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Como Pedro Nunes mudou o mundo Dois cientistas provam que a matemática do académico português está na origem da cartografia moderna VIRGÍLIO AZEVEDO Gerardus Mercator foi o cosmógrafo e matemático flamengo que fez pela primeira vez na História, em 1569, a projeção cilíndrica do globo terrestre num mapa onde os paralelos e os me- ridianos formam uma malha regular de retângulos. E onde o espaço entre paralelos aumenta com a latitude, de tal maneira que as linhas de rumo da navegação são representadas, nos oceanos, por retas que fazem sempre os mesmo ângulos com os meridianos. É verdade que na projeção de Mer- cator as formas e medidas dos conti- nentes e ilhas ficam cada vez mais dis- torcidas à medida que se aproximam dos poios. Por exemplo, a Gronelân- dia tem a mesma área do que África, quando na realidade este continente é 14 vezes maior do que a grande ilha doÁrtico. Mas a projeção ainda hoje é usada na navegação, em particular nas regiões dos oceanos junto ao Equador, onde a distorção é mínima. Há, no entanto, uma polémica cien- tífica que dura desde os finais do sécu- lo XIX: Mercator baseou-se num mé- todo de construção do famoso mapa que nunca foi desvendado. Ao longo de mais de cem anos várias propostas de solução do enigma foram discu- tidas pelos cientistas, mas nenhuma acabou por ser considerada satisfató- ria e consensual. Agora, dois historiadores portugue- ses da Faculdade de Ciências da Uni- versidade de Lisboa (FCUL) Henri- que Leitão, investigador principal do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia, e Joa- quim Alves Gaspar, investigador pós- doutoral do mesmo centro publica- ram dois artigos científicos na "Imago Mundi", a mais importante revista in- ternacional de história da cartografia, onde provam que Mercator realizou a sua projeção a partir do conceito de linha de rumo inicialmente proposto pelo matemático português Pedro Nunes (século XVI). "Quando a bússola era usada na na- vegação, indicava uma linha de rumo constante e o modo mais natural de navegar era seguir essa direção", ex- plica Henrique Leitão ao Expresso. "Mas Pedro Nunes descobriu que a linha de rumo não é assim tão simples no mar e se for prolongada não é um círculo à volta da Terra, mas aproxi- madamente uma espiral."

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Como Pedro Nunes mudou o mundoDois cientistas provam que a matemática do académico português está na origem da cartografia moderna

VIRGÍLIO AZEVEDO

Gerardus Mercator foi o cosmógrafoe matemático flamengo que fez pelaprimeira vez na História, em 1569, aprojeção cilíndrica do globo terrestrenum mapa onde os paralelos e os me-ridianos formam uma malha regularde retângulos. E onde o espaço entreparalelos aumenta com a latitude, detal maneira que as linhas de rumoda navegação são representadas, nos

oceanos, por retas que fazem sempreos mesmo ângulos com os meridianos.

É verdade que na projeção de Mer-cator as formas e medidas dos conti-nentes e ilhas ficam cada vez mais dis-torcidas à medida que se aproximamdos poios. Por exemplo, a Gronelân-dia tem a mesma área do que África,quando na realidade este continente

é 14 vezes maior do que a grande ilhadoÁrtico. Mas a projeção ainda hoje é

usada na navegação, em particular nas

regiões dos oceanos junto ao Equador,onde a distorção é mínima.

Há, no entanto, uma polémica cien-tífica que dura desde os finais do sécu-lo XIX: Mercator baseou-se num mé-todo de construção do famoso mapaque nunca foi desvendado. Ao longode mais de cem anos várias propostasde solução do enigma foram discu-tidas pelos cientistas, mas nenhumaacabou por ser considerada satisfató-ria e consensual.

Agora, dois historiadores portugue-ses da Faculdade de Ciências da Uni-versidade de Lisboa (FCUL) — Henri-que Leitão, investigador principal doCentro Interuniversitário de Históriadas Ciências e da Tecnologia, e Joa-quim Alves Gaspar, investigador pós-

doutoral do mesmo centro — publica-ram dois artigos científicos na "ImagoMundi", a mais importante revista in-ternacional de história da cartografia,onde provam que Mercator realizou asua projeção a partir do conceito delinha de rumo inicialmente propostopelo matemático português PedroNunes (século XVI).

"Quando a bússola era usada na na-

vegação, indicava uma linha de rumoconstante e o modo mais natural de

navegar era seguir essa direção", ex-plica Henrique Leitão ao Expresso."Mas Pedro Nunes descobriu que alinha de rumo não é assim tão simplesno mar e se for prolongada não é umcírculo à volta da Terra, mas aproxi-madamente uma espiral."

Problemas de orientação no mar

É por isso que os navegadores doséculo XVI, em especial os portu-gueses, se queixavam muitas vezesdos erros dos mapas e dos métodosde navegação. Numa carta escrita aum amigo em 1546, o próprio Ge-rardus Mercator lamentava que ascartas náuticas que esperava usarcomo referência para corrigir algunserros geográficos dos seus mapasrevelavam inconsistências nas lati-tudes e nas distâncias entre lugares.Pedro Nunes desenvolveu, assim,uma teoria matemática para as li-nhas de rumo em forma de espiral econstruiu uma tabela de rumos queacabou por resolver estes problemasde orientação no mar.

