cidades ideais e elogio de cidades no renascimento e em damiao de gois

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    Cidades ideais e elogios de cidades no Renascimentoe em Damio de Gis in Actas do Congresso

    Internacional Damio de Gis na Europa doRenascimento (Braga, 29-31 de Janeiro de 2003,Universidade Catlica Portuguesa), Braga, 2003, p. 583-608.

    CIDADES IDEAIS E ELOGIO DE CIDADES NO RENASCIMENTO EEM DAMIO DE GIS

    Nair de Nazar Castro Soares(Universidade de Coimbra)

    O sculo XVI, considerado o sculo de ouro das cortes europeias, em que os

    ambientes ulicos eram sentidos como meios ideais para a realizao das virtudes humanas,

    e a grandeza e ostentao das cidades representavam o maior smbolo da expresso do

    poder dos governantes, assiste proliferao de panegricos de cidades e suas cortes, decentros polticos ou de irradiao cultural, de emprios martimos e entrepostos comerciais.

    Entre ns, este gnero tem como primeiro representante o introdutor do Humanismo

    em Portugal, Cataldo Parsio Sculo, no elogio da cidade de Bolonha e sua Universidade, ou

    no elogio de Santarm, na Orao de entrada nesta cidade da rainha D. Maria, esposa de D.

    Manuel. Diversos outros se lhe seguiriam. Incio de Morais faz o elogio de Coimbra, o

    Encomium Conimbricae.Gaspar Barreiros, na sua Chorographia, descreve alguns lugares,

    comeando na cidade de Badajoz em Castella, at de Milam em Itlia. Mas Lisboa, que

    merece, a cada passo, descries elogiosas nas crnicas e em composies de prosadores e

    poetas inspirados.O opsculo goisiano, Vrbis Olisiponis descriptio, que se estende por um nmero

    reduzido de folios, dado estampa por Andr de Burgos, em vora, em 1554, com

    dedicatria ao Cardeal D. Henrique, decorridos quase dez anos sobre o regresso definitivo

    de Gis a Portugal e , alm de uma prova da dedicao do humanista ao Infante portugus,

    um Elogio da cidade de Lisboa, e um seu roteiro turstico, para conhecimento de

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    estrangeiros, e tantos foram os que gozaram da sua hospitalidade e do ambiente de sua casa,

    desde os tempos de Lovaina.

    O alcance de uma obra latina, divulgada por toda a Europa, que se encontra ainda em

    nmero significativo de bibliotecas estrangeiras e que merece actualmente o interesse dos

    estudiosos pois so conhecidas trs tradues portuguesas modernas1

    , convida areflectir sobre os momentos da sua gnese, da sua gestao e elaborao, da sua recepo,

    do horizonte de perguntas e expectativas que caracterizava a poca do Renascimento.

    Seguindo de par o percurso humano do seu autor, o ambiente que o viu nascer, que lhe

    moldou a sensibilidade e o imaginrio, que o educou e projectou para o mundo o mundo

    dos negcios da coroa, dos mercadores e banqueiros, da poltica diplomtica, das querelas

    religiosas, mas tambm o espao privilegiado para o cultivo das letras, para o convvio de

    intelectuais de renome internacional, para a abertura e mundividncia do humanismo

    europeu, em que a pietas, a philosophia Christi de cunho erasmiano, tinham o maior

    acolhimento.2

    Gis, o moo-pajem de D. Manuel, que vivera na corte dos nove aos vinte um anos,

    que nela recebera formao moral e humana, cultura intelectual e artstica, tinha um

    projecto ambicioso, um sonho alto. no bulcio do negotium, como secretrio da Feitoria

    Portuguesa, em Anturpia, onde chega em 1523, que inicia, com passos firmes o caminho

    que para si elegera.

    1Alm das edies de Raul Machado (Lisboa de Quinhentos, Lisboa, 1937, reeditadaem 2000) e de Jos da Felicidade Alves (Descrio da cidade de Lisboa, Lisboa, 1988),acaba de ser dada estampa uma notvel edio comentada: Damio de Gis, Elogio dacidade de Lisboa. Vrbis Olisiponis descriptio. Verses latina e portuguesa. Introduo deIldio do Amaral. Apresentao, edio crtica, traduo e comentrio de Aires A.Nascimento. Lisboa, Guimares Editores, 2002 (as nosssas citaes so feitas por estaedio).

    2Vide Marcel Bataillon, tudes sur le Portugal au temps de l'humanisme,Coimbra,1952, p. 121 sqq.; Elisabeth Feist Hirsch, Damio de Gis, traduo de Lia Correia Raitt,Lisboa, 1987; Amadeu Torres, Noese e crise na epistolografia latina goisiana, 2 vols.,Paris - F. C. Gulbenkian 1982; Lus Filipe Barreto, Damio de Gis, Os caminhos de umhumanista, Lisboa - CTT Correios, 2002; e ainda os estudos de Amadeu Torres, Damiode Gis humanista e cosmopolita e de Lus de Sousa Rebelo, Damio de Gis e oschamamentos do Humanismo, insertos in Damio de Gis Humanista Portugus naEuropa do Renascimento, Lisboa- Biblioteca Nacional, 2002, p. 17-23 e 25-39,respectivamente.

    Relaciona-se Damio de Gis com os maiores vultos da intelectualidade europeia,como Lus Vives e Erasmo, corresponde-se com os italianos Lazaro Bonamici e CristoforoMadruzio, os cardeais Reginaldo Pole, Sadoleto, Bembo e Contarini, que receberam aprpura cardinalcia de Paulo III, e com tantos outros a quem oferece as suas obras.

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    No seu ferventssimo desejo de estudos, como confessa no seu processo

    inquisitorial3, Damianus a Goes Lusitanus, com a inteno de aperfeioar os seus

    conhecimentos retricos, recebe lies de latinidade erudita do mestre Cornelius Grapheus.4

    A lucidez das suas anlises econmicas, as transaces lucrativas que fomenta e a

    originalidade das suas solues diplomticas, que lhe valeriam o favor rgio e o apreo e agratido do Imperador Carlos V, no bastaram a Damio de Gis para se acomodar e

    instalar, como qualquer corteso, ou alto funcionrio administrativo.5No desempenho das

    suas funes, ao servio dos interesses de D. Joo III e da coroa portuguesa, percorre

    grandes cortes da Europa, participa do debate ideolgico que ento se trava no velho

    continente, convive com gente de todas as partes, humanistas, eclesisticos, aristocratas,

    cortesos e mercadores, na Flandres, nos portos do Bltico e do Norte da Europa, na

    Sucia, na Polnia. Foram os mercadores de Dantzig que o despertaram, com as suas

    informaes, para a situao scio-poltica e religiosa dos Lapes, objecto da sua reflexo,

    nas primcias literrias que edita em 1532.6

    Chamado a Portugal por D. Joo III para ser mestre do Prncipe D. Joo, v o lugar

    ser ocupado por D. Antnio Pinheiro, sendo-lhe oferecido o cargo de tesoureiro-mor da

    casa da ndia, deixado vago pelo seu grande amigo, Joo de Barros, nomeado feitor desta

    mesma instituo.7Amadurecido pela rica experincia de vida e pelo cosmopolitismo nos

    3 Vide O processo na Inquisio, in Inditos Goesianos por Guilherme J. C.

    Henriques, vol. II, Arruda dos Vinhos, 2002, p. 75.4 A partir de 1530, Gis foi-se gradualmente distanciando das suas actividadescomerciais e diplomticas, para se entregar ao estudo. Matricula-se em 1532 naUniversidade de Lovaina e em 1534 dirige-se a Friburgo da Brisgvia, onde hspede deErasmo durante cinco meses. Vide Jean-Claude Margolin, Damio de Gis et Erasme deRotterdam, in Damio de Gis humaniste europen, ed. J. V. de Pina Martins, Braga,1982, p. 17-54; Jean Aubin, Damio de Gis dans une Europe vanglique, inLe Latin etl'astrolabe, 2 vols., Paris, 1996-2000: I, p. 211-235.

