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Carlos Drummond de Andrade Prof. Cadu Siqueira Colégio Magno 2017

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Carlos Drummond de Andrade

Prof. Cadu Siqueira

Colégio Magno

2017

� Drummond: autor representativo da 2a fase do Modernismo (1930);� "signo de uma dramática insuficiência” (Alcides Villaça);� ironia, humor, confidência;� primeira poesia: dialética entre os valores do indivíduo e os valores do

mundo;� “ressentimento drummondiano”: impossibilidade de construção de uma

ordem ideal;� “A poesia de Drummond inaugura-se dividida entre a altivez de um sujeito

decididamente fincado em seu próprio posto de observação e o sentimento de desamparo do tímido que bem desejaria sair dele para realizar sem culpa os ‘tantos desejos’” (Alcides Villaça);

� Poesia de Drummond até A rosa do povo: embate entre o eu e o mundo / eu lírico gauche, inadaptado; eu tenta intervir na realidade (poesia de engajamento social, característica em obras como Sentimento do mundo e A rosa do povo).

� Claro enigma: mudança em relação às obras anteriores;� centramento do eu, desencanto, amargura, em relação ao mundo;� eu resignado, amargo, fechado em si mesmo;� tom mais filosófico, elevado;� perspectiva metafísica;� título: paradoxo que representa o estado do eu lírico (desencanto, sem

caminhos definidos);� versos clássicos (soneto, decassílabos);� relação com autores clássicos (Camões - Os lusíadas);� Minas Gerais: “A mesa” (reencontro com o pai);� poemas em homenagem aos amigos (como Mário de Andrade e Mário

Quintana);� epígrafe: “Les événements m’ennuient” (Paul Valéry) – “Os acontecimentos

me entediam”

� Se em suas obras anteriores, Drummond era capaz de evidenciar sua postura forte e contrária a qualquer situação que o incomodasse, em Claro Enigma ele apenas se mostra inconformado e perplexo, porém sem forças para reagir. Sua poesia deixa de focar a busca de respostas e passa a centralizar-se em perguntas que devem ser feitas, tematizando, melancolicamente, as incertezas e angústias que atormentavam o escritor quanto ao rumo que seria seguido após perder suas certezas políticas;

� a mudança de foco, contudo, nada tem a ver com um eventual distanciamento da realidade. Drummond muda de objeto poético, afastando-se dos fatos concretos para falar de ausências, perdas e temas abstratos como o tempo e a vida;

� sentimento de culpa que oprime o poeta;� visão crepuscular dá o tom da obra: a noção da impossibilidade,

estabelecida entre o transitório e o definitivo, a essência das coisas e seu fracasso diante do tempo.

O livro está dividido em 6 seções.

1. Entre lobo e cão-Seção mais extensa da obra;-observar a oposição entre lobo e cão presente no título da seção;-os poemas desta seção destacam a postura conflitiva do eu lírico, que serevela pessimista, niilista;-niilismo: redução ao nada, aniquilamento, não existência;-Friedrich Nietzsche (filósofo alemão do final do século XIX): seu niilismoimplica negação, declínio ou recusa, em curso na história humana eespecialmente na modernidade ocidental, de crenças e convicções – com seusrespectivos valores morais, estéticos ou políticos – que ofereçam um sentidoconsistente e positivo para a experiência imediata da vida;-em Claro enigma, o eu lírico expõe logo o comando da aspiração presente: a“fiel indiferença”, “capaz de sugerir o fim sem a injustiça dos prêmios”.

Escurece, e não me seduztatear sequer uma lâmpada.Pois que aprouve ao dia findar,aceito a noite.

E com ela aceito que broteuma ordem outra de serese coisas não figuradas.Braços cruzados.

Vazio de quanto amávamos,mais vasto é o céu. Povoaçõessurgem do vácuo.Habito alguma?

E nem destaco minha peleda confluente escuridão.Um fim unânime concentra-see pousa no ar. Hesitando.

E aquele agressivo espíritoque o dia carreia consigo,já não oprime. Assim a paz,destroçada.

