas dentro da Comunidade.

Alguns moradores afirmam que os policiais sabem onde ficam os pontos de

tráfico. Existem, em média, cinqüenta locais conhecidos como boca de fumo dentro da própria

Comunidade. Moram no local pouco mais de vinte policiais. Os moradores chegam a afirmar

que a polícia é complacente com o tráfico por ser também beneficiada. Dizem que ela é

subornada pelos grupos envolvidos. As prisões em flagrante acontecem por meio de denúncia

dos moradores ou dos membros de grupos adversários existentes na própria Comunidade.

“Os dois principais problemas da comunidade são a violência física e a questão do tráfico, mas existe um trabalho feito na quarta companhia de policiais, inclusive policiais que moram aqui fazem parte. Ele tem uma meta pra seguir, mas geralmente a gente sabe que distorce o caminho e esses policiais poderiam, de certa forma, tentar combater isso daí, mas, muitas vezes, eles apóiam” (Francisco, líder comunitário, morador há 22 anos).

As ações policiais são consideradas inoperantes e desacreditadas pelos moradores

da Comunidade. Aliadas a isso, os moradores reconhecem que os policiais não têm mais

autoridade para garantir a segurança no bairro. Todas essas afirmações são reforçadas por

narrativas como: “a policia prende e solta na manhã seguinte, não adianta, esse nosso bairro

aqui, ele tá entregue às baratas”.

É uma Comunidade construída por um ideal de uma vida ‘melhor’, embora os

conflitos existenciais e as necessidades estruturais (moradia, alimentação e emprego real)

sempre estejam presentes na vida desses moradores. Além da violência estrutural como a

pobreza, presente no cenário familiar das crianças, nos quais suas famílias desenvolvem

estratégias da sobrevivência, segundo os aspectos sociais, culturais e ambientais influenciados

pela condição de ser e estar no mundo. Fundamentalmente, a vida comunitária vem

continuamente se degradando: os líderes não encontram referenciais, as celebrações (festas

juninas) estão sendo modificadas por novos movimentos (forrós urbanos, festa de halloween),

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não há uma identidade social de grupo, pelo contrário são reforçadas as divisões de grupos, há

uma restrição de o espaço domiciliar como espaço também de lazer. Talvez possa ser uma

repercussão das mudanças da estrutura da própria cidade de Fortaleza, que direta ou

indiretamente atingiu os movimentos sociais locais.

Conseqüentemente, as casas das crianças e suas famílias perdem por não serem

mais vistas, e sim visualizadas como fenômenos sociais: ‘bairro violento’, ‘só tem bandido’.

Some-se a isso um grupo que vive na esperança do mundo mudar a sua volta e, com isso,

surgirem casas, saúde e vidas dignas. No entanto, é dominante o sentimento ideológico da

dependência dos instrumentos estatais porque não se sentem como cidadãos que podem

reivindicar seus direitos para si e suas crianças.

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7 CONCLUSÃO

Nesta tese buscamos identificar os processos sociais e culturais associados às

doenças respiratórias infantis em um assentamento urbano em Fortaleza, por intermédio de

uma análise contextual e sociocultural, com vistas a compreender como são interpretados os

comportamentos e as ações desenvolvidas pelos moradores desse assentamento que enfrentam

esses problemas cotidianamente. Para tal, partimos da compreensão da semiologia popular das

doenças respiratórias infantis, construída sob a forma de categorias êmicas, que foram

identificadas pela análise de narrativas de mães de crianças que sofrem esses problemas ou

por pessoas que vivem esses problemas ao longo de sua vida, que reconstruíram suas

experiências de problemas respiratórias infantis. Portanto, essa análise meticulosa, realizada a

partir da contextualização das narrativas, resultou em três deduções genéricas, orientadas pelo

modelo teórico do sistema de signos, significados e ações (BIBEAU, 1992; CORIN, 1992a,

1992b, 1995; CORIN; BIBEAU; UCHÔA, 1993; BIBEAU; CORIN, 1994; UCHÔA; VIDAL,

1994).

