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D ireitos F undamentais e D ireito P rivado

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D i r e i t o s F u n d a m e n t a i s e D i r e i t o P r i v a d o

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DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITO PRIVADO

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CLAUS-WILHELM CANARISPROFESSOR CATEDRÁT1C0 DA UNIVERSIDADE DE MUNIQUE

DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITO PRIVADO

Tradução de

Ingo W olfgang Sarlet

e

Paulo M ota Pinto

2.a REIMPRESSÃO DA EDIÇÃO DE JULHO/2003

mALMEDINA

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DIREITOS FUNDAM ENTAIS E DIREITO PRIVADO

AU TOR

CLAUS-WILHELM CANARIS

E D IT O R

EDIÇÕES ALMEDINA, SAAv. Femão Magalhães, n.° 584, 5.° Andar3000-174 Coimbra Tel.: 239851904 Fax: 239851901 www.almedina.net [email protected]

PRÉ-IMPRESSÃO I IMPRESSÃO I ACABAMENTOG.C. - GRÁFICA DE COIMBRA, LDA.Palheira - Assafarge3001-453 Coimbra [email protected]

Fevereiro, 2009

D E P Ó S I T O L E G A L

287878/09

Os dados e as opiniões inseridos na presente publicação são da exclusiva responsabilidade do(s) seu(s) autor(es).

Toda a reprodução desta obra, por fotocópia ou outro qualquer processo, sem prévia autorização escrita do Editor, é ilícita e passível de procedimento judicial contra o infractor.© Copyright 1999 by Walter de Gruyter & Co., Berlin

Biblioteca Nacional de Portugal - Catalogação na PublicaçãoCANARIS, Claus-Wilhelm, 1937-Direitos fundamentais e direito privado.2a reimp. - ( Monografias)ISBN 978-972-40-1982-6

r

CDU 342 347

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SUMÁRIO

N ota dos tr ad uto r es.................................................................................................. 9

Prefácio à edição em língua portuguesa.......................................................... 15

I. In trod u ção ................................................................................................................. 191. A actualidade da problemática............................................. 192. A internacionaüdade da problemática................................. 20

II. A in flu ên cia d o s d ire ito s fu n d a m en ta is sobre a leg islação do d i­re ito p r iv a d o ............................................................................................................ 2 21. A eficácia normativa dos artigos 1°, n° 3 e 93°, n.° 1, alínea 4a,

ambos da LF, para a legislação no âmbito do direito privado... 22a) Letra e história do artigo 1.°, n.° 3, da LF ...................... 22b) Ofensas a direitos fundamentais através de normas de direito

privado................................................................................. 24c) O argumento adicional extraído do artigo 93°, n.° 1, alínea 4a,

da LF .................................................................................... 26d) A ideia da hierarquia normativa....................................... 27

2. A natureza “imediata” da vinculação do legislador de direito pri­vado aos direitos fundamentais e a eficácia normativa destes como proibições de intervenção e imperativos de tutela............... 28a) Recusa de uma eficácia apenas “mediata ” dos direitos funda­

mentais para a legislação de direito privado................... ........ 28b) Recusa de uma limitação da eficácia dos direitos fundamentais

a determinadas funções e a problemática das normas de direito privado confortnadoras de direitos fundamentais............ 32

c) Conclusão parcial............................................................... 363. Modificações dos efeitos dos direitos fundamentais........... 37

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6 Ciaus-Wilhelm Canaris

III. A influência dos direitos fundamentais sobre a aplicação e o desen­volvimento do direito privado.............................................................. 391. A eficácia normativa dos artigos 1.°, n.°3 e 93.°, n.° 1, alínea 4a,

ambos da LF> em relação à jurisprudência no campo do direito privado .................... ........................................................................... 39a) O artigo 1°, n.° 3, da LF, como ponto de partida................... 39b) O argumento extraído do artigo 93.°, n.° 1, alínea 4a, da LF 41c) A ratio decidendi normativamente pensada enquanto objecto

da vinculação e do controlo pelos direitos fundamentais........ 422. Tentativa de uma “reconstrução crítica” da decisão Lüth do Tri­

bunal Constitucional Federal......................................................... 43a) A necessidade de uma separação estrita entre a “eficácia de

irradiação” e a “problemática da super-revisão” .................. 44b) A substituição da “eficácia de irradiação " pelo recurso às fun­

ções dos direitos fundamentais de proibição de intervenção ede imperativo de tutela................................................................ 47

c) Diferenças na prática .................................................................. 50

IV. A influência dos direitos fundamentais sobre o comportamentodos sujeitos de direito privado.............................................................. 521. A distinção segundo o destinatário das normas de direitos funda­

mentais: eficácia “em relação a terceiros” imediata e mediata . 53a) Rejeição da teoria da eficácia imediata “em relação a ter­

ceiros” .......................................................................................... 53b) A distinção entre eficácia imediata “em relação a terceiros ”

e “vigência imediata ” dos direitos fundamentais.................... 542. A distinção segundo o objecto do controlo pelos direitos funda­

mentais: actos do poder público ou actos de sujeitos de direito privado ............................................................................................... 55

3. A distinção segundo a função dos direitos fundamentais: proi­bições de intervenção e imperativos de tutela............................... 56a) Possibilidades e limites do “pensamento da intervenção ” e sua

complementação pela função dos direitos fundamentais como imperativo de tutela..................................................................... 56

b) A autonomia argumentativa e dogmática da função de impera­tivo de tutela em relação à função de proibição de intervenção, demonstrada a partir da “inversão ” do caso Lüth.................. 59

c) A eficácia mais ténue da função de imperativo de tutela e daproibição de insuficiência.'........................................................... 65

d) Objecções: fungibilidade das funções e assimetria da protec­ção dos direitos fundamentais.................................................... 68

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D ireitos Fundamentais e D ireito Privado 7

e) A incidência da função de imperativo de tutela mesmo quantoà auto-vinculação por contrato.................................................. 71

V. Algumas conseqüências práticas.......................................................... 751. Normas de direito privado e proibições de intervenção em direi­

tos fundamentais: sobre a questão de uma cláusula de reduçãoda indemnização............................................................................... 75

2. Decisões judiciais e proibições de intervenção nos direitos funda­mentais: a influência do caso Lüth sobre a decisão Photokina do Supremo Tribunal Federal............................................................. 78

3. Função de imperativo de tutela e proibição de insuficiência, ilus­trada com o exemplo do artigo 5.°, n.° 2, da L F ......................... 81a) A falta de um imperativo de tutela: a decisão do Tribunal Cons­

titucional Federal sobre os cartazes de propaganda eleitoral.... 81b) A existência de um imperativo de tutela: a decisão Blinkfüer

do Tribunal Constitucional Federal.......................................... 82c) Função de imperativo de tutela e ponderação casuística numa

argumentação em dois patamares: a decisão do Tribunal Cons­titucional Federal sobre antenas parabólicas........................... 87

4. Direitos fundamentais conflituantes e a amplitude da discricio- nariedade na concretização de imperativos de tutela, ilustradacom o exemplo do direito ao conhecimento das próprias origens.. 91a) Sobre a relação entre Constituição e direito ordinário: a pre­

tensão de um filho nascido fora do casamento, dirigida contrasua mãe, a informações sobre a pessoa do seu pai biológico . 91

b) Sobre a relação entre jurisprudência e legislação: a problemá­tica de uma pretensão do filho de obter informações sobre a pes­soa do seu pai biológico, em caso de inseminação heteróloga... 94

VI. Elementos para uma determinação dogmática da função de impe­rativo de tutela e da proibição de insuficiência no direito privado.. 1011. A distinção entre o “se” e o “como” da protecção..................... 1022. Condições para o reconhecimento de um imperativo de tutela .. 103

a) A aplicabilidade da hipótese normativa de um direito funda­mental............................................................................................ 104

b) A necessidade de protecção e seus indicadores: ilicitude, co­locação em perigo e dependência............................................. 106

c) O funcionamento conjunto, em termos “móveis”, dos diversoscritérios............................................................... ......................... 112

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8 Claus-W ilhclm Canaris

3. Função de imperativo de tutela e direito ordinário..................... 115a) A realização da função de imperativo de tutela com auxílio do

direito ordinário........................................................................... 115b) A liberdade de conformação do legislador ordinário entre proi­

bição de excesso e proibição de insuficiência e a relevância au­tônoma da proibição de insuficiência na concretização de um dever de protecção....................................................................... 119

c) O significado das reservas de intervenção legislativa no campoda função de imperativo de tutela............................... ;............. 125

VII. Sinopse..................................................................................................... 129

Tradução das norm as c it a d a s ................................................................................ 141

ÍNDICE DE ABREVIATURAS.................................................................................. 167

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NOTA DOS TRADUTORES

sobre a oportunidade, actuaiidade e importância da obra para o leitor português e brasileiro

Quando decidimos assumir, por assim dizer “a quatro mãos”, o desafio de traduzir para português a obra “Direitos Fundamentais e Direito Privado”, de Claus-Wilhelm Canaris, fizemo-lo com o pro­pósito de oferecer ao leitor português e brasileiro a oportunidade de um contacto directo com o pensamento, sobre esse tema, de um dos mais influentes e destacados juristas da actuaiidade, cuja contribui­ção para a ciência do direito tem sido reconhecida internacional­mente em múltiplos quadrantes. Para além do, entre nós, já conhe­cido texto sobre Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito (tradução de Antônio Menezes Cordeiro), e de outros estudos de invulgar relevância e influência (bastaria referir as obras sobre as lacunas no direito, a responsabilidade pela confiança no direito privado, os livros sobre direito comercial e direitos dos contratos bancários, bem como a actualização e o desenvolvimento das obras de Karl Larenz, cuja antiga cátedra na Universidade de Munique vem ocupando desde 1972), a obra de Canaris inclui expressiva e influente produção sobre as relações entre a Consti­tuição e o direito privado, que encontrou o seu ponto culminante na obra ora oferecida ao público de língua portuguesa.

Como o próprio Autor faz questão de frisar, a obra visa um balanço actualizado e consistente, mas sempre aberto a novos desen­volvimentos, da discussão em tomo das relações entre os direitos fundamentais e o direito privado na Alemanha, além de lançar as ideias que já vinha desenvolvendo em estudos anteriores, especial­

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mente desde o aparecimento do seu luminoso ensaio de 1984, que também ostenta o título “Direitos Fundamentais e Direito Privado” (publicado em Archiv für die civilistische Praxis, n.° 184, 1984, pp. 202 e ss.). Nele lançara, de modo embrionário, boa parte das princi­pais proposições sobre o tema, que veio a retomar no ensaio agora traduzido, actualizadas e reavaliadas à luz do desenvolvimento dou­trinário e jurisprudencial ocorrido, desde então, no direito alemão, mas também mantendo um diálogo franco e aprofundado com as posições divergentes. Ambos os textos (publicados em 1984 e 1999) tiveram origem em palestras proferidas pelo Autor: a primeira por ocasião da reunião anual da Associação dos Professores de Direito Civil, enquanto a segunda, ora traduzida, consiste numa versão actualizada e ampliada da conferência proferida, quinze anos depois do debate promovido com os seus pares, perante a Sociedade Jurí­dica de Berlim, no dia 10 de Junho de 1998.

Por mais que, para alguns, a discussão em tomo da eficácia dos direitos fundamentais no âmbito do direito privado (difundida sob o rótulo, não necessariamente rigoroso, de “eficácia em relação a ter­ceiros”, ou Drittwirkung) seja ainda encarada com certa descon­fiança - tratando-se, em grande parte, e segundo frisou Ingo von Münch, de um produto de exportação jurídica made in Germany1 - , verifica-se crescente consenso a respeito da dimensão internacional da problemática, aspecto, aliás, bem destacado pelo próprio Canaris, logo no início do seu estudo e no prefácio que escreveu para a tra­dução portuguesa. Bastaria aqui lembrar o número de publicações sobre o tema, surgidas ao longo das últimas três décadas no mundo inteiro, podendo destacar-se, para além dos estudos em língua alemã, a produção portuguesa, italiana e espanhola, e, mais recentemente, também francesa e inglesa, para que se possa dar como demonstrada tal afirmação. E, da mesma forma, cresce o número de decisões das jurisdições nacionais que, de um modo geral, fazem apelo directo

1 Cfr. Ingo von Münch, Drittwirkung de derechos fundamentales en Ale- mania, in Pablo Salvador Coderch (coord.), Asociaciones, derechos fundamen­tales y autonomia privada, Madrid, Civitas, 1997, p. 30.

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Direitos Fundamentais e Direito Privado 11

aos direitos fundamentais no âmbito do direito privado - isto sem falar em uma série de decisões paradigmáticas proferidas pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos e pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Européias.

Muito embora em Portugal e no Brasil já existam importantes estudos sobre o tema, o que se percebe é que, de um modo geral, e exceptuando sobretudo as contribuições que lançaram mão de literatura em língua alemã, grande parte das comunidades jurídi­cas brasileira e portuguesa não tem tido acesso directo a importantes e - em alguns casos - indispensáveis contributos oriundos da Ale­manha, onde, convém não olvidá-lo, a discussão sobre a incidência da Constituição no direito privado em geral, e nas relações entre os particulares em especial, alcançou grande desenvolvimento cien­tífico. Longe de se procurar contribuir para qualquer “colonização” pela ciência jurídica alemã, abrindo mercados para o referido “pro­duto de exportação” Drittwirkung, a tradução da presente obra tem como propósito familiarizar o leitor português e brasileiro com uma série de estruturas argumentativas que poderão servir de impor­tante referencial, não apenas para o aprofundamento e enriqueci­mento do debate acadêmico (por mais relevante que também seja este objectivo), mas também, e sobretudo, para a difícil tarefa de obter soluções “domésticas” constitucionalmente adequadas e juri­dicamente consistentes. E isto é, sem dúvida, de particular rele­vância em ordens jurídicas, como a portuguesa e a brasileira, cujas Constituições fornecem, pela sua extensão e pelo seu conteúdo, grande potencial para a aplicação dos seus preceitos no domínio do direito privado.

A opção - de entre tantos outros trabalhos disponíveis em língua alemã - pela obra que ora se publica não foi, por outro lado, tomada apenas por influência da estatura acadêmica e do renome do Autor, mas pelo facto de se tratar - como já se frisou - , não só de um balanço bastante actualizado e crítico da doutrina e da juris­prudência alemãs sobre o tema, como de um trabalho que contém uma proposta jurídico-dogmática original e consistente, e que, de resto, vem exercendo influência crescente, não apenas no plano

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doutrinário, mas também sobre a jurisprudência do Tribunal Cons­titucional Federal da Alemanha.

Ainda que as teses de Canaris também não tenham sido imunes a críticas, e que existam inclusive divergências importantes a regis­tar, tal circunstância não altera a relevância da sua obra e a oportu­nidade do seu conhecimento pelo leitor de língua portuguesa. Sem que se vá aqui desenvolver o tema, bastaria, para fundamentar esta afirmação, recordar os desenvolvimentos efectuados por Canaris, com base na distinção entre as funções dos direitos fundamentais como direitos de defesa e imperativos de tutela, da teoria dos deve- res de protecção de direitos fundamentais pelo Estado, demons­trando que esta, para além de oferecer uma base argumentativa sólida para a eficácia dos direitos fundamentais no direito privado, permite uma aplicação mais abrangente, e, sobretudo, mais diferen­ciada dos direitos- fundamentais, inclusive no âmbito das relações entre particulares, e de modo particular no que diz respeito à aplica­ção do princípio da proporcionalidade. Neste contexto, também a “descoberta” da chamada proibição de insuficiência (“ Untermass- verbot”) abre todo um leque de perspectivas que igualmente merece ser levado ao conhecimento dos públicos lusitano e brasileiro - sem prejuízo, evidentemente, das particularidades nacionais quanto à possibilidade de controlo de constitucionalidade, não apenas dos actos do poder público (incluindo as decisões judiciais), mas tam­bém de actos de particulares, sempre que detectado um déficit constitucionalmente ilegítimo de protecção de um dos direitos, na relação jurídica em causa. E para além disto, logo a apresentação e avaliação crítica e sistemática da mais relevante jurisprudência germânica sobre o tema, levada a efeito por Canaris, justificariam suficientemente, por si só, a publicação de uma versão em língua portuguesa.

Em suma, por tudo o exposto, entendem os tradutores que o acesso ao pensamento do ilustre Civilista alemão, também na área das relações entre direitos fundamentais e direito privado, não deve ficar limitado a um, ainda reduzido, círculo de conhecedores, mere­cendo, antes, ingressar, de modo mais efectivo - mesmo que seja na

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condição de qualificado alvo de uma discussão crítica na ciência jurídica luso-brasileira*, que certamente ficará enriquecida no con­tínuo processo de forjar o seu próprio destino e de construir os seus próprios caminhos.

Porto Alegre (Brasil) Coimbra (Portugal)Ingo Wolfgang Sarlet Paulo Mota Pinto

Junho de 2003

* Sendo o presente texto, que é destinado sobretudo aos públicos português e brasileiro, publicado por uma editora portuguesa, segue-se na tradução o padrão lingüístico português europeu. Em anexo, acrescentou-se a tradução das normas citadas e uma lista de abreviaturas.

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PREFÁCIO À EDIÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA

É para mim uma grande honra e uma grande alegria que o meu livro sobre “Direitos Fundamentais e Direito Privado” seja publi­cado em língua portuguesa. Fico feliz pelo facto de os meus intensos contactos com as ciências jurídicas portuguesa e brasileira estarem, assim, a experimentar uma especialmente bela continuação e am­pliação, e fico orgulhoso pelo facto de os meus pensamentos sobre essa temática estarem agora à disposição dos leitores de língua por­tuguesa, ingressando, de tal modo, mais facilmente, nas discussões travadas neste importante círculo jurídico.

Com efeito, parece-me que a temática “Direitos Fundamentais e Direito Privado” é particularmente apropriada para um debate que venha a ultrapassar as fronteiras das ordens jurídicas nacionais. Com certeza que estas estabelecem, evidentemente, o quadro para a solu­ção das questões pertinentes, mas a problemática é de tal modo es­sencial, que este quadro é aqui especialmente amplo, e a abertura a modelos de solução transnacional e a parâmetros argumentativos, consequentemente, também grande. Assim, encontram-se conver­gências entre as ordens jurídicas a todos os níveis: as questões são frequentemente muito parecidas, de tal sorte que já a sua formulação e determinação poderá ser frutífera no âmbito de uma outra ordem jurídica; a maior parte dos argumentos incidentes na matéria pos­suem relevância e peso independentemente de qual seja a ordem jurídica nacional aplicável; os resultados, no que diz respeito aos seus elementos nucleares, não raras vezes convergem, mesmo quando as disposições do direito positivo são diversas; e, de qual­quer modo, as categorias dogmáticas encontram-se apenas frouxa­mente vinculadas à respectiva ordem jurídica nacional, pois consti­

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16 Claus - Wilhelm Canaris

tuem a ferramenta conceituai e teorética para a apreensão de deter­minados problemas e das suas soluções, assumindo, em virtude desta função, desde logo, um conteúdo transnacional. Assim, pela minha parte, acabei por aplicar a estrutura argumentativa, que havia utilizado ao tratar tema dos direitos fundamentais e do direito privado no direito alemão, também à problemática, intimamente aparentada, das relações entre as liberdades fundamentais e o direito privado no âmbito do direito europeu; desta forma, evidenciaram-se tantas similitudes e tantos paralelismos nos quatro planos versados- formulação e determinação dos problemas, relevância e peso dos argumentos pertinentes, adequação dos resultados e prestabilidade das categorias dogmáticas - que eu mesmo acabei por ficar sur­preendido (cfr. o meu ensaio Drittwirkung der gemeinschaftsre- chtlichen Grundfreiheiten, in Bauer/Czybula/Kahl/VoBkuhle, orgs., Umwelt, Wirtschaft und Recht, FestschriftJur Reiner Schmidt, 2002, pp. 30-67). Por tudo isso, com elevado optimismo, espero que a pre­sente tradução do meu livro para a língua portuguesa possa cons­tituir um contributo efectivo e estimulante para um diálogo trans­nacional sobre os respectivos problemas.

Esta esperança, alimento-a em especial quanto ao modelo dog­mático basilar que desenvolvi. Este repousa, sobretudo, na diferen­ciação entre a função dos direitos fundamentais como proibições de intervenção e como imperativos de tutela. Ainda que tais categorias estejam a desempenhar, justamente no âmbito da ciência jurídica e da jurisprudência alemãs, um papel especial, e que possa até haver quem nelas reconheça um produto “típico” do pensamento jurídico alemão, estou convencido que traduzem conceitualmente, de forma clara e precisa, problemas constitucionais básicos, que se manifes­tam em todas as ordens jurídicas de modo igual ou parecido. Mesmo quem não esteja disposto a assumir essas categorias como tais, sempre poderá retê-las de certo modo no seu subconsciente, e servir- -se das mesmas para a comparação e para o controlo, também no âmbito de sya própria ordem jurídica; pois elas sempre continuarão a constituir um modelo para o tratamento intelectual dos problemas correspondentes e das respectivas soluções, de tal sorte que poderão

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D ireitos Fundamentais e Direito Privado 17

ser úteis mesmo para aquele que preferir adoptar um outro modelo. Isto vale tanto mais quanto as categorias da função dos direitos fun­damentais como proibições de intervenção e imperativos de tutela assumem uma relevância fundamental que transcende, em muito, as relações entre direitos fundamentais e direito privado; neste sentido, não sao, evidentemente, tais categorias que me podem ser atribuí­das, mas, tão-só, a proposta de, com o seu auxílio, oferecer, (tam­bém) para a problemática dos direitos fundamentais e do direito privado, uma nova solução.

Este prefácio é igualmente o momento para agradecer publica­mente, e de todo o coração, ao Professor Doutor Ingo Wolfgang Sarlet e ao Doutor Paulo Mota Pinto, por terem assumido a tradução do meu livro, razão pela qual fico profundamente vinculado a ambos.

Munique, Julho de 2003.

Claus-Wilhelm Canaris

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I. Introdução

1. A actualidade da problemática

Quando, há quinze anos, por ocasião do simpósio da Associa­ção dos Professores de Direito Civil, em Aachen, anunciei que pro­feriria uma conferência sobre o tema ‘'Direitos fundamentais e di­reito privado”2, alguns colegas questionaram-me, irritados, sobre os motivos pelos quais havia optado justamente por este tema, uma vez que a controvérsia científica a seu respeito já estaria definitivamente esgotada. Desde então, a situação alterou-se substancialmente: a problemática encontra-se hoje virtualmente em todas as bocas.

Para isto contribuiu, entre outros factores, uma série de deci­sões espectaculares do Tribunal Constitucional Federal, de entre as quais menciono, por ora, apenas a decisão de 1990 sobre o represen­tante comercial, em que o Tribunal declarou a inconstitucionalidade do § 90a, n.° 2, 2.a frase, do Código Comercial, por ofensa ao artigo 12.° da LF3, bem como a decisão de 1993 sobre fianças, pela qual o Tribunal Constitucional Federal corrigiu a rígida jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre fianças prestadas por familiares do devedor principal, de reduzido rendimento e patrimônio4. Na dou­trina, ocorreu uma verdadeira inundação de publicações, de tal sorte que, por exemplo, nos últimos anos, três dos relatórios principais ao simpósio anual dos professores de direito civil se ocuparam apenas

2 AcP, vol. 184 (1984), p. 202.3 BVerfGE, vol. 81, pp. 242, 252 e ss=AP n.° 65 sobre o artigo 12.° da LF,

com anotação de Canaris.4 BVerfGE, vol. 89, pp. 214, 232 e ss.

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20 Claus-W ilhelm Canaris

desta temática5. Representativa da importância que é actualmente atribuída a este círculo de questões é, por certo, a observação que Fezer fez recentemente, segundo a qual a “pergunta-teste dirigida a cada jurista: como vês a relação entre a Constituição e o direito privado?” é representativa de uma verdadeira “problemática do século”6.

Com o desenrolar da controvérsia, acumulou-se um tal volume de material bibliográfico, e um tão grande arcabouço de modelos de pensamento e de argumentação, que me pareceu ser tempo de arris­car uma tentativa de balanço. É certo, porém, que, quanto a uma “problemática do século”, este apenas poderá, por natureza, ser um balanço provisório.

2. A internaéionalidade da problemática

A temática adquire uma dimensão adicional pela circunstância de se não tratar aqui, de forma alguma, de um fenômeno exclusiva­mente alemão. Assim, por exemplo, o comparatista inglês Marke- sinis fala, mesmo, de uma “constitutionalisation ofprivate law”1, e tem aqui em vista uma tendência que vai muito para além do círculo jurídico alemão. E encontrei exactamente este mesmo pensamento em Trabucchi, referindo-se -ao Código Civil italiano8. O Tribunal

5 Cf. Medicus, Der Grundsatz der Verhãltnismassigkeit im Privatrecht, in AcP, vol. 192 (1992), pp. 35, 43 e ss; Zollner, Regelungspielráume im Schuld- vertragsrecht - Bemerkungen zur Grundrechtsanwendung im Privatrecht und zu den sogenannten Ungleichgewichtslagen, in AcP, vol. 196 (1996), pp. 1 e ss; Diederichsen, Das Bundesverfassungsgericht ais oberstes Zivilgericht - ein Lehrstück der juristischen Methodenlehre, AcP, vol. 198 (1998), pp. 171 e ss.

6 JZ 1998, p. 267.7 Markesinis, in Modem Law Review, vol. 53 (1990), pp. 1, 10; a mesma

formulação é utilizada independentemente por Oldiges, in Festschrift für Friauf, 1996, p. 281, aderindo a uma expressão similar de Ossenbühl, in DVBl, 1995, p. 910.

8 Trabucchi, Istituzioni di Diritto Civile, 35a ed., 1994, p. 14: “costituziona- lizzazione anche dei diritto privato”.

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D ireitos Fundamentais e Direito P rivado 21

Federal suíço, por sua vez, afirmou que “pelo menos a eficácia indi­recta em relação a terceiros, no sentido de um imperativo de inter­pretação das normas de direito privado em conformidade com os direitos fundamentais, é praticamente reconhecida por todos”, e fez seu esse entendimento9. Com base nas suas investigações compara- tistas, von Bar julga, mesmo, possível sustentar que “o direito da responsabilidade delitual na Europa de hoje é, cada vez mais, con­cebido como uma forma de concretização dos direitos de liberdade constitucionalmente garantidos”10. E também nos Estados Unidos da América existe há muito, sob a epígrafe ” State action doctrine”, uma intensa discussão da temática11. Não se trata aqui, portanto, de modo algum, de qualquer via específica do direito alemão, como po­deria recear-se, com base nalgumas afirmações preocupadas, tam­bém do passado recente.

Acabemos, contudo, com a captatio benevolentiae para a minha opção temática, já que esta, de qualquer modo, dela não necessita! Passo agora à substância do tema, começando pela questão, mais evidente, da influência dos direitos fundamentais sobre a legislação de direito privado.

9 BGE, 111, II, pp. 245, 255. Na seqüência desta decisão verificou-se na doutrina uma viva discussão sobre a relação entre Constituição e direito privado. Cfr. Bucher, SJZ, 1987, pp. 37 e ss; Sandoz, SJZ, 1987, pp. 214 e ss; Saladin, SJZ,1988, pp. 373 e ss; Zãch, SJZ, 1989, pp. 1 e ss e 25 e ss.

10 Von Bar, Gemeineuropãisches Deliktsrecht, vol. I, 1996, n.° de margem 554; na mesma linha (para a parte do direito delitual que trata) se situa Beater, Zivilrechtlicher Schutz vor der Presse ais konkretisiertes Verfassungsrecht, 1996, pp. 80 e ss, com investigações comparatistas sobre os direitos norte-americano, inglês e alemão.

11 Sobre isto cfr. Giegerich, Privatwirkung der Grundrechte in den USA, 1992, que, na sua avaliação crítica (p. 457), considera que seria preferível, nos Estados Unidos, adoptar um entendimento similar ao que foi desenvolvido na Alemanha (e que no nosso texto discutimos infra, IV 3).

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II. A influência dos direitos fundamentais sobre a legislação do direito privado

1. A eficácia normativa dos artigos 1.°, n,° 3 e 93.°, n,° 1, alínea 4a, ambos da LF, para a legislação no âmbito do direito privado

a) Letra e história do artigo 1.°, n.° 3, da LF

De acordo com as reconhecidas regras da metodologia, há que partir do teor literal da Constituição. Aqui seria, em primeira linha, relevante o artigo 1.°, n.° 3, da LF. Este, como se sabe, dispõe que “os direitos fundamentais que se seguem vinculam a legislação, o poder executivo e a jurisdição como direito imediatamente vigente”. Segundo o sentido lingüístico, isto é, por uma interpretação grama­tical, não pode duvidar-se de que no termo “legislação” se inclui também a legislação no âmbito do direito privado.

Recentemente, todavia, Diederichsen tentou abalar esta abor­dagem, com invocação da origem histórica da citada disposição12. Neste sentido, remete essencialmente para a circunstância de a fun­ção deste preceito, sob o ponto de vista histórico, residir, simples­mente, no afastamento da tese predominante na Constituição de Weimar, segundo a qual os direitos fundamentais deveriam ser qua­lificados como meras “asserções programáticas”. Ao invés, com a Lei Fundamental, os direitos fundamentais deveriam ser elevados ao nível de “direito imediatamente vigente”. Ora, não é de contestar, por certo, que aqui resida, efectivamente, o acento principal do artigo 1.°, n.° 3, da LF, mas tal em nada altera o facto de que se fala neste, simplesmente, da vinculação da “legislação”, e de que lin- guisticamente se entende por tal designação também a legislação de direito privado. Quem defende o contrário tem, nesta medida, de

12 Diederichsen, in Starck (org), Rangordnung der Gesetze, 1995, p. 48 e ss, e AcP, vol. 198 (1998), p. 225 e ss.

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submeter o artigo 1.°, n.° 3, da LF a uma redução teleológica13, assumindo, consequentemente, o respectivo ónus argumentativo.

Este não pode ser satisfeito dizendo simplesmente, como Die­derichsen, que com o artigo 1.°, n.° 3, da LF “se visou historica­mente apenas uma requalificação do efeito jurídico”, e extraindo daqui a conclusão de que “quem pretende ver na formulação (sc. do artigo 1.°, n.° 3, da LF) uma extensão do círculo de destinatários da norma, e, deste modo, uma alteração da hipótese, comete assim, logicamente, uma confusão de conceitos ou tem de fundamentar substancialmente a diversa interpretação”14. É exacto, como referi­mos, que “se visou historicamente apenas uma requalificação do efeito jurídico”, mas não representa, de modo algum, “uma extensão do círculo de destinatários da norma” considerar como legislador, no sentido do artigo 1.°, n.° 3, da LF, também o legislador de direito privado15. Pois também já na Constituição de Weimar o legislador

13 Isto é negado por Diederichsen, in, Starck, ob. cit., 1995, p. 66, nota 147, valendo-se do argumento de que “de acordo com a originária concepção do constituinte, os direitos fundamentais tinham uma função apenas defensiva (e) que o sistema dos direitos fundamentais foi posteriormente ampliado no sentido de uma ordem de valores fundamentais (de tal sorte que), justamente por isso, é, inversamente, a extensão da função do artigo 1.°, n.° 3, da LF que deveria, pela sua parte, ser fundamentada.” A meu ver, este ponto de vista não está, porém, em consonância com as regras da metodologia jurídica, já que, segundo estas, o “sentido literal possível” constitui o limite da interpretação e que para além do mesmo se inicia, consabidamente, o campo da analogia e da redução teleológica; cfr., por todos, Larenz, Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 6a ed., 1991, p. 391. E seguindo uma interpretação segundo a letra do preceito não pode deixar de considerar-se, pelo menos, que a legislação no domínio do direito privado tam­bém é “legislação”, e que este ponto de partida só pode, pois, ser corrigido mediante uma redução teleológica.

14 Assim Diederichsen, in Starck, ob. cit., p. 49 (sublinhados no original).15 É só deste que se trata no presente contexto. No entanto, Diederichsen

tem aqui, possivelmente, em mente, enquanto destinatários da norma, os sujeitos jurídico-privados. Isto seria, porém, desconhecimento da minha posição, para a qual é, justamente, essencial a não consideração destes como destinatários dos direitos fundamentais. Cfr. AcP, vol. 184 (1984), pp. 202 e ss., bem como infra,IV, 1, a.

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integrava, evidentemente, os destinatários da norma, e, por isso, neste aspecto, o artigo 1.°, n.° 3, da LF não alterou absolutamente nada: enquanto antes os direitos fundamentais constituíam (tam­bém) para o legislador de direito privado simples “asserções progra- máticas”, ou algo parecido, hoje são, também para ele, “direito ime­diatamente vigente”. Assim, contrariamente à perspectiva de Diede- richsen, quanto a esta questão nada resulta dos trabalhos preparató­rios sobre o artigo 1.°, n.° 3, da LF, porque, enquanto tal, ela não é, de todo, aí tratada.

b) Ofensas a direitos fundamentais através de normas de di­reito privado

Para além disto, a “fundamentação substancial”, exigida por Diederichsen, para a aplicação do artigo 1.°, n.° 3, da LF, ao legislador de direito privado, já foi dada repetidas vezes (e isto não obstante, em face da letra do preceito, o ónus argumentativo recair, na verdade, como se disse, sobre os defensores da tese oposta!). Essa fundamentação reside, sobretudo, na circunstância de, para o cidadão, as leis de direito privado poderem ter efeitos ofensivos inteiramente semelhantes aos das leis de direito público16.

16 É evidente que isto não vale para todas as normas de direito privado. Antes o seu caracter ofensivo é, em princípio, de demonstrar, em cada caso, através de argumentos correspondentes, na medida em que não nos possamos bastar - como, porém, muitas vezes acontece - com um juízo de evidência. É, pois, com base num mal entendido que Diederichsen, AcP, vol. 198 (1998), p. 212, me imputa arrancar de uma “qualificação geral (!) das normas de direito privado como ofensas a direitos fundamentais”. Pelo contrário, demonstrei, ex­pressamente, que as normas de direito privado também podem servir, por exem­plo, para a concretização de imperativos de tutela de direitos fundamentais - cfr. Canaris, AcP, vol. 184 (1984), p. 223 sobre o § 624 do BGB e pp. 628 e s. sobre os §74 e ss. do Código Comercial. Se se tiver isto em conta, o exemplo ad terro- rem de Diederichsen (ob. cit., pp. 213 e s.) desmorona-se de imediato: pois a nonna do § 985 do BGB não contém, enquanto tal, qualquer ofensa a um direito fundamental, e por isso, segundo a minha posição, há aqui, apenas, que apurar se

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Para a aplicabilidade dos direitos fundamentais não pode, em princípio, resultar qualquer diferença relevante de se apurar se, por exemplo, um regime de protecção da vizinhança está contido num regulamento de construção ou no direito das relações de vizinhança do Código Civil alemão (BGB), ou se os objectivos de protecção do ambiente são prosseguidos com uma norma de direito público ou recorrendo ao §1004 do BGB, etc.. A protecção contra as imissões no direito privado - por exemplo, nos termos do §906 do BGB, que poderia, em princípio, ser fortemente reforçado pelo legislador de direito privado, ou, também, segundo a cláusula geral do §1004 do BGB - pode, sem mais, arruinar uma empresa, e, por isso, frequen­temente prejudica o titular desta, na sua propriedade, mais intensa­mente do que muitos preceitos administrativos sobre imissões. Da mesma forma, limitações da liberdade de expressão ou da liberdade artística, com base no §823 do BGB em conjugação com a tutela jurídica inibitória, podem ter efeitos tais para o atingido, que uma multa pode ser uma bagatela em comparação com eles; pois fre­quentemente esta custa-lhe muito menos a suportar do que a proi­bição - fundamentada apenas no direito privado! - de publicar um livro, ou do que a simples ordem de se retirar da actividade comer­cial. E as limitações massivas às faculdades de denúncia e de fixa­ção de prazo do contrato, com vista à protecção do arrendatário ha­bitacional, nos termos dos §564b, e s. do BGB, não são de con­frontar com os direitos fundamentais do locador, simplesmente, porque foi o legislador de direito privado que as aprovou, enquanto o locador já goza da protecção total dos seus direitos fundamentais contra leis de direito público sobre o mercado de arrendamento com efeitos semelhantes?17 Um último exemplo: se, para a solução do problema da continuação do pagamento do salário em caso de

o ocupante da casa pode invocar a seu favor ura imperativo de tutela de direitos fundamentais, o que é, à partida - ou seja, logo na “primeira barreira argu- mentativa”, e, portanto, sem uma ponderação casuística (cfr. sobre isto infra, IV,3, c, e V, 3, a) de negar em todas as variantes hipotizadas por Diederichsen.

17 Sobre isto v., mais em detalhe, infra, II, 2, a, próximo da nota 25.

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doença, fosse imposto ao empregador um dever de descontar as con­tribuições a favor de uma instituição pública, que assumiria então o pagamento da remuneração a trabalhadores doentes, não haveria dúvidas sobre a imediata vinculação do legislador aos direitos fun­damentais; ora se, em vez disso, se vincular o próprio empregador à continuação do pagamento do salário, como acontece no preceito do §3 da Lei sobre a Continuação do Pagamento do Salário (Entgel- tfortzahlungsgesetz), a vinculação aos direitos fundamentais não pode desaparecer, ou ser em princípio mais débil, pois esta norma, apesar de ser de direito privado, lesa o empregador (pelo menos) tão fortemente na sua liberdade contratual, ou de exercício da profissão, como um dever de contribuição de direito público18.

Globalmente, este conjunto de exemplos, que facilmente se deixaria multiplicar, comprova que o argumento extraído da letra do artigo 1.°, n.° 3, da LF é confirmado e reforçado por uma argumen­tação teleológica objectivista extraordinariamente vigorosa.

c) O argumento adicional extraído do artigo 93. n. ° 1, alínea 4a, da LF

Acresce um argumento sistemático, que, tanto quanto se pode ver, até hoje não desempenhou qualquer papel no debate. Consiste ele na invocação do artigo 93.°, n.° 1, alínea 4a da LF, segundo o qual qualquer pessoa pode deduzir a queixa constitucional com fun­damento em “ter sido lesado, pelo poder público, num dos seus direitos fundamentais”. Não se deverá entender por “poder público”, neste sentido, também o legislador de direito privado, e dever-se-á, também aqui, proceder a uma redução teleológica, com o objectivo de o excluir do campo de aplicação do preceito?!

18 Cf r., sobre a aferição da conformidade jurídico-constitucional do §3 da Entgeltfortzahlungsgesetz, em pormenor, Canaris, Die Bedeutung der iustitia distributiva im deutschen Vertragsrecht, 1997, pp. 115 e ss.

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Formular esta questão eqüivale logo a responder-lhe negativa­mente. Designadamente, este regime foi introduzido na LF apenas no ano de 1969, e, portanto, mais de uma década após a decisão- -Lüth, que foi fundamental para a relação entre direitos fundamentais e direito privado, de tal sorte que, aqui, uma argumentação histórica, do tipo de Diederichsen, nem sequer pode ser considerada. Quando, porém, nestes termos, uma pessoa pode, pela queixa constitucional, denunciar “ter sido lesad[a] num dos seus direitos fundamentais” pelo legislador de direito privado, então este tem, logicamente, de estar vinculado aos direitos fundamentais, pois caso contrário não poderia de todo violá-los.

d) A ideia da hierarquia normativa

Até agora argumentei sobretudo de forma “positivista”, na me­dida em que me baseei em duas disposições explícitas da Constitui­ção - isto é, o artigo 1.°, n.° 3 e o artigo 93.°, n.° 1, alínea 4a, ambos da LF - e demonstrei que, e por que razão, o legislador de direito privado também é abrangido por elas. É claro que se pode e deve dar um outro passo, e recorrer, adicionalmente, à ideia da hierarquia de normas. Designadamente, o direito privado é apenas direito “ordiná­rio”, e está, enquanto tal, na estrutura hierárquica da ordem jurídica, num plano sob a Constituição19. Constitui, pois, um imperativo da

19 É certo que, segundo Robbers, NJW, 1998, pp. 937 e s., a ideia de estrutura hierárquica da ordem jurídica estaria superada, mas ele mesmo não prescinde, de todo o modo, do “primado da Constituição” e da “distinção entre Constituição e lei”. A questão de saber qual o modelo que deve substituir o da estrutura hierárquica é, porém, deixada por ele quase totalmente por esclarecer. É certamente correcto que “os direitos fundamentais são imanentes ao direito ordinário”, e que a “Constituição em sentido material (...) hoje em dia também se revela na lei ordinária em sentido formal”, mas no presente contexto tal obscurece a problemática mais do que a clarifica. Pois o problema consiste justamente em promover a prevalência dos direitos fundamentais quando estes (ainda) não são imanentes ao direito privado e a Constituição não se revela no direito ordinário.

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lógica normativa que a legislação no campo do direito privado esteja vinculada aos direitos fundamentais, segundo o princípio da pri­mazia da lex superior20.

