claro enigma drummond apostila anglo

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Claro Enigma Carlos Drummond de Andrade - Poemas permeados de dúvidas sobre a condição humana: do desejo de liberdade à perplexidade. - Pessimismo, desencanto, dissolução humana, metafísica, angústia, introspecção. - Claro Enigma x A rosa do povo - Ausência x Presença: engajamento político - Aspectos formais: texto clássico (soneto) propiciando a reflexão existencial. - Contexto: comunismo x capitalismo, iminência bomba atômica, mundo pós-guerra e pós-ditadura: inconformismo. - Estrutura da obra: I “Entre Lobo e Cão” (18 poemas); II – “Notícias amorosas” (7 poemas); III “O menino e os homens” (4 poemas); IV – “Selo de Minas” (4 poemas); V “Os lábios cerrados” (6 poemas); VI – “A máquina do mundo” (2 poemas). Exemplos: Poema I Dissolução Escurece, e não me seduz tatear sequer uma lâmpada. Pois que aprouve ao dia findar, aceito a noite. E com ela aceito que brote uma ordem outra de seres e coisas não figuradas. Braços cruzados. Vazio de quanto amávamos, mais vasto é o céu. Povoações surgem do vácuo. Habito alguma?

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Apostila Anglo

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  • Claro Enigma Carlos Drummond de Andrade

    - Poemas permeados de dvidas sobre a condio humana: do desejo de liberdade

    perplexidade.

    - Pessimismo, desencanto, dissoluo humana, metafsica, angstia, introspeco.

    - Claro Enigma x A rosa do povo

    - Ausncia x Presena: engajamento poltico

    - Aspectos formais: texto clssico (soneto) propiciando a reflexo existencial.

    - Contexto: comunismo x capitalismo, iminncia bomba atmica, mundo ps-guerra e

    ps-ditadura: inconformismo.

    - Estrutura da obra: I Entre Lobo e Co (18 poemas); II Notcias amorosas (7

    poemas); III O menino e os homens (4 poemas); IV Selo de Minas (4 poemas);

    V Os lbios cerrados (6 poemas); VI A mquina do mundo (2 poemas).

    Exemplos:

    Poema I

    Dissoluo

    Escurece, e no me seduz

    tatear sequer uma lmpada.

    Pois que aprouve ao dia findar,

    aceito a noite.

    E com ela aceito que brote

    uma ordem outra de seres

    e coisas no figuradas.

    Braos cruzados.

    Vazio de quanto amvamos,

    mais vasto o cu. Povoaes

    surgem do vcuo.

    Habito alguma?

  • E nem destaco minha pele

    da confluente escurido.

    Um fim unnime concentra-se

    e pousa no ar. Hesitando.

    E aquele agressivo esprito

    que o dia carreia consigo,

    j no oprime. Assim a paz,

    destroada.

    Vai durar mil anos, ou

    extinguir-se na cor do galo?

    Esta rosa definitiva,

    ainda que pobre.

    Imaginao, falsa demente,

    j te desprezo. E tu, palavra.

    No mundo, perene trnsito,

    calamo-nos.

    E sem alma, corpo, s suave.

    Poema II

    Cantiga de enganar

    O mundo no vale o mundo,

    meu bem.

    Eu plantei um p-de-sono,

    brotaram vinte roseiras.

    Se me cortei nelas todas

    e se todas me tingiram

    de um vago sangue jorrado

    ao capricho dos espinhos,

    no foi culpa de ningum.

    O mundo,

  • meu bem,

    no vale

    a pena, e a face serena

    vale a face torturada.

    H muito aprendi a rir,

    de qu? de mim? ou de nada?

    O mundo, valer no vale.

    Tal como sombra no vale,

    a vida baixa... e se sobe

    algum som deste declive,

    no grito de pastor

    convocando seu rebanho.

    No flauta, no canto

    de amoroso desencanto.