Inicialmente, com a identificação dos processos sociais e culturais das doenças

respiratórias infantis e a compreensão do sistema interpretativo dos comportamentos e ações

voltadas para lidar com essas doenças, percebemos que para os moradores do assentamento

em estudo a noção de doença respiratória infantil abrange o espaço do corpo, o contexto local

e a experiência subjetiva do adoecer. O espaço do corpo é reconhecido como um corpo

doente, manifestado por meio de comportamentos e ações relacionadas à doença respiratória

infantil. O contexto local é representado pelo espaço social e caracterizado por seus costumes

locais, fatores ambientais e aspectos históricos. A experiência subjetiva do adoecer

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identificado dá-se pela construção do significado do caso concreto de adoecer por doença

respiratória infantil.

Em seguida, procedemos de maneira analógica ao modelo do sistema de signos,

significados e ações (BIBEAU, 1992), ao empregarmos a idéia de dispositivo patogênico

estrutural e de condicionante estruturante para explicar a causalidade das doenças respiratórias

infantis. Observamos que o dispositivo patogênico estrutural representa a cultura, a condição

socioeconômica, a biologia, a geografia, a política e o ambiente, que constituem a doença

respiratória infantil em um assentamento urbano. Os condicionantes estruturantes

identificados foram a pobreza, o ambiente e a formação história do assentamento.

Percebemos também que a experiência subjetiva de casos concretos de portadores

de doenças respiratórias expressa diferentes elementos da organização coletiva do

assentamento, em termos de mecanismos de identificação dos problemas respiratórios e as

formas de lidar com eles podem ser representadas pela complexidade das agências

terapêuticas existentes no local, bem como pelo acesso a essas agências que podem tratar as

doenças respiratórias infantis.

De acordo com a pergunta gerada para a realização desta tese: Como são

construídos e compartilhados os modelos de interpretações e ações frente às doenças

respiratórias infantis dos moradores de um assentamento urbano? Pode-se constatar que os

modelos são construídos e compartilhados de maneira polissêmica tanto como parte das

experiências individuais quanto coletivas, a partir dos diferentes e particulares significados

atribuídos pelos sujeitos aos problemas respiratórios infantis.

O assentamento urbano denominado ‘Comunidade do Dendê’ foi formado a partir

de conflitos sociais, particularmente na busca por um espaço de moradia. Em alguns

momentos de sua história era visível seu poder reivindicatório coletivo para garantir

mecanismos de infra-estrutura para Comunidade, no entanto esse movimento foi reprimido

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por políticas que acentuaram as desigualdades sociais, surgindo assim divisões de lideranças

locais, nas quais predomina o individual, efeito do processo de globalização presente na

referida Comunidade. A infra-estrutura da Comunidade é extremamente deficiente e desigual

e a feição muitas vezes não representa um estímulo real para conquista de uma vida melhor

entre os moradores, entretanto, em seu imaginário, essas conquistas estão presentes. Embora

não seja possível perceber a vida comunitária coesa e bem articulada, quando se refere às

questões de saúde, a coesão social é resgatada, articulando-se os interesses sob a forma de

redes terapêuticas, que se expressam na ajuda que é dada pelos grupos de vizinhança àqueles

que necessitam de apoio para cuidar da saúde e dos doentes.

O modelo do sistema de signos, significados e ações nas doenças respiratórias

infantis é influenciado pelo universo sócio-histórico da Comunidade, conseqüentemente

percebemos um sentimento que tais doenças estão internalizadas em seu universo cultural,

embora elas possam estar enraizadas na cultura. Nesse caso, verificamos que não é a doença

que faz parte da cultura do pobre, mas sua condição de pobreza que favorece o surgimento da

doença; particularmente no universo sociocultural da criança, essa influência está mais

aguçada.