Vai durar mil anos, ouextinguir-se na cor do galo?Esta rosa é definitiva,ainda que pobre.

Imaginação, falsa demente,já te desprezo. E tu, palavra.No mundo, perene trânsito,calamo-nos.E sem alma, corpo, és suave.

- Aceitação da noite, do vazio;- noite: espaço-tempo do desconhecido (“ordem outra de seres / e coisas não

figuradas”). Observar a perspectiva metafísica do poeta em relação à realidade;

- “Braços cruzados”: aceitação, fechamento do poeta, inatividade;- vazio = vasto;- “Habito alguma?”: questionamento do poeta sobre sua relação com o

mundo. O poeta faz parte de alguma “povoação”?- “E nem destaco minha pele / da confluente escuridão”: o eu lírico não se

destaca da multidão;- “fim unânime”: iminência da morte, do fim;- opressão X paz (destroçada);- descrença na imaginação e na força da palavra poética;- alma X corpo.

A madureza, essa terrível prendaque alguém nos dá, raptando-nos, com ela, todo sabor gratuito de oferendasob a glacialidade de uma estela,

a madureza vê, posto que a venda interrompa a surpresa da janela, o círculo vazio, onde se estenda, e que o mundo converte numa cela.

A madureza sabe o preço exatodos amores, dos ócios, dos quebrantos, e nada pode contra sua ciência

e nem contra si mesma. O agudo olfato, o agudo olhar, a mão, livre de encantos, se destroem no sonho da existência.

- Observar a recuperação da forma clássica: soneto, versos decassílabos;- soneto: forma clássica que acolhe a reflexão sobre a realidade;- Gaia ciência: conhecimento (“ciência”) alegre, vivaz; termo dado à arte

poética na cultura provençal (Idade Média);- A gaia ciência (1882): título de um dos tratados filosóficos de Friedrich

Nietzsche. Para esse filosófo, a gaia ciência refere-se não apenas à poesiamas à própria atitude enérgica e transgressiva dos cantores provençais, eleita por ele como uma espécie de nova moral contra o mecanicismo;

- ingaia ciência: ciência triste;- “madureza”: tema recorrente em Claro enigma; a velhice como constatação

da iminência do fim;- a consciência resultante da “madureza” opõe-se ao “sabor gratuito da

oferenda” (novidade, surpresa);- o amadurecimento do ser é associado ao desencanto, à perda das

esperanças.

Que lembrança darei ao país que me deutudo que lembro e sei, tudo quanto senti?Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceuminha incerta medalha, e a meu nome se ri.

E mereço esperar mais do que os outros, eu?Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

Não deixarei de mim nenhum canto radioso,uma voz matinal palpitando na brumae que arranque de alguém seu mais secreto espinho.

De tudo quanto foi meu passo caprichosona vida, restará, pois o resto se esfuma,uma pedra que havia em meio do caminho.

- Mais um exemplo da recuperacão das formas clássicas (soneto, decassílabos);

- reflexão sobre o legado do poeta;- legado: reflexão desencantada sobre o papel da poesia e do poeta em

relação ao mundo (“Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu / minha incerta medalha, e a meu nome se ri.”);

- o poema revela o afastamento do poeta em relação aos fatos, à poesia social, tão marcada em obras anteriores (Sentimento do mundo, A rosa do povo);

- “Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu, / a vagar, taciturno, entre o talvez e o se”: Orfeu, personagem da mitologia grega, capaz de encantar as feras com sua lira. Os “monstros atuais” representam metaforicamente os fatos concernentes à realidade. Trata-se, pois, da constatação de que a poesia (Orfeu) não é instrumento eficaz para transformar a realidade (afastamento de temas abertamente sociais);

- intratextualidade: “No meio do caminho”.

Que metro servepara medir-nos?Que forma é nossae que conteúdo?

Contemos algo?Somos contidos?Dão-nos um nome?Estamos vivos?

A que aspiramos?Que possuímos?Que relembramos?Onde jazemos?