    5Sobre a formao comercial de Damio de Gis revelada em toda a sua obra, querse trate das crnicas ou dos opsculos latinos, quer da correspondncia numerosa quetrocou durante toda a vida, bem como sobre os conhecimentos tcnicos, s prprios de

    algum que com as prticas comerciais estivesse familiarizado, vide A. H. de OliveiraMarques, Portugal Quinhentista (Ensaios), Lisboa, 1987, 33-70; Idem, Damio de Giseconomista e agente econmico da coroa portuguesa, inDamio de Gis um Humanistana Torre do Tombo, Lisboa, 2002, p. 14-19;

    6 Cf. Damianus a Goes Lusitanus, Legatio Magni Indorum Imperatoris PresbyteriIoannis ad Emmanuelem Lusitaniae Regem, Anno Domini M. D. XIII. [Clofon] Ioan.Grapheus typis excudebat Anno M. D. XXXII. mense Septemb. [Antuerpiae]. Apensa a estaedio surge aDeploratio Lappianae gentis.

    7 Cf. infra, n. 67.

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    grandes centros humanos, de que fino observador, no o entusiasma o cargo que lhe

    destinara o seu rei ao ofcio de tesoureiro-mor preferiu o superior tesouro de

    cultura, comenta Erasmo8 , deixa a ptria, onde passara quatro meses somente9, e

    regressa Europa, com o intuito firme de prosseguir o seu otium cum dignitate, de que j

    colhera alguns frutos.De Abril a Agosto de 1534, permanece em Friburgo como hspede de Erasmo,que

    dedica a Gis um Compendium rhetorices, e que tanta ternura manifesta pelo Msico

    Lusitano, cantor e instrumentista, que anima, por certo, os seus seres pois afirma o

    Roterdams nunca a minha casa me pareceu to slida e to bela como no tempo em que

    a habitaste10 tal como aconteceria mais tarde na sua prpria casa, em Lovaina,

    verdadeira academia das artes, para onde convidava msicos e cantores, o que lhe valeria

    na Inquisio a acusao de erasmismo e de amor polifonia.11

    Desta permanncia em Friburgo, o seu gosto pela traduo, tarefa muito cara a

    Erasmo, a quem chamapraeceptor amantissimus,12que ter levado Gis a verter em lngua

    portuguesa duas obras da sua predileco, o De Senectute de Ccero e os trs livros do

    Ecclesiastes, que vm a lume em Veneza, nos prelos de Estvo Sabio, em 1538.13

    8Cf. a carta que Erasmo dirige a Pietro Bembo, a recomendar-lhe Damio de Gis quepartia para Itlia (Amadeu Torres,Noese e crise cit, I, p. 264).

    9Vide a carta dedicatria, dirigida a D. Francisco de Sousa, Conde de Vimioso, doLivro de Marco Tlio Ccero chamado Cato Maior ou da Velhice dedicado a TitoPompnio tico. Fac-smile (Veneza, Estevo de Sabbio, 1538). Traduo de Damio de

    Gis. Introduo e actualizao de Joo Jos Alves Dias, Lisboa, 2003, fl. 3: Visto que,em dezasseis anos (da fora e flor de minha idade), quatro meses somente quis minha sorteestar nesses reinos e corte, lugar de minha honra e criao, o que, me enviando a fortuna,logo me de a rechaou.

    10Cf. carta de Friburgo de 21 de Maio de 1535, in Lus de Matos, Das relaes entre Erasmo e osPortugueses,Boletim Internacional de Bibliografia Luso-Brasileira 4. 2 (1963) 249.

    11Vide J.- C. Margolin,rasme et la musique, Paris, Vrin, 1965, p. 45-48 e 112.12 Vide a carta de Gis a Erasmo, escrita de Pdua a 26 de Janeiro de 1536 (Amadeu Torres,Noese e

    crisecit., I, 109 e 281).13 Vide as publicaes das duas ediesprinceps que, em boa hora foram dadas a lume, por altura da

    celebrao do quingentsimo aniversrio do nascimento de Gis: Livro de Marco Tlio Ccero chamadoCato Maior ou da Velhice dedicado a Tito Pompnio tico. Fac-smile (Veneza, Estevo de Sabbio, 1538)

    cit.; Damio de Gis, O livro de Eclesiastes.Reproduo em fac-smile da edio de Stevo Sabio (Veneza,1538. Edio crtica e Introduo de T. F. Earle, Lisboa, 2002. Traduo de Damio de Gis. Este exemplarin octavo com a traduo bblica do Ecclesistes de Salamam, con alguas annotaesneessarias, revelador do seu pendor evangelista, a que Gis nunca alude nas declaraesque faz, em sua defesa, no Tribunal da Inquisio, encontrou-o o Professor T. F. Earle, naBiblioteca de All Souls College, em Oxford.

    Notria a influncia de Erasmo na escolha de um texto bblico e de um textoclssico, em que a espiritualidade da mensagem moral e humana se complementam. Estas tradues,comeadas, por certo, em Friburgo, so provavelmente concludas no tempo da sua permanncia em Pdua,

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    Frequenta a Universidade de Pdua, a catedral do aristotelismo europeu, durante

    quatro anos, de 1534 a 1538 e ouve lies nos crculos aristocrticos de Veneza. Regressa

    Flandres, onde casa em 1538 com Joana de Hargen14, e em 1539, matricula-se no Colgio

    Trilingue de Lovaina.

    Adquirida uma cultura e uma formao intelectual e espiritual de nvel superior nose deixou inebriar por meras especulaes formais, por recreaes retricas, como as que o

    Ciceronianus(1528) de Erasmo denuncia, e que continuam a motivar os crculos literrios

    ciceronianos, a que pertencia Pietro Bembo, que Gis frequentara.15

    Damio de Gis, dir o Pe. Simo Rodrigues, he homem avisado e sabe allem do

    latim alguma cousa da Theologia e sabe a falla franceza e italiana, e lhe parece tambem que

    saber a framenga, e a Allem, porque andou muito tempo entre elles16

    Jean-Claude Margolin, discpulo de Marcel Bataillon e o maior especialista de

    Erasmo, define nestes termos o perfil do nosso humanista Damio de Gis: homme dont

    l'universalit des connaissances, la diversit des fonctions, les voyages et les aventures, la

    varit des crits, rendent le classement mal ais: il appartient l'histoire de l'humanisme

    par ses travaux et ses relations avec les plus grands humanistes de son temps; l'histoire du

    Portugal puisque, Portugais de naissance, il accomplit de nombreuses missions

    diplomatiques au service de son pays; l'histoire de l'historiographie puisqu'il crivit la

    chronique des rgnes de Manuel et de Jean II; l'histoire de la Rforme puisque ses

    onde Gis pde contar com instrumentos de trabalho e de pesquisa, adequados exegese bblica e aoscomentrios de autores clssicos.

