claus wilhelm canaris - pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito

75
PENSAMENTO SISTEl\1ATICO E CONCEITO DE SISTEl\1A A NA CIENCIA DO DIREITO Introdução e tradução de A. MENEZES CORDEIRO

Upload: fillipe-cardoso-passos

Post on 29-Jul-2015

899 views

Category:

Documents


22 download

TRANSCRIPT

Page 1: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

PENSAMENTO SISTEl\1ATICOE CONCEITO DE SISTEl\1A

A

NA CIENCIA DO DIREITO

Introdução e tradução deA. MENEZES CORDEIRO

Page 2: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

A questão do significado da ideia de sistema paraa Ciência do Direito é dos temas mais discutidos dametodologia jurídica. Em poucas controvérsias estão,ainda hoje, as opiniões tão divididas. Enquanto, porexemplo, SAUERexclama com ênfase: «Apenas o sis-tema garante conhecimento, garante cultura. Apenasno sistema é possível verdadeiro conhecimento, ver-dadeiro saber» (1) e H. J. ,WOLFF diz: «A Ciência doDireito ou é sistemática ou não existe» (2), EMGEopina, com discrição céptica: «Um sistema é sempreum empreendimento da razão com um conteúdo exa-gerado» (3) ~ uma afirmação que está apenas a curtadistância da célebre frase de NIETZSCHEque caracte-rizou a aspiração ao sistema como uma «falta naconsecução do Direito» e uma «doença no carác-ter» (4). No que respeita, em particular, ao direitoprivado, a discussão metodológica mais importante

(1) Juristische Methodenlehre (1940), p. 171.(2) Typen im Recht und in der Rechtswissenschaft, StG

1952,p. 195 ss. (205).(3) Einführung in die Rechtsphilosophie (1955), p. 378.(4) Gesammelte Werke (1895-1912), voI. VIII, p. 64 e

vaI. XIV, p. 354, respectivamente. Justamente a propósito deum princípio metodológico das ciências do espírito, BOLLNOW

enfoca a desconfiança contra o sistema; cf. Die Objektivitat derGeisteswissenschaften und die Frage nach dem Wesen derWahrheit, Zeitschr. f. Philosophische Forschung 16 (1962),p. 3 ss. (15 s.).

Page 3: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

deste século - travada entre a «jurisprudência dosconceitos» e a «jurisprudência dos interesses» - nãofoi mais, em última análise, do que uma controvérsiasobre o sentido, a forma e os limites da formaçãodo sistema jurídico. Mais recentemente, THEonoRVIEHWEG,através do seu escrito sobre «Tópica eCiência do Direito» (5), renovou finalmente a discus-são e encontrou, pela sua crítica ao sistema, querassentimento enérgico, quer recusa firme.

Tais afinco e agudez da discussão não são, demodo algum, de admirar, pois subjazem questões cen-trais da Metodologia e da Filosofia do Direito. Comoficaria claro, sobretudo com a discussão em torno dasteses de VIEHWEG,trata-se, afinal, dos fundamentosda nossa disciplina, em especial do auto-entendimentoda Ciência do Direito como Ciência e da especifici-dade do pensamento e da argumentação jurídicos.Mais ainda: como a metodologia jurídica, em toda asua extensão, está numa conexão estreita com a Filo-sofia do Direito em geral, colocamo-nos, com celeri-dade, perante a problemática dos «valores jurídicosmais elevados» e da relação entre eles (6).

A discussão travada até hoje padece frequente-mente da inexistência de clareza quanto ao seuobjecto, - o conceito de sistema - seja no campoterminológico, seja no material. Assim por exemplo,

VIEHWEGfoi contraditado por DIEDERICHSENpor terconduzido uma «luta contra moinhos de vento» e um«combate aparente», visto o sistema axiomático--lógico, por ele questionado, não ser, há muito, defen-dido por ninguém (7) - e, com efeito, aqui está umafraqueza essencial do trabalho de VIEHWEG(8). Nãoobstante, e na melhor das hipóteses, apenas se encon-tram, na literatura, respostas parciais à questão doconceito de sistema, pressuposto a cada passo. Semuma clarificação desse conceito falta, à discussão dosistema, uma base indispensável; na sequência, vai-setentar obter, sobre o assunto, uma clareza maior.

(5) 1."ed., 1953,actualmente na 2." ed., 1965.(A ed. maisrecente, a 5.", data de 1974-nota do tradutor).

(6) Cf., com mais pormenores, infra §§ 1 II 2, 4- IV 3,5 lI, 6 I 4 b e 7 lI.

(7) Topisches und systematisches Denken in der Juris-prudenz, NJW 1966, p. 697 S8. (700).

(8) Cf., com mais pormenores, infra § 7 e, aí, a nota 64.

Page 4: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

§ 1.° A FUNÇÃO DA IDEIA DE SISTEMANA CIÊNCIA DO DIREITO

A elaboração de considerações mais pormenoriza-das sobre o conceito de sistema jurídico pressupõe, .para já, que se clarifiquem dois pontos: em primeir]lugar, o do conceito geral ou filosófico de sistema e,em segundo, o da tarefa particular que· ele podedesempenhar na Ciência do Direito (1).

1-AS QUALIDADES DA ORDEM E DA UNIDADE COMOCARACTERiSTICAS DO CONCEITO GERAL DE SiSTEMA

Sobre o conceito geral de sistema deveria domi-nar - com múltiplas divergências em aspectosespecíficos - no fundamental, uma concordânciaextensa (2): é ainda determinante a definição clássica

(1) Para a justificação deste procedimento na formaçãode conceitos, cf. CANARIS, Die Feststellung von Lücken imGesetz (1964), p. 15 S., onde foi utilizado o mesmo caminhopara a determinação do conceito de lacuna.

(2) RITSCHL, System und systematische Methode in derGeschichte des wissenschaftlichen Sprachgebrauchs und derphilosophischen Methodologie, 1906, dá um bom panoramahistórico sobre a evolução do termo «sistema».

Page 5: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

te KANT, que caracterizou o sistema como «a unidade,sob uma ideia, de conhecimentos variados» (3) ou,também, como «um conjunto de conhecimentos orde-

i nado segundo princípios» (4). De modo semelhante,

)

por exemplo, no «Dicionário dos conceitos filosófi-cos» de EISLER (5), define-se sistema: «1. Objectivo:um conjunto global de coisas, processos ou partes, noqual o significado de cada parcela é determinadopelo conjunto supra-ordenado e supra-somativo ( ... )2. Lógico: uma multiplicidade de conhecimentos, uni-ficada e prosseguida através de um princípio, paraum conhecimento conjunto ou para uma estruturaexplicativa agrupada em si e unificada em termosinteriores lógicos, como o correspondente, o maispossível fiel, de um sistema real de coisas, isto é,de um conjunto de relações das coisas entre si, quenós procuramos, no processo científico, 'reconstruir'de modo aproximativo». As definições que se encon-tram na literatura jurídica correspondem-Ihe, também,largamente. Assim, por exemplo, segundo SAVIGNY,

o sistema é a «concatenação interior que liga todosos institutos jurídicos e as regras de Direito numa

grande unidade» (6), segundo STAMMLER «uma unidadetotalmente coordenada» (7), segundo BINDER, «umconjunto de conceitos jurídicos ordenado segundopontos de vista unitários» (8), segundo HEGLER, «arepresentação de um âmbito do saber numa estruturasignificativa que se apresenta a si própria como orde-nação unitária e concatenada» (9), segundo STOLL um«conjunto unitário ordenado» (10) e segundo COING

uma «ordenação de conhecimentos segundo um pontode vista unitário» (11).

(6) System des heutigen rõmischen Rechts, vaI. I (1840),p. 214 (também p. XXXVI e p. 262).

(7) Theorie der Rechtswissenschaft, 2." ed. (1923), p. 221;de igual modo Lehrbuch der Rechtsphilosophie, 3." ed. 1928;concordam, p. ex., BINDER, Rechtsbegriff und Rechtsidee (1915),p. 158 s. e Philosophie des Rechts (1925), p. 922; ENGISCH, Sinnund Tragweite juristischer Systematik, StG 10 (1957), p. 173 ss.(186).

(8) Philosophie des Rechts, loco cit.; de igual medoRechtsbegriff und Rechtsidee, loco cito e, mais tarde, ZHR 100,p. 34 S. e 78.

(9) Zum Aufbau der Systematik des Zivilprozessrechts,em: Festgabe für Heck, Rümelin und Schmidt (1931), p. 216.

(10) Begriff und Konstruktian in der Lehre der Int~res-senjurisprudenz, Festgabe für Heck, etc. (cf. nota anterIor),p.77.

(11) Geschichte und Bedeutung des Systemgedankes inder Rechtswissenschaft, Frankfurter Univertitatsreden Heft 17,citado segundo COING, Zur Geschichte des Privatrechtssystems,(1962), p. 9; cf., também, COING, Bemerkungen zum überkomme-nen Zivilrechtssystem, em: Festschrift für Dalle (1963), p. 25.

(3) Cf. Kritik der reinen Vernunft, L" ed. (1781), p. 832e 2." ed. (1787), p. 860, respectivamente.

(4) Cf. Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissen-.schaft, 1." ed. (1786), preâmbulo, p. IV.

(5) Worterbuch der philosophischen Begriffe, 4." ed..(1930), voI. lU, palavra «System».

Page 6: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

/ Há. ~u~s características que emergiram em todas I, as defIlllçoes (12).i,J! da or~ e a da unidade; elas

estão, uma para com a outra, na mais estreita reÍaçãode intercâmbio, mas são, no fundo, de separar (13).No que respeita, em primeiro lugar, à ordenação, pre-ende-se, com ela - quando se recorra a uma· o

mulação muito geral, para evitar qualquer restriçãoprecipitada - exprimir um estado de coisas intrín-seco racionalmente apreensível, isto é, fundado narealidade. No que toca à unidade, verifica-se que estefacto r modifica o que resulta já da ordenação, pornão permitir uma dispersão numa multitude de .':3ingu-

laridades desconexas (14), antes devendo deixá-Iasreconduzir-se a uns quantos princípios fundamentais.Deve-se, assim, distinguir sempre duas formas ou

elhor, dois prismas do sistema: por um lado. o sis;.tema de conhecimentos, que EI~ba definiçãocItada, chama de «lógico» e que, na e uêncla, demo o mais genérico, será a~elid~do de «científico» e,~]Jtro, o sistema dos dl;jectos d;::<Conbecjmen~o,a propósito do qual, com razão.!.-EISLER fala de ~IS-t~ma «objectivo» ou «real». Ambos estão, de factoem conexão estreita, devendo o primeiro ser «o cor-respondente o mais fiel possível» (15) do último, demodo a que a elaboração científica de um objectonão desvirtue este, falseando, com isso, a sua finali-dade. Segue-se imediatamente daí, para a formaçãojurídica do sistema. que esta só será possível quandoo seu objecto, isto é, o Direito, aparente tal sistema«objectivo». Qualquer outra precisão sobre o signifi-cado da «ideia de sistema» na Ciência do DireitOflsobre o correspondente conceito de sistema pressupõe:por isso, o esclarecimento da questão sobre se e ate •onde possui o Direito aquelas orden~ção e unidade, >indispensáveis como fundamento do SIstema. ---/

(12) Por vezes, aparece ainda referida a característicada plenitude; cf., principalmente, STAMMLER, Theorie derRechtswissenschaft, loco cit., p. 221 s., em ligação com KANT:

«O conjunto... pode, na verdade, crescer interiormente (perintus susceptionem), mas não exteriormente (per appositionem),como um corpo animal, cujo crescimento não implica qualquersoma, antes levando, sem modificação das proporções, à melho-ria da força e da capacidade de cada um, face aos seus esco-pos» (Kritik der reinen Vernunft, loco cit., pp. 833 e 861 res-pectivamente). Esta característica não pode, em caso a;gum,assistir ao sistema jurídico porque este, por força da «abertura»do «sistema objectivo» (cf., quanto a isto, infra § 3 II), podesempre crescer também «per appositionem». O elemento da«plenitude» poderia, contudo, não ser essencial ao conceitogeral de sistema, mas reportar-se a uma sua delimitação deter-minada. - Quanto à exigência da «plenitude» num sistemaaxiomático no sentido da logística cf. infra p. 26 e p. 27 S.

(13) Certo STAMMLER, ob. cit., p. 222.

(14) Poder-se-ia, ainda aqui, falar de ordenação uma vezque a conexão já representa, em particular, uma das suas for-mas, enquanto cada ordenação como tal comporta sem dúvida,já em si, a tendência para a unidade (cf. também a nota 13).

(15) Cf. EISLER, ob. e loc. cito

Page 7: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

11- A ADEQUAÇÃO VALORATIVA E A UNIDADE INTERIORDA ORDEM JURíDICA COMO FUNDAMENTOS DO SISTEMAJURíDICO

da «interpretação sistemática» (1") ou através da pes-quisa de «princípios gerais de Direito», no campo dachamada analogia de Direito, colocando-se, com isso,em consonância com as doutrinas da hermenêuticageral; de facto, pertence a estas o chamado «cânonda unidade» ou da «globalidade», segundo o qual ointérprete deve pressupor e entender o seu objectocomo um todo em si significativo, de existência asse-gurada (19). ..

No entanto, o concluir, sem mais, pela eXistên~aJ Jda unidade do Direito, a partir da natureza científicada jurisprudência ou do postulado metodológico doentendimento unitário, conduz a uma petitio principii. _Pois o ser a jurisprudência uma Ciência suscita, logi- .camente, a questão prévia, inteiramente procedente,de saber se a aceitação desse carácter científico nãoserá um erro, por inadequação do seu objecto; assim,os adversários do pensamento sistemático, em partena sequência desse seu princípio básico, têm negadoo carácter científico da jurisprudência (Z0), reconhe-

o que se passa então com a ordenação interior ecom a unidade de sentido do Direito?

1. Adequação e unidade como premissas teorético--científicas e hermenêuticas

Num prisma metodológico, elas pressupõem-se,normalmente, como evidentes. Isso resulta, desdelogo, de se considerar o Direito como Ciência (lG);pois, como diz COING:«Em última análise, o sistemajurídico é a tentativa de reconduzir o conjunto dajustiça, com referência a uma forma determinada devida social, a uma soma de princípios racionais.A hipótese fundamental de toda a Ciência é a de queufua estrutura racional, acessível ao pensamento,domine o mundo material e espiritual» (l7). Por con-sequência, também a metodologia jurídica parte, nosseus postulados, da existência fundamental da uni-dade do Direito. Ela fá-Ia, por exemplo, com a regra

(18) Cf., quanto a esse tema, infra § 5, I 1, com maisindicações na nota 21.

(19) Cf., por último, pormenorizadamente, BETTI, Allge-l11eineAuslegungslehre aIs Methodik der Geisteswissenschaften,1967, p. 219 8S., com amplas indicações.

(20) Com particulares consequências, EHRLICH, Gundle-gung der Soziologie des Rechts, 1913, p. 1 ss., 198 e passim;quanto à recusa de EHRLICH da ideia de unidade da ordemjurídica e quanto à sua crítica ao sistema, cf. Die juristischeLogik, 2." ed., 1925,p. 121 ss. (em especial, p. 137) e p. 258 ss.,respectivamente.

(16) A ligação inseparável entre a natureza científica doDireito e a ideia do sistema foi acentuada, de forma expressae repetida, sobretudo, por BINDER; cf., p. ex., Philosophie desRechts, p. 838 s., 852 e já em Der Wissenschaftscharakter derRechtswissenschaft, Kantstudien XXV (1921), p. 321 ss. (356).

(17) Zur Geschichte des Privatrechtssystems, p. 28.

Page 8: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

cendo-Ihe apenas h categoria de uma espécie de «arteou de técnica». E o mesmo acontece com as regrasda <<interpretação sistemática», da pesquisa dos prin-cípios gerais de Direito e do entendimento unitárioque, como todas as máximas metodológicas, devempermanecer meros postulados inalcançáveis, quandonão encontrem no seu objecto, isto é, na ordem jurí-dica, uma correspondência.

A remissão para hipóteses meto dológicas funda-mentais, feita tradicionalmente pelo jurista, não é,contudo, totalmente desprovida de valor. Pelo menosela deveria alertar os críticos do pensamento siste-mático para o facto de eles abandonarem mais do quetalvez parecesse à primeira vista; assim, é plenamenteduvidoso que VIEHWEG queira negar o carácter cientí-fico da jurisprudência e que os seus seguidores oqueiram acompanhar nessa consequência (21). Mas

sobretudo e para além disso a hipótese do caráctercientífico e as máximas metodológicas conclusivasremetem para o auto-entendimento dos juristas (22),o qual constitui, pelo menos, um certo indício (23)para a estrutura do objecto da jurisprudência, a ordemjurídica (21); caso esta estivesse em grande oposiçãocom os pressupostos e os postulados da metodologia,o jurista ou iria sofrer, no seu trabalho prático, umpermanente fracasso ou não tomaria em conta as

(22) Existe uma ligação estreita entre a metodologia deuma disciplina e a fenomenologia do entendimento (por último,cf., por todos, GADAMER,Wahrheit und Methode, 2." ed. 1965):a fenomenologia pode retirar da metodologia conclusões essen-ciais sobre a forma de entendimento nessa disciplina (con-quanto as máximas da metodologia não surjam como purospostulados, mas antes sejam efectivamente observadas), e,inversamente, cada metodologia deve considerar as leis essen-ciais do entendimento humano, elaboradas pela fenomenologia,quando não queira expor-se a exigências incomportáveis.

(2:1) Esta afirmação pode ser produzida mesmo sem umcmbrenhar na problemática gnoseológica da relação entresujeito e obJecto. "

(21) Cf., a este propósito, também DIEDERICHSEN,NJWl1966, p. 695, na nota 29, o qual, entre outras coisas, objectacontra as teses de VIEHWEGque «no mundo concreto das 'realidades» aparece «a sua disciplina, ao jurista, como umtodo significativo e não como uma mistura de questões des-conexas». Esta afirmação - que, aliás, não é inatacável, nasua generalidade - não assume também, naturalmente, forçademonstrativa obrigatória; pois a «experiência de unidade»dos juristas, como facto meramente psicológico, não afirmanada de definitivo sobre a estrutura da ordem jurídica, nem,ao contrário da metodologia, nada sobre a forma de pensa-mento jurídico correcto.

(21) VIEHWEGcaracteriza a tópica como a «técnica dopensamento problemático» - cf. ob. cito (p. 15), e parececonceber a expressão «técnica» como o oposto de «ciência»(para uma oposição entre tópica e ciência depõem também asconsiderações de p. 25, VII). De facto, dever-se-ia pensar queum processo que apenas «queira dar indícios» (p. 15), que«evite compromissos» (p. 23), que apoie a legitimação dassuas premissas apenas na «aceitação do interlocutof» (p. 24),etc. etc., não poderia aspirar seriamente à natureza científica.No entanto, VIEHWEGparece reconhecer, junto das ciênciasque trabalham de modo lógico-dedutivo, um segundo tipo deCiência (com que ele concordaria) e no qual quer situar aCiência do Direito, também através da afirmação da sua estru-tura tópica fundamental (cf., p. ex., p. 1 s., p. 53 s., p. 63 s.) I(o que seria difícil de conciliar, pelo menos com o concei~tradicional de Ciência).

Page 9: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

exigências da metbdologia ou ainda apenas aparente-mente o faria, - ora nada disto pode ser afirmadoda Ciência do Direito actual. Não obstante, este «indí-cio» permanece bastante inseguro, não podendofalar-se de uma verificação obrigatória da hipótese.A ideia da ordem interior e da unidade carece, porisso, de uma confirmação que se deve fundamentarna própria estrutura do seu objecto, portanto na essên-cia do Direito.

2. Adequação e unidade como emanações e pos-tulados da ideia de Direito

tido do conceito de sistema, e por isso a regra da ade-quação valorativa, retirada do princípio da igualdade,constitui a primeira indicação decisiva para a aplica-(;ão do pensamento sistemático na Ciência doDireito, - o que, por exemplo, FL UME ("5), seguindoS.AVIGN~ ("6), certeiramente exprime quando caracte- Jnza o sIstema como «a consequência do Direito, inte-riormente pressuposta» ("7). _

De modo semelhante, também a característica daunidade tem a sua correspondência no Direito, emboraa ideia da «unidade da ordem jurídica» pertença aodomínio seguro das considerações filosóficas ("8).

(25) Allg. Teil des Bürgerl. Rechts, 2.° vaL, 1965, p. 295e 296.

(26) Ob. cit., p. 292. A referência a SAVIGNY não sereporta contudo, como se poderia retirar das consideraçõesde FLUME, imediatamente ao sistema, mas sim à analogia; parao conceito de sistema de SAVIGNYcf. a citação supra na nota 6.

(27) Em parte semelhantes também as obras citadasíntra, na nota 35.

(28) É fundamental o escrito de ENGISCHde 1935, que temo mesmo nome: Die Einheit der Rechtsordnung. Sobre esteinfeliz e relativamente pouco discutido problema cf., do mesmoautor, Einführung in das juristische Denken, 3." ed., 1964,p. 156 ss.; EHRLICH,Die juristische Logi.k, p. 121 ss., com umapanorâmica histórica desenvolvida; STAMMLER, Theorie derRechtswissenschaft, p. 209 ss., 211 ss.; WENGLER, Betrachtungenüber den Zusammenhang der Rechtsnormen in der Rechtsord-nung und die Verschiedenheit der Rechtsordnungen, em: Fest-schrift für Rudolf Laun, 1953, p. 719 ss.; LARENZ, Metho-denlehre cit., p. 135, 353 5.; HANACK, Der Ausgleichdivergierender Entscheidungen in der oberen Gerichtsbarkeit,1962, p. 104 ss.

De facto, a demonstração não é difícil. A ordeminterior e a unidade do Direito são bem mais do quepressupostos da natureza cienUfica da jurisprudênciae do que postulados da metodologia; elas pertencem,antes, às mais fundamentais exigências ético-jurídicase radicam, por fim, na própria ideia de Direito. Assim,a exigência de «ordem» resulta directamente do reGQ-nhecido postulado da justiça, de tratar o igual demodo igual e o diferente de forma diferente, de acordocom a medida da sua diferença: tanto o legisladorcomo o juiz estão adstritos a retomar «consequente-mente» os valores encontrados, «pensando-os, até aofim», em todas as consequências singulares e afas-tando-os apenas justificadamente, isto é, por razõesmateriais, - ou, por outras palavras: estão adstritosa proceder com adequação. Mas a adequação racionalé, como foi dito, a característica da «ordem» no sen-

Page 10: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

te-se que a «ordem» do Direito não se dispersa numamultiplicidade de valores singulares desconexos, antesse deixando reconduzir a critérios gerais relativa-mente pouco numerosos (34); e com isso fica tambémdemonstrada a efectividade da segunda característicado conceito de sistema, da unidade (35).

Também esta não é, de modo algum, apenas um«postulado lógico-jurídico» (29), antes se recondu-zindo, da mesma forma, ao princípio da igualdade.Por um lado ela constitui - nos seus, por assim dizer,componentes negativos - apenas de novo uma ema-nação do princípio da igualdade, enquanto procuragarantir a ausência de contradições da ordem jurídica(o que já está abrangido pela ideia de adequação (30),e por outro - no seu componente positivo (31) - elanão representa mais do que a realização da «tendênciageneralizadora» da justiça (32), que exige a superaçãodos numerosos aspectos possivelmente relevantes nocaso concreto, a favor de uns poucos princípios,abstractos e gerais (33). Através deste último, garan-

quência dele; o puramente individual é, na sua unicidade essen-cial, sempre «incomparável»; ora a aplicação do princípio daigualdade pressupõe, pelo contrário, sempre uma certa abstrac-ção e generalização que tornam possível uma «comparação»;assim a tendência generalizadora da justiça tem, de facto, asua origem no princípio da igualdade.

(34) Opõe-se-Ihe, naturalmente, a «tendência individuali-zadora»; esta não torna impossível a formação do sistema,apenas lhe apondo limites; cf., quanto a isso, infra § 6 IIIe § 7 II 2 b.

(35) A conexão entre a ideia da adequação e sobretudoa da unidade do Direito e o sistema é muitas vezes salientada,ainda que, com frequência, de modo incidental; para além dascitações feitas supra, notas 6 a 11, cfr. por exemplo,KRETSCHMAR,über die Methode der Privatrechtswissenschaft,1914, p. 40 e 42 e JherJb. 67, 264 s., BAUMGARTEN,DieWissenschaft vom Recht und ihre Methode, 1920, Bd. I, p. 298e p. 344; SAUER, Methodenlehre, ob. cito p. 172; NAWJASKY,Al!gemeine Rechtslehre aIs System der rechtlichen Grundbe-griffe, 2." ed., 1948, p. 16 e 264; COING, Rechtsphilosophie,ob. cit., p. 276 ss. e JZ 1951, p. 485; ESSER, Gundsatz undNorm, ob. cit., p. 227 e passim; LARENZ, Festschrift für Nikisch,1958, p. 299 s. e Methodenlehre, ob. cit., p. 133 s.; P. SCHNEIDER,VVdDStRL 20, p. 38; RAISER, NJW 64, p. 1204; WIEACKER,Privatrechtsgeschichte der Neuzeit, 2.a ed., 1967, p. 532; BETTI,Al!. Auslegungslehre, ob. cit., p. 223 s.; ZIPPELIUS, NJW 1967,p. 2230; MAYER-MALY, The lrish Jurist, vaI. n, part 2, 1967,p. 375 (cf. também Festschrift für Nipperdey, 1965, Bd. I,p. 522).

(29) Demasiado restrito, quanto a isso, HANACK, ob. cit.,p. 107 (cf. também p. 104); trata-se, na verdade, em primeiralinha, de um postulado axiológico.

(30) Assim torna-se de novo clara a conexão estreitaexistente entre a qualidade de ordem e a da unidade.

(31) A qual tem sido injustamente de5curada, até hoje, naliteratura, perante o outro elemento, o da ausência de con-tradições.

(32) Quanto a esta (e quanto à sua inversa, a tendênciaindividualizadora) cf., por todos, HENKEL, Recht und Indivi-dualiWt, 1958, p. 16 s., 44 S. e passim e Einführung in dieRechtsphilosophie, 1964, p. 345 s.; cf. também, por exemplo,SALOMON, Gundlegung zur Rechtsphilosophie, 2." ed., 1925,p. 147 5S.; RADBRUCH,Rechtsphilosophie, 5." ed., 1956, p. 170;CorNG, Grundzüge der Rechtsphilosophie, 1950, p. 114 s.;ENGISCH, Die Idee der Konkretisierung in Recht und Rechts-wissenschaft unserer Zeit, 1953, p. 199 ss., com outras indica-ções; EMGE, Einführung in die Rechtsphilosophie, 1955, p. 174 S.

(33) Ela não se coloca, aliás, autonomamente perante oprincípio da igualdade, antes sendo, pelo contrário, conse-

Page 11: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

Longe de ser uma aberração, como pretendem oscríticos do pensamento sistemático, a ideia do sistemajurídico justifica-se a partir de um dos mais elevadosvalores do Direito, nomeadamente do princípio dajustiça e das suas concretizações no princípio daigualdade e na tendência para a generalização (3").Acontece ainda que outro valor supremo, a segurançajurídica, aponta na mesma direcção. Também ela pres-siona, em todas as suas manifestações - seja comodeterminabilidade e previsibilidade do Direito, comoestabilidade e continuidade da legislação e da juris-prudência ou simplesmente como praticabilidade daaplicação do Direito - para a formação de um sis-tema, pois todos esses postulados podem ser muitomelhor prosseguidos através de um Direito adequada-mente ordenado, dominado por poucos e alcançáveisprincípios, portanto um Direito ordenado em sistema,do que por uma multiplicidade inabarcável de normassingulares desconexas e em demasiado fácil contradi-ção umas com as outras. Assim, o pensamento siste-mático radica, de facto, imediatamente, na ideia deDireito (como o conjunto dos valores jurídicos maiselevados). Ele é, por consequência, imanente a cadaDireito positivo porque e na medida em que esterepresente uma sua concretização (numa forma his-toricamente determinada) e não se queda, por isso,como mero postulado, antes sendo sempre, também,pressuposição de todo o Direito e de todo o pensa-mento jurídico (36) e ainda que a adequação e a uni-

(36) Assim falou também SAVIGNY, na citação referida,da «consequência pressuposta do Direito».

dade também com frequência possam realizar-se demodo fragmentado (37).

Assim se atingiu o objectivo fixado no início desteparágrafo: apurar-se um fenómeno jurídico, queconstitui um ponto de contacto com um sistema nosentido da linguagem filosófica; por consequência,torna-se agora possível a tarefa de uma melhor deter-tninação do sistema jurídico. Esta pode, por seu turno,formar os princípios para uma mais exacta análisesobre o sentido e os limites do pensamento sistemáticona Ciência do Direito e permitirá igualmente precisare testar as afirmações agora feitas, na sequência ~

(

,stUdO (38). O papel do conceito de sistema é, noentanto, como se volta a frisar, o de traduzir e reali-

..z. ar (39) a adequação valorativa e a unidade interior daordem jurídica.

('\7) Esta fragmentação não nega a possibilidade funda-mental do sistema; apenas torna claro que são postos certoslimites à sua formação plena (quanto a eles, cf. infra § 6).