(Nunca se findanem se criara.Mistério é o tempoinigualável.)

- Observar a relação entre as formas do cavalo-marinho e do ponto de interrogação;

- reflexão sobre a poesia (metalinguagem) X reflexão sobre o ser;- por meio de perguntas breves e incisivas, o poeta incita o leitor a pensar

não apenas nos sentidos da existência humana, mas também no que constitui o próprio poema, tomado como um organismo vivo, feito de medidas, formas, sentidos, sempre em estado de movimento;

- tempo: misterioso e implacável (tema recorrente em Claro enigma).

Onde nasci, morri. Onde morri, existo. E das peles que visto muitas há que não vi.

Sem mim como sem ti posso durar. Desisto de tudo quanto é misto e que odiei ou senti.

Nem Fausto nem Mefisto, à deusa que se ri deste nosso oaristo,

eis-me a dizer: assisto além, nenhum, aqui, mas não sou eu, nem isto.

- Interpretação da heteronímia pessoana;- identidade X multiplicidade;- impossibilidade de se considerar a identidade de forma clara, objetiva;- antíteses, oposições, paradoxos;- a existência do indivíduo não se submete às leis da realidade objetiva. É

possível existir mesmo diante da morte (memórias, lembranças);- o apagamento do sujeito, da subjetividade é um caminho para a existência;- o poeta não é Fausto (aquele que vendeu sua alma ao Diabo) nem

Mefistófeles (demônio, signo do mal).

Noite. Certomuitos são os astros. Mas o edifíciobarra-me a vista.

Quis interpretá-lo.Valeu? Hojebarra-me (há luar) a vista.

Nada escrito no céu,sei.Mas queria vê-lo.O edifício barra-mea vista.

Zumbidode besouro. Motorarfando. O edifício barra-mea vista.

Assim ao luar é mais humilde.Por ele é que sei do luar.Não, não me barraa vista. A vista se barraa si mesma.

- Opacidade: impossibilidade de ver, de conhecer;- edifício: metonímia da cidade, barra a vista do eu lírico, que não consegue

ver o céu;- “Zumbido / de besouro” = “Motor / arfando” – sensações equivalentes; o

espaço urbano impõe obstáculos à percepção do eu lírico;- observar a conclusão do poema: por mais que pareça controlar o processo

de escrever, o poeta sempre sabe que há limitações desconhecidas aoredor dele, tão íntimas e habituais que nem pode defini-las (“A vista se barra/ a si mesma”). Os poemas de Claro enigma são expressões dentro dessaconsciência, não podendo, pela sua própria natureza, atingir a objetividade.

Amar o perdidodeixa confundidoeste coração.

Nada pode o olvidocontra o sem sentidoapelo do Não.

As coisas tangíveistornam-se insensíveisà palma da mão.

Mas as coisas findas,muito mais que lindas,essas ficarão.

Tua memória, pasto de poesia, tua poesia, pasto dos vulgares, vão se engastando numa coisa fria a que tu chamas: vida, e seus pesares.

Mas, pesares de quê? perguntaria, se esse travo de angústia nos cantares, se o que dorme na base da elegia vai correndo e secando pelos ares,

e nada resta, mesmo, do que escreves e te forçou ao exílio das palavras, senão contentamento de escrever,

enquanto o tempo, em suas formas breves ou longas, que sutil interpretavas, se evapora no fundo de teu ser?

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm e correm de um para o outro lado, sempre esquecidos de alguma coisa. Certamente falta-lhes não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves, até sinistros. Coitados, dir-se-ia que não escutam nem o canto do ar nem os segredos do feno,como também parecem não enxergar o que é visívele comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes e no rasto da tristeza chegam à crueldade.Toda a expressão deles mora nos olhos - e perde-se a um simples baixar de cílios, a uma sombra.Nada nos pêlos, nos extremos de inconcebível fragilidade, e como neles há pouca montanha, e que secura e que reentrâncias e que impossibilidade de se organizarem em formas calmas, permanentes e necessárias. Têm, talvez, certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazemperdoar a agitação incômoda e o translúcido vazio interior que os torna tão pobres e carecidos de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme(que sabemos nós), sons que se despedaçam e tombam no campocomo pedras aflitas e queimam a erva e a água,e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.