    14

    Depois do seu casamento, Gis comprou uma casa em Lovaina, na Rua de Namur, junto Igreja deS. Quintino, onde de 1538 a 1545 exerceu a mais nobre hospitalidade. Sobre a famlia de Joana de Hargen,seu pai, Andr Splinter van Hargen, cidado ilustre da Flandres e Senhor de Oosterwyk, de quem Guiccirdini,que o conhecera em Haia em 1567, dir na suaDescrittione di tutti i Paesi Bassi (1567) que era gentilhuomomolto dotto & perito dell'arti, vide Joaquim de Vasconcelos, Damio de Goes. Sua descendncia emFlandres, Allemanha e ustria, Porto, 1897, p. 10-11.

    15O Ciceronianus de Erasmo, que Gis conhecia, apresentava uma sntese das doutrinas retricas doHumanista de Roterdo centradas, em torno da lngua latina, que deveria antes servir a explicaopiedosa da mensagem evanglica, do que a ostentao do saber erudito, que alheava o cristo da piedadeinterior. Neste sentido, Erasmo manifesta-se reservado nos elogios que dirige aos humanistas italianos.Gis conhecedor de toda aobra de Erasmo, que pretende editar, como se v pela j referida carta quelhe dirige de Pdua, em 26 de Janeiro de 1536 , no se afasta muito das orientaes do mestre.Vide Amadeu Torres, Damio de Gis e o pensamento renascentista: do ciceronianismoao eclectismo in Arquivos do Centro Cultural Portugus F. C. Gulbenkian - Paris,XVII (1982), 3-40.

    Significativa das suas relaes com personalidades italianas a sua correspondncia.Lugar privilegiado merecem as quinze cartas de italianos ilustres, entre as trinta e sete quefiguram nos seus Opuscula aliquot,editados por Rscio em Lovaina, em 1544 obra quemuito contribuiu para a divulgao na Europa da gesta dos portugueses no Oriente, antesda partida definitiva de Gis para Portugal.

    16Vide O processo na Inquisio, inInditos Goesianoscit., p. 6.

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    relations amicales avec Erasme et surtout ses rapports avec Luther le firent passer pour

    hrtique et lui valurent quelques dmls avec l'Inquisition; l'histoire de la musique

    enfin, puisque, musicien de talent et compositeur, il peut tre considr comme un

    reprsentant des tout premiers musiciens pratiques au Portugal.17

    No entanto, Damio de Gis, homem de aco e homem de cultura, tal como oshumanistas do primeiro humanismo italiano, e personalidade multifacetada, o seu talento, o

    seu saber, o seu entusiasmo colocou-os sempre ao servio da elaborao, subconsciente

    talvez, de um ideal de enaltecimento ptrio que a empresa dos Descobrimentos, da

    expanso da F e do Imprio para si representavam.

    Muito teriam impressionado a criana, com sensibilidade artstica, os sucessos dos

    portugueses nas paragens longnquas de Alm-Mar.

    Em 1511, ano da entrada de Gis na corte de D. Manuel, com nove anos de idade18,

    deu-se a conquista de Malaca, a urea Quersoneso. Desta faanha do grande Afonso de

    Albuquerque, na ndia, logo o nosso monarca, em carta latina, deu notcia ao Papa Leo X,

    que em Roma celebrou o grande evento.19

    17 Cf. J.- C. Margolin,rasme et la musiquecit., p. 45-46.18Damio de Gis enviado, nesta data, com outros dos camareiros do rei ao estudo

    da Gramtica, na Universidade de Lisboa, e em 1518 tem moradia na corte.Elaine Sanceau (O reinado do Venturoso, Porto, Civilizao, 1970), apoiada nos

    cronistas e escritores da poca e em escritores modernos, faz um relato admirvel doambiente que se vivia na corte de D. Manuel, do perfil humano poltico e religioso domonarca, do messianismo e esprito de cruzada que movia a sua aco, das esperanas naajuda do grande rei cristo da Abissnia, o legendrio Preste Joo que animavasobremaneira a viagem de Vasco da Gama ndia , das relaes internacionais de D.Manuel com a Espanha, Frana, Inglaterra e Alemanha, no sentido de uma acoconcertada contra o Turco, da actuao de Veneza que pedindo auxlio a Portugal paracombater os Turcos com eles colaborava, desapercebidamente , e de muitos outrospormenores, como: o exotismo e as riquezas provenientes do novo mundo, a azfama doporto de Lisboa, as embarcaes, as diferentes raas e lnguas da mais variada gente, asfestas para comemorar vitrias no Oriente, como a conquista de Malaca, as inolvidveiscelebraes em dia de Natal, os seres animados com o teatro de Gil Vicente, o gosto pelamsica, a famlia real, a grande amizade de Gis e do Infante D. Fernando, um dos seisfilhos vares de D. Manuel, as leituras que todos os dias o jovem Damio de Gis fazia aorei de trechos includos nas Crnicas do Reino.

    19 A vitria dos Portugueses foi celebrada em Roma com um discurso pronunciadopelo poeta e cnego de S. Pedro, Camillo Porzio, onde sublinha a importncia desta proezae chama a ateno para o perigo turco. Deste acontecimento nos d notcia, no Panegricoda Infanta D. Maria, Joo de Barros, Panegricos, Lisboa, S da Costa, 1943, p. 169-171.Cf. Nair de Nazar Castro Soares,A historiografia do Renascimento em Portugal:referentes estticos e ideolgicos humanistas, in Aqum e Alm da Taprobana. Estudos

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    Desta carta, que foi impressa e divulgada em Roma, nos prelos de Iacobus

    Mazochius, com data de 9 de Agosto de 1513, que tivemos o gosto de traduzir e comentar,

    a pedido do saudoso Doutor Lus de Albuquerque, no resistimos a citar este pequeno

    trecho:

    Afonso de Albuquerque, nosso capito geral, depois de muitas vitrias do incertoMarte [...] atacou a urea Quersoneso que os vizinhos chamam Malaca. Fica situada entre

    o grande golfo e o do Ganges e uma cidade de admirvel grandeza, avaliada em mais de

    vinte e cinco mil lares. A terra em si muito fecunda e riqussima naquelas mercadorias

    mais conhecidas que a ndia produz. Por isso mesmo emprio muito clebre, onde afluem

    no s variados perfumes e essncias de toda a espcie, mas ainda grande quantidade de

    ouro, prata, prolas e pedras preciosas. O relato prossegue com a descrio do combate

    com o rei mouro, a vitria dos Portugueses e a recolha dos valiosos despojos entre os

    quais os sete elefantes de guerra do prprio rei, munidos das suas torres de seda e de arreios

    tecidos de ouro, segundo o costume daquela provncia, e cerca de duas mil peas de

    artilharia de bronze, de todo o gnero, fabricadas com arte consumada.20

    Decorrido mais de meio sculo, Gis far, em termos semelhantes, a descrio de

    Malaca, na Crnica do felicssimo rei D. Manuel, seguindo embora os tpicos retricos

    prprios do elogio das cidades, que j pusera em prtica na Vrbs Olisiponis descriptio.