('IR) As presentes considerações não são mais do que umprimeiro esboço do problema do sistema que, na sequência,;Iinda irá sofrer múltiplas modificações.

('\!I) Também para realizar; pois a unidade e a adequaçãorrito são apenas afirmadas, mas também sempre pretendidas,portanto não apenas pressuposição, mas também um postulado«'I'. sllpra nota 36 e infra § 5, IV, 2).

Page 12: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

Ao atribuir-se, ao conceito de sistema jurídico,as tarefas acima caracterizadas, afastam-se, de ante-mão, da multitude dos conceitos desenvolvidos atéhoje (1), todos aqueles que não estejam aptos adesenvolver a adequação interna e a unidade de umaordem jurídica. Isso não implica necessariamente queeles falhem sem excepção ou que não possam serutilizados, em nenhum domínio, para as tarefas daCiência do Direito; mas a distinção tem ainda umcerto valor, uma vez que a justificação de um con-ceito de sistema que não se apoie nas consideraçõesrealizadas no parágrafo anterior é, de antemão, limi-tada, expondo-se ainda à objecção de poder ignorara essência do Direito.

(1) Uma panorâmica encontra-se, por exemplo, em){i\DllRUCH, Zur Systematik der Verbrechenslehre, em: Frank-.Festgabe I, 1930, p. 158 ss.; ENGISCH, Stud. Gen. 10 (1957),p.l77 SS.

Page 13: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

I - CONCEiTOS DE SISTEMA QUE NÃO SE JUSTIFICAMA PARTIR DAS IDEIAS DA ADEQUAÇÃO VALORATIVA EDA UNIDADE INTERNA DA ORDEM JURíDICA São também impróprios para traduzir a unidade

interior e a adequação de uma ordem jurídica, todosos sistemas de «puros» conceitos fundamentais talcomo STAMMLER(3), KELSEN(4) ou NAWIASKY(5) osdesenvolveram. Trata-se, neles, de categorias pura-mente formais, que subjazem a qualquer ordem jurí-dica imaginável, ao passo que a unidade valorativaé sempre de tipo material e só pode realizar-se numaordem jurídica historicamente determinada; sobreisso, porém, os sistemas de puros conceitos funda-mentais, pela sua própria perspectivação, não queremnem podem dizer nada. Não obstante, dispensa qual-quer enfoque que o afinamento do instrumentariumda Ciência jurídica, através do reconhecimento dossempre pré-elaborados conceitos fundamentais aprio-rísticos, tem grande valor; no entanto, o carácterpuramente formal e a generalidade destes conceitose categorias deixam suficientemente claros os limitesdo seu valor para a elaboração científica do Direito,que existe sempre, apenas, numa determinada indi-vidualidade histórica. Assim, as questões que seconsideram como típicas para a problemática da

A este propósito não releva, em primeiro lugar, ochamado sistema externo no sentido da conhecidaterminologia de HECK(Z) que, no essencial, se reportaaos conceitos de ordem da lei; pois este não visa,ou não visa em primeira linha, descobrir a unidadede sentido interior do Direito, antes se destinando, nasua estrutura, a um agrupamento da matéria e à suaapresentação tão clara e abrangente quanto possíveLCom certeza que semelhante sistema não fica, comisso, despido de valor; pelo contrário: ele é de grandesignificado para que o Direito possa ser visto no seuconjunto e, com isso, para a praticabilidade da suaaplicação, bem como, mediatamente, também para asegurança jurídica, no sentido da previsibilidade dadecisão. Mas isto não é o «sistema do Direito», nosentido de uma ordenação internamente conectada,embora possa muitas vezes, pelo menos em parte,fazer esse papel. .......•..

(3) Cf. sobretudo, a Theorie der Rechtswissenschaft,1." ed., 1911, 2." ed., 1923 e o Lehrbuch der Rechtsphilosophie,:1." ed., 1928.

(1) Cf., sobretudo, a Reine Rechtslehre, 2." ed., 1960.(õ) Cf. a Allgemeine Rechtslehre aIs System der recht-

lidwl1 Grundbegriffe, 2." ed., 1948.(2) Cf. Begriffsbildung und Interessenjurisprudenz, 1932,

p. 139 ss. (142 s.).

Page 14: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

formação do sistema jurídico - em especial, as dosignificado do sistema para a obtenção do Direito,as da vinculação do legislador à ideia de sistema ouas do manuseamento das quebras no sistema - nãose colocam, por acaso, sempre apenas a propósito deuma determinada ordem jurídica (6); e também quandose fala de «pensamento sistemático» - porventura emoposição ao pensamento problemático ou à tópica-não se tem em vista, habitualmente, um sistema depuros conceitos fundamentais, mas sim o do Direitopositivo.

Direito alemã, tendo os partidários da chamada«jurisprudência dos conceitos» firmado como objec-tivo a elaboração de um sistema desse tipo (8). MAX

WEBER caracterizou o conceito de sistema em causa,de modo certeiro, na sua Sociologia do Direito, daforma seguinte: «Segundo os nossos actuais hábitosde pensamento. ela' (sic, a sistematização) traduz:a concatenação de todas as proposições jurídicas,

jhtidas ~r análise, de tal modo que elas formem,.entre si, um sistema de regras logicamente claro, em~-----. .--::--si logicamente livre de contradições e, sobretudo e..

-principalmente, sem lacunas. o Que requer: que todosos fact;; possam logicamet:lte snhsumjr-se numa das

~s normas. ou caso contrário, a sua ordem abdica......-- . ... .. .. ""==.d~rant~ ess.el1çial» (9). Nos bastidores desta con-e pção· encont;a-se, manifestamente o conceito posi-tivista de Ciência (10), elaborado tendo como ideaisa Matemática e as Ciências da natureza. Assim podeo filósofo WUNDT dizer que a Ciência do Direito,por força do seu processo jurídico-conceptual, é «uma-Ciência eminentemente sistemática» e que, através

Um sistema lógico-formal (7) é igualmente inade-quado para exprimir a unidade interior e a adequaçãode determinada ordem jurídica positiva. Não obstante,este ideal dominou por longo tempo a Ciência do

(6) Cf. também ENGISCH,ob. cit., p. 182.(7) Para a determinação do conceito de «lógica formal», •

sobre o qual poderia haver unanimidade alargada, cf. SCHOLZ,Abriss der Geschichte der Logik, 2." ed., 1959, p. 15. Segundoele, deve entender-se, como lógica formal, a parte da Ciênciaque «formula, para a edificação de qualquer Ciência, as regrasde conclusão e que, do mesmo modo, fornece tudo o que énecessário para a exacta formulação dessas regras». Sobreoutros tipos de lógica e sobre a questão de saber se se podefalar, com sentido, de uma lógica não formal, cf. SCHOLZ,ob. cit., p. 1 e p. 5, respectivamente.

(8) Cf. por todos, a exposição de LARENZ,ob. cit., p. 17 ss.(9) Cf. Wírtschaft und Gesellschaft, 4." ed. (promovida por

JOHANNESWINCKELMANN),1956, 2.° tomo, p. 396 (os itálicospertencem ao texto) - MAXWEBERcoloca-se aliás, em posiçãointeiramente crítica a esse tipo de Ciência do Direito; cf.,sobretudo, p. 493 e p. 506 s.

(10) Para essa influência na Ciência do Direito ci., emgeral, LARENZ,Methodenlehre, p. 34 ss.

Page 15: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

30----\ do seu ({carActerestritamente lógico» cla é «em cert.íLmedida, comparável à Matemática» (11). ~J

Esta concepção da essência e dos objectivos daCiência do Direito pode-se hoje, sem reserva, consi-derar como ultrapassada. De facto, a tentativa deconceber o sistema de determinada ordem jurídica (12)como lógico-formal ou axiomático-dedutivo está, deantemão, votada ao insucesso (13). Pois a unidadeinterna de sentido do Direito, que opera para o erguer-em sistema, não corresponde a uma derivação daideia de justiça de tipo lógico, mas antes de tipo valo-rativo ou axiológico. Quem poderia seriamente pre-tender que a regra de tratar o igual por igual e o

diferente de modo diferente, de acordo com a medidada diferença, pode ser acatada com os meios dalógica? Os valores estão, sem dúvida, fora do âmbitoda lógica formal e, por consequência, a adequaçãode vários valores entre si e a sua conexão internanão se deixam exprimir logicamente, mas antes, ape-nas, axiológica ou teleologicamente (14). Pode, comisso, colocar-se a questão difícil de saber até ondeestá o Direito ligado às leis da lógica e até onde aausência lógica de contradições da ordem jurídicapode ser incluída, como previsão mínima, na sua uni-dade valorativa (15); mesmo quando isso seja afir-mado, é indubitável que uma eventual adequaçãológico-formal das normas jurídicas singulares nãoimplica a unidade de sentido especificamente jurídicade um ordenamento.

Este carácter axiológico e teleológico da ordemjurídica implica que, comparativamente, os critérioslógico-formais tenham escasso significado para opensamento jurídico e para a metodologia da Ciênciado Direito (Ia). Na verdade, a Ciência do Direito, na

(11) Cf. Logik, vaI. m, 4." ed., 1921, p. 617 (mas cf. tam~bém p. 595 s.): já essencialmente realista a respeito da viabi-lidade de um sistema lógico-fomal para a Ciência do Direito,SIGWART,Logik, 2.0 vaI., 2." ed., 1893, p. 736 ss.

(12) Os sistemas dos «puros conceitos fundamentais»,pelo contrário, por força da sua natureza puramente formal,poderiam satisfazer intBiramente as exigências de um sistemalógico-formal ou axiomático·dedutivo.

(13) Do mesmo modo COING,Grundzüge der Rechtsphilo-sophie, p. 276 e Geschichte und Bedeutung des Systemgedan-kens, p. 27; VIEHWEG,ob. cit., p. 53 SS.; ENGISCH,Stud. Gen.10 (1957), p. 173 ss. e 12 (1959), p. 86; ESSER, Grundsatz undNorm, 2." ed. (1964), p. 221; LARENZ, ob. cit., p. 134 s.;SIMITIS, Ratio 3 (1960), p. 76 ss.; EMGE, Philosophie derRechtswissenschaft, 1961, p. 289 s.; BÃUMLIN, Staat, Rechtund Geschichte, 1961, p. 27; PERELMANN,Justice et raison,1963, p. 206 ss.; RAISER,NJW 1964, p. 1203 s.; FLUME, Allg.Teil des Bürgl. Rechts, 2.° vaI., 1965, p. 295 s.; DIEDERICHSEN,NJW 1966, p. 699 s.; ZIPPELIUS,NJW 1967, p. 2230; cf. tambémjá SIGWART,ob. cit., p. 736 ss.

(14) No sentido amplo do termo, cf. infra, p. 41.(15) Cf. quanto a isso, também infra, p. 122 S.(16) Compreende-se que no domínio do tema aqui em

discussão só seja possível uma caracterização do nosso próprioponto de vista, devendo desistir-se de uma discussão alarga dacom outras opiniões. Para o significado da lógica na Ciênciado Direito cf., por exemplo; ENGISCH,Logische Studien zurGesetzesanwendung, 1943 (3." ed. 1963), p. 3 ss. (em especialp. 5 s. e p. 13) e Aufgaben einer Logik und Methodik desjuristischen Denkens, Stud. Gen. 12 (1959), p. 76 SS.; KLUG,

Page 16: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

32

~~edida em que aspire à cientificidade ou, pelo meno;à adequação racional dos seus argumentos, está evi-dentemente adstrita às leis da lógica (17); contudoessa ligação não é condição necessária nem suficientepara um pensamento jurídico correcto (18); mais ainda: .os pensamentos jurídicos verdadeiramente decisivosocorrem fora do âmbito da lógica formal (19). Assimsucede com o que é a essência do Direito, com o

<fi)ncontrar as decisões de valor, com o manuseamento

esclarecido dos valores, pensando-os até ao fim e, aconcluir, num último estádio, executando-os. Maspara estas tarefas, a lógica só assume o significadode um «quadro» (Z0), enquanto o «entender» ou a«valoração» não se podem, no essencial, alcançaratravés dela, - tão pouco como o «entender» umoutro quadro significativo do espírito como, porexemplo, uma obra artística literária ou um textC?

Geológica. A hermenêutica como doutrina do entendiD

mento correcto e os critérios para a objectivação dos .valores desempenham, aliás, em vez dele, o papel

ecisivo dentro do pensamento jurídico (Z'). -.Tal resulta, sem excepção, de todas as formas de

conclusão jurídica. Assim, na chamada subsunção,apenas a obtenção das premissas é decisiva: quandoa «premissa maior» e a «premissa menor» sejam sufi-cientemente concretizadas e ordenadas entre si - epara isso a lógica formal não é essencial - estáconcluída a tarefa própria dos juristas; a conclusãofinal surge agora, por assim dizer, de modo automá-tico (22), e até este último acto, a «subsunção» (23),

Juristische Denken, 1951, p. 100 ss. (também publicado emARSP 39, p. 324 ss.); SIMITIS,Zum Problem einer juristischenLogik, Ratio 3 (1960), p. 52 ss., com outras indicações alarga-das; DIETERHORN,Studien zur Rolle der Logik bei derAnwendung des Gesetzes, Diss. Berlim 1962, em especialp. 142 ss.; FIEDLER, Juristische Logik in mathematischer Sicht,ARSP 52 (1966), p. 93 ss.

(17) Isto deve ser vincadamente separado da adstriçãodo Direito ou do legislador às leis da lógica: a problemáticaresulta aqui de se tratar de proposições de dever-ser ou devaler, que, como tais, não são verdadeiras ou falsas, apenaspodendo ser válidas ou não válidas; perante isso, o jurista fazafirmações (sobre o Direito) que se sujeitam ao critério doverdadeiro ou falso ou do justo e injusto.

('8) Isso acentua KLUG,ob. cito de novo com razão; cf.por exemplo o prefácio à 1.' ed., p. 2, 173.

('9) A questão do peso do elemento lógico dentro dopensamento jurídico não é, de modo algum, de naturezapuramente psicológica e, com isso, sistematicamente desinte-ressante (mas cf. KLUG,ob. cit., p. 12, para o problema da«sobrevalorização» dos conceitos e das construções), antestendo eminente significado teorético e científico; da sua res-posta dependem as especialidades da metodologia jurídica,assim como a posição específica da Ciência do Direito nocírculo das Ciências.

(20) Assim a sugestiva expressão de ENGISCH,Stud. Gen.10 (1957), p. 176, col. 1; concordando, também, SIMITIS,ob. cit.,p. 78, nota 134; mas cf. também KRAFT,Die Grundlagen einerwissenschaftlichen Wertlehre, 1951, p. 214 ss., 260 ss.

(21) Cf., quanto a isso, também infra § 2 II 1 e § 7 II 1.(22) Não apenas psicológica, mas também metodologica-

mente falando; cf. também supra nota 19.(23) Quanto à questão de se é de reter o conceito mais

lato de subsunção, aqui utilizado, ou antes o que se limita aum puro processo lógico-formal cf., por um lado, ENGISCH,

Page 17: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

34

(~ãO é, de modo algum, apenas de tipo lógico-formal,I antes surgindo, numa parte essencial, ainda que fre-'-..quentemente não explícita, numa ordenação valora-

tiva (24). Por conseguinte, não aparecem praticamente,na Ciência do Direito, complicadas cadeias lógicas dederivação (24a). E por conseguinte também, todas asconclusões lógicas pretensamente adstringentes dei-xam-se muito facílmente desmascarar como lógicaaparente, porque o erro reside nas premissas e alógica se comporta, perante elas, de modo neutro.Assim, para recorrer a dois conhecidos exemplos, nãoé de modo algum lógico que um contrato nulo nãopossa ser impugnado ou que na aquisição a nondomino pelo adquirente de boa fé o (outrora) não--titular deva adquirir o direito, em detrimento do(outrora) verdadeiro titular; tudo isto resulta da for-mação da premissa maior e, sobre isso, apenas deci-dem pontos de vista teleológicos (*).

Einführung in das juristische Denken, 3.' ed., 1964, p. 199,nota 47, com outras citações e, por outro, LARENZ,ob. cit.,p. 210, nota 1.

(24) Para a problemática da subsunção cf., por todos,ENGISCH,ob. cit., p. 54 ss. com indicações; I LARENZ,ob. cit.,p. 210 sS.; cf., também, SIGWART,ob. cit., p. 737 S.

(24") Certo, VIEHWEG,ob. cit., p. 71, e passim.(*) Nota do tradutor: no Direito alemão, tal como no

francês mas ao contrário do português vigora, nos móveis, aregra «posse vale título»: a pessoa que, de boa fé, adquiraum móvel e obtenha a sua posse, torna-se proprietária mesmoquando o alienante não fosse o seu titular legítimo; assim, sóé possível, em Portugal, documentar hipóteses de aquisiçãoa non domino através das regras do registo predial: a aquisição

o mesmo sucede, em medida ainda mais forte,para os restantes «processos de conclusão» jurídicos,como a analogia, a redução teleológica, o argumentume contrario, o argumentum a fortiori e o argumentumad absurdum. Na verdade, KLUG representou estesprocessos de argumentação recorrendo aos meios dalógica moderna (25), mas é duvidoso que, com isso,se tenha ganho algo de essencial para o trabalhojurídico. De facto, o elemento decisivo de todos estes

ocessos não é, sem excepção, de natureza lógicamas antes de natureza teleológica ou axiológica,enquanto que a sua justificação metodológica não sedeixa alcançar com os meios da lógica, mas sim ape-nas através da sua recondução ao valor da justiça eao princípio da igualdade, nela compreendido (posi-tiva ou negativamente) (26). Quando a investigação

tabular do artigo 17.°/1 do Código do Registo Predial e o casoparticular do artigo 291.0 do Código Civil; nestes casos, jogaperfeitamente a afirmação feita, no texto, por CANARIS.

(25) Cf. ob. cit., p. 97 sS., 124 sS., 132 s.; cf., também,SCHREIBER,Logik des Rechts, 1962, p. 47 ss., que considerao referido processo inteiramente inadmissível para as regrasde conclusão, assim como, em especial para a analogia, HELLER,Logik und Axiologie der analogen Rechtsanwendung, 1961,p. 10 sS., 24 ss. e 44 ss.

(26) Para a analogia cf., por exemplo, COING,Grundzügeder Rechtsphilosophie, ob. cit., p. 270; LARENZ,ob. cit., p. 283,288 e 296, assim como as citações feitas em CANARIS,DieFeststellung von Lücken, ob. cit., p. 72, nota 47; para a redu-cão teleológica, LARENZ,ob. cit., 296; para o argumentum atortiOl'i e o argumentum e contrario, CANARIS,ob. cit., p. 78e p. 45, respectivamente; para o argumentum ad absurdum,não é diferente; em sentido próprio só se pode, com ele, signi-

Page 18: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

de KLUG sobre a estrutura lógica da analogia terminacom a afirmação - indiscutível - de que a respostaà questão, «tão essencial na prática» (poder-se-ia bemdizer: apenas essencial na prática) da admissibilidadede determinada analogia não se obtém com os meiosda lógica, mas antes depende da definição do res-pectivo «círculo de semelhança», o qual só é possívelde acordo com critérios teleológicos (27), então resultamuito claro quão pouco a lógica formal (na sua forma«clássica» ou «moderna») pode oferecer à Ciênciado Direito. O essencial fica resolvido assim que o«círculo de semelhança» esteja determinado, tal comoocorre na chamada subsunção (28); o resto funciona,por assim dizer, automaticamente, por si (22). Ou queproblema metodológico haveria ainda que enfrentarquando, por exemplo, se tivesse determinado que aratia legis do § 463/2 do BGB reside no aproveita-

mento doloso de um erro do comprador sobre a omis-são de um vício mas também, «do mesmo modo»,perante a simulação de uma qualidade favorável? (*)Outro tanto se pode considerar para todas as outras«fórmulas de conclusão»: quando se tenha determi-nado qual a ratia de uma disposição e porque razãoela não se «adapta» a determinado facto excepcional,porque razão um valor «já conhecido» «respeita» aum caso não expressamente regulado ou porquerazão um facto é valorativamente tão diferente deoutro que a consequência jurídica não pode ser amesma (29), já se decidiu, respectivamente, estar-seperante uma redução teleológica, um argumentum afartiori ou uma conclusão e contrario. Tudo conduzpois ao mesmo resultado: a descoberta e a afinaçãodas premissas constitui a tarefa jurídica decisiva,enquanto, pelo contrário, a formulação de conclusõeslógico-formais é de significado muito menor; nelasnunca poderia ser incluído o «terceiro grau» da argu-mentação jurídica, isto é a obtenção do Direito como auxílio de princípios jurídicos gerais, da naturezadas coisas, etc., onde o que se disse vale, natural-

ficar que uma determinada consideração conduz ao «puroarbítrio» ou que ela iria levar a um resultado em crassacontradição com outros valores da lei, isto é, com o princípioda igualdade ou, numa utilização não puramente negativa doargumento (meramente contraditante), mas antes positiva (fun-damentadora de um determinado resultado): que qualqueroutro que não o resultado proposto conduziria ao «puro arbí-trio» ou a uma crassa contradição de valores: também aquio poder convincente seria aferido não perante o valor da ver-dade, mas sim em face do da justiça.

(27) Cf. ob. cit., p. 123; para o argumentum a fortioricf. p. 137 e para o argumentum ad absurdum cf. p. 138.

(28) Cf. também as críticas às considerações de KLUGem li>IMITIS,ob. cit., p. 66 ss.

(*) Nota do tradutor: diz o § 463 do BGB:(1) Quando, no momento da venda, falte à coisa vendida

uma qualidade assegurada, pode o comprador, em vez da reso-lução ou da redução do preço, exigir uma indemnização peloinconveniente. (2) Vigora o mesmo regime quando o compra-dor tenha, dolosamente, calado um vício.

(29) Para a limitação do argumentum e contrario a estecaso e para a sua distinção da proibição da analogia, cf.CANARIS,ob. cit., p. 44 ss. (46 5.).

Page 19: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

\

de KLUG sobre a estrutura lógica da analogia terminacom a afirmação - indiscutível - de que a respostaà questão, «tão essencial na prática» (poder-se-ia bemdizer: apenas essencial na prática) da admissibilidadede determinada analogia não se obtém com os meiosda lógica, mas antes depende da definição do res-pectivo «círculo de semelhança», o qual só é possívelde acordo com critérios teleológicos (27), então resultamuito claro quão pouco a lógica formal (na sua forma«clássica» ou «moderna») pode oferecer à Ciênciado Direito. O essencial fica resolvido assim que o«círculo de semelhança» esteja determinado, tal comoocorre na chamada subsunção (28); o resto funciona,por assim dizer, automaticamente, por si (22). Ou queproblema metodológico haveria ainda que enfrentarquando, por exemplo, se tivesse determinado que aratio legis do § 463/2 do BGB reside no aproveita-

mento doloso de um erro do comprador sobre a omis-são de um vício mas também, «do mesmo modo»,perante a simulação de uma qualidade favorável? (*)Outro tanto se pode considerar para todas as outras«fórmulas de conclusão»: quando se tenha determi-nado qual a ratio de uma disposição e porque razãoela não se «adapta» a determinado facto excepcional,porque razão um valor «já conhecido» «respeita» aum caso não expressamente regulado ou porquerazão um facto é valorativamente tão diferente deoutro que a consequência jurídica não pode ser amesma (29), já se decidiu, respectivamente, estar-seperante uma redução teleológica, um argumentum afortiori ou uma conclusão e contrario. Tudo conduzpois ao mesmo resultado: a descoberta e a afinaçãodas premissas constitui a tarefa jurídica decisiva,enquanto, pelo contrário, a formulação de conclusõeslógico-formais é de significado muito menor; nelasnunca poderia ser incluído o «terceiro grau» da argu-mentação jurídica, isto é a obtenção do Direito como auxílio de princípios jurídicos gerais, da naturezadas coisas, etc., onde o que se disse vale, natural-

ficar que uma determinada consideração conduz ao «puroarbítrio» ou que ela iria levar a um resultado em crassacontradição com outros valores da lei, isto é, com o princípioda igualdade ou, numa utilização não puramente negativa doargumento (meramente contraditante), mas antes positiva (fun-damentadora de um determinado resultado): que qualqueroutro que não o resultado proposto conduziria ao «puro arbí-trio» ou a uma craS3a contradição de valores: também aquio poder convincente seria aferido não perante o valor da ver-dade, mas sim em face do da justiça.

(27) Cf. ob. cit., p. 123; para o argumentum a fortioricf. p. 137 e para o argumentum ad absurdum cf. p. 138.

(28) Cf. também as críticas às considerações de KLUGem SIMITIS, ob. cit., p. 66 S5.

(*) Nota do tradutor: diz o § 463 do BGB:(1) Quando, no momento da venda, falte à coisa vendida

uma qualidade assegurada, pode o comprador, em vez da reso-lução ou da redução do preço, exigir uma indemnização peloinconveniente. (2) Vigora o mesmo regime quando o compra-dor tenha, dolosamente, calado um vício.

(29) Para a limitação do argumentum e contrario a estecaso e para a sua distinção da proibição da analogia, cf.CANARIS,ob. cit., p. 44 ss. (46 5.).

Page 20: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

\

mente, em medida ainda maior. Por consequência,hoje não mais se pode pôr em dúvida que um sistemalógico-formal não sirva, de alguma maneira, nem aessência do Direito, nem as tarefas especificas dojurista.

KLUG (32), do nosso campo (33). Mas a confecção deum sistema axiomático-dedutivo do Direito apareceexcluída também por outras razões. Deve, designada-mente, questionar-se que seja possível uma formaçãoplena de axiomas, na Ciência do Direito. Para talformação, seria necessário, como é reconhecido, reu-nir pelo menos duas (34) exigências: a da ausência deb) O sistema axiomático-dedutivo no sentido da

logística

A recusa de um sistema lógico-formal conduz, con-sequentemente, também à recusa de um sistemaaxiomático-dedutivo (30). Este pressupõe que todas asproposições válidas dentro de um determinado âmbitomaterial se deixem deduzir de axiomas, através deuma dedução puramente lógico-formal (31). Porqueisso, como acima foi dito, é inconciliável com a essên-cia da Ciência do Direito, o método axiomático-dedu-tivo exclui-se, desde logo, contra a opinião de

(32) Este exige a axiomatização do Direito; d. ob. cit.,p. 172 55. (cf. também KRAFT,ob. cit., p. 263; HARLEN,ob. cit.,p.477 55.). Poder-se-ia, a isso, objectar que KLUG vê bem oslimites da lógica na jurisprudência e que ele acentua expres-samente o significado do elemento teleológico (do, por exem-plo, p. 123, 137, 138 e 176 ss.); tal não seria, porém, exactopois KLUG pretende proscrever expressamente o elementoteleológico do processo de conclusão, mantendo-o na formaçãodas premissas, não determináveis logicamente (a esse propó-sito a crítica de DIEDERICHSEN,NJW 66, p. 700, nota 40, aoent~ndimento de RAISER da afirmação de KLUG, em minhaopinião, não procede); ele não pode, porém, ser seguidonesse ponto, por força de integração, em cada «conclusão»jurídica, de um elemento da ordenação valorativa.

(33) Isso corresponde à opinião dominante; d. as indi-cações dadas supra, nota 13.

(34) Além disso, é requerida ainda, muitas vezes, a <muto-nomia», isto é, a indedutibilidade dos axiomas uns dos outros(d., por exemplo, HILBERT-AcKERMANN,ob. cit., p. 33 s.;FRAENKEL,ob. cito, p. 340 5S.). Esse postulado pode, contudo,não ser considerado no presente desenvolvimento, uma vezque tem a natureza de mera economia de pensamento ou étalvez, também de tipo estético; seria, em qualquer caso, deacatar na Ciência do Direito, caso, no restante, singrasse umaaxiomatização.

(30) Para o sistema axiomático-dedutivo d., por tod ,HILBERT-AcKERMANN,Grundzüge der theoretischen Logik, 3." edo,1949, p. 31 ss. e p. 74 SS.; FRAENKEL,Einführung in die Men-genlehre, 3." ed., 1928, p. 268 ss. e, sobretudo, p. 334 SS.;CARNAP,Abriss der Logistik, 1929, p. 70 s. e Einführung indie symbolische Logik, 1954, p. 146 ss.; uma panorâmica curtae fácil encontra-se em BOCHENSKI,Die zeitgeni5ssischen Denk-methoden, 1954, p. 85 s. e em POPPER,Logik der Forschu~1966, p. 413. .

(31) Cf. FRAENKEL,ob. cit., p. 334 e p. 347; CARNAP,Symbolische Logik cit., p. 147; d., ainda, por exemplo, HARLEN,ARSP 39 (1951) p. 478 5.; VIEHWEG,ob. cit., p. 55; ENGISCH,Stud. Gen. 10 (1957) p. 174, cal. 1 e 12 (1959), p. 86, coI. 2;KLUG, ob. cit., p. 181; BULYGIN,ARSP 53 (1957), p. 329 s.

Page 21: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

contradições (35) e a da plenitude (36); ora se a viabi-lidade da primeira é, desde logo, extraordinariamenteproblemática, a da segunda é de recusar, semobjecções.