Salve, reino animal:todo o peso celestesuportas no teu ermo.

Toda a carga terrestrecarregas como sefosse feita de vento.

Teus cascos laceradosna lixa do caminhoe tuas cartilagens

e teu rude focinhoe tua cauda zonza,teu pêlo matizado,

tua escama furtiva,as cores com que iludesteu negrume geral,

Teu vôo limitado,teu rastro melancólico,tua pobre verônica

em mim, que nem pastor,soube ser, ou serei,se incorporam num sopro.

Para tocar o extremoda minha natureza,limito-me: sou burro.

Para trazer ao fenoo senso da escultura,concentro-me: sou boi.

A vária condiçãopor onde se atropelaessa ânsia de explicar-me

agora se apascentaà sombra do galpãoneste sinal: sou anjo.

2. Notícias amorosas�Poemas sobre o amor, um amor difícil, tortuoso, associado à angústia e a tristeza em alguns poemas;�aborda o amor, em geral, de um ponto de vista universal e não subjetivista;�postura contraditória diante do amor: admiração e sofrimento; contemplação e angústia;�a paixão brota difícil (…), ameaçada sempre pela ironia (Alcides Villaça).

Bom dia: eu dizia a moçaque de longe sorria.Bom dia: mas da distânciaela nem respondia.Em vão a fala dos olhose dos braços repetiabom-dia à moça que estava,de noite como de dia,bem longe do meu podere de meu pobre bom-dia.Bom-dia sempre: se acasoa resposta vier friaou tarde vier, contudoesperarei o bom-dia.E sobre casas compactas,sobre o vale e a serrania,irei repetindo mansoa qualquer hora: bom dia.O tempo é talvez ingratoe funda a melancoliapara que justifiqueo meu absurdo bom-dia.Nem a moça põe reparo,não sente, não desconfiao que há de carinho presono cerne deste bom-dia.

Bom dia: repito à tarde,à meia-noite: bom dia.E de madrugada voupintando a cor do meu dia,que a moça possa encontrá-loazul e rosa: bom dia.Bom dia: apenas um econa mata (mas quem diria)decifra minha mensagem,deseja bom o meu dia.A moça, sorrindo ao longe,não sente, alegria,o que há de rude tambémno clarão deste bom-dia.De triste, túrbido, inquieto,noite que se denúnciae vai errante, sem fogos,na mais louca nostalgia.Ah, se um dia respondessesao meu bom-dia: bom dia!Como a noite se mudarano mais cristalino dia!

- Amor como incompletude, impossibilidade;- amor: desejo (imaginação, fantasia) X realidade.

3. O menino e os homens-Nesta seção, Drummond apresenta uma série de poemas de cunho memorialístico, saudando poetas como Mário de Andrade e Mário Quintana;-como contraponto a esses poemas, Drummond inicia a seção com um texto em que saúda o nascimento de seu neto, Pedro;-destaca-se, nesta seção, a oposição vida e morte.

Na rua escura o velho poeta(lume de minha mocidade) já não criava, simples criaturaexposta aos ventos da cidade.

Ao vê-lo curvo e desgarradona caótica noite urbana,o que senti, não alegria,era, talvez, carência humana.

E pergunto ao poeta, pergunto-lhe(numa esperança que não digo) para onde vai — a que angra serena, a que Pasárgada, a que abrigo?

A palavra oscila no espaçoum momento. Eis que, sibilino, entre as aparências sem rumo, responde o poeta: Ao meu destino.

E foi-se para onde a intuição,o amor, o risco desejadoo chamavam, sem que ninguémpressentisse, em torno, o chamado.

- Reflexão sobre o tempo, sobre a velhice;- segundo o professor Alcides Villaça, apesar da referência a Manuel

Bandeira (“Pasárgada”), Drummond estaria dirigindo-se ao poeta Álvaro Moreyra.