    E, em 1572, quando Gis estava a braos com o seu processo na Inquisio, retido no

    Palcio dos Estaus monumento lembrado no elogio da cidade de Lisboa Cames

    cantava n' Os Lusadas( canto II. 54, vv.5-8):

    E, sujeita a rica urea Quersoneso,At o longinco China navegando

    E as ilhas mais remotas do Oriente,

    Luso-Orientais memria de Jean Aubin e Denys Lombard.Edio organizada por LusFilipe F. R. Thomaz, Lisboa, 2002, p. 15-37, maxime p. 34-35.

    20Epstola do muito poderoso e invencvel Manuel, rei de Portugal e dos Algarves,etc. Das vitrias que obteve na ndia e em Malaca. Ao Santo Padre, em Cristo, e SenhorNosso, Senhor Leo X, Pontfice Mximo (Lisboa, 6 de Junho de 1513). Reproduo fac-similada, leitura moderna, traduo e notas de Nair de Nazar Castro Soares, in ActaRediviva, II, publicao da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1979,p. 9-11. Da grande divulgao que esta carta conheceu, no sculo XVI, vide Lus de Matos,L'expansion portugaise dans la littrature latine de la Renaissance, in L'HumanismePortugais et l'Europe Actes du XXIe. Colloque International d'tudes Humanistes,Tours, 3-13 juillet 1978. Paris - F. C. Gulbenkian, 1984, p. 417.

    Estes mesmos acontecimentos viriam a ser narrados pelo cronista Damio de Gis, naIII Parte da sua Crnica do felicssimo rei D. Manuel, sendo notvel a descrio que seencontra no captlulo XVIII sobre a riqueza de Malaca e sua importncia como empriocomercial.

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    Ser-lhe- todo o Oceano obediente.

    Estes e outros sucessos lusos, naquilo que de grandioso e de exotismo encerravam,

    marcam toda uma gerao de portugueses e mesmo de estrangeiros, a quem as notcias

    chegavam, a partir de Roma, ou tambm pelo contacto directo com os nautas, em Lisboa ouna Flandres, ligadas por uma carreira regular de naus, duas vezes por ano, desde 1502.

    Assim acontece com Thomas More que se deixara impressionar com a leitura do livro

    de Vespuccio, mas que admirara, como homem da sua poca, a empresa martima e os

    marinheiros lusos que o teriam inspirado na criao de Raphael Hithodeu, o heri da sua

    obra de alcance universal, a Utopia, publicada em Londres em 1516.21

    Em Roma, desde os finais doQuattrocento, eram habituais as celebraes, por parte

    da cria romana, dos feitos dos portugueses, que ganham universalidade pela luta contra os

    Turcos, um servio prestado cristandade, que as oraes de obedincia enalteciam acima

    de tudo.

    Todas estas oraes proferidas perante o papa, ou as cartas que lhe eram enviadas, a

    dar notcias das descobertas e conquistas ultramarinas, desde o reinado de D. Afonso V aos

    de D. Joo II e de D. Manuel, retomam sempre o mesmo motivo a guerra contra os

    Turcos, a defesa e expanso da F crist. Os Turcos j no so s os do no norte de frica,

    mas os seguidores do Islo, nas paragens distantes do ndico e do Mar Vermelho.

    Ficaram famosas oraes como a de D. Garcia de Meneses22 e as de D. Diogo de

    Sousa, em 1505, e de Tristo da Cunha, em 1514, sendo o discurso de obedincia destas

    ltimas proferido por Diogo Pacheco.

    21 A obra de Vespuccio, Paesi nuovamente retrouati. Nouo Mondo da AlbericoVesputio Florentino intitulato (1507) foi traduzida para latim com o ttulo ItinerariumPortugallensium e Lusitania in India et inde in occidentem (1508).

    22A orao de D. Garcia de Meneses, pronunciada em 1481 perante o papa Sisto IV,figura na Chorografia de Gaspar Barreiros com o seguinte ttulo:Hua Oraam que fez domGarcia de Meneses bispo d'Euora, ao Papa Sixto quarto em Roma na igreja de sanct.Paulo extra muros, onde foi pubricamente recebido, indo por capitam de hua armada queelrei dom Affonso quinto de Portugal mandou, em socorro da cidade de Ottranto que osTurcos tinham tomado no regno de Napoles. Videa publicao moderna, Orao ao SumoPontfice Sisto IV dita por D. Garcia de Meneses em 1481.Edio fac-similada, com notabibliogrfica de Martim de Albuquerque e traduo portuguesa de Miguel Pinto deMeneses, in Oraes de obedincia, sculos XV a XVII, 10 vols., Lisboa, 1988: vol. 2.

    Sobre esta orao que foi louvada por Pompnio Leto, no momento em que foiproferida, e que merecia ainda, em meados do sculo XVI, rasgados elogios do cardealJacopo Sabdoleto, vide a carta dirigida por Gaspar Barreiros a Jorge Coelho (vora, 28 deabril de 1553), in Oraes de Obedincia cit., vol 1.

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    Na orao de 1505, o orator regiusfaz o elogio insistente da aco de D. Manuel e do

    prprio rei mui prudente, justo e moderado Prncipe, o mais poderoso no nosso tempo

    entre os principais da religio crist; afirma que com a sagaz indstria de D. Manuel,

    suas enormes despesas e seus mais fervorosos cuidados, penetrmos na ndia [...] E no s

    costemos a ndia e a Etipia, mas tambm as orlas martimas do Golfo Arbico e do GolfoPrsico e as costas do Mar Roxo, e circundmos quase todo o orbe, podendo os cristos

    esperar que em breve seja abolida toda a perfdia e heresia maomtica. Enaltece a gesta

    lusa, que assume uma dimenso pica; inaugura a temtica de uma Nova Idade do Ouro e,

    inspirando-se no livro VI da Eneida, vv. 790-795, faz de Jlio II um novo Augusto: Eis

    Jlio, que da raa dos deuses; ele recriar os sculos de oiro, e desde o Lcio, pelos

    campos onde outrora reinou Saturno, estender o seu imprio para alm dos Garamantas e

    dos ndios.23

    A embaixada de 1514 ficou conhecida pela pompa e exotismo da presena do elefante

    indiano, oferta do nosso monarca ao Sumo Pontfice Leo X24.