Desta forma já toquei também o próximo círculo de questões a tratar. Nomeadamente, até agora tratou-se apenas, essencialmente, de saber se o legislador de direito privado está, de todo em todo, vinculado aos direitos fundamentais. Dedico-me agora ao problema de saber em que termos ele está vinculado. Ainda assim, é certo que se não segue, sem mais, a partir da ideia de hierarquia de normas, que tal vinculação tenha de ser exactamente nos mesmos termos que a do legislador no campo do direito público, e mesmo os artigos 1.°, n.° 3 e 93.°, n.° 4, alínea 4a, ambos da LF, talvez deixem, neste aspecto, espaço para certas modificações.

2. A natureza “imediata” da vinculação do legislador de direito privado aos direitos fundamentais e a eficácia nor­mativa destes como proibições de intervenção e impera­tivos de tutela

a) Recusa de uma eficácia apenas “mediata” dos direitos fundamentais para a legislação de direito privado

Na verdade, em tempos menos recentes, não raro era defendida a posição segundo a qual a teoria da “eficácia mediata em relação a

No fundo (e abstraindo do problema, que se suscita noutra direcção, de harmo­nizar a relação entre o direito constitucional e o direito europeu com a teoria da estrutura hierárquica), permanece apenas a conhecida dificuldade da separabili- dade entre Constituição e direito ordinário, que se pode designar como “um pe­daço de ficção” ou (o que prefiro) como uma ideia regulativa no sentido de Kant. Cfr. Lerche, in Koller/Hager/Junker/Singer/Neuner (orgs.), Einheit und Folge- richtigkeit im juristischen Denken, Symposion zum 60. Geburtstag von C.W. Canaris, 1998, pp. 14 e ss.

20 Também isto é, porém, negado por Diederichsen - cfr. em Starck, ob. cit., pp. 70 e ss, e AcP, vol. 198 (1998), p. 234. Daqui só pode resultar que o legis­lador de direito privado ou não está de todo, ou apenas está “mediatamente” vin­culado aos direitos fundamentais. Cfr., sobre isto, também infra, 2, a.

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terceiros” valia também para o legislador no campo do direito pri­vado. Assim, o principal representante desta teoria, Günther Dürig, falou mesmo de uma “influência apenas mediata dos direitos funda­mentais sobre o direito privado”, e de uma tão-só “mediata aplica­ção dos direitos fundamentais no direito privado”21. Se, inversa­mente, se partir do artigo 1.°, n.° 3 da LF, esta conclusão não pode ser considerada correcta, pois esta disposição impõe, justamente, uma eficácia normativa /mediata dos direitos fundamentais. Além disso, nunca compreendi o que realmente se pretendia dizer com esta variante da teoria da eficácia mediata em relação a terceiros, e designei-a por isso como verdadeiramente “misteriosa”22. Está subjacente a esta posição, por exemplo, a ideia de que (também) o legislador do campo de direito privado só está vinculado aos direi­tos fundamentais “por meio dos preceitos que dominam imediata­mente essa área do direito”, como afirma uma conhecida formulação da decisão-Lwí/i?23

Constitui mérito de Diederichsen ter respondido afirmativa­mente, de forma clara e rotunda, a esta questão - e, na verdade, com expressa aceitação do passo, acabado de citar, da decisão-Lwíft, e retomando expressamente a posição de Dürig24. Só desta forma a teoria da vinculação mediata do legislador de direito privado aos

21 Assim Dürig, in Maunz/Dürig/Herzog/Scholz, 1994, art. 3 ,1, n.° de mar­gem 510; de modo semelhante, muito claramente, Kopp, 2a Festschrift f. Wilburg, 1975, p. 149, segundo o qual “para a legislação (!) no campo do direito civil não são os direitos fundamentais enquanto tais que adquirem relevância, mas apenas as decisões fundamentais que estão por detrás deles e que neles se tomam reconhecíveis”; contra, Canaris, AcP, vol. 184 (1984), pp. 212 e s.

22 Canaris, AcP, vol. 184 (1984), p. 212; em sentido concordante, Lerche, Festschrift f. Steindorjf, 1990, p. 905, nota 30; Singer, JZ, 1995, p. 1136.

23 BVerfGE, vol. 7, p. 198, frase 2, e p. 205.24 Diederichsen, AcP, vol. 198 (1998), pp. 234-236, em conjugação com a

p. 231, segundo o qual “a influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado, ‘por meio’ dos conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais, se refere tanto às normas de direito privado (!) como aos negócios jurídicos”, e “também desaparece a vinculação do legislador de direito civil automaticamente ligada com a aplicação do artigo 1.°, n.° 3, da LF”.

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direitos fundamentais veio a adquirir um conteúdo palpável. Porém, deste modo ela toma-se, também, mais facilmente criticável. A meu ver, ela não pode ser sustentada, desde logo, por razões de lógica jurídica. Nomeadamente, parece-me até uma impossibilidade inte­lectual querer controlar a conformidade de uma norma de direito privado com os direitos fundamentais aferindo-a segundo uma outra norma de direito privado. Pois necessariamente estas duas normas estarão, em termos de lógica normativa, situadas no mesmo nível, pelo que uma não pode constituir a bitola da conformidade constitu­cional da outra, a qual haverá, também necessariamente, de ter o estatuto de uma lex superior, e haverá, portanto, de estar situada, na hierarquia das normas, num nível superior. Esta conclusão também não se deixa modificar, por exemplo, enriquecendo em termos jurí- dico-constitucionais uma das normas de direito privado, e, em espe­cial, interpretando uma cláusula geral “à luz” dos direitos funda­mentais25. Na verdade, neste processo, ou ela permanece uma norma do direito ordinário - e então falta-lhe, ainda e sempre, a superioridade de nível de que necessita como padrão de controlo; ou ela é elevada ao nível do direito constitucional - e então chega- -se à conseqüência, contraditória, de o seu conteúdo, justamente na medida em que pertence realmente ao direito ordinário, adquirir agora, de repente, nível constitucional.

Para além disto, a ideia de que as normas do direito privado só são de controlar, na sua conformidade com os direitos fundamentais, “por meio” das normas do direito privado também não faz sentido

25 Assim, porém, aparentemente Diederichsen, AcP, vol. 198 (1998), p. 213, segundo o qual “o direito privado (...) é controlado na sua conformi­dade com a LF mediatamente, através dos conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais carregados com o conteúdo de valor dos direitos fundamentais”; é certo que Diederichsen fala neste ponto ainda, em alternativa, de um controlo “imediato, lançando mão dos artigos sobre direitos fundamentais”, mas as suas considerações posteriores (cfr. a nota anterior) são, visivelmente, de entender no sentido de recusar esta alternativa, tanto mais quanto, caso contrário, teria de esclarecer quando é que cada uma das alternativas é aplicável, o que não se verifica.

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na sua realização prática. Permitam-me que tome isto claro me­diante um exemplo. Segundo o §564b, n.° 1, do BGB, o locador apenas pode denunciar um contrato de arrendamento para habitação se tiver um interesse legítimo na sua cessação. Saber se este regime atenta contra direitos fundamentais do locador, é algo que o Tribunal Constitucional Federal apurou na medida em que, sem rodeios, a confrontou imediatamente com o artigo 14.° da LF, e procedeu neste quadro a uma ponderação de proporcionalidade26. Se, diversamente, se aplicasse a teoria da vinculação apenas mediata do legislador de direito privado, teria de procurar-se uma norma de direito ordinário “mediante” a qual o artigo 14.° da LF pudesse ter efeitos sobre o §564b do BGB. Para tal, bem se poderia de considerar apenas a cláusula geral do §903 do BGB, segundo a qual o proprietário de uma coisa pode proceder com ela como entender e excluir qualquer intervenção dos outros. Este preceito contém, todavia, a restrição expressa de só valer “na medida em que a lei ou direito de terceiro se não oponham”. Ora, aqui é este justamente o caso, já que o §564b do BGB é, evidentemente, uma “lei” neste sentido. Teríamos, pois, antes de mais, de afastar interpretativãmente esta limitação, ou de a relativizar de algum modo, lendo-a “à luz” do artigo 14.° da LF27. Assim, a meu ver, tal forma de proceder levaria mesmo a contrariar-

26 V. a decisão fundamental BVerfGE, vol. 68, pp. 361, 368 e ss. Negando a aplicabilidade do artigo 14.° da LF (assim sobretudo Roellecke, NJW, 1992, p. 1652) em nada se altera a argumentação exposta no texto, já que, então, as dificuldades apenas se deslocam. Pois é, nesse caso, de recorrer, no seu lugar, à garantia jurídico-constitucional da autonomia privada, pelo artigo 2.°, n.° 1, da LF (cfr. também, sobre isto, infra, nota 34), de tal sorte que o seu reconhecimento no direito civil (que, segundo a posição generalizada, recebeu mediatamente expressão no § 305 do BGB) deveria igualmente ser relacionado com o artigo 2.°, n.° 1, da LF, tal como o §903 do BGB com o artigo 14.° da LF; de todo o modo, a meu ver, não existem, porém, objecções procedentes contra uma aplicação do artigo 14.° da LF, porque (e na medida em que) o locador é simultaneamente proprietário e o ar­rendamento representa um exercício das faculdades decorrentes da propriedade que se encontra coberto pela previsão normativa desse artigo 14.° da LF.

27 Cfr. a exigência de Diederichsen, ob. cit. (nota 24) de “carregar com o conteúdo valorativo dos direitos fundamentais” as cláusulas gerais de direito civil.

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-se a si própria. Significativamente, e tanto quanto se pode ver, os defensores de uma vinculação apenas mediata do legislador de direito privado aos direitos fundamentais também não ilustram, através de um único exemplo detalhado, a forma como a sua teoria seria verdadeiramente de realizar na prática.

Globalmente, a posição segundo a qual o legislador de direito privado só está vinculado mediatamente aos direitos fundamentais, isto é “por meio dos preceitos que dominam imediatamente essa área do direito”, deve ser rejeitada sem rebuço, tanto por razões de lógica normativa, como por razões práticas. Afigura-se-me, aqui, que apenas uma espécie de teorema de Münchhausen poderia criar ao jurista de direito privado a possibilidade de se soerguer a si mesmo, pelas suas próprias forças, do atoleiro do direito constitucional. As­sim, tal concepção conduz antes, em última instância, a uma “liber­dade do direito privado em face dos direitos fundamentais”28.

b) Recusa de uma limitação da eficácia dos direitos fundamen­tais a determinadas funções e a problemática das normas de direito privado conformadoras de direitos fundamentais

aa) Uma outra questão é a de saber se os direitos fundamentais valem para as normas de* direito privado na sua função clássica de proibições de intervenção e direitos de defesa, ou se apenas produ­zem efeitos na sua função de “normas de princípio objectivas”, como consideram sobretudo Zõllner e Medicus29. Em sentido pró­

28 Assim a caracterização das posições de Diederichsen e Zõllner por V. Schmidt, in Verhandlungen des 61. Deutschen Juristentages, 1996, O 44.

29 Cfr. Zõllner, RDV, 1985, pp. 8 e s., que, porém, logo de entrada concede que deverão ser pequenas as diferenças práticas em relação à aplicação dos direitos fundamentais na sua função de proibições de intervenção; Medicus, AcP, vol. 192 (1992), pp, 45 e s., com referência às considerações - a meu ver, contudo, pouco claras - de Bõckenforde, Der Staat, vol. 29 (1990), pp. 2 e s; sobre a concepção de Bõckenfõrde da relação entre os direitos fundamentais e o direito privado, cfr. também a crítica procedente de Lerche, in Festschrift f. Odersky, 1996, pp. 223 e s.

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ximo se orienta a posição segundo a qual aos direitos fundamentais cabe apenas, em face do legislador de direito privado, a função de im­perativos de tutela30. São comuns a estas posições três pontos. Em primeiro lugar, elas querem dar conta do argumento, há muito conhe­cido, segundo o qual no direito privado se opõem, tipicamente, titulares de direitos fundamentais dos dois lados da relação. Por isso tendem, em segundo lugar, a controlar as normas de direito privado, não segundo os padrões exigentes da “proibição do excesso”, mas, antes, a submetê-las, nessa medida, a exigências mais fracas. E elas são marcadas, em terceiro lugar, por um forte cepticismo relativa­mente à tese de que o entendimento dos direitos fundamentais como proibições de intervenção é sustentável no contexto em questão.

Apesar disto, a variedade dos exemplos que apresentei ante­riormente31 mostra que as leis de direito privado têm também, em numerosos casos32, uma clara natureza ofensiva - e isto, nalgumas circunstâncias, de forma massiva. Então constitui um imperativo de coerência controlá-las, nessa medida, em princípio também à luz da proibição de excesso. A circunstância de do outro lado da relação estar também um titular de direitos fundamentais, e de a lei de di­reito privado servir frequentemente para o proteger, não pode alterar nada neste aspecto, desde logo, porque também normas de direito público - por exemplo as do direito penal, do direito do urbanismo e do ambiente - visam muitas vezes, em igual medida, ou, mesmo, primariamente, a protecção individual de outras pessoas, e não ape­nas a promoção de interesses públicos. O “pensamento da interven­ção” - apesar de entretanto generalizadamente criticado33 - pode,

30 Assim Oldiges, Festschrift für Friauf, 1996, p. 301; de modo seme­lhante, Bleckmann, DVBl, 1998, p. 942.

31 Cfr. supra, II, 1, b.32 Mas não era todos - cfr. sobre isto supra, nota 15.33 Cfr. sobre isto, por todos, Isensee, in Isensee/Kirchhof, Handbuch des

Staatsrechts, vol. V, 1992, §111, n.°s de margem 48 e s, e Lerche, ibidem, §121, n.° de margem 52, os quais apreciam esta crítica e a colocam adequadamente nas suas proporções.

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pois, em princípio, defender a sua legítima posição também para as normas de direito privado.

Deve, porém, conceder-se que as normas de direito privado também podem servir para a concretização de imperativos de tutela de direitos fundamentais, e, mesmo, que elas representam, muitas vezes, ambas as coisas simultaneamente: intervenções nos direitos fundamentais de uma parte e garantias de protecção dos direitos fundamentais da outra. Assim, o Tribunal Constitucional Federal afirmou, recentemente - e a meu ver com razão - , que a Lei de Protecção contra os Despedimentos (Kündigungsschutzgesetz) visa satisfazer o imperativo, resultante do artigo 12.° da LF, de protecção do trabalhador contra a perda do seu posto de trabalho34; mas si­multaneamente uma tal protecção contra os despedimentos cons­titui, por outro lado, uma limitação dos direitos fundamentais con­trapostos do empregador, e em especial da sua autonomia privada35. Daqui não pode, todavia, concluir-se que a função de proibição de intervenção deve ceder. Antes há, consequentemente, que controlar ambas: por um lado, indagar se a intervenção nos direitos funda­mentais de uma parte onera esta de forma que ofenda a “proibição do excesso”; e, por outro lado, averiguar se a lei se fica, por exem­plo, aquém daquele mínimo que a Constituição impõe para protec­ção da outra parte. Entre estes pontos existe, em regra, um amplo espaço de liberdade de conformação, dentro do qual a solução não

34 BVerfG, in NJW, 1998, p. 1475.35 O direito a uma denúncia regular de relações obrigacionais duradouras

faz parte da garantia constitucional da autonomia privada, pelo artigo 2.°, n.° 1, ou pelo artigo 12.°, ambos da LF, desde logo, por aquele ser necessário para impedir uma vinculação perpétua por esses contratos e o “risco de petrificação” a ela associado, e por representar, portanto, um meio essencial para o exercício da autonomia privada do titular do direito de denúncia - cfr, sobre isto, sobretudo Ulmer, Festsfhr. für Mõhring, 1975, p. 304. Aliás, toda a protecção imperativa contra a denúncia representa uma intervenção na liberdade contratual, pelo menos, por excluir convenções das partes em contrário, e, em grande medida, no seu resultado prático, também a previsão de um prazo para o contrato.

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é determinada jurídico-constitucionalmente, e cujo preenchimento é, por isso, deixado apenas ao direito ordinário. Voltarei mais tarde a este ponto.

bb) Uma outra objecção vai no sentido de que as normas de direito privado muitas vezes não têm carácter ofensivo, mas antes, simplesmente, conformador ou concretizador de direitos fundamen­tais36. Esta objecção é, certamente, exacta na afirmação que lhe está subjacente. Assim, por exemplo, a definição de um limite de idade para a obtenção da plena capacidade negociai representa, em prin­cípio, tão-só uma mera conformação da autonomia privada, e não uma intervenção nesta. Logo de início, Lerche defendeu a posição de que a proibição do excesso não valeria para tais normas confor- madoras de direitos fundamentais37. Não posso, porém, concordar com ela38, pois, por esta via, o legislador (ordinário) ficaria, sem razões bastantes, em grande medida - e realmente bem para lá do limite da violação do artigo 3.°, n.° 1, da LF - liberado do controlo da conformidade dos seus actos segundo o princípio do Estado-de- Direito. Se, por exemplo, o legislador concedesse às pessoas plena capacidade negociai apenas aos 25 anos, a conformação volver-se- -ia, por isso mesmo, numa intervenção na autonomia privada garan­tida pelo artigo 2.°, n.° 1, da LF, a qual seria inconstitucional por violação da proibição do excesso - tal como, inversamente, uma diminuição geral do limite de idade para 14 anos ofenderia o mí­

36 Cfr. sobre esta função dos direitos fundamentais, por todos, Lerche, HbdStR, Ioc. cit., §121, n.°s de margem 37 e ss; em geral sobre a concretização do direito constitucional e as múltiplas facetas desta expressão, idem, in Koller/ /Hager/Junker/Singer/Neuner (orgs.), Einheit und Folgerichtigkeit im juristischen Denken, Symposion zum 60. Geburtstag von C. W. Canaris, 1998, pp. 7 e ss.

37 Leche, Übermass und Verfassungsrecht, 1961, pp. 140, 153; cfr. porém também idem, HbdStR, cit., § 121, n.°s de margem 17, 31.

38 Cfr. Canaris, JZ, 1987, p. 995; na substância em sentido concordante, por exemplo, Isensee, HbdStR, loc. cit., §111, n.° de margem 51, o qual também pre­tende aplicar ilimitadamente às normas conformadoras e modeladoras os direitos fundamentais na sua função de proibições de intervenção e direitos de defesa.

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nimo de protecção constitucionalmente garantido. Por conseguinte, as normas conformadoras e modeladoras de direitos fundamentais representam uma certa perturbação do pensamento da intervenção, mas não o anulam39.

c) Conclusão parcial

Tudo ponderado chego, pois, à seguinte conclusão parcial: os direitos fundamentais vigoram imediatamente em face das normas de direito privado. Esta é hoje a opinião claramente dominante40. Aqui os direitos fundamentais desempenham as suas funções “nor­mais”, como proibições de intervenção e imperativos de tutela. Esta perspectiva deverá, também, coincidir substancialmente com a posi­ção do Tribunal Constitucional Federal. Designadamente, e como já referi, por um lado, este controlou à luz dos direitos fundamentais, sem limitações, normas de direito privado como o §564 do BGB e o §90a, n.° 2, frase 2.a, do Código Comercial - e, aliás, ainda uma série de outros preceitos de direito privado, como por exemplo o §1629 e o §1596, ambos do BGB41 e submeteu-as a um forte con­trolo de proporcionalidade, aplicando, pois, a proibição do excesso; e, por outro lado, controlou recentemente o §23, n.° 1, frase 2.a, da Lei de Protecção contra os Despedimentos, nos termos do qual os trabalhadores de certas pequenas empresas estão excluídos do âm­bito de aplicação da protecção contra os despedimentos, à luz do

39 Em sentido semelhante, Pietzcker, Festschrift fiir Dürig, 1990, p. 353.40 Cfr. Canaris, AcP, vol. 184 (1984), pp. 212 e ss; Bydlinski, in Rack (org.),

Grundrechtsreforrn, 1985, p. 174 e n. 2; Stem, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschlandy vol. III/1, 1988, §76, IV, 2a e 3; Hesse, Verfassungsrecht und Pri- vatrecht, 1988, p. 27 e n. 42; Badura, Staatsrecht, 2a ed., 1996, pp. 230 e s.; Larenz/Wolf, Allg. Teil des Bürg. Rechts, 8a ed., 1997, §4, n.° de margem 46; J. Hager, JZ, 1994, p. 375; Dreier, Jura, 1994, p. 509; Looschelders/Roth, JZ,1995, pp. 1037 e s; Singer, JZ, 1995, p. 1136; Oldiges, Festschr.Jur Friauf \ 1996, pp. 283 e s; Isensee, Festschr.für Kriele, 1997, p. 32.

Cfr., BVerfGE, vol. 72, pp. 155, 173; vol. 79, pp. 256, 272 e s.

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artigo 12.° da LF, retirando expressamente deste direito fundamental um imperativo de tutela a favor do trabalhador (o qual, porém, pro­cedendo-se a uma interpretação conforme à Constituição, não se considerou violado pela excepção para pequenas empresas)42.

3. Modificações dos efeitos dos direitos fundamentais

Num ponto deve, porém, dar-se razão aos críticos de um re­curso demasiado ligeiro ao artigo 1.°, n.° 3, da LF: da aplicabilidade deste preceito ao legislador de direito privado não resulta que os direitos fundamentais tenham sempre, para a relação entre sujeitos de direito privado, exactamente o mesmo conteúdo e o mesmo alcance que na relação entre o cidadão e o Estado43. Antes a sua concreta pretensão de eficácia pode ser de determinar diversamente segundo tal distinção44 - seja por dever determinar-se em termos diferentes o seu conteúdo, seja, mesmo, por ceder inteiramente em situações excepcionais, especialmente configuradas.

Assim, por exemplo, a exigência do bem comum ou do inte­resse público não desempenham, em regra, qualquer papel para a disciplina da relação entre os sujeitos de direito privado. Por conse­guinte, para o controlo jurídico-constitucional de normas de direito privado limitadoras da liberdade de profissão - por exemplo, através de uma proibição de concorrência que integra o contrato, nos termos dos §60 e do §112 do Código Comercial - , seria errado invocar as­pectos do bem comum no contexto da aplicação do artigo 12.° da

« BVerfG, in NJW, 1998, p. 1475.43 Cfr. sobretudo Lerche, Festschr. für Steindorff, 1990, p. 905, n. 30, e

Festschr.für Odersky, 1996, pp. 215, 230 e s., o qual, de resto, reconhece, porém, que o recurso ao artigo 1.°, n.° 3, da LF representa uma “construção plenamente acertada na sua ideia básica” e um “progresso considerável” em relação à teoria da irradiação do Tribunal Constitucional Federal, com a sua “vaguidade”; as reservas de Pietzcker, Festschr.für Diirig, 1990, p. 352 parecem ser de entender em sentido semelhante às de Lerche.

44 Cfr. também infra, VI, 2, a, in fine~p. #, sobre a “inversão” do caso Lüth.

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38 Claus-Wilhelm Canaris

LF45, como é hábito segundo a “teoria dos níveis”46. Também nem sempre tudo depende, no caso de normas de direito privado, da exis­tência ou dos limites de uma reserva de intervenção legislativa, como acontece no caso de normas de direito público47. Por outro lado, essa reserva também não é, ali, em geral irrelevante; por exemplo, a falta de uma reserva de intervenção da lei no artigo 5.°, n.° 3, da LF tem como efeito que uma limitação da liberdade artística por via da responsabilidade extracontratual e da acção inibitória só é de admitir se for constitucionalmente imposta para protecção de um direito fundamental conflituante, como é o caso, em particular, do direito geral de personalidade48. Por último, pode existir uma espe­cialidade nas intervenções em direitos fundamentais por normas de direito privado na medida em que, considerando um direito funda­mental conflituante, pode ser de aceitar um enfraquecimento das exigências no quàdro do controlo do excesso e uma intensificação no quadro da concretização do imperativo de tutela; é certo que isto não vale em geral, mas antes, apenas, quanto a cada problema con­creto, ou, quando muito, em domínios específicos, mas representa o meio adequado para, se for necessário, dar conta do ponto de vista- sempre de novo acentuado na discussão científica - de que nos conflitos de direito privado, em regra, se opõem titulares de direitos fundamentais em ambos os lados da relação.

45 Por maioria de razão, não haverá que recorrer a este critério se se tratar da influência dos direitos fundamentais sobre a eficácia de um ordenamento jurídico-negocial. Nesta medida, em sentido errado na sua fundamentação BAG AP n.° 12, sobre o § 611 do BGB e desporto profissional, II, 4, e, g; cfr., sobre isto, a crítica convincente de Singer na anotação cit., II, 1, c.

46 Cfr., sobre isto, mais em detalhe, Canaris, AcP, vol. 184 (1984), p. 215.47 Cfr. o exemplo em Canaris, ob. cit., p. 214; um outro problema é o de

saber que papel desempenha a reserva na concretização da função de imperativo de tutela. Cfr., sobre isto, infra, VI, 3, c.

48 Cfr. mais em detalhe Canaris, JuS, 1989, p. 172, e Larenz/Canaris, Schuldrecht, vol. II/2, 13a ed., 1994, §80, V, 2.

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Direitos Fundamentais e Direito Privado 39

UI. A influência dos direitos fundamentais sobre a aplicação e o desenvolvimento do direito privado

1. A eficácia normativa dos artigos 1.°, n.° 3 e 93.°, n.° 1, alínea 4a, ambos da LF\ em relação à jurisprudência no campo do direito privado

Até agora falámos da vinculação aos direitos fundamentais do legislador de direito privado e das normas aprovadas por este. Voltemo-nos agora para a questão de saber se - e em caso afirma­tivo, em que termos - também a aplicação e o desenvolvimento do direito privado, e, com isso, em especial a jurisprudência nesta área, se encontram vinculados aos direitos fundamentais.

a) O artigo 1.°, n. ° 3, da LF, como ponto de partida

Também aqui, o nosso ponto de partida haverá de ser, nova­mente, o artigo 1.°, n.° 3, da LF, segundo cuja letra os direitos fun­damentais, vinculam, “como direito imediatamente vigente”, não apenas o legislador, mas também os órgãos jurisdicionais. Todavia, incorrer-se-ia numa inadmissível petitio principii se se concluísse sem mais, a partir daqui, que os direitos fundamentais são imediata­mente eficazes, na aplicação e desenvolvimento jurisdicional do direito privado, logo pelo simples facto de os órgãos jurisdicionais também serem mencionados no artigo 1.°, n.° 3, da LF, onde são colocados a par do legislador49. Em primeiro lugar, o juiz, diver­samente do legislador, em princípio não aprova quaisquer normas, antes decide casos concretos, com força de caso julgado apenas para as partes envolvidas, de tal sorte que um tratamento paritário no que toca à vinculação aos direitos fundamentais não é nada evidente. De outra parte, também procede, no presente contexto, a afirmação de

49 Cfr. também a crítica de Lerche (Festschr. für Odersky, 1996, p. 231, nota 38) às minhas considerações em JuS 1989, pp. 162 e ss., que, na substância, já tinham fundamentalmente o mesmo sentido dos argumentos a seguir expostos.

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que, para efeitos de vinculação aos direitos fundamentais, o ponto decisivo não é a posição ocupada pelos tribunais como órgãos esta­tais, mas, antes, “a relação jurídica material em que se encontram as partes de um litígio”50.

No entanto, com a inclusão dos órgãos jurisdicionais no artigo1.°, n.° 3, da LF, não pode simplesmente pretender dizer-se que aqueles apenas estão vinculados imediatamente aos direitos fun­damentais no âmbito de sua actuação jurídico -processual, e não no aspecto jurídico -material. Designadamente, a conseqüência decor­rente deste entendimento - no sentido de que a aprovação de leis, mas não a sua aplicação e desenvolvimento, se encontra sujeita à vinculação imediata aos direitos fundamentais - não pode ser cor­recta, desde logo, porque, dessa forma, a própria efectividade dos direitos fundamentais ficaria prejudicada de forma massiva. Com efeito, independentemente de todas as controvérsias em tomo da questão da natureza normativa do “direito dos juizes”51, pelo menos sob o ponto de vista fáctico é, em grande medida, apenas a jurispru­dência que confere às leis pleno conteúdo, criando, portanto, law in action em contraposição a law in the books, e que, assim, influencia

50 Assim Starck, JuS .1981, p. 244; em sentido semelhante, por exemplo, Stem, ob. cit., § 76, vol. III/1; E. Klein, NJW, 1989, p. 1640; Rüfner, in: Isen- see/Kirchhof, HbdStR vol. V, § 117, n.° de margem 60. Quando Starck chega, depois, à conclusão de que “uma eficácia directa dos direitos fundamentais sobre o direito privado não se deixa, nem fundamentar suficientemente sob o ponto de vista constitucional, nem sustentar nas suas conseqüências”, não pode aceitar-se a sua posição. Com efeito, a - habitual - referência a uma eficácia imediata dos direitos fundamentais sobre “o direito privado” é de rejeitar, em virtude da sua imprecisão, uma vez que, no presente contexto, Starck tem em vista, em primeira linha, o problema da eficácia dos direitos fundamentais em relação a terceiros, e, portanto, não a distingue claramente da questão da vinculação imediata do legislador de direito privado aos direitos fundamentais (cfr. sobre isso IV, 2, b, infra). E, por outro lado, a necessária referência à “relação jurídica material” entre as partes do processo verifica-se por meio. das proposições que os órgãos judiciais adoptam pará fundamentar as suas decisões (v. infra c, especialmente a nota 53).

51 Cfr. sobre isto, por todos, Larenz/Canaris, Methodenlehre der Rechtswis- senschaft, 3a ed., 1995, pp. 252 e ss., e posfácio.

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decisivamente as conseqüências práticas da legislação para as posi­ções jurídicas fundamentais dos cidadãos. Acresce que, a não ser assim, chegaríamos à conseqüência, absurda, de a protecção dos di­reitos fundamentais ficar dependente dos acasos da técnica legis­lativa, sendo, por exemplo, bem mais intensa no caso de uma norma precisa na sua hipótese do que no caso de uma cláusula geral. Não é pelo facto de os tribunais serem órgãos estatais - e, de resto, os tribunais arbitrais de direito privado nem sequer isso são! - , mas, antes, por a aplicação e o desenvolvimento das leis constituírem o necessário complemento da sua aprovação pelo legislador, que também os órgãos jurisdicionais se encontram submetidos, no domí­nio do direito privado, à vinculação imediata aos direitos fundamen­tais, os quais, por conseguinte, devem, também aqui, ser aplicados nas suas funções “normais”, como proibições de intervenção e como imperativos de tutela52.

b) O argumento extraído do artigo 93.°, n.° 1, alínea 4a, da LF

Complementarmente, importa referir de novo, também neste contexto, o artigo 93.°, n.° 1, alínea 4.a, da LF. Segundo o teor literal e a história deste preceito, nele está também, claramente, compreen­dida a queixa constitucional contra decisões dos tribunais, e, em especial, também contra decisões dos tribunais na esfera cível, com fundamento numa aplicação inconstitucional do direito privado ma­terial - ponto que não deixa margem para dúvidas, considerando a introdução desta regra na Lei Fundamental cerca de dez anos depois da decisão proferida no caso Lüth. Ora, se, deste modo, os órgãos jurisdicionais no campo do direito privado são considerados “poder público”, no sentido do artigo 93.°, n.° 1, alínea 4a, da LF, e se suas decisões podem, portanto, violar direitos fundamentais pela errada aplicação do direito privado, conclui-se, de forma logicamente ine­xorável, que os tribunais cíveis também se encontram sujeitos à vin­culação pelos direitos fundamentais no plano jurídico-material.

52 Concordando, Hillgruber, AcP, vol. 191 (1991), pp. 71 e s.

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42 Claus-W ilhelm Canaris

c) A ratio decidendi normativamente pensada enquanto objecto da vinculação e do controlo pelos direitos fundamentais

Coerentemente, a conseqüência destas reflexões, que, neste as­pecto, conduzem a um paralelismo entre legislação e jurisprudência, apenas pode consistir em que as proposições em que os tribunais fundamentam as suas decisões, por interpretação e desenvolvimento do direito, devem, da mesma forma, ser aferidas, em princípio ime­diatamente, segundo os direitos fundamentais, tal como se constas­sem de modo expresso do texto legal53. Devem, portanto, tais pro­posições ser formuladas como normas, para então se controlar, en­quanto tais, a sua constitucionalidade. A proposição que sustenta a decisão judiciai é aqui pensada como parte do direito material, e submetida, pelas referidas razões, à vinculação aos direitos funda­mentais, de tal sorte que esta vinculação não se deduz, por exemplo, a partir de uma violação pelo tribunal enquanto tal, mas, antes, das proposições em que este assentou à decisão54.

O que se pretende dizer com esta perspectiva pode entender-se bem se se ligar a chamada fórmula de Schumann55 com a teoria de Fikentscher da norma do caso (“Fallnorm”)56. Segundo aquela fór­mula - da qual, de resto, o próprio Tribunal Constitucional Federal não raro parte57 - , a decisão de um tribunal é, em qualquer caso,

53 Assim já Canaris, JuS 1989, p. 162 depois da nota 8; no mesmo sentido, por exemplo, J. Hager, JZ 1994, p. 377.

54 Isto não é considerado, por exemplo, por Oldiges, Festschr. für Friauf,1996, p. 287, quando nega a existência de uma ofensa na decisão Lüth\ cfr., a propósito, supra, nota 49, e próximo desta.

55 Cfr. E. Schumann, Verfassungs-und Menschenrechtsbeschwerde gegen richterliche Entscheidungen, 1963, p. 207 e 334; cfr. a respeito, dentre a doutrina mais recente, por exemplo, Starck, JZ 1996, p. 1039; Berkemann, DVBl 1996, pp. 1032 e ss.; Robbers, NJW 1998, p. 936.

56 Cfr. Fikentscher, Methoden des Rechts, vol. IV, 1977, pp. 202 e ss.57 Cfi;., por exemplo, BVerfGE 79, pp. 283 e 290; 81, pp. 29 e 31 e ss.;

Berkemann DVBl 1996, p. 1033, calcula que, substancialmente, o Tribunal Cons­titucional Federal resolve quatro quintos das suas queixas constitucionais contra decisões mediante a fórmula de Schumann.

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inconstitucional, se a perspectiva jurídica que a fundamenta violasse um direito fundamental na hipótese de constar expressamente do texto legal - ou seja, de ter natureza de norma legal. Isto harmoniza- -se bem com a teoria de FiJkentscher sobre a norma do caso, na medida em que, segundo esta, se reconhece natureza normativa àquelas proposições sob as quais o juiz efectuou imediatamente a subsunção, depois de as ter precisado suficientemente, por via de interpretação e de concretização, e de as ter adequado ao suporte factual para tal preparado. Não está aqui em causa apurar se esta doutrina pode ser seguida. Trata-se, apenas, de reconhecer que ela oferece, no presente contexto, um bom auxiliar de raciocínio: para o dizer em termos um pouco simplificados, deve conceber-se a ratio decidendi de uma decisão judicial como norma, e comprovar se esta violaria um direito fundamental, sendo que há-de partir-se, aqui, da aplicação imediata deste - de forma não diferente do que se passa perante o legislador de direito privado. Esta é a conseqüência lógica a extrair da circunstância de a aplicação e o desenvolvimento da legislação constituírem a sua necessária concretização, devendo, por esta razão, ser equiparados à lei quanto à protecção dos direitos fundamentais.

2. Tentativa de uma “reconstrução crítica” da decisão Lüth do Tribunal Constitucional Federal

A concepção apresentada está, em certa medida, em oposição à conhecida decisão Lüth do Tribunal Constitucional Federal e a par­celas significativas da sua jurisprudência subsequente. É que nesta se parte, simplesmente, de uma “eficácia de irradiação” dos direitos fundamentais no âmbito do direito privado58. Em conformidade,o Tribunal Constitucional Federal entende que “uma vinculação do juiz aos direitos fundamentais na solução do litígio no campo do di­reito privado não se verifica de modo directo, mas apenas na medida

58 BVerfGE, vol. 7, pp. 198 e 207.

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em que a Lei Fundamental, no seu capítulo sobre os direitos funda­mentais, simultaneamente erigiu uma ordem objectiva, que, como decisão jurídico-constitucional fundamental, deve valer para todos os ramos do direito, influenciando, assim, também o direito pri­vado”59. Vou, por esta razão, tratar a seguir, mais detidamente, a decisão Lüth. Existem, de resto, razões especiais para tanto, pois esta decisão foi recentemente alvo de severas críticas do ponto de vista da dogmática civilística, tendo mesmo sido qualificada, por Diederichsen, como “um golpe de estado metodológico”60. A meu ver, se, na verdade, a decisão revela consideráveis fraquezas, estas podem, porém, ser afastadas por via de uma “reconstrução crítica”- como se costuma dizer na moderna teoria da ciência.

a) A necessidade de uma separação estrita entre a “eficácia de irradiação” e a “problemática da super-revisão”

Um primeiro grave vício da decisão Lüth consiste em ligar a ideia de uma (mera) “eficácia de irradiação” dos direitos fundamen­tais no âmbito do direito civil com a problemática de uma “super- -revisão”. É justamente neste contexto, e apenas nele, que emprega a expressão “eficácia de irradiação”61, obtendo-se, assim, a impres­são de que esta perspectiva deve servir também - e não como último objectivo - para afastar o risco de uma “super-revisão”.

Este risco não é, porém, de forma alguma específico das quei­xas constitucionais contra decisões dos tribunais cíveis, e antes se manifesta, em princípio, em todas as áreas do Direito da mesma forma. Pois também se uma queixa constitucional for deduzida con­tra uma decisão de um tribunal administrativo, penal ou financeiro, ela abre uma instância adicional, de tal forma que o Tribunal Cons­titucional Federal precisa, também então, de se acautelar, para não cair no papei de um tribunal de super-revisão. Nos referidos ramos

59 Assim BVerfGE 73, p. 261 (itálico acrescentado).60 Diederichsen, AcP, vol. 198 (1998), p. 226.ei BVerfGE, vol. 7, pp. 198 e 207.

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Direitos Fundamentais e Direito Privado 45

I; do direito permanece, porém, incontroverso que os direitos funda- f: mentais vigoram imediatamente. Não pode, pois, encontrar-se umaI saída adequada, na tentativa de mitigar a problemática no direito

privado - e, por conseguinte, apenas neste pela via da desgra- duação da pretensão de vigência dos direitos fundamentais, para uma mera “eficácia de irradiação”. Antes esta não tem rigorosa­mente nada a ver com a problemática da super-revisão, e deve, pois, ser estritamente separada dela, diversamente das considerações tecidas na decisão Lüth e dos muitos equívocos por ela causados62.

Na verdade, a problemática da super-revisão é uma pura ques­tão processual-constitucional63. Em meu entender, ela apenas pode ser resolvida, de forma dogmaticamente correcta, através de uma interpretação restritiva do artigo 93, n.° 1, alínea 4a, da LF para as queixas constitucionais contra decisões judiciais; a legitimação metodológica desta solução pode encontrar-se na circunstância de tais decisões - diversamente das leis - não valerem de forma geral e abstracta, e antes possuírem força juridicamente vinculante tão-só no âmbito do caso concreto objecto do litígio. No entanto, esta ques­tão situa-se fora do meu campo temático, de modo que não a posso aqui aprofundar. Refira-se, ainda assim, de passagem que já se ga­nharia muito com uma distinção, mais clara do que até agora, entre a fundamentação e o resultado da decisão do tribunal ordinário a controlar pelo Tribunal Constitucional Federal. Possivelmente, a problemática da super-revisão seria, assim, consideravelmente ate­nuada se o Tribunal Constitucional Federal exigisse, em cada caso e rigorosamente, que a decisão impugnada pela queixa constitucional devesse ter chegado a um outro resultado por força da Constituição, e não considerasse bastante que ela pudesse ter tal resultado à luz de

62 Em sentido diverso, por exemplo, ainda recentemente, Badura, Festschr. jur Odersky, 1996, p. 175.

63 Sobre a relação entre o Tribunal Constitucional Federal e os tribunais ordinários, cfr., recentemente, os contributos de Seidl, Starck, Schmidt e Niehues, in Verhandlungen des 61. Deutschen Juristentags, 1996, O 9 e ss.; e ainda, por exemplo, Starck, JZ, 1996, p. 1033 e ss.; Berkemann, DVBl, 1996, pp. 1028 e ss.; Robbers NJW, 1998, pp. 935 e ss.

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um correcto entendimento dos direitos fundamentais64. Parece-me, pelo menos, digno de menção o facto de ser justamente neste ponto, que se distingue uma perspectiva especificamente processual-cons- titucional de uma perspectiva específica de revisão das decisões ju­diciais. Esta seria, contudo, uma abordagem nova, e bastante radical, porque, então, a existência de erros jurídico-constitucionais na fun­damentação de uma decisão já não seria, em princípio, bastante para o sucesso de uma queixa constitucional. Se, por esta razão, se consi­derar tal alternativa insustentável - e boas razões depõem nesse sentido - , sempre se deveria, porém - pelo menos nos casos em que a revogação de uma decisão dos tribunais ordinários pelo Tribunal Constitucional Federal se baseia, apenas, numa errada fundamen­tação constitucional, como, por exemplo, no erro sobre o alcance da previsão de um direito fundamental - , aceitar, muito mais intensa­mente do que é comum até agora, que o tribunal comum competente pode bem, na sua nova decisão, chegar ao mesmo resultado que anteriormente, desde que a fundamentação esteja, agora, isenta dos erros de natureza constitucional65. No entanto, e infelizmente, o Tri­bunal Constitucional Federal sugere demasiadas vezes a existência de uma vinculação do tribunal ordinário orientada pelo resultado, mesmo quando esta se não pode retirar da Constituição; e os tribu­nais inferiores também se consideram demasiado frequentemente obrigados a alterar o seu anterior resultado, em vez de simplesmente repensarem as suas decisões à luz das directrizes do Tribunal Cons­titucional Federal, e de se limitarem, quando for o caso, a eliminar as falhas jurídico-constitucionais mantendo o resultado originaria- mente alcançado66.