No que respeita, em primeiro lugar, à ausência decontradições, é seguro, como geralmente se reco-nhece, que se deve negar uma contradição entre duasnormas, em todas as circunstâncias, tendo a metodo-

, logia jurídica desenvolvido um instrumentarium que,

j~'em caso extremo através da aceitação de uma,,' «lacuna de colisão» (37), o possibilite (38). Contudo,, isso só funciona para verdadeiras contradições de

normas, enquanto que as contradições de valores ede princípios não se deixam evitar sem excepções (S9);por consequência, o postulado da ausência de contra-dições só se alcança num sistema de normas e não,também, num sistema de valores ou de princípios.Esta objecção não deve ser tomada com ligeireza

porque o sistema, devendo exprimir a unidade agluti-nadora das normas singulares não pode, pelo que lhetoca, consistir apenas em normas; antes deve apoiar-senos valores que existam por detrás delas ou que nelasestejam compreendidos (40) o Além disso, num sistemade normas, a ausência de contradições só se deixariaalcançar quando, para além das normas básicas, todasas excepções que as limitam fossem elevadas à cate-goria de axiomas; ora estes podem ser tão numerososque nos devemos interrogar se, na realidade, não setrataria de uma axiomatização aparente; é, de facto,mais do que questionável se proposições como «osnegócios são consensuais salvo quando a lei comporteuma prescrição de forma» ou «os contratos devem seracatados, a menos que a lei conceda uma justificaçãoou uma excepção» possam ser consideradas, propria-mente, como axiomas ('11). Acrescente-se ainda que asexcepções muitas vezes surgem «não-escritas» e, emcertas circunstâncias, só podem ser obtidas atravm'da «interpretação criativa do Direito»; então torna-sDtotalmente claro que dificuldades levanta o postulado

- -da ausência de contradições. _A realização da segunda característica, da pleni-

tude, é, no entanto, totalmente impossível (42). Sobela é de entender, segundo HILBERT-AcKERMANN(no

(35) Cf. HILBERT-AcKERMANN,ob. cit., p. 31 So e 74 ss.;FRAENKEL,ob. cit., p. 356 ss.; CARNAP,Abriss, ob. cit., p. 70 s.e Symbolische Logik, p. 148 s.; LEINFELLNER, Struktur undAufbau wissenschaftlicher Theorien, 1965, p. 208; HÃRLEN,ob. cito, p. 477; ENGISCH, Stud. Gen. 10 (1957), p. 174; KWG,

ob. cito, p. 176; BULYGIN, ob. cit., p. 330.('36) Cf. HILBERT-AcKERMANN,ob. cito, p. 31 e 33 ss. (35);

FRAENKEL,obo cit., p. 347 ss.; CARNAP,Abriss, ob. cit., p. 70 s.e Symbolische Logik, ob. cit., p. 149 (cf. também p. 147);HÃRLEN, ob. cit., p. 477 So; ENGISCH,ob. cit., p. 330.

(37) Cf., quanto a isso, infra § 6 I 4 a.(38) Cf., quanto a isso, por todos, ENGLISCH,Einheit cit.,

p. 46 ss. e Einführung cit., p. 158 S.(39) Cf., quanto a isso, infra § 6 l, em especial po 119 S8.,

126 ss. e 130 s.

(40) Cf. infra, p. 48 S.(41) Cf. também ENGISCH, Stud. Gen. 10 (1957), p. 176.(42) A crítica à possibilidade de um sistema jurídico

nxiomático-dedutivo não tem ponderado suficientemente, naminha opinião, esta característica.

Page 22: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

mínimo) (43), «que todas as formas correctas, dentrodo âmbito a caracterizar, se deixam retirar do sistemade axiomas» (41). Aceitando-se, com isto, que nenhu-mas proposições com conteúdo material autónomo pos-sam ser introduzidas fora dos axiomas, antes devendoresultar todos os «teoremas» de puras operaçõeslógico-formais (45), então, em consequência, o postu-lado da plenitude iria exigir, não só que as normasfundamentais de uma lei, com as suas excepções,mas também todos os preceitos (escritos e não escri-·fos!) devessem ser elevados à categoria de axiomas.

I De facto, quase todas as disposições legais têm um\ conteúdo material autónomo e modificam ou concre-

...~. tizam as decisões jurídicas fundamentais numa ou/\ noutra direcção; de outro modo, elas seriam supér-"\ fluas o que, mesmo em leis mal elaboradas, Só de

c\ . poucas normas é possível dizer. Não há regras rígidasv a propósito do número de axiomas que podem cons-

tituir um sistema axiomático; não obstante, talnúmero não é, por seu turno, indiferente (46); eledeveria, em qualquer caso, ser essencialmente menordo que o número dos «teoremas» dele derivados.Através da combinação de proposições jurídicas sin-gulares entre si, só é possível formular relativamente

poucas proposições novas, mesmo quando se incluamas «premissas maiores», concretas antes elaboradaspara a solução de um determinado caso concreto (47).

Talvez ainda se possa reconduzir esta objecção auma questão de terminologia; há, no entanto, umasegunda objecção procedente. Se, conforme o reque-rido, todas as proposições de uma ordem jurídica sedeixassem retirar de axiomas, então também as pro-posições jurídicas destinadas à integração de lacunasse deveriam compreender neles. Mas isso pressuporiaque aquelas fossem, sem excepção, imanentes, aoDireito positivo - do qual se desenvolveram os axio-mas! - o que só sucede por pura casualidade, de talmodo que se pode ter como excluído. De facto, háum determinado tipo de lacunas, no qual a incomplei-tude da lei resulta indubitável, no campo do Direitovigente: com a simples determinação dessas lacunas,não se progride um mínimo quanto às possibilidadesda sua integração (48) e aí, em certas circunstâncias,o conjunto da restante ordem jurídica não compreendequalquer indicação para as colmatar; o exemplo clás-sico é a falta de uma prescrição sobre o estatuto dasobrigações no Direito internacional privado. Pois aaxiomatização do Direito pressuporia aí que, paratodos os casos de lacunas, houvesse, na ordem jurí-(43) Ainda mais estreitamente falam HILBERT-AcKERMANN

da plenitude dos axiomas «quando pela introdução no sistemade fõrmulas básicas, de uma fõrmula até então não derivávelsurja sempre uma contradição» (cf. ob. cit., p. 35). '

(44) Cf. ob. cit., p. 35.(45) Cf. supra, na nota 31.(46) Cf. também ENGISCH,Stud. Gen. 12 (1959), p. 86

e a conversa aí relatada com KLUG.

(47) Questão contudo diferente é a de que, com auxíliodestas proposições, possa ser possível resolver um númeroinfinito de «casos da vida».

(48) Cf. CANARIS,Die Feststellung von Lücken, ob. cit.,p. 144 ss. onde o correspondente tipo de lacuna é caracterizadocomo «lacuna de ordenação» ou «de recusa do Direito».

Page 23: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

dica, uma valºrização integrativa; ela resultaria dopostulado da compleitude teleológica do Direito' oranão se contradita apenas, sem objecção, a teoria dacompleitude lógica; também a compleitude teleoló-gica é pura utopia (49). Em estreita conexão comesta crítica está, finalmente, o facto de a lei com-preender uma porção de cláusulas gerais «carecidasde preenchimento com valorações», tais como a boafé, os bons costumes, a exigibilidade, o cuidado neces-sário no tráfego, etc. Nestas, a concretização davaloração e a formação de proposições jurídicas sópodem operar perante o caso concreto ou em face degrupos de casos considerados como típicos; semelhan-tes normas são, assim, de antemão, de dogmatiza-ção inviável. Acresce ainda que a passagem de taiscláusulas carecidas de preenchimento com valoraçõespara as demais disposições é inteiramente fluidapodendo mesmo dizer-se que todas as determinaçõe~da lei carecem, numa ou noutra direcção, de concre-tização valorativa. Estas complexidade e variabilidadede sentido opõe-se, em última análise, sempre àaxiomatização.

A confecção de um sistema axiomático-dedutivonão é, assim, possível (50) e contradiz a essência doDireito. Semelhante tentativa decorre, tal como, sobre-tudo, as considerações sobre a necessidade da «pleni-tude» dos axiomas deixaram claro, da utopia de que,dentro de determinada ordem jurídica, todas as deci-

sões de valor necessárias se deixam formular definiti-vamente - decorre, portanto, de um pré-julgamentotipicamente positivista (51), que hoje pode conside-rar-se como definitivamente rejeitado.

a) O conceito de sistema de MAX SALüMON

(49) Cf. CANARIS, ob. cit., p. 173.(50) Bem como as citações supra, nota 13.

Como que do lado oposto, surge a tentativa deconceber o sistema como uma conexão de problemas.Tal foi o empreendimento de MAX SALOMON(52) ecomo essa concepção tem hoje, sem dúvida, denovo uma actualidade especial, vai, de seguida, tra-tar-se dela mais de perto. O ponto de partida deSALOMONfoi o objectivo de fundamentar o caráctercientífico da jurisprudência. Mas na sua opinião sópode ser considerado como Ciência o empreendimentodirigido a um objecto permanente (53). Nesse ponto, ajurisprudência falha, enquanto se ocupa de uma deter-minada ordem jurídica histórica, - e com isso SALO-MON, inelutavelmente fascinado pela célebre confe-rência de VONKIRSCHMANNsobre «A ausência de valor

r(51) Com isso a censura do positivismo, contra a qual!"

KLUG, ob. cit., p. 173s. se tinha precavido, procede inteiramente!(52) Grundlegung zur Rechtsphilosophie, 2." ed., 1925, em

especial p. 26 S8. e 54 ss.; concordando, BURCKHARDT, Methodenund System des Rechts, 1936, p. 131, nota 24.

(53) Cf. ob. cit., p. 11 SS. e 18 ss. (21).

Page 24: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

da jurisprudência como Ciência», fica expressamenteligado (54) ao lema proferido: «Três palavras adequa-das do legislâdor e bibliotecas inteiras tornam-se empapel de embrulho» (55). Como saída, SALOMON vêapenas a ocupação com os problemas (permanente) enão, pelo contrário, com as suas soluções (não per-manentes). Retira-se, assim, sem mais, o que até hojese chamava Ciência do Direito, do círculo das Ciên-cias (50), ficando apenas, como objecto da verdadeiraCiência do Direito, a formação do «sistema dos pro--blemas da legislação possível» (57) .

Fica claro, à primeira vista, que semelhante sis-tema de problemas e das suas conexões é inadequadopara traduzir a unidade interior e a adequação daordem jurídica. Pois o Direito não é um somatóriode problemas, mas antes um somatório (58) de solu-ções de problemas; por isso a sua unidade de sentidotambém só pode ser encontrada nesses pontos devista de base e não em questões isoladas. O conceitode sistema de SALOMON também não é, por isso, capazde contribuir para o esclarecimento do tema colocadona presente investigação.

(54) Die Wertlosigkeit der Jurisprudenz ais Wissenschaft,1848, p. 17.

(55) Cf. ab. cit., p. 13 e p. 21.(56) Também é esta a opinião de SALOMON;cf., por exem-

plo, p. 24, 54 ss., 63 e passim.(57) Cf. p. 54 ss., 67.(58) Somatário não de entender-se como mera adição,

mas antes como conjunção de sentido,

Para além disso, deve também questionar-se queseja possível o desenvolvimento de um sistema deproblemas (59); um tal «sistema» seria, antes, umacontradição em si. Falta-lhe, necessariamente a uni-dade indispensável para o conceito de sistema, a cone-xão interna (00). Os problemas, como tais, não sãomais do que questões isoladas, que se podem esco-lher arbitrariamente e que, por isso, para poderemintegrar uma relação sistemática, carecem de um ele-mento instigador de sentido e de unidade, que só podeexistir fora deles próprios. Assim, logo o pr:meiroproblema imaginável- a questão das tarefas de umaordem jurídica - requer que, de certo modo, se saibaou se pressuponha o que é o Direito; o perguntar sem

(

',,'qualquer pressuposição é impossível, porque a coloca-ção de uma pergunta implica sempre, em si, um certo«ponto de vista». Isto sucede em todos os graus da

,/ conexão de questões. Assim, a problemática da auto-\ nomia privada e do negócio jurídico só se põe quando

. a questão prévia da ordem das relações humanastenha sido respondida em certo sentido, designada-mente a favor da criação de um Direito privado (01);só esta resposta coloca novas questões como, porexemplo, a da necessidade de forma para os actos de

(09) Cf., quanto ao que segue, a óptima crítica de BINDER,Kantstudien 25 (1921), p. 321 ss.

(00) A opinião contrária de SALOMON,ob. cit., p. 58 ss.é uma mera afirmação.

(01) Cf., quanto a isso, F. V. HIPPEL, Das Problem derrechtsgeschiiftlichen Privatautonomie, 1936.

Page 25: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

autonomia privada, a do tratamento das perturbações,como os erros, e a dos limites da autonomia privada;só que das suas respostas surgem novas sub-questõescomo, por exemplo: a partir da necessidade de princí-pio de forma obrigatória, o problema de excepçõeseventuais e a sua diferenciação plena e, aí, de novoo do tipo de forma a observar e a sua diferenciação;a partir da consideração de princípio dos erros, o pro-blema da determinação dos erros relevantes, da ale-gabilidade do erro e da indemnização do dano daconfiança da contra parte; a partir da afirmação deprincípio dos limites da autonomia privada, o pro-blema da sua determinação, seja através de normasestritas, como no § 134 BGB, seja através de regrasflexíveis, como no § 138 BGB, cuja formulação podeainda, em cada caso, ser de tipo positivo ou do nega-tivo (escolhido, e bem, pelo § 138) (G2), etc., etc. Tudoisto não permite contestar a impossibilidade de umpuro sistema de problemas. Possível é apenas pro-jectar uma conexão de pergunta e resposta, de novapergunta (daí emergente) e de nova resposta, etc.O objectivo de uma Ciência que não queira limitar-sea um determinado Direito positivo deveria ser a ela-boração das soluções dos problemas então possíveis,cujo número é, aliás, limitado, das subquestões daíresultantes e das possíveis subrespostas, bem como,a propósito das subrespostas, da limitação na possi-

bilidade de escolha, sempre resultante da resposta àsquestões prévias; contra o carácter científico de umtal empreendimento não se podem, por certo, alegar asobjecções de SALOMON (63).

A muito discutida (64) pesquisa de FRITZ VON

HIPPEL sobre a construção do sistema jurídico éaparentada com as ideias de SALOMON (05). Este preo-

(63) Elas também não procedem, aliás, contra uma Ciên-cia do Direito que se ocupe de uma determinada ordem jurídica,desde que se veja o Direito legislado como uma das possíveissoluções do problema «perpétuo» da justiça, sob as exigênciasde uma situação histórica concreta. Por isso também a afirma-ção de VONKIRCHMANNàcerca das bibliotecas que se torna-riam papel de embrulho é improcedente; toda a história doDireito privado e, em especial, o surgimento do BGB, que seriaimpensável sem os trabalhos preparatórios da Ciência, são amelhor refutação. As ideias desenvolvidas pela Ciência doDireito não ficariam, de modo algum, sem valor, «através deum risco do legislador», antes sendo, no desenvolvimento doDireito (em sentido hegeliano) ou «suprimidos» ou «enrique-cidos», como que esperando a existência «perpétua» de pos-síveis soluções de problemas. Que as obras que contenhamestas ideias envelheçam, passa-se também com todos os tra-balhos científicos; e de outra maneira todo o progressocientífico seria impensável.

(64) Cf. VIEHWEG,ob. cit., p. 66 ss.; EssER,Grundsatz undNorm cit., p. 5 s.; ENGISCH,Stud. Gen. 10 (1957), p. 179,DIEDERICHSEN,NJW 1966, p. 699.

(65) Cf. Zur Gesetzmassigkeit juristischer Systembildung,1930; citado segundo F. V. HIPPEL, Rechtstheorie undRechtsdogmatik, 1964, p. 13 ss.

(62) Não se deve, pois, determinar que o negócio jurídicocorresponde aos bons costumes, mas sim que ele não oscontradiz.

Page 26: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

cupou-se em descobrir a «conexão imanente de pro-blemas» necessariamente consubstanciada com o reco-nhecimento da autonomia privada e desenvolveu, combase nesse exemplo, ideias gerais sobre a construçãodo sistema. No âmago da sua concepção coloca-se osignificado daquela «conexão imanente de proble-mas»; diz ele: «conheçamo-Io e conheceremos a sis-temática jurídico-privada» (66). Não havendo aqui umequívoco, fica a ideia de que VON HIPPEL vê o sis-tema, tal como SALOMON, exclusivamente na conexãode problemas. Assim entendeu de facto VIEHWEG assuas explicações, tendo-as resumido do seguintemodo: «Com isso, tal conexão imanente de problemasforma a procurada sistemática jurídico-privada»; asua especialidade está em que ela não é mais pro-curada «do lado do Direito positivo», antes lhe «cor-respondendo», «manifestando-se como que uma estru-tura de perguntas» (67).

Um tal «sistema» ma expor-se a todas asobjecções que acima foram feitas contra SALOMON e,na verdade, nem poderia aspirar ao nome de sistema.É, contudo, duvidoso que VIEHWEG tenha, efectiva-mente, entendido bem VON HIPPEL (68). De facto estenão deixa, de forma alguma, o lado da resposta, fora

de causa; antes prossegue, no local citado (69): «Nóspodemos, daqui em diante, ordenar a massa de conhe-cimentos singulares jurídico-privados como respostashistóricas a questões permanentes de uma determi-nada conexão de problemas ... ». VON HIPPEL tambémacentua, com bastante clareza, que esta conexão deproblemas não resulta, de modo algum, a priori, masapenas na base de determinada resposta, designada-mente da decisão a favor da autonomia privada.A conexão inseparável da resposta com o problema e

ji" da nova resposta com o novo problema é, para VON

. HIPPEL, totalmente consciente. Ele també~ não ~i.sseque a conexão de problemas «forma» a slstematlCa,sendo pois, como lhe atribui VIEHWEG, a ela idêntica,mas apenas que nós podemos «conhecer» a sistemá-

'\ tica, porque nós podemos agora ordenar as diferentesI soluções., Todavia, mantém-se assim uma certa impressão

discrepante, mesmo quando se tem em conta que

ralidade com que VON HJPPEL fundamentou a ideia de sistemadevia levar VIEHWEGa duvidar da justeza da sua interpretação;como VIEHWEGe contra DIEDERICHSEN,agora também WIEACKER,Privatrechtsgeschichte der Neuzeit, 2." ed., 1967, p. 597,nota 48 (*).

«W) Deve salientar-se que ambas as proposições estãoligadas por dois pontos, que deixam clara a sua estreita liga-ção interior.

(*) Nota do tradutor: Traduzida em português por ANTÓ-NIO HESPANHAe publicada pela Fundação Calouste Gulbenkiansob o título História do Direito Privado Moderno; vide, aí, ap. 690-691, nota 48.

(66) Cf. ob. cit., p. 19.(67) Db. cit., p. 67.(68) Isso contesta DIEDERICHSEN,ob. e loc. cito De facto,

não basta para tanto, a mera referência à intenção de VONHIPPEL de construir um sistema, pois esta poderia relacionar-seeom um mal-entendido na ideia de sistema; no entanto a natu-

Page 27: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

VON HIPPEL devia naturalmente salientar o aspectoproblemático como o realmente novo da sua pesquisa.Na verdade, ele disse com toda a razão: também o

tlegislador, na medida em que «responda a estas ques-

. tões, cria um Código Civil» (70); no entanto, devia-se \,ainda acrescentar: «ele apenas faz um sistema na ~\medida em que responda». Mas VON HIPPEL, não diz, I"contudo, o que dá, a essas respostas, o sentido uni-tário, nem segundo que pontos de vista valorativossobre-ordenados resolve o legislador os problemas (71),

não dando também, por isso, um projecto próprio detiistema (72). Ele apenas faz, aliás em total correspon-dência com o título do seu trabalho, considerações«para a regularidade da formação do sistema jurí-dicQ», com o que salienta a conexão imanente de pro-blemas, necessariamente ligada a uma determinadadecisão fundamental- isto é, desde já: a uma soluçãode problemas. É indubitáveI que aquela conexãoexiste, merecendo, por isso, as ideias de VON HIPPEL,

inteira concordância; mas ele não chegou a dar umadeterminada concretização do conceito de sis-tema (73) - tal como se trata neste parágrafo.(70) Ob. cit., p. 22.

(71) Na linha desta objecção, a crítica que VON HIPPELfaz ao sistema do iluminismo não é inteiramente convincente.Nesse projecto esteve-se sempre perante a ideia de que a uni-dade de sistema, para a qual todo o Direito essencialmenteapontava, só se poderia obter na base de alguns princípiosético-jurídicos pouco numerosos - e isso constitui a sua indu-bitável grandeza. Que esses princípios tenham sido unilateral-mente sobrevalorizados ou que, pelo menos, hoje isso assimnos pareça - e que, por isso, eles precisem de complementaçãoatravés da aceitação, no nosso sistema, de outros princípiosfundamentais (cf., quanto a isso, sobretudo, COING, Festschriftfür DalIe, 1963, 1.0 voI., p. 25 ss., em especial p. 29 ss.) apenassignifica que a escolha da ordenação (de forma, aliás histo-ricamente compreensível) foi feita de modo unilateral, e não,em caso algum, que a «regularidade da formação do sistemajurídico tenha sido desconhecida»; de facto, enquanto res-posta ao problema fundamental da justiça, este projecto éinteiramente compreensível- em oposição à «teoria dos fac-tos jurídicos», assim chamada por VON HIPPEL - a qual, defacto, menosprezou a essência da formação do sistema jurídico(sem no entanto, dever ser equiparada, em globo, à «sistemá-tica do século XIX»; .cf., porém, VON HIPPEL, ob. cit., p. 36).

À semelhança das conexões de problemas,enquanto tais, tão-pouco as relações da vida e a sua

(72) É duvidoso que ele o tenha querido; cf. o título doseu trabalho e, igualmente, o texto. Mas para a afirmativa aessa pergunta depõe, no entanto, o facto de ele colocar a suaprópria concepção no plano da sistemática do iluminismo e doséculo XIX; cf. p. 23 e p. 36. ,

(73) Poder-se-ia, contudo, em ligação com, as suas :onsl-derações, dar a definição de que o sistema serIa a soluçao deuma conexão de problemas; manter-se-ia, porém, por um lado,a dúvida se VON HIPPEL quis efectivamente considerar a «facedas respostas» no conceito de sistema e, por outro, não seriatambém a definição suficiente, por lhe faltarem os elementosessenciais do conceito: a unidade e a ordem.

Page 28: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

ordem imanente (74) são suficientes para a construçãodo sistema. Pois elas são apenas objecto do pireito,sendo formadas por ele, na sua forma específica; elasnão podem, por isso, formar em si próprias a unidadedo Direito nem, também, comportá-Ia por si sós. Issonão quer, naturalmente, dizer que elas não possam,por seu turno, influenciar o Direito, como «naturezadas coisas» e, com isso, em certas circunstâncias,actuar no seu sistema; este, porém, com isso, aindanão está plenamente implantado nas relações da vida.Também não deve, evidentemente, negar-se que aordenação das relações da vida tenha uma influênciaessencial no sistema «externo» do Direito - pense-seapenas no apoio de âmbitos jurídicos como do Direitode Família e das Sucessões, do Direito Comercial, doTrabalho ou de Autor ou dos tipos singulares doDireito das obrigações em especial, nos corresponden-tes fenómenos da vida (75)! Mas deve prevenir-se

contra uma identificação desta ordem com a conexãoespecífica das normas jurídicas, pois haveria aí umsociologismo alheio ao valor do Direito CG).

6. O «sistema de decisões de conflitos» no sentidode HECKe da jurisprudência dos interesses

Fica por investigar um último conceito de sistema:o de Heck e da jurisprudência dos interesses. Deriva,como se sabe, de HECK a distinção fundamental entreo sistema «externo» e o «interno» (77). Para apurar a

. unidade e a adequação da ordem jurídica releva, de

/...

. antemão, apenas o sistema interno; pois entre as suas. tarefas deve haver, segundo as palavras de HECK, no

domínio de uma «conexão material», uma «ordem-I. imanente» (78). Onde fica, então, este sistema <<in-

terno», segundo a opinião de HECK?

(74) LARENZ,ob. cito atribui a HECKa opinião de que osistema interno é «logo dado nas conexões da vida» (cf. p. 57e p. 362). De facto, encontram-se afirmações nesse sentido(cf. p. ex. HECK,ob. cit., p. 149 s. e p. 158); no entanto,esteaspecto do entendimento do sistema de HECKrecua perantea ideia de um «sistema de decisões de conflitos» (cf. sobre isso,o texto, infra, n.O6). Elas poderiam ser s6 o prosseguimentoconsequente das proposições sociológicas da «teoria dos inte-resses genéticos» (cf. infra nota 100); mas também aqui semostra que a jurisprudência dos interesses não se reporta aisso, antes remetendo para o significado- não casualmentedeterminado - do valor legislado.

(75) Também aqui surge uma estreita relação, determi-nada pela natureza das coisas, entre o sistema «externo» e o«interno».

(76) Um exemplo disso ê a poslçao de EHRLICH,quenega a «unidade do Direito nas suas proposições» (cf. Diejuristische Logik, 2." ed., 1925, p. 137) e apenas a quer reco-nhecer como «unidade na conexão da sociedade» (cf. p. 146).EHRLlCHdeveria, consequentemente optar pelo conceito de sis-tema indicado no texto; cf. também infra, nota 100.

(77) Cf. Begriffsbildung und Interessenjurisprudenz, 1932,p. 139 ss. (142 s.).

(78) Cf. ob. cit., p. 143.

Page 29: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

a) A posição da jurisprudência dos interesses quantoà ideia da unidade do Direito

juízos de valor expressos nas normas singulares, assimcomo os mais altos valores do Direito, como a jus-tiça, a equidade, etc., descurando, no entanto,,,i<O g,.ue_fica entre. eles, os escopos fundam~n.tai.S-,_e.specif.kD.$"""dãr~spectiv:.o asp~cto juri~~(;;) ou, como diríamos..---hoje: os princípios gerais do Direito; e de modocaracterístico, ele associou-lhe a censura da falta deformação do sistema. E também OERTMANN teceucríticas com palavras persuasivas, dizendo que, ape-sar de todas as «considerações singulares certeirase muitas vezes convincentes» «não se encontranenhum todo» nos trabalhos da jurisprudência dosinteresses e que «nunca e não mais um quadro uni-tário» pode ser obtido, e que ele não se pode defenderde «um certo sentimento de desespero científico» (84).COING, por fim, resumiu estas objecções contra a

HECK rejeita expressamente a ideia - em si evi-dente (79) - de que os elementos da ordem imanentesejam visíveis nos interesses singulares (80) e caracte-riza o sistema como «sistema de decisões de confli-tos» (81). A questão, porém, de saber até onde esterealiza a unidade interior e a adequação da ordemjurídica conduz imediatamente à questão prévia decomo se coloca a jurisprudência dos interesses perantea ideia da unidade do Direito - e, com isso, a umponto crítico nas bases filosóficas desta doutrina.Aqui, a jurisprudência dos interesses oferece, defacto, aos seus adversários, pontos fracos essenciais,tendo assim a sua relação com a ideia da unidadedo Direito sido sempre objecto de crítica. Já no anode 1914, KRETSCHMAR, no seu excelente discurso dereitor, onde ponderou soberanamente as fraquezas eas vantagens da jurisprudência dos conceitos como dados interesses, criticara, nesta, o abandono da ideiade unidade (82). De modo semelhante, HEGLER criticoujurisprudência dos interesses por ace~~ os

(8~) Zum Gediichtnis von Max Rümelin, Kanzlerrede1931, p. 19.

(84) Cf. Interesse und Begritf in der Rechtswissenschatt,1931, p. 40; cf., quanto a isso, a réplica de HECK, ob. cit.,p. 207 ss. e 212 ss. A propósito da interpretação da carta doestudante, HECK pode ter certa razão (cf. p. 216 s.), mas norestante, a sua resposta passa, de modo muito característico,ao lado da afirmação de OERTMANN;assim ele confirma a suaredução do perguntar pela unidade interior à do «panoramageral» (p. 207 ss.) assim como o reportar das conexões geraisda ordem jurídica meramente às «necessidades da vida» (p. 214)que na opinião representada no texto, HECK contrapunha, emúltima análise, sem sentido, ao princípio da unidade de sentidodo Direito.

(79) Cf. supra nota 74.(80) Cf. ob. cit., p. 150.(81) Cf. ob. cit., p. 149 ss.(82) Über die Methode der Privatrechtswissenschaft, 1914,

em especial p. 39 ss.; cf. também KRETSCHMAR,Grundfragender Privatrechtsmethodik, Jher. Jb. 67 (1917), p. 233 <3S., emespecial p. 271 sS., 285 s. e 291 ss.

Page 30: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

jurisprudência dos interesses com estas palavras:«o Direito não é assim, para a jurisprudência dosinteresses, quer lógica quer moralmente, uma ordemunitária. Ele não tem qualquer unidade» (8ü) .