Os cinco anos de tua morteesculpiram já uma criança.Moldada em éter, de tal sorte,ela é fulva no dia que avança.

Este menino malasártico,Macunaíma de novo porte,escreve cartas no ar fantásticopara compensar tua morte.

Com todos os dentes, feliz,lá de um mundo sem sul nem norte,de teu inesgotável país,ris. Alegria ou puro esporte?

Ris, irmão, assim cristalino(Mozart aberto em pianoforte)o redondo, claro, apolíneoriso de quem conhece a morte.

Não adianta, vê, te prantearmos…tudo sabes, sem que isso importeem cinismo, pena, sarcasmo.E, deserto, ficas mais forte.

Giras na Ursa Maior, acaso,solitário, em meio à coorte,sem, nas pupilas, flor ou vaso.Mas o jardim é teu, da morte.

Se de nosso nada possuímossalvo o apaixonado transporte– vida é paixão –, contigo rimosexpectantes, em frente à Porta!

- Poema em que Drummond saúda Mário de Andrade, falecido em 1945.

4. Selo de Minas-Nesta seção, Drummond retorna à sua terra natal, Minas Gerais;-nesse retorno, depara-se não só com a paisagem da região, mas com os antepassados que ali viveram.

III - MERCÊS DE CIMA

Pequena prostituta em frente a Mercês de Cima.Dádiva de corpo na tarde cristã.Anjos saídos da portadae nenhum Aleijadinho para recolhê-los.

IV - HOTEL TOFFOLO

E vieram dizer-nos que não havia jantar.Como se não houvesse outras fomese outros alimentos.

Como se a cidade não servisse seu pão[de nuvens.

Não, hoteleiro, nosso repasto é interiore só pretendemos a mesa.Comeríamos a mesa, se no-lo ordenassem as

[Escrituras.Tudo se come, tudo se comunica,tudo, no coração, é ceia.

V - MUSEU DA INCONFIDÊNCIA

São palavras no chãoe memória nos autos.As casas inda restam,os amores, mais não.

E restam poucas roupas,sobrepeliz de pároco,a vara de um juiz,anjos, púrpuras, ecos.

Macia flor de olvido,sem aroma governaso tempo ingovernável.Muros pranteiam. Só.

Toda história é remorso.

- Estampas = espécies de cartões-postais sobre Minas Gerais;- memórias;- reflexões sobre o tempo.

5. Os lábios cerrados-Seção em que se destacam poemas sobre a família do poeta, em especial seu pai, falecido;-observar o título: silêncio, mudez, morte;-profunda reflexão sobre a inevitabilidade da morte;-memória X morte = presença X ausência.

Agora me lembra um, antes me lembrava outro.

Dia virá em que nenhum será lembrado.

Então no mesmo esquecimento se fundirão. Mais uma vez a carne unida, e as bodas cumprindo-se em si mesma, como ontem e sempre.

Pois eterno é o amor que une e separa, e eterno o fim (já começara, antes de ser), e somos eternos, frágeis, nebulosos, tartamudos, frustados: eternos. E o esquecimento ainda é memória, e lagoas de sono selam em seu negrume o que amamos e fomos um dia, ou nunca fomos, e contudo arde em nós à maneira da chama que dorme nos paus de lenha jogados no galpão.

- Reflexão sobre o ser, sobre vida e morte, sob a perspectiva do tempo, da memória;

- observar a ambiguidade instaurada pelo título;- esquecimento X memória;- último verso: imagem notável de índole metafísica: os mortos estão dentro

de nós (memória), mesmo quando os esquecemos “à maneira da chamaque dorme nos paus de lenha jogados no galpão”, isto é, levamos sempreconosco a sua forma, mas só em potencial.

Meu pai perdi no tempo e ganho em sonho. Se a noite me atribui poder de fuga, sinto logo meu pai e nele ponho o olhar, lendo-lhe a face, ruga a ruga.