64 Aqui desemboca, possivelmente, a sugestão de Starck, JZ, 1996, pp. 1039 e ss., o qual pretende generalizar como norma, no sentido da fórmula de Schumann, o resultado (!) da decisão judicial ordinária.

65 Cfr., a título de exemplo, a decisão, discutida mais amplamente infra, V,4, a, sobre o direito de uma criança a obter da mãe informações sobre a pessoa do seu pai biológico.

66 Um exemplo crasso de uma tal obediência exagerada, e, mesmo, de um excesso de reacção, é a segunda decisão do Supremo Tribunal Federal no caso

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Quanto ao mais, uma parte substancial das dificuldades que se verificam neste contexto é também “de criação doméstica”, e pode­ria ser logo evitada se o Tribunal Constitucional Federal, seguindo as suas próprias premissas, se não imiscuísse na solução de questões que se situam no plano infra-constitucional, e que, portanto, caem exclusivamente na competência dos tribunais ordinários67.

b) A substituição da “eficácia de irradiação” pelo recurso às funções dos direitos fundamentais de proibição de inter­venção e de imperativo de tutela

O segundo vício principal da decisão Lüth situa-se no plano dogmático-constitucional, e consiste em o Tribunal Constitucional Federal não ter aqui aplicado os direitos fundamentais, pura e sim­plesmente, na sua função de proibições de intervenção e de direitos de defesa, empregando, antes, o conceito de “eficácia de irra­

BõWWalden (NJW 1982, p. 635), onde aquele poderia simplesmente ter mantido o resultado da sua primeira decisão, revogada pelo Tribunal Constitucional Federal. Em vez disso, o tribunal caiu, porém, no extremo oposto, impondo ao demandado, no quadro da exigência da culpa, que vale para a deduzida pretensão de reparação de danos morais, os riscos de um erro de direito que a mesma secção do Supremo Tribunal Federal havia antes (cfr. BGH, in NJW, 1978, p. 1797), ela própria, cometido. Com razão, Medicus (Schuldrecht, vol.II, 8a ed., 1997, § 141II 3) qualificou, pois, a segunda decisão, como “evidentemente errada”.

67 Um exemplo incômodo de uma tal ingerência constitui, por exemplo, a decisão era BVerfGE, vol. 85, pp. 1 e 21 (caso Coordination contra Bayer), onde o Tribunal Constitucional Federal se arrogou decidir, ele mesmo, que a palavra “espionar” ("Bespitzeln”) contém uma afirmação de factos apenas quanto ao elemento da observação, mas não, também, a respeito do elemento do segredo. Abstraindo disto, também é incorrecto o princípio de uma “interpretação favorável ao autor da ofensa”, no qual o tribunal se baseou aqui (cfr. Larenz/Canaris, Schuldrecht, II/2, 13a ed., 1994, pp. 524 e s.). De resto, a tendência do Tribunal Constitucional Federal para tais ingerências tem sido especialmente marcada quando estava era questão saber se a liberdade de expressão foi violada - cfr. a crítica pertinente de Isensee, Festschriftfur Kriele,1997, pp. 43 e s.

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diação”. Este não constitui mais do que uma solução de recurso, desde logo, porque não é um conceito jurídico, mas antes, e tão-só, uma formulação metafórica extraída da linguagem coloquial, e que é correspondentemente vaga68.

A fundamentação com base no artigo 1.°, n.° 3, da LF, tem, perante ela, a vantagem de ser, quer dogmaticamente bem mais clara e simples, quer mais precisa na sua previsão69. Designadamente, e como referi70, segundo ela é apenas necessário formular, como norma, a ratio decidendi subjacente à decisão do tribunal cível que é impugnada pela queixa constitucional, e controlá-la imediata­mente segundo os direitos fundamentais. No caso Liith, por exem­plo, tal norma teria o seguinte teor: “um apelo ao boicote de um filme, mesmo quando proferido por um particular sem o emprego de meios de pressão financeiros ou semelhantes e sem intenção de con­corrência, gera uma obrigação de indemnizar os proprietários dos cinemas atingidos, e, no caso de existir um risco de reiteração da conduta, poderá ser proibido por iniciativa destes, mediante uma acção inibitória”. Afigura-se-me evidente que uma tal norma re­presenta uma interferência no direito à livre expressão da opinião, nos termos do artigo 5.°, n.° 1, da LF71 (isto, se abstrairmos, para já,

68 Mais críticas procedentes à doutrina da “eficácia de irradiação” podem en­contrar-se em Lerche, Festschrift jur Odersky, 1996, pp. 216 e ss., 223 e 227 e ss.

69 Em sentido concordante, Lerche, Festschrift für Odersky, 1996, pp. 215 e 230 e ss. (sobre as - justificadas - restrições efectuadas, neste ponto, por Lerche, v. supra, II, 3); Hillgruber, in AcP vol. 191 (1991), pp. 71 e s., e em Der Schutz des Menschen vor sich selbst, 1992, pp. 128 e s.; Singer, JZ 1995, p. 1136; Oldiges, Festschrift fiir Friauf, 1996, pp. 300 e 303; no essencial também Jarass, AõR, vol. 120 (1995), pp. 352 e s., que, contudo, aparentemente pretende preser­var a teoria da “eficácia de irradiação” apenas a precisando correspondentemente. Quando, no presente contexto, Oldiges e Jarass apenas pretendem recorrer à função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela, tal não corresponde à perspectiva aqui adoptada, já que, segundo esta (e como a seguir se dirá no texto), a função de proibição de intervenção é igualmente relevante - e isto, justamente, no caso Lüth.

70 Cfr. supra, III, 1, c.71 Cfr. Canaris, AcP, vol. 185 (1985), pp. 10 e s., e JuS 1989, p. 167; neste

ponto em sentido parecido, Lübbe-Wolff, Die Grundrechte ais Eingriffsabwehr-

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do problema adicional, irrelevante no presente contexto, de saber se apelos ao boicote integram, de todo em todo, o âmbito de protecção da hipótese do artigo 5.°, n.°l, da LF72); e parece-me que, pelo menos, não é indefensável que uma tal norma seja de rejeitar como inconstitucional sem maior esforço de fundamentação, à luz de um controlo de proporcionalidade - como, sob a epígrafe da “teoria dos efeitos recíprocos”, este tem sido efectuado pelo Tribunal Consti­tucional Federal no âmbito do artigo 5.°, n.° 3, da LF73.

O Tribunal Constitucional Federal poderia, assim, ter-se saído bem, no caso Lüth, utilizando as funções tradicionais dos direitos fundamentais como proibições de intervenção. Poderia, pois, ter evitado, sem mais, quer a tese da “ordem de valores objectiva’, que a Constituição alegadamente consagrou na parte sobre direitos fun­damentais, quer o recurso aos direitos fundamentais como “normas objectivas”. Como é sabido, a jurisprudência do Tribunal Constitu­cional Federal confronta-se, neste aspecto, com uma critica variada e, em parte, muito intensa. Saber se estas críticas se justificam,

rechte, 1988, pp. 165 e s.; Oeter, AõR, vol. 119 (1994), pp. 535 e s. O Tribunal Constitucional Federal aproxima-se significativamente deste ponto de vista quando, na decisão Deutschlatid-Magazin (BVerfGE, vol. 42, pp. 143 e 149), sobre uma proibição de repetir uma determinada expressão adoptada por um tribunal cível no quadro de uma acção inibitória, afirmou: “Uma tal proibição, quer seja imposta em função do interesse estatal, quer seja em benefício de um particular, é sempre uma intervenção (!) delicada, para cuja conformidade cons­titucional devem fazer-se exigências rigorosas.”

72 A isto respondeu afirmativamente, de forma expressa, pelo Tribunal Constitucional Federal - cfr. BVerfGE 7, pp. 198 e 210, Neste aspecto é de con­cordar, sem restrições, com a decisão; cfr., de modo mais detido, Canaris, JuS,1989, p. 167, com indicações sobre a posição contrária.

73 Cfr., sobre a interpretação da “teoria dos efeitos recíprocos” como uma expressão do princípio da proporcionalidade, v., mais em detalhe, Larenz/Canaris, Schuldrecht, vol. II/2,13a ed., 1994, § 80, V, 1; de modo semelhante, embora com um acento dogmático oposto, Schmidt-Jortzig, in: HbdStR vol, VI, 1989, § 141, n.° de margem 43. Com razão, Lerche, in HbdStR vol. V, 1992, § 122, n.° de margem 21, aponta para o risco de, devido ao controlo do caso concreto ligado à teoria dos efeitos recíprocos, “a reserva da lei geral acabar efectivamente inver­tida numa reserva de julgamento para o caso individual.”

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é algo que pode ficar aqui em aberto, pois, no presente contexto, é apenas relevante verificar que a decisão Lüth poderia ter passado bem sem as categorias mencionadas, tendo podido fundamentar-se na clássica função dos direitos fundamentais como proibições de intervenção1*. Por tal razão, não pode falar-se de “golpe de estado metodológico”, ou de algo similar.

Aliás, também noutros problemas o Tribunal Constitucional Federal usa um procedimento muito próximo, ou, mesmo, idêntico à posição aqui defendida. Assim, por exemplo, o Tribunal indagou se a aplicação e interpretação do §564b do Código Civil Alemão pelos tribunais cíveis se mantinha dentro dos limites fixados ao le­gislador pelo artigo 14 da LF75. Deste ponto para a aceitação da tese exposta supra, 1, c, no sentido de que a ratio decidendi de uma deci­são judicial deve ser formulada como norma, e, então, aferida direc- tamente segundo os direitos fundamentais, parece ir apenas um pe­queno passo.

c) Diferenças na prática

Acresce que a utilização dos direitos fundamentais na sua fun­ção de proibições de intervenção, em lugar da obscura doutrina da “eficácia de irradiação”, teria ainda apresentado a vantagem adicio­nal de não ter, à partida, sido necessário, nem examinar diversas circunstâncias do caso concreto tidas como relevantes pelo Tribunal Constitucional, nem considerar todos os critérios desenvolvidos em função das mesmas. Isto vale, em particular, para o requisito, alta­

74 Contra Diederichsen, in AcP, vol. 198 (1998), p. 217 e ss., não é correcto dizer-se que, sem o entendimento dos direitos fundamentais como ordem de valores, “uma influência dos direitos de defesa sobre o direito privado - logo por os direitos de defesa serem dirigidos ao Estado - estaria metodologicamente excluída logo à partida”.

75 Cfr., por exemplo, BVerfGE, vol. 79, pp. 283 e 289 e ss.; vol. 79, pp. 202 e 303; vol. 81, pp. 29 e 32 e ss.; vol. 82, pp. 6 e 16; cfr., ainda, a exposição de Voelskow, in MünchKomm., 3a ed., 1995, § 564b, n.° de margem 9.

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mente questionável, de que se trate de “um contributo para o embate intelectual de opiniões, numa questão que interessa à opinião pública de forma central, efectuada por uma pessoa para tanto legitimada”76. Ainda voltarei a este ponto77.

De resto, o que pode influenciar imediatamente o resultado é a circunstância de, a partir da perspectiva aqui defendida, a proibição de excesso e, em especial, o princípio da proporcionalidade em sen­tido estrito, deverem ser aplicados aos fundamentos subjacentes às decisões judiciais, na medida em que estas restringem direitos fun­damentais. Em sentido oposto, na decisão Mephisto o Tribunal Constitucional Federal invocou, simplesmente, a proibição de dis­criminação78. A queixa constitucional dirigia-se, aí, contra uma decisão do Supremo Tribunal Federal, pela qual este considerara procedente uma acção contra a distribuição do romance Mephisto, da autoria de Klaus Mann, com o fundamento de que no livro, e ainda que de forma dissimulada, se distorcia o percurso vital do - na época já falecido - actor Gründgens, o que seria incompatível com a protecção post mortem da sua personalidade. Existia aqui uma intervenção na liberdade artística, nos termos da previsão do artigo 5.°, n.° 3, da LF, por uma norma (não escrita) do direito privado e pela sua concretização jurisdicional. Por conseguinte, o controlo de constitucionalidade não deveria ter lugar apenas segundo a bitola da proibição de discriminação, mas, antes, à luz das exigências da proibição de excesso79. Uma vez que o artigo 5.°, n.° 3, da LF não contém nenhuma reserva de intervenção do legislador, também de­veria ter-se considerado, de acordo com a correcta jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal, que este direito fundamental ape­nas pode ser restringido por razões que, por seu lado, tenham tam­bém dignidade constitucional. A questão correcta teria sido, pois, a de saber se, para protecção da personalidade de Gründgens - nos

™ BVerfGE, vol. 7, pp. 198 e 212.77 Cfr. infra V, 2, e 3,a.78 Cfr. BVerfGE, vol. 30, pp. 173 e 199.79 Expressamente noutro sentido, Rüfner, in HbdStR vol. V, 1992, § 117,

n.° margem 70, junto da nota 207.

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termos do artigo 2.°, n.° 1, conjugado com o artigo 1.°, n.° 1, ambos da LF - se impunha, por força da Constituição, proibir a distri­buição do livro, não obstante o actor já ter falecido e ser bastante clara a abstracção artística que resultava da dissimulação. Formu­lada deste modo a pergunta, a resposta só pode ser negativa, de tal modo que, contrariamente à posição do Tribunal Constitucional Fe­deral, a queixa constitucional deveria ter sido julgada procedente80.

IV. A influência dos direitos fundamentais sobre o comporta­mento dos sujeitos de direito privado

Até agora falámos dos efeitos dos direitos fundamentais sobre as normas do direito privado e sobre a sua aplicação e desenvol­vimento. Em contrapartida, não tratámos, até ao presente momento, da questão de saber se, e como, os sujeitos de direito privado se encontram, eles próprios, vinculados aos direitos fundamentais. Esta problemática - e, num correcto entendimento, apenas ela - é que constitui o objecto da discussão em tomo da chamada “eficácia dos direitos fundamentais em relação a terceiros” (Drittwirkung). A sua compreensão é muito facilitada se distinguirmos, claramente, três perguntas e respondermos*a cada uma explicitamente. Primeira: quem é destinatário dos direitos fundamentais - apenas o Estado e os seus órgãos, ou também os sujeitos de direito privado? Segunda: o objecto do controlo segundo os direitos fundamentais é o compor­tamento de quem - o comportamento de um órgão do Estado, ou de um sujeito de direito privado? Terceira: em que função são apli­cados os direitos fundamentais - como proibições de intervenção ou como imperativos de tutela?

80 Cfr., mais em detalhe, Canaris, JuS 1989, p. 172, bem como Larenz/ /Canaris, Schuldrecht, vol. II/2, § 80, V, 2, a.

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1. A distinção segundo o destinatário das normas de direitos fundamentais: eficácia “em relação a terceiros” imediata e mediata

a) Rejeição da teoria da eficácia imediata “em relação a terceiros”

A pergunta pelos destinatários dos direitos fundamentais en­contra-se por detrás da famosa controvérsia travada entre as teorias da eficácia imediata e da eficácia mediata dos direitos fundamentais em relação a terceiros. Correctamente entendida a primeira81, os direitos fundamentais dirigem-se, segundo tal concepção, não apenas contra o Estado, mas também contra os (em cada caso, outros) sujeitos de direito privado. Os direitos fundamentais não carecem, assim, de qualquer transformação para o sistema de regras de direito privado, antes conduzindo, sem mais, a proibições de intervenção no tráfico jurídico-privado e a direitos de defesa em face de outros sujeitos de direito privado. Aplicando-se consequente­mente esta perspectiva, cada direito fundamental contém, pois, uma proibição legal, no sentido do §134 do BGB, que veda em princípio a sua restrição por negócio jurídico, e um direito subjectivo, no sentido do §823, n.° 1, do BGB, cuja violação gera, em princípio, uma obrigação de indemnizar.

Em termos lógico-jurídicos, é evidentemente possível, entender os direitos fundamentais deste modo. E também do ponto de vista da prática jurídica tal não está, de forma alguma, inteiramente excluído. É o que revela, por exemplo, o artigo 9.°,n.°3, 2.a frase, da LF, onde se determina expressamente que acordos que limitem ou impeçam a liberdade sindical são nulos, e que as medidas que o visem são ilícitas. Se, porém, generalizarmos este entendimento, ele conduz a conseqüências dogmáticas insustentáveis, pois então amplas par­tes do direito privado, e, em especial, do direito dos contratos e da responsabilidade civil, seriam guindadas ao patamar do direito

81 Cfr., sobre isto, e sobre o que se diz a seguir, de modo mais detido, Canaris, AcP, vol. 184 (1984), pp. 202 e ss.

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constitucional e privadas da sua autonomia. Além disso, incorre-se em grandes dificuldades de ordem prática, já que a maioria dos efeitos jurídicos a que, se consequentemente prosseguida, tal con­cepção forçosamente chegaria - tal como a nulidade de contratos que restringem direitos fundamentais - teria de ser afastada logo por interpretação, pela sua evidente insustentabilidade. Foi, pois, com razão que a teoria da eficácia imediata acabou por se não impor - o que, hoje em dia, dispensa maiores considerações.

b) A distinção entre eficácia imediata “em relação a tercei­ros” e “vigência imediata ” dos direitos fundamentais

Ainda assim, predomina aqui alguma confusão terminológica. Assim, por exemplo, poder-se-ia, prima facie, supor que Hager se declara defensor da teoria da eficácia imediata82. Se, contudo, anali­sarmos com mais cuidado, verificamos que ele nem sequer se ocupa da questão dos destinatários dos direitos fundamentais, e que apenas considera a natureza imediata da sua vigência. A meu ver, e para evitar mal entendidos, dever-se-ia, por isso, distinguir entre a efi­cácia imediata em relação a terceiros e a imediata vigência dos direitos fundamentais. Isto é recomendável, desde logo, porque, a não ser assim, também a vinculação imediata aos direitos funda­mentais do legislador de direito privado poderia ser designada como uma eficácia imediata em relação a terceiros - o que, na verdade, por vezes acontece, apesar de ser um contra-senso83. Em conformi­

82 Hager, JZ, 1994, p. 383.83 Neste aspecto, é, pois, imprecisa, e em parte, susceptível de induzir em

erro, a descrição da minha posição efectuada por Diederichsen, in AcP, vol. 198 (1998), p. 201, e nota 119, onde refere um “alternar flexível entre eficácia ime­diata e mediata em relação a terceiros”, quando eu, na verdade, refuto em geral a doutrina da “eficácia imediata em relação a terceiros”, mas afirmo, é certo, uma imediata vinculação do legislador de direito privado aos direitos fundamentais. Nesta utilização divergente da expressão “eficácia em relação a terceiros” ("Drittwirkung”) se funda também a exposição de Diederichsen, ob. cit., p. 224, e nota 248.

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dade, só deve falar-se de eficácia imediata em relação a terceiros se os direitos fundamentais se dirigem imediatamente contra sujeitos de direito privado, como no caso do artigo 9.°, n.° 3, 2.a frase, da LF84.

Como primeiro resultado parcial, pode portanto reter-se: desti­natários das normas dos direitos fundamentais são, em princípio, apenas o Estado e os seus órgãos, mas não os sujeitos de direito privado.

2. A distinção segundo o objecto do controlo pelos direitos fundamentais: actos do poder público ou actos de sujeitos de direito privado

Da conclusão ora apontada resulta, sem mais, o segundo resul­tado parcial: objecto do controlo segundo os direitos fundamentais são, em princípio, apenas regulações e actos estatais, isto é, sobre­tudo leis e decisões judiciais, mas não também actos de sujeitos de direito privado, ou seja, e sobretudo, negócios jurídicos e actos ilí­citos85. Pois se - e na medida em que - estes sujeitos não são sequer

84 Tal definição terminológica é expressamente rejeitada por Alexy, Theo- rie der Grundrechte, 1985, pp. 489 e s. Porém, não faz, a meu ver, desta forma jus ao objectivo dos defensores da teoria da eficácia imediata em relação a ter­ceiros, transposta esta numa formulação consistente do ponto de vista jurídico- -teórico, antes estando já, na verdade, a criticar - legitimamente - uma tal con­cepção. AJém disso, a própria definição de Alexy da eficácia imediata em relação a terceiros, segundo a qual esta seria caracterizada “por certos direitos e não- -direitos existirem, devido a razões de direitos fundamentais, (...) na relação cidadão/cidadão, os quais não existiriam sem essas razões” (Theorie der Grund­rechte, p. 490), leva à conseqüência - certamente lógica, mas - terminologica- mente deslocada, porque niveladora das diferenças, de que “a teoria da eficácia mediata em relação a terceiros tem inexoravelmente por conseqüência uma eficácia imediata em relação a terceiros” (ob. cit., p. 490). Cfr., ainda, a este res­peito, infra V, 3, b, na nota 181 e, em sentido próximo, as considerações sobre a interpretação da decisão Blinkfüer do Tribunal Constitucional Federal.

85 Cfr., sobre esta distinção, mais amplamente, Canaris, AcP, vol. 184 (1984), pp. 202 e ss., AcP, vol. 185 (1985), pp. 9 e ss., bem como JuS, 1989, p. 161;

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destinatários dos direitos fundamentais, logicamente os seus actos também não podem ser aferidos imediatamente com base na bitola dos direitos fundamentais.

Se, contudo, mesmo assim, tal vier a ocorrer “mediatamente”de algum modo - o que, como se sabe, corresponde no resultado ao en­tendimento quase dominante - , é preciso, ainda, que exista uma ponte para o raciocínio, que o possibilite de uma forma dogmati­camente consistente. Esta pode encontrar-se se perguntarmos pela função em que os direitos fundamentais são aplicados neste con­texto: como proibições de intervenção ou como imperativos de tutela.

3. A distinção segundo a função dos direitos fundamentais: proibições de intervenção e imperativos de tutela

a) Possibilidades e limites do “pensamento da intervenção ” e sua complementação pela função dos direitos fundamentais como imperativo de tutela

Como tentei clarificar com o exemplo da decisão Lüth, parte dos casos em questão pode ser solucionada de modo adequado logo recorrendo à função dos direitos fundamentais como proibições de intervenção. Para o tomar ainda mais claro: se, por força do § 826, do BGB, for proibido a um sujeito de direito privado efectuar um apelo ao boicote, a ratio decidendi subjacente à decisão de um tri­

concordando, v., por exemplo, Stem, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deuts- chland, vol. III/1, 1988, § 76, IV, 2a; divergindo na substância, Schwabe, AcP, vol. 186 (1985), pp. 1 e ss., com resposta minha na mesma revista, pp. 9 e ss.. Com rejeição expressa, Diederichsen AcP, vol. 198 (1998), pp. 203 e ss., 207 e ss., e 213, para quem “o direito privado constitui, para o controlo segundo os di­reitos fundamentais, uma massa homogênea de matéria jurídica, indepen­dentemente de saber se a conseqüência jurídica a examinar se funda numa norma jurídica ou num acto de autonomia privada.” Isto não pode, porém, ser correcto, desde logo, porque desta forma se colocariam disposições legais imperativas (além do mais) no mesmo plano de regulações jurídico-negociais.

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bunal deverá ser formulada como norma e controlada directamente como tal com base no artigo 5.°, n.° 1, da LF, na sua função de proibição de intervenção, em conjugação com as exigências do princípio da proporcionalidade86.

Tal perspectiva, contudo, nem sempre é possível. Pensemos, por exemplo, nos casos das fianças87. Quando o Supremo Tribunal Federal condenou o fiador ao pagamento, limitou-se a provocar o reconhecimento da vinculação jurídica decorrente do contrato de fiança. Aqui não são uma norma ou uma decisão judicial que inter­vém no direito fundamental do fiador - nomeadamente, na sua auto­nomia privada, assegurada pelo artigo 2.°, n.° 1, da LF88; antes foram as próprias partes, e em especial o próprio fiador, que restrin­giram o direito fundamental, mas esta restrição, como já dissemos, não é, à partida, considerada como objecto do controlo com base nos direitos fundamentais, já que ela não se verificou por acto estatal, mas antes por acto de autonomia privada. No fundo, o que está aqui em causa é uma omissão do Supremo Tribunal Federal, pois este recusou-se a liberar o fiador das suas obrigações contratuais - por exemplo, com recurso aos §138 ou 242 do BGB, ou à doutrina da culpa in contrahendo. O “pensamento da intervenção” esbarra, pois, nesta hipótese, claramente nos seus limites.

Configurações de casos parecidas podem também verificar-se no âmbito extracontratual. Pense-se, por exemplo, no caso Bõlll /Walden. Neste, o jornalista Walden utilizou uma afirmação do es­critor Heinrich Bõll como sendo citação literal, apesar de a ter modi­ficado e, assim, adulterado. E certo que se tratava de uma inter­venção de Walden no direito geral de personalidade de Bõll, mas, como se disse, e contrariamente à doutrina da eficácia imediata em relação a terceiros, este não é, também no presente contexto, o ponto decisivo, porque, enquanto sujeito de direito privado, Walden não é

86 Cfr., supra, III, 1, c e 2, b.87 Cfr., sobre isto, supra, I, 1, bem como, mais em pormenor, infra, IV, 3, e.88 Cfr., sobre isto, e sobre a subjacente “teoria do reconhecimento”, mais

desenvolvimento em Canaris, AcP, vol. 184 (1984), pp. 217 e ss., dialogando com a posição divergente de Schwabe.

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destinatário dos direitos fundamentais, e o seu comportamento não constitui, enquanto tal, objecto do controlo segundo aqueles. Mas a rejeição, pelo Supremo Tribunal Federal89, do pedido de indemni- zação de Bõll contra Walden também não constituía uma intervenção no direito geral de personalidade90 de Bõll (a qual já se tinha veri­ficado pelo acto de Walden), antes se esgotava na recusa de o proteger.

Estamos, assim, a chegar à decisiva “palavra-chave”. E aqui a função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela ajuda- nos a prosseguir. Esta constitui, na verdade, uma explicação dog­mática convincente para a “eficácia mediata dos direitos fun­damentais em relação a terceiros”, da qual, na substância, se trata aqui (isto, se não quisermos renunciar totalmente ao uso da expres­são, para o que não faltam argumentos). Designadamente, mantém- se, por um lado, a posição de que apenas o Estado é destinatário dos direitos fundamentais91, já que é também sobre ele que recai a obrigação de os proteger. Por outro lado, resulta clara a razão pela qual outros cidadãos são também atingidos e os direitos fundamen­tais produzem também - de certa forma por uma via indirecta - efeitos em relação a eles: justamente porque também no campo jurídico-privado o Estado, ou a ordem jurídica, estão, em princípio, vinculados a proteger um cidadão perante o outro. Esta perspectiva corresponde, hoje, à doutrina amplamente dominante92, subjaz reconhecivelmente à jurisprudência mais recente do Tribunal Cons­

89 BGH, NJW 1978, p. 1787, revogado por BVerfGE, vol. 54, p. 208.90 Isto poderia, evidentemente, ser problematízado e aprofundado; valem

então, mutatis mutandis, as considerações a tecer a seguir {infra, b), sobre uma va­riante do caso Lüth.

91 Cfr. Canaris, AcP, vol. 184 (1984), p. 227; Stem, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, vol. III/l, 1988, § 76 IV 5 c; Isensee, in HbdStR, vol. V, 1992, § 111, n.°s de margem 3 e 5; divergindo aqui, a meu ver sem ser conseqüente, Bleckmann DVBl 1988, p. 942, antes de II.

92 Çfr. Canaris, AcP, vol. 194 (1984), pp. 225 e ss, e JuS 1989, p. 163 e ss.; Bydlinski, in Rack (org.), Grundrechtsreform, 1985, pp. 183 e ss.; Stern, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, vol. III/l, 1988, § 76 III, 4, b, e 5; Badura, Festschrift für Molitor, 1988, p. 9; Bleckmann, DVBl 1988, p. 942 e

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titucional Federal - como se manifesta nas decisões sobre o repre­sentante comercial, e, sobretudo, sobre a fiança, bem como, por último, na decisão sobre o direito do filho a obter da mãe informações sobre a identidade de seu pai biológico93 - , e, de resto, foi acolhida expressa­mente, não há muito tempo, pelo Tribunal Federal do Trabalho94.

b) A autonomia argumentativa e dogmática da função de im­perativo de tutela em relação à função de proibição de inter­venção, demonstrada a partir da “inversão” do caso Lüth

A concepção exposta apenas se torna, porém, plenamente com­preensível se se acrescentar que a Constituição apenas proíbe que se

Staatsrecht, vol. II, 4a ed., Í997, § 10, n.° de margem 127; Hermes, NJW, 1990, p. 1765; Hõfling, Vertragsfreiheit, 1991, p. 53; Rüfner, in HbdStR, vol. V, 1992, § 117, n.° de margem 60, e nota 180; H. H. Klein, DVBl 1994, p. 492; J. Hager, JZ, 1994, pp. 378 e ss.; Oeter, AõR, 119 (1994), pp. 536 e ss.; Spiess DVBl 1994, p. 1225; Starck, Praxis der Verfassungsauslegung, 1994, pp. 67 e ss.; Jarass, AõR, vol. 120 (1995), pp. 352 e ss.; Singer, JZ, 1995, pp. 1136 e ss.; Lerche, in Festschrift für Odersky, 1996, pp. 230 e ss. (com justificadas restrições; cfr., a respeito, supra II 3); Oldiges, Festschrift für Friauf, 1996, pp. 299 e ss.; Unruh, Zur dogmatik der grundrechtlichen Schutzpflichten, 1996, pp. 71 e ss.; Isensee, in Festschrift für Kriele, 1997, p. 32, e, com restrições, também já em HbdStR, ob.cit., § 111, n.°s de margem 134 e ss.; rejeitando, sobretudo Zollner, AcP, vol. 196 (1996), pp. 11 e ss., e 36; Diederichsen, AcP, vol. 198 (1998), pp. 249 e ss.; um curioso caminho próprio é trilhado por Giegerich, Privatwirkungen der Grundrechte in den USA, 1992, pp. 27, 34, que procura deduzir os imperativos de tutela, não de cada direito fundamental, mas de um direito fundamental específico à segurança, autônomo em relação àqueles.

93 BVerfGE, vol. 96, pp. 56 e 64, onde, num problema quase clássico da eficácia em relação a terceiros, se diz que, “na falta de uma opção do legislador, os tribunais cumprem o dever de protecção pela via do desenvolvimento do direito ou da interpretação de conceitos jurídicos indeterminados”; cfr. mais, sobre esta decisão, infra, V, 4, a.

94 BAG, NZA, 1998, p. 715; 1998, p. 716.

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desça abaixo de um certo mínimo de protecção95. Em tempos, bapti- zei isto como proibição da insuficiência96 - uma expressão que, entretanto, o Tribunal Constitucional Federal adoptou97. Se analisar­mos mais rigorosamente os problemas de direito privado em causa, deixa-se ver que a forma de argumentação é, em pontos essenciais, distinta da utilizada na aplicação dos direitos fundamentais como proibições de intervenção, em conjugação com a proibição do excesso, e que, deste modo, a função de imperativo de tutela, con­jugada com a proibição de insuficiência, constitui, na verdade, uma categoria dogmática autônoma.

Aquilo de que se trata aqui pode ser bem clarificado com uma instrutiva variação da decisão Lüth9S. Suponhamos que o tribunal cível tinha considerado a acção inibitória do proprietário do cinema, ou uma acção do realizador Veit Harlan contra Lüth, improcedente, e veremos qué estes se encontrariam agora, em inversão dos papéis processuais, por sua parte, na posição do autor da queixa consti­tucional perante o Tribunal Constitucional Federal. Evidentemente, o resultado não poderia alterar-se por causa disso, mas altera-se a sua construção e fundamentação. Designadamente, já não pode falar-se de uma intervenção do tribunal cível - ou da “norma do caso” em que este baseou a sua decisão - em direitos fundamentais dos autores da queixa. Antes se trata, simplesmente, de que a ordem jurídica não assegura a estes protecção contra o apelo ao boicote99,

95 Na sua decisão sobre o § 23, n.° 1, 2a frase, da Lei de Protecção contra os Despedimentos, o Tribunal Constitucional Federal limitou, pois, com razão, o controlo jurídico-constitucional a saber “se a protecção mínima dos trabalhadores imposta pelo artigo 12, n.° 1, da LF, está assegurada”; cfr. BVerfG, NJW, 1998, pp. 1475 e 1476 (itálico nosso).

96 Canaris, AcP, vol. 184 (1984), pp. 228 e 245, bem como JuS, 1989, p. 163.97 BVerfGE, vol. 88, pp. 203 e 253 e ss.98 Cfr., sobre este, mais em detalhe, supra, III, 2.99 Em sentido semelhante, Oeter, AôRy vol. 119 (1994), p. 536; mani­

festando concordância neste aspecto, Oldiges, Festschr.für Friauf, 1996, p. 287. Este, contudo, deita fora a criança juntamente com a água do banho, já que con­clui a partir daqui, também para a hipótese oposta - portanto, de uma derrota de

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ou seja, da problemática da proibição de insuficiência100. Pode até ser que Lüth tenha violado a liberdade artística de Harlan (embora eu rejeitasse mesmo tal conclusão, já que a liberdade artística não foi aqui de todo em todo afectada, logo na sua previsão101), mas não se pode, em princípio, imputar tal comportamento ao Estado. Pois numa ordem jurídica livre, como a que subjaz tanto à LF como ao Código Civil alemão, a situação jurídica de partida é, antes, a de queo Estado em princípio não regula a relação entre os seus cidadãos através de imposições ou de proibições. Assim, entre eles é per­mitido102 aquilo que não for proibido. Quando, portanto, o Estado deixa um cidadão actuar sem regulamentação em face do outro, não pode ver-se aí, em regra, a concessão de uma autorização para uma ofensa na esfera de bens do outro - que, além disto, também teria ainda de poder considerar-se como objecto de uma previsão de tutela jurídica103 mas simplesmente, e tão-só, a omissão de uma intromissão104.

Lüth nos tribunais cíveis que se não poderia falar de uma intervenção nos direi­tos fundamentais; não nota, em especial, que esta não radica na decisão judicial em si mesma, mas antes na sua ratio decidendi, que deve ser concebida como norma.

100 Concordando quanto ao essencial, Isensee, Festschr.für Kriele, 1997, p. 32.101 Cfr. mais detidamente infra, VI, 2, a.102 Em lugar de admitido usa-se, muitas vezes, a expressão “autorizado”,

mas esta conduz facilmente a mal entendidos, já que tal termo é ambíguo: tanto pode ser empregue como sinônimo de “não proibido” como de “resultante de uma autorização”; cfr., também, a distinção entre autorização “negativa” e “positiva” em Kelsen, Reine Rechtslehre, 2a ed., 1960, p. 16.

103 O que, de per se, se entende apenas para o emprego de força física por particulares e para mentiras no tráfico jurídico (bem como para eventuais outras violações elementares de direitos comparáveis), pois a sua inadmissibilidade de princípio constitui, justamente, a base de toda a ordem jurídica e estatal e é sim­plesmente indispensável para a sua capacidade funcional; cfr., sobre isto, Isensee, in HbdStR, vol. V, 1992, § 111, n.° de margem 98, e também infra, nota 108.

104 Deve reconhecer-se, naturalmente, que existem dificuldades de deli­mitação e excepções, mas estas em nada alteram a correcção de princípio da posi­ção aqui sustentada; cfr., de modo mais detido, a seguir, infra c.

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A opinião contrária, que os defensores da “teoria da convergên­cia estatista”105 sustentam106, conduz, em última instância, a que toda (!) a lesão permitida de um cidadão, por parte de outro, assente, ou num acto de delegação estatal ao primeiro, ou num dever de tolerância deste último, ou a que toda a actuação humana esteja subordinada em regra a uma proibição com reserva de autorização. Tal concepção é inaceitável como modelo geral de pensamento, devido à sua contrariedade de princípio à liberdade, e é, com razão, rejeitada pela doutrina dominante107.

Se, portanto, Lüth lesar a liberdade artística de Veit Harlan e isto permanecer sem sanção jurídica, aquele não está a actuar no exercício de qualquer atribuição especial, mas antes no exercício da sua liberdade geral, tal como esta existe em princípio, como situação de partida, nas relações entre os cidadãos. O mesmo vale, conse­quentemente, perante proprietários de cinemas, sem que, neste con­texto, seja decisivo apurar se o seu direito ao exercício da empresa é, ou não, protegido pelo artigo 14.° da LF108. E tão pouco pode

105 O termo advém, tanto quanto se pode apurar, de Isensee, in HbdStR, vol. V, § 111, n.° de margem 118.

106 Representantes principais desta teoria são Schwabe, Die sogenannte Drittwirkung der Grundrechte, 1971, pp. 26 e ss., 62 e ss., e Probleme der Grund- rechtsdogmatik, 1977, pp. 213 e ss., bem como Murswiek, Die staatliche Verant- wortung für die Risiken der Technik, 1985, pp. 63 e ss., 91 e ss.

107 Cfr., ainda que com acentuações divergentes em pontos específicos, Ca­naris, AcP, vol. 184 (1984), pp. 217 -219,230 e s. e AçP, vol. 185 (1985), pp. 11 e s.; Alexy, Theorie der Grundrechte, 1985, pp. 415 e ss.; Robbers, Sicherheit ais Menschenrecht, 1987, pp. 128 e s.; Hermes, Das Grundrecht aufSchutz von Le- ben und Gesundheit, 1987, pp. 95 e ss.; Lübbe-WoJff, Die Grundrechte ais Eingriffsabwehrrechte, 1998, pp. 168 e ss.; Stem, ob. cit., § 66, III, b, § 67, V, 2, a, e § 69, IV, 5, b; E. Klein, NJW, 1989, p. 1639; Hõfling, Vertragsfreiheit, 1991, pp. 50 e ss;. Dietlein, Die Lehre von den grundrechtlichen Schutzpflichten, 1992, pp. 39 e ss.; Sass, Art. 14 GG und das Entschüdigungserfordernis, 1992, pp. 407 e ss.; Isensee, ob. cit., §111, n.° margem 119; Starck, ob. cit., pp. 73 e s.; Unruh, ob. cit., pp. 46 e s.; Baston-Vogt, Der saçhliche Schutzbereich. des zivilrechtlichen allgemeineh Persõnlichkeitsrechts, 1997, pp. 68 e ss.

108 Em sentido diverso, neste ponto, Pietzcker, Festschr. für Dürig, 1990, p. 359; também se se incluísse a “liberdade para o apelo ao boicote” em princípio

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MLfalar-se, por exemplo, de um dever jurídico de Veit Harlan e/ou dos Bproprietários de cinema, de tolerar o apelo ao boicote. Eles são, ■Jantes, inteiramente livres de, pela sua parte, se defenderem na luta K t das opiniões - por exemplo por réplicas, anúncios, críticas a Lüth, BSéto.. O facto de não poderem recorrer à força física nada tem a ver B com uma obrigação de tolerância109, e antes exclui, apenas, um en-

ptre muitos meios pensáveis de defesa, devido à sua inaceitabilidade | de princípio110. Se os tribunais cíveis considerarem improcedente aI acção inibitória contra Lüth, não estamos, pois, verdadeiramente,u*,_____________________I no conteúdo necessário da protecção do empresário segundo o artigo 14.® da LF, jjj como pondera Pietzcker na ob. cit., não se trataria, em qualquer caso, de uma vio- | lação da proibição do uso da força, da mentira ou similares, o que, neste aspecto, f| é decisivo. Cfr., sobre isto, supra, nota 102.

109 isto não é considerado por Murswiek, ob. cit., p. 92. Incorrectas são IN também, pois, as suas seguintes teses (para ele, essenciais): “não se pode ser 1 i impedido de fazer aquilo que não é proibido”, e “quem é perturbado por terceiros I . na sua conduta não proibida é titular de uma pretensão de defesa que pode ser I exercida judicialmente” (ob. cit, p. 66). É em princípio possível, por exemplo, | impedir alguém de concretizar as suas chances aproveitando-as pessoalmente - | por exemplo, fazendo, em livre concorrência, uma oferta mais vantajosa, tomando | assento num lugar livre do comboio antes de outra pessoa, apropriando-se antes | de uma coisa abandonada, etc.; só quando se utilizam aqui meios ilícitos, ou | quando a chance já se “densificou” juridicamente (como direito subjectivo ou| como posse no senüdo do § 858 do BGB), é que se fica sujeito a uma pretensão| de defesa. Enquanto não está em causa a proibição do uso da força, da mentira ou i semelhantes violações elementares (cfr. sobre isto também supra, a nota 102), é, | pois, necessária, em princípio, uma determinação jurídica do comportamento f vedado ou da posição jurídica protegida. Isto vale, amplamente, mesmo para| bens jurídicos tão fundamentais como a vida, a saúde e a propriedade de coisas.| Designadamente, e contra o entendimento de Murswiek, ob. cit., p. 63 (aderindo f a Schwabe), a pessoa que se encontra exposta a um risco que foi “causado sem

permissão” nem sempre pode “defender-se juridicamente” deste, pois, como é sabido, a criação de uma fonte de risco não é de per se ilícita, e antes apenas se violar um dever jurídico - a determinar em cada caso “positivamente” - , e tam­bém à responsabilidade pelo risco não está subjacente qualquer juízo de ilicitude. Cfr., a este respeito, Larenz/Canaris, Schuldrecht, vol. II/2, 13a ed., 1994, § 75, II, 3, e § 76, III, 1, bem como § 84 ,1, 3, a.