Mas o que dizem os próprios partidários da juris-prudência dos interesses a estas questões? As toma-das de posição são pouco numerosas, mas compreen-dem uma adesão clara à ideia da unidade do

/

Direito (86). Cabe agora perguntar o que entendemeles com isso. Vêm a propósito duas afirmações deHECK. A primeira parte da equiparação entre a uni-

idade .do Direito e a ausência de contradições (87);, este e, por certo, um elemento essencial, mas repre-L~en.ta apen~s, por assim dizer, o lado negativo da

ldela da umdade e não deixa, de forma alguma, reco-nhecer onde está a unidade de sentido do Direito ,positivamente considerada (88). A segunda afirmaçãorelaciona-se com a conexão interior da ordem jurí-dica, procurando-a na relação das normas com «par-tes da vida que estão ligadas entre si através de har-

monias e de conexões multifacetadas» e"); que issonão chega já foi acima (DO) pormenorizadamente expli-cado. Mas para além disso, o meio com cuja ajudaHECK pretende captar a unidade do Direito tambémnão é frutuoso. Ele apenas considera como adequadaa esse escopo a formação c1assificatória de «conceitosde grupos de generalidade sempre crescente» (91).Conceitos gerais abstractos são porém, inteiramenteinadequados para captar a unidade de sentido, sem-pre concreta, do Direito (92) e tornam-se totalmenteinutilizáveis para esse escopo quando se lhes deixeapenas a função rudimentar que HECK atribui aosseus «conceitos de grupo». Estes só devem, designa-damente servir duas «necessidades»: por um lado,eles devem «aligeirar» a «concepção» das realidadescomplexas, porque o «espírito humano só pode captar,em simultâneo, um número limitado de representa-ções singulares» e, por outro lado, devem «facilitara rememoração» (":1). É evidente que, perante tal«subjectivização», para não dizer «psicologização»do significado dos conceitos, que os reduzem a ummero veículo auxiliar para as insuficiências das capa-cidades humanas de representação e de rememoração,(85) Cf. System, Geschichte und Interesse in der Privat-

rechtswissenschaft, JZ 1951, p. 481 ss. (484); concordando,LARENZ, Methodenhlere cit., p. 133; essencialmente positivo ojuizo de BINDER, ZHR 100, p. 63 s.

(86) Cf., por todos, STüLL, Begrift und Konstruktion inder Lehre der Interessenjurisprudenz, Festgabe für Heck,Rümelin und Schmidt, 1931, p. 96; HECK, ob. cit., p. 87 s. ep. 149 s.

(87) Ob. cit., p. 87 s.(88) Cf., a tal propósito, supra § 1 V 2 e nota 31.

(89) Ob. cit., p. 149 s.; cf. também a referência aos«conflitos da vida» (em vez dos critérios adequados para a suasolução).

(DO) Cf. n." 5.(Dl) Ob. cit., p. 150.('2) Cf. infra p. 49.(f''') Cf. ob. cit., p. 82 s.

Page 31: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

não se considera em nada a unidade objectiva de sen-tido e de adequação do Direito.

Assim fica apenas uma última indicação: a refe:rência de HECK ao «efeito remoto» dos juízos de valorlegais (01), dos quais apenas haveria um passo até à«pressuposta consequência interna do Direito» (05) .Está fora de qualquer discussão que uma das contri:buições metodológicas essenciais da jurisprudênciados interesses está na elaboração deste momento.Põe-se agora a questão de onde se encontram essesjuizos de valor: só nos valores singulares do legisla-dor ou também nas camadas mais profundas doDireito? Presumivelmente responderia HECK nosegundo sentido (DG) e então a censura de HEGLER deque a jurisprudência dos interesses negligencia «asrealidades mediadoras» procederia no essencial. Issofica igualmente claro na sua instrumentação metodo-lógica como nos seus trabalhos práticos. NlJ.JlLP,ris..ma

,metodológico, a jurisprudência dos interessJ:,S__,~ó<.-- , ",',. '<--~-~'--'-~'-'con~~~:sen~~l, os aõ1s, pr~e!LQ~.{<gtID!~ULJ1,ªobteriçãõdõ Direito:c>dãTriterpretação e o da analo-

gia e restrição; ~e-lhe logo, sem comunicaçãQ.,....a«própria valoração»dQjYL~.Jla não reconhece, pelo"'contrário,- uma' função essenCial ao terceiro «grau»da obtenção do Direito, ao trabalho com os «esco-pos específicos fundamentais» (97), portanto aos prin-cipias fundamentais de um domínio 'urídico; por

e rás da lex e da ratzo legis colocam-se imediata-mente os mais altos valores jurídicos como a justiça,a equidade e a segurança do Direito. E no que tocaao trabalho prático-dogmático dos representantes davelha jurisprudência dos interesses - quem poderianão sentir perante largas passagens (98), o mal estarde OERTMANN (S4), porque, em todas as «consideraçõessingulares acertadas e muitas vezes convincentes»,não aparece qualquer «quadro de conjunto unitário»?Não há dúvidas: a força da jurisprudência dos interes-ses localizou-se na discussão do problema singular enão na elaboração das «grandes concatenações» (9D),

(97) Cf. HEGLER, ob. e loc. cit., nota 83.(98) Há, evidentemente, excepções. Pense-se apenas nos

trabalhos de MÜLLER-ERZBACH sobre a responsabilidade pelorisco ou de STOLL sobre as perturbações na prestação, aindahoje, em larga medida, modelares, quer metodologicamentequer quanto ao conteúdo.

(OU) HECK, perante as críticas de OERTMANN e de HEGLER,

responde, na verdade, que colocou no seu manual de DireitosReais, previamente, uma parte geral; no entanto, em minha opi-nião, justamente nessa parte geral, pouco se torna claro da«unidade interior de sentido» dos nossos Direitos Reais e dosseus princípios fundamentais. Poder-se-ia replicar a HECK quenão é nenhum acaso, antes se ligando estreitamente ao entendi-mento de sistema e de unidade da jurisprudência dos interesses,

(04) Cf. ob. cit., p. 150; quanto à «efiCácia remota»,fundamental, HECK, Gesetzesauslegung und Interessenjurispru-denz, 1924, p. 230 ss.

(05) Cf. § 1, nota 27.(9G) Assim ele remete - Gesetzesauslegung cit., p. 231 s.,

por exemplo - para o efeito remoto da igualdade no DireitoCivil; no entanto, não é nenhum acaso que HECK não tenhaaqui escolhido nem uma valoração singular nem um princípio«intermédio»; mas antes, como o princípio da igualdade, umadas mais elevadas valorações do Direito; cf., também, o texto.

Page 32: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

- o que aliás é plenamente compreensível, no prismada história da metodologia, como contra-movimentoantitético contra os exageros da época anterior. ASSil}},.,/.dever-se-ia confirmar inteiramente o duro juízo de .COING(S5) de que ele corresponde sobretudo apenas.,ao princípio sociológico fundamental da «teoria dos !interesses genéticos» (100). ~~.. i

suposto para efectuar também um juízo sobre o seuconceito de sistema: é muito pouco adequado paraexprimir a unidade interior e a adequação da ordemjurídica. Um «sistema de decisões de conflitos» nãodiz praticamente nada sobre a unidade de sentido doDireito, ainda quando BECK também acentue a neces-sidade de destacar «as concordâncias e as diferençasnas decisões de conflitos» (101). Assim, as ideias bási-cas do nosso Direito privado, que formam, por exem-plo, o seu sistema>-- como os princípios de auto-deter-minação, da responsabilidade própria, da protecção daconfiança, etc. (102) não são idêntiCas às decisões deconflitos: antes lhes subjazem, dando-Ihes o «sentido»e sendo, aliás, mal-entendidos, na sua substância,quando se quisesse reduzi-Ias a meras «decisões deconflitos» (l03): ficariam privados do seu conteúdoético-jurídico. Também na tomada de posição deBECI\: quanto a problemas práticos e singulares dosistema se mostram quão estranha lhe é, no fundo,a conexão entre o sistema e a ideia da unidade desentido do Direito. Escolha-se, por agora (104), apenasum exemplo, o das «teorias dos títulos de crédito»,que o próprio HECK caracterizou como especialmentetípico para o seu entendimento de sistema. BECE: con-sidera decisivo que as proposições jurídicas vigentes

b) As fraquezas do conceito de sistema da jurispru-dência dos interesses

Com estas considerações sobre a ideia da unidadena jurisprudência dos interesses, obteve-se o pres-

que os grandes manuais da parte geral do Direito Civil não pro-venham dos típicos juristas dos interesses, mas sim, desdeVON TUHR, passando por NIPPERDEY e até FLUME e LARENZ,

de Cientistas do Direito cujo pensamento se estende para ládos relativamente estreitos limites metodológicos da jurispru-dência dos interesses; na realidade, tais limites nunca sepuderam mostrar tão claros como perante as exigências da«parte geral».

(100) Cf., quanto a isso, também supra, nota 74. Conse-quentemente, aliás, EHRLICH, Logik cit., partindo da sua posi-ção sociológica chega ao resultado de que não existe umaunidade do Direito como unidade das suas normas e continua:«Para a interpretação histórica, a única científica - isso cor-responde exactamente à opinião de HECK! - cada proposiçãojurídica é uma individualidade, um ser autónomo, que vive asua própria vida e tem a sua própria história» (p. 137). Comestas bases, o Direito só pode ter uma unidade no facto de«elas (as proposições jurídicas) só vigorarem em conexao coma sociedade». (Cf. ob. cit., p. 146).

(101) Cf. ob. cit., p. 150.(102) Cf. infra p. 47 s. e 53 SS.

(103) O que HECK também não faz; ele pura e simples-mente o omite.

(104) Cf. mais pormenorizadamente infra, § 5 lH.

Page 33: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

provenham das necessidades da vida, e, por isso, pr~~)tende reduzir toda a controvérsia das teorias a uma /pura «questão de formulação» ('05); daí resulta, por('consequência «em grande medida, a possibilidade de."formulações de teor diferente mas equivalentes, isto é, {duma equivalência de construções científicas» (106)..)Poucos lapsos haverá maiores do que este. Na ver-dade, não se trata de menos do que da defesa daunidade de sentido do nosso Direito privado, designa-damente da questão de saber se o princípio do con-trato, geralmente dominante, pode ser quebrado, comperigo para a unidade, e a favor da possibilidade devinculações unilaterais ou se, em vez disso, se reco-nhece, preservando a unidade, o princípio do con-trato, o qual apenas poderia ser complementado atra-vés do princípio da aparência jurídica, alargado aliáspor vastas áreas através da sua ligação com o princí-pio da auto-responsabilização, igualmente incluídoentre os princípios básicos. Em estreita conexão comisto está o não-entendimento de HECK de que as deci-

sões sistemáticas incluem, em si, valores, a que haveráainda ocasião de voltar (l07).

Assim, o conceito de sistema da jurisprudênciados interesses não pode, tudo visto, satisfazer plena-mente; por outro lado, admite-se que a crítica, porcausa das muitas obscuridades e ambiguidades nastomadas de posição dos seus seguidores, não seja fácile que as explicações acima efectuadas não possamaspirar à pretensão de esclarecimento pleno destaquestão, tão interessante no que toca à história dosmétodos (108). Para além disso, é de acentuar que ajurisprudência dos interesses produziu um trabalhomuito valioso, no próprio domínio da problemática dosistema ('09) e que, sobretudo com a ideia de sistema

(107) Cf. infra § 5 m.(108) Totalmente insatisfatório a este propósito é, infe-

lizmente, o há pouco surgido trabalho de EDELMANN, DieEntwicklung der Interessenjurisprudenz, 1967; quando muitopodem-se salientar as considerações de p. 102 s. nas quais,contudo, o mais digno de nota é a curiosidade de EDELMANN

referir o comentário do § 242 do BGB, feito por WEBER noSTAUDINGER / Kommentar, com referência ao seu âmbito poucocomum (!), como elemento para os esforços da CiênCia doDireito na «construção sistemática» (ou será ironia?).

('09) STOLL deveria aliás estar mais próximo do queHECK do entendimento de sistema hoje dominante e defendido,também, neste trabalho (cf. STOLL, ob. cit., 77 s., 96 e 100),tal como as ideias de STOLL, em muitos aspectos, foram maisavançadas do que as de HECK; não foi por isso, por acaso queSTOLL foi conotado com a expressão «jurisprudência das valo-rações» (cf. ob. cit., p. 67, nota 1 e p. 75, nota 5), dando,assim, o mote metodológico à actual dogmática jurídico-civil.

(105) Cf. Grundriss des Schuldrechts, 1929, § 137.(106) Cf. ob. cit., p. 473, nota 2, com referência expressa

ao § 137. Pelo contrário, com razão, STOLL, ob. cit., p. 117,nota 2 (cf. também p. 110) a cujo desejo HECK, na sua réplica(Begriffsbildung cit., p. 211) não faz justiça, porque ele per-manece circunscrito ao erro fundamental do seu modo causalde consideração; igualmente insatisfatório é o que HECK,

ob. cit., p. 100 ss. contrapõe contra a crítica plenamentejustificada de LEHMANN; cf., quanto a isso, também ínfrap. 96 s.

Page 34: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

«interno» e com a referência ao seu carácter teleoló-gico (110), obteve pontos essenciais que cabe receber edesenvolver (111).

mas sim no sentido mais lato de cada realização deescopos e de valores, portanto no sentido no qual a«jurisprudência das valorações», é equiparada à juris-prudência «teleológica». Não se entende, porém, sópor si, que semelhante sistema teleológico seja pos-sível. Assim poderia, pelo contrário, a jurisprudênciados conceitos ter partido, por exemplo, de que ouexiste um sistema lógico, ou de que não há nenhum.E não foi por acaso que a limitação de STAMMLERaos«puros» conceitos fundamentais e a sua renúnciaresignada à sistematização de uma determinada ordemjurídica positiva, teve a sua base neste entendimentodo conceito de sistema (114). TambémWALTHERBURCKHARDTdistinguiu, ainda em 1936, de modoestrito, entre a «justeza lógica» do Direito e a «justezaética» e limitou o sistema à extrapolação da pri-meira (115). Finalmente cite-se o mais recente ULRICH

<)' Keuo que considera o significado da ideia de sistemacomo uma demonstração essencial do peso do pensa-mento lógico-formal na Ciência do Direito; pois logo

/ o próprio conceito de sistema é um termo especifica-

11- O DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE SISTEMA APARTIR DAS IDEIAS DE ADEQUAÇÃO VALORATIVA E DAUNIDADE INTERIOR DA ORDEM JURíDICA

As considerações críticas feitas até agora facul-taram também as bases para o desenvolvimento deum conceito de sistema que esteja apto para captara adequação interior e a unidade da ordem jurídica.

Sendo o ordenamento, de acordo com a sua deri-vação a partir da regra da justiça (112), de naturezavalorativa, assim também o sistema a ele correspon-dente só pode ser uma ordenação QxiológicQ ou teleo-lógica - na qual, aqui, teleológico não é utilizado nosentido estrito da pura conexão de meios aos fins (11),

(110) Cf. HECK, ob. cit., p. 147, 155, 160 e passim (comreferência a HEGLER).

(111) Para o sistema teleológico cf. igualmente infra, n 1,no texto.

(112) Cf. supra § II 2.(113) Também neste sentido, a expressão não foi usada

poucas vezes; d., por exemplo, BINDER, ZHR 100 p. 62 s.;ENGISCH, Einfii.hrung in das juristische Denken, p. 161 s. eStud. Gen. 10 (1957), p. 178 s.

(114) STAMlVILER considera o seu sistema como lógico--formal, construído de conceitos gerais abstractos; ele recusaexpressamente a possibilidade de confeccionar um sistema dedeterminada ordem jurídica, <dnteiramente preenchido». Cf.Theorie der Rechtswissenschaft, 2.· ed., 1923, p. 222 ss. eLehrbuch der .Rechtsphilosophie, 3.· ed. 1928, p. 278 ss.

(115) Cf. Methode und System des Rechts, 1936, p. 121 ss.e 241 ss.

Page 35: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

mente lógico» e «só a lógica permite determinar ondeexiste, afinal, um autêntico sistema» (116).

Esta limitação do conceito de sistema ao sistemalógico-formal não deixa contudo de ter um certoarbítrio (117). Tanto quanto se trate apenas de ques-

tões de terminologia, pode-se naturalmente discutirsobre a justificação de semelhante estreiteza; comosaída poder-se-ia, com COING (118), distinguir umconceito de sistema mais estrito e um mais amplo,sendo o mais estrito idêntico ao lógico-formalenquanto, dentro do mais amplo, haveria ainda espaçopara um sistema teleológico. Mas desde que se tratede uma problemática material, a limitação do conceitode sistema ao sistema lógico-formal, é uma hipóteseem nada justificada, para não dizer uma petitio prin-cipii. Pois um sistema não representa mais do que atentativa de captar e traduzir a unidade e a ordena-ção de um determinado âmbito material com meiosracionais: a.recusa da possibilidade de um sistema nãológico-formal equivale, assim, à afirmação de que alógica formal representa o único meio possível paraesse fim. Uma tal restrição no âmbito em que sejampossíveis (119) o pensamento e a argumentação racio-

(116) Cf. ob. cito p. 5; cf. ainda, por exemplo SIGWART,ob. cit., p. 695: «A sistemática tem, por tarefa, o representara totalidade dos conhecimentos alcançados num determinadomomento, e cujas partes estejam inteiramente conectadas atra-vés de relações lógicas» (os itálicos pertencem ao origi-nal), - no qual, contudo, se deve sublinhar a limitação aosistema de conhecimentos (ao contrário dum sistema objec-tivo). - Para uma equivalência entre sistema axiomático esistema em geral, vide ARNDT,NJW 63, p. 1277 S.

(117) De facto a possibilidade de um sistema teleológicoé frequentemente reconhecida, sem que a sua problemáticacientífico-teorética tenha sido sempre vista. Cf., por exemplo,RADBRUCH,Zur Systematik der Verbrechenslehre, Frank-Fest-gabe I, 1930, p. 159; HEGLER,ob. cit., p. 216 ss.; ENGISCH,Stud. tien. 10 (1957), p. 178 ss.; neste domínio, tambémHECKque, a tal propósito, acentua expressamente, várias vezes,a sua concordância com HEGLERcf. ob. cit., p. 147, 155, 160e passim. Aí, contudo, a expressão «teleológica» é, em parte,usada com o sentido estrito, acima caracterizado, na nota 113.Também em escritos não jurídicos se fala, muitas vezes, de«sistemas de valores» e similares; cf., por exemplo, KRAFT,Die Grundlage eíner wíssenschaftlichen Wertlehre, 1951,p. 21, ss., com mais indicações; STARK,Die Wissenssoziologie,1960, p. 59 ss., 92 ss., 114 55., 252 55. e passim (cf. no índice,a palavra «Wertsystem»), onde, diferenciadamente, também otermo «sistema axiológico» é empregado; cf. por exemplo,p. 93, 146 e 252; cf., a esse propósito, ainda que sem relaçãoexpressa com a problemática do sistema, LEINFELLNER,Ein-führung in die Erkenntnis und Wissenschaftstheorie, 1965,p. 178 ss.

(118) Cf. Zur Geschichte des Privatrechtssystems, p. 9.(119) Nem sempre é claramente evidente que uma tal

restrição corresponda, de facto à concepção dos partidáriosde um sistema lógico-formal ou axiomático-dedutivo. Noentanto, merece enfoque que KLUG, ob. cit., perante a análiselógica de problemas jurídicos, apenas contraponha a intuição(cf. prólogo de 1950). Com isso, a questão do significado dalógica formal para a Ciência do Direito não fica respondida.De facto, a intuição é indispensável em todas as ciências - deoutro modo não poderia haver génios científicos e o processodas Ciências seria plenamente «fabricáveb> - e, evidentemente,não pode, também, o jurista, viver sem «fantasia científica»;a questão não cai, contudo, na alternativa de lógica formal ouintuição, mas sim naquele «espaço entre elas», portanto na

Page 36: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

nais deve justamente ser rejeitada, como inadmissível,pelo jurista (120); porque as dificuldades próprias dopensamento jurídico não se deixam transpor com osmeios da lógica formal (121), adviria, daí, uma sen-tença de morte não só para a jurisprudência comoCiência, mas também, em geral, para cada tentativade entender a aplicação do Direito como um pro-cesso racionalmente conduzido. Como, de facto, temsido dito com frequência, os juízos dos juristas fica-riam, no essencial, reduzidos a avaliar um qualquer«sentimento jurídico», que, como tal, é sempre irra-cional e sobre cujas «afirmações» não há, pelo menosactualmente, um entendimento que possa aspirarsequer a uma parcela de convincibilidade geral. Poroutras palavras: quem negue a possibilidade de umsistema teleológico nega, com isso, igualmente a pos-sibilidade de captar racionalmente a adequação dopensamento teleológico (122) e, com isso, também a

possibilidade de exercer racionalmente a jurisprudên-cia, no seu âmbito decisivo; pois o sistema, no sentidoaqui entendido (tanto quanto está em discussão nestelocal (123)) não é, por definição, justamente mais doque a captação racional da adequação de conexõesde valorações jurídicas.

Deve-se, por isso, quando não se queira negarradicalmente o entendimento tradicional da Ciênciado Direito, enquanto empreendimento metodologica-mente orientado, assente em argumentos racionais,apoiar a possibilidade de um sistema axiológico outeleológico, pelo menos como hipótese. Vale aqui paraa ideia de sistema o que BINDER afirmou, em geral,para o carácter científico da jurisprudência: assimcomo KANTnão perguntou se existe uma Ciência da

~

' Natureza, .mas antes o pressupôs, tendo procurado,compreendê-lo, também se deve, primeiro, partir de

. «que existe uma Ciência do Direito e, então, perguntar. qual o seu sentido e o que fundamenta a sua pre-

tensão de cientificidade» (124). De facto, ganhar-se-iamuito para a moderna discussão metodológica na

possibilidade e importância de uma metódica não lógico-formal,mas ainda especificamente racional e jurídica, segundo o quese disse no texto, portanto, uma «teleológica formal». Noutroslocais, contudo, KLUGsublinha expressamente a necessidadede uma complementação teleológica da lógica formal; cf. asindicações supra nota 27.

(120) Mas também por outros cientistas do espírito epelo filósofo. A multiplicidade de tentativas de alcançar umalógica material elaborada mostra com suficiente clareza, comoé forte a necessidade de uma complementação da lógica for-mal, através de outro tipo de pensamento racional.

(121) Cf. supra p. 2 ss.(122) Devia-se, portanto, por exemplo, considerar impos-

sível uma fundamentação racional de cada conclusão por ana-

logia, que transcenda a pura clarificação da sua estruturalógico-formal e que, no seu núcleo decisivo, introduza a ques-tão do «encaixe» da ratio legis.

(123) Isto é, a propósito da característica da ordem e nãoda da unidade.

(124) Cf. Philosophie des Rechts, 1925, p. 836 ss. (837) eDer wissenschaftscharakter der Rechtswissenschaft, Kantstu-dien 25 (1921), p. 321 S8., em especial p. 352 ss.; um paralelodigno de nota encontra-se (com referência a uma seriação geralde valores, e portanto não especificamente jurídica) emLEINFELLER,Einführung cit., p. 180 s.

Page 37: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

Ciência do Direito (e, em geral, nas ciências do Espí-rito) quando se adaptasse este ponto de partida deBINDER - infelizmente pouco observado - e, em vezde pôr permanentemente em dúvida a cientificidadedos modos de trabalhar específicos das ciências doEspírito, em especial do pensamento hermenêutico eteleológico, se procurassem entender as especialida-des destes métodos e apenas no final se colocasse aquestão da natureza científica (125). A discussão sairiaentão, com brevidade, de ambos os extremos, entreos quais ela hoje oscila, para aquele ponto intermédioapenas avaliado pelas tarefas específicas da Ciênciado Direito: da improdutividade das meras pesquisaslógicas e logísticas, por um lado (126) e da nãoinadstringibilidade da pura tópica, por outro lado (127) ,para uma teleológica e hermenêutica, que facultemresultados racionalmente verificáveis através de meiosrazoáveis e, assim, vinculantes, - mesmo que nãose pudesse alcançar aquele grau de adstringênciaque é característico para as Ciências da Natureza oupara a Matemática.

E está-se assim tão mal quanto à verificabilidadeda hipótese questionada? De modo algum! Assim, por

exemplo, a Ciência da Literatura - quando tal juízoseja permitido a um diletante (no duplo sentido dapalavra) - fez progressos assombrosos e obteveresultados da mais alta evidência, desde que ela nãomais se assumiu exclusiva ou, pelo menos, predo-minantemente como Ciência histórica (128), mas antestornou a obra de arte, na sua própria e específicaregularidade, sob o lema da «interpretação imanenteda obra» ou da «análise estrutural», no objecto dassuas pesquisas e, nesse sentido se tornou uma Ciênciahermenêutica. E do mesmo modo a jurisprudênciateleológica moderna pode requerer para si um êxitoindiscutível; não se deve, finalmente, olhar, de modopermanente, para as cláusulas gerais (129), antes se

(128) Também aqui o conceito positivista de Ciência pro-voca sérios danos. Pois porque fora das Ciências Naturais eda Matemática, só se reconhece como Ciência a descrição histó-rica dos «factos positivos», julga-se que a Ciência da Literaturasó seja possível como Ciência Histórica; expulsa-se, com isso,do âmbito da pesquisa científica justamente o que é específiconuma obra de arte.

(129) E também a sua concretização tem feito, em parte,progressos admiráveis - pense-se apenas, por exemplo, nostrabalhos de SIEBERT e de WIEACKER sobre o § 242 do BGB(*).

(*) Nota do tradutor: o § 242 do BGB dispõe:«O devedor está obrigado a realizar a prestação tal como

requer a boa fé, com consideração pelos costumes do tráfego».Recorde-se que com base neste preceito, a jurisprudência

e a doutrina alemãs desenvolveram quatro institutos funda-mentais: a culpa na celebração de negócios, a boa fé nocumprimento das obrigações, o abuso do direito e a alteraçãodas circunstâncias.

(125) Não se lhes deve colocar na base o ideal de Ciên-cia do positivismo, que, de antemão, não está apto ao pensa-mento hermenêutico ou a qualquer tipo de teleológica- cor-respondendo inteiramente a outro modelo, para o qual seorienta. Por isso, a polémica contra a adstringibilidade únicadesse conceito de Ciência é, por exemplo, e com razão, umadas ideias centrais da metodologia de LARENZ.

(12G) Cf. também supra, p. 31 S5.

(127) Cf. também infra, § 7 1II b.

Page 38: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

devendo incluir também aquelas partes nas quais,como por exemplo nos domínios «construtivos» dosDireitos Reais, do Direito das Sucessões ou doDireito dos Títulos de Crédito, é possível, num númeroindefinido de casos, um simples juízo de «errado» ou«certo» sobre um resultado e onde não pode ser ques-tão de «admissível», etc. De modo semelhante,devem-se considerar as múltiplas interpretações, ana-logias e restrições «adstringentes», e não elevar ape-nas os problemas do aperfeiçoamento «livre» (isto é,não mais orientado por valores imanentes à lei) doDireito a critério da admissibilidade dos métodosjurídicos. Finalmente, não pode haver dúvidas de queo pensamento jurídico aparece tanto ao leigo como,com frequência, ao próprio jurista, justamente comoum caso modelar de pensamento «lógico»; tenha-sepresente que, na verdade não é um pensamentoteleológico que rege os problemas específicos dajurisprudência e que só este faculta conduzir a suaargumentação; torna-se então claro o que verdadeira-mente subjaz a esse juízo: a experiência de uma evi-dência especial da adequação e poder convincente dopensamento axiológico e teleológico. Embora a suaestrutura possa ser ainda pouco esclarecedora, poder--se-á dizer em resumo: a hipótese de que a adequaçãodo pensamento jurídico-axiológico ou teleológico sejademonstrável de modo racional e que, com isso, sepossa abarcar num sistema correspondente, está sufi-cientemente corroborada para poder ser utilizadacomo premissa científica. Ela é a condição da pos-sibilidade de qualquer pensamento jurídico e, em

especial, pressuposto de um cumprimento, racional-mente orientado e racionalmente demonstrável, doprincípio da justiça de tratar o igual de modo iguale o diferente de forma diferente, de acordo com amedida da sua diferença.

A esse propósito deve-se, por fim, focal' expres-samente uma especificidade: quando se fala aqui,constantemente, da adequação dos valores, preten-de-se significar isso mesmo. Não se trata, portanto,da «justeza» material, mas apenas da «adequação»formal de uma valoração - na qual «formal» não sedeve, evidentemente, entender no sentido de «lógico--formal» mas sim no sentido em que também se falado carácter «formal» do princípio da igualdade. Poroutras palavras: não é tarefa do pensamento teleoló-gico, tanto quanto vem agora a propósito, encontraruma qualquer regulação «justa», a priori no seu con-teúdo - por exemplo no sentido do Direito Naturalou da doutrina do «Direito justo» - mas apenas, umavez legislado um valor (primário), pensar todas assuas consequências até ao fim, transpô-Ia para casoscomparáveis, solucionar contradições com outrosvalores já legislados e evitar contradições derivadasdo aparecimento de novos valores (130). Garantir aadequação formal é, em consequência também atarefa do sistema «teleológico» (131), em total conso-

(130) Seja através de legislação, seja por via da interpre-tação criativa de Direito.