Os dois investigadores da FCULexaminaram em detalhe o desenvol-vimento do conceito da linha de rumodesde a formulação inicial de PedroNunes, em 1537, até à conceção avan-çada de 1566. E avaliaram a precisãoda projeção cartográfica introduzidapor Mercator no seu mapa mundial de

1569, de modo a determinarem o seumétodo de construção.

"A análise numérica minuciosa doserros da quadrícula geográfica quefizemos é a mais rigorosa e detalhadade sempre e permite provar que ométodo das tabelas de rumos é o único

que se adequa à projeção de Merca-tor", conta Henrique Leitão. "Assim,temos um argumento numérico queconfirma o nosso argumento históri-co, o que nunca tinha sido feito antespor ninguém."

A descoberta dos dois cientistasportugueses teve, por isso, um gran-de impacto a nível internacional. Emnovembro de 2013, antes de os artigosserem publicados na revista "ImagoMundi", foi apresentada numa con-ferência no Warburg Institute, emLondres, perante uma plateia consti-tuída pelos melhores especialistas bri-

tânicos em cartografia histórica. E jáantes tinha sido divulgada noutra con-ferência na Bélgica, organizada paraassinalar os 500 anos do nascimentode Mercator, em que participaram to-dos os grandes especialistas mundiaisna obra do cosmógrafo flamengo.

O papel crucial de Pedro Nunes

O método de construção usado na pro-jeção de Mercator "é intuitivo, simplesde aplicar e historicamente plausível,dado que as tabelas de rumos já eramconhecidas na Europa quando Merca-tor desenhou o seu mapa e testámosvários tipos de tabelas", escrevem osdois investigadores da FCUL num dos

artigos científicos publicados. "O pa-pel crucial desempenhado por PedroNunes é óbvio, mas isto não diminui o

génio de Mercator. No fim de contas,foi ele quem aplicou às cartas de nave-

gação o conceito de linha de rumo apartir da sua formulação matemáticaoriginal."

Em 1566, Pedro Nunes publicou umlivro em que apresentou a análise das

propriedades matemáticas das linhasde rumo, bem como instruções deta-lhadas para calcular uma tabela de

rumos, tendo ainda explicado comose desenhavam essas linhas no globoterrestre e como se usavam com obje-tivos de navegação.

Mas tudo começou com a publica-ção de dois tratados em 1537. Numdeles, o "Tratado em defensam dacarta de marear", são discutidas pelaprimeira vez as características geo-métricas e as limitações práticas dascartas náuticas antes de Mercator."Este trabalho é de grande impor-tância na história da navegação e dacartografia teórica, porque assinalao início da aplicação da matemáticaaos problemas da navegação e da car-tografia náutica", sublinham os dois

investigadores da [email protected]

Projeção da ciênciaportuguesa

A investigação de Henrique Leitãoe Joaquim Gaspar confirma não

apenas a importância científica dePedro Nunes (1502-1578), mastambém como no século XVI asideias científicas concebidas emPortugal se espalharamrapidamente por toda a Europa.Os dois tratados publicados pelomatemático português em 1537 e odebate que provocaram fizeramcom que o seu conceito de linha de

rumo se tornasse conhecido na

Europa na década de 1540.Como havia relações fortes entrePortugal e os reinos flamengos, as

primeiras discussões surgiram naFlandres. Em Lovaina, o

cosmógrafo flamengo GerardusMercator estudou em detalhe o

problema das linhas de rumo e em1541 produziu um globo terrestrecom elas desenhadas na suasuperfície, mas não deixou

informações sobre o método queutilizou para o fazer.O matemático inglês John Dcctambém esteve em Lovaina naaltura e trocou correspondênciacom Pedro Nunes, tendo dedicado

pelo menos dois dos seus trabalhosao académico português — nassuas cartas percebe-se que oconsiderava o matemático maisdestacado da época.Em 2011, Henrique Leitão e WalterAlvarez, o famoso geólogoamericano que descobriu que osdinossauros desapareceramdevido à queda de um asteroide,publicaram um artigo no

"Geological Society of AmericaBulletin" a defender que a ciênciamoderna não começou comCopérnico, Galileu, Kepler ouNewton, mas nasceu antes emPortugal, nos séculos XV e XVI,com os Descobrimentos.

Gerardus Mercator (à esquerda) e Pedro Nunes: o cosmógrafo ematemático flamengo fez a projeção do globo terrestre num mapacom base na matemática do português Pedro Nunes, revelam doisinvestigadores da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.Desde os finais do século XIX que os cientistas tentavam descobrir quemétodo tinha sido usado na famosa projeção de Mercator de 1569 (vermapa), ainda hoje usada na navegação. A chave do enigma está no uso,pelo académico flamengo, das chamadas tabelas de rumos.