1,0 Cfr. nota 102, supra.

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desde logo perante uma intervenção estatal em direitos fundamen­tais, mas antes, simplesmente, perante a omissão da sua protecção pela ordem jurídica.

Isto toma-se plenamente claro se, também aqui, se formular a ratio decidendi como norma111. Esta poderia ter, aproximadamente, o seguinte enunciado: um apelo ao boicote dirigido contra um filme, que se verifica sem o emprego de pressão econômica e sem intenção concorrencial, não (!) lesa o realizador e o proprietário de cinemas em que o filme passa, num seu “outro direito”, no sentido do §823, n.° 1, do BGB, e não (!) viola os bons costumes no sentido do §826 do BGB, de tal forma que não (!) lhes assiste qualquer direito a uma omissão por parte do autor do apelo ao boicote - um enunciado que, pela sua formulação negativa, permite tomar bem claro que se trata de uma de negação de protecção jurídica.

Ora, para rejeitar uma queixa constitucional dirigida contra isto, não é necessária qualquer estrita aferição da proporcionalidade como a do próprio caso Lüth, bastando, apenas, a simples remissão para a circunstância de a Constituição não ter necessidade de pro­teger a vítima em face do autor de um apelo ao boicote que se vale apenas da força da palavra, e não também - como no, bem diferente, caso Blinkfüern2 - da pressão econômica. Também - e sobretudo - a arte se deve afirmar no campo do livre debate de ideias pelas suas próprias forças, e não deve, neste campo, esperar que o Estado corra rapidamente em seu socorro! Mesmo se se considerasse aqui “to­cado” o artigo 14.°, ou mesmo o artigo 5.°, n.° 3, ambos da LF113, os autores da queixa claudicariam, pois, neste caso, logo por não ser possível fundamentar um dever de protecção de direitos funda­mentais para sua tutela, e não superariam, pois, logo o primeiro limiar argumentativo, de modo que nem sequer se chegaria a um controlo de proporcionalidade e à concomitante solução de pon­deração.

111 Cfr. sobre este procedimento, mais em detalhe, supra, III, 1, c.1,2 Cfr. sobre isto, infra, V, 3, b.113 Cfr. sobre isto, mais em pormenor, infra, VI, 2, a.

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ífe c) A eficácia mais ténue da função de imperativo de tutela e da proibição de insuficiência

J Nesta diversidade da argumentação revela-se uma particulari­dade, da qual resulta um ponto essencial da concepção aqui defen­dida. Reside ela na circunstância de a eficácia da função de impe­rativo de tutela, em combinação com a proibição de insuficiência, ser substancialmente mais fraca do que a da função dos direitos fundamentais como proibições de intervenção, conjugada com a proibição de excesso. Isto é assim por várias razões.

É, em primeira linha, de importância central a circunstância de se tratar de uma problemática de omissão114. Nesta problemática, e como estamos habituados tanto no direito penal como no direito civil, é indispensável superar um primeiro específico limiar de argu­mentação, logo para fundamentar a existência de um dever jurídico de agir. Isto vale também para o direito constitucional115, pois, caso contrário, as diferenças teóricas estruturais entre os direitos de de­fesa e os direitos a prestações116 seriam esvaziadas117. Em especial, não pode em princípio impor-se ao Estado, no âmbito das omissões, o mesmo ónus de fundamentação e de legitimação que no domínio das actuações interventivas. Pois enquanto nestas apenas tem tal ónus quanto a uma única medida - precisamente a tomada no caso naquelas teria, eventualmente, de o satisfazer quanto a uma multi­plicidade de medidas de protecção omitidas, ou até, mesmo, quanto

1,4 Cfr. Canaris, JuS, 1989, p. 163; concordando, Oldiges, Festschr. für Friauf, 1996, p. 306; de modo semelhante, por exemplo, E. Klein, NJW, 1989, p. 1639.

115 De modo semelhante Isensee, ob. cit., § 111, n.° de margem 99, que exige uma “verificação positiva da ilicitude” e um correspondente “juízo positivo de desvalor”.

116 Estas diferenças foram sobretudo explicitadas de forma convincente por Alexy, ob. cit., p. 420 e ss., para cujas considerações, por razões de brevidade, posso remeter.

117 Cfr. também BVerfGE, vol. 96, pp. 56, 64; Badura, Festschr.für Oder- sky, 1996, p. 180; Baston-Vogt, ob. cit., pp. 69 e ss., com mais indicações.

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à total ausência de actuação118. Isto seria tanto menos aceitável quanto a admissibilidade de uma tal falta de actuação corresponde, em muitos casos, à posição jurídica de partida, já que uma protecção totalmente abrangente dos cidadãos não é sequer facticamente possível, e levaria, além disso, a uma insustentável colocação dos cidadãos sob tutela estatal, bem como a intervenções, igualmente insuportáveis, em direitos fundamentais de terceiros. Trata-se aqui, por conseguinte, não apenas de uma problemática de omissão quanto ao legislador, mas também no que toca à jurisprudência. É certo que a realização de imperativos de tutela de direitos funda­mentais, mediante a interpretação e o desenvolvimento integrador do direito, constitui também uma das tarefas legítimas dos órgãos jurisdicionais119, mas a sua competência não vai, neste aspecto, de forma alguma, além da do legislador, e depende, por isso, decisi­vamente, de saber se sobre este recai um correspondente dever de protecção (que a jurisprudência então realiza, em seu lugar).

Acresce que a realização da função de imperativo de tutela só é, em regra, possível com os meios do direito ordinário, e que este, por sua vez, não é, de forma alguma, todo ele constitucionalmente pré-determinado, na medida em que tem como objecto a protecção dos direitos fundamentais dos cidadãos120. Antes fica aqui, em regra, aberto ao legislador um amplo espaço de livre conformação121. Isto é o que corresponde à jurisprudência constante do Tribunal Cons­

118 Este último ponto não é suficientemente considerado por J. Hager, JZ, 1994, p. 381; além disso, o autor pressupõe aqui, significativamente, que o legis­lador, “perante uma proteção insuficiente (!)”, ficou inactivo, quando, todavia, do que se trata é, justamente, de fundamentar primeiro que a protecção não é suficiente e que, por isso, existe um dever constitucional de protecção.

119 Cfr., por exemplo, Stem, ob. cit., § 69, IV, 6, c; Isensee, ob. cit., § 111, nota 156.

120 Cfr., sobre isto, aprofundando e resumindo, VI, 3, a, infra.121 Cfr., aprofundando e resumindo, VI, 3, b, infra; é, por isso, plenamente

justificada, pelo menos para os probleçias em discussão no presente contexto, a exigência íie Medicus, AcP, vol. 192 (1992), p. 60, de se “levar a sério, especial­mente para o direito privado, a habitualmente proclamada liberdade de confor­mação do legislador ordinário”.

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titucional Federal122, e foi recentemente confirmado, de forma enér­gica, também para a eficácia da função de imperativo de tutela no direito privado, numa decisão a que ainda voltarei mais em deta­lhe123. Uma transposição, sem modificações, do estrito princípio da proporcionalidade, como foi desenvolvido no contexto da proibição de excesso, para a concretização da proibição de insuficiência, não é, pois, aceitável124, ainda que, evidentemente, também aqui consi­derações de proporcionalidade desempenhem um papel, tal como em todas as soluções de ponderação125.

Da perspectiva da presente problemática, deve, por fim, acres­centar-se que só pode dar-se uma resposta adequada à questão central, de saber como é que, partindo do terreno da concepção aqui defendida, e partilhada nos seus traços essenciais pela doutrina do­minante, se traduz realmente, na prática, o respeito pela autonomia do direito privado, e, em especial, pela autonomia privada126, se se disser: justamente através da mais fraca eficácia da função de im­perativo de tutela e da proibição de insuficiência!127 Significati-

122 Cfr., por exemplo (em parte com formulações diversas) BVerfGE, vol. 39, pp. 1 e 44 e ss.; vol. 56, pp. 54, 80 e ss.; vol. 77, pp. 170,214 e ss.; vol. 79, pp. 174, 202; vol. 88, pp. 203, 254 e 262; vol. 89, pp. 214, 234; vol. 92, pp. 26, 46; vol. 96, pp. 56, 64 e ss.

123 Cfr. BVerfGE, vol. 96, pp. 56,64 e, sobre isso, mais em detalhe V, 4, a,infra.

124 Cfr. também Robbers, ob. cit., p. 170 e ss.; Baston-Vogt, ob. cit., p. 70, com mais indicações; em sentido diverso, por exemplo, Dietlein, ob, cit., p. 116; na substância também J. Hager, JZ, 1994, pp. 382 e ss., e nota 111.

125 Acertadamente, a este respeito, Medicus, AcP, vol. 192 (1992), pp. 52 e ss.126 Cfr., inteiramente acertado no ponto de partida, Diederichsen, AcP,

vol. 198 (1998), pp. 205, 207 e ss.127 Aqui me parece residir uma ponderosa objecção à posição - a tratar

mais em detalhe seguidamente - de J. Hager, JZ, 1994, pp. 381 e ss., segundo o qual “não interessa para o alcance dos direitos fundamentais no direito privado saber se são aplicáveis sob o seu aspecto de defesa ou de protecção” (p. 383), e de que “os critérios da proibição de excesso e da proibição de insuficiência serão provavelmente idênticos” (p. 382, nota 111); não considero, sequer, afastada a possibilidade de se esgrimir contra a concepção de Hager o próprio exemplo ad

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vãmente, aliás, também os critérios que são decisivos para a funda­mentação de um dever de protecção128 não desempenham qualquer papel - ou, pelo menos, um papel de relevância próxima129 - no quadro da função de proibição de intervenção e da proibição do excesso, o que, indirectamente, confirma e reforça a autonomia dogmática e de conteúdo da função de imperativo de tutela e da proibição de insuficiência.

d) Objecções: fungibilidade das funções e assimetria da pro­tecção dos direitos fundamentais

aa) Contra a tese da eficácia mais fraca da função de impera­tivo de tutela Hager levantou, porém, objecções de peso. Uma delas consiste em as funções de proibição de intervenção e de imperativo de tutela serem frequentemente fungíveis130. No entanto, por oca­sião da discussão da crítica de Diederichsen à aplicabilidade do artigo 1.°, n.° 3, da LF, forneci já uma série de exemplos em que se trata de claras hipóteses de intervenções131. Da mesma forma, acabei também de referir exemplos, igualmente claros, da função de imperativo de tutela - nomeadamente, os casos das fianças e o caso Bõll/Walden e também demonstrei, à luz da decisão Lüth, que também no mesmo caso pode (e deve) distinguir-se, claramente, entre os dois aspectos: a função de proibição de intervenção e a função de imperativo de tutela.

Evidentemente, existem casos-limite, e nestes enquadram-se todos os exemplos que Hager me contrapõe. Pois trata-se aí, em parte, de normas pelas quais os direitos fundamentais são mera­

terror em apresentado por Diederichsen, AcP, vol. 198 (1998), pp. 213 e ss., que, em face da minha posição, não procede (cfr. nota 15, supra).

128 Cfr. sobre estes, de modo mais detido, VI, 2, b e c, infra.129 Também isto depõe contra a tese da identidade de J. Hager, ob. cit.

(assim como na nota 126, supra).130 J. Hager, JZ, 1994, pp. 381 e ss.131 Cfr. supra, II, 1, b,.

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mente conformados, e, em parte, de normas pelas quais determi­nadas competências e faculdades são atribuídas aos sujeitos de di­reito privado. Que a proibição de excesso, e não apenas a proibição de insuficiência, vale também para normas meramente conforma- doras, é o que já demonstrei noutro ponto132. A meu ver, a solução é igual para a atribuição de competências e de faculdades a sujeitos de direito privado133 - como nos restantes casos, vale a regra geral de que, em caso de dúvida, há que partir da função defensiva dos direitos fundamentais e da proibição de excesso134. Além disso, não me assustam aqui dificuldades de delimitação. Afinal, estamos habi­tuados, à saciedade, a que a acção e a omissão possam coincidir até quase à indissociabilidade. Enquanto os elementos nucleares estiverem em claro contraste e forem suficientemente expressivos, casos-limite não alteram em nada o sentido da distinção. No final de contas, também ninguém rejeita a diferença entre o dia e a noite invocando a existência do crespúsculo.

De resto, e se necessário, podem prevenir-se eventuais contra­dições valorativas enfraquecendo, nas zonas cinzentas e de fron­teira, a aplicação da proibição de excesso, e reforçando a da proi­bição de insuficiência. Não pode, porém, nivelar-se inteiramente esta distinção, como seria, em última instância, a conseqüência da tese da fungibilidade135, pois ficaríamos forçosamente enredados, desse modo, nos já criticados136 vícios e erros de concepção da “teoria da convergência estatista”.

132 Cfr. supra, II, 2, b.133 Cfr. Canaris, AcP, vol. 185 (1985), pp. 11 e ss. e anotação a BVerfGE,

in AP n.° 65, sobre o artigo 12.° da LF, p. 460, verso, com referência, entre outros aspectos, à problemática da exclusão da legítima nos termos do §2333 do BGB, e ao tratamento constitucional desta problemática em BGHZ, vol. 109, pp. 306, 313=BGH, JZ, 1990, pp. 698, 699, com anotação de Leitpold, a qual também é referida como exemplo por Hager, ob. cit., p. 382, no item 2 a.

134 Assim, com razão, Isensee, ob. cit, § 111, n.° de margem 117, infine,135 Assim, entende, na verdade, Hager {JZ, 1994, p. 382, nota 111), que “os

critérios da proibição do excesso e da proibição da insuficiência serão provavelmente idênticos”.

136 Cfr. b, supra.

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btí) Uma segunda objecção reside numa assimetria em benefí­cio daquele que intervém na esfera pessoal de outrem137. Esta obser­vação é em princípio correcta. Se, por exemplo, Lüth apela a um boicote de um filme de Veit Harlan, ele passa a gozar, contra a eventual pretensão omissiva deste, da protecção reforçada resultante do artigo 5.°, n.° 1, da LF, em combinação com a proibição de ex­cesso. Ao dispor de Veit Harlan, diversamente, fica apenas (como explicado supra, b) a protecção, mais fraca, da proibição de insu­ficiência, se, pelo seu lado, invocar contra Lüth o seu direito funda­mental à liberdade artística, com base no artigo 5.°, n.° 3, da LF.

Esta assimetria - que, de resto, também assume relevância na discussão sobre a proibição de fumar, para protecção de fumadores passivos - não constitui, porém, qualquer fraqueza, mas antes, pelo contrário, uma vantagem da minha solução. Designadamente, re- flecte-se aqui-simplesmente o princípio do primado da sociedade em face do Estado, segundo o qual as relações dos cidadãos entre si estão, em princípio, livres de intervenções estatais, e carecem, por­tanto, em cada caso, de especial legitimação. Se o Estado proibir ao Sr. Lüth a manifestação de uma opinião para proteger os proprie­tários de cinemas de um boicote, tem de legitimar-se para tanto, e deve, por conseguinte, respeitar as exigências da proibição de ex­cesso; se, pelo seu lado, os proprietários de cinemas e Veit Harlan exigirem a protecção do Estado, este tem igualmente de legitimar a sua eventual intervenção, mediante a superação das específicas barreiras argumentativas representadas pela fundamentação do im­perativo de tutela e da proibição de insuficiência. São estas, simples­mente, duas manifestações congruentes de um e mesmo pensamento básico. Com uma reflexão mais precisa, a objecção da assimetria transforma-se, pois, em última instância, justamente no seu con­trário - num argumento de simetria, porque o Estado está sujeito, em ambas as hipóteses, a um especial ónus de legitimação.

137 Cfr. J. Hager, JZ, 1994, p. 381.

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e) A incidência da função de imperativo de tutela mesmo quanto à auto-vinculação por contrato

aa) A função dos direitos fundamentais de imperativo de tutela desenvolve os seus efeitos, em princípio, também em relação à auto- vinculação das partes por contrato138. Contra isto não pode opor-se o argumento de que esta se baseia no exercício da auto­nomia privada, a qual, por sua vez, é assegurada constitucional­mente, e de que uma “protecção dos direitos fundamentais contra si próprio” se não compatibiliza com a concepção liberal dos direitos fundamentais139. Este argumento não convence sob os pontos de vista jurídico-teorético e dogmático-constitucional, desde logo, por­que a vinculação contratual, tendo embora, na verdade, o seu funda­mento primário na autonomia privada das partes140, apenas adquire vigência no plano jurídico-positivo mediante um “reconhecimento” por parte do Estado e da ordem jurídica141, sendo, além disso, ga­rantida por estes com sanções, que vão até à execução forçada.

Mais importante é, ainda, que, também do ponto de vista mate­rial da problemática, se deparam genuínas tarefas de protecção, cuja satisfação se encontra perfeitamente em harmonia com um en­tendimento liberal dos direitos fundamentais. Isto é assim, desde

138 Cfr. Canaris, AcP, vol. 184 (1984), pp. 232 e ss., e JuS, 1989, pp. 164 e ss; concordando, por exemplo, Rüfner, in HbdStR vol. V, 1992, § 117, nota 64; J. Hager, JZ, 1994, pp. 378 e ss.; Singer, JZ, 1995, pp. 1136 e ss.; Oldiges, Festschr. für Friauf 1996, pp. 304 e ss.; Enderlein, Rechtspaternalismus und Vertrags- recht, 1996, p. 172.

139 Assim, porém, Isensee, in HbdStR vol. V, 1992, §111, nota 113 e s, e128 e ss.; concordando no essencial Hillgruber, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, 1992, pp. 149 e ss., com amplas conseqüências no direito privado; de modo semelhante na abordagem e nos resultados, Zollner, AcP, vol. 196 (1996), pp. 7 e ss., 12 e ss. e 36; criticamente em relação a Isensee e Hillgruber, neste aspecto, J. Hager, JZ, 1994, p. 379; Singer, JZ, 1995, pp. 1137 e ss.

140 Cfr., também, BVerfGE, vol. 81, pp. 242,253 e ss. (“não primariamente no agir estatal”).

141 Cfr., sobre esta “teoria do reconhecimento”, mais em detalhe, Canaris, AcP, vol. 184 (1984), pp. 218 e s., com referências.

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logo, por existirem direitos fundamentais que - como, por exemplo, a liberdade religiosa em virtude do seu carácter pessoalíssimo, nem sequer se encontram ao dispor do seu titular, e cujo exercício, por conseguinte, não pode, à partida, aceitar-se como objecto de uma auto-limitação contratual. Ou que, pelo seu forte conteúdo pessoal, são especialmente “sensíveis” a tal restrição, como é o caso da integridade corporal e da liberdade de deslocação. Estabelecer aqui limites à autonomia privada corresponde, mesmo, ao pensa­mento liberal clássico, de tal sorte que não pode ver-se nele qualquer argumento probante contra o recurso, nestes casos e se necessá­rio142, a uma fundamentação jurídico-constitucional assente na fun­ção de imperativo de tutela dos direitos fundamentais143. De resto, e contra uma série de mal entendidos, o recurso à Constituição neste contexto não conduz, de forma alguma, sempre à nulidade do con­trato respectivo, nos termos do § 138 do BGB, mas, antes, a um repertório estratificado de efeitos jurídicos, com diversa intensidade interventiva, até a mera exclusão de uma execução forçada, nos termos, ou por analogia, com o previsto no § 888, n.° 2, do Código de Processo Civil144.

Uma segunda genuína incumbência de protecção consiste em assegurar, tão amplamente quanto possível, que o acto de autonomia privada pelo qual se restringe um direito fundamental se baseia, não apenas formalmente, isto é, juridicamente, mas também material­

142 Cfr. neste sentido já a seguir no texto.143 Assim também Singer, JZ, 1995, pp. 1138 e ss.; noutro sentido,

Hillgruber, ob. cit., pp. 151 e ss., sobre o artigo 11.° da LF; mas, ao contrário da sua posição, não se trata aqui de uma “protecção contra si próprio” (p. 153), e antes de uma protecção - perfeitamente conciliável também com uma compreen­são liberal dos direitos fundamentais - do direito fundamental em face de seu titular, que se não pode privar arbitrariamente do seu exercício por causa das vinculações imanentes à liberdade.

144 Cfr., amplamente, Canaris AcP, vol. 184 (1984), pp. 232-234, e JuS, 1989, pp. 164-166; concordando em relação à analogia com o § 888 do Código de Processo Civil, por exemplo, Schlechtriem, in 40 Jahre Grutidgeseíz, 1990, pp. 48 e s.; Spiess DVBl 1994, p. 1229; J. Hager, JZ, 1994, p. 382, Oldiges, ob. cit., p. 307.

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mente, ou seja, facticamente, numa decisão livre da parte contratual afectada145. Estamos, também aqui, perante um problema elementar do direito dos contratos, desde sempre conhecido, sobre cuja perti­nência e necessidade de solução, mesmo a partir de uma postura de fundo liberal, existe consenso, em princípio, desde há muito, pelo que, também neste aspecto, não existem objecções de princípio con­tra um recurso à função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela146. Neste contexto se situa a muito discutida decisão do Tribunal Constitucional Federal sobre as fianças147, pois o seu pensamento nuclear está em que a autonomia privada - constitucio­nalmente garantida - não pode ser entendida apenas num sentido formal, mas antes também materialmente, e em que, portanto, uma concreta parte pode carecer, em determinadas condições, de ser protegida perante a vinculação a um contrato que lhe é desvantajoso ou perigoso, na medida em que, por ocasião da sua conclusão, estivesse consideravelmente afectada a sua possibilidade fáctica de auto-determinação, no exercício da autonomia privada148.

bb) Questão totalmente diversa é a de saber se estas tarefas de protecção se não deixam resolver também sem recurso à Consti­

145 Cfr. também Grimm, Die Zukunft der Verfassung, 1991, p. 212.146 Cfr. o tratamento mais amplo em Singer, JZ, 1995, pp. 1137 e ss.; em

sentido semelhante, por exemplo, E. Klein, NJW, 1989, p. 1640; concordando neste aspecto, também Hillgruber, AcP, vol. 191 (1991), pp. 75 e s.

147 BVerfGE, vol. 89, pp. 214, 232 e ss.148 A concepção do Tribunal Constitucional Federal não é, porém, con­

vincente na medida em que, neste contexto, reconhece um papel central ao critério do “desequilíbrio estrutural” entre as partes do contrato. Neste aspecto, é clara­mente de preferir a posição de Zollner, que, em vez disto - seguindo reconhecida tradição do direito privado parte em primeira linha da afectação da liberdade fáctica de decisão; cfr. AcP, vol. 196 (1996), pp. 28 e ss., e Die Privatrechts- gesellschaft im Gesetzes-und Richterstaat, 1996, pp. 42 e ss. Significativamente, aliás, o critério do “desequilíbrio estrutural” também não desempenhou qualquer papel digno de nota no posterior tratamento pelo Supremo Tribunal Federal dos casos de fianças - cfr., por exemplo, BGHZ, vol. 125, pp. 206 e 210 e ss.; vol. 128, pp. 230, 232 e ss.; BGH NJW, 1996, pp. 1274, 1277 (chancelada por BVerfG, NJW, 1996, p. 2021).

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tuição, apenas pelos mecanismos do direito privado, tanto mais que, como se disse, há muito que pertencem ao seu conjunto de proble­mas elementares. Poderia assim, com certeza, responder-se de forma positiva a estes problemas, e tão bem como anteriormente - como bastantes vezes foi sublinhado, por exemplo, para os casos das fian­ças mas isto em nada altera a circunstância de a problemática tam­bém apresentar uma dimensão jurídico-constitucional. Designada­mente, à medida que a uma parte é recusado, pelo direito privado ou pela sua aplicação pelos tribunais, aquele mínimo de protecção que é imposto pela Constituição, também se verifica aqui uma violação da proibição de insuficiência. Limitar esta proibição à responsa­bilidade delitual149, é algo que carece de justificação interna bas­tante, já que, como referi, a simples concordância de uma parte com a conclusão do contrato não toma totalmente dispensável a protec­ção de direitos fundamentais. Afigura-se inadequado, em especial, excluir, à partida, em casos de insuficiência do direito dos contratos, a possibilidade de interpor uma queixa constitucional, o que seria a conseqüência de uma inaplicabilidade genérica da proibição de insuficiência150, enquanto a via da queixa constitucional se encon­tra, sem mais, aberta no caso de défice dò direito da responsa­bilidade civil.

É, por conseguinte, certo que a queixa constitucional apenas deveria proceder se efectjvamente se desceu abaixo, ou se ostensi­vamente se não considerou, o mínimo de protecção jurídico-co/wfz- tucionalmente imposto, ou se esta não foi evidentemente conside­rada. Este não é logo o caso apenas porque o tribunal cível abstraiu, sem razão, da aplicação do § 138 do BGB (ou, mesmo, de uma analogia com o § 888, n.° 2, do Código de Processo Civil, ou outra hipótese similar), pois, como disse151, encontra-se aqui aberto ao legislador ordinário um amplo espaço de manobra, pelo que em cada

149 Assim Isensee, ob. cit,, §111, nota 129, que, aparentemente, no caso de insuficiências do direito dos contratos, pretende recorrer apenas ao princípio do Estado Socíal (cfr. ob. cit., nota 131, in fine).

150 Correctamente, Oldiges, ob. cit., p. 305.151 Cfr. supra, c.

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recusa de protecção jurídica (mesmo que incorrecta do ponto de vista do direito civil) se não verifica necessariamente uma violação da proibição jurídico-constitucional de insuficiência152.

De qualquer modo, mesmo onde os direitos fundamentais não sejam aplicáveis na sua específica dimensão jurídico-constitucional, e onde não esteja em causa uma violação das proibições do excesso ou de insuficiência, podem ser relevantes para a interpretação do direito privado, e, em especial, para a concretização das suas cláu­sulas gerais. Pois neste caso os direitos fundamentais sempre podem produzir efeitos como princípios gerais de direito com nível infra- constitucional - tal como também outros princípios gerais de direito (e com a conseqüência de que a sua falta de consideração não po­derá, então, de forma alguma, ser impugnada com sucesso mediante uma queixa constitucional)153.

V. Algumas conseqüências práticas

Tarefa fundamental das teorias jurídicas consiste em facilitar a solução de problemas práticos154. Assim, na próxima secção da mi­nha intervenção pretendo tentar mostrar, em face de alguns exem­plos, que, e de que forma, as minhas considerações teóricas podem reflectir-se nessa solução.

1. Normas de direito privado e proibições de intervenção em direitos fundamentais: sobre a questão de uma cláusula de redução da indemnização

Em primeiro lugar, consideremos mais uma vez a tese de que os direitos fundamentais e a proibição do excesso valem imedia­

152 Cfr. também infra, IV, 4, a, sobre BVerfGE, vol. 96, p. 56.153 Cfr., mais em detalhe, Canaris, JuS, 1989, p. 164, antes de III.154 Cfr., sobre isto, amplamente, Canaris, in JZ, 1993, pp. 377 e ss.

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tamente para as normas de direito privado. Daqui retirei, em tempos, a conseqüência de que uma obrigação de indemnização pode, em determinadas circunstâncias, ser inconstitucional, se arrastar o le- sante para a ruína econômica155.

Diederichsen contrapôs a isto que, se “ficarmos pela concepção dos direitos fundamentais como direitos de defesa contra o Estado”, teremos de responder, sem mais, à pergunta sobre o que pode, quanto a este ponto, retirar-se da Constituição: “absolutamente nada!”156 Há aqui, porém, um mal entendido. Designadamente, eu parti, de forma expressa, da circunstância de a imposição de um dever de indemnização constituir uma intervenção nos direitos fundamentais do lesante - pelo menos, nos seus direitos baseados no artigo 2.°, n.° 1, da LF e de, portanto, ser de recorrer aqui à proi­bição do excesso157, pelo que faço, deste modo, exactamente aquilo que Diederichsen nega: aplico os direitos fundamentais na sua fun­ção clássica como direitos de defesa contra o Estado. A diferença em relação à sua posição não reside, na verdade, de forma alguma, neste ponto, mas antes na resposta à questão - logicamente prece­dente - de saber se “legislação”, no sentido do artigo 1.°, n.° 3, da LF, também inclui, ou não, a aprovação de normas de direito pri­vado. Se se negar isto, como Diederichsen, e se, nesta medida, se partir de uma eficácia dos direitos fundamentais apenas “me- diata”158, fica naturalmente bloqueado à partida o recurso à função dos direitos fundamentais como proibições de intervenção e direitos de defesa. Se, diversamente, com a opinião claramente domi­nante159, se der uma resposta afirmativa, aquela via está em princí­pio aberta. Pois normas sobre responsabilidade civil como, por exemplo, o § 833,2.a parte do BGB, o § 22 da Lei das Águas (“Was-

155 Canaris, JZ, 1987, pp. 1001, s.; concordando com a abordagem, Bydlinski, System und Prinzipien des Privatrechts, 1996, p. 226 e nota 236.

156 Diederichsen, AcP, vol. 198 (1998), p. 257.157 Cfr. JZ, 1987, p. 1001, coluna 2, bem como também pp. 995 e s.158 Sobre isto, v. supra, II, 1, a, e 2, a.159 Cfr. as indicações supra, nota 39.

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serhaushaltsgesetz”), e também o § 823 do BGB, constituem inter­venções (pelo menos) na liberdade de acção protegida pelo artigo 2.°, n.° 1 da LF - se logo em si, enquanto tal, ou apenas no plano da sua actuação160, é questão que pode ficar aqui em aberto - , e o mesmo vale também, e por maioria de razão, para as obrigações pe­cuniárias do lesante161 delas resultantes, em conjugação com a pre­visão rígida do ressarcimento total, pelo §249 do BGB.

O próximo passo é, consequentemente, a aplicação da proi­bição do excesso, e, desta forma, sobretudo um controlo de propor­cionalidade. Ora, quanto a este ponto, confrontei com os efeitos rui- nosos para o lesante, sobretudo, a necessidade de ressarcimento do lesado pelos danos sofridos (bem como a ideia de prevenção), e cheguei, assim, a uma solução que distingue consoante a limitação do montante ressarcitório é, ou não, economicamente exigível ao lesado. Só no primeiro caso - isto é, e por assim dizer, o do lesado “rico” - considerei, de todo em todo, a possibilidade de redução da obrigação de indemnização162, pois só naquele pressuposto pode a ponderação jurídico-constitucional de proporcionalidade pender para o lado do lesante. Por conseguinte, é a proibição do excesso que em grande medida fornece os parâmetros essenciais, e, por isso, quando se discute criticamente esta proposta de solução, não deve deixar-se simplesmente de tomar em consideração a distinção refe­rida, e a limitação a ela ligada163.

A problemática ilustra, de forma verdadeiramente drástica, os amplos efeitos práticos que a vinculação imediata do legislador de direito privado aos direitos fundamentais pode ter, mesmo em áreas

160 Sobre a problemática do “limiar da actuação”, cfr. apenas Lübbe-Wolff, Die Grundrechte ais Eingriffsabwehrrechte, 1988, pp. 163 e s., em ligação com as pp. 50 e ss.

165 Cfr. sobre isto, Canaris, JZ, 1987, pp. 995 e s.162 Cfr. sobre isto JZ, 1987, p. 1002, col. 1.163 É o que fazem, porém, von Bar, Gemeineuropãisches Deliktsrecht,

vol. I, 1996, n.° de margem 596, e Diederichsen, in AcP, vol. 198 (1998), pp. 256 e s.; correctamente, pelo contrário, a exposição de Medicus, in AcP, vol. 192 (1992), pp. 65 e s.

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centrais do direito civil. Saber se estes efeitos podem aqui ser con­cretizados logo pelo juiz, no quadro do § 242 do BGB, ou se é ne­cessário mandatar para tanto o legislador (com suspensão temporá­ria do processo), é um problema adicional164 que não pode ser aqui aprofundado. Note-se, de todo o modo, que a minha proposta incide apenas sobre uma parte da temática da cláusula de redução da indemnização - isto é, sobre os casos de obrigação ruinosa de ressarcir perante um lesado “rico”; tratar a problemática na sua globalidade, é algo que permanece naturalmente reservado ao legislador, o que, porém, não exclui que, para o tipo de casos aqui discutidos, se possa encontrar já, de lege lata, uma solução.

2. Decisões judiciais e proibições de intervenção nos direitos fundamentais: a influência do caso Lüth sobre a decisão Photokina do Supremo Tribunal Federal

!A vaga teoria da “eficácia de irradiação” dos direitos funda­

mentais conduz especialmente a que se procure refúgio numa solu­ção de ponderação muito estreitamente ligada ao caso individual. Com efeito, o Tribunal Constitucional Federal considerou, na deci­são Lüth, uma série de circunstâncias específicas do caso concreto cuja relevância é extremamente questionável. Em conformidade, desenvolveu também critérios que, com uma análise mais próxima, não resistem à crítica. É o caso, sobretudo, da exigência de que se trate de “um contributo para o embate intelectual de opiniões, numa questão que interessa à opinião pública de forma central, efectuada por uma pessoa para tanto legitimada”165. Se, de acordo com a minha proposta, se substituir a teoria da “eficácia de irradiação” pelo recurso à função do artigo 5.°, n.° 1, da LF, como proibição de intervenção166, toma-se logo claro que se trata aqui de notas que,

164 No primeiro sentido, Canaris, JZ, 1987, p. 1002; no último, Medicus, ob. cit., pp/66 e s., e von Bar, ob. cit., n.° de margem 596.

165 BVerfGE, vol. 7, pp. 198, 212.166 Cfr. supra, III, 2, b.

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embora características do caso Lüth, não são, porém, susceptíveis de generalização, no sentido de que a admissibilidade de expressões críticas sobre os outros, efectuadas por sujeitos de direito privado, dependa em geral do seu preenchimento.

Isto vale, seguramente, para a exigência de uma especial “legi­timação” de quem exprime a opinião. Esta nota poderá ter estado presente na pessoa de Lüth devido a circunstâncias especiais do caso, mas a liberdade de expressão aponta, pela sua “natureza”, para um elemento claramente igualitário, que é, em princípio, incompa­tível com privilegiar determinadas pessoas devido a uma sua espe­cial “legitimação”, e com discriminar outras, nessa medida, pela sua falta. A liberdade de expressão do “Zé da Silva” não tem menor relevância do que a de qualquer outra pessoa, como o Sr. Lüth, jus­tamente porque é nota específica da noção de “opinião” o facto de qualquer pessoa a poder ter, e porque a ordem jurídica tem, assim, de deixar à livre concorrência da luta de opiniões a questão de saber qual prevalece. Também não procede a exigência de que se trate de “questão que interessa à opinião publica de forma central”167. Isto vale, pelo menos, no contexto em questão, em que à liberdade de expressão se opunham pela outra parte - designadamente, por parte do proprietário do cinema168 - apenas meros interesses patrimo­niais169. Dado o valor extraordinariamente elevado que, segundo a correcta posição do Tribunal Constitucional Federal (e que esse

167 Cfr. a crítica convincente de Lerche, Festschrift für G. Müller, 1970, p. 213; Schmitt Glaeser, AõR, vol. 97 (1972), pp. 290 e ss, JZ, 1983, p. 98, e AõR, vol. 113 (1988), pp. 54 e s; Stern, Festschrift für Hübner, 1984, p. 818.

168 O realizador Veit Harlan não tinha interposto qualquer acção. Além disso, é evidente que a arte se tem de afirmar no livre debate de opiniões pela sua própria força, e que, portanto, aqui a previsão da liberdade artística é, desde logo, deixada intocada - cfr. supra, IV, 3, b, próximo da nota 111, e infra, VI, 2, a.

169 Pode deixar-se aqui em aberto a questão de saber se a ligação à opinião pública desempenha uma função legítima quando a liberdade de expressão colide com a protecção da honra e da personalidade (cfr. sobre isto, por exemplo, Her- zog, in Maunz/Dürig/Herzog/Scholz, 1997, art. 5, n.°s 1 e 2, n.° de margem 10a, cc, com mais indicações de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal).

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Tribunal afirmou justamente na decisão Lüth), a liberdade de ex­pressão adquire em democracia, e, como se deve acrescentar enfati­camente, também numa ordem econômica e de direito privado libe­ral, não é simplesmente possível legitimar um tratamento tão res­tritivo deste direito fundamental, na sua dimensão de proibição de intervenção, no presente contexto, isto é, na colisão com meros interesses patrimoniais170.

A decisão Photokina do Supremo Tribunal Federal171 mostra exemplarmente onde pode conduzir, neste aspecto, uma aceitação literal dos princípios da decisão Lüth. Naquele caso, uma empresa que, devido a divergências sobre a sua localização, não tinha sido admitida numa feira comercial, havia divulgado um anúncio no jornal com o seguinte texto: “Não nos procurem na Photokinal Abandonámo-la sob protesto, porque a Sociedade de Feiras de Colônia atribuiu a outrem o nosso lugar estabelecido (1960-1976)”. O Supremo Tribunal Federal condenou a empresa a omitir a publica­ção, com fundamento numa ofensa ilícita ao exercício da actividade empresarial da Sociedade de Feiras, e recusou a invocação do artigo 5.°, n.° 1, da LF a favor da empresa, já que se não trataria de uma “questão que interessa à opinião pública de forma central”. É certo que esta última afirmação era correcta. Mas logo se vê como tal critério é inadequado. Pois não existe qualquer razão compreensível para proibir à empresa afectada de tomar público o seu conflito com a Sociedade de Feiras e de informar os seus clientes sobre as razões da sua ausência da feira. A meu ver, a decisão do Supremo Tribunal Federal é, pois, evidentemente incorrecta, porque contém uma inter­venção desproporcionada na liberdade de expressão da empresa afectada.

170 Cfr., mais em detalhe, Canaris, JuS, 1969, pp. 167 e s., bem como, além disso', as indicações supra, nota 166.

171 Cfr. BGH NJW, 1983, pp. 2195, 2196, e sobre isto, Larenz/Canaris, Schuldrecht, II/2, 13a ed., 1994, §81, III, 2, a = p. 549.

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3. Função de imperativo de tutela e proibição de insuficiên­cia, ilustrada com o exemplo do artigo 5.°, n.° l y da LF

a) A falta de um imperativo de tutela: a decisão do Tribunal Constitucional Federal sobre os cartazes de propaganda eleitoral

No mesmo dia da decisão Lüth, e com expressa referência a esta, o Tribunal Constitucional Federal tomou também outra deci­são. Tratava-se, nesta última, da queixa constitucional de um inqui­lino contra uma sentença de um tribunal cível, pela qual, na se­qüência de uma acção do senhorio nos termos do §1004 do BGB, lhe fora proibido afixar na parede exterior do edifício um cartaz com propaganda eleitoral. O Tribunal Constitucional Federal rejeitou a queixa por falta de fundamento172.

O resultado é, na verdade, correcto, mas a fundamentação desta decisão não é convincente. Também aqui, a teoria da “eficácia de irradiação” dos direitos fundamentais conduziu a que o Tribunal Constitucional Federal tivesse efectuado uma ponderação global de interesses, e a que considerasse, nesta, circunstâncias que, na reali­dade, não podem ser decisivas173. É o caso, sobretudo, das ideias de que o senhorio apenas teria actuado para preservação da paz dentro do condomínio, e de que o inquilino teria tido à disposição outras possibilidades de propaganda eleitoral, uma vez que se candidatava por um grande partido e que podia utilizar o seu aparelho.

Na perspectiva adoptada hoje em dia, trata-se, aqui - diversa­mente de na própria decisão Lüth e de na decisão Photokina, que também discutimos da concretização da função de imperativo de tutela do artigo 5.°, n.° 1, da LF e da problemática da proibição da insuficiência de protecção. Pois uma violação dos direitos funda­mentais do inquilino podia existir, quando muito, pela circunstância de um tribunal cível lhe ter negado um contra-direito em face da

172 BVerfGE, vol. 7, p. 230.173 Correcta, nesta medida, a crítica de Diederichsen, in AcP, vol. 198

(1998), pp. 180 e ss., 232.