    No suspiro de grilo,

    voz noturna de correntes,

    no me chamando filho,

    no silvo de serpentes

    esquecidas de morder

    como abstratas ao luar.

    No choro de criana

    para um homem se formar.

    Tampouco a respirao

    de soldados e de enfermos,

    de meninos internados

    ou de freiras em clausura.

    No so grupos submergidos

    nas geleiras do entressono

    e que deixam desprender-se,

    menos que a simples palavra,

    menos que a folha no outono,

    a partcula sonora

    que a vida contm, e a morte

    contm, o mero registro

  • de energia concentrada.

    No nem isto, nem nada.

    som que precede a msica,

    sobrante dos desencontros

    e dos encontros fortuitos,

    dos malencontros e das

    miragens que se condensam

    ou que se dissolvem noutras

    absurdas figuraes.

    O mundo no tem sentido.

    O mundo e suas canes

    de timbre mais comovido

    esto calados, e a fala

    que de uma para outra sala

    ouvimos em certo instante

    silncio que faz eco

    e que volta a ser silncio

    no negrume circundante.

    Silncio: que quer dizer?

    Que diz a boca do mundo?

    Meu bem, o mundo fechado,

    se no for antes vazio.

    O mundo talvez: e s.

    Talvez nem seja talvez.

    O mundo no vale a pena,

    mas a pena no existe.

    Meu bem, faamos de conta.

    de sofrer e de olvidar,

    de lembrar e de fruir,

    de escolher nossas lembranas

    e revert-las, acaso

    se lembrem demais em ns.

    Faamos, meu bem, de conta

    - mas a conta no existe -

  • que tudo como se fosse,

    ou que, se fora, no era.

    Meu bem, usemos palavras.

    faamos mundos: idias.

    Deixemos o mundo aos outros

    j que o querem gastar.

    Meu bem, sejamos fortssimos

    - mas a fora no existe -

    e na mais pura mentira

    do mundo que se desmente,

    recortemos nossa imagem,

    mais ilusria que tudo,

    pois haver maior falso

    que imaginar-se algum vivo,

    como se um sonho pudesse

    dar-nos o gosto do sonho?

    Mas o sonho no existe.

    Meu bem, assim acordados,

    assim lcidos, severos,

    ou assim abandonados,

    deixando-nos deriva

    levar na palma do tempo

    - mas o tempo no existe -,

    sejamos como se framos

    num mundo que fosse: o Mundo.

    Poema III

    Remisso

    Tua memria, pasto de poesia,

    tua poesia, pasto dos vulgares,

    vo se engastando numa coisa fria

    a que tu chamas: vida, e seus pesares.

  • Mas, pesares de qu? perguntaria,

    se esse travo de angstia nos cantares,

    se o que dorme na base da elegia

    vai correndo e secando pelos ares,

    e nada resta, mesmo, do que escreves

    e te forou ao exlio das palavras,

    seno contentamento de escrever,

    enquanto o tempo, em suas formas breves

    ou longas, que sutil interpretavas,

    se evapora no fundo do teu ser?

    Poema IV

    A Mquina do Mundo

    E como eu palmilhasse vagamente

    uma estrada de Minas, pedregosa,

    e no fecho da tarde um sino rouco

    se misturasse ao som de meus sapatos

    que era pausado e seco; e aves pairassem

    no cu de chumbo, e suas formas pretas

    lentamente se fossem diluindo

    na escurido maior, vinda dos montes

    e de meu prprio ser desenganado,

    a mquina do mundo se entreabriu

    para quem de a romper j se esquivava

    e s de o ter pensado se carpia.

    Abriu-se majestosa e circunspecta,

    sem emitir um som que fosse impuro

    nem um claro maior que o tolervel

    pelas pupilas gastas na inspeo

  • contnua e dolorosa do deserto,

    e pela mente exausta de mentar

    toda uma realidade que transcende

    a prpria imagem sua debuxada

    no rosto do mistrio, nos abismos.