    Estas oraes de obedincia e as celebraes pblicas de jbilo pelos grandiosos

    feitos lusos, com festas, procisses, missas solenes e pregaes, bem como a divulgao

    pela imprensa romana das cartas da chancelaria portuguesa que davam notcia das

    conquistas ao infiel, em crculos mais restritos, contribuem para a criao de um mundo de

    fantasia, de utopia, que se reflecte no imaginrio, nas letras e nas artes, de muitos autores

    nacionais, mas tambm estrangeiros, como Egidio da Viterbo, Francesco Albertini, Drer.25

    A aura mtica que se criou em torno das faanhas dos portugueses, nas mais remotas

    paragens do globo, levou Egdio da Viterbo a afirmar, em 1507, num sermo proferido emRoma nas festividades que Jlio Il promovera para celebrar as nossas vitrias no Oriente,

    que nada desejava mais neste mundo do que ser Portugus.26

    23Ibidem, Orao de obedincia ao Sumo Pontfice Jlio II dita por Diogo Pachecoem 1505cit., vol. 5, p. 16, 17 e 18.

    24 Ibidem, Orao de obedincia ao Sumo Pontfice Leo X dita por Diogo Pachecoem 1514 cit., vol. 6.

    25Vide Sylvie Deswarte, Un ge d' Or. La gloire des Portugais Rome sous Jules IIet Lon X, in Humanismo Portugus na poca dos Descobrimentos (Congressointernacional - Coimbra, 9-12 de Outubro de 1991),Actas. Coimbra, 1993, p. 126- 150.

    26 Ibidem, p. 129-131. Sobre o discurso de Egidio da Viterbo e sua importncia, pelarepercusso que teve nos temas que figuram na abbada da Capela Sixtina e na Stanza dellaSegnatura de Rafael, Ibidem, p. 133 sqq.

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    Neste mesmo ano, o carmelita Giovanni Baptista Mantuano faz o elogio rasgado das

    viagens martimas dos portugueses, louva os seus progressos na cincia nutica, o seu papel

    na expanso e consolidao da F.27

    Jean Delumeau, na sua obraMil anos de felicidade. Uma histria do paraso, dedica

    um captulo inteiro ao milenarismo portugus, sendo cerca de uma dezena de pginas sobreo sonho de Manuel, o venturoso, que projectava uma espcie de imprio universal e

    messinico, sob a gide de Portugal.28

    Gil Vicente, noAuto da Fama, escrito em 1510, chama a D. Manuel alferes da f /e

    rei do mar29.

    A abrir esta pea, Mestre Gil especifica: o seu argumento que a fama ua tam

    gloriosa excelncia que muito se deve de desejar, a qual este reino de Portugal est de posse

    da maior de todolos outros reinos, segue-se que esta Fama Portuguesa desejada de todalas

    outras terras, nam tam somente pola glria interessal dos comrcios, mas principalmente

    polo infinito dano que os mouros imigos da nossa f recebem dos portugueses na ndica

    navegao.30

    Se este sentimento contagiante de entusiasmo pelas nossas Descobertas, pelo

    desconhecido, caldeado com o proselitismo cristo, que cr no estabecimento de uma

    respublica christiana sob a gide de Portugal, aflora no imaginrio dos mais diversos

    autores, nos anos subsequentes grande aventura martima do Gama, ele tambm o

    grande mbil do entusiasmo descritivo de Damio de Gis e verdadeiro leitmotiv que

    percorre e anima a sua obra goisiana.

    Toda ela vive desse sentido absoluto de modelo, de paradigma pico nacional, que oseu autor sente o dever cvico de divulgar. A este propsito configura a essencialidade da

    sua escrita, na sua diversidade temtica, desde aLegatio Presbyteri Ioannis que sai a lume,

    com o texto daDeploratio Lappianae gentis, em apenso, no ano de 1532, em Anturpia.

    O acolhimento que este escrito latino teve nos crculos humanistas internacionais

    documentado nas Epistolae que lhe dirigiram prestigiados nomes das letras europeias

    pode ajuizar-se pela traduo inglesa que, logo no ano que se segue sua publicao, em

    27Sebastio Tavares de Pinho, Turcos, rabes e Descobrimentos na voz do VirglioCristo: comentrio a um poema de Baptista Mantuano, in Actas do CongressoInternacional Bartolomeu Dias e a sua poca, vol. IV, Porto, 1989, p. 135-163.

    28Jean Delumeau,Mil anos de felicidade. Uma histria do paraso,trad. port., Lisboa,1997 (ed. original, Paris, 1995), cap. X: O milenarismo portugus, p. 217-236; 491-493.

    29Obras de Gil Vicente. Direco cientfica de Jos Cames. 2 vols., Lisboa, Centrode Estudos de Teatro - Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002: fala da Fama em dilogocom o Italiano, vol. II, p. 194.

    30Ibidem, p. 187.

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    1533, surgiu nos prelos londrinos, da autoria de John More, o filho de Thomas More, ainda

    vivo. O Humanista viria a morrer dois anos depois, em 1535, s mos de Henrique VIII,

    obedecendo ao seu rei, sem trair o seu Deus.

    Na dcada de trinta do sculo XVI, Damio de Gis e seu amigo Andr de Resende,

    logo seguidos de Diogo de Teive, so os primeiros a empenharem-se em divulgar naEuropa, em monografias, em latim, os feitos lusos no Oriente31.

    Os seis opsculos latinos goisianos podem agrupar-se em dilogias, de acordo com os

    diferentes ncleos temticos: a Etipia, os cercos de Diu, a Hispnia e Lisboa.

    Impe-se uma anlise dos referentes ideolgicos destas obras para se perceber o

    horizonte de perguntas e de expectativas que estiveram na gnese da obra Vrbis Olisiponis

    descriptio.

    A Legatio Presbyteri Ioannis de 1532 e a Fides, religio moresque Aethiopum de

    154032 tm por tema central o reino do Prestes Joo, que desde o sculo XII atrai a

    imaginao da Europa, no seu af cruzadstico, e os portugueses buscavam, desde o Sculo

    XV, desde os descobrimentos empreendidos pelo Infante D. Henrique33

    31 Vide Andr de Resende, Epitome rerum gestarum in India a Lusitanis, annoMDXXX (Lovaina, 1531), que narra os feitos de D. Nuno da Cunha, na ndia. Oprovidencialismo histrico, tpico da nossa literatura de Quinhentos, acentua-se no relatoque faz da vitria lusa, apesar da desproporo enorme de foras, sobre os Rumes orientais,da famlia dos Turcos, detentores do imprio otomano, que ameaam a identidade cristeuropeia, a partir da ilha de Rodes. Neste Epitome, sobressai ainda, no admirador deErasmo o humanista do irenismo radical de Querela Pacis , o seu conceito deexpanso ultramarina como meio privilegiado de realizar o esprito de misso.

    Os feitos dos portugueses, no cerco de Diu de 1546, so exaltados por Diogo de Teive,no opsculo Commentarius de rebus in India apud Dium gestis anno salutis nostraeMDXLVIe por Damio de Gis, noDe bello Cambaico Vltimo commentarii tres. Vide Nairde Nazar Castro Soares, Tragdia do Prncipe Joo de Diogo de Teive. Introduo, texto,verso e notas. Lisboa, 21999, p. 27 sqq.; Lus de Sousa Rebelo, Damio de Gis, Diogode Teive e os arbitristas do sculo XVI, in Humanisno Portugus na poca dosDescobrimentos cit., p. 204-216, maxime 206-210. Sobre a expanso portuguesa sonotveis os trabalhos de Lus de Matos,L'expansion portugaise dans la littrature latine dela Renaissance, Lisboa, 1991; Idem, L'expansion portugaise dans la littrature latine de laRenaissance, inL'Humanisme Portugais et l'Europe cit., p. 397 - 417.