(131) Quanto ao tema, na medida em que a justiça mate-rial se realiza igualmente, cf. infra § 5 IV 3.

Page 39: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

nância com a sua justificação a partir do princípio«formal» da igualdade.

se pode ficar pelas «decisões de conflitos» e dosvalores singulares, antes se devendo avançar até aosvalores fundamentais mais profundos, portanto atéaos princípios gerais duma ordem jurídica; trata-se,assim, de apurar, por detrás da lei e da ratio legis, aratio iuris determinante. Pois só assim podem os valo-res singulares libertar-se do seu isolamento aparente ereconduzir-se à procurada conexão «orgânica» e sóassim se obtém aquele grau de generalização sobre oqual a unidade da ordem jurídica, no sentido acimacaracterizado (132), se torna perceptível. O sistema dei-xa-se, assim, definir como uma ordem axiológica outclcológica de princípios gerais de Direito (133), na

2. O sistema como ordem de «princípios geraísdo Direito»

Com a caracterização do sistema como ordemteleológica ainda não foi, contudo, dada resposta àsegunda pergunta essencial: a dos elementos consti-tutivos nos quais se tornem perceptíveis a unidadeinterna e a adequação da ordem jurídica. No entanto,ficou já esclarecido que se deve tratar de valores,ainda que isso não possa constituir a resposta final,pois se mantém a questão mais vasta de que valoresse trata: todos ou apenas alguns? Se se quisesseoptar pelo primeiro sentido, chegar-se-ia a um con-ceito de sistema que seria muito semelhante ao «sis-tema de conflitos de decisões» de HECK e perante oqual procederiam as mesmas objecções; ele não pode-ria tornar perceptível, de modo algum, a unidade.Trata-se, pois, de encontrar elementos que, na mul-tiplicidade dos valores singulares, tornem claras asconexões interiores, as quais não podem, por isso, seridênticas à pura soma deles.

Nesta ocasião, deve-se recordar de novo a carac-

{

terística principal da ideia da unidade, acima elabo-rada (132): a recondução da multiplicidade do singular aalguns poucos princípios constitutivos. Mas isso signi-fica que, na descoberta do sistema teleológico, não

1--- __

(m) Cf. § 1, I.

(I "") Para a função dos princípios, constituinte do sis-tema, cf. principalmente ESSER, Grundsatz und Norm cit.,p. 277 s. e 323 ss. Para além disso, poder-se-ia, quando muito,aproximar o conceito de sistema aqui adaptado do de COING

e do de LARENZ (indicações importantes também já em STOLL,

ob. cit., p. 77 s. e 96); cf. sobretudo, COING, Grundziige derRechtsphilosophie, 1980, p. 275 ss., JZ 1951, p. 481 ss. (484 s.),Geschichte und Bedeutung des Systemgedankes, p. 9 55. eDõIle-Festschrift, p. 25 ss.; LARENZ, Festschrift für Nikisch,1958, p. 299 ss. e Methodenlehre p. 133 ss. e 367 ss. No entanto,ambos colocam o sistema não exclusivamente na conexão dosprincípios gerais de Direito, mas sim, em parte, também nasconexões da vida, dos valores, dos institutos, etc. (cf. COING,

JZ cit., p. 485 e Rechtsphilosophie, cit., p. 278; LARENZ, ob. cit.,p. 136 s. e 367). Poderia aí, contudo, haver apenas uma opo-sição relativamente pequena com a opinião representada notexto. No que respeita, em primeiro lugar, ao significado dasconexões da vida, há que separar cuidadosamente o sistemaexterno do sistema interno: elas têm um significado grnnde eimediato para a edificação do externo mas, para a do interno,pelo contrário, elas sõ podem ser relevantes mediatamel'l1e,

Page 40: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

qual o elemento de adequação valorativa se dirigemais à característica de ordem teleológica (1~4) e oda unidade interna à característica dos princípiosgerais (134).

Não se pode determinar, de antemão, quando devaum princípio valer como «gera!»; também aqui setrata de um critério inteiramente relativo. Para oconjunto da nossa ordem jurídica, não se poderiamconsiderar todos os princípios como «portadores deunidade» e, com isso, como sistematizadores; e noque, quanto a essa função, respeita ao Direito pri-vado: neste, nem todos os princípios são, por seuturno, relevantes para o sistema, como o serão, porexemplo, para o Direito das Obrigações, os DireitosReais, o Direito das Sucessões, etc.; dentro dessesâmbitos, formam-se subsistemas mais pequenos, comprincípios «gerais» autónomos, como, por exemplo,o sistema dos actos ilícitos, do enriquecimento semcausa, das perturbações na prestação ou da respon-sabilidade pela confiança. Em qualquer caso, umaparte dos princípios constituintes do sistema maispequeno penetra, como «geral», no mais largo e,inversamente, o sistema mais pequeno só em partese deixa, normalmente, retirar dos princípios do maislargo (135). Assim, modifica-se a «generalidade» dumprincípio com a perspectiva do ponto de vista; final-mente, é sempre decisiva a questão de quais os prin-cípios jurídicos que se devem considerar constitutivospara a unidade interior do âmbito parcial em causa,de tal modo que a ordem dele seria modificada, no

actuando sobre a «natureza das coisas» e sobre o que, desta,o Direito receba, portanto numa forma jurídica específica depontos de vista transpostos de ordenação e de valoração,isto é, justamente sobre os princípios jurídicos. Outro tantovale para as «diferenças de estrutura lógico-materiais», porexemplo as que existem entre o Direito das Obrigações e osDireitos Reais; também aqui se trata de separar entre o sis-tema externo e o sistema interno e, quanto ao último, deaproximar apenas aqueles elementos por detrás dos quaisse escondam valores materiais. Quanto aos restantes elemen-tos, como conceitos, institutos jurídicos ou valores, cf. igual-mente no texto infra a). - Um sistema no qual todos ou algunsdestes elementos se contivessem em igual posição, no qual,portanto, por exemplo, conceitos, institutos, valores, conexõesda vida, etc. estivessem, no mesmo grau, junto dos princípios,parece-me, contudo, poúco conveniente (mas cf. COINGeLARENZ,ob. cit.). Com isso, mesmo que não se misturasse,de modo inadmissível, o sistema externo e o interno, tratar--se-ia, contudo, de uma equiparação de elementos que estãoem planos distintos. Poder-se-ia, na verdade, em outras cir-cunstâncias, construir o sistema interno com valores, conceitos,institutos, etc. (cf., quanto a isso, igualmente o texto, infra a»,mas melhor seria erguê-Io sobre um desses elementos e nãomudar permanentemente os planos. Poder-se-ia, desta forma,desenvolver vários sistemas colocados em diferentes planosuns por detrás de outros ou em degraus uns sobre os outros,que se deixassem reformular uns nos outros, mas que perma-necessem sistemas (<<científicos»)diferentes, isto é, formasdiferentes de ver e de captar o sistema (<<objectivo»)da ordemjurídica (para a relação entre o sistema «objectivo» e a suaformulação no sistema «científico» cf. supra p. 13).

(131) Cf. supra § 1 I e as notas 13 e 14.

(1::") Os princlplOs não são, em regra, materialmentebastantes para compreender também todos os pontos de vistavalorativos necessários, para o âmbito mais estreito do orde-namento: cf. pormenorizadamente infra p. 96 s.

Page 41: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

seu conteúdo essencial, através de uma alteração numdesses princípios. Para o Direito civil vigente seriam,por exemplo, de reconhecer como constitutivos dosistema - sem pretensão de exaustividade - os prin-cípios da autodeterminação, da auto-responsabilidade,da protecção do tráfego e de confiança, da considera-ção pelas esferas de personalidade e de liberdade dosoutros e da restituição do enriquecimento injusto (130).

O significado dos «princípios gerais de Direito»para a formação do sistema precisa contudo, nalgunspontos, ainda de maior elucidação.

No que toca, em primeiro lugar, a um sistema denormas, surge este como pouco significativo, por-quanto se deve procurar justamente, a conexão aglu-

J tinadora das normas - e esta não pode, por seu) turno, consistir também numa norma; de facto, os

. princípios jurídicos unificadores e significantes sónuma parte demasiado pequena se deixam formularna forma de normas que devam ser firmemente deli-mitadas segundo as previsões e estatuições normati-vas e, assim, recuam perante a articulação maisflexível do princípio.

No que respeita agora a um sistema de conceitosgerais de Direito, este seria, por certo, pensável nãoapenas como um puro sistema formal de conceitosfundamentais gerais (1:;7), mas também como um sis-tema teleologicamente «preenchido» de uma determi-nada ordem jurídica. No entanto, eles deveriam serconceitos teleológicos ou «conceitos de valor» (1:\8);al<'m disso, também não se deveriam considerar, paraa formação do sistema, os conceitos gerais abstrac-l.os (' ::0), mas apenas os conceitos concretos no sen-tido de HEGEL (140), pois apenas os últimos surgemcapazes de recolher em si o pleno sentido constitutivo

a) As vantagens, na formação do sistema, dos «prin-cípios gerais de Direito», perante normas, con-ceitos, institutos jurídicos e valores.

Em primeiro lugar, não é de imediato evidenteque o sistema deva justamente ser composto de prin-cípios. Põe-se antes a questão de saber se não poderiadepender de outros elementos «gerais», como porexemplo, de normas, conceitos, institutos jurídicos ouvalores. A resposta não é fácil e não deveria,emúltima análise, ser determinada pelos pontos de vistada oportunidade e do acaso.

(l:;ü) Não é objectivo desta pesquisa uma representaçãodo conteúdo do Direito privado actual (cf., quanto a isso,sobretudo COING, Dolle-Festschrift cit.); aqui trata-se antesapenas do aspecto metodológico da problemática, e os prin-cípios referendados no texto visam apenas a ilustração exem-plificativa.

(1::7) Cf., quanto a isso, supra § 2 I 2.(1:1H) O termo é utilizado por COING, Rechtsphilosophie

cit., p. 272.(l:l!I) Cf. LARENZ,ob. cit., p. 139 s.(1,111) Para a significado do conceito geral-concreto na

('il'ncia do Direito é fundamental LARENZ,ab. cit., p. 353 ss.

Page 42: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

da unidade interna (141). Mas ainda que um sistema deconceitos jurídicos seja possível, isso não quer aindadizer que ele também seja adequado. Pelo contrário,isso é duvidoso, perante as tarefas aqui em causa.

o sistema deve fazer claramente a adequação valora-tiva e a unidade interior do Direito e, para isso, osconceitos são muito impróprios. Designadamente, emesmo quando estejam bem construidos, eles apenasmediatamente contêm as valorações, por assim dizerfechadas, enquanto os princípios são abertos; assima valoração é, por exemplo, essencialmente maisirnediata e segura no princípio da autonomia do queno (ordenado) conceito de negócio jurídico, e que sóatravés de considerações relativamente complicadas,(. possível determinar a valoração que o conceito dedireito subjectivo em si contenha. Pode, portanto,dizer-se: No conceito (bem elaborado) a valoraçãocslli. implícita; o princípio, pelo contrário explicita-ae por isso ele é mais adequado para extra polar a uni-dade valorativa do Direito. Para além disso, tambémn[\o se deve esquecer que, de forma alguma, os con-ceitos correspondentes a todos os princípios funda-Ilwnlnis da nossa on!<'1ll .jurídica já estão elaborados(' (tIl(' isso, no essencial, é ainda mais difícil do queiI 1'01'111111,11;110 de principias gerais de Direito. Quantoao reslo. Iliío s(~rú necessário salientar que a formula-(/IU <1(' conceitos não é, por isso, supérflua. Pelocontrúrio: ela é imprescindível para a preparação da

(141) BINDER requereu um sistema de conceitos geraisconcretos na «Wissenschaftslehre» que deixou depois da suamorte; cf. p. 351 ss. (355) do manuscrito na posse do Semi-nário para a Filosofia do Estado e para a Política do Direitoda Universidade de Colónia. Na sua Philosophie des Rechts, de1925, BINDER fala de um sistema de «conceitos gerais empí-ricos» - cf. p. 921 ss. (924), que ele contrapõe aos «puros»conceitos de Direito; esses conceitos são «empíricos» namedida em que se devam desenvolver a partir «do conteúdodas ordens jurídicas singulares historicamente dadas». A rela-ção entre esses «conceitos gerais empíricos» e os «conceitosindividuais históricos» (no sentido de RICKERT), que BINDER

considera, aliás, adequados para a Ciência do Direito (cf. emespecial ob. cit., p. 841 ss. e 888 ss.), não fica bem clara(para as dificuldades da formação de conceitos de BINDER cf.também LARENZ, ob. cit., p. 106 s.). BINDER deveria ter vistoa solução no conceito geral-concreto de HEGEL, ao qual eletambém se ligou casualmente a este propósito, na Philosophiedes Rechts (p. 842; cf. também p. 888). - Que os conceitosdevam ser de tipo teleológico indiciou BINDER incansavelmente,como poucos; cf. por exemplo ob. cit., p. 886, 890 e 897 ss.

LARENZ pretende que o sistema do conceito geral-concretoé o da filosofia do Direito e não o da dogmática jurídica(cf. p. 367), i. é, portanto, não o de uma determinada ordemjurídica. Parece-me duvidoso que isto proceda e, também, queisto surja consequentemente no resto da concepção de LARENZ.

A justificação de que a Ciência do Direito vigente precisaria,para cumprir as suas tarefas, de conceitos gerais abstractospor causa da sua capacidade de subsunção é, em qualquercaso, pouco convincente. Isso é verdade, mas não é tarefa dosistema oferecer a possibilidade de subsunção imediata; tam-

h(~ln os princípios, os institutos jurídicos ou até as conexõesda vida não são inteiramente capazes de subsunção. Pelo con-trário: capazes de subsunção são as normas; o sistema, porém,deve descobrir as conexões de sentido existentes «por detrãsddas» ou «nelas» e pode, por seu lado, não ser susceptível desubsunção.

Page 43: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

subsunção, devendo, assim, ser ordenado um sistemade conceitos jurídicos correspondente aos princípios.Deve-se ter presente que eles são de natureza teleoló-gica e que, por isso, em caso de dúvida, é semprenecessário o recurso à valoração neles incluída istoé, ao princípio equivalente; por exemplo, sendo poucoclaro se um determinado acto deve ser qualificadocomo negócio jurídico ou se uma posição jurídicaprotegida pode ser considerada como um direit;~subjectivo, deve perguntar-se sempre se, no casoques~ionado, respectivamente, procede a regulaçãopredIsposta por força da auto-determinação privada /ou se se. deparam aqui os valores vigentes no reco- .'1

1nhecimento de direitos subjectivos. '

"-~":':--'--'-' ... ,- jlOutro tanto vale perante um sistema de institutosjurídicos (142). Também estes não tornam a valoraçãounificadora de modo algum imediatamente visível.Mas sobretudo, eles não se reportam, em regra, a umúnico valor, mas sim à ligação de várias ideias jurí-dicas distintas; assim, o complexo regulativo da auto-nomia privada, que se pode considerar como «insti-tuto» do nosso Direito privado, só se entende a partirde uma acção conjunta dos princípios da auto-determi-nação, da auto-responsabilidade e da protecção dotráfego e da confiança (143); uma semelhante «misce-

genação» de princIplOs fundamentais pode demons-trar-se em todos os «institutos jurídicos». Mas assimsendo, um sistema com eles formado iria exprimir aunidade da ordem jurídica do modo fragmentário,pois a conexão ainda mais profunda existente entreos institutos não se tornaria visível; pelo contrário:o facto de, para vários institutos, os mesmos princí-pios serem, em parte,constitutivos (144) - por exemplopara o da auto-responsabilidade ou da protecção daesfera de liberdade - mostra que, na procura da uni-dade do Direito, se regressa, por último, sempre e denovo aos princípios gerais do Direito, - uma vezque o sistema não resulta da sua mera enumeraçãodesconexa, mas antes é constituído através da suaeOllcatenação e ordenação interna (145) e desde quecontenha uma componente relativamente semelhanteaos institutos. - A mesma objecção feita perante umsistema de institutos, também vale, aliás, em facedUIlI dI: conceitos, pois também estes, na maioria,cOlllp1'('('I1<I<'llI(:111 si v;í1'ios aspectos valorativos:assitll, o ql\(' acima foi dito a propósito do institutoda 1I1110llOnlÍap1'ivad;1 procede, de modo semelhante,para o ClIllceilo de negócio jurídico; também no con-C('ilo d(' ado i1fcito e nos seus elementos singulares(p1'evisiío legal, i1icitude, culpa) se abrigam váriosp1'illdpios ou valorações diferentes entre si.

(142) Este corresponde sobretudo ao conceito de sistemade SAVIGNY; cf. System des heutigen romischen Rechts, 1840,§ 5 (p. 10 s.); quanto ao «instituto» como factor constitutivodo sistema cf. ainda EssER,Grundsatz und Norm dt., p. 324 ss.e LARENZ, Methodenlehre cit., p. 137 ss.

(143) Cf. mais pormenorizadamente infra, p. 92 ss.

(];") Cf. também LARENZ, ob. cit., p. 139: «... os princí-pios ético-jurídicos, captados através dos institutos síngulares(' constitutivos da conexão de um complexo alargado denormas ... )}.

('1") Cf. mais pormenorizadamente infra, p. 53 e 55 ss.

Page 44: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

Segue-se à proposta aqui feita, a tentativa deentender o sistema como ordem de valores (146). Tam-bém isso seria, evidentemente possível; em últimaanálise, cada Ordem Jurídica se baseia em alguns

I..> valores superiores, cuja protecção ela serve. Mas aoi mesmo tempo boas razões depõem, também, contraI" ela. Na verdade, a passagem do valor para o princí-(pio é extraordinariamente fluida; poder-se-ia dizer,"<luando se quisesse introduzir uma diferenciação dealgum modo praticável, que o princípio está já numgrau de concretização maior do que o valor: ao con-trário deste, ele já compreende a bipartição, caracte-rística da proposição de Direito em previsão e conse-quência jurídica (147). Assim, por exemplo, por detrás

do prinCIpIO da auto-determinação negocial, está ovalor da liberdade; mas enquanto este só por si, aindanão compreende qualquer indicação sobre as conse-quências jurídicas daí derivadas, aquele já exprimealgo de relativamente concreto, e designadamente quea protecção da liberdade é garantida através da legi-timidade, conferida a cada um, para a regulação autô-noma e privada das suas relações com os outros.

f....

O ])rinc.l'.PiOocupa pois, justamente, o pon.to i~te..rm.é-dio entre o valor, por um lado, e o conceIto, por(lU t ro: [email protected]:&G€[email protected]:f-~-:iá--sufkienteJl1~!!teti eterminªclQ.12ara _.~(?1llpre~.Dde_cllllla_-i:Q9ic~ã.Q_§()})-!~_;1 ~ consequências._jurídiGas--e,--GOill.isso,para .possui~uma configuração. esp~cWçªrrg~l1t~ jurídica e ultra-I)assa este poraillda não estar sllficieIitt::Illente deter-Ininado para esconder a valoração. Uma vez porlodas - e mais uma vez se repete, para evitar mal-,('nlendidos - trata-se, predominantemente, de umaqlll'stIio d,' oportunidade c de acaso: um sistema de

(146) Cf. sobretudo COING, ob. cito na nota 133.(147) Cf. mais pormenorizada mente CANARIS, olJ. cit.,

p. 123 S. Isso não significa, evidentemente, que ele aparente,no restante, já a forma de uma disposição jurídica; ele dis-tingue-se antes desta por não estar ainda, em regra, suficiente-mente concretizado para permitir uma subsunção, precisando,por isso de uma «normativização»; cf., mais detidamente,ob. cit., p. 160 ss. Contra a opinião de BYDLINSKI (6JBI. 1968,p. 223), isso não modifica, contudo, em nada, a justeza dadiferenciação proposta entre princípio e valor; o princípio, aocontrário do valor, indica sempre, pelo menos, a direcção daconsequência jurídica (ob. cit., p. 161 ss.) embora pormenorespossam ficar em aberto. No que toca, em especial, ao exemplocitado por BYDLINSKI, do princípio de que a realização docapital de base de uma sociedade anõnima deve manter-seassegurado, é inteiramente reconhecível, nele, a bipartição emprevisão (<<O capital de base») e estatuição jurídica (<<devemanter-se realizado»); também parece, neste caso, especial-

olc'ol •. p"l"'" .1I1I::llIdo fallll' di' um «valor», pois a realizaçãotllI ('111'11111d" 1111:;/\11110VIII" por si só, mas apenas pela pro-k",;n" «d" '1"1' ":lU por detrás dela» e, portanto, é precisaII/lli! v(,riOll «vl1lol'<·s». D,~ resto, é de admitir que os valoresIlIIldl('II:1 :lI' d,'I)(11111f:wilmente reformular nos correspondentesprllll'ipío:; " '111(', por' isso, as delimitações são fluidas - tra-'",ul" :;(' 11i1l'IHl:~dI' diversos graus de um processo de concre-'I'/,/I<;l'io ,'m li! eonlínuo (que, na sua fase seguinte, prosseguedo prlllc:lpio para a norma e, aí, aparenta de novo delimita-.;,.••.s I'Il1ldas). - Em compensação, o que BYDLINSKI diz, ob. cito,qllanto Ü diferença entre a analogia e princípios gerais deI lin'ito é corNincente e representa um progresso importanteIH'::ta questão.

Page 45: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

conceitos teleológicos, de institutos jurídicos ou cklvalores superiores deveria assemelhar-se muito a umlsistema de princípios: deveria deixar-se reformulal

_ .ineste outro, de modo extenso, quando não total. _.~..

('ns vezes levam a decisões contrárias. Pense-se ape-ll;lS nas excepções sofridas pelo princípio da liberdadede forma dos contratos obrigacionais, pelo da consen-sllalidade da procuração, pela possibilidade de repre-sentação nos negócios jurídicos, pelo da condiciona-bilidade dos negócios jurídicos, pelo da liberdade deaceitação dos negócios do representante legal, etc.Ou pense-se nas múltiplas limitações do princípio daautonomia negocial que resultam da consideração deprincípios contrários e das contraproposições daíresultantes, como, por exemplo, a limitação da liber-dade de celebração, através de várias previsões dodever de contratar, a limitação da liberdade de esti-pulação dos contratos obrigacionais através doDireito de protecção das denúncias do Direito socialdo arrendamento e no Direito do trabalho, na limita-ção da liberdade de testar através do direito delegítima, etc., etc. Entre a mera excepção e o princí-pio contrário existe, naturalmente, uma passagemfluida; deve verificar-se, quanto a isso, se o valorque requer a limitação possui uma generalidade euma categoria bastantes para, por seu turno, valercomo princípio constitutivo do sistema. Isso nãosucede, por certo, nos exemplos acima dados, a pro-pósito das ideias jurídicas que subjazem às diversasprescrições de forma, isto é à protecção contra aprecipitação ou à facilitação de prova; o BGB nãoconfere a esses valores um significado tal que, aqui,se possa falar em princípio constitutivo do sistemado Direito civil ou, sequer, apenas do Direito dasobrigações; trata-se, assim, de meras excepções ao

b) Os tipos de funções dos «princípios gerais doDireito» na formação do sistema

Apurada e demonstrada a escolha para elementosconstitutivos unitários dos princípios gerais de Direito,surge, como nova tarefa, o tecer considerações maispormenorizadas sobre o modo e a forma pelo qual elesacatam a sua função sistematizadora. Salientem-se,aqui, quatro características: os princípios não valemsem excepção e podem entrar entre si em oposiçãoou em contradição (148); eles não têm a pretensão daexclusividade; eles ostentam o seu sentido próprioapenas numa combinação de complementação e res-trição recíprocas; e eles precisam, para a sua reali-zação, de uma concretização através de sub-princípiose valores singulares, com conteúdo material próprio.

~ Os princípios não valem sem excepção e podem~ entrar em oposição ou em contradição entre si. Esta

característica não precisa de explicação; é para oS)juristas um fenómeno seguro o de que, às decisões t.fundamentais da ordem jurídica, subjazem muitas i'excepções e de que os princípios singulares não pou:,,~

(148) Para a diferença entre oposição e contradição cf.intra, § 6 I 2 d.

Page 46: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

princlplO da liberdade de forma. Pelo contrário, osprincípios de tutela dos trabalhadores e da protecçãoda família, que estão por detrás do direito de pro-tecção dos despedimentos e da legítima, respectiva-mente, têm, sem dúvida, uma função constitutiva paraos nossos Direitos do Trabalho e das Sucessões e,para além disso, também para todo o Direito Privado;

,. há, pois, princípios opostos.

Os princípios não têm pretensão de exclusividade.Isto significa que uma mesma consequência jurídica,característica de um determinado princípio, tambémpode ser conectada com outro princípio. Podia-sejulgar que isto é evidente. Mas tem sido frequente-mente posto em causa, pelo menos a propósito deprincípios singulares, e este mal-entendido tem-semostrado, em parte, como um obstáculo pesado parao progresso do nosso Direito privado. Assim, porexemplo, nem sempre foi reconhecido que as presta-ções de indemnização podiam resultar não apenas deviolações culposas do Direito; hoje já não é discutívelque, ao lado dela, haja uma série de outros princípiosde imputação, também constitutivos do sistema, taiscomo os princípios do risco, da confiança ou daimputação por actos lícitos e que as disposições aeles respeitantes, como as previsões de responsabili-dade pelo risco, § § 122, 179, 307 e 904/2 BGB (*),

respectivamente, não são, de modo algum, previsõesexcepcionais «contrárias ao sistema» mas antes, pelocontrário, expressões (em parte incompletas) de prin-cípios gerais. Por certo que o princípio do dever deresponder pelo ilícito culposo merece ainda umacerta primazia, que se baseia em parte no seu signifi-cado histórico, mas também, sobretudo, na sua espe-cial evidência ético-jurídica; mas isso não justifica, demodo algum, que lhe seja reconhecida uma pretensãode exclusividade; antes conduz a que, no reconheci-mento de outros fundamentos de imputação, sejacuidadosamente verificada a questão do seu poder deconvicção interior. Compreende-se, por si, que estaperspectiva tenha o mais alto significado para a inter-pretação comum e para a interpretação criativa doDireito (149). Uma problemática muito semelhante àcolocada a propósito do princípio da culpa, põe-se,também, quanto ao princípio de autonomia privada epossui, ainda hoje, grande actualidade. Não poucasvezes parece dominar o mal-entendido de que pre-tensões «como as resultantes de um negócio jurídico»,portanto, em especial, pretensões de cumprimento, sópodem, fundamentalmente, resultar de negócios jurí-

(*) Nota do tradutor: o § 122 do BGB obriga o declarantea inc!emnizar o dec1aratário ou, em certos casos, terceiros,quando a declaração seja declarada nula ou seja anulada; o§ 179 estabelece a responsabilidade do representante que nãoprove os seus poderes, quando o representado recuse a ratifi-

('ação; o § 307 manda, àquele que conheça a impossibilidadeduma prestação assumida, indemnizar a outra parte que selenha fiado na viabilidade do contrato; o § 904/2, por fim,<ktermina que, quem penetre em prédio alheio para prevenirum dano na própria coisa, o possa fazer devendo, no entanto,indcmnizar. As indemnizações são, no entanto, limitadas noslrüs primeiros casos ao denominado interesse negativo.

(119) Cf. também ínfra p. 120 s. e 176 s.

Page 47: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

93

recíprocas (15~~}rTambém para esta proposição encon-tramos variaaõs exemplos. Assim, por exemplo, adoutrina do negócio jurídico e, em especial, a regu-lação do erro no BGB só se torna compreensível apartir da ligação dos três princíp:os da autodetermi-nação, da auto-responsabilidade e da protecção daconfiança. A autodeterminação só é possível em auto--responsabilidade (154), assim como a autêntica liber-dade sempre inclui, em si, a vinculação ética. Emconsequência disso, o imputável deve ainda respon-der, em certas circunstâncias, pela regulação legalmesmo quando a sua autodeterminação falhe; surge,aqui, a auto-responsabilidade como princípio comple-mentador. Esta está estreitamente ligada ao princípioda protecção da confiança, pois, em geral, só peranteo terceiro de boa fé existe a possibilidade de, hones-tamente, apesar da falha na autodeterminação, con-servar o negócio jurídico, com recurso ao principioda auto-responsabilidade. Por exemplo, o princípioda auto-responsabilidade evidencia-se na regra dainterpretação objectiva, na medida em que se tratade fazer imputar ao declarante (pelo menos agora) osignificado objectivo e o princípio da confiança afloraquando dê relevo ao modo como a outra parte deve-ria ter entendido, razoavelmente, a declaração. Subjaz,de igual modo, uma ligação entre os três princípios,

dicos (150). Isso opor-se-ia, por exemplo, ao reconheci-mento da responsabilidade pela confiança como umprincípio constitutivo do sistema de igual categoria,na medida em que, dele não resultem apenas pre-tensões de indemnização, mas ainda, como na respon-sabilidade pela aparência jurídica, pretensões de cum-primento. Na verdade, não se demonstra semelhantepretensão de exclusividade do princípio da autodeter-minação negocial (151), de tal modo que ele não se opõeao reconhecimento de pretensões de cumprimento apartir da responsabilidade pela confiança ou de outrasprevisões de «imputação objectiva» (m). Em geral,pode dizer-se a tal propósito: os princípios não deveni, ·..1'·fundamentalmente, ser colocados num quadro de!exclusividade; eles não devem, portanto, ser formula- {.