    Abriu-se em calma pura, e convidando

    quantos sentidos e intuies restavam

    a quem de os ter usado os j perdera

    e nem desejaria recobr-los,

    se em vo e para sempre repetimos

    os mesmos sem roteiro tristes priplos,

    convidando-os a todos, em coorte,

    a se aplicarem sobre o pasto indito

    da natureza mtica das coisas,

    assim me disse, embora voz alguma

    ou sopro ou eco ou simples percusso

    atestasse que algum, sobre a montanha,

    a outro algum, noturno e miservel,

    em colquio se estava dirigindo:

    "O que procuraste em ti ou fora de

    teu ser restrito e nunca se mostrou,

    mesmo afetando dar-se ou se rendendo,

    e a cada instante mais se retraindo,

    olha, repara, ausculta: essa riqueza

    sobrante a toda prola, essa cincia

    sublime e formidvel, mas hermtica,

    essa total explicao da vida,

    esse nexo primeiro e singular,

    que nem concebes mais, pois to esquivo

    se revelou ante a pesquisa ardente

    em que te consumiste... v, contempla,

  • abre teu peito para agasalh-lo.

    As mais soberbas pontes e edifcios,

    o que nas oficinas se elabora,

    o que pensado foi e logo atinge

    distncia superior ao pensamento,

    os recursos da terra dominados,

    e as paixes e os impulsos e os tormentos

    e tudo que define o ser terrestre

    ou se prolonga at nos animais

    e chega s plantas para se embeber

    no sono rancoroso dos minrios,

    d volta ao mundo e torna a se engolfar,

    na estranha ordem geomtrica de tudo,

    e o absurdo original e seus enigmas,

    suas verdades altas mais que todos

    monumentos erguidos verdade:

    e a memria dos deuses, e o solene

    sentimento de morte, que floresce

    no caule da existncia mais gloriosa,

    tudo se apresentou nesse relance

    e me chamou para seu reino augusto,

    afinal submetido vista humana.

    Mas, como eu relutasse em responder

    a tal apelo assim maravilhoso,

    pois a f se abrandara, e mesmo o anseio,

    a esperana mais mnima esse anelo

    de ver desvanecida a treva espessa

    que entre os raios do sol inda se filtra;

    como defuntas crenas convocadas

    presto e fremente no se produzissem

    a de novo tingir a neutra face

    que vou pelos caminhos demonstrando,

    e como se outro ser, no mais aquele

    habitante de mim h tantos anos,

  • passasse a comandar minha vontade

    que, j de si volvel, se cerrava

    semelhante a essas flores reticentes

    em si mesmas abertas e fechadas;

    como se um dom tardio j no fora

    apetecvel, antes despiciendo,

    baixei os olhos, incurioso, lasso,

    desdenhando colher a coisa oferta

    que se abria gratuita a meu engenho.

    A treva mais estrita j pousara

    sobre a estrada de Minas, pedregosa,

    e a mquina do mundo, repelida,

    se foi miudamente recompondo,

    enquanto eu, avaliando o que perdera,

    seguia vagaroso, de mos pensas.

    Poema V

    Amar

    Que pode uma criatura seno,

    entre criaturas, amar?

    amar e esquecer, amar e malamar,

    amar, desamar, amar?

    sempre, e at de olhos vidrados, amar?

    Que pode, pergunto, o ser amoroso,

    sozinho, em rotao universal, seno

    rodar tambm, e amar?

    amar o que o mar traz praia,

    o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,

    sal, ou preciso de amor, ou simples nsia?

    Amar solenemente as palmas do deserto,

    o que entrega ou adorao expectante,

    e amar o inspito, o spero,

    um vaso sem flor, um cho de ferro,

  • e o peito inerte, e a rua vista em sonho,

    e uma ave de rapina.

    Este o nosso destino: amor sem conta,

    distribudo pelas coisas prfidas ou nulas,

    doao ilimitada a uma completa ingratido,

    e na concha vazia do amor procura medrosa,

    paciente, de mais e mais amor.