    32 Damianus a Goes Lusitanus, Fides, religio moresque Aethiopum sub imperio PretiosiIoannis [...]. Louanii, ex officina Rutgeri Rescij, An. M. D. XL, Men. Sep. Para o ttulocompleto daLegatio, cf. supra n. 6;

    33Sobre a aura mtica do Preste Joo e as relaes Portugal-Etipia, por alturas dosescritos de Gis, vide Lus de Matos, L'expansion portugaise dans la littrature latine de laRenaissance, in L'Humanisme Portugais et l'Europe cit., p. 414-416; Lus Filipe R.

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    A primeira obra relata a embaixada, presidida pelo delegado Mateus, que a corte

    etope envia a Goa, onde teve uma magnfica recepo de Afonso de Albuquerque, que

    logo apronta a sua partida para Lisboa, onde aporta em 1514.

    A Fides um texto explanativo mais completo do que a Legatio sobre a crena dos

    abexins, que descreve em pormenor as relaes luso-etopes e as conversaes mantidascom Zagazabo, que veio na embaixada de 1527. Damio de Gis regista todos os

    pormenores sobre os interrogatrios a que as comisses eclesisticas sujeitam este

    embaixador sobre ritos e prticas religiosas, que no encontram fundamento no cristianismo

    tradicional e aproximam os abexins do judasmo, tais como a circunciso e o baptismo duas

    vezes ao ano.

    Com mgoa e ressentimento, Gis assiste proibio da venda da sua obra, que fora

    acolhida com entusiasmo no estrangeiro. Reclama em duas cartas que dirige ao Cardeal D.

    Henrique de quem recebe outras duas de justificaes.34

    O sentimento de oecumenitas e a largueza de horizontes de Gis manifestam-se na

    carta nuncupatria da Fides,que dirige a Paulo III, solicitando-lhe que apoie esta parcela

    to distante e desgarrada do rebanho de Cristo considerando-a catlica nas suas

    pretenses de ajuda espiritual e humana. Valeria a Gis esta tolerncia, este sentido

    ecumnico de ultrapassar diferenas rituais e de costumes para unir os homens dentro

    do mesmo credo, o desfavor, seno a m vontade, confessa-o o Cardeal D. Henrique, dos

    inquisidores Diogo Ortiz de Vilhegas e Pedro Margalho, designadamente este ltimo,

    telogo parisiense que, com Diogo de Gouveia o Velho, estivera na Assembleia de

    Valladolid que condenara Erasmo35.Esta tolerncia religiosa que era praticada na Utopiade Thomas More, este sonho de

    reunir, sob a bandeira de Cristo, todos os povos em concrdia universal a lembrar o De

    Thomaz, L'ide impriale manuline, inLa dcouverte, le Portugal et l'Europe (Actes deColloque, Paris - Mai 1990), Paris - F. C. Gulbenkian, 1990, p. 35-103, maxime p. 60.

    34 Vide sobre este assunto a carta de Gis, dirigida ao Papa Paulo III, e respectivocomentrio, de Amadeu Torres,Noese e crise I, cit., p. 324-326 e nota 99, p. 329; Idem,Damio de Gis e o Erasmismo - abordagem nova de uma velha questo, RevistaPortuguesa de Filosofia 37. 1. 2 (1981) 57-105, maxime, p. 80-82.

    35Se conhecida a afirmao de Diogo de Gouveia o Velho de que Erasmo chocou osovos e Lutero tirou os pintos, foi sobretudo a figura influente no mundo poltico e religiosoda corte de ento, o telogo parisiense Pedro Margalho que se pronunciara sobre osinfideles moresdos Etopes, no incio do seu Phisices compendium, publicado em 1520, emSalamanca, em cuja universidade foi professor de 1517-1529 que mais se ter oposto divulgao da obra de Gis, que proclamava ao mundo a religiosidade crist dos Etopes.

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    orbis Terrae concordia de Guillaume Postel36 leva-nos a perspectivar a cidade ideal de

    Gis, a cidade arquetpica dos homens, que ressalta a cada passo do seu dramtico processo

    na Inquisio.

    E no servira ele tambm os ideais ecumnicos da Igreja de Roma, de Paulo III, que

    pensara trazer Melanchthon, o educador da Germania que se alheara da tese defendidapor Lutero emDe seruo arbitrio ao seio da ortodoxia?37

    36 maneira de Erasmo, e dos erasmistas que defendem um regresso s fontes,Guillaume Postel tenta provar filosoficamente a unidade dos cristos, como o fizeramNicolau de Cusa e os humanistas italianos e exprime na sua obra a ideia subjacente aomovimento conciliar para a reunificao das confisses. E vai mais longe, procurandoencontrar o denominador comum a todas as religies do mundo, assente no direito natural ena religio natural, na sua obraDe religione et iure in toto orbe communi. Vide K. Garber,L'humanisme europen et l'utopie pacifiste: essai de reconstitution historique, in Actes duColloque International rasme (Tours, 1986). tudes runis par J. Chomarat, A. Godin etJ.- C. Margolin. Genve, 1990, p. 393-425, maxime p. 413-415.

    37A obra de Joseph Leclerc S. J. , Histoire de la tolrance au sicle de la rforme, 2vols., Paris, 1955/1965, comea por um impressionante captulo sobre a gnese da ideialaica de tolerncia em Frana. A penetrao do protestantismo, primeiro, e em seguida docalvinismo, que envolve particularmente a alta nobreza, no tarda a trazer consigo umcortejo de perseguies e condenaes que constituem, a partir dos anos sessenta, umpreldio guerra civil. A par de uma srie de escritos polticos que procuram a integraoda nova confisso no estado, afirma-se e ganha fora a ideia da realizao de um conclioque vivifique imediatamente uma cooperao entre a Frana e a Alemanha, graas emparticular a Sturm, Bucer e sobretudo a Melanchthon.

    O Papa Paulo III, que pretendia fazer Erasmo cardeal, o que este recusou, eleva a estadignidade eclesistica prelados humanistas, de esprito erasmista, sobretudo do Grupo doOratrio do Amor Divino, Bembo, Sadoleto, Contarini, Reginaldo Pole. Este Colgiocardinalcio compe um texto sobre a reforma da igreja, o Consilium de emendandaEcclesia que, aceite pelo Papa, mereceu ser publicado no ano seguinte, em 1538. AReginaldo Pole se deve ainda uma obra dirigida ao seu rei, Henrique VIII, intitulada,segundo o ms. que se encontra na Biblioteca de S. Marcos, em Veneza, Cardinalis Poli Deauctoritate romani pontificis aduersus anglicanam ecclesiam, que foi editada com o ttulopor que conhecida actualmente, Pro ecclesiasticae unitatis defensione (vide ReginaldPole, Dfense de l'unit de l'glise (en quatre livres). Texte traduit, prsent et annot parNolle-Marie Egretier. Paris, 1967).