Com a transição das crianças para fase da adolescência, são reveladas

modificações de problemas sociais, ou seja, novos problemas sociais também repercutem na

vida desses jovens e crianças, considerados neste estudo como categorias socioculturais. A

participação social da criança nessa Comunidade, por meio de sua iniciação no tráfico de

drogas, acontece entre 10 e 14 anos, muitas delas desempenham o papel denominado de

‘avião’ nas atividades ilegais de venda de drogas na Comunidade, sendo-lhes atribuída a

função de transportar drogas; essa atividade pode ser tomada freqüentemente como um

reconhecimento ou uma diversão em seu grupo. O ingresso de seus filhos em atividades do

tráfico de drogas causa preocupação, sofrimento e dor entre as mães. Da mesma forma, o

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consumo precoce de bebidas alcoólicas por crianças ou adolescentes é responsável por sérios

transtornos tanto para os pais como para os próprios jovens envolvidos.

Quanto à identificação dos signos e significados relacionados às doenças

respiratórias infantis reconhecidas pelos moradores dessa Comunidade, verificamos que a

posição social do sujeito doente estabelece parâmetros de diferenciação quanto ao tipo de

signos e significados, bem como construção de estratégias de ações frente à doença e a busca

por ajuda.

Os onze signos descritos pelos moradores, identificadores de doença respiratória

infantil, seguem uma lógica de hierarquia da gravidade, embora nem todos esses signos sejam

identificados de forma homogênea na Comunidade, reconhece-se que sua manifestação se

encontra associada à localização geográfica e ao nível de envolvimento com a doença. Alguns

signos foram classificados como universais, a gripe, a pneumonia, a tosse cheia e a tosse seca,

independente da localização geográfica que eles surgiam, com maior ou menor freqüência. Os

outros se referiam à experiência com a doença como o cansaço, a asma e a bronquite.

Ao analisarmos o modelo explicativo das doenças respiratórias infantis

verificamos que o modelo etiológico exógeno formulado por Laplantine (1986) foi

predominante, reconhecendo que as explicações causais dessas doenças conduzem a uma

visão sociocultural compartilhada, portanto ultrapassam a visão individual do doente, mesmo

se tratando de uma particularidade da noção da doença.

Os problemas de saúde entre as crianças apresentam hierarquias sazonal e social.

No caso das crianças que moram na Baixada, os problemas se encontram relacionados à

própria forma de ganhar a vida dos moradores, tal como quem lida com carvão, e afeta o

sistema respiratório das crianças. Há, portanto, a produção de fumaça no ambiente, porém essa

atividade é desenvolvida apenas em alguns meses do ano, principalmente no verão, entre os

moradores que estão próximos a essa área.

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Os problemas respiratórios infantis na Comunidade em estudo são complexos

devido à compreensão de sua causalidade, formas de manifestações, gravidade, transmissão,

diagnóstico, processos terapêuticos e preventivos que combinam as dimensões cultural,

biológica, geográfica, psicológica, socioeconômica, política e ambiental.

A relação causal das doenças respiratórias infantis refere-se a questões sociais e de

infra-estrutura do assentamento tais como ausência de um planejamento e de uma política

ambiental, baixa escolaridade dos moradores, falta de perspectiva de ter uma ocupação

remunerada. Entretanto, alguns moradores vêem soluções centradas na dimensão do processo

saúde-doença, ou seja, no que tange à garantia de um serviço de saúde para atender todo o

grupo. Embora haja o reconhecimento do processo terapêutico local, quando os mesmos

fazem uso dos recursos terapêuticos disponíveis, como as agências e agentes terapêuticos do

setor comunitário e do uso dos serviços e técnicas terapêuticas do setor profissional, por meio

dos centros de saúde disponíveis no local ou até a busca por serviços em outros bairros, sem

esquecer do uso plantas medicinais.

Quanto à gravidade dos problemas respiratórios infantis, as mães definem o tipo

de problema em função da seleção da busca por recursos terapêuticos estabelecidos por elas.

No caso das gripes, percebemos uma naturalização desse tipo de problema respiratório

infantil, em que as mães definem esse signo como um problema da saúde comum à vida das

crianças, geralmente, são usados os recursos do setor comunitário, com a aplicação das

técnicas terapêuticas tradicionais, de maneira isolada ou associada com aquelas do setor

profissional.