    Amar a nossa falta mesma de amor,

    e na secura nossa, amar a gua implcita,

    e o beijo tcito, e a sede infinita.

    Questes vestibular

    1.

    Onde nasci, morri

    Onde morri, existo

    E das peles que visto

    muitas h que no vi.

    Sem mim como sem ti

    posso durar. Desisto

    de tudo quanto misto

    e que odiei ou senti.

    Nem Fausto nem Mefisto,

    deusa que se ri

    deste nosso oaristo,

    eis-me a dizer: assisto

    alm, nenhum, aqui

    mas no sou eu, nem isto.

    (ANDRADE, Carlos Drummond de. Sonetilho do Falso Fernando Pessoa. In Claro

    Enigma. ed. 10. Rio de Janeiro: Record, 2001. )

    O poema acima integra o livro Claro Enigma, de 1951, obra em que Carlos Drummond

    de Andrade opera uma mudana de direo em relao sua trajetria potica anterior,

  • mais ligada ao engajamento social, como se evidencia num livro como A Rosa do Povo.

    Diante disso, as escolhas lingusticas feitas pelo autor:

    A) Elaboram uma rede intertextual com a obra de Fernando Pessoa, poeta representante

    da segunda gerao romntica brasileira, ao fazer referncia falsidade da poesia,

    evidente no ltimo verso.

    B) Negam a esttica do Modernismo, movimento a que se pode associar Drummond, ao

    fazer uso do soneto, uma forma potica fixa, muito comum em movimentos como o

    Barroco, Arcadismo e Romantismo. *

    C) Representam a dificuldade do homem moderno em estabelecer-se enquanto uma

    unidade e o consequente estado de depresso que esse fato acarreta, evidenciado nos dois

    primeiros versos.

    D) Dialogam, por meio de versos como E das peles que visto/ muitas h que no vi,

    com a heteronmia de Fernando Pessoa, fenmeno pelo qual o poeta portugus se

    multiplicava em outros poetas, cada um com personalidade diversa da dos outros.

    E) Oferecem uma viso potica das dificuldades de entendimento entre variantes da

    lngua portuguesa, uma vez que Drummond brasileiro e Fernando Pessoa, portugus.

    2. Assinalar com V as afirmativas verdadeiras e com F as falsas, referentes obra

    Claro enigma, de Carlos Drummond de Andrade.

    (__) Drummond foi um dos poetas que expressaram em seus poemas o contexto do

    perodo ps-guerra. Claro enigma, no entanto, embora tenha sido publicada em 1951,

    uma de suas obras que no exprimem os sentimentos provocados por esse perodo. Assim,

    no se encontram no livro poemas marcados pelo pessimismo e por uma viso

    apocalptica relativa ao destino da civilizao.

    (__) Os poemas so construdos a partir de uma clara conscincia drummondiana do

    mundo e da sociedade.

    (__) A memria, a histria, o sentimento do amor so recursos essenciais da obra. Por

    eles Drummond revela um transcendentalismo que emerge de uma viso histrico-profeta

    das aes humanas.

    A sequncia correta de preenchimento dos parnteses, de cima para baixo, :

    a) V-V-F

  • b) F-V-V *

    c) V-F-F

    d) V-F-V

    e) F-F-V

    3. incorreto afirmar sobre a obra de Carlos Drummond de Andrade que:

    a. seu posicionamento individualista o afasta da problemtica do homem comum, do

    dia-a-dia. *

    b. uma de suas temticas a reflexo em torno da prpria poesia.

    c. a lembrana de Itabira, sua terra natal, aparece em parte de sua obra.

    d. ocorre-lhe, muitas vezes, a mostragem de uma angstia proveniente de acreditar

    que no h sada para a problemtica existencial.

    e. a ironia madura uma das caractersticas marcantes de sua poesia.