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pretensão do senhorio, fundada no §1004 do BGB, recusando-lhe, nesta medida, protecção. Ora, será imposto pela Constituição que se dê ao inquilino a possibilidade de propaganda na parede exterior do prédio locado? Formular esta questão é responder-lhe negativa­mente. Designadamente, logo à partida não é aqui simplesmente visível qualquer critério que pudesse fundamentar um tal dever de protecção do Estado, o qual, como se expôs, não existe de per se, e antes requer uma legitimação especial. Pelo que o inquilino clau- dica aqui logo no primeiro obstáculo argumentativo, que tem de ser superado para uma aplicação da função de imperativo de protecção e da proibição da insuficiência174.

O caso fornece, assim, uma bela demonstração de que se não pode simplesmente começar, de forma imediata, a ponderar sem mais, e de que se deve antes responder à questão de saber por que razão se considera a existência de um imperativo de tutela. Em conformidade, e diversamente da posição do Tribunal Constitucional Federal, o caso não deveria ter sido decidido noutro sentido se o senhorio tivesse actuado com outros motivos - por exemplo, simplesmente porque, com fundamento na sua autonomia privada, não queria ter qualquer propaganda eleitoral no seu edifício - , se o inquilino fosse militante de um pequeno partido, ou se não fosse militante de qualquer partido. Decididamente, existem muitas outras possibilidades, além da afixa- ção de cartazes eleitorais^em paredes de edifícios, para fazer propa­ganda por um partido político ou por si mesmo! Logo à partida, não se chega aqui, pois, sequer a uma ponderação do caso concreto.

b) A existência de um imperativo de tutela: a decisão Blinkfüer do Tribunal Constitucional Federal

A decisão Blinkfüer do Tribunal Constitucional Federal con­trasta com o caso referido de forma muito ilustrativa. Tratava-se, nessa decisão, de que a distribuidora de publicações periódicas Springer-Verlag tinha apelado ao boicote da revista Blinkfüer (em

174 Cfr. supra, IV, 3, c.

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Agosto de 1961, pouco tempo depois da construção do muro em Berlim), pois naquela revista vinham impressos os programas de televisão e de rádiodifusão dos emissores da República Democrática Alemã, reforçando tal apelo com a ameaça de cortar relações de ne­gócios com as empresas que não aderissem ao boicote. O Supremo Tribunal Federal rejeitou a acção de indemnização do editor da Blinkfüer115. Na seqüência da queixa deste, o Tribunal Constitucio­nal Federal revogou a decisão do Supremo Tribunal Federal176.

Na terminologia actual, trata-se da primeira decisão em que o Tribunal Constitucional Federal reconheceu, substancialmente, a função de um direito fundamental como imperativo de tutela e resol­veu o problema da “eficácia em relação a terceiros” com base nela177. Porque, todavia, à data essa função não havia ainda sido (re)descoberta, o iter lógico da decisão tem saltos e é, em parte, inconsistente. O Ministro Federal da Justiça tinha-se pronunciado no sentido de uma rejeição da queixa, com fundamento em que “o di­reito fundamental de livre expressão de opiniões e da liberdade de imprensa não havia sido lesado pelo poder público, já que o Su­premo Tribunal Federal não teria proibido ao queixoso qualquer expressão de opiniões, e antes apenas se havia recusado a condenar outrem a uma indemnização por causa de uma ameaça de boi­cote”178. Em si mesma, esta argumentação é procedente179, e cor­

'75 BGH, in NJW, 1964, p. 29.176 BVerfGE, vol. 25, p. 256.177 Cfr. Canaris, in AcP, vol. 184 (1984), pp. 229 e s.; no mesmo sentido,

Oeter, AõR, vol. 119 (1994), p. 536; Oldiges, in Festschrift für Friauf, 1996, p. 303; nesta medida em sentido concordante, também Alexy, Theorie der Grund- rechte, 1985, pp. 487 s.

178 BVerfGE, vol. 25, p. 262.179 Noutro sentido, e conseqüente com a sua concepção de base, Schwabe,

AõR, vol. 100 (1975), p. 459, e igualmente pp. 453, 467, e idem, Probleme der Grundrechtsdogmatik, 1977, p. 177; contra, em detalhe, Canaris, ob. cit., pp. 250 e s., e Alexy, ob. cit., pp. 487 e s.; seguindo-o neste aspecto, pelo contrário, Lübbe- -Wolff, Die Grundrechte ais Eingriffsabwehrrechte, 1988, p. 175. Trata-se aqui, novamente, da problemática, tratada mais em profundidade supra, IV, 3, da “teoria da convergência estatista”.

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responde exactamente à posição defendida supra (IV, 3, a e b), sobre o caso Bõll/Walden e sobre a inversão do caso Lüth. Infelizmente, porém, o Tribunal Constitucional Federal não dedicou qualquer palavra ao seu tratamento. Em vez disso, para chegar ao resultado inverso, mostrou primeiro, em detalhe, que, e por que razão, a Springer-Verlag não podia invocar aqui o artigo 5.°, n.° 1, da LF e os princípios desenvolvidos a seu propósito na decisão Lüth. Pode estranhar-se esta via de raciocínio, pois é impossível descobrir por que razão, da circunstância de a conduta da Springer não cair sob o âmbito de aplicação do artigo 5.°, n.° 1, da LF, poderia resultar a violação de um direito fundamental do editor da Blinkfüer. Nesta medida, são, antes, fundamentais considerações efectuadas tão-só no final da decisão, em que o Tribunal Constitucional Federal acaba por tratar da liberdade de imprensa, e afirma: “Para a protecção (!) da instituição da livre imprensa a independência dos órgãos da im­prensa tem, porém, de ser assegurada contra intervenções de grupos de poder econômico, com meios desproporcionados, na confor­mação e difusão de produtos da imprensa (...). A finalidade da liberdade de imprensa, de facilitar e garantir a formação de uma opinião pública livre, exige por isso a protecção (!) da imprensa contra tentativas de afastar a concorrência de opiniões através de meios de pressão econômicos”180. Com efeito, não podia ecoar aqui melhor a função de imperativo de tutela do artigo 5.°, n.° 1 da LF, e simultaneamente também já se reconhece aqui, na substância,o seu lado de direito subjectivo - se bem que apenas incidentalmente e sem ser reflectido181 - , pois sem este não seria possível conceber a admissibilidade da queixa constitucional do editor da Blinkfüer. Logo a seguir, o Tribunal Constitucional afasta-se, porém, nova­mente desta sua abordagem correcta, na medida em que prossegue:

>80 BVerfGE, vol. 25, p. 268.181 Claramente, se bem que ainda apenas incidentalmente, o Tribunal

Constitucional Federal veio a dar aquele passo apenas no caso Schleyer - cfr. BVerfGE, vol. 46, pp. 160,163 - , e, expressamente, apenas em BVerfGE, vol. 77, pp. 140, 214.

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“O boicote do semanário Blinkfüer violou esta liberdade garantida com força constitucional”. Esta perspectiva é dogmaticamente in- correcta, porque o boicote enquanto tal só poderia violar uma “liber­dade garantida com força constitucional” se o autor do boicote fosse de todo em todo destinatário normal da Constituição, o que, no en­tanto, e contrariamente à teoria da “eficácia imediata em relação a terceiros”, não é justamente o caso182. A liberdade de imprensa do editor da Blinkfüer foi, antes, violada pelo Supremo Tribunal Fede­ral, ou pela “norma do caso” subjacente à sua decisão183, segundo a qual não é de conceder protecção a uma empresa de comunicação social contra um apelo ao boicote apoiado por pressões econômicas.

Apesar destes erros, a decisão do Tribunal Constitucional Fe­deral merece, porém, forte concordância. Pois, como já sublinhá­mos, em perspectiva dogmática é possível reconduzi-la a um funda­mento procedente, através da função de imperativo de tutela do artigo 5.°, n.° 1 da LF. É também exacto, no resultado e na funda­mentação, que o Tribunal Constitucional Federal reconheceu aqui substancialmente a existência de um dever de protecção. Na ver­dade, seria incompatível com o sentido e a função da liberdade de imprensa que o confronto das opiniões pudesse ser conduzido, não apenas com os meios que lhe são próprios - ou seja, com palavras e outras comunicações mas antes desviado através do recurso a uma pressão econômica, o qual, porque não é um recurso “inte­lectual”, é incompatível com a essência daquele confronto. Como resulta claramente também da decisão do Tribunal Constitucional Federal, aqui não se trata, apenas, de uma protecção de indivíduos, mas antes, e até mesmo primariamente, de uma protecção de ins­tituições, isto é, da capacidade funcional da imprensa e do debate de opiniões enquanto tal.

182 Cfr. supra, IV, 1, a. Diversamente, a perspectiva de Alexy, ob. cit., p. 493, que pretende manter neste aspecto a terminologia, o que, porém, devido ao concomitante perigo elevado de mal entendidos - em especial quanto à dis­tinção em relação à “teoria da convergência estatista” (rejeitada pelo próprio Alexy) - , não é adequado.

183 Cfr., sobre este modo de ver, supra, III, 1, c.

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O resultado está, assim, definido no essencial. Uma ponderação do caso individual não é aqui, pois, necessária em princípio - com o que, nesta medida, o caso se configura aqui de forma justamente inversa à do caso dos cartazes eleitorais: enquanto neste se não chega de todo a uma ponderação, porque é de negar, logo in limine, a existência de um dever de protecção, no presente caso já não resta qualquer espaço para ela, porque o dever de protecção é em geral de afirmar. É que o exercício de pressão econômica constitui, só por si, um meio inadmissível no embate de opiniões, e por isso da parte da Springer não existia qualquer contra-interesse digno de protecção; assim, neste aspecto - mas também apenas para ele - toma-se rele­vante a circunstância de a conduta da Springer não estar desde logo coberta, na sua previsão, pelo direito fundamental do artigo 5.°, n.° 1, da LF. Inversamente, não era, por conseguinte, decisivo que, além disso, a Springer dispusesse de uma posição de domínio do mercado - apenas, e quando muito, na medida em que, por esta razão, se concluía por aí estarmos realmente em presença de “pres­são”, e não apenas de uma atitude de ameaça vazia e inofensiva.

O imperativo de tutela não é difícil de transpor para o direito privado, seja através do direito ao exercício da empresa no quadro do §823, n.° 1 do BGB, seja pela aplicação do §826 do BGB184. Se não se considerar viável nenhum destes caminhos, a decisão não seria diversa, devendo, antes, integrar-se a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão, por razões constitucionais, no §823, n.°1 do BGB - tal como aconteceu quanto ao direito geral de perso­nalidade. Contrariamente ao que acontece noutros tipos de casos, não é aqui visível qualquer traço de um contributo autônomo do direito privado para a solução da problemática, de tal forma que o espaço de discricionariedade, em princípio existente na concre­tização da função de imperativo de tutela, é aqui verdadeiramente “reduzido a zero”. Também nesta medida, é novamente decisivo o facto de, devido à inadmissibilidade do meio empregue pelo autor

184 Cfr., sobre isto, mais em detalhe, Larenz/Canaris, Schuldrecht, II/2, 13a ed., 1994, §81,111, 3, b.

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do apelo ao boicote, não ser aqui, à partida, de tomar em conta um seu contra-direito.

c) Função de imperativo de tutela e ponderação casuística numa argumentação em dois patamares: a decisão do Tri­bunal Constitucional Federal sobre antenas parabólicas.

Nos dois casos discutidos até agora, o resultado é logo deter­minado com a resposta à questão da existência de um imperativo de tutela: na decisão sobre os cartazes eleitorais esta existência deve à partida ser negada em geral, devendo, pelo contrário, na decisão Blinkfüer, ser afirmada também de forma geral, de tal forma que não resta espaço para uma ponderação do caso individual com direitos ou interesses contrapostos da outra parte. É claro que isto não é sempre assim. Frequentemente é, antes, necessária uma argumen­tação em dois níveis, em vez de apenas num. É representativa dessa necessidade, por exemplo, a jurisprudência sobre a questão de saber se o inquilino de um apartamento pode exigir ao senhorio que este tolere a instalação, no edifício, de uma antena parabólica para a recepção de programas de radiodifusão e de televisão. Segundo a posição do Tribunal Constitucional Federal, a questão merece, em princípio, uma resposta afirmativa se não existir uma ligação por cabo, ou se o inquilino, estrangeiro, não conseguir, ou só muito limitadamente conseguir, receber por essa ligação os canais do seu país185.

Esta posição merece concordância no seu resultado. Designa­damente, a recepção de rádio e de televisão é, nessas circunstâncias, o meio normal, e mesmo quase o único praticável, para conseguir exercer o direito fundamental de liberdade de informação, nos termos do artigo 5.°, n.° 1, frase 1,1.° período da LF. Diversamente do que acontecia no caso dos cartazes de propaganda, em regra o inquilino depende aqui, pois, da tolerância do senhorio para con­

185 Fundamental BVerfGE, vol. 90, pp. 27, 33 e ss.

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seguir, de todo em todo, exercer este direito fundamental. Esta “de­pendência” representa, aliás, um critério especialmente forte para fundamentar deveres186. Acresce que o mercado de espaços habita­cionais está actualmente organizado na Alemanha, em primeira Unha, segundo o direito privado187, e que, portanto, é fundamen­talmente apenas no quadro privatístico que uma pessoa pode con­seguir exercer o direito fundamental de se informar através da rádio e da televisão. O “preço” desta configuração da ordem econômica segundo o direito privado é uma certa vinculação social da autono­mia privada188, a qual, em qualquer caso, tem, em princípio, de ceder se sem a sua limitação o exercício de um direito fundamental ficaria facticamente prejudicado da forma mais intensa - e isto, não apenas pontualmente, em concretas hipóteses casuais, mais ou me­nos numerosas, mas antes estruturalmente em amplos domínios, devido aos dados típicos desta constelação problemática. Por isso deve aqui, em princípio, afirmar-se um imperativo de tutela jurídico- -constitucional189.

186 Fundamental sobre isto, se bem que em contexto totalmente diverso, Traeger, Marburger Festgabe Jur Enneccerus, 1913, pp. 107 e ss.

187 E, para evitar mal entendidos, acrescento: felizmente!188 Cfr., sobre esta argumentação, em contexto próximo, também Canaris,

Die Bedeutung der iustitia distribuíiva im deutschen Vertragsrecht, 1997, pp. 119 e s, 127.

189 A problemática não se deixa resolver, por exemplo, logo mediante a função de proibição de intervenção, qualificando a satisfação da pretensão negatória do proprietário, com fundamento no § 1004 do BGB, como intervenção no direito fundamental de liberdade de informação. Designadamente, logo pela sua previsão, este não garante a faculdade de utilizai1 propriedade alheia - tão pouco como, por exemplo, a liberdade artística inclui a faculdade de pintar paredes brancas alheias, ou de pichar com spray muros de casas alheios - cfr. (sobre o “pichador de Zurique”), Comissão Européia dos Direitos do Homem EuRGZ, 1984, p. 259; BVerfGE, NJW, 1984, p. 1293; em detalhe sobre isto, Canaris, õJBl, 1991, p. 215. Por isso, a aplicação do § 1004 do BGB não é uma intervenção no direito de liberdade de informação. É certo, porém, que o bem jurídico correspondente é, aqui, tocado na sua previsão, pelo que não claudica também a afirmação da existência de um imperativo de protecção pelo facto de se não verificar a previsão do artigo 5.°, n.° 1, 2.° período, da LF. Toma-se, aqui,

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No nível seguinte da argumentação - mas realmente apenas neste - intervém então a ponderação individual. É então decisivo saber, por exemplo, se a instalação da antena é excepcionalmente inexigível ao proprietário, devido a uma configuração especial do edifício, ou se, pelo contrário, o inquilino dispõe, também excepcio­nalmente, de possibilidades bastantes de informação mesmo sem a antena190. É certo que ambos estes níveis podem imbricar-se quase inseparavelmente; e também nem sempre é fácil dizer em qual deles deve ser sediado um certo critério. Não obstante, devem ser distin- guidos lógica e dogmaticamente um do outro. Isto porque consti­tuem questões distintas saber se numa determinada problemática existe em princípio um imperativo de tutela jurídico-constitucional, ou se, no caso concreto, estes pressupostos estão presentes, tendo já cedido eventuais contra-interesses da outra parte - distinção, esta, que, em regra, também pode encontrar-se noutros pontos, a propó­sito da concretização de deveres. Esta distinção pode adquirir im­portância prática, sobretudo, porque a resposta à primeira questão se integra certamente, na sua totalidade, na competência de controlo do Tribunal Constitucional Federal, enquanto a ponderação no caso concreto há-de ser efectuada, em ampla medida, abaixo do nível jurídico-constitucional, e cabe, assim, nesta medida, apenas aos tri­bunais comuns191.

É, ainda, dogmaticamente interessante observar que os tribu­nais cíveis, e, na sua seqüência, o Tribunal Constitucional Federal, constroem a instalação da antena como um “uso em conformidade com o contrato”, no sentido do § 536 do BGB, e, assim, limitam a pretensão do proprietário de retirada, com fundamento no § 1004 do BGB. Isto afigura-se problemático, desde logo, porque, segundo

claro que se trata, na função de proibição de intervenção, da dimensão jurídica, enquanto, pelo contrário, na função de imperativo de tutela se trata primariamente dos fundamentos de facto do bem garantido pelo direito fundamental - cfr., sobre isto, em geral, infra, VI, 2, b.

190 Uma panorâmica dos pontos de vista relevantes para a ponderação pode ver-se em Mehrings, NJW, 1997, p. 2275.

191 Cfr. sobre isto também a seguir, infra, 4, a.

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esta perspectiva, os custos da instalação e da manutenção da antena deveriam, em rigor, recair sobre o senhorio, apesar de existir con­senso quanto a que é o inquilino que as deve suportar. Além disso, é nos termos do contrato que se determina, em primeira linha, o que constitui um uso em conformidade com ele192. Será, portanto, o di­reito à instalação da antena disponível - pelo menos por contrato individualmente negociado? Não posso aprofundar aqui esta questão, que constitui um problema específico e adicional, pois extravasa os limites da via de raciocínio que estou a percorrer. Mas quero, contudo, referir, pelo menos, que o recurso ao §536 do BGB talvez não seja a via adequada, podendo, antes, estar-se aqui perante um daqueles casos - reconhecidamente raros, mas ainda assim pensáveis - em que a transposição para o direito privado de impe­rativos jurídico-constitucionais não é possível no quadro das cláu­sulas gerais e dos elementos conceituais indeterminados existentes, mas antes, apenas, através do desenvolvimento, em constituição autônoma do Direito, de uma norma não escrita de direito privado- aqui, de direito do arrendamento193.

192 Nessa medida, a crítica de Diederichsen, AcP, vol. 198 (1998), p. 182, colhe, na verdade, um ponto fraco. Mas, contra Diederichsen, não é de retirar daqui a conseqüência de que a perspectiva do Tribunal Constitucional Federal é incorrecta, e antes a de que tem de ser levada consequentemente até ao fim.

193 Ésta problemática é, sem razão, quase inteiramente negligenciada pela teoria da “eficácia mediata em relação a terceiros” - cfr., sobre isso, mais em detalhe, Canaris, AcP, vol. 184 (1984), pp. 222 e s.

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4. Direitos fundamentais conflituantes e a amplitude da dis- cricionariedade na concretização de imperativos de tutela, ilustrada com o exemplo do direito ao conhecimento das próprias origens:

a) Sobre a relação entre Constituição e direito ordinário: a pretensão de um filho nascido fora do casamento, dirigida contra sua mãe, a informações sobre a pessoa do seu pai biológico;

Até agora ilustrei por exemplos o significado da função de proibição de intervenção, bem como a ausência e a existência de imperativos de tutela de direitos fundamentais. O que ainda falta é uma hipótese que possa ilustrar a amplitude do espaço de discricio- nariedade que é deixado aberto ao direito ordinário, na concreti­zação de imperativos de tutela. O Tribunal Constitucional Federal pronunciou-se sobre isto, de modo muito claro, há cerca de um ano, num caso que diz respeito à relação entre direitos fundamentais e direito privado, e que, por isso, se adequa perfeitamente ao pre­sente contexto.

Tratava-se de uma acção de uma filha nascida fora do casa­mento contra a sua mãe, pretendendo obter informação sobre a pessoa do seu pai biológico. O tribunal de primeira instância havia dado razão à autora. Segundo a interpretação da sentença pelo Tribunal Constitucional Federal, havia, porém, aceite que os direitos fundamentais da filha em questão - isto é, sobretudo o seu direito geral de personalidade baseado no artigo 2.°, n.° 1, em conjugação com o artigo 1.°, n.° 1, e o seu direito de propriedade, nos termos do artigo 14.°, todos da LF - só poderiam admitir em medida muito limitada uma ponderação com os direitos fundamentais contrapostos da mãe. Partira, pois, da ideia de que a sua decisão estaria quase inteiramente determinada a nível constitucional. O Tribunal Cons­titucional Federal considerou ter sido aqui ignorado o espaço de discricionariedade que cabe ao direito ordinário na concretização da função de imperativo de tutela, e, por esta razão - ou seja, não

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porque, por exemplo, reprovasse o resultado da ponderação do tri­bunal de primeira instância revogou a sentença194.

As considerações que o Tribunal Constitucional Federal efec- tuou neste contexto merecem absoluta concordância. Designada­mente, o Tribunal sublinha enfaticamente que, “por um lado, os direitos subjectivos de defesa contra intervenções estaduais, que resultam em primeira linha dos direitos fundamentais, e, por outro lado, os deveres de protecção, se distinguem uns dos outros, essen­cialmente, na medida em que o direito de defesa exige, pela sua finalidade e conteúdo, um certo comportamento estadual, enquanto o dever de protecção é em princípio indeterminado. A forma como os órgãos do Estado satisfazem os seus deveres de protecção é deci­dida por eles sob sua própria responsabilidade”. Em conformidade, “a definição e a transposição normativas do tipo de protecção [se­riam] matéria do legislador (ordinário)”, e o mesmo vale, também, “se, por falta de uma decisão do legislador, os tribunais cíveis real­izarem o dever de protecção pela via da constituição autônoma do Direito ou da interpretação de conceitos jurídicos indeterminados. Só excepcionalmente se podem retirar dos direitos fundamentais deveres concretos de regulamentação”195. Nada tenho a acrescentar a isto, pois corresponde no essencial à posição defendida supra (IV, 3, c).

Resta, apenas, sublinhar que o tribunal a quo poderá, numa nova decisão, chegar outra vez ao mesmo resultado196, tendo sim­

194 BVerfGE, vol. 96, p. 56=JZ, 1997, p. 777, com anotação de Starck. Não consigo acompanhar a interpretação diversa da decisão por Starck, segundo o qual o Tribunal Constitucional Federal “chamou a si o controlo total da ponderação no caso concreto, sem considerar estruturas de direito civil” (p. 780). O contrário é que é exacto: o Tribunal Constitucional Federal remeteu o tribunal comum justamente para uma ponderação abaixo do nível jurídico-constitucional, e apenas revogou a sua decisão porque “não pode excluir-se (!) que o tribunal de primeira instância tivesse chegado a um outro resultado esgotando o seu (!) espaço de ponderação” (p. 66).

195 Lod cit., p. 64.196 Isto resulta claramente da formulação do Tribunal Constitucional

Federal citada supra, na nota 193.

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plesmente as considerações decisivas para tal - possivelmente até, em grande medida, com o mesmo conteúdo - de situar-se ao nível do direito civil em vez de ao nível constitucional197. No entanto, quanto aos pontos de vista - postos pelo tribunal de primeira instân­cia no centro da sua argumentação - de que o desconhecimento, pela filha, da pessoa do seu pai era “da responsabilidade”, ou, melhor dizendo, imputável, aos pais, e de que a filha não tem alternativa à informação por parte da mãe - também, e sobretudo, para satisfazer as suas pretensões financeiras contra o seu pai - , deles apenas re­sulta que deve ser considerada a existência de um dever de protec­ção de direitos fundamentais. Segue-se, então, num segundo nível de argumentação, a ponderação individual no plano do direito civil. Neste plano poderia, no caso presente, ser de considerar, por exem­plo, que, durante o período da concepção, a mãe tinha mantido rela­ções sexuais com diversos homens, e que estes viviam agora em casamentos intactos; este interesse dos seus antigos parceiros (!) deve, em princípio, ser também respeitado pela mãe. A seu favor pode, ainda, pesar a circunstância de o facto da manutenção de relações sexuais com várias pessoas - para si, eventualmente, muito penoso - se vir a tomar agora conhecido para além do círculo das pessoas envolvidas no processo com a sua filha, e em especial, do círculo dos seus antigos parceiros. Se o tribunal de primeira instân­cia considerar estes pontos de vista irrelevantes, ou não suficien­temente ponderosos, pode confirmar o resultado da sua anterior decisão. Mas não pretendo expor aqui como, em minha opinião, deveria ser realmente decidido o caso, e apenas mostrar que, e em que medida, o resultado depende de considerações situadas ao nível do direito civil, e não de uma ponderação de direitos fundamentais especificamente jurídico-constitucional.

197 Neste pressuposto, permanece também admissível o desenvolvimento de uma regra de ónus de argumentação. Cfr. sobre isto Eidenmüller, JuS, 1998, pp. 791 e s., que, porém, entende a decisão do Tribunal Constitucional Federal no sentido de não ser admissível uma tal regra, e, consequentemente, a critica sobre este aspecto.

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b) Sobre a relação entre jurisprudência e legislação: a pro­blemática de uma pretensão do filho de obter informações sobre a pessoa do seu pai biológico, em caso de insemi­nação heteróloga.

Finalmente, gostaria de abordar ainda um problema próximo, sobre o qual não existe até agora jurisprudência: a questão da pre­tensão do filho no sentido da obtenção de informações sobre a pessoa do seu pai biológico, em caso de inseminação heteróloga. Na doutrina conclui-se, em parte, a partir do reconhecimento do direito fundamental de uma pessoa ao conhecimento da sua ascen­dência, que os bancos de esperma e/ou o médico têm o dever de guardar registo da pessoa do dador de esperma, e de o dar a conhecer ao filho, a pedido deste198.

Pergunta-se,- em primeiro lugar, onde poderá divisar-se, neste caso, um fundamento de pretensão jurídico-civilístico. O § 810 do BGB só é aplicável como tal, quando muito, se existir documen­tação sobre o dador199, e nada nos diz, portanto, sobre a resposta à questão, que é anterior, de saber se existe um dever de a efectuar. Além disso, no quadro do § 810 deve ser, em princípio, efectuada uma ponderação de interesses sobre pontos de vista de proporcio­nalidade200, de tal forma que, com a mera remissão para esse pre­ceito, e mesmo se existir documentação, os verdadeiros problemas estão ainda longe de ficar resolvidos. Afigura-se preferível, por ser bem mais próximo do problema, o recurso ao (civilístico) direito geral de personalidade do filho, em conjugação com a pretensão

198 Cfr. R. Zimmermann, FamRZ, 1981, p. 932; Starck, Verhandlungen des 56. Deulschen Juristentages, 1986, A 23 e ss.; Coester-Waltjen, idem, B 68 e s; Gie- sen, JZ, 1989, pp. 638 e s.; idem, Familienrecht, 2a ed., 1997, n.° de margem 611.

199 A favor de uma solução com recurso ao § 810 do BGB, R. Zimmermann, FamRZ, 1981, p. 932; aplicável seria a 2a alternativa do § 810 do BGB, pois entre o filho e o seu pai biológico existe uma relação jurídica de direito da família, e o § 810, 2a alterríativa, vale, segundo a sua clara letra, em geral para “relações jurí­dicas”, e, portanto, não apenas para relações emergentes de negócios jurídicos.

200 Cfr. apenas Palandt/Thomas, 57a ed., 1998, §810, n.° de margem 2.

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negatória, por analogia com o § 1004 do BGB. Designadamente, este direito é ofendido pelo desconhecimento da pessoa do pai biológico, e o banco de esperma ou o médico causaram esta ofensa, de modo que lhes é imputável201, através da realização da inseminação hete- róloga. Substancialmente, a pretensão negatória dirige-se aqui a informações, pois só com uma tal pretensão se pode afastar a ofensa, e para garantia do seu cumprimento tem de se efectuar uma do­cumentação, já que, caso contrário, o banco de esperma ou o médico tomariam impossível o cumprimento do seu próprio dever - isto, abstraindo mesmo de que, por outras razões, existe, de qualquer forma, um dever de documentação202.

Podendo, assim, construir-se no direito civil um fundamento de pretensão, tal não significa, porém, que se tenha respondido desta forma à questão, decisiva, de saber se é de todo de reconhecer uma pretensão de informação do filho. Nomeadamente, esta pretensão colide com o direito geral de personalidade do dador, ou, mais preci­samente, com o seu direito à auto-determinação informativa. O da­dor tem aqui um interesse massivo no anonimato, sobretudo porque pode tomar-se devedor de alimentos ao filho, nos termos dos §1615a e 1601 do BGB, e, além disso, os seus herdeiros, ou eventualmente ele mesmo, ficam vinculados, nos termos dos § 1934a, 1934b, e 1934d do BGB, a uma compensação monetária em lugar do seu direito sucessório203. Estes riscos são tanto mais graves quanto de

201 Cfr. sobre esta exigência no quadro do § 1004 do BGB, mais em detalhe Larenz/Canaris, Schuldrecht, II/2, 13a ed., 1994, §86, V, 1 e 3.

202 Esta é necessária, por exemplo, para a hipótese de ser indispensável para o tratamento de uma doença do filho o conhecimento dos dados biológicos do seu pai, e resulta, nessa medida, da protecção da saúde nos termos do §823, n.° 1 do BGB, em conjugação com um correspondente dever no tráfico; também para a possibilidade de casamento do filho com um parente próximo do dador, ou até com este mesmo, tem de ser realizada documentação, sendo nesta medida de recorrer ao direito geral de personalidade como fundamento do dever.

203 Em correspondência com a data da conferência, parte-se aqui ainda das normas vigentes até 30 de Junho de 1998, o que, porém, não levanta problemas, já que as alterações que entraram em vigor em 1 de Julho de 1998 nada de essen­cial alteraram para a dimensão da presente problemática

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uma única doação de esperma podem resultar vários filhos - aparen­temente até dez. É evidente que os bancos de esperma ou o médico têm de informar o dador sobre a possibilidade destas conseqüências jurídicas204. Nesse caso, este dador, ou exigirá perante aqueles uma protecção segura, ou recusará a doação. A isto procura obviar-se, como Hager mostrou há um ano numa conferência neste mesmo lugar, mediante um contrato com o marido da mãe, pelo qual aquele libera o dador dos seus deveres jurídicos perante o filho205. Esta construção claudica, porém, em casos importantes - por exemplo, se o marido for insolvente ou a inseminação for efectuada numa mulher não casada.

No actual estado do direito dos alimentos e das sucessões, o dador razoável só se declarará, pois, pronto para a doação se for garantido em princípio206 o seu anonimato. Este constitui, assim, de facto, verdadeiramente uma condição da possibilidade de que o filho possa de todo chegar a viver, e não pode, pois, a meu ver, ser intensamente prejudicado, ou, mesmo, inteiramente posto em causa, por uma pretensão geral de informações sobre identidade do dador207. Reconhecer como prioritário, sem limitações, o interesse do filho na informação conduziria, em última instância, à posição insustentável de que seria melhor não viver de todo do que viver com desconhecimento da pessoa do seu pai biológico208. Em

204 Correcto, nesta medida, R. Zimmermann, FamRZ, 1981, p. 933; Coes- ter-Waltjen, loc. cit., B 68 e s;

205 J. Hager, Die Stellung des Kindes nach heterologer Insemination, 1997, pp. 9 e ss.

206 Para excepções, cfr. a nota 201; não raramente, os problemas aí refe­ridos poderão mesmo resolver-se sem quebrar o anonimato.

207 Trata-se aqui, portanto, de uma espécie de auto-contradição (“pragmá­tica” ou mesmo “performativa” - cfr. sobre isto Canaris, JuS, 1996, pp. 579 e s.), pela qual de certa forma se põe em causa retroactivamente a base sobre a qual assenta a possibilidade de invocação da pretensão de informação; isto nada tem a ver com o argumento de que a ordem jurídica não deveria impedir que no futuro continuassetn a ser efectuadas doações de esperma.

208 Uma argumentação semelhante desempenha, consabidamente, um papel central para a posição dominante, segundo a qual uma pessoa nascida com

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conformidade, a necessidade do filho de adquirir esse conhecimento não tem, na inseminação heteróloga, de forma alguma, um peso tal que o imperativo de tutela de direitos fundamentais se tenha de impor sem mais, em face do contraposto direito à auto-determinação informativa.

Apurar se a garantia de manutenção do anonimato do dador é nula nos termos do §138 do BGB - como aceita a posição bem dominante na doutrina - é irrelevante no presente contexto. De­signadamente, aqui não se trata de uma pretensão contratual de manutenção de segredo do dador, mas antes de um direito à auto­determinação informativa, que é totalmente independente daquela- e isto numa área elementar, que incide sobre a sua esfera íntima. Com o reconhecimento de uma pretensão de informação intervém- -se de forma massiva neste direito, de tal forma que se chega a uma colisão dos direitos fundamentais de ambas as partes. Aqui não pode dizer-se que o direito do dador à auto-determinação informa­tiva não seja à partida, ou que seja em menor medida, digno de

uma doença grave ( “wrongful life”) não tem qualquer pretensão indemnizatória contra aquele sem cujo comportamento errado (v.g. aconselhamento errado da mãe sobre o risco de doença, esterilização falhada, etc.) não teria de todo chegado a vir ao mundo - cfr.sobre isto, por exemplo, BGHZ, vol. 86, pp. 240, 256 (com fundamentação ligeiramente diferente, mas na essência bastante parecida); Medi­cus, Zivilrechí und werdendes Leben, 1985, pp. 13 e s.; ampla e profundamente, com uma proposta de solução própria, Picker, Schadensersatz für das uner- wünschte Leben “Wrongful Life”, 1995. Por isso, a rejeição desta argumentação por R. Zimmermann, FamRZ, 1981, p. 943, não pode convencer. Além disto, a problemática aqui em discussão configura-se ainda de forma mais crassa, na medida em que o desconhecimento da pessoa do dador de esperma - mesmo se representa um encargo para o filho - não pode ser valorativamente colocado no mesmo nível de um dano à saúde; contrapor a uma pessoa doente que sem a causa da doença não teria de todo vivido pode rejeitar-se como sendo uma argumen­tação inadequada, quase mesmo cínica, enquanto na presente problemática não pode estar em questão uma tal inadequação (e antes, pelo contrário, é a pretensão de informação do filho que se afigura problemática, porque com ela se retira o fundamento da decisão tomada, a seu tempo, tanto pela sua mãe como pelo seu pai biológico).

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protecção que o interesse do filho no conhecimento do seu pai biológico. É certo que se trata, aqui, da comunicação de um facto verdadeiro no interesse legítimo de um terceiro, mas o banco de es­perma ou o médico obtiveram a doação de esperma e o conhe­cimento da identidade do dador apenas no pressuposto da manu­tenção do segredo, e cometeriam, por isso, com a revelação, uma grave quebra de confiança. Isto vale independentemente de uma garantia de anonimato, já que o interesse do dador na manutenção do segredo é evidente mesmo sem ela. Numa tal configuração do caso, o direito à auto-determinação informativa é, em princípio, claramente digno de protecção. A circunstância de o dador dever ser esclarecido sobre os riscos jurídicos em nada altera tal conclusão, ainda que esse esclarecimento tenha ocorrido. Pois só pode existir clareza no que toca à situação quanto ao direito a alimentos e aos direitos sucessórios, mas já não relativamente à existência de uma pretensão de informação sobre a identidade do dador, uma vez que esta, no final de contas, não está prevista na lei e, até hoje, também não é reconhecida pelos tribunais superiores, constituindo, pelo contrário, no presente contexto, justamente o thema probandum - e isto, mesmo abstraindo dos “casos antigos” de doação de esperma, ocorrida antes de o Tribunal Constitucional Federal reconhecer (aliás, sem ser em ligação com a presente problemática) o direito ao conhecimento do pai biológico. Por isso, a expectativa do dador de que o seu anonimato será respeitado é, certamente, arriscada, mas de forma alguma ilegítima. A situação dos interesses em presença é, nesta medida, totalmente diversa da dos casos em que um filho nascido fora do casamento foi concebido através de relações se­xuais. Pois nesta última a expectativa de anonimato não desempenha de todo qualquer papel, e, por isso, o pai tem de contar, sem mais, com todas as conseqüências jurídicas do seu comportamento. Se, porém, mesmo num tal caso, segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal que acabámos de discutir, a mãe pode, em certas circunstâncias, recusar a informação sobre a pessoa do pai, então o mesmo tem de valer, em princípio, também para o banco de esperma e para o médico, no caso da inseminação heteróloga.

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Em conformidade, também aqui deve partir-se de um amplo espaço de livre conformação, pelo direito ordinário, na execução do imperativo de tutela de direitos fundamentais. Ora, se se procurar uma solução “intermédia”, no sentido da concordância prática, pela qual os interesses de ambas as partes sejam respeitados, é-se levado, tendo em conta as especificidades da inseminação heteróloga, a negar ao filho as pretensões financeiras contra o seu pai biológico e os seus herdeiros, e a reconhecer-lhe então, em princípio, uma pre­tensão - assim significativamente enfraquecida - , baseada nos seus direitos de personalidade, a obter informação sobre a sua pessoa. Em comparação com a alternativa de recusa desta pretensão, depõe a favor desta saída a circunstância de constituir o meio menos gra- voso de solução da colisão de direitos fundamentais, pois, se se negar a pretensão de informação, o filho perde, dessa forma, de facto também as pretensões financeiras, já que não pode tomar conhe­cimento do seu destinatário. E em comparação com o reconheci­mento de uma pretensão de informação sob a base do actual regime jurídico dos alimentos e sucessório, a correcção para os casos de inseminação heteróloga é também preferível, uma vez que, caso contrário, o direito do dador à auto-determinação informativa ficaria totalmente subordinado e também se renunciaria à concordância prática. Isto seria incompatível com a exigência de “perspectivar as posições de direitos fundamentais conflituantes no seu funciona­mento recíproco e de as limitar de tal forma que possam ser, tanto quanto possível, eficazes para todos os intervenientes.”209

Não obstante, a saída aqui sugerida poderia deparar com o obs­táculo do imperativo de tratamento igual de filhos nascidos dentro e fora do casamento, segundo o artigo 6.°, n.° 5 da LF. Mas a aplica­ção desta disposição poderá ser afastada por meio de uma redução teleológica, já que não é adequada a esta problemática específica da inseminação heteróloga. Ainda assim, esbarramos aqui com o limite das possibilidades da constituição judicial autônoma do Direito, de

209 Assim BVerfGE, vol. 89, pp. 214,232; BVerfG, NJW, 1988, pp. 1475,1476.

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tal forma que se toma necessária uma intervenção do legislador. É certo que a realização de imperativos de tutela integra uma das funções genuínas da jurisprudência, e que pode, por conseguinte, ocorrer, não apenas, por exemplo, no quadro da interpretação, mas também por meio do preenchimento de lacunas210. Mas o afas­tamento da aplicação dos preceitos sobre alimentos e do direito sucessório iria bem para além de um tal preenchimento, já que seria mais do que uma mera redução teleológica. No sentido da necessi­dade de uma decisão legislativa deporá também, de resto, o prin­cípio da reserva de lei, no sentido da teoria da essencialidade211. Nomeadamente, a problemática da inseminação heteróloga cons­titui, por um lado, uma questão de elementar relevância, em cuja solução se trata da ponderação entre valores ético-jurídicos funda­mentais. E, por outro lado, não existe sobre isto ainda qualquer verdadeira decisão do Parlamento. Pois considerando a novidade e a originalidade desta problemática, a aplicação dos preceitos do BGB sobre filhos nascidos fora do casamento não representa mais do que uma subsunção apenas aparentemente lógica, e, no que toca à pretensão de informação, falta inteiramente um fundamento legal. Na perspectiva jurídico-constitucional, não é, pois, satisfatório, também sob este aspecto, combinar simplesmente as regras sobre alimentos e o direito sucessório para filhos nascidos fora do casa­mento com a pretensão dç informação, e aceitar como conseqüência- talvez até desejada no plano de política legislativa - que o dador de esperma fique, por esta via exposto, a um risco jurídico dra­mático212. Isto vale tanto mais quanto a concretização desse risco depende tipicamente de uma série de acasos puramente objectivos, e, além disso, os intervenientes seriam verdadeiramente levados a desenvolver estratégias de evitação e de fraude.

210 Cfr. por exemplo Stem, ob. cit., §69, IV, 6, c; Isensee, ob. cit., §111, n.° de margem 156.

211 Fundamental BVerfGE, vol. 49„ pp. 89, 124 ss.212 Assim, porém, a tendência de R. Zimmermann, FamRZ, 1981, p. 935,

ainda que não de uma perspectiva jurídico-constitucional, e antes de política legislativa.