O uso das medidas terapêuticas ou preventivas pertencentes ao setor comunitário

como recorrer as rezadeiras urbanas, raizeiros urbanos, farmacistas, plantas medicinais,

preparações caseiras, dentre outras, é freqüente como parte do processo terapêutico tanto

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individual quanto coletivo das doenças respiratórias infantis, variando de acordo com a

gravidade dessas doenças.

Com relação às atitudes dos moradores na prevenção das doenças respiratórias,

observamos nas narrativas relacionadas às condições naturais, como “não ir pro sol, não tomar

banho de chuva, não ir pra quentura”. Particularmente, no caso da gripe, seria ‘não ir pro sol,

não ir pra chuva, não levar esse mormaço na hora que chove que levanta um mormaço

medonho’. Todos relacionam a prevenção das doenças respiratórias à restrição de certos

comportamentos da criança para evitar a doença, como a criança deixar de brincar nas ruas.

Em relação ao cuidado com as crianças, no sentido de protegê-las, surgiu como

categoria a mãe cuidadosa que articula afetividade, “dá o carinho, conversar”, com rigor nas

definições de regras de controle para o filho e construção de diálogo com o mesmo.

Consideramos, dessa forma, que esses achados são de repercussão da vida desses

moradores, em que há uma integração dos contextos sociocultural, econômico, político e

ambiental nas ações de promoção da saúde quando se trata da saúde infantil, particularmente

no manejo das doenças respiratórias infantis. Nesse sentido, percebemos que efetivamente as

ações públicas em saúde atingirão esses assentamentos urbanos apenas quando o universo

sociocultural for tomado em consideração na formulação e aplicação das políticas de saúde

infantil destinados a esses assentamentos, caso contrário, permanecerá como parte das

preocupações das mães em promover o tratamento de seus filhos e buscar, sem grande

sucesso, a cura para os problemas respiratórios infantis que afligem os membros desses

assentamentos.

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- ANEXOS -

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Anexo 1 – Fotografia Aérea do Local do Estudo (SEINFRA, 2002)

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Anexo 2 – Mapa da Secretaria Executiva Regional VI (FORTALEZA, 2001)

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Anexo 3 – Roteiro sobre a História do Bairro

1. IDENTIFICAÇÃO:

1.1. Data: 1.2. Nome:

1.3. Endereço:

1.4. Qual a sua idade? 1.5. Quantos filhos o(a) Sr(a). tem?

1.6. Quantos filhos a o(a) Sr(a). tem vivo e/ou morto?

1.7. Onde eles moram? 1.8. O que o(a) Sr(a). faz?

2. RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA:

2.1. Há quanto o(a) Sr(a). mora neste bairro?

2.2. Onde o(a) Sr(a). morava antes de vir morar aqui?

2.3. Fale-me sobre o bairro que o(a) Sr(a). conheceu e que conhece hoje.

2.4. O que tinha neste bairro antigamente?

2.5. Como fazia para beber água e a energia da casa? Quando foi isso?

2.6. O(a) Sr(a). poderia me dizer como ocorreu a chegada das primeiras pessoas que

vieram para este bairro.

2.7. O que levou essas pessoas a vir morar nesse bairro?

2.8. De onde vieram essas pessoas?

2.9. Quando foi que o(a) Sr(a). notou que aumentou o número de casas no bairro?

2.10. O(a) Sr(a). faz alguma diferença entre a baixada e o resto do bairro?

2.11. Fale mais sobre esse bairro.

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Anexo 4 – Roteiro sobre Saúde e Doença Respiratória Infantil

1. IDENTIFICAÇÃO:

1.1. Nome: 1.2. Endereço: 1.3. Qual a sua idade?

1.4. Quem mora com o(a) Sr.(a)? 1.5. Quantos filhos o(a) Sr(a). tem?

1.6. Quantos filhos a o(a) Sr(a). tem vivo e/ou morto? 1.7. Onde eles moram?

1.8. O que o(a) Sr(a). faz?

2. SAÚDE:

2.1. Que problemas o(a) Sr.(a) considera mais sério aqui no bairro?

2.2 . Desses problemas qual é o que mais lhe preocupa?