Está morto, que importa? Inda madruga e seu rosto, nem triste nem risonho, é o rosto, antigo, o mesmo. E não enxuga suor algum, na calma de meu sonho.

Oh meu pai arquiteto e fazendeiro! Faz casas de silêncio, e suas roças de cinza estão maduras, orvalhadas

por um rio que corre o tempo inteiro, e corre além do tempo, enquanto as nossas murcham num sopro fontes represadas.

6. A máquina do mundo-Última seção, clímax do livro;-os dois poemas que compõem esta última parte constituem uma espécie de síntese dos questionamentos lançados ao longo da obra;-“A máquina do mundo”: intertexto com a obra de Camões (Os Lusíadas);-reflexão essencial sobre a condição da ordem clássica na consciênciamoderna.

- Um dos poemas mais célebres da obra de Drummond;- 32 tercetos;- decassílabos;- versos brancos (sem rimas);- sintaxe complexa: inversões sintáticas (em oposição às construções

sintáticas mais simples, coloquiais, características dos primeiros livros de Drummond e do Modernismo da primeira fase);

- ”A máquina do mundo”: intertexto com o Canto X do poema épico OsLusíadas (1572), de Camões – Tétis apresenta a Vasco da Gama a máquina do mundo.

E como eu palmilhasse vagamenteuma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos que era pausado e seco; e aves pairassem no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindona escuridão maior, vinda dos montese de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriupara quem de a romper já se esquivavae só de o ter pensado se carpia.

Primeira parte (quatro primeiras estrofes):-encontro do caminhante (eu lírico) com a máquina do mundo;-qualificação do caminhante e do cenário;-estrada familiar;-correspondência entre a natureza íntima do sujeito (“desenganado”) e a natureza exterior (“céu de chumbo”; “escuridão maior”; “sino rouco”): ambas apontam para o caráter sombrio, melancólico da experiência;-empatia negativa entre o caminhante e o mundo;-ritmo lento: cenário sombrio;-diante de um sujeito desenganado, imerso em um mundo sombrio, a máquina do mundo se entreabre. Observar a ambiguidade contida no primeiro verso: “E como…” pode sugerir tanto adição quanto causalidade, como se as quatro primeiras estrofes apresentassem o motivo para o aparecimento e o desvendamento da máquina do mundo.

Inversões sintáticas (hipérbatos):

a máquina do mundo se entreabriupara quem de a romper já se esquivavae só de o ter pensado se carpia.

para quem já se esquivava de a rompere se carpia só de o ter pensado.

Abriu-se majestosa e circunspecta,sem emitir um som que fosse impuronem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeçãocontínua e dolorosa do deserto,e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcendea própria imagem sua debuxadano rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidandoquantos sentidos e intuições restavama quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,se em vão e para sempre repetimosos mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,a se aplicarem sobre o pasto inéditoda natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz algumaou sopro ou eco ou simples percussãoatestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,em colóquio se estava dirigindo:"O que procuraste em ti ou fora de

Segunda parte (estrofes 5 a 12):- abertura da máquina do mundo e anúncio de sua fala;- contradição: a máquina do mundo caracterizada como “majestosa”, “circunspecta”, “em calma pura”, em oposição à natureza miserável, desenganada, exausta do eu lírico, cansado de buscar o conhecimento;- a máquina do mundo oferece a resolução de todos os mistérios: “convidando-os a todos, em coorte / a se aplicarem sobre o pasto inédito / da natureza mítica das coisas”;- paradoxo: a máquina do mundo se entreabre e anuncia sua fala, no entanto, não se ouve voz alguma, não se ouve o diálogo. Trata-se de uma abertura à consciência do caminhante, fora do plano da linguagem. Assim, o discurso da máquina pode ser considerado uma tentativa de o eu lírico representar, sob a forma da linguagem verbal e diante de suas limitações, aquilo que se revelou à sua consciência.

a outro alguém, noturno e miserável,em colóquio se estava dirigindo:"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,mesmo afetando dar-se ou se rendendo,e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riquezasobrante a toda pérola, essa ciênciasublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,esse nexo primeiro e singular,que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardenteem que te consumiste... vê, contempla,abre teu peito para agasalhá-lo.”