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Em termos processuais, a intervenção do legislador pode, de todo o modo, conseguir-se através da apresentação de uma queixa constitucional pela parte que perdeu o processo civil, e pela conse­qüente suspensão do processo pelo Tribunal Constitucional Federal até uma decisão do legislador. Também a via do controlo normativo, nos termos artigo 100.° da LF, parece poder ser percorrida. Esta não é problemática se o tribunal vir a pretensão de informação como existente já de lege lata, mas, por causa das conseqüências suces­sórias e quanto a alimentos, a considerar como um excesso incons­titucional. Se, inversamente, considerar a pretensão de informação, no que toca a estas conseqüências, como incompatível com o direito vigente, e se vir na sua recusa também uma violação da “proibição da insuficiência”, estará a censurar, desta forma, um défice de pro­tecção legislativo, ao qual, é certo, o artigo 100.° da LF não se ade- qua segundo a sua letra, mas deveria, pelo seu sentido, ser também aplicado213.

VI. Elementos para uma determinação dogmática da função de imperativo de tutela e da proibição de insuficiência no direito privado

Se voltarmos a olhar para as considerações tecidas no último capítulo sobre a função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela e sobre a proibição de insuficiência, seremos conduzidos a generalizar alguns pensamentos e, desta forma, a empreender a tenta­tiva de dar um contributo para a determinação dogmática - que ainda se encontra nos seus inícios - deste novo instrumentário jurídico.

213 Muito controverso; a posição contrária é ainda a opinião dominante. Cfr. por exemplo, Maunz/Schmidt-Bleibtreu/Klein/Ulsamer, BVerfGG, 1998, §80, n.° de margem 27; Schenke, VerwArch, vol. 82 (1991), pp. 319 e ss; a opi­nião contrária, preferível, está, porém, claramente a ganhar terreno - cfr., por exemplo, Berkemann, EuGRZ, 1985, pp. 137 e ss; Kloepfer, Festschrift für Lerche, 1993, p. 768, com mais indicações.

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1. A distinção entre o “se” e o “como” da protecção

Convém aqui distinguir, antes de mais, entre duas questões: em primeiro lugar, a de saber se um direito fundamental contém de todo um imperativo de protecção contra a particular ofensa em causa; e, em segundo lugar, em caso afirmativo, a questão de saber como se deverá configurar tal protecção. Esta distinção é, de facto, ele­mentar, como logo se deixa ver se a aplicarmos à problemática da interrupção da gravidez: há aqui, antes de mais, que esclarecer se resulta do artigo 2.°, n.° 2, da LF, um qualquer dever do Estado de protecção da vida antes do nascimento, e, depois, que resolver a questão, bem mais difícil, de saber de que modo o Estado deve cumprir tal dever de protecção - em especial, se o deve fazer com os instrumentos do direito penal ou apenas com os do direito social e/ou do direitoprivado214.

Também no direito privado vale, em princípio, esta bipartição. É evidente que logo a questão da existência de um dever de pro­tecção pode, para um problema em particular, ter de ser respondida em sentido negativo - e isto logo liminarmente, e não apenas com base numa ponderação das circunstâncias do caso concreto. É o que procurei demonstrar supra (V, 3), à luz do exemplo da decisão sobre os cartazes de propaganda eleitoral: uma proposição jurídica pela qual o locador tem de tolerar a colocação, pelo locatário, de cartazes de propaganda eleitoral na parede exterior do prédio locado nao pode certamente ser aceite em geral. Por outro lado, com o reconhe­cimento de um dever de protecção não fica logo assente que este encontra sempre aplicação, independentemente das particularidades do caso concreto. Assim, é certo que do direito à liberdade de in­formação resulta, nos termos do artigo 5.°, n.° 1, primeira frase, da LF, que em princípio é imposta ao locador a obrigação de tolerar a instalação de uma antena parabólica, nos casos em que, por falta de outras possibilidades bastantes de recepção, o inquilino não tem

214 Esta bipartição marca também, de forma clara, a decisão do Tribunal Constitucional Federal sobre esta problemática (BVerfGE, vol. 88, p. 203).

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outra alternativa. Mas, ainda assim, pode bem acontecer que esta obrigação mereça ser negada no caso concreto, se, por exemplo, em virtude de circunstâncias especiais, for incompatível com interesses do locador dignos de protecção (cfr. supra, V, 3, c). Da mesma forma, é certo que do direito geral de personalidade de um filho nascido fora do casamento decorre, de acordo com o artigo 2.°, n.° 1, conjugado com os artigos 1.°, n.° 1, 14.°, n.° 1 e 6.°, n.° 5, todos da LF, que ele tem, em princípio, direito a obter da mãe infor­mações sobre a pessoa do seu pai biológico. Mas tal direito cede, em certas circunstâncias, perante o direito de personalidade e os interes­ses dignos de protecção contrapostos da mãe (cfr. supra, V, 4, a).

Também no plano das conseqüências jurídicas, é possível que existam necessidades e margens de concretização. A título de exem­plo, pode retirar-se do artigo 11.° da LF a necessidade de, devido ao seu carácter pessoal, proteger a liberdade de deslocação perante restrições contratuais. Mas isso não significa, de modo algum, que um contrato sobre a mudança de domicílio seja, de acordo com o § 138 do BGB, nulo, e antes conduz simplesmente, por analogia com o § 888, n.° 2, do Código de Processo Civil, a que, de acordo com a posição correcta, a correspondente obrigação não possa ser feita valer pela via da execução forçada215.

2. Condições para o reconhecimento de um imperativo de tutela

Diversamente da proibição de intervenção, um imperativo de tutela pressupõe uma fundamentação específica. Isto foi já ampla­mente exposto supra (IV, 3, c), e não há que o repetir aqui. Antes se trata, agora, de desenvolver, de modo mais detalhado, os pressu­postos para o reconhecimento de um imperativo de tutela.

215 Cfr., mais em detalhe, Canaris, JuS, 1989, p. 164, bem como as referên­cias supra, nota 143.

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a) A aplicabilidade da hipótese normativa de um direito fundamental

É evidente que, à partida, um imperativo de tutela só é de considerar se o correspondente direito fundamental for aplicável na sua hipótese normativa. Se, por exemplo, se partir do pressuposto de que as meras chances de ganho não estão incluídas no âmbito de aplicação do artigo 14.° da LF, fica, desde logo por esta razão, afastado um imperativo jurídico-constitucional para sua tutela.

Todavia, esta evidência nem sempre constitui uma trivialidade. É o que revela, v. gr., o exemplo, discutido supra (IV, 3), de “inver­são” do caso Lüth, no qual, além do mais, estava em causa saber se a rejeição da acção negatória do realizador Veit Harlan con­tra Lüth, com o fim de cessação dos boicotes, violaria o direito fun­damental de Lüth reconhecido pelo artigo 5.°, n.° 3, da LF. Cor­rectamente, tal deveria ser negado logo no plano da tipicidade ou hipótese normativa, de tal modo que, logo por este motivo, não era, à partida, de considerar um imperativo jurídico-constitucional de protecção de Veit Harlan contra o boicote por Lüth. Numa sociedade livre, tal como a constituída pela LF e pelo direito privado vigente, a arte deve afirmar-se e impor-se por si mesma, designadamente, perante afirmações críticas de particulares. E isto justamente por ser “livre” e por não constituir qualquer “arte do Estado”, não sendo, portanto, o apelo à protecção do Estado perante a crítica digno da sua própria natureza. Por conseguinte, a correspondente liberdade não é, de todo, sequer “tocada” - para usarmos aqui uma expressão corrente no direito constitucional, mas metodologicamente não isenta de críticas - , logo na sua hipótese normativa, se um particular, apenas mediante o uso de palavras (portanto não empregando pres­são econômica, como no caso Blinkfüer216) e tão-somente na esfera do livre debate das ideias (e não no âmbito da concorrência), lutar contra ela. Isto vale mesmo se aquele particular chegar a fazer um apelo ao boicote, já que - de acordo com a posição correcta, embora

216 Cfr., sobre isto, supra, V 3 b.

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não isenta de controvérsia - também este apelo se acaba por manter no quadro de uma mera expressão de opiniões217. Acrescente-se, porém, para, cautelarmente, prevenir falsas frentes argumentativas, que se trata aqui, simplesmente, de um problema adicional e mar­ginal, que não é decisivo neste contexto. Pois é certo que o que se pretende demonstrar é, apenas, que faz sentido, do ponto de vista dogmático, que, ainda antes da questão da existência de um impe­rativo de tutela, se comprove a aplicabilidade da hipótese normativa do direito fundamental em causa. E que a mera crítica artística exer­cida por sujeitos de direito privado não cai no âmbito de aplicação do artigo 5.°, n.° 3, da LF, será, com certeza, também aceite por quem adoptar outra opinião quanto àquele apelo ao boicote que vá, de forma relevante, para além de uma crítica.

Não há, pois, que sopesar, por exemplo, a liberdade de opinião de Lüth contra a liberdade artística de Veit Harlan, já que o artigo5.°, n.° 3, da LF, não é aqui, à partida, aplicável, e nem sequer se chega, portanto, a uma colisão entre ambos os direitos fundamen­tais. Este ponto de vista é dogmática e metodologicamente rele­vante, pois pode contribuir para evitar uma fuga demasiado apres­sada para a ponderação, e para contrariar a, cada vez mais crescente, hipertrofia ponderativa218. Além disso, a problemática tem também particular interesse dogmático, na medida em que constitui um exemplo da possibilidade esboçada supra, II, 3, no sentido de que o campo de aplicação da hipótese de um direito fundamental pode ser determinado diversamente - isto é, mais restritivamente - nas rela­ções entre os cidadãos do que nas relações entre o cidadão e o Es­tado219. Designadamente, se algum órgão estatal viesse (enquanto tal) exercer crítica, ou mesmo a apelar ao boicote, de um filme,

217 Cfr. BVerfGE, vol. 7, pp. 198, 210, e, sobre isto, mais amplamente, Canaris JuS, 1989, p. 167, com indicações sobre a posição contrária.

218 Cfr., a este respeito, a justificada crítica de Leisner, NJW, 1997, pp. 636 e ss.; fundamental, idem, Der Abwágungsstaat, 1997.

219 Correctamente, sobre isto, em especial considerando o artigo 5.°, n.° 3, da LF, Lerche, Festschr. Für Odersky, 7996, p. 217, nota 7.

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o artigo 5.°, n.° 3, da LF seria efectivamente “tocado” - e isto, logo na sua função como direito de defesa e proibição de intervenção220.

b) A necessidade de protecção e seus indicadores: ilicitude, colocação em perigo e dependência

Só após uma resposta afirmativa à questão da aplicabilidade da hipótese normativa de um direito fundamental se pode tratar verda­deiramente da pergunta em tomo da existência de um dever de pro­tecção. A sua existência pode aqui ser também negada, em termos gerais, mesmo que um direito fundamental tenha sido “tocado” na sua hipótese - o que, mais uma vez, evidencia a pertinência da dis­tinção entre ambos os problemas. Assim, por exemplo, dificilmente se pode negar que. a liberdade de opinião (artigo 5.°, n.° 1, da LF) é “tocada” quando o locador proíbe ao inquilino (invocando o § 1004 do BGB) que utilize a parede exterior do prédio para fins de propaganda eleitoral, e, ainda assim - como mostrámos supra, V,3, a não pode retirar-se da Constituição um comando que imponha à ordem jurídico-privada a abertura de uma tal possibilidade ao in­quilino. Como razão essencial para esta conclusão, verifica-se que, neste caso, não se encontra, desde logo, qualquer apoio para a acei­tação de um dever de protecção de um direito fundamental, já que o inquilino disporá de suficientes possibilidades alternativas para fazer propaganda eleitoral.

Entra aqui em cena um critério elementar para o reconhe­cimento de um dever de protecção: deve existir uma necessidade ponderosa de protecção do direito fundamental em causa. Trata-se, em primeira linha, dos fundamentos fácticos do bem assegurado pelo direito fundamental, e não da sua dimensão jurídica. É que, nesta, apenas o Estado pode em princípio intervir, por meio de actos

220 Contrariamente a Isensee, HbdStR, vol. V, 1992, § 111, n.° de margem 93, dificilmente se poderá, pois, sustentar sem restrições a posição segundo a qual “o dever de protecção corresponde, no seu alcance temático, ao direito de defesa”.

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de autoridade como leis, actos administrativos e similares, ao passo que tal intervenção, em regra - isto é, abstraindo de relativamente poucas excepções, como os casos de direitos de denúncia contratual ou de poderes de direcção, os casos de disposições eficazes de uma pessoa sem legitimidade, etc. nem sequer é possível para os sujei­tos de direito privado, por faltar uma correspondente competência. Para os contratos a solução não é distinta, já que nestes não existe, sob o ponto de vista jurídico, uma hetero-determinação, mas antes uma auto-restrição. É, portanto, bem consistente que o Tribunal Constitucional Federal, na sua decisão sobre as fianças, tenha enten­dido a autonomia privada - de cuja protecção se tratava no caso —, não no sentido formal, mas sim material, orientando-se para o exame dos pressupostos fácticos do seu exercício221. O objectivo principal da função de imperativo de tutela no âmbito das relações entre particulares é, por conseguinte, o de proteger os bens jurídico- -fundamentais perante intervenções fácticas por parte de outros sujeitos de direito privado, e de assegurar a sua efectiva capacidade funcional

aá) Uma necessidade de protecção perante intervenções pode ser reconhecida sobretudo se estas forem ilícitas222. Este juízo pode resultar da própria Constituição, sendo um exemplo disso mesmo o caso Blinkfüer, pois a utilização de pressão econômica no debate das opiniões - portanto, o meio empregue223 - não pode, realmente, ser aceite logo por razões constitucionais, como demonstrei supra, V, 3, b. O mesmo vale também, com referência à genérica proibição da

221 Cfr. mais detidamente, supra, IV, 3, e aa, in fine, próximo da nota 146.222 Cfr., também, Isensee, ob. cit., § 111, n.° de margem 99, o qual, porém,

provavelmente enfatiza demasiado este critério; cfr., sobre isto, a seguir no texto; sobre o significado da ilicitude para o dever de proteção v. também, por exemplo, Hermes, Das Grundrecht auf Schutz von Leben und Gesundheit, 1987, pp. 65 e ss.; Hesse, Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, 20a ed., 1995, n.° de margem 350.

223 Apontar para a inadmissibilidade do meio é, consabidamente, uma antiga e consagrada forma de argumentar na averiguação da ilicitude.

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violência, no âmbito de intervenções físicas na vida, na saúde, na liberdade de circulação e na propriedade real224.

Diversa é, porém, a situação quanto à protecção jurídico-pri- vada da personalidade. Aqui, apenas poderá dizer-se que a configu­ração desta protecção, segundo a estreita concepção originariamente subjacente ao Código Civil alemão, acaba, no seu conjunto, por ficar aquém do nível mínimo de protecção constitucionalmente imposto, ofendendo, portanto, a proibição de insuficiência, por não dar conta, de forma minimamente eficiente, nem da dignidade constitucional do direito geral de personalidade garantido pelo artigo 2.°, n.° 1, em conjugação com o artigo 1.°, n.° 1, ambos da LF, nem do enorme incremento da sua colocação em perigo, pelo desenvolvimento da técnica, da economia e da sociedade225. A lacuna de protecção enquanto tal, que existia aqui no plano do direito ordinário (antes do seu desenvolvimento pela doutrina e pela jurisprudência), deve, pois, ser qualificada como inconstitucional. Pelo contrário, dificil­mente pode aqui ser decisiva a questão de saber se também as diversas ofensas à personalidade - como, por exemplo, a publicação de correspondência de um advogado como carta de leitor, ou, mesmo, a utilização de uma fotografia com fins publicitários, sem a autorização do retratado226 - são reprováveis justamente por ra­zões constitucionais. Decisivo é, antes, o défice de protecção na sua globalidade, podendo, quando muito, exigir-se, aqui, que o conjunto

224 Correcto na abordagem, Isensee, ob. cit., § 111, n.° de margem 98. Em todo o caso, a questão, extremamente difícil, de saber quando é que o com­portamento de um sujeito de direito privado em relação a outro particular pode ser considerado ilícito sob um ponto de vista constitucionalmente relevante, e, por­tanto, hierarquicamente prevalente em relação à legislação, continua, até hoje, quase inteiramente por esclarecer. Um aprofundamento deste problema não é possível no âmbito desta investigação; cfr., contudo, ainda assim, as indicações supra, notas 102 e 108.

225 Cfr., mais em detalhe, Larenz/Canaris, Schuldrecht 11/2, 13a ed., 1994, § 8 0 ,1, 2 e 3.

226 'Assim, nos casos examinados nas duas decisões de referência do Su­premo Tribunal Federal, in BGHZ, vol. 13, p. 334 ( “Schachtbrief') e BGHZ, vol. 26, p. 349 ( “Herrenreiter”).

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das intervenções que, por sua causa, ficam sem qualquer sanção, também integre algumas cujo juízo de desvalor pode ser efectuado logo no plano constitucional. Para além disto, porém, o juízo de ilicitude é aqui deixado, em primeira linha, ao direito ordinário, e não se adequa, por isso, como elemento para a fundamentação de um dever jurídico-constitucional de protecção227. Em seu lugar, a exigência da efectividade da protecção dos direitos fundamentais é, neste ponto, de importância central.

bb) Algo semelhante vale para as ameaças a bens protegidos por direitos fundamentais228. Aquelas, mesmo que se refiram a bens tão elementares e de hierarquia superior como a vida e a saúde, não podem, em princípio229, ser colocadas sem mais no mesmo patamar das ofensas230, pois falha, em relação a elas, a argumentação relativa à proibição do uso da força. Por um lado, a mera criação de uma fonte de riscos não é, em princípio, de qualificar como emprego da força física. Por outro lado, também não pode aceitar-se que o cidadão se pudesse “verdadeiramente” defender sempre com a força física, de todas as ameaças por parte de outros cidadãos, pois entraria, logo por esta via, pelo seu lado, em conflito com a proi­bição do uso da força, justamente pelo facto de as ameaças não poderem, em si mesmas, ser equiparadas ao uso da força - de tal sorte que o cidadão não estaria simplesmente utilizando uma contra- força, mas antes uma força primária.

227 Era sentido diverso, Isensee, ob. cit, § 111, n.° de margem 99, segundo cuja posição “apenas a intervenção ilícita, mais precisamente, a intervenção incompatível com a Constituição é relevante em termos de tipicidade”.

228 Cfr., sobre a relevância deste critério, também Isensee, ob. cit., §111, n.° de margem 106; Hesse, ob. cit., n.° de margem 350; Stem, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, vol. III/l, 1988, pp. 740 e ss.; Dietlein, Die Lehre von den grundrechtlichen Schutzpflichten, 1992, pp. 113 e s.

229 Para excepções, cfr. BVerfGE, vol. 53, pp. 30 e 38.230 Na perspectiva da dogmática do direito civil verifica-se aqui um nítido

paralelismo com a distinção entre intervenções directas e lesões indirectas, da responsabilidade civil extracontratual.

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Por outro lado, a protecção dos direitos fundamentais ficaria incompleta em domínios essenciais, se não pudesse ser estendida a ameaças relevantes. Também aqui, trata-se novamente da exi­gência de eficiência prática, e, também aqui, em princípio, deve abrir-se de novo uma perspectiva amplamente generalizadora: a or­dem jurídica tem de facultar instrumentos tais que, vistos na sua globalidade e para situações de perigo típicas, garantam uma pro­tecção eficiente dos bens jurídico-fundamentais, sem que, concomi- tantemente, a criação de cada fonte de perigo individual deva ser tratada juridico-constitucionalmente sob o ponto de vista da proibi­ção de insuficiência.

É sobretudo através dos chamados deveres no tráfico231, cuja função principal reside justamente na protecção contra situações de perigo, que o vigente direito da responsabilidade civil extra-contra- tual cumpre esta tarefa.232 Complementarmente, entram em cena a responsabilidade pelo risco e, em parte, também a responsabilidade por actos lícitos. Uma vez que, como é sabido, estas se não baseiam num juízo de ilicitude da conduta, depara-se aqui a questão de saber se pode ser juridico-constitucionalmente imperativa uma protecção do cidadão também contra ameaças, por outros cidadãos, que não são ilícitas, ou se o Estado apenas pode autorizar a assunção de cer­tos riscos se criar simultaneamente, em compensação, uma preten­são ressarcitória que não depende da ilicitude da conduta - nem, portanto, e por maioria de razão, da culpa do agente. Isto não pode, de modo algum, ser liminarmente negado, e verifica-se portanto, uma vez mais (mesmo se o ponto não pode ser aqui aprofundado),

231 Cfr., sobre estes, mais em pormenor, Larenz/Canaris, ob. cit., § 76 III, com amplas indicações.

232 O desenvolvimento destes deveres no tráfico recebe assim, por inter­médio da função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela, extraída dos artigos 2.°, n.° 2 e 14, ambos da LF, uma legitimação jurídico-constitucional, sendo certo, porém, que esta lhes não é indispensável, já que, contrariamente a críticas insistentes, os deveres no tráfico estão logo - e sempre estiveram, desde o início - suficientemente legitimados no plano do direito civil; cfr. Larenz/ /Canaris, ob. cit.,§ 76, III, 2, a.

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que a problemática da função dos direitos fundamentais como impe­rativos de tutela não pode ser integralmente apreendida com a cate­goria da ilicitude.

cc) Isto revela-se de forma particularmente evidente nos casos em que são impostos deveres, aos sujeitos de direito privado, para possibilitar - no plano fáctico - o exercício efectivo do direito fun­damental de outro particular. É paradigmática a obrigação do pro­prietário de um prédio arrendado de tolerar a colocação, por parte do inquilino, de uma antena parabólica, bem como a obrigação de uma mãe de fornecer ao seu filho informações sobre a pessoa do pai biológico. Em ambos os casos, o critério da dependência do titular do direito fundamental, em relação ao comportamento do outro su­jeito de direito privado, desempenha um papel central: se o proprie­tário não aceita a instalação da antena parabólica, o inquilino não pode facticamente exercer, de forma eficiente, o seu direito à liber­dade de informação, nos termos do artigo 5.°, n.° 1, primeira frase, da LF (cfr. supra V, 3, c); e se a mãe não indicar ao filho o nome do seu pai biológico, aquele não poderá exercer, nem o direito ao conhecimento da pessoa de seu progenitor, garantido pelo direito geral de personalidade nos termos do artigo 2.°, n.° 1, conjugado com o artigo 1.°, n.° 1, ambos da LF, nem eventuais pretensões eco­nômicas contra ele, protegidas certamente pelo artigo 14 da LF (cfr. supra V, 4, a).

Diversamente, o critério da ilicitude não nos leva aqui mais longe, já que se teria, em primeiro lugar, de fundamentar a ilicitude da recusa da tolerância ou da informação, de tal sorte que, com o recurso a essa categoria, se correria o risco de nos enredarmos num círculo vicioso. A circunstância de, para afirmar a existência de um imperativo de tutela, deverem ser considerados, além da ideia de de­pendência, outros pontos de vista como, sobretudo, a configuração jurídico-privada do sector econômico da habitação ou a “causação” da necessidade de protecção pela mãe, (cfr. supra, loc. cit.), em nada altera o que se disse; pois tais critérios assumem aqui, simples­mente, a função do elemento de imputação - o qual não é, em prin­

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cípio, problemático no caso de ofensas e de ameaças - , mas não se prestam a fundamentar um juízo de ilicitude. Obviamente, o facto de, por sua vez, a violação da obrigação de tolerância ou de prestar as informações ser também ilícita, nada tem a ver com a presente problemática, pois não diz respeito à fundamentação, mas antes às conseqüências jurídicas do dever de protecção.

c) O funcionamento conjunto, em termos “móveis ”, dos diver­sos critérios

aa) E claro que um dever de protecção de direitos fundamen­tais não se deixa, em regra, fundamentar recorrendo exclusivamente aos critérios da ofensa ilícita, do perigo e da dependência, mas necessita, antes, de ser adicionalmente apoiado em outros pontos de vista. Neste aspecto, são de essencial significado, em primeira linha, a “natureza e a hierarquia do bem jurídico constitucionalmente pro­tegido”233. Daqui não resulta logo, contudo, que a problemática possa ser resolvida apenas mediante o recurso a uma ordem hie­rárquica ou a uma correspondente hierarquização rígida dos valores. Antes - e como costuma ocorrer com as argumentações baseadas num critério de hierarquia - há que distinguir dois passos234: a consideração da relação hierárquica abstracta, por um lado, e o peso concreto dos bens e interesses envolvidos, por outro lado. Assim, a vida e a saúde ocupam, sem dúvida, uma posição superior, em relação à liberdade de acção e à propriedade, e, ainda assim, uma fraca ameaça à vida pode, em determinadas circunstâncias, ter de ceder, em face de uma massiva limitação da liberdade pessoal e da propriedade - como logo demonstra de modo trivial, por exemplo,

233 Assim BVerfGE, vol. 49, pp. -89, 142; cfr., ainda, BVerfGE, vol. 39, pp. 1, 42. '

234 Isto não é considerado por Dietlein, ob. cit., pp. 86 e ss., na sua crítica à consideração do critério hierárquico.

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a permissão do trânsito de veículos. Por outro lado, nem por isso a posição hierárquica do bem protegido é irrelevante. Pois, logica­mente, um dever de protecção será tanto mais de reconhecer quanto mais elevada for a posição hierárquica do bem tutelado, de tal forma que, no caso de uma ameaça à vida e à saúde, tal dever encontra uma fundamentação mais fácil do que tratando-se de uma ameaça contra a liberdade ou a propriedade.

A relação hierárquica está aqui visivelmente ligada, de forma íntima, à natureza do respectivo bem jurídico: a vida situa-se no plano mais elevado por constituir o substrato físico de toda a titu­laridade de direitos fundamentais; a saúde e a liberdade de cir­culação têm, em geral, prevalência em face da liberdade geral de acção, pois são, pela “natureza das coisas”, bastante mais sensíveis a intervenções do que esta última, a qual, em virtude da sua previsão normativa extremamente ampla, não só comporta restrições como as toma mais frequentemente necessárias, encontrando-se, além disso- diversamente daqueles outros bens sujeita a uma interacção recíproca, e, com isso, carecida de limitação. De resto, porém, não se trata aqui da identificação - extremamente difícil nos seus deta­lhes - de uma ordem hierárquica como tal, mas, simplesmente, da verificação de que é, de todo, possível estabelecer regras abstractas de precedência, e de que estas podem assumir relevância na funda­mentação argumentativa de deveres de protecção.

No quadro das considerações anteriores, já se tomaram visíveis dois outros critérios essenciais: o peso da intervenção e a intensi­dade da ameaça. Dificilmente podem, porém, ser feitas afirmações gerais a este respeito. Antes - mas ainda assim é possível afirmar, apenas, que um dever de protecção será tanto mais de considerar quanto mais grave for a intervenção que se ameaça e quanto maior for o perigo. É aqui relevante, além disso, a possibilidade de auto- -protecção do titular do direito fundamental atingido, já que o dever de protecção carece - como mostrámos235 - de uma especial legiti­

235 Cfr. supra, IV, 3, c, bem como d, in fine.

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mação, não havendo, portanto, justificação constitucional para uma actuação protectora por parte da ordem jurídica quando cada um se pode ajudar a si mesmo.

bb) Ao lado dos critérios da ilicitude da intervenção no bem jurídico fundamental, da ameaça de perigo e da dependência do titu­lar da colaboração no seu exercício de outros sujeitos de direito pri­vado, aparecem, assim, como geralmente relevantes, alguns outros poucos pontos de vista valorativos, como é o caso, sobretudo, da natureza e da hierarquia do direito fundamental atingido, do peso da intervenção e da intensidade da ameaça, da possibilidade do titular de exercer uma eficiente auto-defesa, bem como do peso de inte­resses e direitos fundamentais contrapostos236. Estes critérios e pontos de vista estão aqui - à semelhança dos princípios - abertos a uma graduação e ponderação, de tal forma que se não trata de cri­térios para soluções segundo o esquema “sim/não”, ou mesmo “ou/ou”, mas antes de proposições comparativas237, com a estrutura “quanto mais e quanto mais forte, tanto mais”: quanto maior o nível do direito fundamental afectado, quanto mais severa a intervenção que se ameaça, quanto mais intenso o perigo, quanto menores as possibilidades do seu titular para uma eficiente auto-protecção, e quanto menor o peso dos direitos fundamentais e interesses contra­postos, tanto mais será de reconhecer um dever jurídico-consti- tucional de protecção. Chega-se, assim - o que, do ponto de vista da dogmática civilística, é tudo menos uma surpresa - , a um fun­cionamento conjunto dos critérios, ao modo de um “sistema móvel”, no sentido de Wilburg238. É evidente, porém, que, desta forma, se

236 Cfr. já Canaris, JuS, 1989, p. 163; em sentido semelhante BVerfGE, vol. 49, pp. 89, 142; Isensee, ob. cit.; § 111, n.° de margem 90, em (c), e n.° de margem141 e s.

237 Fundamental, sobre este ponto, .Otte, Jahrbuch Jur Rechtssoziologie und Rechtstheoríe, vol. II, 1972, pp. 301 e ss.

238 Pioneiro, sobre isto, Wilburg, Entwicklung eines beweglichen Systems im bürgerlichen Recht, 1950.

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diz, quando muito, apenas a penúltima palavra, e que tem, ainda, de acrescentar-se o trabalho de filigrana específico de cada área, res­pectivamente para cada problema.

3. Função de imperativo de tutela e direito ordinário

As considerações antecedentes diziam essencialmente respeito à questão de saber se existe de todo um dever constitucional de pro­tecção. Conforme exposto supra, no n.° 1, são em regra necessárias considerações adicionais, para, se for o caso, esclarecer como tal dever de protecção é de concretizar.

a) A realização da função de imperativo de tutela com auxílio do direito ordinário

aa) Para tanto, o imperativo jurídico-constitucional de tutela carece, em princípio, da complementação pelo direito ordinário. Pois pertence fundamentalmente a este - e não ao direito consti­tucional - a tarefa de disponibilizar os instrumentos de protecção - que vão desde o direito penal, passando pelo direito administrativo, tributário e social, até ao direito privado - , já que, caso contrário, com tal tarefa acabaria, quer por se exigir demasiado, quer por se desnaturar a Constituição. Aqui se reflecte, pois, de novo, a men­cionada (supra IV, 3, c) diferença teorético-estrutural entre a função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela e como proibições de intervenção: enquanto na última se trata simplesmente de controlar segundo os direitos fundamentais uma disciplina já existente - isto é, uma norma, um acto da administração ou similar no caso da função de imperativos de tutela está em causa justamente o contrário, isto é, a ausência de uma tal disciplina - ou seja, uma omissão estatal em contraposição a uma intervenção239 - , com a

239 Sobre a recusa da “teoria da convergência estatista”, também aqui mais uma vez relevante, cfr. supra, IV, 3, b.

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conseqüência de que existem diversas possibilidades alternativas de regime a considerar, as quais se situam, em princípio, entre os dois extremos de uma total negação da protecção e da necessidade de aprovação de normas penais.

Sobre a função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela, poder-se-ia, portanto, dizer que ela é realizada “por inter­médio”, ou pelo menos “no meio”, do direito infra-constitucional, e que, por essa razão, é mediatizada por este240. No entanto, uma tal terminologia não é aconselhável. É certo que ela não é aqui tão destituída de sentido como relativamente à função de proibição de intervenções241, mas, ainda assim, é igualmente susceptível de mal entendidos. Designadamente, tal terminologia poderia esconder que a força dirigente decorre, tal como antes, da Constituição enquanto lex superior, e que, por conseguinte, o direito infra-constitucional tem de ser desefivolvido quando não satisfaz os imperativos de pro­tecção de direitos fundamentais - se necessário, até mesmo por um acto do legislador, nas hipóteses em que a realização do imperativo de tutela pelos órgãos jurisdicionais ultrapassaria os limites de admissibilidade de um desenvolvimento judicial do direito.

bb) Por outro lado, é, no entanto, efectivamente correcto que o direito infra-constitucional pode, em parte substancial, ser apreen­dido como realização da função dos direitos fundamentais de im­perativos de tutela242. Isto vale, em especial, para a responsabilidade civil extracontratual243, para a responsabilidade pelo risco e para as

240 Assim, efectivamente, por exemplo, Isensee, Das Grundrecht auf Sicherheit, 1983, p.44; Stem, ob. cit., § 69, IV, 6, c.

241 Cfr. supra, II 2 a.242 Lerche, Festschr. für Odersky, 1996, p. 228, observa correctamente:

“em regra, o mandato para protecção de direitos fundamentais é satisfeito pela ordem jurídica - e, em especial, através da salvaguarda de posições jurídicas fundamentais relevantes dos cidadãos contra ingerências por parte de terceiros- logo por nieio da ordem jurídica infra-constitucional - se for o caso disso, equilibrando as posições de ambas as partes”; em sentido semelhante, por exemplo, Grimm, Die Zukunft der Verfassung, 1991, p. 212.

243 Cfr. também BVerfGE, vol. 49, pp. 304, 319; Isensee, ob. cit., § 111,

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pretensões negatórias, as quais, do ponto de vista do direito consti­tucional, transpõem deveres de protecção de direitos fundamentais para o plano do direito privado244. Também o direito dos contratos conhece normas que realizam esta função. Assim, por exemplo, a Lei de Protecção Contra os Despedimentos é concebida como reali­zação do imperativo constitucional, resultante do artigo 12, da LF, de protecção dos trabalhadores contra uma injustificada perda do seu posto de trabalho245. A protecção da liberdade profissional, de acordo com o artigo 12, da LF, é servida, por exemplo, pelo § 624 do BGB - segundo o qual o prestador de serviços pode, a qualquer tempo, denunciar o seu contrato, uma vez decorridos cinco anos -, pelos §§ 74 e ss. e 90a, todos do Código Comercial alemão - que exige para proibições de concorrência pós-contratuais a forma es­crita e uma compensação financeira -, bem como pelo § 888, n.° 2, do Código de Processo Civil, segundo o qual, no caso de condena­ção à prestação de um serviço, a execução forçada não pode ocorrer por meio da imposição de uma sanção pecuniária compulsória ou da prisão do executado246.

Os últimos exemplos demonstram, de forma particularmente clara, que nem todo e qualquer regime infra-constitucional que serve para a realização dos direitos fundamentais é também, logo por esta razão, constitucionalmente imposto. À disposição do direito infra- constitucional existe, antes, um amplo espectro de diferentes instru­

n.° de margem 128; Larenz/Canaris, ob. cit. § 7 5 ,1, 1, e nota 1; von Bar, Gemei- neuropâisches Deliktsrecht, vol. I, 1996, n.°s de margem 410 e 556 e ss;

244 É evidente que se não nega, com o que se diz no texto, que estes regimes também possuem legitimidade e dignidade independentemente dos deveres de protecção jurídico-constitucionais, e que, em perspectiva histórica, antecedem a Lei Fundamental; a perspectiva especificamente jurídico-constitucional é, na verdade, desconsiderada por Diederichsen, Jura 1997, p. 60, nota 29, quando critica uma formulação de Isensee (ob. cit. § 111, nota 128) quase idêntica à empregue aqui no texto, com fundamento em que esta, “perante o pano de fundo do efectivo desenvolvimento histórico, soa curiosamente conveniente”.

2*s Cfr. BVerfG, NJW, 1998, p. 1475, sob B, I, 1.246 Cfr., sobre o que se disse no texto, mais em detalhe, Canaris, AcP, vol.

184(1984), pp. 223 es.

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mentos, que apenas na sua globalidade e no seu funcionamento conjunto devem assegurar uma eficiente protecção dos direitos fun­damentais. Por conseguinte, seria incorrecto pensar que um preceito se encontra subtraído à disposição do legislador ordinário, de tal sorte que só pode ser modificado de acordo com os parâmetros do artigo 79.° da LF, apenas porque deve ser visto, da perspectiva do direito constitucional, como realização da função dos direitos funda­mentais como imperativos de tutela. Antes o legislador dispõe, em princípio, de amplas possibilidades para conformar o direito infra- constitucional, e, em especial, também para reduzir, ou, eventual­mente, até mesmo eliminar um padrão de protecção já alcançado, sem, com isso, descer aquém do nível mínimo de protecção consti­tucionalmente imposto, e, portanto, ofender a proibição de insufi­ciência. Isto decorre da “fraqueza” da proibição de insuficiência, já amplamente demonstrada {supra, IV, 3, c), bem como do, também já evidenciado {supra, IV, 2, b e c), obstáculo argumentativo, difícil de superar, na aceitação de um dever de protecção de direitos funda­mentais, assim como da liberdade de conformação do legislador, que, a seguir, será ainda abordada mais uma vez. Assim, o legislador poderia, por exemplo, reduzir, de modo não irrelevante, a protecção, pela responsabilidade extracontratual, da vida, da saúde e da pro­priedade, em favor da liberdade geral de acção, sem dessa forma estar a cometer uma violação da Constituição. É claro que o legis­lador também poderia substituir, em grande medida, a responsabi­lidade civil extracontratual e a responsabilidade civil pelo risco por uma solução do tipo de um seguro, desde esta solução fosse con­formada de forma a oferecer ao lesado uma protecção eficiente.

Por outro lado, existem, evidentemente, limites, para além dos quais existe uma violação da proibição de insuficiência. Tal violação seria, seguramente, de reconhecer, por exemplo, se o legislador tivesse a ideia - por certo bastante improvável - de suprimir, sem qualquer alternativa, as acções de tipo negatório; pois daqui resul­taria uma lacuna de protecção tão massiva, que, neste aspecto, não estaria satisfeita a exigência de uma realização eficiente da função de imperativo de tutela. Considerando o actual potencial de riscos da

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técnica, também uma supressão total da responsabilidade pelo risco e um retorno a um puro princípio da culpa iriam, com certeza, contra a função de imperativo de tutela decorrente do artigo 2.°, n.° 2, da LF.

b) A liberdade de conformação do legislador ordinário entre proibição de excesso e proibição de insuficiência e a rele­vância autônoma da proibição de insuficiência na concre­tização de um dever de protecção

aa) Segundo a correcta jurisprudência do Tribunal Constitucio­nal Federal, o legislador ordinário dispõe em princípio, na realização da função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela, de uma ampla margem de conformação247. Esta, por sua vez, também não é de tal modo reduzida a partir do outro lado - isto é, pela proibição de excesso - que as exigências deste último coincidam com as da proibição de insuficiência. Os defensores da posição contrária248 não consideram, nem o conteúdo da proibição de insuficiência, nem o modo de funcionamento da proibição de excesso. Designadamente, e tal como há pouco expliquei mais uma vez, o primeiro exige, ape­nas, que o direito infra-constitucional ofereça, no seu conjunto, uma protecção eficiente, mas deixa frequentemente diversas possibilidades de variação em aberto, quanto ao modo como esse direito deve ser especificamente conformado. E a proibição de excesso não limita, em princípio, o legislador na escolha dos seus objectivos e fins, os quais, segundo a jurisprudência constante do Tribunal Constitucional Fede­ral - num nível de raciocínio anterior ao controlo do excesso ape­nas devem ser controlados quanto a saber se são constitucionalmente

247 Cfr. supra, IV, 3, c, com indicações na nota 121, e V, 4, a.248 Cfr. Hain, DVBl, 1993, pp. 983 e ss.; Starck, JZ, 1993, p. 817; Unruh,

Zur Dogmatik der grundrechtlichen Schutzpflichten, 1996, pp. 85 e ss.; no essencial, também Erichsen, Jura, 1997, p. 88; contra esta posição, com razão, Dietlein, ZG, 1995, pp. 134 e ss.; não convincente, a réplica de Hain, ZG, 1996, pp. 75 e ss.

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“legítimos”249 ou se “não podem ser considerados jurídico-constitu­cionalmente censuráveis”250, e se, portanto, não contrariam a Consti­tuição251. Assim, é certo que não fica em aberto ao legislador a rea­lização de qualquer arbitrária finalidade252, mas, por outro lado, esta não tem, evidentemente, de ser imposta justamente pela Constituição. Não pode dizer-se, por conseguinte, que um regime que não é jurí- dico-constitucionalmente imposto para protecção de uma parte carece, por esta razão, de “necessidade”, no sentido da proibição de excesso, e que portanto, viola necessariamente os direitos fundamentais da outra parte253. Antes o legislador pode, em princípio, fixar-se a si mesmo o objectivo de alcançar um nível de protecção superior ao mínimo correspondente aos direitos fundamentais - como, por exem­plo, maior protecção da maternidade, dos trabalhadores ou dos in­quilinos do que a exigida pela Constituição. Neste caso, o parâmetro para a aferição da necessidade é, logicamente, este mesmo objectivo, e não apenas, por exemplo, a protecção mínima de direitos funda­mentais. Pode, mesmo, partir-se do pressuposto de que a realização de imperativos de tutela pelo direito ordinário - que pertence às tarefas elementares e “quotidianas” do legislador254 - em regra se não limita à concretização do mínimo de protecção jurídico-constitucionalmente exigido. Porque (e na medida em que) a ultrapassagem deste é jurí­

249 Assim, por exemplo, a formulação em BVerfGE, vol. 77, pp. 84, 106 e s.250 Assim, por exemplo, a formulação em BVerfGE, vol. 68, pp. 360, 370.251 Cfr., a este respeito, por exemplo Herzog, in Maunz/Dürig/Her-

zog/Scholz, 1980, artigo 20, VII, n.° de margem 51; Stem, ob. cit., vol. III/2, § 84, II, 2, a=p. 777; Bleckmann, Staatsrecht II, 4a ed., 1996, § 12, n.° de margem 114; Pieroth/Schlink, Grundrechte-Staatsrecht II, 13a ed., 1997, n.°s de margem 279 e s.; Dreier, GG-Komm., vol. I. 1996, nota preliminar, n.° 91.