~os segundo «só quando ... então ... ». ~'\ Os princípios ostentam o seu sentido próprio ape-L::~numa combinação de complementação e restrição

(150) Tal poderia ser, antes de mais, a opinião de FLUME,uma vez que ele ou não considera os correspondentes fenó-menos como outras previsões especiais capazes de declarações,como, por exemplo, a doutrina do documento de autenticaçãocomercial (cf. Allg. TeU n, 1965, § 36) ou os recusa porinconciliáveis com o Direito em vigor e, em especial, com adoutrina do negócio jurídico como, por exemplo, a «procura-ção aparente» (cf. ob. cit., § 49, 4, sobretudo p. 834: {(... detal modo que as regras sobre negócio jurídico não engrenam»).

(151) Cf., quanto a isso, mais desenvolvidamente, CANARIS,Die Vertrauenshaftung im deutschen Privatrecht, 1971, p. 431 SS.

(152) Cf., sobre isso, por todos, HÜBNER,Zurechnung stattFilztion einer Willenserkliirung, em Nipperdey-Festschrift, 1965,p. 373 ss.

(153) São fundamentais os trabalhos de WILBURG; d.,quanto a eles, pormenorizadamente infra, § 4.°.

(154) Cf., quanto a isso, por todos, LARENZ,Die Methodeder Auslegung des Rechtsgeschiifts, 1930; FLUME, ob. cit.,§ 4, 8 e 21, 1.

Page 48: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

por exemplo, no § 123 II BGB, enquanto a relevância,sem excepção, de uma ameaça, segundo o § 123/1BGB (*), respeita a uma postergação do princípio daconfiança perante o da autodeterminação que, aqui,por força do peso e.special do vício - segundo a valo-ração do BGB - não é modificado através da ideiada auto-responsabilidade. Auto-responsabilidade eprotecção do tráfego (não a protecção da confiança)estão também por detrás da validade provisória deum negócio - sobre o qual recaia um erro rele-vante -; a auto-responsabilidade e a protecção daconfiança dão ao § 122 BGB o seu sentido (**). O prin-cípio da protecção do tráfego desempenha um papelsignificativo na regulação da capacidade negocialonde ele, em conjunto com o estreitamente aparen-tado princípio da clareza jurídica, conduziu à imposi-ção de estreitos limites de idade; ele tanto modificao princípio da autodeterminação como o de auto-res-ponsabilidade: o negócio de um menor de vinte anos

(, ineficaz, mesmo quando este tivesse uma total cap:lcidade de julgamento, e ela representasse, portanto: Ilima regulação legal de autodeterminação responSável).'e sem falhas; e inversamente, o clausulado por uma ,pessoa de vinte e um anos mentalmente atrasada éeficaz, ainda quando não se possa aqui falar propria-'--mente de uma autodeterminação responsável.

Junto de uma tal complementação surge a limita-ção recíproca. Isso já foi acima indiciado, a propósitoda discussão do primeiro critério. Assim, o princípioda autodeterminação na nossa ordem jurídica só sedei.xa apreciar plenamente quando se incluam, naponderação, os princípios contrapostos e limitativose o âmbito de aplicação que lhe seja destinado, por-tanto, por exemplo, quando se actuem as previsõesda obrigação de contratar, da protecção no despedi-mento ou da legítima, de modo útil para a autonomiaprivada. Por outras palavras: o entendimento de umprincípio é sempre, ao mesmo tempo, o dos seus limi-tes (lõ5).

A combinação mútua dos princípios conduz, noentanto, a certas dificuldades na formação do sis-tema. Designadamente, surgem aspectos diferenciadosconsoante se descrevam os diversos lugares onde umprincípio de Direito tem significado jurídico ou seelabore como actua ele num determinado local.É certo, por exemplo, que o facto de os princípiosda imputação do risco e da protecção do tráfego não

(*) Nota do tradutor: dispõe o § 123 do BGB:(1) Aquele que tenha sido levado a emitir uma declara-

ção de vontade através de dolo ou de ameaça ilícita, podeanular a declaração.

(2) Quando o dolo tenha sido cometido por um terceiro,a declaração destinada a outrem, só é anulável quando esteconheça ou deva conhecer o dolo. Quando qualquer outro quenão o destinatário da declaração tenha adquirido, com basenela, imediatamente, um direito, é essa declaração anulávelsempre que ele conhecesse ou tivesse conhecido do dolo.

(**) Nota do tradutor: ° § 122, já acima referido, mandaindemnizar a pessoa que creia na validade de um negócio,quando haja anulação.

('55) Seja dos seus limites imanentes, seja dos «externos»,isto é, dos condicionados pela oposição de outros princípios.

Page 49: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

(156) Cf., quanto a isso, WEISSKOPF em Rücl~blick in dieZukunft, 1981, p. 203 s. (na sequência de NIELS BOHR).

(157) Fundamental para a distinção entre principioe norma, ESSER, Grundsatz und Norm in der richterlichenFortbildung des Privatrechts, 2.' ed., 1964.

(158) Cf. CANARIS, Die Vertrauenshaftung cit., p. 474 SS.

vel a intermeação de novos valores autónomos. Issodemonstra-se, de novo, com exemplos. Quando, porexemplo, se saiba que uma determinada vinculaçãorespeita ao princípio da auto-responsabilidade, aindase está muito longe de uma norma susceptível deimputação. A auto-responsabilidade não significamais do que imputação, mas esta pressupõe um deter-minado princípio de imputação. O Direito civil vigenteconhece, como tais, apenas o princípio da culpa, oprincípio do risco e - em todo o caso segundo umaopinião difundida, ainda que incorrecta (1Õ1) - o prin-cípio da causalidade, cabendo efectuar uma escolhaentre eles. Mas com isso, o processo de concretizaçãonão ficou contudo, ainda, concluído. Feita, por exem-plo, uma escolha a favor do princípio da culpa, surge,de seguida, a questão das formas de culpa; determi-nadas estas, mais pormenorizadamente, como doloe negligência, cabe ainda esclarecer o que se deveentender com jsso; de novo são necessários valoresautônomos, por exemplo, a propósito do tratamentodos erros sobre a proibição, a propósito da questãode saber se o conceito de negligência se deve entenderobjectiva ou subjectivamente e a propósito da deter-minação interna do que seja, em determinada situa-ção, o «cuidado necessário no tráfego»; também sur-gem novos valores na determinação da bitola deresponsabilidade, portanto a respeito do problema depor que grau de culpa se deve responder: se só pordolo, se só até ao limite da negligência grosseira ou

actuarem apenas no quadro da doutrina do negoclOjurídico mas também no enriquecimento sem causae na responsabilidade civil, constitui uma caracterís-tica sistemática do Direito vigente. Mas é igualmentepróprio do sistema que eles tenham conduzido, noâmbito negocial, ao princípio da interpretação objec-tiva, no enriquecimento sem causa, à conhecida proi-bição de ingerência em relações tripartidas e na res-ponsabilidade civil, à objectivação da bitola da negli-gência. Só os dois aspectos levam, de algum modo,à representação plena do sistema, sem que se possamsempre reflectir ou até formular simultaneamente.Eles actuam pois, complementarmente um perante ooutro, para utilizar um termo que é também empre-gue no domínio da teorização das Ciências natu-rais (156). .

[

F· L t . " 't <~1, ma men -e, os pnnclplOs neceSSIam, para a sua

'realização, da concretização através de SUbPrincíPi,osl,.e de valorações singulares com conteúdo matel~~aIrpróprio. De facto, eles não são normas e, por issÕi'inão são capazes de aplicação imediata (l57), antesdevendo primeiro ser normativamente consolidadosou «normativizados» (158). Para tanto, é imprescindí-

Page 50: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

se só pela diligência exigível, etc. Outro tanto acon-tece quando, no tocante à imputação, se decida afavor de princípios do risco. Também aí se colocamproblemas de valoração próprios, porquanto se tratade apurar que risco deve ser imputado e até quelimites actua o dever de responsabilidade; pense-seapenas na escala de possibilidades, desde a respon-sabilidade com inclusão da força maior e através devárias formas intermédias até à liberação da res-ponsabilidade pela existência de um «evento inevitá-vel», no sentido do § 7 II StVG! O mesmo sedemonstra com exemplo na responsabilidade pelaconfiança. Assim, feita a afirmação básica de umaprotecção da confiança, surge imediatamente a per-gunta por que forma ela vai actuar: através da con-cessão de uma pretensão de indemnização pelosdanos e pelas despesas como, por exemplo, nos§ § 122, 179 II e 307 do BGB (*) ou através da con-cessão de uma pretensão de cumprimento como, porexemplo, nos casos da responsabilidade pela aparên-cia jurídica? Isso já não se pode resolver com base,apenas, na ideia de confiança, de tal modo que devemser encontrados novos pontos de vista materiais,depois de cujo emprego podem, em certas con-dições, resultar subproblemas novos e semelhantes.Aceitando-se que a responsabilidade pela confiançarespeita, normalmente, a uma conexão entre os prin-

eípios da protecção da confiança e da auto-responsa-bilização, e que este último, por seu turno, comoacima se disse, implica toda uma escala de diferentespossibilidades de concretização, torna-se clara a mul-tiplicidade imaginável de formações previsivas, atra-vés da combinação de variantes e subvariantes, - oque é confirmado pela consideração do Direito vigentecom o seu grande número de diferentes tipos deresponsabilidades pela confiança.

Mostra-se, assim, amplamente, que as consequên-eias jurídicas quase nunca se deixam retirar, de formaimediata, da mera combinação dos diferentes princí-pios constitutivos do sistema, mas antes que, nosdiversos graus da concretização, surgem sempre novospontos de vista valorativos autónomos. Em regra, nãose pode reconhecer a estes a categoria de elementosconstitutivos do sistema, por causa da sua estreitageneralidade e do seu peso ético-jurídico normalmentefraco: eles não são constituintes da unidade de sentidodo âmbito jurídico considerado, portanto, do Direitoprivado, nos exemplos citados (1GB).

(159) Mas eles podem, naturalmente, ser constituintes daunidade de um âmbito parcial - em regra pequeno. Assimpode-se, por exemplo, considerar um princípio jurídico inteira-mente constitutivo para um «sistema da responsabilidade pelaconfiança», princípio esse que não teria tal categoria no sis-tema das obrigações ou, até, do Direito privado. Caracterizarum princípio como «constitutivo do sistema» é, aliás, umatarefa relativa; cf. mais pormenorizadamente supra p. 77 s.

Page 51: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

c) As diferenças dos «princípios gerais de Direito»perante os axiomas

que respeita à terceira característica, a complemen-Lação mútua dos princípios, resulta também umparalelo com os axiomas: do mesmo modo estes sóadquirem o seu significado próprio quando se liguementre si, para, a partir de várias premissas maioresaxiomáticas, obter a multiplicidade dos «teoremas».

A concordância cessa, contudo, no elemento dalimitação mútua e, inteiramente, na característicainterrupção por excepções e das contradições deprincípios. Os axiomas exigem uma vigência semexcepções, e admitir, na formação do axioma, todasas excepções que surgissem seria uma axiomatizaçãoaparente (162). Enquanto os princípios conservam oeu sentido «em princípio», segundo o termo tão

característico para os juristas, os axiomas devempoder ser formulados de acordo com o esquema«sempre que ... , então ... ». Isto não é, de modo algum,qualquer acaso; surge, pelo contrário, característicodas especificidades do pensamento teleológico, perantea orientação lógico-formal; pois, como diz ESSER(163),«Os princípios só podem funcionar quando se possamquebrar com legitimidade». Totalmente inconciliávelcom um sistema axiomático é a possibilidade decontradições de princípios. É geralmente reconhecidoque tais contradições podem ocorrer (164), não se

Para concluir, regresse-se ainda uma vez à pro-blemática do sistema axiomático-dedutivo (160); tor-na-se claro, de acordo com as considerações entãofeitas, que os princípios gerais de Direito são, em.qualquer caso, inadequados para fundamentar talsistema. Na verdade, a segunda e, pelo menos emparte, a terceira das características isoladas apli-cam-se, também, aos axiomas. Pois também estes nãose devem, essencialmente, edificar segundo a fórmula«só quando ... então ... », antes deixando aberta a pos-sibilidade de o mesmo resultado poder ser retiradode outro axioma (161); uma certa tendência para aredução a relativamente poucas premissas é tambéminerente a ·um sistema axiomático - uma tendênciaque surge, aliás, em cada sistema por causa do ele-mento da unidade e que também é evidente numsistema de princípios gerais de Direito -; no entanto,um axioma não adquire por isso, de modo algum,necessariamente a pretensão da exclusividade. E no

(160) Quanto a isso cf. pormenorizadamente, supra§ 2 I 3 b.

(161) Questão completamente diferente é a de se umaxioma pode ser deduzido de outro ou de uma conexão entrevários outros; isso deve ser negado, pois o axioma seria,então, supérfluo. Mais uma premissa não é, de modo algum,supérflua por o mesmo resultado com ela obtido, se conseguira partir de outras premissas, interiormente diferentes.

(162) Cf. também supra p. 39 s.(163) Cf. Grundsatz und Norm, p. 7.(164) Cf., por todos, ENGISCH, Einführung in das juristische

Denken, p. 162 ss., com indicações desenvolvidas na nota 206a.

Page 52: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

devendo, de facto, negá-Io (165). Elas não se deixam,de forma alguma, remover sempre (165), de tal modoque um sistema de princípios gerais de Direito nãopode satisfazer o postulado da total ausência de con-tradições. Por isso, os princípios são inutilizáveiscomo base de um sistema lógico-axiomático, uma vezque a ausência de contradições dos axiomas é irre-nunciável (166). Pelo contrário, a formação de um sis-tema teleológico não se opõe, de modo algum, à pos-sibilidade de contradições de princípios; ela impede,em todo o caso, uma configuração perfeita desse sis-tema (167).

, Finalmente, a quarta característica distingue tam-bém os princípios gerais dos axiomas; a partir destestodos os «teoremas» se devem deixar deduzir, com autilização exclusiva das leis da lógica formal e sema intromissão de novos pontos de vista materiais (168)enquanto que, como foi mostrado, para a concretiza-ção dos princípios gerais de Direito, são semprenecessárias, nos diversos graus, novas valoraçõesparciais autónomas.

Com a definição do sistema como uma ordemteleológica de princípios gerais de Direito, ficoudeterminado, nas suas características mais importan-tes, o conceito de sistema; no entanto, são necessá-rias, ainda, precisões nalguns pontos. Duas qualidadesdo sistema desempenham, na discussão jurídica actual,um papel largo que ainda não foi abordado, nodecurso, já efectuado, da investigação e que se vaiexaminar de seguida: a «abertura» e a «mobilidade»do sistema. O que se pretende dizer com isso?

No que toca, em primeiro lugar, à abertura, encon-tram-se, na literatura, utilizações linguísticas diferen-tes. Numa delas, a oposição entre sistema aberto efechado é identificada com a diferença entre umaordem jurídica construída casuisticamente e apoiadana jurisprudência e uma ordem dominada pela ideiada COdificação (1); nesse sentido, o sistema do Direito

(165) Cf., pormenorizadamente, intra § 6 I 3-5.(166) Cf. supra, nota 35.(167) Cf., pormenorizadamente, intra § 6 I 5.(168) Cf. as citações feitas supra, nota, 31.

(1) Cf. ESSE R, Grundsatz und Norm, p. 44 e 218 s. epassim, seguindo FRITZ SCHULZ, History of Roman LegalScience, 1946, p. 69, cuja utilização linguística não se fixou,contudo, claramente, neste sentido; cf., ainda, LERCHE, DVBl.1951, p. 692.

Page 53: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

alemão actual deve-se considerar, pela sua estru-tura (2), sem dúvida como fechado. Na outra, enten-de-se por abertura a incompleitude, a capacidade deevolução e a modificabilidade do sistema (3); nestesentido, o sistema da nossa ordem jurídica hodiernapode caracterizar-se como aberto. Pois é um factogeralmente conhecido e admitido o de que ele seencontra numa mudança permanente e que, por exem-plo, o nosso sistema de Direito privado surge, noessencial, diferente do imediatamente posterior àpromulgação do BGB ou do ainda há trinta anos exis-tente. Esta mudança, em cujo decurso foi descobertauma série de «novos» princípios, tem sido descritacom frequência (4) e só precisa, aqui, de ser indiciada.

Ássim, e enquanto factos construtivos ou modificati-vos do sistema, desenvolveram-se: o princípio dorisco, na responsabilidade objectiva, o princípio daconfiança, na responsabilidade pela aparência jurídicae na doutrina da culpa in contrahendo e o princípioda equivalência material no instituto da alteraçãodas circunstâncias; de modo semelhante, o princípioda boa fé demonstrou, na exceptio do li, na doutrinada suppressio (*) ou na multipIicidade dos deveresde comportamento desenvolvidos a partir dela, umainegável força de alteração do sistema.

Em que se fundamentam estas modificações do

~

1istema e em que sentido é o sistema aberto? A res-posta só se obtém quando se separem, com clareza,

. os dois lados do conceito de sistema, isto é, o sistema~ científico e o objectivo (5).

I(2) Segundo as considerações de ESSER, ob. cit., passim,

devia ser hoje geralmente reconhecido que a oposição não éexclusiva, mas apenas tipológica e que, portanto, os dois tiposde sistema convergem; cf., também, ZAJTAY,AcP 165, p. 97 ss.(106).

(3) Cf. SAUER, Juristische Methodenlehre, 1940, p. 172;ENGISCH,Stud. Gen. 10 (1957), p. 187 s.; LARENZ,Methoden-lehre, p. 134 e p. 367; EMGE, Philosophie der Rechtswis-senschaft, 1961, p. 290; RAISER,NJW 1964, p. 1204; FLUME,All. Teil des Bürgerlichen Rechts, 2.° vol., 1965, p. 295 s.;MAYER-MALY,The Irish Jurist, voI. lI, part 2, 1967, p. 375;KRIELE, Theorie der Rechtsgewinnung, 1967, p. 122, 145 e 150.Esta utilização linguística corresponde à utilização teorético--científica geral; cf. as citações infra nota 8.

(4) Cf., quanto a isso, por todos, WIEACKER, DasSozialmodell der klassischen Privatrechtsgesetzbücher und dieEntwicklung der modernen Gesellschaft, 1953, Das BürgerlicheRecht im Wandel der Gesellschaftsordnungen, DJT-Festschrift,

voI. 2, 1960, p. 1 ss. e Privatrechtsgeschichte der Neuzeit, 1967,p. 514 ss. e 543 ss.; F. V. HIPPEL, Zum Aufbau und Sinnwandelunseres Privatrechts, 1957.

(5) Cf., quanto a essa diferença, supra, p. 13.(*) Nota do tradutor: a expressão latina medieval

«&uppressio» foi proposta em MENEZESCORDEIRO,Da boa fé noDireito civil, 2.~ voI. (1984), 797, para traduzir a Verwirkung,spm correspondente na língua portuguesa.

A «suppressio» pode definir-se como o instituto pelo qual() direito que não seja exercido durante bastante tempo, nãomais poderá ser actuado quando o seu exercício retardado sejacontrário à boa fé. No Direito português, a «suppressio» éuma subcategoria do abuso do direito.

Page 54: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

I - A ABERTURA DO "SISTEMA CIENTíFICO" COMO INCOM-PLEITUDE DO CONHECIMENTO CIENTíFICO

Contudo, ninguém ma afirmar que o fenómenoda «abertura» do sistema na jurisprudência se possareconduzir, apenas, à provisoriedade do conhecimentocientífico. Aceitar que as referidas modificações dosistema respeitam, exclusivamente, a progressos depenetração científica na matéria jurídica seria purautopia. Mas isso leva, naturalmente, à conclusão deque subjazemmudanças no sistema objectivo, isto é,na própria unidade da ordem jurídica, e de que ele,por isso, deve ser aberto.

No que toca ao primeiro, portanto ao sistema deproposições doutrinárias da Ciência do Direito, aabertura do sistema significa a incompleitude e aprovisoriedade do conhecimento científico. De facto,o jurista, como qualquer cientista, deve estar semprepreparado para pôr em causa o sistema até entãoelaborado e para o alargar ou modificar, com basenuma melhor consideração. Cada sistema científico é,assim, tão só um projecto de sistema (5a), que apenasexprime o estado dos conhecimentos do seu tempo;por isso e necessariamente, ele não é nem definitivonem «fechado», enquanto, no domínio em causa, umareelaboração científica e um progresso forem possí-veis. Em consequência, nunca podem ser tarefas dosistema o fixar a ciência ou, até, o desenvolvimentodo Direito num determinado estado, mas antes, ape-nas, o exprimir o quadro geral de todos os reconheci-mentos do tempo, o garantir a sua concatenação entresi e, em especial, o facilitar a determinação dos efeitosreflexos que uma modificação (do conhecimento oudo objecto), num determinado ponto, tenha noutro,por força da regra da consequência interior.

11- A ABERTURA DO "SISTEMA OBJECTlVO" COMO MODIFI-CABILlDADE DOS VALORES FUNDAMENTAIS DA ORDEMJURIDICA

Não é discutível e resulta mesmo evidente, que oDireito positivo, mesmo quando consista numa ordemjurídica assente na ideia de codificação, é, notoria-mente, susceptível de aperfeiçoamento, em várioscampos. Os valores fundamentais constituintes nãopodem fazer, a isso, qualquer excepção devendo,assim, mudar também o sistema cujas unidades eadequação eles corporizem. Hoje, princípios novos ediferentes dos existentes ainda há poucas décadas,podem ter validade e ser constitutivos para o sistema.Segue-se, daí, finalmente, que o sistema, como uni-dade de sentido, compartilha de uma ordem jurídicaconcreta no seu modo de ser, isto é, que tal como

Page 55: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

esta, não é estático, mas dinâmico, assumindo poisa estrutura da historicidade (6).

Não se deve encobrir esta realidade com o factode, em vez dum sistema em si mutável e, por isso,aberto, se partir de uma sucessão de sistemas dife-rentes estáticos e, assim, fechados. Na verdade, teori-camente, sempre que um novo princípio constitutivopara o sistema obtivesse validade, poder-se-ia aceitaro nascimento de outro sistema, que absorvesse o atéentão existente; mas com isso, não se teria resolvidoo fenómeno aqui em causa. Pois esta modificação doDireito não se verifica com saltos bruscos, antesoperando num desenvolvimento paulatino e contínuo;isso vale mesmo quando não se trate de um aperfei-çoamento jurisprudencial, mas sim de mera interven-ção do legislador: por exemplo, se este, ao consagrarsempre mais previsões de responsabilidade pelo risco,elevar assim um novo princípio jurídico à categoriade um elemento constitutivo do sistema, não fica,por isso, modificada a identidade do nosso sistema deDireito privado; este apenas se modificou, - nada dediferente, aliás, do que o que ocorre com a identidadede uma individualidade que não é negada pelas modi-ficações no tempo, se esta comparação for permi-

lida (7). Que o legislador possa, contudo, colocar umsistema inteiramente novo no local do anterior con-tende, evidentemente, com isso; não é esse, aliás,o problema de que aqui se trata.

111- o SIGNIFICADO DA ABERTURA DO SISTEMA PARA ASPOSSIBILIDADES DO PENSAMENTOSISTEMATICO E DAFORMAÇÃO DO SISTEMA NA CI~NCIA DO DIREITO

À abertura como incompleitude do conhecimentoci(mtífico acresce assim a abertura comq modificabi-!idade da própria ordem jurídica. Ambas as formasde abertura são essencialmente próprias do sistemajurfdico e nada seria mais errado do que utilizar aabertura do sistema como objecção contra o signifi-cado da formação do sistema na Ciência do Direitoou, até, caracterizar um sistema aberto como umacontradiçfío em si. A abertura do sistema científicoresulta, aliús, dos condicionamentos básicos do tra-1>111110 científico que sempre e apenas pode produzirprojectos provisórios, enquanto, no âmbito questio-nado, ainda for possível um progresso, e, portanto, otrabalho científico fizer sentido; o sistema jurídicopa rtilha, aliás, esta abertura com os sistemas de todas

(6) Para a historicidade do Direito cf., por exemplo,G. HUSSERL, Recht und Zeit, 1955; ARTHUR KAUFMANN,

Naturrecht und Geschichtlichkeit, 1957 e Das Schuldprinzip,1961, p. 86 8S.; LARENZ, Methodenlehre, p. 189 8S.; HENKEL,

Einführung in die Rechtsphilosophie, 1964, p. 36 ss.

('I) Cf., quanto a isso, HENKEL, ob. cit., p. 40, que equi-P:lI'<l expressamente a ordem jurídica a uma «individualidadeI'rúprim>.

Page 56: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

as outras disciplinas (8). Mas a abertura do sistemaobjectivo resulta da essência do objecto da jurispru-dência, designadamente da essência do Direito posi-tivo como um fenómeno colocado no processo da His-tória e, como tal, mutáve1. Esta forma de aberturanão se encontra necessariamente em todas as outrasCiências (9), pois o seu objecto pode ser imutável;pode até haver aqui uma especificidade da Ciênciado Direito; não se justifica então, de modo algum,colocar em dúvida a capacidade da ideia de sistemapara a Ciência do Direito: pois as especialidades donosso objecto devem corresponder a especialidadesdo nosso conceito de sistema e um sistema (em sen-tido objectivo) em mudança permanente é tão ima-ginável como uma unidade de sentido duradoura-

mente modificável (10). Retira-se, de facto, daqui, quea formulação do sistema jurídico - possivelmente emoposição a outras Ciências - nunca pode chegar aofim, antes sendo por essência, um processo infindá-vel (11); aí reside também um certo sentido prático,derivado do sistema ser aberto. De qualquer modo,isto traduz uma evidência, que de modo algum mereceum significado tão fundamental como o que lhe con-fere a moderna discussão do sistema; em especial, aabertura do sistema não tem qualquer significado paraa admissibilidade da interpretação criativa do Direito;

(tO) A questão tem, aliás, o seu paralelo na discussão:wbre o carácter científico da jurisprudência, na medida em que,·:{tc seja negado com a fundamentação de que o jurista se ocupade um objecto «efémero». Por fim, em ambos os casos deveriaIratar-se de um pouco significativo prablemade definição.

(11) Enquanto uma ordem jurídica está em vigor, elamodifica-se e assim que deixe de vigorar, ela já não é maisobjccto da dogmática jurídica, como Ciência do Direitov igente, mas sim objecto da História do Direito. O modo detrabalhar do historiador, contra a opinião de GADAMER(Wahrheit und Methode, 2.' ed., 1965, p. 307 ss.) não é, porém,li mesmo do do jurista dogmático, pois não lhe compete aIIplicação do Direito, a um caso actual, tão essencial para odogmático, bem como o seu aperfeiçoamento; que GADAMARd"sconheça isto tem a ver, sobretudo, com a polissemia do seu('OI1l:eito de «aplicação»; d. WAGNER, AcP 165, p. 535 s. quen'nSllnl a GADAMER,com razão, neste ponto, uma troca de('onceitos; contra GADAMER, com pormenor e convincente,HI':TTI. Dic Hermeneutik aIs allgemeine Methodik der(;I'ísleswissellschaften, 1962, p. 44 ss. e WIEACKER, Notizen2./11' rechtshistorischen Hermeneutik, 1962, p. 21 (cf. tambémp. 8 SS. (' IH s.).

(8) A ideia da abertura do sistema é inteiramente cor-rente na nova teoria científica; cf., por exemplo, RICKERT,System der Philosophie I, 1921, p. 350; PLESSNER,Zur Soziolo-gie der modernen Forschung und ihrer Organisation in derdeutschen Universitat, em: Versuche zu einer Soziologie desWissens, publicado por MAX SCHELER, 1924, p. 407 ss. (413);JASPERS (e ROSSMANN), Die ldee der Universitat, für diegegenwiirtige Situation entworfen, 1961, p. 44; FREYER, DieWissenschaften des 20. Jahrhunderts und die ldee des Ruma-nismus, Merkur 156 (1961), p. 101 ss. (113); SCHELSKY,Eisamkeit und Freiheit, Idee und Gestalt der deutschen Uni-versitat und ihrer Reformen, 1963, p. 287 S.

(9) Cf., por exemplo, a propósito da Física, a este pro-pósito, C. F. VON WEISACKER, Abschluss und Vollendung derPhysik, publicado na Süddeutsche Zeitung de 25.10.1966,n.O 255.

Page 57: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

esta não é admissível por aquele ser aberto; antesaquele surge aberto porque esta - por razões exte-riores à problemática do sistema - é admissível.

enquanto o sistema objectivo, pelo seu lado, não éInfluenciado por modificações dentro do científico.