Terceira parte (estrofes 12 a 16):- discurso da máquina: exemplo admirável de retórica (persuasão);- início do discurso: reiteração da carência do sujeito, de suas tentativas frustradas de conhecer o mundo;- proposta (imperativos): “olha, repara, ausculta”- solicitação aos sentidos do caminhante para que ele perceba o conhecimento prestes a ser oferecido;- imposição: “vê, contempla, / abre teu peito para agasalhá-lo”;- deve-se observar que a abertura da máquina para os sentidos e para a consciência do caminhante implica um preço, uma vez que ele deve abrir seu peito, ou seja, despojar-se de qualquer resistência, confiar de modo irrestrito na máquina para obter o conhecimento prometido. O sujeito deve se abrir para obter o conhecimento, dessa forma, a máquina revela implicitamente que sua oferta depende da vontade do sujeito.

As mais soberbas pontes e edifícios,o que nas oficinas se elabora,o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,os recursos da terra dominados,e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestreou se prolonga até nos animaise chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,dá volta ao mundo e torna a se engolfar,na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,suas verdades altas mais que todosmonumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solenesentimento de morte, que floresceno caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relancee me chamou para seu reino augusto,afinal submetido à vista humana.

Quarta parte (estrofes 17 a 23):- a epifania do Universo;- relance da abertura da máquina X limites da linguagem;- o eu lírico está limitado a nos apresentar, por meio de um discurso analítico e linear, a totalidade do mundo tal como revelada num relance pela máquina;- enumeração de imagens que buscam materializar os enigmas do universo;- reinos naturais (animal, vegetal, mineral);- a técnica (pontes, edifícios);- o pensamento imaginativo, as paixões, os mitos, as crenças etc.;- destaca-se o absurdo da experiência, marcada por uma dimensão totalizante da realidade, impossível de se exprimir por meio da linguagem, e pelos limites da percepção do caminhante.

Mas, como eu relutasse em respondera tal apelo assim maravilhoso,pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelode ver desvanecida a treva espessaque entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadaspresto e fremente não se produzissema de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,e como se outro ser, não mais aquelehabitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontadeque, já de si volúvel, se cerravasemelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;como se um dom tardio já não foraapetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,desdenhando colher a coisa ofertaque se abria gratuita a meu engenho.

Quinta parte (estrofes 24 a 30):- a recusa do eu;- observar a retomada do subjuntivo, presente na primeira parte (“Mas, como eu relutasse…”);- razões para a recusa: enfraquecimento da fé, que não sobreviveu sequer como “esperaça mais mínima”; morte das antigas crenças; o ser de agora não é mais o ser de ontem; fim da vontade de conhecer; a graça ofertada chegou tarde demais, agora “despeciendo” (desprezível);- assim como, na primeira parte, as estrofes preparavam a aparição da máquina, retardando-a, nesta quinta parte, as estrofes preparam a recusa do eu, prorrogando-a;- a recusa do eu revela, de certa forma, sua altivez, uma vez que ele impõe suas razões para não se abrir às revelações ofertadas pela máquina do mundo;- vitória da negação, da melancolia sobre o conhecimento totalizante do mundo.

A treva mais estrita já pousarasobre a estrada de Minas, pedregosa,e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,enquanto eu, avaliando o que perdera,seguia vagaroso, de mãos pensas.

Sexta e última parte (estrofes 31 e 32):- fechamento da máquina do mundo e retorno do eu à condição de caminhante;- observar o emprego do gerúndio e do pretérito imperfeito, sugerindo que o percurso do eu lírico não se encerra com o evento apresentado: o caminhar do eu lírico não apresenta um ponto inicial definido e não terá um ponto de chegada;- o eu segue o seu caminho, mas um caminho de natureza interior, sem seres ou objetos ao seu redor, na solidão completa.