252 Cfr., a este respeito, a “tipologia das competências legislativas quanto aos fins” desenvolvida por Grabitz, AõR, vol. 98 (1973), pp. 602 e ss.

253 Assim, contudo, Hain, DVBl, 1993, pp. 983 e s., que mistura (de modo não explícito) duas formas distintas da necessidade, porque não vê que ambas possuem um ponto de referência diverso; o mesmo erro é cometido por Erichsen, Jura, 1997, p. 88.

254 Cfr. a este respeito, também VI, 3, a, bb, supra, e a observação de Lerche citada na nota 241.

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dico-constitucionalmente legítima, o legislador pode prosseguir cor­respondentes fins sem, de modo algum, com isso se enredar nas malhas da proibição de excesso.

Para utilizar, a título de ilustração, o exemplo, recentemente referido, da protecção do inquilino: por ocasião da aprovação do § 564b, do BGB, o legislador podia ter estabelecido a si mesmo o objectivo de protecção do inquilino de tal forma que este não viesse, devido a uma denúncia sem especial motivo, a perder a sua moradia, e, com isso, o meio espacial onde vive, para além de ficar sujeito aos encargos de uma mudança. Portanto, o legislador podia ligar a de­núncia do contrato à exigência de um “interesse justificado” do senhorio, sem com isso afectar o direito de propriedade deste em violação da proibição de excesso, e sem violar o artigo 14, n.° 1, da LF255. Por outro lado, também se - tal como o Tribunal Constitu­cional Federal - incluirmos igualmente a posição do locatário no âmbito de protecção do artigo 14.° da LF256 (posição que não com­partilho, mas que aqui pressuponho apenas demonstrandi causa), ainda assim não é seriamente de considerar como constitucional­mente exigida a regra contida no § 564b, do BGB, na sua actual conformação - extremamente rígida e em alguns casos conducente a várias conseqüências contraditórias257. Diversamente, o legislador movimenta-se aqui no espaço “livre” entre a proibição do excesso e a proibição de insuficiência, e poderia, portanto, enfraquecer (e, em minha opinião, mesmo eliminar sem qualquer sucedâneo258) o § 564b, do BGB, sem, com isso, violar um dever de protecção de direitos fundamentais.

255 Cfr. BVerfGE, vol. 68, pp. 361, 370 e s.256 Assim BVerfGE, vol. 89, pp. 1,19 e ss.257 Fundamental, a este respeito, a crítica de H. Honsell, AcP, vol. 186

(1986), pp. 134 e ss., 159 e ss.258 O (eventual) dever de protecção do legislador é já suficientemente

satisfeito pela cláusula de rigidez do § 556a do BGB e pela proibição geral de abuso de direito, nos termos do § 242 do BGB.

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Ou um outro exemplo: o legislador que limita ao caso de negli­gência grosseira a responsabilidade de um perito pelas declarações prestadas no processo também não ofende a função de imperativo de tutela do artigo 2.°, n.° 2, da LF, e a proibição de insuficiência, se tal regra valer também para a privação da liberdade causada por erro do perito devido a negligência simples259. Mas, por outro lado, o legis­lador também não viola o artigo 2.°, n.° 1, da LF, em conjugação com a proibição de insuficiência, se mantiver aplicável às decla­rações do perito no processo a regra geral do § 823, n.° 1, do BGB, e se, portanto, fizer este responder por qualquer grau de negligência. Tudo visto, mantém-se, portanto, o resultado de que ao direito ordinário está, em princípio, aberto um espaço de liberdade de con­formação bastante amplo, entre a proibição de excesso e a proibição de insuficiência, o qual só em situações excepcionais é “reduzido a zero”260.

b b ) A proibição de insuficiência também não coincide com o dever de protecção, como se não tivesse, em relação a ele, qualquer função autônoma.261 Quem assim entende desconhece o significado que o direito infra-constitucional assume na realização de impera­tivos de tutela de direitos fundamentais. Dito em termos um pouco simples, na pergunta pelo dever de protecção trata-se do “se” da protecção, enquanto a proibição de insuficiência tematiza a pergunta pelo “como”262. Pois “a Constituição impõe (apenas) a protecção

259 Cfr. também BVerfGE, vol. 49, pp. 304, 324; todavia, neste contexto, a decisão só é utilizável com cautela, pois nela estavam em causa, em primeira linha, não a função de imperativo de tutela do artigo 2.°, n.° 2, da LF, enquanto tal, mas, antes, os limites ao desenvolvimento judicial do direito.

260 Cfr., mais em detalhe, Canaris, JuS, 1989, pp. 163 e ss.; concordando, Lerche, Festschr.für Odersky, 1996, p. 229, nota 33; no mesmo sentido, Isensee, ob. cit., § 111, n.° de margem 90, sob (g); cfr., além disto, as indicações da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal, supra, nota 121.

261 Assim, porém, a tese de Hain, DVBL, 1993, pp. 983 e ss.; no mesmo sentido, Starck, JZ, 1993, p. 817.

262 Cfr., sobre esta diferenciação, supra, VI, 1; sobre a origem da expressão

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como resultado, mas não a sua conformação específica”263. Há, pois, num primeiro passo, que fundamentar a existência do dever de protecção como tal, e, num segundo, que verificar se o direito ordi­nário satisfaz suficientemente esse dever de protecção, ou se, pelo contrário, apresenta, neste aspecto, insuficiências. Que se trata aqui, na verdade, de dois percursos argumentativos distintos, é demons­trado, pelo menos, pela circunstância de os critérios desenvolvidos supra, VI, 2, b e c, assumirem relevo apenas para o primeiro passo, enquanto no segundo há que trazer à colação pontos de vista diversos e adicionais. Por isto, e correctamente, a questão de saber se, para protecção do embrião contra uma interrupção voluntária da gravidez, é necessário o recurso ao direito penal, ou se é suficiente o recurso a outros meios, não foi discutida pelo Tribunal Consti­tucional Federal logo na perspectiva do dever de protecção enquanto tal, mas apenas na da proibição da insuficiência264.

Neste quadro, há, pois, que averiguar se a protecção do direito infra-constitucional é eficaz e apropriada265. Aqui não se trata de, por exemplo, medir a - eventual - insuficiência de protecção, ou a omissão do legislador, da mesma forma que no caso de uma inter­venção num direito fundamental, com base na proibição de ex­cesso266. É, antes, preciso verificar se a protecção satisfaz as exi­gências mínimas na sua eficiência e se bens jurídicos e interesses contrapostos não estão sobre-avaliados. Em todo o caso, a eficácia da protecção integra, em princípio, logo o próprio conteúdo do dever de protecção, já que um dever de tomar medidas ineficazes não teria sentido267. Mas isto só é exacto numa perspectiva muito abstracta, e nada altera quanto à circunstância de ser adicionalmente

“proibição de insuficiência” (“Untermassverbot”), cfr. as indicações supra, notas 95 e 96.

2« BVerfGE, vol. 88, pp. 203, 254.264 BVerfGE, vol. 88, pp. 203, 257.265 BVerfGE, vol. 88, pp. 203, 254.266 Definitiva, neste aspecto, a análise e a fundamentação de Robbers, Siche-

rheit ais Menschenrecht, 1987, pp. 170-72; cfr., de resto, também supra, IV, 3, c.267 Assim Hesse, Festschr.für Mahrenholz, 1994, p. 545.

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necessária, em cada caso, uma aferição da eficiência para cada problema especificamente considerado. Isto porque a eficiência constitui um critério graduável, uma vez que se trata de saber se a protecção é suficientemente eficiente - e esta é uma interrogação autônoma em relação à fundamentação do dever de protecção, e que, portanto, faz efectivamente sentido tematizar na noção de proibição de insuficiência. Neste contexto, chega-se, então, frequen­temente - como se mostrou repetidas vezes supra, V268 a um “segundo limiar argumentativo”, e a uma nova ponderação com interesses e bens jurídicos contrapostos, visto que estes não desem­penham um papel essencial apenas na fundamentação do dever de protecção, mas antes, também, na sua realização pelo direito ordi­nário e na “sintonia fina” aqui necessária.

Para evitar mal entendidos, acrescente-se que a proibição de insuficiência não é aplicável apenas no (explícito) controlo jurídico- constitucional de uma omissão legislativa, mas antes, igualmente, nos correspondentes problemas no quadro da aplicação e do desen­volvimento judiciais do direito. Pois, uma vez que a função de im­perativo de tutela de direitos fundamentais não tem, de forma alguma, alcance mais amplo no caso de uma realização pela juris­prudência do que pelo legislador, o juiz apenas está autorizado a cumprir esta tarefa porque, e na medida em que, a não o fazer, se verificaria um inconstitucional défice de protecção, e, portanto, uma violação da proibição de insuficiência. Outra questão é, eviden­temente, a de saber se a jurisdição não pode, em certas circunstân­cias, ir além do mínimo de protecção juridico-constitucionalmente imposto, porque e na medida em que o legislador (ordinário) tam­bém o poderia fazer. Tal possibilidade deve em princípio ser reconhecida, embora nada tenha a ver com a presente problemática, e pertença, antes, à temática do desenvolvimento judicial do direito e dos seus limites.

Só se o conteúdo da protecção estiver inteiramente determi­nado pela Constituição é que não caberá qualquer função autônoma

268 Cfr., em especial, supra, V, 3, c, e 4, a.

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à proibição de insuficiência. Mas tal acontecerá muito raramente, pois a realização do dever de protecção verifica-se, em regra, de uma forma ou de outra, com o auxílio do direito infra-consti- tucional. Mesmo se, excepcionalmente, não for necessário o recurso a critérios valorativos adicionais - como, por exemplo, no caso Blinkfüer269 - , é, ainda assim, necessário um ajustamento ao sistema do direito ordinário, o qual, então, suscita a questão de saber se o seu instrumentário - como, por exemplo, os §§ 823, n.° l , e 826, ambos do BGB - fornece uma protecção suficiente, ou se, para tanto, tem antes de ser ampliado. Justamente este é, porém, por sua vez, o problema da proibição de insuficiência.

c) O significado das reservas de intervenção legislativa no campo da função de imperativo de tutela

A concluir, importa abordar sinteticamente a questão de saber qual é a relevância que compete às reservas de intervenção legis­lativa no quadro da função dos direitos fundamentais como impera­tivos de tutela. É aqui preciso distinguir se o que está em causa é o direito fundamental que é protegido ou um direito fundamental con­traposto, no qual se intervém para aquele fim.

aa) Quanto ao primeiro, a reserva para a lei não desempenha papel algum. Designadamente, ou o direito fundamental a proteger contém uma reserva de intervenção legislativa - e então não se vis­lumbra onde poderia, quanto a este ponto, estar o problema; ou o direito fundamental não contém uma tal reserva, como, por exem­plo, a liberdade artística nos termos do artigo 5.°, n.° 3, da LF - e então seria verdadeiramente sem sentido concluir, a partir daqui, que este direito fundamental não pode ter uma função de imperativo de tutela. Na verdade, a função das reservas de intervenção legislativa consiste justamente em permitir e em limitar intervenções num di­

269 Cfr., sobre este, supra, V, 3, b.

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reito fundamental, e, por isso, não é de admirar que elas não sejam nem necessárias nem adequadas como fundamento da competência para a sua protecção110.

Também não pode afirmar-se genericamente que os direitos fundamentais que contêm a reserva têm uma mais fraca função como imperativos de tutela do que os direitos sem reserva de inter­venção legislativa271. Pois o sistema de tais reservas não autoriza qualquer conclusão forçosa sobre a posição hierárquica dos direitos fundamentais, já que não é definido primariamente por esta, e, antes, por outros pontos de vista.

bb) O verdadeiro problema está, pois, na questão de saber se é indispensável atender à reserva caso, para a realização da protec­ção de um direito fundamental, haja que intervir num outro direito. Também isto será, em princípio, de negar. Designadamente, a coli­são com o direito fundamental contraposto é já, em regra, de con­siderar na resposta à pergunta pela existência de um dever de pro­tecção de direito fundamental. Se este dever for negado por causa da colisão, o problema desaparece; se, pelo contrário, for reconhecido apesar da colisão, o problema está já incidentalmente resolvido. Pois então a intervenção será imposta pela Constituição, e, neste caso, ela será também admissível, uma vez que, segundo a (correcta) juris­prudência do Tribunal Constitucional Federal, também os direitos fundamentais garantidos constitucionalmente sem reserva podem ser restringidos, desde que, e na medida em que, tal seja necessário para a protecção de outros direitos fundamentais272, e isto também vale - aliás, por maioria de razão - para direitos fundamentais su­jeitos a uma reserva de intervenção legislativa273. Em última ins­

270 Cfr. também Jarass, AõR, vol. 120 (1995), pp. 374 e s.271 Assim, porém, aparentemente, Pietrzak, JuSy 1994, p. 751.272 Basilar, BVerfGE, vol. 30, pp. 173, 193 e s.273 Cfr. BVerfGE, vol. 66, pp. 116, 136; vol. 72, pp. 122, 137; vol. 73,

pp. 301, 315; Lerche, in HbdStR, vol. V, 1992, § 122, n.° de margem 23.

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tância, estas reservas não desempenham, pois, na verdade, qualquer papel essencial neste contexto274.

Algo de semelhante vale para a proibição de excesso: se, no desempenho da função de imperativo de tutela, nos limitarmos mesmo a realizar, apenas, o mínimo de protecção dos direitos fun­damentais jurídico-constitucionalmente imposto, e se, para tal, for necessário intervir num direito fundamental conflituante, a proi­bição do excesso não pode logicamente, de todo em todo, ser vio­lada por tal intervenção, de tal sorte que a sua aferição é aqui desnecessária. Em todo o caso, será em muitos casos apropriado que se proceda adicionalmente, como teste de raciocínio e de “arredon­damento” argumentativo, a um controlo do excesso, para - de certa forma a partir do lado oposto - assegurar que se não ultrapassou, afinal, o mínimo de protecção indispensável275.

As reservas e a proibição de excesso apenas se tomam, por­tanto, relevantes se o legislador (ou, em seu lugar, o juiz que desen­volve e concretiza a lei) outorgar a uma parte mais protecção do que a exigida pelos direitos fundamentais. No presente contexto, a fun­ção relevante das reservas é, justamente, a de permitir que, em prin­cípio, isto aconteça. Assim, por exemplo, a reserva de intervenção legislativa em benefício da honra pessoal, nos termos do artigo 5.°, n.° 2, da LF, autoriza o direito ordinário a, para tal fim, restringir mais fortemente a liberdade de expressão do que seria necessário por razões constitucionais, com base na função do direito geral de personalidade de imperativo de tutela, de acordo com o artigo 2.°, n.° 1, em conjugação com o artigo 1.°, n.° 1, ambos da LF. Pois, caso contrário, a reserva seria dispensável - uma conclusão que, porém,

274 Cfr. também Di Fabio, JZ, 1993, pp. 691 e ss., que constata uma “disso­lução da reserva legal numa relação de direitos fundamentais tripolar”; em sentido diverso, porém, Isensee, ob. cit., § 111, n.° de margem 91.

275 Pelo menos equivocado, portanto, Hesse, Festschr. für Mahrenholz,1994, pp. 556 e s., segundo cuja posição “adequação e necessidade da intervenção na posição de direito fundamental defensiva” são logo de afirmar se “a medida de protecção for idônea ao fim e suficiente”; isto é pouco, justamente porque não significa logo que ela seja imposta por direitos fundamentais.

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infelizmente o Tribunal Constitucional Federal não leva suficien­temente em conta, na sua jurisprudência sobre a relação entre a liberdade de expressão e a protecção da honra (tema, este, que, em virtude da complexidade da matéria, não pode ser aqui tratado mais desenvolvidamente).

cc) Ainda um outro problema é o de saber se as reservas de intervenção legislativa relevam, no quadro da função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela, pelo facto de as interven­ções em direitos fundamentais para protecção de outros direitos fundamentais só serem admissíveis com uma base legislativa (ordinária)276. Isto pode ser aqui deixado em aberto. Na verdade, por um lado, no direito privado existem quase sempre normas legais do tipo, por exemplo, dos §§ 138, 823, n.° 1, 826 e 1004, todos do BGB, e, por. outro lado, onde, excepcionalmente, faltar mesmo uma tal possibilidade de base legal, resta, em princípio, a possibilidade de uma integração de lacunas em conformidade com a Consti­tuição277. Se esta possibilidade não existir - por exemplo, porque há várias possibilidades diversas de realização da protecção do direito fundamental, todas a considerar em igual medida o legislador tem, de qualquer modo, de ser chamado a intervir, sendo que, como é sabido, se necessário, pode ser-lhe aqui fixado, pelo Tribunal Constitucional Federal, um prazo para aprovação de um regime, suspendendo-se temporariamente a instância.

276 Neste sentido há, com certeza, que entender Isensee, Das Grundrecht auf SicheYheit, 1983, pp. 42 e s.

277 Cfr., por exemplo, Stem, ob. cit., § 69, IV, 6, c; Isensee, ob. cit.§ 111, n.° de margem 156.

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VII. Sinopse

1. Os direitos fundamentais devem ser aplicados a leis de direito privado como direito imediatamente vigente.

a) Isto corresponde à letra do artigo í.°, n.° 3, da LF, que não permite reconhecer qualquer excepção para o legislador no campo do direito privado, e é também justificado em perspectiva teleo- lógica, já que as normas de direito privado podem intervir em direitos fundamentais de modo tão intensivo como as de direito público; da história do preceito do artigo 1.°, n.° 3, da LF, e da sua função histórica, não se retiram quaisquer argumentos em sentido contrário (v. II, 1, a e b = pp. 22 e ss. e 24 e ss.). A vinculação do legislador de direito privado aos direitos fundamentais resulta, além disto, do artigo 93.°, n.° 1, alínea 4a, da LF, pois segundo a letra e a história deste preceito a queixa constitucional pode também ser deduzida contra normas de direito privado (v. II, 1, c = pp. 26 e s.). Para além disso, a ideia de hierarquia de normas depõe também no sentido da sua vinculação aos direitos fundamentais, porque a Constituição possui, sem restrição, o grau de lex superior também quanto ao direito privado (v. II, 1, d = pp. 27 e s.).

b) A vinculação do legislador de direito privado aos direitos fundamentais é “imediata”, Esta solução resulta, não só da aplica­bilidade do artigo 1.°, n.° 3, da LF, e da comparabilidade das inter­venções privatísticas em direitos fundamentais com as publicísticas, mas, também, do facto de ser a única substancialmente adequada. Uma vinculação apenas “mediata” do legislador de direito privado, no sentido de que os direitos fundamentais apenas têm efeitos sobre o direito privado “por intermédio dos preceitos que dominam ime­diatamente este ramo do direito”, é de excluir por razões de lógica normativa; pois a validade de uma norma apenas pode ser aferida segundo uma norma de nível hierárquico superior, no sentido de uma lex superior, e, portanto, o controlo jurídico-constitucional de preceitos de direito privado segundo outros preceitos do mesmo

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ramo de direito, e, portanto, com o mesmo nível, é contraditório em termos de lógica normativa; além disso, tal forma de proceder de­para também, sob o ponto de vista prático, com obstáculos insupe­ráveis (v. II, 2, a = pp. 28 e ss.).

Os direitos fundamentais também não vigoram em relação aos preceitos de direito privado apenas na sua função de normas objec- tivas de princípio, mas antes nas suas funções “normais”, como proibições de intervenção e imperativos de protecção (v. II, 2, b e c = pp. 32 e ss., e 36 e s.). Em todo o caso, não têm sempre, necessa­riamente, o mesmo conteúdo e alcance para a relação entre sujeitos de direito privado que na relação entre o cidadão e o Estado, de tal forma que, neste aspecto, há certas modificações a considerar; isto vale, em particular, para o significado dos interesses do bem comum e para a função das reservas de intervenção da lei (v. II, 3 = pp. 37 e s.).

2. Os direitos fundamentais valem também para a aplicação e desenvolvimento judiciais do direito privado.

a) Isto não resulta, no entanto, logo simplesmente de, segundo o artigo 1.°, n.° 3, da LF, a jurisdição estar também vinculada aos direitos fundamentais como direito imediatamente vigente. É deci­siva, antes, a circunstância de, no plano fáctico, em grande medida as leis só serem preenchidas com conteúdo concreto pela jurisdi­ção278, e de, portanto, a protecção dos direitos fundamentais perder efectividade, num domínio de relevância prática elementar, se ape­nas as leis, e não também a sua aplicação e desenvolvimento, esti­vessem sujeitas à vinculação aos direitos fundamentais. Da con­clusão de que estes também valem imediatamente para o legislador no campo do direito privado resulta, portanto, num segundo passo, a conseqüência de que, em princípio, se não pode adoptar posição di­versa para a sua aplicação e desenvolvimento'(v. III, 1, a = pp. 39 e ss.).

278 A questão da qualidade normativa do “direito dos juizes” não é, pois, aqui decisiva.

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A correcção desta concepção é, por seu lado, confirmada e refor­çada pelo artigo 93.°, n.° 1, alínea 4a da LF. Pois segundo este pre­ceito também uma decisão de um tribunal cível pode ser impugnada pela queixa constitucional com fundamento em violação de um direito fundamental, o que pressupõe logicamente que esta pode re­sultar de uma aplicação errada do direito privado, e implica, por conseguinte, que a vinculação aos direitos fundamentais vale também para este (v. III, 1, b = p. 41).

O objecto da vinculação e do controlo pelos direitos funda­mentais não é aqui a decisão judicial enquanto tal, mas antes a proposição que lhe subjaz e que a sustenta. Esta há-de, portanto, ser formulada como norma, sendo, seguidamente, de sujeitar, como tal, ao controlo de constitucionalidade (v. III, 1, c = pp. 42 e s). A ratio decidendi pensada como norma está, pois, sujeita à vinculação aos direitos fundamentais nas suas funções “normais”, como proibições de intervenção e imperativos de protecção - e isto, na verdade, em princípio do mesmo modo que uma correspondente proposição legal. Esta é a conseqüência lógica da circunstância de a aplicação e o desenvolvimento da lei representarem a sua necessária concre­tização e complementação, e de, portanto, lhes serem de equiparar quanto à protecção dos direitos fundamentais.

b) A posição aqui defendida está, em certa medida, em opo­sição à decisão Lüth do Tribunal Constitucional Federal e à juris­prudência deste que nela se baseou, segundo a qual apenas se pode partir de uma “eficácia de irradiação” dos direitos fundamentais sobre o direito privado. Com efeito, a concepção desenvolvida na decisão Lüth carece, na perspectiva actual, de uma “reconstrução crítica”. Isto vale, antes de mais, na medida em que, contrariamente à abordagem da decisão Lüth, deve distinguir-se de forma estrita entre “eficácia de irradiação” e “problemática da super-revisão”: a última não constitui qualquer especificidade da relação entre direi­tos fundamentais e direito privado, mas aparece, antes, em princípio da mesma forma em todos os ramos do direito, no controlo de deci­sões dos tribunais ordinários pelo Tribunal Constitucional Federal,

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de tal forma que não pode, de modo algum, ser amenizada de forma ]substancialmente correcta com recurso à teoria da “eficácia de irra­diação”, a qual apenas diz respeito ao direito privado. Trata-se aqui, ’iantes, de uma pura dificuldade de processo constitucional, que, por jconseguinte, apenas pode ser resolvida com os instrumentos do direito processual (v. III, 2, a = pp. 44 e ss.). j

Para além disto, a teoria da “eficácia de irradiação” também já não é hoje satisfatória no plano do direito material. Isto, desde logo, ■]porque esta expressão não constitui qualquer conceito jurídico, mas antes, apenas, uma formulação metafórica extraída da linguagem coloquial, e, em perspectiva dogmática, não é mais, pelo seu carác- iter vago, do que uma solução de recurso. Acresce que a teoria da “eficácia de irradiação” é, no actual estado da dogmática jurídico- j-constitucional, supérflua, porque todos os correspondentes pro­blemas podem- ser resolvidos de forma mais correcta e precisa \recorrendo às funções “normais” dos direitos fundamentais, como proibições de intervenção e como imperativos de protecção. Assim, ]no caso Lüth existia, na verdade, uma intervenção no direito funda- jmental do autor da queixa, resultante do artigo 5.°, n.° 1, da LF, pois a proposição subjacente, adoptada pelo Supremo Tribunal Federal, sobre a inadmissibilidade do apelo ao boicote, continha uma limi- tação da liberdade de expressão (v. III, 2, b = pp. 47 e ss.). Noutros ']problemas, como, por exemplo, no controlo, segundo o parâmetro jdo artigo 14.° da LF, da aplicação do § 564b do BGB pelos tribunais jcíveis, o Tribunal Constitucional Federal também não invoca a teo­ria da “eficácia de irradiação”, mas, diversamente, procede agora, \no essencial, da forma aqui proposta. j

3. Em contraposição às leis do direito privado, bem como à sua aplicação e desenvolvimento pela jurisprudência, os sujeitos de 1direito privado e o seu comportamento não estão, em princípio, sujeitos à vinculação imediata aos direitos fundamentais. Estes de- | senvolvem, porém, os seus efeitos nesta direcção, por intermédio da sua função como imperativos de tutela.

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á) Destinatários das normas sobre direitos fundamentais são, em princípio, apenas o Estado e os seus órgãos, mas não os sujeitos do direito privado. É certo que são possíveis excepções, como mos­tra sobretudo o artigo 9.°, n.° 3 ,2.a frase, da LF, mas estas requerem, contrariamente à teoria da “eficácia imediata em relação a ter­ceiros”, uma fundamentação especial, que apenas muito raramente se consegue encontrar (v. IV, 1, a - pp. 53 e s.). Em conformidade, só deveria falar-se de “eficácia imediata em relação a terceiros” se os direitos fundamentais se dirigem contra sujeitos de direito privado como destinatários da norma, como no caso do artigo 9.°, n.° 3,2.a frase, da LF, ou quando se defende uma correspondente con­cepção da eficácia dos direitos fundamentais. A imediata vigência dos direitos fundamentais, nos termos do artigo 1.°, n.° 3, da LF, para as normas do direito privado e para a sua aplicação e desen­volvimento, nada tem a ver com “eficácia imediata em relação a terceiros” (v. IV, 1, b = pp. 54 e s.).

b) Por conseguinte, objecto do controlo segundo os direitos fundamentais são apenas, em princípio, regimes e formas de con­duta estatais, e não já de sujeitos de direito privado, isto é, negócios jurídicos, actos ilícitos, etc. (v. IV, 2 = pp. 55 e s.).

c) A circunstância de, não obstante, os direitos fundamentais exercerem efeitos sobre estes últimos explica-se a partir da sua fun­ção como imperativos de tutela. Pois o dever do Estado de proteger um cidadão perante o outro cidadão, contra uma lesão dos seus bens garantidos por direitos fundamentais, deve ser satisfeito também - e justamente - ao nível do direito privado. Esta concepção tem a van­tagem de, por um lado, não abdicar da posição de que, em princípio, apenas o Estado, e não o cidadão, é destinatário dos direitos funda­mentais, mas, por outro lado, oferecer, igualmente, uma explicação dogmática para a questão de saber se, e porquê, o comportamento de sujeitos de direito privado está submetido à influência dos direitos fundamentais (v. IV, 3, a = pp. 56 e ss.). É de considerar como falhada a tentativa de, recorrendo à “teoria da convergência estatista”,

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imputar todos os comportamentos de sujeito de direito privado ao Estado, e de, em conformidade, os abranger pela função dos direitos fundamentais de proibição de intervenção, de tal forma que não existisse nem espaço, nem necessidade, de invocar a função de im­perativos de tutela; assim, por exemplo, só esta última seria de con­siderar no caso Lüth, se o proprietário do cinema ou o realizador tivessem decaído perante o tribunal cível e houvessem deduzido queixa constitucional contra uma tal decisão (v. IV, 3, b = pp. 59 e ss).

A função de imperativo de tutela, e a proibição de insuficiência a seu flanco, têm uma eficácia mais fraca que a função de proibição de intervenção e a proibição do excesso. Isto resulta, por um lado, da circunstância de um imperativo de tutela se dirigir contra uma omissão do Estado e de a sua fundamentação necessitar, por isso, de um esforço argumentativo especial (o que é conhecido, à saciedade, das problemáticas da omissão nos direitos penal e civil), e também, por outro lado, de na sua satisfação estar aberta uma ampla margem ao direito ordinário (v. IV, 3, c = pp. 65 e ss.). O facto de existirem hipóteses de fronteira, em que é difícil distinguir entre a função de imperativo de tutela e a função de proibição de intervenção, nada altera. Na dúvida deve-se recorrer à última (v. JV, 3, d = pp. 68 e ss.). É certo que a mais fraca eficácia da função de imperativo de tutela e da proibição de insuficiência conduz a uma assimetria em favor daquele que intervém na esfera de outrem, mas isso não constitui qualquer objecção; pois reflecte-se aqui o princípio de que as rela­ções entre os cidadãos estão, em princípio, livres de interferência estatal e de que esta necessita, portanto, de uma legitimação especial (v. IV, 3, d = p. 70).

A função dos direitos fundamentais de imperativo de tutela também se aplica, em princípio, em relação à auto-vinculação por contrato. Ela tem aqui relevância especial, por .um lado, se, pelo seu carácter pessoalíssimo, o bem protegido por direitos fundamentais, cujo exercício é contratualmente limitado, não estiver de todo à dis­posição do seu titular, ou se, pelo seu conteúdo fortemente pessoal, for especialmente sensível em relação a uma vinculação jurídica, e, por outro lado, se as possibilidades fácticas de livre decisão de uma

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das partes contraentes estiverem significativamente afectadas (v. IV, 3, e, aa = pp. 71 e ss). O facto de problemas deste tipo serem, em regra, resolvidos de modo puramente privatístico não impede a sua dimensão jurídico-constitucional, em caso de descida abaixo do mí­nimo de protecção imposto pelos direitos fundamentais, não devendo excluir-se, à partida, a possibilidade de uma queixa constitucional.

4. As conseqüências práticas da concepção aqui defendida podem ser ilustradas com uma série de exemplos:

d) Se se reconhecer a vigência dos direitos fundamentais como proibições de intervenção em relação a normas do direito privado, resulta desta função - e não apenas, por exemplo, da teoria da “eficácia de irradiação” ou da função de imperativo de tutela - que a imposição de uma obrigação ruinosa de indemnização é, em prin­cípio, inconstitucional, desde que o lesado seja “rico” e que, por­tanto, não seja afectado, de forma que lhe não seja exigível, por uma limitação máxima do montante ressarcitório (v. V, 1 = pp. 75 e ss.).

b) Se, no caso Lüth, se substituir a imagem da “eficácia de irradiação” pela categoria da proibição de intervenção, revela-se que não é decisivo o critério do “contributo para o embate intelectual de opiniões, numa questão que interessa à opinião pública de forma central, efectuada por uma pessoa para tanto legitimada”; assim, por exemplo, o caso Photokina deveria ter sido decidido no sentido contrário pelo Supremo Tribunal Federal (v. V, 2 = pp. 78 e ss.).

c) A tendência, inerente à imagem da “eficácia de irradiação”, para uma consideração complexiva das circunstâncias do caso conduz, também noutras hipóteses, à invocação de critérios que, na verdade, são irrelevantes. Assim, e por exemplo, o Tribunal Consti­tucional Federal considerou essenciais, na decisão - do mesmo dia da decisão Lüth - da questão de saber se o senhorio tem de tolerar a afixação de um cartaz eleitoral do inquilino na parede exterior do prédio locado, circunstâncias que, de forma alguma, podem ser

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decisivas. Além disso, na perspectiva actual era aqui de considerar, como parâmetro de controlo, apenas a função de imperativo de tutela do artigo 5.°, n.° 1, da LF, sendo que com a sua invocação salta logo à vista a falta de fundamento da queixa constitucional (v. V, 3, a = pp. 81 e s.).

Do ponto de vista dogmático, também se tratava da função de imperativo de tutela no caso Blinkfüer, no qual ela foi, pela primeira vez, substancialmente reconhecida pelo Tribunal Constitucional Federal - e isto, na verdade, logo incluindo a sua componente de direito subjectivo. Correctamente, o Tribunal Constitucional reco­nheceu aqui, no resultado, um imperativo de tutela a partir do artigo 5.°, n.° 1, da LF, porque o recurso a pressão econômica no debate de opiniões constitui um meio ilícito (v. V, 3, b = pp. 82 e ss.).

Também a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal sobre o dever do senhorio de, em certas circunstâncias, permitir ao inquilino a instalação de uma antena parabólica, é de reconduzir à função de imperativo de tutela do artigo 5.°, n.° 1, da LF. No entanto, este dever vale apenas em princípio, e requer concretização no caso concreto, de tal forma que se chega a uma argumentação em dois patamares: antes de mais, é preciso fundamentar a existência de um dever de protecção como tal, e, depois, é de proceder à sua trans­posição para o caso concreto, sendo que esta ocorre, no essencial, ao nível do direito privado (v. V, 3, c = pp. 87 e ss.).

d) Da função de imperativo de tutela do direito geral de per­sonalidade, nos termos do artigo 2.°, n.° 1, em conjugação com o artigo1.°, n.° 1, da LF, resulta que um filho nascido fora do casamento tem, em princípio, o direito, dirigido contra sua mãe, a informação sobre a pessoa do seu pai biológico. O Tribunal Constitucional Federal deci­diu, porém, com razão, que isto não vale sem excepções, e que, na ponderação com o contraposto direito de personalidade da mãe, existe uma ampla margem ao nível do direito ordinário, cujo preenchimento compete em princípio aos tribunais comuns; na presente problemática, esta margem contém-se, ainda, dentro dos limites do desenvolvimento do direito admissível (v. V, 4, a = pp. 91 e ss.).

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Direitos Fundamentais e D ireito Privado 137

Um correspondente imperativo de tutela existe também, em princípio, na inseminação heteróloga. O reconhecimento de um direito, contra o banco de esperma e/ou o médico interveniente, a informação sobre a pessoa do dador representa, todavia, uma intervenção gravosa no seu direito à auto-determinação informativa, o qual cobre em princípio o seu interesse na manutenção do anoni­mato. Para obtenção de uma concordância prática com o direito con­traposto do dador, a margem de conformação do direito ordinário na realização de imperativos de tutela poderia aqui ser usada para chegar à solução segundo a qual se reconhece, em princípio, um direito a informação ao filho, mas, ao mesmo tempo, as conseqüên­cias deste são suavizadas pela recusa de quaisquer pretensões de alimentos ou sucessórias contra o dador. Esta saída não estará, porém, aberta à jurisdição, tomando, antes, necessária uma interven­ção do legislador (v. V, 4, b = pp. 94 e ss.).

5. Fundamentos para uma determinação dogmática da função de imperativo de tutela dos direitos fundamentais no direito privado reconhecem-se, até agora, apenas nos seus traços gerais.

a) Tal como na aplicação dos direitos fundamentais na sua função de proibições de intervenção, também aqui é necessário, antes de mais, comprovar se o correspondente direito fundamental é de todo “tocado” na sua hipótese normativa (v. VI, 2, a = pp. 104 e s.). Diversamente de ali, porém, há seguidamente que superar um patamar argumentativo adicional, cuja relevância muitas vezes não é suficientemente considerada na jurisprudência e na doutrina: uma vez que, na realização de imperativos de tutela, se trata do controlo jurídico-constitucional de uma omissão legislativa, ou da sua com­pensação pela jurisprudência em conformidade à Constituição, tem de ser fornecida em cada caso uma fundamentação específica para a conclusão no sentido de que do direito fundamental “tocado” re­sulta, de todo, um dever de protecção quanto à problemática em causa (v. IV, 3, c = pp. 87 e ss.). Como factores que fundamentam o dever, há que considerar aqui, sobretudo, a ilicitude da inter­

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venção, por um sujeito de direito privado, no bem garantido pelo direito fundamental, a sua colocação em perigo por um sujeito de direito privado, bem como a dependência (falta de alternativa) do titular do direito fundamental, no exercício do direito fundamental em questão, da colaboração ou da tolerância de outros particulares (v. VI, 2, b = pp. 106 e ss.). Critérios essenciais são, ainda, o nível e o tipo de direito fundamental a proteger, a gravidade da intervenção que se ameaça e a intensidade da colocação em perigo, as possi­bilidades do titular quanto a uma auto-protecção eficaz, bem como o peso de interesses e direitos fundamentais contrapostos; estes fun­cionam conjuntamente sob a forma de proposições comparativas, com estrutura do tipo “quanto mais e quanto mais forte tanto mais”, ao modo de um “sistema móvel” no sentido de Wilburg (v. VI, 2, c = pp. 112 e ss.).

b) A função dos direitos fundamentais de imperativo de tutela carece, em princípio, para a sua realização, da transposição pelo direito infra-constitucional. Este não fica, porém, por tal cir­cunstância, em princípio subtraído à disposição do legislador ordi­nário, pois é apenas na sua globalidade que tem de oferecer uma eficaz protecção dos direitos fundamentais, e os diversos regimes específicos não são, enquanto tais, determinados constitucio­nalmente (v. VI, 3, a =pp. 115 e ss.). Ao legislador ordinário fica aqui aberta, em princípio, uma ampla margem de manobra entre as proibições da insuficiência e do excesso (v. VI, 3, b, aa = pp. 119 e ss.).

c) A proibição da insuficiência não coincide com o dever de protecção, mas tem, antes, uma função autônoma relativamente a este. Pois trata-se de dois percursos argumentativos distintos, pelos quais, em primeiro lugar, se controla se existe, de todo, um dever de protecção, e, depois, em que termos deve este ser realizado pelo direito ordinário sem descer abaixo do mínimo de protecção jurí- dico-constitucionalmente exigido. No controlo da insuficiência tra- ta-se, por conseguinte, de garantir que a protecção satisfaça as

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D ireitos Fundamentais e D ireito Privado 139

exigências mínimas na sua eficiência, e que bens jurídicos e inte­resses contrapostos não são sobre-avaliados (v. VI, 3, b, bb = pp. 122 e ss.).

d) As reservas de intervenção legislativa não desempenham qualquer papel essencial para a realização da função dos direitos fundamentais como imperativos de tutela no direito privado (v. VI,3, c = pp. 125 e ss.).

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TRADUÇÃO DAS NORMAS CITADAS*

1. Lei Fundamental da República Federal da Alemanha2. Código Civil alemão3. Código Comercial alemão4. Código de Processo Civil alemão5. Lei de Protecção contra os Despedimentos (“Kündigungsschutz-

gesetz”)6. Lei sobre a Continuação do Pagamento do Salário (“Entgeltfort-

zahlungsgesetz:”)7. Lei das Águas (“Wasserhaushaltsgesetz”)

1. L e i F u n d a m e n t a l d a R epú b lic a F e d e r a l da A l em a n h a

ARTIGO 1.°(Protecção da dignidade humana)

1. A dignidade da pessoa humana é inviolável. Todas as autoridades públicas têm o dever de a respeitar e de a proteger.

2. O Povo Alemão reconhece, por isso, os direitos invioláveis e ina­lienáveis da pessoa humana como fundamentos de qualquer comunidade humana, da paz e da justiça no mundo.

' 3. Os direitos fundamentais que se seguem vinculam a legislação, o poder executivo e a jurisdição como direito imediatamente vigente.

* Traduzem-se as normas citadas na versão em vigor à data da sua edição alemã (1999). Algumas destas disposições foram entretanto alteradas ou revo­gadas (cfr., aliás, supra, nota 203).

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ARTIGO 2.°(Direitos de liberdade pessoais)

1. Todos têm direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade, desde que não violem os direitos de outrem e não atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral.

2. Todos têm direito à vida e à integridade física. A liberdade da pessoa é inviolável. Estes direitos só podem ser restringidos com base numa lei.

ARTIGO 3.°(Igualdade perante a lei)

1. Todas as pessoas são iguais perante a lei.2. Os homens e as mulheres gozam dos mesmos direitos. O Estado

promove a efectiva realização da igualdade entre mulheres e homens e actua no sentido de eliminar as desvantagens existentes.

3. Ninguém pode ser prejudicado ou privilegiado por causa do sexo, ascendência, raça, língua, pátria e terra de origem, crença, convicções religiosas ou políticas. Ninguém pode ser prejudicado em virtude da sua deficiência

ARTIGO 5.°(Direito à liberdade de expressão)

1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente a sua opinião pela palavra, por escrito e pela imagem, bem como o direito de se informar, sem impedimentos, por meio de fontes acessíveis a todos. São garantidas a liberdade de imprensa e a liberdade de informação por rádio, televisão e cinema. Não haverá censura.

2. Esses direitos têm por limites os preceitos das leis gerais, as disposições legais para protecção da juventude e o respeito da honra.

3. São livres as expressões artística e científica, a investigação e o ensino. A liberdade de ensino não dispensa da fidelidade à Constituição.