    A importncia de Damio de Gis, como elo de ligao com os luteranos edesignadamente com Melanchthon, com quem estabelecera relaes desde os primeirosanos da dcada de trinta, foi sentida pela igreja de Roma. So disso prova as cartas queJacopo Sadoleto dirige ao nosso humanista, que Gis inclui, nos Opuscula aliquot.Infelizmente, o encontro entre os dissidentes da Igreja de Roma e a ortodoxia no severificou e tomaram grandes propores, na Europa, as guerras de religio que rasgaram aTnica de Cristo, definitivamente, ou at aos dias de hoje e dizemo-lo com esperana noesprito ecumnico do Conclio Vaticano II.

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    Mudados os tempos e as circunstncias, resta a Gis a experincia amarga de viver e

    acabar os seus dias em confrangedoraDystopia.

    Prolongamento da dimenso espiritual que se colhe dos dois opsculos que Gis

    dedica s terras do Preste Joo a Deploratio Lappianae gentis,um apelo solidariedade

    para com os povos da Lapnia, cristmente espezinhados, privado de bens humanos edivinos, por usura e indiferena dos poderosos. Nesta expresso de entre-ajuda humana, de

    filantropia, assenta um dos pilares slidos da cidade moreana.

    E essa cidade, de parte alguma, a Nusquama, existia afirmava-o, no livro II da

    Utopia o portugus Raphael Hythlodeu, porque eu vivi l.38

    Plato, no entanto, no mais extenso dos seus dilogos, a Repblica que Thomas

    More assimila Cidade de Deusde Santo Agostinho para construir o seu mundo ideal

    confessa que a sua repblica no existe, no do mundo do real, uma vez que no se situa

    em parte alguma da Terra, pelo menos como ele a imagina. Mas no cu existe talvez um

    modelo dela.39

    Como que uma nova dilogia surge com outros dois opsculos latinos goisianos que

    tm por tema os cercos de Diu de 1538 e de 1546. Os Commentarii rerum gestarum in

    India 1538 citra Gangem, sados a lume em Lovaina em 1539 com dedicatria ao cardeal

    Bembo, narram o primeiro cerco de Diu.40O De bello cambaico ultimo commentarii tres

    tem por destinatrio o Infante D. Lus, o heri de Tunes, e trata do Segundo cerco de Diu

    de 1546, sendo a sua edio de Lovaina de 1549. Estas obras tiveram a maior recepo no

    ambiente europeu e delas foram logo feitas tradues em lnguas vulgares.

    38Vide De urbibus, ac nominatim de Amauroto Raphael Hythlodaeus: [...] neculla mihi notior, ut in qua annos quinque perpetuo uixerim. Cf. Andr Prvost, L'Utopiede Thomas More. Prsentation, texte original, apparat critique, exgse, traduction et notes.Prface de Maurice Schumann, Paris, 1978, p. 74 (p. 456-457)

    39Plato, a terminar o livro IX da Repblica(592a-b), afirma, pela boca de Glucon,que a sua repblica utpica, pois est fundada s em palavras, no se encontra emparte alguma da terra, ao que Scrates objecta: mas talvez haja um modelo no cu, paraquem quiser comtempl-la e, contemplando-a, fundar uma s para si mesmo. De resto,nada importa que a cidade exista em qualquer lugar, ou venha a existir, porquanto pelassuas normas, e pelas de mais nenhuma outra, que ele [o filsofo] pautar o seucomportamentoCf. Plato,A repblica.Introduo, traduo e notas de Maria Helena daRocha Pereira, Lisboa, F. C. Gulbenkian,81996, p. 450.

    40De interesse referir a carta que o mestre de Gis, Lazzaro Bonamici, lhe enviou dePdua, datada de 29 de Agosto de 1539, em que lhe agradecia a oferta dos seusCommentariie o exortava a continuar a escrever sobre a histria ptria, pois nada poderiailustrar mais os tempos modernos do que a imprensa e a descoberta do novo mundo. Cf.Amadeu Torres,Noese e criseI, cit., p. 157.

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    A escrita da Histria tem j, nestes opsculos, a sua concretizao, embora se trate de

    relatos de aces concretas. O prprio Gis, na dedicatria do De bello cambaico, deixa

    perceber a vontade de escrever a Histria dos feitos dos portugueses no Oriente, apesar de a

    grandeza da matria exigir qualidades de pico.

    Confessa o Humanista, na Vrbis Olisiponis descriptio, onde reflecte sobre o ofcio dehistoriador que, longamente instado, por frequentes cartas de homens doutos, a trazer a

    pblico uma Histria dos feitos das ndias e entre eles Joo Rodrigues S de Meneses,

    em 1541 , desisti do que havia comeado, pois carecia daquilo que sumamente se

    requer para escrever histria.41

    Se no redigiu Gis a Histria de Portugal, em Latim o lugar de cronista foi dado a

    D. Antnio Pinheiro, sendo Gis designado apenas Guarda-Mor da Torre do Tombo42

    foi-lhe encomendada a Crnica do Felicsssimo Rei D. Manuel,com quem desde menino

    convivera na corte, que mereceu ser o texto em que se baseou D. Jernimo Osrio em De

    rebus Emmanuelis gestis (1571), que divulgou o nome de Portugal e os seus feitos, a nvel

    planetrio.

    naturalidade expressiva e ao colorido de pormenores pitorescos, narrados nos

    opsculos de Gis sobre o primeiro e o segundo cercos de Diu, a que no alheio o tom

    pico e o orgulho ptrio, subjaz uma preocupao grande de verdade histrica, traduzida na

    valorizao do inimigo e na racionalidade na interpretao dos factos, sobretudo na

    narrao do Segundo cerco de Diu, tambm tratado por Diogo de Teive 43.

    Merecem-nos estas narraes uma reflexo que se prende com a mensagem que Gis

    quer transmitir aos seus leitores internacionais, nestes opsculos: o ideal de potentia, depoder militar da sua nao, necessariamente apoiado numa bem fornecida mquina de

    guerra que a descrio de Lisboa, na sua ekphrasis, concretiza figurativamente, em

    monumentos, como a Torre de Belm com seus canhes apontados, guardies do mar, com

    41 Damio de Gis, Elogio da cidade de Lisboa cit., p. 78-79. E explicita:Efectivamente, a quem pretende escrever uma histria isenta e desembaraada h que destinar,em primeiro lugar, tempo livre e desimpedido; depois, sossego de esprito e libertao de todos os encargos;

    enfim, o favor dos altos Prncipes, de forma a que a diligncia e o trabalho sejam estimulados por recompensade aplicao..42 Regressando Gis a Portugal em 1545, em 1548 ficam vagos os lugares de

    Cronista e de Guarda-Mor da Torre de Tombo, ocupados por Ferno de Pina, preso pelaInquisio por heterodoxia religiosa. No entanto, o lugar de Cronista foi dado a D. AntnioPinheiro como j fora, em 1533, o de mestre do Prncipe D. Joo, prometido a Gis,motivo que o fizera regressar a Portugal. Gis foi designado Guarda-Mor da Torre deTombo, em 1548, a ttulo interino, e em 1550, com nomeao definitiva.

    43Cf. supra n. 31.

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    o edifcio do Arsenal, com as artes e ofcios que se prendem com o fabrico e a reserva de

    materiais blicos.