Um exame mais cuidado mostra que a problemá-lleu não é assim tão simples, antes conduzindo ime-diatamente a duas questões prévias altamente com-plexas: ao problema da validade e das fontes doDireito (12) e ao problema, decerto modo ligadocom aquele, da relação entre o Direito vigente «objec-livo» e os seus conhecimentos e aplicação; pois aquestão dos factores e pressupostos de uma modifi-clIção do sistema objectivo é idêntica à da admissibili-dllde de uma modificação do Direito vigente, portantolIO problema das fontes do Direito e a questão darelação entre o sistema objectivo e científico é apenas11111 sub-problema da questão geral das relações entreo Direito vigente «objectivo» e o seu conhecimento.Por não serem ambos problemas específicos da pro-hll~I1Híticado sistema, compreende-se por si que nãopossam ser pormenorizadamente discutidos no quadrodo presente trabalho; na sequência, apenas se vai

IV - OS PRESSUPOSTOS DAS MODIFICAÇÕES DO SISTEMAE A RELAÇÃO ENTRE MODIFICAÇÕES DO SiSTEMAOBJECTIVO E DO SISTEMA CIENTIFICO

o círculo de questões da abertura do sistema nãoestá totalmente esgotado com a mera justaposiçãoda incompleitude do sistema científico com a modifi-cabilidade do sistema objectivo, tanto quanto talseparação esteja, também, certa, em princípio. O pro-blema, na prática altamente significativo, de sabersob que condições são possíveis modificações numdos dois sistemas tem ficado, até aqui, por esclarecer,assim como a questão, com ele estreitamente ligada,da relação na qual ambos os sistemas (ou ambos oslados do sistema) se encontram entre si e, por conse-quência, que. influência têm as modificações dumdeles, no· outro. À primeira vista, pode parecer que aresposta não seja difícil de dar: o sistema científicomodifica-se quando tenham sido obtidos novos oumais exactos conhecimentos do Direito vigente ouquando o sistema objectivo ao qual o científico temde corresponder, se tenha alterado; o sistema objec-tivo modifica-se quando os valores fundamentaisconstitutivos do Direito vigente se alterem. Em conse-quência, o sistema científico está em estreita depen-dência do objectivo e deve mudar-se sempre com este,

(I") A validade e as fontes do Direito devem, natural-11ll'llln, entender-se aqui, em sentido normativo e não em111'11 lido fúctico, isto é, como o enunciado das proposições1III'Idkilsque devam, acertadamente, ser aplicadas e não como" 1"vlIllLamentodas proposições jurídicas muda consoante aIlllllórill- é, na minha opinião, fundamental para a doutrinadll vlllidade e das fontes do direito e não deve, apesar danll icll snmpro retomada, ser abandonada ou, sequer, confun-<11<111(mlls d., também, infra nota 36). Para os diversos tiposri" l'llllc<'iLo de validade d., por todos, HENKEL, Einführung in.ti" 1~"('I""l'lli/oso1Jhie, p. 438 ss., com outras indicações.

Page 58: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

esquematizar, com brevidade, o nosso próprio pontode vista (13), na medida em que isso seja necessáriopara tornar segura, em toda a extensão, a problemá-tica da abertura do sistema (13).

(~ que, na forma da eficácia externa imediata oumcdiata, modificou essencialmente o nosso sistemade Direito privado; o tema do Direito geral da perso-nalidade torna-o particularmente claro. Segue-se aforça modificadora do sistema do Direito consuetu-dinário. Assim o sistema dos nossos Direitos Reaisfoi alterado através do reconhecimento da transmissãode garantias que, apesar de todas as tentativas dejustificação, deve ser considerada como aperfeiçoa-nwn to contra legem do Direito e, assim, só se podeapoiar na força derrogadora do Direito consuetudi-n{Il'ío.

Mas serão a legislação e o Direito consuetudinárioos únicos factores significativos para as modificaçõesdo Histellla objcctivo? A doutrina tradicional das fon-I!'s do Direito deveria, consequentemente, afirmá-Io,coloclIndo'oSe, enUío, o problema de como esclarecert odlts lIS 1I1odíl'icaçi'í('s do si::;tema que se reconduzam1I I'I/(H;()('/I jllli:Jl'fI/(/I'lIcioi:J do Direito. Como enten-111'1', por I'Xt'l1Iplo, li lal propósito, a culpa in con-//fIlllJlldo I' li )'(\:lptllINahilidadl~ pela aparência jurídica,11 vltlllt(~llo po:JillvlI do cródito e o contrato com efi-4'flda pl'of<'Ctorll dI' terceiros, a exceptio dali e a111/1'/)/(':11110, () dl~ver de contratar e a doutrina da alte-I'IlI;l\odas c.írcullsUlncias, o desenvolvimento dos deve-n's dI' :INsísWncia e de lealdade no Direito do Trabalho(I IlO Direito das sociedades ou a doutrina das socie-dlll"'S e das relações laborais de facto? Estes institu~t m; surgiram inteiramente independentes de uma i

inlt'rvI'llção do legislador e apoiar a sua validade no i, •

I)ireí'o consuetudinário é pouco satisfatório porque

Ocupemo-nos, primeiro, das modificações do sis-tema objectivo. De acordo com a doutrina tradicionaldas fontes do Direito, deve partir-se do princípio deque, em primeira linha, a modificação cabe ao legis-lador. Como exemplo, recorde-se mais uma vez oalargamento paulatino da responsabilidade pelo riscoe a modificação do nosso sistema de Direito privado,com isso provocada. No entanto, não é sempre neces-sário verificar-se semelhante intervenção directa. Asmodificações do sistema podem antes resultar deactos legisla tivos que respeitem, primeiramente, adomínios jurídicos inteiramente diferentes; nota-se,aqui, de modo particular, o postulado da unidade valo-rativa e, com isso, a força do pensamento sistemático.Um dos exemplos mais visíveis, que surge a tal pro-pósito, é a doutrina da eficácia externa dos direitosfundalTIel1taisque só 'se torna compreensível sobreo pano de fundo da ideia da unidade da ordem jurídica

(13) Tanto se assumem conscientemente a renuncIa auma discussão pormenorizada com opiniões divergentes comocertas simplificações inevitáveis nos problemas.

Page 59: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

os pressupostos deste - ainda que hoje já existen-tes - não se verificavam, de modo algum, nomomento do seu primeiro reconhecimento, de talmodo que se deveriam, inicialmente, considerar como«inválidos» e só posteriormente legitimados atravésde um Direito consuetudinário derrogante. Fica ape-nas uma saída: poder-se-ia, nestes casos, negar qual-quer modificação do sistema objectivo e afirmar queo desenvolvimento dos referidos institutos apenasconduziu a uma modificação do sistema científico.E porque o sistema objectivo é constituído, segundoa opinião aqui apresentada, por valores fundamentaisou por princípios fundamentais de Direito, isso iriapressupor que aquelas figuras novas respeitam avalores que, de antemão estavam imanentes ao nossoDireito privado; a problemática em questão desem-boca assim na questão do fundamento da validadedos princípios gerais do Direito (14).

Como tal deve-se, em primeiro lugar, referir oDireito legislado, do qual, frequentemente, se deixamobter princípios gerais, através da analogia ou,melhor, da indução. De facto, algumas das referidasconstruções novas, derivam, sem mais, dos valoresda lei. Isso respeita, por exemplo, à responsabilidadepela aparência jurídica, pois a sua construção vasta-

mente ramificada desenvolveu-se, quase toda (15), apartir das in.dicações relativamente estreitas dos~~ 171,172,405 e 794 do BGB (*), com base em ana-logia singular ou conjunta (16); isto vale, sem limita-(;IJcs, para a violação positiva do crédito bem como,para a doutrina da sociedade de facto (17). Em taiscasos, o reconhecimento de um novo instituto não

, Hignifica, de facto, qualquer modificação do sistemaI (lbjcctivo, mas apenas uma alteração no científico,

(1 r,) Apenas há uma excepção para a chamada «pro-('lII'lI(;ão aparente» que é altamente problemática por causadll contradição de valorações com a regulação da falta deconsciência da declaração; cf. mais desenvolvidamente, infra

1'. l.IH.(!lI) Cf. CANARIS, Die Vertrauenshaftung im deutschen

/'rival.recht, 1971, p. 106 s., 107 ss. e 133 5S.

(17) No que toca à violação positiva do crédito, elad"riVll directamente, da analogia com os casos legalmenteI'I'/',ullldos de vícios na prestação. No que respeita à sociedaded(' I'ado, resulta, para as relações externas, do princípio daupnri"ncia jurídica imanente à nossa ordem jurídica (d. supra,tlll Imcto) e para as relações internas, do facto de os §§ 812 ss.do BGB não se adaptaram, tipologicamente, à sociedade,I'icundo pois sem aplicação, por força de redução teleológica,dl'V\'lldo substituir-se através da aplicação analógica dos pre-"•.ilos sobre liquidação, como regulação material da dissolu-1:110; para este entendimento da sociedade de facto cf. LARENZ,

lVll'lllOd<>.nlehre p. 298 s. e Schuldrecht, BT. § 56 VII.("') Nota do tradutor: o § 171 dispõe a eficácia da pro-

I"II'IU>IOperante quem ela tenha sido anunciada pelo repre-Ij('lIlado; o § 172, sobre a eficácia do documento onde tenhamIildo conferidos os poderes de representação; o § 405 estipula,lIil C!'sé;fio de créditos, a inoponibilidade, ao novo credor, de

(14) Este é relativamente pouco esclarecido; fiz umatentativa - ob. cit., p. 95 ss. (97 ss., 106 ss. e 118 ss.) deprogredir algo nessa direcção, na qual se edificaram as con-siderações que seguem.

Page 60: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

uma vez que os valores relevantes já se continham,de antemão, na lei e apenas não eram reconhecidosno seu alcance total.

No entanto, nem todos os referidos institutos sepodem apoiar, desse modo, nos valores da lei; muitos

" deles não são «exigidos» através da teleologia ima-

)[" nente da lei, mas apenas «inspiradas» por ela (18);I doutros, nem isso se pode dizer. Como WIEACKERI

/ / acertadamente disse, existe uma «ordem jurídica)) extra-legal» (19); as modificações no sistema podem,I I também, partir dela. A maioria das novas formações,

acima referidas, permite exemplificá-Io; em regra eem todo o caso, elas dispõem de um «apoio» jurídico--positivo (assim, para a exceptio dali e a suppressio,o § 242 BGB) mas que não obtêm, da lei, uma verda-deira legitimação. Poder-se-á dizer, em semelhantescasos, que os valores de base já estivessem imanentesà nossa ordem jurídica e tenham, apenas, sido desco-bertos, tratando-se portanto, também aqui, apenas de

IllOdificações no sistema científico, mas não no obj,ec~Uvo:) A resposta só se obtém quando se perguntepor que razão aqueles valores, apesar de não consta-relll da lei, devem ser ainda parte do Direito, isto é,quando se coloque, de novo, a questão do seu funda-mento de validade. E porque a lei e o costume, tendoI'm conta a especialidade do enquadramento do pro-blema, se colocam, de antemão, de parte, surge, obri-gatoriamente, a necessidade de uma reformulação dasIradicionais fontes do Direito (20), a qual pode, noI'ssenciaI, seguir apenas duas direcções: ou se decideI'levar a jurisprudência à categoria de fonte autónomado Direito (21), junto da lei e costume, ou se devemreconhecer critérios de validade «extra-positivos»,oferecendo-se então, como tais e antes de tudo, a<dcteiade Direito» e a «natureza das coisas».

A primeira solução é, porém, inconciliável comli posição do juiz na nossa ordem jurídica: a proposi-('fio colocada pelo tribunal como fundamento de uma(')ecisão não vale por ter sido exteriorizada pelo juiz,Hlas sim por estar convincentemente fundamentada,isto (" porque deriva de critérios de validade bastan-lI's, exteriores à sentença judicial. Esta opinião não~i() corresponde inteiramente à orientação domi-

quanto não conste do título; o § 794 fixa a responsabilidadedo subscritor dum título ao portador pela obrigação em causa,mesmo quando o título lhe tenha sido subtraído. Todas estasfiguras tem o seu correspondente no Direito português, exceptoo § 405: a cessão de créditos portuguesa, ao contrário daalemã, é causal e não abstracta.

(18) Assim a formulação acertada de LARENZ, Nikisch--Festschrift, p. 276.

(19) Cf. o subtítulo do seu escrito Gesetz un Richterkunst,1958: «Zum Problem der aussergesetzlichen Rechtsordnung»(<<Para o problema da ordem jurídica extra-legal»).

e") Também 'WIEACKER, ob. cit., retira expressamente('f;Sa consequência da descoberta da «ordem jurídica extra-h'gu!»; cf. p. 15 s.

(" I) No sentido normativo; não é discutível que a sen-It'!H.:a judicial seja fonte do direito facticamente vigente, isto é,dt'div<lmente aplicado (para a diferença cf. supra, nota 12).

Page 61: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

nante (22), mas também se acolhe ao auto-entendi-mento da jurisprudência como da doutrina: a pri-meira, nas suas decisões, mesmo quando ela, cons-cientemente, «aperfeiçoa» o Direito, da ideia de queas proposições jurídicas de base não obtêm validadeatravés da sentença judicial (21), mas antes a possuemjá previamente sendo, pois, apenas «descobertas»; aúltima, quando propaga um instituto jurídico novo,modificativo do sistema, apresenta, desde logo, a pre-tensão de que a solução por ela defendida sejaDireito vigente e não coloca apenas, à jurisprudência,uma proposta não vinculativa, cuja aceitação, por ela,fosse uma questão de mera oportunidade ou, até, delivre vontade. De facto, fica apenas o segundo cami-nho e este parece ser inteiramente praticável, apesarda problemática estar ainda pouco pensada: os prin-cípios gerais de Direito podem ter também o seufundamento de validade para além da lei, na ideia deDireito, cuja concretização histórica eles largamenterepresentam, e na natureza das coisas (23); por isso,ambos estes critérios devem ser reconhecidos como

!'olltes do Direito, subsidiárias em face da lei e doem;tume (24); a partir delas, e através de um pro-cesso de concretização inteiramente material e muitoCOlllplicado, desenvolvem-se proposições jurídicas deconteúdo claro e de alto poder convincente e").

o que significa isto para a questão aqui colocada?Significa, em primeiro lugar, que, para além da lei(~do costume, também podem conduzir a alteraçõesd(~ sistema objectivo aqueles princípios gerais doDireito que representam emanações da ideia deDireito e da natureza das coisas (26). No entanto,('stes critérios não se devem entender de modo1I"llistórico e, em simultâneo, estático (27); pelo con-

C") Isso significa que os princlplos jurídicos desenvol-vidos a partir deles só podem vigorar, na medida em que nãocontrariem os valores da lei e do costume; cf., mais porme-lIorizudamente, CANARIS, ob. cit., p. 95 S.

("Ií) No tocante a singularidades no campo dos exem-plos, devo, de novo, limitar-me a uma remissão para as minhas('onsiderações em ob. cit., p. 93 ss. e p. 160 ss. (cf., tambémo n~sumo, p. 170 s.).

('!li) Os princípios imanentes à lei não são, como acimalil: disse, pontos de erupção para modificações no sistemao/JjeeUvo; mas existem, materialmente, passagens; sobretudopor vezes, a generalidade de um princípio contido na lei sólil' fundamenta convincentemente através do recurso a critérioscomo a ideia de Direito ou a natureza das coisas e, pelo menost\l'SSI$ casos, subjazem-lhe também certas mudanças; cf. tam-ht'ml infra, nota 38.

("'{) Cf., quanto a isso, sobretudo, ESSER, Grundsatz undNOl'/Il in der richterlichen Fortbildung des Privatrechts, passim;I,AIlI':N/:, Nikisch-Festschrift, p. 299 ss., em especial p. 301 e 305" /V1el./lOdenlehre,p. 314 ss.

(22) Na literatura sobre o Direito jurisprudencial, entreos mais recentes, sobretudo HIRSCH, JR 1966, p. 374 S8. comindicações extensas; ESSER, Festschrift für F. V. HippeJ, 1967,p. 95 ss.; H. P. SCHNEIDER,Richterrecht, Gesetzesrecht undVerfassungsrecht, 1969.

(23) Sublinhe-se, de novo, que, aqui, apenas se visa umaesquematização do próprio ponto de vista, o qual foi apre-sentado e fundamentado noutro lugar (cf. as remissões nasnotas 14 e 25) e que se renunciou conscientemente a umadiscussão pormenorizada.

Page 62: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

trário, os princlplOs redutíveis à ideia de Direito sóganham o seu poder concreto em todas as regras atra-vés da referência a uma determinada situação histó-rica e da mediação da «consciência jurídica geral» (2')respectiva, outro tanto sucedendo com a natureza dascoisas (2D). No entanto, através da modificabilidadedesses «pontos de referência», aqueles critérios assu-mem, consequentemente, um carácter relativo, isto é,mutáve1. Assim, por exemplo, o «princípio da con-fiança», que nenhuma ordem jurídica pode, total-mente, deixar de considerar (3D), é de considerar comouma emanação da ideia de Direito; assim, este prin-cípio é justamente um exemplo modelar da capaci-dade de modificação interna: para soluções claras deprincípios jurídicos, ele não se deixa precisar a priori,mas antes apenas perante uma certa situação histó-rica, que é determinada, essencialmente, através doDireito legislado e do estado da «consciência jurídicageral» - e assim se poderá, por exemplo, afirmar quea doutrina de culpa in contrahendo ou da suppressio

tI/lo se basearam sempre, em todo o tempo, no prin-í'lpio da confiança, portanto não «vigoraram» neces-rml'iamente desde o princípio; mas apenas puderamllHpirar ao reconhecimento como fundamentos legí-Iimos de aperfeiçoamentos jurídicos depois de umadderminada modificação na consciência jurídica geral,qlH~ tivesse conduzido a um acentuar mais forte devillores ético-jurídicos. Outro tanto se demonstra parao ('xemplo a partir de uma argumentação retiradada natureza das coisas. Assim, por exemplo, as con-cepções sobre a «natureza» da relação de trabalhosujeitaram-se a fortes mudanças e, assim sendo, od(~ver de assistência, dela derivado (31) e as conse-quüncias múltiplas que hoje com este se relacionam,poderiam não ter sido necessariamente, desde o início(d(~ modo objectivo e não apenas por desconheci-mento) parte do nosso Direito privado, antes tendoohtido validade apenas num processo paulatino (32).Por fim, o mesmo sucede, no essencial, com as cláu-!>u/w; gerais «carecidas de preenchimento com valo-raçiJes», como as remissões para os bons costumesou a boa fé, nas quais a própria lei deixa uma mar-1'.('1l1para a erupção de valorações extra-legais e,

(28) O conceito é aqui entendido no sentido de LARENZ,Methodenlehre, p. 192 s.

(29) Esta foi caracterizada por RADBRUCH justamentecomo fundamento para a ({multiplicidade de formações jurí-dicas históricas e nacionais»; cf. Festschrift für R. Laun,1948, p. 158. - Da vasta literatura sobre a natureza das coisascf., nos últimos anos, sobretudo SCHAMBECK:,Der Begriff derNatur der Sache, 1964, com indicações desenvolvidas; ARTHURKAUFMANN, Analogie und Natur der Sache, 1965; DRElER,Zum Begriff der Natur der Sache, 1965.

(ao) Em todo o caso, depois de ter, uma vez, tomadoconsciência dele.

C' I) Assim, com razão, LARENZ, Nikisch-Festschrift,1'- :'.H/I I-ó.

(':!) Para além da mudança na consciência jurídica1',I'ml, - e, por outro lado, tanto, em parte, provocada por ela,', >1110. também, agindo sobre ela - outros factares ainda,":lfurnllllcnte, o influenciam, como os avanços na protecção11'1',al do:; trabalhadores e similares.

Page 63: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

necessariamente, mutáveis: também aqui existe umindício da modificação do sistema objectivo, quedecorre de modo inteiramente semelhante ao da con-cretização de princípios gerais de Direito (para osquais as cláusulas gerais remetem com frequência).

vulorativa e não de mera subsunção - só se podeI'ntcnder como dialéctica ("r;): ela está na argumen-tação a partir de um princípio geral de Direito cujavigência pressupõe sempre desde logo, enquanto este,por seu lado, também só se concretiza no processoda sua aplicação (36), - assim, por exemplo, o reco-nhccimento da doutrina da suppressio ou de novosinstitutos superiores não só pressupõe uma modifica-<;ão da consciência jurídica geral mas também aexprime, e a estimula (37).

Em resumo, pode dizer-se o seguinte: as modifica-«lCS do sistema objectivo reportam-se, no essen-

o facto de a mudança de conteúdo do sistema nãoser determinada por princípios retirados da lei e, comisso, através das modificações da «consciência jurí-dica geral», não exclui, por outro lado, que ela sejafundamentalmente, não «posta» ou «postulada» masantes «descoberta» ou «encontrada» (33). Mas issosignifica, no que toca à relação entre o sistema objec-tivo e o científico, que de novo a mudança do pri-meiro precedeu a mudança do segundo (34); tambémentão, em casos deste tipo, a doutrina e a jurispru-dência exprimem o que, «em si», já vigorava. Torna-seentão particularmente claro que a relação entre oDireito objectivo e o seu conhecimento e aplica-ção - pelo menos onde se trate de concretização

(:Ir;) Fundamental, LARENZ, Methodenlehre, p. 189 ss.(I!J:{ s.).

(:I") Nesta dialéctica, a oposição entre o Direito norma-tivo e facticamente em vigor (cf. supra, nota 12) fica, emJl;lrte, superada, uma vez que ambas as formas de validadeli<' influenciam mutuamente, no processo da aplicação doDíreito. Aliás, a sua ligação é assegurada, sobretudo, peloDireito consuetudinário: uma regulação que vigora fáctica,lllas não normativamente, pode obter esta última qualidadealravés do costume e inversamente: uma regulação que pos-sua, na verdade, validade normativa mas que, por falta deaplicação, perca a validade fáctica, pode perder também av:t1idade normativa, através do desuso consuetudinário, de tal111()(!O que o Direito consuetudinário, com o tempo, vai impedirIlIlln nil.o coincidência de ambos os tipos de validade.

C") Desta dialéctica deve, sobretudo, esclarecer-se queli:: princípios gerais de Direito só são formulados relativa-IIH'IIID muito depois da sua primeira «aplicação» e, com espe-cial r/"(~quência, permanecem muitos anos sob fundamentações11pu rl'lllps.

(l3) Assim, com razão, LARENZ, Methodenlehre cit., p. 315.(l4) As coisas são diferentes no tocante ao Direito facti-

camente em vigor, ao «law in action», no qual, em regra, anova opinião coincide com a aplicação modificada ou, até, éprecedida por esta (para a diferença entre vigência normativae fáctica cf. supra, nota 12).

Page 64: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

cial C"), a modificações legislativas, a novas forma-ções consuetudinárias, à concretização de normascarecidas de preenchimento com valorações e àerupção de princípios gerais de Direito extra-legais,que têm o seu fundamento de validade na ideia de.Direito e na natureza das coisas. As modificações dosistema científico resultam dos progressos do conhe-cimento dos valores fundamentais do Direito vigente"e traduzem, por outro lado, a execução de modifica-ções do sistema objectivo. As modificações do pri-meiro seguem, fundamentalmente, as alterações doúltimo; os sistemas objectivo e científico estãotambém ligados na dialéctica geral entre o Direitoobjectivo em vigor e a sua aplicação.

(38) Também têm ocorrido, naturalmente, modificaçõesno sistema através da interpretação comum, porquanto e namedida em que também esta passa pela mediação da «cons-ciência jurídica gera!» e, por isso, é susceptível de alterações.

A «mobilidade» do sistema é, muitas vezes, con-fundida com a sua «abertura». Esta utilização lin-guística seria em si inteiramente possível, pois apalavra «mobilidade» exprime também a proviso-riedade e a modificabilidade do sistema (1); mas nãose recomenda; o termo foi fixado por WILBURG com

U"utro sentido (2), e para evitar mal-entendidos, tam-

bém só se deve usá-Io com o significado que lhe deuWILBURG. Na sequência, a «mobilidade» será, porisso, distinguida da «abertura» e só se falará de umsistema móvel» quando surjam as características

essenciais para o conceito de sistema de WILBURG.

I - AS CARACTERISTICAS DO "SISTEMA MÓVEL», NO CON-CEITO DE WILBURG

Essas características tornam-se claras, da melhormaneira, num dos exemplos com os quais WILBURG

desenvolveu a sua concepção: na sua teoria da res-

(1) Utiliza-o, nesse sentido, por exemplo, ZIPPELIUS, NJW1967, p. 2231, coluna 2; também ZIMMERL, Aufbau des Straf-rechtssystems, 1930, prefácio, p. V; d. também as citaçõesinfra, nota 29.

(2) Fundamental, Entwicklung eines beweglichen Systemsim Bürgerlichen Recht, discurso do Reitor em Graz, 1950.

Page 65: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

ponsabilidade civil. WILBURG recusa procurar umprincípio unitário que solucione todas as questões daresponsabilidade indemnizatória e coloca, nesse lugar,uma muItiplicidade de pontos de vista que ele carac-teriza como «elementos» ou como «forças móveis»;são elas: «1. Uma falta causal para o acontecimentodanoso, que se situe do lado do responsável. Estafalta tem peso diverso consoante seja provocada peloresponsável ou pelos auxiliares ou tenha até surgidosem culpa, como, por exemplo, por uma falha mate-rial irreconhecível de uma máquina. 2. Um perigoque o autor do dano tenha originado, através de umaactuação ou da posse de uma coisa e que tenhalevado ao dano. 3. A proximidade do nexo de causali-dade, que existe entre as causas provocadoras e odano verificado. 4. A ponderação social da situaçãopatrimonial do prejudicado e do autor do pre-juízo» (3). A consequência jurídica só surge r.- e istoé decisivo - «a partir da concatenação destes ele-mentos, segundo o seu número e peso» (4) e é deter-minada pelo juiz «segundo a discricionariedadeorientada» (5). As «forças» não são, pois, «absolutas,de dimensões rígidas, antes decidindo o efeito con-junto da sua articulação variável» (G); pode mesmo

também bastar a existência dum único dos elementos,desde que este apresente «um peso especial» (7).

Para a mobilidade do sistema, é característico, porum lado, que WILBURG negue a determinação de umadeterminada hierarquia entre os «elementos», quecoloca, pois, ao mesmo nível e, por outro, que elesnão devam surgir sempre todos, mas antes se possamsubstituir uns aos outros. As características essen-ciais do «sistema móvel» são, pois, a igualdade funda-rnental de categoria e a substituibilidade mútua doscompetentes princípios ou critérios de igualdade-pois é de facto disso que se trata quando WILBURG

fala de «elementos» ou de «forças móveis» (8). Como

(7) Cf. ob. cit., p. 13.(8) Esta terminologia poderia ser pouco feliz. Ambas as

uxpressões recordam muito intensamente categorias das Ciên-cias Naturais (elementos químicos, forças físicas! cf. tambémob. cit., p. 17, onde se trata da «energia motora» da lealdadecontratual), e com estas não se resolvem problemas jurídicosmateriais, - o que WILBURG, aliás, não desconhece, de modoalgum (cf., por exemplo, a sua crítica ao método «histórico--natural» de JHERING, ob. cit., p. 4 s.). Por isso, teriam sidomelhores os termos «princípios de valoração» ou «critérios dejustiça», pois se chamaria o significado directamente pelonome e, ao mesmo tempo, exprimir-se-ia claramente também11 posição histórico-metodológica de WILBURG: com efeito, ele:;II!lerou largamente as representações da velha jurisprudênciados interesses e do «pensamento jurídico causal», nos quais"h, constata um certo parentesco (cf. ob. cit., p. 5) e que der:l('lo influenciaram a sua terminologia e deve, por isso, ser('unlado entre os primeiros e mais avançados representantesda Illoderna «jurisprudência das valoraç5es» (quanto a esta,4'1', I ,AIUo:NZ, Methodenlehre, p. 123 ss.).

n Cf. ob. cit., p. 125, seguindo Die Elemente desSchadensrechts, 1941, em especial p. 26 ss e 283 ss.; cf. aindaZusammenspiel der Krafte im Aufbau des Schuldrechts, AcP163, p. 346.

(4) Cf. AcP 163, p. 347.(5) Cf. Entwichlung eines beweglichen Systems, p. 22.(6) Cf. ob. cit., p. 13.

Page 66: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

se vê com facilidade, isto não tem praticamente nadaa ver com a abertura do sistema (9): a modificabili-dade dos valores e dos princípios, característica paraeste, não precisa, de modo necessário, de ocorrernum sistema móvel, pois os competentes «elementos»podem ser inteiramente firmes, e, inversamente, aabertura do sistema não tem fatalmente, como conse-quência, a igual categoria dos seus princípios e arenúncia a previsões firmes; um sistema móvel pode,portanto ser aberto ou ser fechado (10) e um sistemaaberto pode ser móvel ou rígido.

do pensamento tópico (U) - e isso quer dizer não-sis-lemático - e pergunta-se, de facto se e até onde,neste ponto (12), se pode ainda falar verdadeiramentede um «sistema» ou se um sistema «móvel» não tra-duz, antes, uma contradição em si. Típicas do sistemasào, como foi dito no início (13), as características daunidade e da ordem. A primeira verifica-se, semdúvida, em WILBURG. Como deve ser expressamenteacentuado perante múltiplos mal entendidos, todo oseu pensamento se dirigiu para a elaboração dealguns poucos princípios constituintes, de cuja con-catenação resulta toda a multiplicidade das decisõessingulares; o sistema móvel deve, pois, tornar per-ceptível a unidade na pluralidade. Isso exprime-se, porexemplo, na exigência de WILBURG ao legislador de,através de uma «clara orientação das ideias», contera enchente de normas singulares desconexas (14), bemcomo, com clareza, na sua polémica contra a orienta-ção do juiz para a pura equidade (1"), que ignora o«conjunto dos princípios gerais» (1G). Perante isso, é

Com a sua concepção, WILBURG não quis, de modoalgum, dar uma ideia global de sistema, mas apenasapresentá-Io como «móveb>; ele insiste tambéminequivocamente no termo «sistema». Não obstante,VIEHWEG incluiu-o, sem mais, entre os representantes

(9) Não procede pois a frequente equiparação do sistema«móvel» deWILBURG a um simples sistema «aberto»; mascf., porém, ENGISCH, Stud. Gen. 10 (1957), p. 187 s. (188);WIEACKER, Juristentag-Festschrift, vaI. lI, 1960, p. 7; LARENZ,JuS 65, p. 379, coluna 2; MAYER-MALY,The Irish Jurist, voI. lI,parte 2, 1967, p. 375, nota 2.