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D ireitos Fundamentais e D ireito Privado 143

ARTIGO 6.°(Casamento, família, filhos nascidos fora do casamento)

1. O casamento e a família recebem protecção especial por parte do Estado.

2. A manutenção e a educação dos filhos constituem direito natural e dever primordial dos pais. O Estado vela pelo cumprimento dessas obrigações.

3. Os filhos só podem ser separados da família, contra a vontade dos seus responsáveis, com base numa lei, quando aqueles não cumpram os seus deveres ou quando os filhos corram o risco de ficarem descuidados por outras razões.

4. Toda a mãe tem direito à protecção e à assistência da comunidade.5. A lei deve criar, para os filhos nascidos fora do casamento, con­

dições de desenvolvimento físico e moral e estatuto social iguais aos dos filhos nascidos dentro do casamento.

ARTIGO 9.°(Liberdade de associação)

1. Todos os alemães têm o direito de constituir associações e socie­dades.

2. Serão proibidas associações cujos fins ou actividades sejam con­trários às leis penais ou que se orientem contra a ordem constitucional ou contra a ideia do entendimento entre os povos.

3. A todas as pessoas e em todas as profissões ou ocupações é garantido o direito de constituir associações para defender e promover as condições econômicas e de trabalho. São nulos os acordos que restrinjam ou tratem de impedir este direito, e ilícitas as medidas tomadas com esse fim. As medidas previstas nos artigos 12.°, 35.°, n.°s 2 e 3, 87.°, n.° 4; e 91.° não podem contrariar conflitos de trabalho causados por asso­ciações, no sentido da primeira frase deste parágrafo, com o fim de sal­vaguardar e melhorar as condições econômicas e de trabalho.

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ARTIGO 11.°(Liberdade de circulação)

1. Todos os alemães gozam de liberdade de circulação e de esta­belecimento em todo o território federal.

2. Este direito só pode ser restringido por lei, ou com base numa lei, e apenas nos casos em que a falta de meios de subsistência possa acarretar encargos especiais para a colectividade, ou em que se tomar necessário afastar ameaça iminente à existência ou à ordem constitucional livre e democrática da Federação ou de um Estado, para o combate a riscos de epidemia, catástrofes naturais ou sinistros particularmente graves, para protecção contra o abandono de menores, ou para a prevenção de delitos.

ARTIGO 12.°(Liberdade de profissão)

1. Todos os alemães têm o direito de escolher livremente a sua pro­fissão, o seu local de trabalho e o seu estabelecimento de formação profissional. O exercício da profissão pode ser regulado por lei ou com base numa lei.

2. Ninguém poderá ser obrigado a um trabalho determinado, salvo no cumprimento de uma prestação de serviço público, tradicional, geral e igual para todos.

3. O trabalho forçado só é admissível no caso de privação da liberdade imposta por sentença judicial.

ARTIGO 14.° ,(Propriedade, direito de sucessão e expropriação)

1. A propriedade e o direito de sucessão são garantidos. O seu conteúdo e os seus limites são determinados por lei.

2. A propriedade obriga. O seu uso deve ao mesmo tempo servir para o bem-estar geral.

3. A expropriação só é lícita se for efectuada em vista do bem comum. Pode ser efectuada apenas por lei ou com base numa lei que estabeleça a forma e a extensão da indemnização. A indemnização deve

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D ireitos Furidatnentais e Direito Privado 145

ser determinada levando-se em conta, de forma equitativa, os interesses da comunidade e os das partes afectadas. Em caso de divergência sobre o montante da indemnização é admitido o recurso à via judicial junto dos tribunais comuns.

ARTIGO 79.° j (Revisão da Lei Fundamental)

1. A Lei Fundamental só poderá ser revista por uma lei que altere ou complemente expressamente o seu texto. Em matéria de tratados inter­nacionais que tenham por objecto a regulamentação da paz, prepará-la ou abolir um regime de ocupação, ou que visem promover a defesa da Repú­blica Federal da Alemanha, será suficiente, para esclarecer que as dis­posições da Lei Fundamental não se opõem à conclusão e à entrada em vigor de tais tratados, um complemento ao texto da Lei Fundamental que se limite a este esclarecimento.

2. Tais leis carecem da aprovação por dois terços dos membros do Parlamento Federal e dois terços dos votos do Conselho Federal.

3. Será inadmissível qualquer revisão desta Lei Fundamental que afecte a divisão da Federação em Estados, a participação destes, em princípio, no processo legislativo, ou os princípios consagrados nos artigos1.° e 20.°.

ARTIGO 93.°(Tribunal Constitucional Federal; competência)

1. Compete ao Tribunal Constitucional Federal apreciar:1) A interpretação desta Lei Fundamental a propósito de lití­

gios acerca da extensão dos direitos e deveres de um órgão federal supremo ou de outras entidades envolvidas dotadas de direitos próprios por esta Lei Fundamental ou pelo regimento interno de um órgão federal supremo.

2) No caso de divergências de opinião ou dúvidas, a compa­tibilidade formal e material do direito federal ou estadual com esta Lei Fundamental, ou a compatibilidade do direito estadual com o restante direito federal, a requerimento do Governo Federal, do

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governo de um Estado ou de um terço dos membros do Parla­mento Federal.

2a) No caso de divergências de opinião, a conformidade de uma lei com as condições do n.° 2 do artigo 72.°, a requerimento do Conselho Federal, do governo de um Estado ou da representação do povo de um Estado.

3) A divergência de opinião acerca de direitos e deveres da Federação e dos Estados, especialmente no respeitante à execução do direito federal pelos Estados e ao exercício da fiscalização federal.

4) Outros litígios de direito público entre a Federação e os Estados, entre vários Estados e dentro de um Estado, desde que não exista outra via judicial.

4a) As queixas constitucionais, que podem ser interpostas por toda a gente com a alegação de ter sido lesado, pelo poder público, num dos seus direitos fundamentais ou num dos seus direitos consa­grados no n.° 4 do artigo 20.°, assim como nos artigos 33.°, 38.°, 101.°, 103.° e 104.°

4b) As queixas constitucionais interpostas por municípios e associações de municípios por violação, por uma lei, do direito da autonomia administrativa comunal ao abrigo do artigo 28.°; tratando- -se, porém, de leis estaduais, apenas se a queixa não puder interposta para o Tribunal Constitucional do respectivo Estado.

5) Os demais casos previstos nesta Lei Fundamental.2. Compete ainda ao Tribunal Constitucional Federal actuar nos

demais casos que lhe sejam atribuídos por lei federal.

ARTIGO 100.°(Inconstitucionalidade de leis)

1. Quando um tribunal considerar inconstitucional uma lei de cuja validade dependa a decisão, deverá suspender o processo e pedir a apre­ciação do tribunal do Estado competente para litígios constitucionais, se se tratar da viçlação da constituição de um Estado, ou a apreciação do Tribunal Constitucional Federal, se se tratar da violação desta Lei Fundamental. Isto vale igualmente nos casos de violação desta Lei Fundamental pelo direito estadual ou de incompatibilidade de uma lei estadual com uma lei federal.

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D ireitos Fundamentais e Direito Privado 147

2. Quando num litígio houver dúvidas sobre se uma regra do direito internacional público faz ou não parte integrante do direito federal e se produz ou não directamente direitos e deveres para o indivíduo (artigo 25.°), o tribunal deverá pedir a apreciação do Tribunal Constitucional Federal.

3. Quando o tribunal constitucional de um Estado, na interpretação da Lei Fundamental, pretender divergir de uma decisão do Tribunal Constitucional Federal ou do tribunal constitucional de um outro Estado, deverá pedir a apreciação do Tribunal Constitucional Federal.

2. C ó d ig o C iv il a l e m ã o

§134(Proibição legal)

É nulo o negócio jurídico que viole uma proibição legal, se o contrário não resultar da lei.

§138(Negócio jurídico contra os bons costumes;

negócio usurário)

1. É nulo o negócio jurídico que viole os bons costumes.2. É em especial nulo o negócio jurídico pelo qual uma pessoa,

explorando a situação de necessidade, de inexperiência, de falta de capa­cidade de juízo ou de significativa fraqueza de carácter de outrem, obtém para si ou para um terceiro a promessa ou a concessão de vantagens patri­moniais em contrapartida de uma prestação que está em clara despro­porção com aquelas.

§242(Prestação segundo a boa fé)

O devedor é obrigado a efectuar a prestação tal como a boa fé, considerando os usos do tráfico, o exige.

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§249(Modo e âmbito da indemnização)

Quem está obrigado a uma indemnização deve reconstituir o estado que existiria se o evento que obriga à indemnização se não tivesse verificado. Se a indemnização for devida por causa de lesão a uma pessoa ou de danos a uma coisa, o credor pode exigir, em vez da reconstituição, o montante pecuniário necessário para esta.

§305(Criação de relações obrigacionais)

Para a criação de uma relação obrigacional por negócio jurídico, bem como para a alteração do conteúdo da relação obrigacional, é necessário um contrato entre as partes, salvo se a lei dispuser em sentido diverso.

§536(Deveres do locatário)

1. O locador tem de entregar a coisa ao locatário em estado ade­quado ao uso em conformidade com o contrato, e de a manter durante o contrato nesse estado.

§556a(Oposição do locatário à denúncia)

1. O locatário pode opor-se à denúncia do arrendamento de espaços para habitação e exigir ao locador a prorrogação do contrato se a cessação, nos termos do contrato, da relação locatícia, representar, para o locatário ou para a sua família, uma desvantagem de tal dureza que, mesmo consi­derando os interesses legítimos do locador, se não justifique. Uma tal desvantagem existe também no caso de não poder ser encontrado um espaço para habitação em condições exigíveis. Na ponderação dos interes­ses legítimos do locador apenas são consideradas as razões indicadas na declaração de denúncia nos termos do § 564a, n.° 1, frase 2, a não ser que as razões tenham surgido supervenientemente.

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Direitos Fundamentais e D ireito Privado 149

2. No caso do n.° 1, o locatário pode exigir que a relação locatícia seja prorrogada pelo tempo adequado considerando todas as circunstâncias do caso. Se a prorrogação não for exigível ao locador nas condições con­tratuais até então vigentes, o locatário apenas pode exigir a prorrogação com uma alteração adequada das condições.

3. Se não existir acordo, decidir-se-á por sentença sobre a prorro­gação da relação locatícia e sua duração, bem como sobre as condições em que é prorrogada. Se não for certo quando desaparecerão as circunstâncias que fazem com que a cessação da relação locatícia seja uma desvantagem particularmente dura para o locatário ou a sua família, pode decidir-se que a relação se prorroga por tempo indeterminado.

4. O locatário não pode exigir uma prorrogação da relação locatícia:1) se tiver denunciado o contrato;2) se existir uma razão que legitime o locador a denunciar o

contrato sem observar o prazo de pré-aviso.5. A declaração do locatário pela qual se opõe à denúncia e exige

a prorrogação da relação locatícia requer forma escrita. A pedido do loca­dor, o locatário deve informá-lo sem demora sobre as razões da oposição.

6. O locador pode rejeitar a prorrogação da relação locatícia se o locatário não tiver declarado a oposição até dois meses antes da cessação da relação. Se o locador não tiver feito atempadamente, antes do decurso do prazo de oposição, a comunicação indicada no § 564a, n,° 2, o locatário pode ainda declarar a sua oposição até à data da primeira audiência da acção de despejo.

7. É ineficaz a estipulação em contrário.8. Estas disposições não valem para relações locatícias do tipo

indicado no § 564b, n.° 7, alíneas 1, 2, 4 e 5.

§564(Cessação da relação locatícia)

1. A relação locatícia cessa com o decurso do período pelo qual foi convencionada.

2. Se o período da locação não estiver determinado, qualquer uma das partes pode denunciar a relação locatícia nos termos do § 565.

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§564b(Interesse legítimo do locador na denúncia)

1. Sem prejuízo do regime do n.° 4, um arrendamento para habitação só pode ser denunciado pelo locador se este tiver um interesse legítimo na cessação da relação locatícia.

2. Considera-se existir um interesse legítimo na cessação da relação locatícia, designadamente, se

1) o inquilino tiver violado culposamente, e de forma não insignificante, as suas obrigações contratuais;

2) o locador necessitar do locado como habitação para si, para pessoas pertencentes ao seu agregado familiar ou para os seus familiares. Se, posteriormente à entrega ao inquilino, o locado tiver sido constituído em propriedade horizontal, o adquirente não pode invocar interesse legítimo no sentido don.° 1 antes de decorridos três anos a contar da aquisição. Se, num município ou numa parte dele, estiver especialmente em risco a satisfação suficiente das neces­sidades habitacionais da população com prédios arrendados em con­dições adequadas, o prazo da frase 2 é prolongado para cinco anos. Estas zonas são definidas por períodos de cinco anos por regula­mentos dos governos estaduais;

3) o locador, com a prorrogação da relação locatícia, seria im­pedido de uma utilização econômica adequada do prédio e, por esta razão, sofreria vantagens significativas. A possibilidade de, com outro arrendamento para habitação, obter uma renda superior, não é aqui considerada. O locador também não pode invocar que pretende alienar o prédio no contexto de uma constituição de propriedade horizontal que tenciona fazer ou posterior à entrega ao locatário. Se posteriormente à entrega ao locatário tiver sido constituída sobre o locado propriedade horizontal, e se esta tiver sido alienada, o adquirente não pode, nas zonas determinadas pelos governos estaduais nos termos do n.° 2, frase 4, invocar, antes de decorridos cinco anos sobre a alienação, que pretende alienar os espaços locados;3. Só são consideradas como interesse legítimo do locador as razões

que sejam'indicadas na declaração de denúncia, desde que não tenham surgido supervenientemente.

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D ireitos Fundamentais e D ireito Privado 151

4. Numa relação locatícia sobre um espaço habitacional num prédio habitado pelo próprio locador que não tenha mais do que dois apar­tamentos, ou com três apartamentos se pelo menos um destes tiver ficado pronto com a construção ou ampliação de um prédio habitado pelo próprio locador posteriormente a 31 de Maio de 1990 e antes de 1 de Junho de1995, o locador pode denunciar o contrato, mesmo que não se verifiquem os pressupostos do n.° 1. No caso do n.° 2, porém, em caso de conclusão do contrato depois das obras, apenas se tiver informado o locatário, no momento da conclusão do contrato, sobre a possibilidade de denúncia. O prazo de pré-aviso prolonga-se neste caso em três meses. Isto vale cor­respondentemente para relações locatícias sobre espaços habitacionais dentro do apartamento habitado pelo próprio locador, desde que aqueles espaços não estejam exceptuados da aplicação destas disposições nos termos do n.° 7. Na declaração de denúncia deve indicar-se que a denúncia se não funda nos pressupostos do n.° 1.

5. As disposições deste artigo não prejudicam normas que protejam o locatário com direitos mais favoráveis.

6. A estipulação menos favorável ao locatário não produz efeitos.7. As disposições deste artigo não valem para relações locatícias:

1) sobre espaços habitacionais que apenas são arrendados para usos temporários;

2) sobre espaços habitacionais que são parte do local habitado pelo próprio locador, e que o locador tem de dotar, no todo ou predo­minantemente, com mobília, desde que o espaço habitacional não seja entregue para utilização duradoura por uma família;

3) sobre espaços habitacionais que são parte de lares de estu­dantes ou de juventude.

4) sobre espaços habitacionais em casas e apartamentos de férias, situados em zonas de férias, desde que tenham sido entregues antes de 1 de Junho de 1995 e que, no momento da celebração do contrato, o locador tenha alertado o locatário para o fim do espaço habitacional e para a não aplicação dos n.°s 1 a 6;

5) sobre espaços habitacionais que uma pessoa colectiva de direito público arrendou no quadro de funções cometidas por lei, para os entregar a pessoas com urgente necessidade de habitação ou em fase de formação, desde que tenham sido entregues antes de 1 de Junho de 1995 e que, no momento da celebração do contrato, o

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locador tenha alertado o locatário para o fim do espaço habitacional e para a não aplicação dos n.°s 1 a 6.

§564c(Prorrogação de relações locatícias por tempo determinado)

1. Se um arrendamento sobre espaço habitacional tiver sido estipu­lado por tempo determinado, o inquilino pode exigir por declaração escrita ao locador, o mais tardar dois meses antes da cessação da relação locatícia, a prorrogação desta por tempo indeterminado, se o locador não tiver um interesse legítimo na cessação dessa relação. É correspondentemente aplicável o § 564b.

2. O locatário não pode exigir a prorrogação da relação locatícia nos termos do n.° 1 ou do § 556b, se:

1) a relação locatícia não foi estipulada por mais que cincoanos;

2) o locador, depois da cessação do prazo da locação:a) pretende utilizar o espaço como habitação para si, para pes­

soas que integram o seu agregado familiar ou para fami­liares seus; ou

b) de forma lícita, pretende afastar, alterar ou remodelar em termos tão essenciais os espaços, que estas medidas seriam significativamente dificultadas pela prorrogação da relação locatícia; ou

c) pretende arrendar espaços, que haviam sido arrendados em consideração da existência de uma relação de serviço, a ou­tra pessoa também obrigada a uma prestação de serviços; e

3) o locador comunicou por escrito ao locatário esta intenção no momento da conclusão do contrato.Se a aplicação dos espaços visada pelo locador se atrasar sem culpa

sua, ou se o locador não comunicar ao inquilino, três meses antes do termo do período do contrato, que a sua intenção de utilização ainda persiste, o inquilino pode exigir uma prorrogação da relação locatícia por um período correspondente.

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Direitos Fundamentais e D ireito Privado 153

§611(Conteúdo do contrato de prestação de serviços)

1. Pelo contrato de prestação de serviços fica a parte que promete os serviços obrigada à sua prestação e a outra parte obrigada ao pagamento da remuneração acordada.

2. O contrato de prestação de serviços pode ter por objecto serviços de qualquer tipo.

§624(Prazo de denúncia em contrato com mais de cinco anos)

Se a relação de prestação de serviços tiver sido constituída para toda a vida de uma pessoa, ou por um prazo superior a cinco anos, pode ser denunciada pelo obrigado depois de decorridos cinco anos. O prazo de pré-aviso é de seis meses.

§810(Consulta de documentos)

Quem tiver um interesse jurídico na consulta de um documento que se encontra em posse de outra pessoa pode exigir ao seu possuidor auto­rização para a consulta, se aquele tiver sido elaborado no seu interesse, se documentar uma relação jurídica entre ele e outra pessoa, ou se o do­cumento contiver negociações sobre um negócio jurídico conduzidas entre elé e outra pessoa ou entre um dos dois e um intermediário comum.

§823(Obrigação de indemnização)

1. Quem, com dolo ou negligência, ofender ilicitamente a vida, o corpo, a saúde, a liberdade, a propriedade ou outro direito de outra pessoa fica obrigado a indemnizar a esta pelos danos resultantes da ofensa.

2. A mesma obrigação recai sobre a pessoa que violar uma lei que

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vise proteger outra pessoa. Se, segundo o conteúdo da lei, for possível uma ofensa contra ela mesmo sem culpa, a obrigação de indemnização só existe em caso de culpa.

§826(Lesão dolosa contra os bons costumes)

Quem causar dolosamente danos a outra pessoa de forma contrária aos bons costumes fica obrigado a indemnizá-los.

§833(Responsabilidade do detentor de animal)

Se um aniiftal matar uma pessoa ou lhe provocar uma lesão no corpo ou na saúde, a pessoa que detém o animal fica obrigada a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da ofensa. A obrigação de indemnização não existe quando o dano for causado por um animal doméstico destinado a servir na profissão, na actividade econômica ou na subsistência do de­tentor, e este tenha observado o cuidado exigível no tráfico na vigilância do animal, ou o dano se tivesse verificado mesmo se aquele cuidado tivesse sido observado.

§858(Proibição da força privada)

1. Quem, contra a vontade deste, esbulhar o possuidor ou o perturbar na posse actua, se a lei não permitir o esbulho ou a perturbação, ilici­tamente (proibição da força privada).

2. A posse adquirida por força privada proibida não é titulada. A falta de título é oponível ao sucessor na posse se este for herdeiro do possuidor ou se, no momento da aquisição, conhecer a falta de título da posse do seu antecessor.

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D ireitos Fundamentais e D ireito Privado 155

§903(Poderes do proprietário)

O proprietário de uma coisa pode agir em relação a ela como en­tender e excluir todos os outros de qualquer interferência, desde que a tanto se não oponham a lei ou direitos de terceiros. No exercício dos seus poderes o proprietário de um animal deve respeitar as disposições espe­ciais para protecção dos animais.

§906(Emissão de elementos imponderáveis)

1. O proprietário de um prédio não pode proibir a emissão de gases, vapores, cheiros, fumo, fuligem, calor, ruídos, vibrações, e outras inter­ferências análogas, resultantes de um outro prédio, na medida em que a interferência não perturbar a utilização do seu prédio, ou não o fizer de forma essencial. Uma perturbação não essencial existe, em regra, se os valores-Iimite ou padrão fixados por lei ou regulamento não forem ultra­passados por interferências reguladas ou avaliadas por estes preceitos. O mesmo vale para valores fixados em preceitos administrativos gerais que sejam aprovados nos termos do § 48 da Lei Federal de Protecção contra as Imissões, e que reflictam o estado da técnica.

2. O mesmo vale na medida em que uma perturbação não essencial seja causada por uma utilização do outro prédio comum na região que não possa ser impedida por medidas economicamente exigíveis aos utili­zadores deste tipo. Quando o proprietário do outro prédio tiver, nestes termos, de tolerar uma interferência, tem direito a exigir dos utilizadores do outro prédio uma compensação pecuniária adequada se essa interferência perturbar para além do exigível a utilização do seu prédio comum na região ou o rendimento deste.

3. É proibida a emissão através de uma canalização específica.

§985(Pretensão de restituição)

O proprietário pode exigir ao possuidor a restituição da coisa.

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§1004(Pretensão de afastamento e de inibição)

1. Se a propriedade for perturbada de forma diversa do esbulho ou do impedimento da posse, o proprietário pode exigir ao autor da pertur­bação o afastamento desta. Se forem de recear novas perturbações, o pro­prietário pode instaurar uma acção inibitória.

2. A pretensão não existe se sobre o proprietário impender uma obrigação de tolerância.

§1596(Direito de anular do filho)

1. O filho pode impugnar o seu nascimento do casamento se:1) o marido faleceu ou foi declarado morto, sem ter perdido o

direito de anulação nos termos do § 1594;2) os cônjuges se separaram, o casamento foi dissolvido ou

declarado nulo, ou se os cônjuges vivem há três anos separados e não é de esperar que reconstituam a comunidade conjugal de vida;

3) a mãe casou com o homem que concebeu o filho;4) a anulação se justifica por causa de condução de vida deson­

rada ou contra os bons costumes ou por causa de uma falta grave do marido contra o filho;

5) a anulação se justifica por causa de uma grave doença here­ditária do marido.2. Nos casos das alíneas 1 a 3 do número anterior, o filho apenas pode

impugnar no prazo de dois anos. O prazo começa no momento do conhe­cimento pelo filho das circunstâncias que depõem no sentido do nascimento fora do casamento e dos factos que, nos termos das alíneas 1, 2 e 3 do n.° anterior, constituem pressuposto da anulação. Os preceitos relativos à prescrição dos §§ 203 e 206 são correspondentemente aplicáveis.

§1601(Parentes em linha recta)

Os parentes em linha recta estão obrigados a prestar-se mutuamente alimentos.

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D ireitos Fundamentais e D ireito Privado 157

§ 1615a(Aplicação das regras gerais)

Para o dever de alimentos em relação a crianças nascidas fora do casamento valem as regras gerais, na medida em que nada em sentido diverso resulte das disposições seguintes.

§1629(Representação do filho)

1. O poder paternal compreende a representação do filho. Os pais representam o filho em comum. Se for dirigida uma declaração de vontade ao filho, basta a recepção por um dos progenitores. Um dos progenitores é o único representante do filho se exercer sózinho o poder paternal ou tiver sido encarregado de decidir, nos termos do § 1628. Em caso de risco na demora, cada progenitor pode realizar todos os actos jurídicos neces­sários para o bem do filho; o outro progenitor deve ser informado sem demora.

2. O pai e a mãe não podem representar o filho na medida em que um tutor está excluído da representação da criança nos termos do § 1795. Se o poder paternal em relação a um filho couber em comum aos pais, o progenitor a cujo cargo o filho esteja pode exigir alimentos do filho ao outro progenitor. O tribunal de família pode retirar ao pai e à mãe a representação nos termos do § 1796. Isto não se aplica ao estabelecimento da paternidade.

3. Se os pais da criança forem casados um com o outro, e se viverem separados ou estiver pendente entre eles um processo familiar, cada um deles apenas pode exigir alimentos ao outro em nome próprio. Uma deci­são judicial obtida por um dos pais e uma transacção judicial acordada entre os pais tem também efeitos em relação a, e contra, o filho.

§1934a(Pretensão de compensação sucessória)

1. O filho nascido fora do casamento e os seus descendentes têm direito, por morte do pai, bem como por morte dos parentes progenitores,

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a par dos descendentes nascidos do casamento e do cônjuge do autor da sucessão, a uma compensação sucessória contra o herdeiro, no montante do vaíor da sua quota sucessória.

2. Por morte do filho nascido fora do casamento o pai e seus des­cendentes têm direito, a par da mãe e dos seus descendentes nascidos do casamento, à compensação sucessória referida no n.° 1, em substituição da quota sucessória legal.

3. Por morte do filho nascido fora do casamento, bem como por morte do filho de um filho nascido fora do casamento, o pai do filho nascido do casamento e os seus parentes têm direito, a par do cônjuge sobrevivo do autor da sucessão, à compensação sucessória prevista no n.° 1, em substituição da quota sucessória legal.

4. Se, nos termos dos n.°s 1 e 2, for decisiva para o surgimento da pretensão de compensação sucessória a existência de descendentes nascidos do casamento, o filho nascido fora do casamento é equiparado, na relação com a sua mãe, a um filho nascido do casamento.

§ 1934b(Cálculo da pretensão de compensação sucessória;

preceitos aplicáveis; prescrição)

1. O cálculo da pretensão de compensação sucessória tem por base existência e o valor da herança no momento da abertura da sucessão. Se necessário, o valor é determinado por estimativa. O § 2049 é correspon­dentemente aplicável.

2. À pretensão de compensação sucessória, são aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições relativas à legítima, com excepção dos §§ 2303 a 2312, 2315, 2316, 2318, 2322 a 2331 e 2332 a 2338a, bem como as disposições relativas à aceitação e à rejeição de um legado. A pretensão de compensação sucessória prescreve em três anos a contar do momento em que o legitimado para a compensação sucessória tem conhe­cimento da abertura da sucessão e das circunstâncias das quais resulta a existência da pretensão, e o mais tardar em trinta anos a contar da aber­tura da sucessão.

3. À pretensão de compensação sucessória de um descendente do autor da sucessão são também aplicáveis as disposições sobre a obrigação de compensação entre descendentes que sucedem como herdeiros legítimos.

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D ireitos Fundamentais e D ireito Privado 159

§1934d(Compensação sucessória antecipada do filho nascido

fora do casamento)

1. Um filho nascido fora do casamento que tenha completado vinte e um anos, mas ainda não vinte e sete anos, pode exigir ao pai uma compensação sucessória antecipada em dinheiro.

2. O montante da compensação é o triplo dos alimentos que o pai teria em média de pagar anualmente ao filho nos últimos cinco anos em que este tenha sido totalmente carente de alimentos. Se, segundo as condições de rendimento e de patrimônio do pai, e considerando as suas outras obriga­ções, um pagamento nesse montante não for exigível ao pai, ou se for desproporcionadamente reduzido para o filho, o montante da compensação é determinado segundo o adequado às circunstâncias, sendo pelo menos igual a, e no máximo doze vezes, o montante de alimentos referido na frase 1.

3. A pretensão prescreve no prazo de três anos a contar do momento em que o filho completou vinte e sete anos.

4. O acordo entre o filho e o pai sobre a compensação sucessória exige documentação por notário. Antes da documentação de um acordo ou do trânsito em julgado da decisão sobre a compensação sucessória, o filho pode retirar a exigência da compensação sem a concordância do pai. Se não vier a existir uma compensação sucessória, são correspondentemente aplicáveis aos pagamentos que o pai tenha efectuado em vista da compen­sação, e cuja devolução não tenha exigido, as disposições do § 2050, n.° 1, do § 2051, n.° l e d o §2315.

5. O pai pode exigir o diferimento do montante da compensação se tiver de pagar ao filho alimentos correntes e na medida em que o paga­mento, a par dos alimentos, não lhe seja exigível. Em outras situações, o pai pode exigir o diferimento se o pagamento imediato de todo o montante da compensação o atingisse de forma particularmente dura, e se o diferi­mento for exigível ao filho. O § 1382 é correspondentemente aplicável.

§2333(Deserdação de um descendente)

O testador pode retirar a um descendente a legítima:1) se o descendente tiver atentado contra a vida do testador, do

seu cônjuge ou de outro descendente;

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2) se o descendente for responsável por uma lesão corporal dolosa do testador ou do seu cônjuge, desde que, quanto ao cônjuge, seja também seu descendente;

3) se o descendente for responsável por um crime ou um delito doloso grave contra o testador ou o seu cônjuge;

4) se o descendente violar de má fé a obrigação legal de alimentos que sobre ele recaía em relação ao testador;

5) se o descendente levar uma vida desonrada ou contra os bons costumes, contra a vontade do testador.

3. C ó d ig o C o m e r c ia l a l e m ã o

§60(Auxiliares)

1. O auxiliar (**.Handlungsgehilfe”) não pode, sem a autorização do principal, conduzir uma empresa comercial ou realizar negócios por conta própria ou alheia no domínio de actuação comercial do principal.

2. A autorização para exercer uma empresa comercial considera-se dada se o principal, por ocasião da contratação do auxiliar, tiver conhe­cimento de que o auxiliar continua a promover a actividade e não tiver convencionado expressamente a sua cessação.

§74(Probição contratual de concorrência;

carência remunerada)

1. Um acordo entre o principal e o auxiliar que limite a actividade econômica deste para o período posterior ao termo da relação de prestação de serviços (proibição de concorrência) requer forma escrita e a entrega ao auxiliar de um documento, assinado pelo principal, contendo as dispo­sições convencionadas.

2. A proibição de concorrência só é obrigatória se o principal se obrigar a pagar, pelo período da proibição, uma compensação que atinja, por cada ano de proibição, pelo menos metade das prestações recebidas ultimamente pelo auxiliar nos termos do contrato.

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D ireitos Fundamentais e D ireito Privado 161

§74a(Proibição não vinculante ou nula)

1. A proibição de concorrência não obriga na medida em que não sirva para a protecção de um interesse negociai legítimo do principal. Também não obriga na medida em que, considerando a compensação concedida segundo o âmbito geográfico, duração e objecto, contenha um obstáculo desrazoável à progressão do auxiliar. A proibição não pode ser estendida por um período de mais de dois anos a contar do termo da relação de prestação de serviços.

2. A proibição é nula se, no momento da conclusão, o auxiliar for menor, ou se o cumprimento for obtido pelo principal sob palavra de honra ou garantias semelhantes. É também nulo o acordo pelo qual um terceiro se obriga, em vez do auxiliar, a que este se limitará na sua actividade econômica após o termo da relação de prestação de serviços.

3. Não é prejudicado o preceito do § 138 do Código Civil, sobre a nulidade de negócios jurídicos que violem os bons costumes.

§74b(Pagamento e cálculo da compensação)

1. A compensação a conceder ao auxiliar nos termos do § 74, n.° 2, deve ser paga no final de cada mês.

2. Se as prestações a que o auxiliar tem direito nos termos do contrato consistirem numa provisão ou noutros rendimentos variáveis, são contados para o cálculo da compensação segundo a média dos últimos três anos. Se, no momento da cessação do contrato, a estipulação contratual decisiva para os rendimentos não tiver ainda três anos, considera-se a média do período durante o qual a estipulação vigorou.

3. Não são considerados os rendimentos na medida em que deves­sem servir para a compensação de despesas especiais que surgiram por causa da prestação de serviços.

§74c(Desconto de outros rendimentos)

1. São descontados ao montante da compensação do auxiliar os

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rendimentos que, durante o período pelo qual aquela é paga, este adquira, ou deixe de adquirir de má fé, pelo emprego em sentido diverso da sua força de trabalho, até ao ponto em que a compensação, somada com esses rendimentos, ultrapasse em mais de um décimo o montante das prestações contratuais por ele ultimamente recebidas. Se o auxiliar tiver sido forçado, pela proibição de concorrência, a mudar o seu domicílio, o limite aplicável é, não de um décimo, mas de um quarto. Durante o período de cumpri­mento de uma pena privativa de liberdade não pode ser exigida a com­pensação pelo auxiliar.

2. O auxiliar está obrigado a, a pedido do principal, informar este sobre o montante dos seus rendimentos.

§90a(Pacto de concorrência)

1. Uma convenção que limita o representante comercial na sua acti- vidade após a cessação de uma relação contratual (pacto de não concor­rência) carece da forma escrita e da entrega ao representante comercial de um exemplar, assinado pelo empresário, do documento onde tal restrição foi convencionada. A proibição pode ser convencionada pelo prazo máximo de dois anos, contados a partir da cessação da relação contratual; ela deve limitar-se à circunscrição ou círculo de clientes atribuído ao representante comercial e abrange apenas os objectos em relação aos quais o representante comercial está obrigado a negociar ou a celebrar negócios para o empreendedor. O empresário fica obrigado a pagar ao representante uma compensação adequada pelo tempo de duração da limitação da livre concorrência.

2. O empresário pode, até ao termo da relação contratual, renunciar por escrito à restrição da concorrência, com o efeito de, após o decurso de seis meses contados a partir da manifestação, ficar liberado do pagamento da compensação.

3. Se uma parte denunciar o contrato por motivo relevante em virtude de culpa da outra parte, pode liberar-se por escrito da restrição da concorrência, no prazo de um mês contado da denúncia do contrato.

4. Não podem ser convencionadas condições divergentes e mais onerosas para o representante comercial.

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§112(Proibição de concorrência)

1. Um sócio não pode, sem a correspondente autorização dos demais sócios, efectuar negócios no domínio da actividade comercial da empresa nem participar em outra sociedade comercial similar na condição de sócio pessoalmente responsável.

2. A autorização para participar em outra sociedade considera-se outorgada se os demais sócios da empresa, por ocasião do seu ingresso na sociedade, tiverem conhecimento de que o sócio integra outra sociedade na condição de pessoalmente responsável, e mesmo assim não exigirem a cessação desta participação.

4. C ó d ig o d e P r o c e sso C iv il alem ão

§888(Actos não fungíveis)

1. Se um acto não puder ser realizado por um terceiro e depender exclusivamente da vontade do devedor, o tribunal do processo de primeira instância deve, a requerimento, declarar que o devedor pode ser levado a realizar a acção mediante uma sanção pecuniária compulsória e, no caso de esta não ser cumprida, mediante privação da liberdade compulsória. Cada sanção pecuniária não pode ultrapassar o montante de 50000 marcos alemães. À privação de liberdade são correspondentemente aplicáveis os preceitos do capítulo quarto sobre prisão.

2. As disposições precedentes não são aplicáveis no caso de con­denação à celebração de um casamento, no caso de condenação ao resta­belecimento da coabitação do casal, e no caso de condenação a prestação de serviços resultante de um contrato de prestação de serviços.

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164 Claus-W ilhelm Canaris

5. L ei d e P r o t e c ç ã o c o n t r a o s D e spe d im en to s

(“Kündigungsschutzgesetz:”)

§23(Âmbito de aplicação)

1. As disposições da primeira e da segunda secção valem para empresas e entidades de direito público e de direito privado, ressalvadas as disposições do § 24 para as empresas de navegação marítima e fluvial e de transporte aéreo. As disposições da primeira secção não valem para empresas e entidades que, em regra, ocupam cinco ou menos trabalhadores exclusivamente para a sua formação profissional. Na determinação do número de trabalhadores ocupados de acordo com a frase anterior, devem ser considerados com 0,5 os trabalhadores em tempo parcial com carga horária regular semanal não inferior a vinte horas, e com 0,75 os traba­lhadores com carga não superior a trinta horas.

2. As disposições da segunda secção valem para empresas e enti­dades de direito privado bem como para empresas que são dirigidas por uma administração pública, na medida em que visam alcançar objectivos econômicos. Elas não se aplicam a navios e sua tripulação.

6. L ei s o b r e a c o n t in u a ç ã o do pa g a m en to d o sa l á r io

§3(Pretensão de continuação do pagamento do salário

em caso de doença)

1. Se um trabalhador ficar impedido de exercer a sua actividade por incapacidade decorrente de doença, sem que lhe possa ser atribuída a culpa pela incapacidade, tem direito à continuação do pagamento integral do seu salário por parte do empregador pelo tempo da incapacidade para o trabalho, até ao limite de seis semanas. Se o trabalhador resultar nova­mente incapacitado para o trabalho em virtude da mesma doença, não perderá o direito à remuneração integral previsto na primeira parte, por um novo período de no máximo seis semanas, quando

1) Não tiver ficado incapaz para o trabalho em virtude da mesma doença por um período de, pelo menos, seis meses antes de contrair novamente a doença, ou

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D ireitos Fundamentais e D ireito Privado 165

2) Desde o início da primeira incapacidade para o trabalho emvirtude da mesma doença, tiver decorrido um prazo de doze meses.2. Como incapacidade laborai não culposa, no sentido do n.° 1,

também se considera a incapacidade resultante de uma esterilização não ilícita ou de uma interrupção da gravidez licitamente efectuada. Isto vale para a interrupção da gravidez, quando esta for efectuada por um médico no prazo de doze semanas a contar da concepção, a mulher grávida exigir a interrupção, e comprovar ao médico que procurou aconselhamento por parte de uma entidade de orientação reconhecida, pelo menos três dias antes do procedimento.

3. O direito previsto no n.° 1 surge depois de decorridas quatro semanas ininterruptas de duração da relação de trabalho.

7. L ei da s Á g u a s

§22(Responsabilidade pela alteração da composição

ou da qualidade da água)

1. Quem introduzir elementos numa fonte de água ou quem actuar de tal modo sobre uma fonte de águas a ponto de alterar a composição física, química ou biológica da água, fica obrigado a ressarcir os danos provocados a terceiros. Se forem vários os causadores do dano, respon­derão solidariamente.

2. Se a partir de uma instalação destinada a produzir, alterar, depo­sitar, transportar e desviar quaisquer elementos, estes chegarem a uma reserva de águas, ou se forem nesta introduzidos, o proprietário da ins­talação fica obrigado a indemnizar o dano dessa forma causado a terceiros. É correspondentemente aplicável o n.° 1, frase 2. A obrigação de indemnizar não existe quando o dano tiver sido causado por forca maior.

3. Se um direito de indemnização dos danos causados, de acordo com o § 11, não puder ser exercido, o prejudicado deverá ser indemnizado de acordo com o disposto no § 10, n.° 2. O requerimento será admissível mesmo transcorrido o prazo de 30 anos.

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BGHZBVerfGBVerfGEBVerfGGDVBl

VerwArchZG

ÍNDICE DE ABREVIATURAS

- Archiv für die civilistische Praxis- Archiv des qffentlichen Rechts~ Arbeitsrechtliche Praxis - Nachschlagewerk des Bundesar-

beitsgericht- Bundesarbeitsgericht - Arbeitsrechtliche Praxis- Código Civil alemão- Entscheidungen des Bundesgerichts (suíço)- Entscheidungen des Bundesgerichtshofes in Zivilsachen- Bundesverfassungsgericht~ Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts- Gesetz des Bundesvergassungsgerichts- DeutscheVerwaltungsblÜtter- Europaische Grundrechte-Zeitschrift- Zeitschrift für das gesamte Familienrecht- Grundgesetz-Kommentar- Handbuch des Staatsrechts- Juristische Ausbildung- Juristische Schulung- Juristenzeitung- Lei Fundamental da República Federal da Alemanha- Münchener Kommentar zum BGB- Neue Juristische Wochenschrift- Neue Zeitschrift für Arbeits-und Sozialrecht- õsterreichische Juristiche Blãtter ~ Recht der Datenverarbeitung- Schweizerische Juristenzeitung- Verwaltungsarchiv- Zeitschrift für Gesetzgebung

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A temática Direitos Fundam entais e Direito Privado c particular­mente apropriada para um debate que ultrapasse as fronteiras das ordens jurídicas nacionais. Espera-se, por isso, que a presente tradução do livro do Prof. Claus-Wilhelm Canaris possa consti­tuir um contributo efectivo e estimulante para esse debate. Esta esperança vale, sobretudo, para o modelo dogmático basilar desenvolvido na obra, assente na distinção entre a função dos direitos fundamentais com o proibições de intervenção e como imperativos de tutela. A teoria dos deveres de protecção de direitos fundamentais, bem com o a “descoberta” da chamada “proibição de insuficiência” (em que a problemática da omissão ganha relevo) abrem um leque de perspectivas dogmáticas, cuja aplicação, por um dos maiores juristas da actualidade, à questão da eficácia dos direitos fundamentais no direito privado, merece ser trazida ao conhecim ento do público de língua portuguesa.

ISBN 978-972-40-1982-6