2.3. Quais desses problemas pode prejudicar a sua saúde? Como?

2.4. Como esses problemas podem ser resolvidos?

2.5. O que o(a) Sr.(a) entende (sabe) sobre saúde? Fale-me sobre isso?

2.6. Como o(a) Sr.(a) sabe que está com saúde? O que o(a) Sr.(a) faz para ter saúde?

2.7. Como o(a) Sr.(a) sabe que não está com saúde? O que o(a) Sr.(a) faz? O que muda?

3. DOENÇA:

3.1. O que o(a) Sr.(a) entende (sabe) sobre doença? Fale-me sobre isso?

3.2. Como o(a) Sr.(a) sabe que está doente? O que o(a) Sr.(a) faz? O que muda?

4. PREVENÇÃO:

4.1. O que o(a) Sr.(a) entende (sabe) sobre prevenção? Fale-me sobre isso?

4.2. Como o(a) Sr.(a) sabe que está prevenindo uma doença? O que o(a) Sr.(a) faz? O

que muda?

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5. DOENÇAS RESPIRATÓRIAS (CONCEPÇÕES E PERCEPÇÕES)

5.1. Fale-me o que o(a) Sr.(a) entende (sabe) sobre doenças respiratórias?

5.2. O(a) Sr.(a) já teve ou tem esse problema? Desde quando? O que o(a) Sr.(a) sente?

5.3. Como o(a) Sr.(a) sabe que está com essa doença? O que o(a) Sr.(a) faz para resolver?

5.4. Aqui as pessoas têm esses problemas?

5.5. Quem são essas pessoas?

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Anexo 5 – Roteiro da Reconstrução dos Casos

1. IDENTIFICAÇÃO DAS DOENÇAS RESPIRATÓRIAS EM CRIANÇAS:

1.1. Fale-me o que o(a) Sr.(a) entende (sabe) sobre doenças respiratórias?

1.2. Quem tem esse problema? 1.3. Quantos anos ele tem?

1.4. Há quanto tempo seu filho tem esse problema?

1.5. O(a) Sr.(a) já teve ou tem esse problema? Desde quando?

1.6. Desde quando o seu filho tem esse problema?

2. CUIDADOS COM A CRIANÇA:

2.1. Que tipo de cuidados o(a) Sr.(a) tem com o seu filho?

2.2. Esse tipo de cuidado o(a) Sr.(a) tem com os outro filhos? Como?

3. CONCEPÇÕES E PERCEPÇÕES:

3.1. Como o(a) Sr.(a) sabe que está com essa doença? 3.2. O que ele sente?

3.3. O que o(a) Sr.(a) sente quando vê o seu filho doente?

4. CAUSA E CONSEQUÊNCIA DAS DOENÇAS RESPIRATÓRIAS:

4.1. O que faz surgir esse problema? 4.2. Como isso acontece?

4.3. Como o(a) Sr.(a) explica isso?

4.4. Esse problema provoca alguma conseqüência?

4.5. Quais são essas conseqüências?

4.6. Como surgem essas conseqüências?

5. ITINERÁRIO TERAPÊUTICO:

5.1. O que o(a) Sr.(a) faz para resolver? 5.2. Como o(a) Sr.(a) explica?

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5.3. O(a) Sr.(a) procura alguma ajuda? 5.4. Qual é essa ajuda? Como?

5.5. Fale-me mais sobre isso?

6. REDES DE APOIO:

6.1. O que seus familiares fazem quando alguém tem esse problema?

6.2. Quem da família ajuda? 6.3. Que tipo de ajuda é essa?

6.4. Eles procuram outro de ajuda? 6.5. Qual é essa ajuda?

6.6. Quem mais lhe ajuda