(10) O próprio WILBURG poderia considerar o seu sistemamóvel, simultaneamente como aberto, pois ele salienta deforma expressa que poderiam surgir também <movas forcas epontos de vista»; cf. ob. cit., p. 14. -

(11) Cf. Topik und Jurisprudenz, p. 72 ss.; concordante,WIEACKER, Privatrechtsgeschichte der Neuzeit, 2." ed., 1967,p. 597, nota 48; cf. quanto a isso, também infra, nota 28.

(12) A terminologia, por fim, não é, naturalmente, deci-:iiva, ainda que VIEHWEG, ao exprimir o seu entendimento deWILBURG, não a devesse, simplesmente, passar em silêncio; cf.lambém DJEDERICHSEN,NJW 1966, p. 699.

(1:1) Cf. supra § 1 L(1'1) Cf. ob. cit., p. 4.(I") Cf. ab. cit., p. 22.(111) Cf. ob. cit., p. 6.

Page 67: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

irrelevante que VIILBURG se negue a reconduzir todasas normas jurídicas a um único princípio jurídico,pois um sistema pode perfeitamente consistir - e emregra consiste - em vários princípios fundamentais.

Mas com a característica da unidade deve, canse-quentemente, afirmar-se também a da ordem, poisaquela não pode existir sem esta (17); assim, WIL-

BURG acentua sempre, também a necessidade de«ordem interior» ou de «consistência interna» doDireito (18). Isto não está, de modo algum, em contra-dição com o facto de os critérios decisivos surgirem,como se viu, mutuamente substituíveis; pois nuncapode um ponto de vista ao acaso substituir qualqueroutro ---< tal não seria, de facto, ordem, mas caos-antes apenas um elemento de entre um determinadonúmero pode, para uma matéria regulativa concreta,colocar-se no lugar de outro, portanto, por exemplo,para a solução do problema da pretensão de indemni-zação, apenas um dos quatro factores acima referi-dos, pode ir para a posição de um outro. E tão-poucoa igualdade fundamental nas categorias dos critériosde justiça competentes se coloca em contradição coma característica da ordem, pois a igualdade na orde-nação é, ainda, uma forma de ordem. Apesar da ideiade uma certa hierarquia estar ligada ao conceitotradicional de sistema, esta categoria não surge irre-nunciável, desde que a sua falta não torne possível

('9) Cf., por exemplo, ob. cit., p. 15, onde WILBURG

(perante um problema de enriquecimento) quer, «em caso dedúvida», ponderar a situação patrimonial dos implicados, por-(anto apenas onde os restantes critérios não permitam uma:;o!ução justa, isto é, apenas subsidiariamente, o que implica,sem dúvida, uma relação de hierarquia. Mais tarde, tambémna responsabilidade civil, WILBURG exprimiu certas dúvidasquanto à admissibilidade de uma consideração igualitária da::iluação patrimonial; cf., por exemplo, AcP 163, p. 346, nota 2.

("O) Se tal é, efectivamente, a opinião de WILBURG tor-na-se difícil de decidir em definitivo, por falta de uma posiçãolIuivoca quanto a esta questão.

a existência de ordem interior. E, por fim, não pro-cede com WILBURG'- e seria entendê-l o mal quandoIa I se pretendesse - o considerar todos e quaisquerpontos de vista relevantes na Ordem Jurídica, funda-Inentalmente, como iguais; pelo contrário: a ideiade uma certa hierarquia não pode, de modo algum,ser estranha à concepção de WILBURG, pois em mui-tos problemas particulares, surgem, para os elemen-los por ele elaborados, pontos de vista secundários,aos quais um pensamento tão diferenciado r como odele não pode, justamente, renunciar e os quais pos-suem, perante aqueles, um peso menor. Só dentrodos princípios fundamentais - ordenadores - existe,portanto, igualdade de categoria - e mesmo aqui,WILBURG não exclui, evidentemente, de modo pleno,a possibilidade de uma ordenação (19) - ao passo quena relação entre estes e os restantes critérios rele-vantes para um problema singular, se pode falar intei-ramente de certa hierarquia (20). Por tudo isto, a

('7) Mas, inversamente, a ordem é possível sem unidade;cf. também supra, p. 12 s.

('8) Cf. ob. cit., p. 12 e p. 22, respectivamente.

Page 68: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

1

IIII II

I

II

I

1 'J.....~""- """"".".~.=,llJji'l!l!_

concepção de WILBURGmerece, com razão, a qualifi-cação de sistema (2]), mesmo quando não se devadesconhecer que se trata aqui de um caso limite.

11GB) (*), etc. Não há aqui qualquer espaço para umaponderação de critérios «de acordo com o númeroe o peso» e isso vale, no fundamental, também paralodas as outras partes do nosso Direito privado e danossa ordem jurídica.

1. A prevalência fundamental das partes rígidasdo sistema

o presente trabalho ocupa-se da problemática dosistema perante o Direito vigente alemão, em especialo Direito privado alemão; põe-se pois, a questão dasrelações dele com o sistema de WILBURG.A consi-deração da nossa ordem jurídica não deixa dúvidasquanto à resposta: o sistema do Direito alemãovigente não é, fundamentalmente, móvel mas simimóvel. Pois ele atribui, em regra, aos princípios sin-gulares, âmbitos de aplicação delimitados, dentro dosquais eles não são substituíveis e prefere a formaçãorígida de previsões normativas, que exclua umadeterminação variável d::ls consequências jurídicas,em função da discricionariedade do juiz, ainda que«vinculada». Assim, para manter o exemplo da res-ponsabilidade civil, está claramente determinado noDireito alemão quais são as competências do princí-pio da culpa e do princípio do risco, sob que pres-supostos se pode, excepcionalmente, considerar asituação patrimonial dos implicados (cf. § 829

Mas isso, contudo, só em princípio! O Direito11 Icmão vigente da responsabilidade civil compreendeigualmente um contra-exemplo que torna clara anecessária limitação: a erupção do princípio dotudo-ou-nada no § 254 BGB. Segundo esse preceito,o montante da indemnização depende «das circuns-tâncias», desde que tenha havido igualmente culpa dolesado (**) ou - como hoje, em geral, se reconhece-tenha actuado também um perigo imputável doempreendimento. Surge aqui, exactamente, o quadrocaracterístico do sistema móvel deWILBURG: devemponderar-se vários factores entre si, podendo umsubstituir o outro e sem que exista entre eles qual-quer hierarquia rígida. Assim, por exemplo, em vez

(21) Cf., também, BYDLINSEI, aVB!. 1965, p. 360; DIEDE-

RICHSEN, NJW 66, p. 699.

(*) Notas do tradutor: o § 829 do BGB determina, emsíntese, que o inimputável autor de certos danos possa, não(>bstante, ser obrigado a indemnizar segundo a equidade, desdeque não seja possível obter tal indemnização do terceiro obri-1:11<10 a vigiá-Ia e na condição de o inimputável em causa nãoficar privado dos meios materiais necessários.

C"*) O § 254 do BGB, cujo conteúdo é explicado noI(~;-(lo, corresponde assim ao artigo 570 °/1 do Código Civil.

Page 69: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

do concurso de culpas, pode operar também umperigo do empreendimento; uma culpa do lesado levepode, através da ocorrência, na esfera do lesado, decircunstâncias agravantes do perigo, levar também auma diminuição equivalente na sua pretensãoindemnizatória; de igual modo, uma grave culpa dolesado (22), ou um risco de empreendimento «especial»ou «elevado» podem compensar em parte uma culpapesada, etc.; também um risco concorrente doempreendimento pode actuar de modo a diminuir apretensão de indemnização perante a responsabilidadepela culpa (23), na ocorrência de culpa leve, perantea negligência grosseira e, em certas circunstâncias,até em face do dolo, e, inversamente, a responsabili-dade pelo risco não é necessariamente excluída pelaculpa do lesado e a responsabilidade por «culpalevíssima» não é, sem mais, afastada por grave culpado mesmo lesado. Não é possível confeccionar umaprevisão normativa rígida, mas apenas ponderar entresi determinados critérios «de acordo com o númeroe o peso», no sentido de WILBURG, sem que se fixeuma relação de hierarquia, por exemplo entre culpa

p risco; por outro lado, também não relevam unsquaisquer pontos de vista - o juiz não pode, semdúvida, considerar o estado civil ou a nacionalidadedos implicados. e apenas pode considerar as relaçõesputrimoniais no caso excepcional de aplicação analó-gica do § 829 BGB - mas apenas critérios de imputa-ç[ío específicos, geralmente rígidos, com a intensidadeda culpa, a perigosidade de um empreendimento oude uma coisa, o grau de adequação ou a «proximi-dade» do nexo de causalidade (24), - portanto aquelesprincípios que também dominam o nosso Direito daresponsabilidade civil. O seu sistema compreendeassim, junto de uma «imobilidade» de princípio, umscctor no qual os pontos de vista valorativos compe-tentes são «móveis}).

Outro tanto acontece noutros âmbitos. Encon-tram-se numerosos exemplos da mobilidade do sis-tema, em especial onde as previsões normativasrrgidas se complementam e acomodam através decláusulas gerais: para determinar se um despedimentoé anti-social, se existe um fundamento importante,se um negócio jurídico ou um comportamento sãocontrários aos bons costumes, etc., é necessário pon-derar entre si determinados pontos de vista «segundoo número e o peso», sem uma relação hierárquica(22) Pois a culpa e a sua graduação são apenas uma das

circunstâncias relevantes, no cálculo do montante da indemni-zação; quanto à questão de quais os factores competentes,cf., principalmente LARENZ,Schuldrecht A. T. 9.ft ed. 1968,§ 15 I e; EssER, Schuldrecht, 30ft ed. 1968, § 47 IV e VII;SOERGEL-SCHMIDT,10." ed. 1968, § 254, anoto 7 ss.

(23) Esta é hoje, a doutrina inteiramente dominante; cfo,por exemplo, LARENZobo cito, em b e ESSER obo cit., em 5,com outras indicações.

(24) Ainda não está plenamente esclarecido que factoresse devam considerar, em cada caso; mas fica fora de questãoque se trata sempre, aí, de pontos de vista de imputação eque não se deve aplicar um qualquer «topos». Cf., quanto àIlroblemática, a literatura indicada supra, nota 22.

Page 70: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

firme (2õ). No entanto, a formação rígida de proposi-ções normativas>- pode-se dizê-lo sem mais - repre-senta a regra; a «mobilidade» traduz a excepção eG).

O Direito positivo compreende, portanto, partes dosistema imóveis e móveis, com predomínio básicodas primeiras.

algo de específico para ele, antes sendo imaginável,também, num sistema «rígido». Trata-se da exigênciade WILBURGde uma diferenciação mais marcada eda sua crítica à absolutização de um determinadoprincípio. Deve-se, sem dúvida, concordar com ele - ejá acima (27) se considerou justamente isso como umacaracterística essencial da função sistematizadora dosprincípios -- em que estes não têm uma pretensãode validade exclusiva, antes surgindo numa comple-mentação mútua, portanto numa concatenação e,além disso, carecem, para a formação de proposiçõesjurídicas, de uma concretlzação diferenciadora atravésde critérios de valoração novos e autónomos. Estaconsideração surge tão acertada e encontra um reco-nhedmento tão geral - não por último sob a impres-são dos próprios trabalhos de WILBURGsobre o enri-quecimento sem causa e a responsabilidade civil- nadogmática civil e actual quanto pouco uma tal dife-renciação mais acentuada se liga justamente a umsistema móvel (8). Quando WILBURG, por exemplo,

lV - o SIGNIFICADO LEGISLATIVO E METODOLÓGICO DOSISTEMA MóVEL

Do ponto de vista metodológico e jusfilosófico nãose pode, porém, ficar por este resultado. Cabe antesainda indagar como se deve julgar a concepção deWILBURG,independentemente da sua realização maisou menos extensa numa ordem jurídica concreta eque significado ela tem, em consequência, de legejerenda, isto é, para o legislador.

1. O sistema móvel e a necessidade de uma diferen-ciação mais marcada

(27) Cf. p. 53 ss. e 55 ss.(28) É totalmente incompreensível o facto de VIEHWEG,

ob. cit., p. 72 ss., em especial p. 74, ver na luta de WILBURG

contra a absolutização de determinados princípios uma {<provada estrutura tópica da civilística actua1». Que um princípiodeva aspirar sempre à exclusividade não vale apenas para osistema considerado por VIEHWEG como lógico-axiomático; umacerta tendência para a redução a alguns poucos princípiosantes é também inerente a este (como a qualquer) sistema ecorresponde ao seu ideal. A elaboração de alguns e poucosprincípios constitutivos do sistema é, como se diz no texto.justamente a intenção de WILBURG, de tal modo que essa

Para responder deve-se, em primeiro lugar, isolaruma qualidade que também é característica do «sis-tema móvel» deWILBURG, mas que não representa

(2õ) O «sistema móvel» não se deve, contudo, identificarcom as cláusulas gerais; cf., mais pormenorizadamente, infra-p. 82 e 85.

(2G) Não apenas numericamente, mas, sobretudo, quanto.à sua importância.

Page 71: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

exige, no processo executivo, substituir o princípiorígido da igualdade de todos os credores que nãotenham garantias reais, através de uma concatenação«mais elástica» de diferentes princípios jurídicos equando ele considera como tais o ponto de vista do«prosseguimento do valor», da concessão não cuida-dosa de crédito e da protecção social perante «peque-nos» credores (29), então pode-se obter esse objectivoatravés de um sistema rígido, tão bem como atravésde um móvel: pode-se, inteiramente, confeccionarprevisões normativas rígidas (como já acontece, noprocesso executivo alemão, a propósito da prevalênciada indemnização no § 46 KO (30) ou a propósito dedeterminados credores especialmente dignos de pro-tecção, no § 61 KO) (*) e, com isso, limitar o princí-

pio da igualdade de todos os credores perante afalência, através de excepções claramente delimitadas;dever-se-ia mesmo dizer que uma tal configuração noprocesso executivo, na verdade diferenciadora masrígida, é essencialmente justa e que não se poderiarenunciar a uma hierarquização rígida entre os diver-sos tipos de crédito a executar e, com isso, tambémaos diversos pontos de vista valorativos. A diferen-ciação e a luta contra a falsa absolutização de princí-pios singulares não pressupõe, necessariamente, amobilidade (31), e assim a grande diferenciação dopensamento de WILBURG não afirma, como tal, aindanada de essencial sobre o valor de um sistemamóvel.

asserção de VIEHWEG surge como particularmente infeliz; se,para isso, ele tivesse recorrido ainda à renúncia de WILBURG

à formação de previsões normativas firmes, nem assim VIEHWEGteria podido demonstrar que a jurisprudência, no seu conjunto,apresenta uma estrutura tópica, mas sim que se deveria limitara cláusulas gerais e a fenómenos semelhantes (com isso eleter-se-ia aproximado da verdade; cf., mais pormenorizada-mente, infra § 7 II 2).

(29) Cf. ob. cit., p. 6 ss, na sequência de aVEl 1949,p. 29 ss.

(30) O facto de essa formulação corresponder, no parti-cular, às exigências de WILBURG - e com certeza que não!-não releva para a problemática dos princípios fundamentais,aqui em causa.

(*) Nota do tradutor: a sigla KO corresponde a Kon-hursordung, a lei alemã das falências de 10 de Fevereiro de1877, com alterações subsequentes, das quais a mais recente

Apenas as especificidades do sistema móvel sãodecisivas, isto é, a ausência de uma formação rígidade previsões normativas assim como a permutabili-dade livre e a igualdade fundamental de categoria dos

uata de 15 de Julho de 1986; o § 46 da KO confere à pessoaque tivesse o direito de separar, da massa falida, determinadaeoisa, a faculdade de exigir, dessa mesma massa, a contra-prestação, quando a coisa em causa tenha sido alienada; porseu turno, o § 61 da KO estabelece a ordem da graduação doseréditos, na falência.

(31) Mas antes a abertura, na medida em que a exigênciade uma diferenciação mais marcada não se dirija, apenas, aolegislador mas também ao aplicador do Direito.

Page 72: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

princípios de valoração. A primeira característica, emespecial, sugere a questão de a identificar de acordocom a relação entre previsões rígidas e cláusulasgerais. Com isso não se entenderia, contudo, WIL-

BURG (32). É característico para a cláusula geral o elaestar carecida de preenchimento com valorações,isto é, o ela não dar os critérios necessários para asua concretização, podendo-se estes, fundamental-mente, determinar apenas com a consideração do casoconcreto respectivo: a aspiração de WILBURG, pelocontrário, é de determinar, em geral, os «elementos»competentes, segundo o conteúdo e o número e con-feccionar a sua «relação de interpenetração» de modovariável, deixando-a independente das circunstânciasdo caso (I:'). Assim WILBURG bate-se também expres-samente contra as decisões segundo a mera equidadeporque - num argumento altamente decisivo para oseu pensamento -lhe falta a «presença de princípiosfundamentais» (34); as cláusulas gerais, pelo contrário,são sempre caracterizadas, e pelo menos em parte,com razão, como «pontos de erupção da equidade».

3. A posição intermédia do sistema móvel entrea cláusula geral e a previsão normativa rígidae a necessidade de uma ligação entre estas trêspossibilidades de formulação

('32) A crítica de ESSER, AcP 151, p. 555 s. e RabelsZ 18(1953), p. 165 ss. não faz por isso, na minha opinião, inteirajustiça a WILBURG.

(33)WILBURG não se desliga, apenas, da situação docaso concreto mas sim «à situação do caso concreto, comconsideração pelos pontos de vista apresentados e co-actuantes»de acordo com a sua formulação característica; cf., ob. cit.,p. 17, 13, 18 e passim.

(34) Cf. ob. cit., p. 6; cf. também p. 22.

Embora o sistema móvel não aparente a mesmaestrutura das cláusulas gerais carecidas de preenchi-mento com valorações, não se deve negar um certoparentesco com estas (35): o sistema móvel ocupa umaposição intermédia entre previsão rígida e cláusulageral. Daqui provêm as suas vantagens e as suas fra-quezas. No que toca às últimas, é evidente que umsistema móvel garante a segurança jurídica em menormedida do que um sistema imóvel, fortemente hierar-quizado com previsões normativas firmes. Nos âmbi-tos onde exista uma necessidade de segurança jurí-dica mais elevada, deve-se preferir o último e opróprio WILBURG não iria, por certo, dissolver asordenações firmes do Direito cambiário e dos DireitosReais (36) ou sequer do Direito das Sucessões ou dasSociedades num sistema móvel. Deve-se também, pen-sar que seria exigir demasiado do juiz se deparasse,sem excepção, com um sistema móvel ficando porisso, em cada caso, perante as dificuldades da ponde-ração entre o relativamente frequente número elevado

(35) Quanto ao significado do sistema móvel para a con-cretização de cláusulas gerais cf. também infra p. 85, nota 45I" sobretudo, p 152 s.

(lc,) Quanto a este cf., expressamente, ob. cit., p. 4.

Page 73: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

de «elementos» (37). E finalmente, não se deve aindaignorar que, para além do valor da segurança jurí-dica, também o da justiça pode entrar em contra-dição com um sistema móvel; pois a tendência «gene-ralizadora» do princípio da justiça, que resulta doprincípio da igualdade, contraria cada consideraçãodas circunstâncias do caso singular e, com isso, tam-bém uma ponderação de «elementos» - ainda quefixados genericamente.

A justiça, no entanto, não remete apenas parauma tendência generalizadora mas, também para umaindividualizadora :(38): compreende-se que se recorraa esta para justificar o sistema «móvel». Mas ainda

então é necessário cuidado. Por um lado, uma certaindividualização é também possível através de umaforte diferenciação de um sistema rígido intensamentehierarquizado e, por outro, o sistema móvel tão-poucopermite uma individualização ilimitada eSa), uma vezque é constituído por um número limitado de «ele-mentos». Na verdade, não se pode ordenar totalmenteo sistema móvel em nenhuma de ambas as tendênciasda justiça: ele reporta-se à tendência generalizantena medida em que determina, em geral os competen-tes critérios de justiça, e comporta a vertente datendência individualizadora porquanto faz dependeras consequências jurídicas concretas da concatena-ção, no caso singular, desses pontos de vista. Comisso, transparece a sua maior vantagem: o sistemamóvel representa um compromisso particularmentefeliz entre os diversos postulados da ideia deDireito - e também a segurança jurídica sempre égarantida em maior medida do que perante uma meracláusula de equidade - e equilibra a «polaridade» (9)

deles numa solução ponderada e «intermédia»; tantose afasta do rigorismo das normas rígidas como daausência de contornos da pura cláusula de equidade.

Mas faltam-lhe, como já foi dito, pelo menos emparte, as vantagens daquelas outras modalidades;assim, a consequência só pode ser o edificar o Direitoa partir de uma concatenação de todas estas possibi-

('17) 'WILBURG apercebe-se inteiramente dessa obieccão(cf. ob. cit., p. 23) e replica que a posição do juiz é aind~ ~aisdifícil «quando ele deva aplicar princípios que conduzam aconsequências inaceitáveis». Isto só em parte é convincente;em primeiro lugar, consequências verdadeiramente inaceitáveisem leis pensadas de modo razoável são um caso excepcional;em segundo lugar pode-se-lhes opõr com frequência, de modointeiramente legítimo, com auxílio das cláusulas gerais relati-vizadoras do Direito «estrito»; em terceiro lugar a aceitacãode uma grande injustiça pode muito bem, perant~ outros v;lo-res jurídicos como, em especial, a segurança jurídica, ser omal menor; e em quarto lugar não resulta necessariamenteda preocupação de WILBURG, que o sistema deva, no sel;todo, ser móvel, mas apenas que ele deve compreender partesmóveis (e também verdadeiras cláusulas gerais) como «vál-vula» (cf. também, no texto).

('38) Quanto a essas duas tendências da justica e ao seucondicionamento mútuo cf., principalmente, HENKEL: Recht undIndividualitat, 1958, p. 16 ss. e Einführung in die Rechtsphilo-sophie, p. 320, 323 ss. (325), e 351 ss.

("sa) Ou já não haveria qualquer sistema!("9) HENKEL, ob. cit., p. 345 ss., em especial p. 349 ss.,

demonstrou convincentemente que se trata de «polaridade» e11:10 de verdadeiras antinomias.

Page 74: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

lidades de formulação: entre a formação rígida deprevisões normativas, por um lado, e a pura cláusulade equidade, do outro lado, figura o sistema móvel.Não é de prescindir, de modo algum, das primeiras,pelo menos em certos âmbitos, como acima se expli-cou, podendo estas representar a solução mais ade-quada, em especial quando o sistema «imóvel» apre-sente fortes diferenciações. Recorde-se o exemplo,acima (40) discutido, da falência ou, também, o exem-plo de WILBURG retirado do âmbito da responsabili-dade pelo risco: perante a especial alta perigosidadede uma coisa, por exemplo, de um avião, a excepçãode força maior não exonera o proprietário, masperante um objecto menos perigoso, como um veículoautomóvel, a ocorrência de um evento «inesperado»exterior já actua, pelo contrário, em termos de excluira responsabilidade (41); deve uma tal diferenciaçãodos fundamentos da exoneração segundo o grau -deperigosidade do objecto - que surge razoável e, até,inteiramente «imanente ao sistema» do Direito ale-mão - ser, efectivamente, deixada ao juiz de cadacaso ou será do interesse da segurança jurídica comoda observância da regra da igualdade, aqui não essen-cialmente adequada, que o legislador se ocupe delasde modo generalizador, de acordo com traços previ-sivos claros (avião, combóio, automóvel, etc.)?!E como fica, por fim, a limitação da responsabilidade,através de limites máximos numericamente fixados ,

limitação essa que é indispensável para a responsa-bilidade pelo risco, por ser necessária para o cálculodo risco e a possibilidade de efectuar seguros (42)?Torna-se, aqui difícil contestar que a regulação legal«rígida» seja o mal menor. - Mas, inversamente,também não se deve desconhecer que a plena consi-deração de todas as circunstâncias do caso concretopossa ser igualmente razoável e, por isso, não deveser totalmente excluída pelo legislador; a «equidade»é, também, um valor jurídico específico (43); apenasdeterminações inteiramente abertas como, por exem-plo as cláusulas de imputabilidade a comportam.A multiplicidade dos postulados singulares da ideiade Direito solicita, por isso, o legislador a fazer usode todas as referidas possibilidades formulativas eapenas uma escolha criteriosa entre elas dá bonsresultados perante o problema da «polaridade» (39)dos mais altos valores jurídicos. Não se pode, porém,dizer em geral qual a solução preferível; isso dependeda estrutura particular da matéria em causa e dovalor que lhe subjaza (44). Neste campo cabe, ao sis-

(40) Cf. p. 8I.(41) Cf. ob. cit., p. 13.

(42) Neste problema poderá residir uma das objecçõesprincipais contra uma cláusula geral de responsabilidade pelorisco; esta deveria, pelo menos, ser complementada por umasérie de previsões normativas específicas que fixassem, demodo diferenciado, os limites máximos da responsabilidade eoutras questões especiais, e assim, ao mesmo tempo, pudessemtambém oferecer bitolas para a concretização da cláusula geral.

(43) Assim, expressamente e com razão, HENKEL, ob. cit.j), 324.

(44) Não se pode aqui desenvolver uma discussão porme-norizada sobre o mérito e o desmérito das cláusulas gerais e

Page 75: Claus Wilhelm Canaris - Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito

tema móvel, um papel especialmente importante umavez que ele, como se disse, dá, de modo muito feliz,um meio termo entre as previsões normativas firmese as cláusulas gerais e confere uma margem quer àtendência generalizadora da justiça, quer à individua-lizadora. É, porém, apenas uma das várias possibilida-des formulativas a considerar não devendo, por outrolado, sobreestimar-se a sua capacidade. Com estalimitação pode-se, no entanto, dizer que a ideia deum sistema móvel, tal como foi desenvolvida porWILBURG, constitui um enriquecimento decisivo doinstrumentário quer legislativo quer metodológico (45)devendo, por isso, incluir-se sem dúvida entre as«descobertas» jurídicas significativas (46).

o conceito e as qualidades do sistema jurídico()stão suficientemente esclarecidas para se poder pas-sar à questão que, em última análise, é decisiva parao significado do pensamento sistemático na Ciênciado Direito: a da relevância «prática» do sistema. Defacto, uma pesquisa sobre a problemática do «pensa-lnento sistemático e conceito de sistema», tornar-se-iapouco significativa se não implicasse tomadas deposição que assumissem, também, importância «prá-tiea»; de facto, a Ciência do Direito é, como poucasoutras Ciências, imediatamente dirigida e preparadapara efeitos «práticos»; a questão do seu «valor navida», para utilizar a linguagem da jurisprudência dosinteresses, coloca-se, assim, no meio da discussão doHisl:ema. Neste sentido, a «praxis» é a aplicação do[)ireito aos factos concretos; o problema reside, então,110 explícitar de modo preciso, se cabe ao sistema umqualquer significado no tocante à obtenção das pro-posiçiles jurídicas convenientes.

Esta possibilidade é negada, com convicção, porll1l1a opinião muito difundida. Segundo ela, o sistema11:\0 possui qualquer «valor na vida» e, em especial,

sobre a extensão conveniente do seu âmbito de aplicação; cf.,sobre isso, por todos, HEDEMANN, Die Flucht in die Gene-ralklauseln, 1933; F. V. HIPPEL, Richtlinien und Kasuistik imAufbau von Rechtsordnung, 1942;mais recentemente, sobretudoHENKEL, ob. cit., p. 357 ss. e 360 ss.

(45) Metodologicamente, deve-se distinguir, quanto aosignificado, as partes móveis do sistema das cláusulas geraise, nessa linha, interpretá-Ias restritivamente, admitindo, porexemplo, no § 254 BGB, apenas pontos de vista específicos deimputação; por outro lado, deve-se conferir à ideia de sistemamóvel também um papel particular na própria concretizaçãodas cláusulas gerais; d., quanto a isso, infra, p. 152 ss. Notado tradutor: recorde-se que o § 254 do BGB se reporta à culpado lesado.

(46) O conceito de «descoberta jurídica» provém deDOLLE que, no entanto, o exemplificou em dimensões dogmá-ticas; cf. a intervenção perante o 42. deutschen Juristentag,voI. II das «Verhandlungem>,Tübingen, 1959.