    Mas a expresso da potentia une-se nobilitas , as duas rdeas que segura o

    governante ideal, na conduo dos destinos colectivos como as representa Drer, no

    carro triunfal de Maximiliano I44

    , porquanto Gis pe o acento na pietas, na dilataoda F, no aumento e consolidao da respublica christianae no na ganncia do lucro.

    D assim resposta, em nome do seu rei, da sua nao, ao mundo da humanitas, a

    Paulo Jvio que apontava o dedo, tal como Erasmo, ao monoplio mercantil dos

    portugueses.45 Gis, com racionalidade, justificava os lucros como paga do esforo, do

    trabalho, dos muitos dinheiros dispendidos, em to grande empresa.

    E de novo outra unidade temtica, nos opsculos latinos de Gis, que se prende com a

    magnificentia e a liberalitas do rei, apoiadas ambas nos recursos naturais da terra, na

    organizao e administao do comrcio, das artes e ofcios, que caracterizam uma cidade

    do Renascimento, deslumbrante, no seu cosmolitismo e riqueza, representativa de toda a

    nao.

    A Sebastio Mnster que fala na sua Geographia Vniversalis (Basileia, 1540) da

    penria da terra e rudeza das gentes de Portugal, tendo por fonte Miguel Servet46 d

    44Vide Nair de Nazar Castro Soares, O prncipe ideal no sculo XVI e a obra de D.Jernimo Osrio, Coimbra, 1994, p. 192-197.

    45Paulo Jvio, num texto de 1525, inserto no Nouus orbis (Basileia, 1532) de SimoGrineu ataca a poltica portuguesa das especiarias, os altos preos e a sua falta dequalidade. Damio de Gis contesta as afirmaes de Paulo Jvio, no final dos seusCommentarii rerum gestarum in India 1538 citra Gangem(1539). Publica de novo esta suacontestao nos Opuscula (1544), com o ttulo De rebus et imperio Lusitanorum adPaulum Iouium Damiani Goes disceptatiuncula. Tambm Diogo Pires ir contestar aomisso de nomes ilustres dos portugueses, nosElogia do Bispo italiano.

    46A Geographia de Ptolomeu, conhecida no final do sculo XIV pela traduo quedela fizera para latim Manuel Crisolaras e que, juntamente com a Bblia, foi um dosprimeiros livros impressos, foi objecto de diversos comentrios no Renascimento queincluam informaes sobre os portugueses e suas navegaes. O cosmgrafo portugusPedro Nunes inclui o I livro da Geographia de Ptolomeu no seu Tratado da Sphera. Ogosto pela geografia, primeira auxiliar da histria, partilhado por muitos humanistas ehomens de letras e, entre eles por Joo de Barros, autor de um tratado de Geografia, hojedesaparecido.

    O Comentrio obra ptolomaica do navarro Miguel Servet (Villanovanus), ClaudiiPtolemaei geographicae enarrationis libri octo (1535) deu origem s crticas de SebastioMnster, que Gis se preocupou em rebater. Sobre a importncia do conhecimento geogrfico dos

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    resposta a sua obra, com o nome falante, Hispania, siue de ubertate eius et potentia,

    aduersus Sebastiani Munsteri calumnias, publicada em Lovaina no ano de 1542, e

    reeditada nos Opuscula, em 1544. Damio de Gis descreve com entusiasmo a fartura de

    vveres e a riqueza e variedade das mercadorias chegadas da frica, do Brasil, da ndia, do

    Cataio e ainda de Castela.Hispaniase pode assim associar o elogio da cidade de Lisboa, a Vrbs Olisiponis

    descriptio, cujos monumentos e edifcios representam, figurativamente, a ubertas, a

    potentia indispensveis munificentia, magnificentia rgias.

    O prprio Gis faz a associao destes seus escritos, ao terminar o seu elogio da

    cidade de Lisboa, nestes termos: Sobre as inmeras coisas exticas que por toda a roda do

    ano so trazidas a esta nossa cidade e a so descarregadas procedentes dos nossos

    domnios da ndia, Prsia, Arbia, Etipia, Brasil, frica, j tratmos bastante

    desenvolvidamente num opsculo que publicmos sobre a fertilidade e opulncia da

    Hispnia, pelo que, deliberadamente, no quisemos fazer aqui meno em pormenor. Se

    algum eventualmente desejar deveras conhec-las, procure esse livro e depois leia-o.47

    Numa palavra, agrupadas em trs dilogias, as obras latinas goisianas sobre a Etipia,

    sobre Diu e sobre a Hispnia e Lisboa, como que se complementam na inteno ltima de

    fazer ver ao mundo a grandeza de um pas e de um povo, a sua vocao ultramarina, a

    dimenso de um imprio universal que uma f inabalvel sustenta.

    Estes so tambm os referentes ideolgicos, polticos, culturais e religiosos queinformam a Vrbis Olisiponis descriptio.

    Debrucemo-nos agora, mais especificamente, sobre esta obra.

    Se no h no Renascimento uma filosofia definidora da sensibilidade colectiva,

    muitas so as correntes que se interpenetram e se afirmam, em perfeita simbiose com os

    princpios da doutrina crist, e influem na construo da cidade dos homens: quer ela seja

    arquetpica e utpica, modelada em termos platnicos, quer se defina pela perfeita

    organizao e racionalidade, privilegiando o princpio da mestesaristotlica, quer, enfim,

    seja lugar de harmonia, concrdia e tolerncia, ditadas pela ataraxia do neo-estoicismo.48

    antigos e seu aproveitamento pelos autores do sculo XVI e por Damio de Gis, na Vrbis Olisiponisdescriptio, vejam-se os ricos comentrios de Aires do Nascimento sua edio desta obra.

    47 Damio de Gis,Elogio da cidade de Liboa cit., p. 188-189.48Se o platonismo conduz utopia e o aristotelismo cidade racional, bem organizada

    do Renascimento, o neo-estoicismo contribui para uma privatizao da verdade religiosa eda verdade moral, e para impor como denominador comum e substituto secular de todas

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    A Vrbis Olisiponis descriptio um elogio, uma descrio panegrica da cidade de

    Lisboa. Sem deixar de participar do pensamento utpico, divulgado pelo gnio criador de

    Thomas More, naquilo que ele tem de iluminante e universal sobre o modelo poltico-social

    de governao e sobre a conduta do homem concreto do seu tempo,49 esta obra de Gis

    integra-se, na sua racionalidade, dentro das coordenadas da cidade ideal doRenascimento, como a construram um Girolamo Vida ou um Giovanni Botero50e diversos

    outros autores que contriburam para a consagrar definitivamente.

    No raras vezes o governo das repblicas italianas, designadamente Veneza, se

    tornou referente e modelo de cidades ideais,51servindo o debate ideolgico sobre a melhor

    as confisses o estado, a nao que, na sua unidade, encarna o prprio soberano, comoacontece em Frana com os monarcmacos.

    49 Vide, sobre o alcance da obra de Thomas More no sculo XVI, Miguel BaptistaPereira, Utopia e apocalptica nos caminhos da existncia, in Europa - Utopia/ Europa -Realidade , Estudos do Sculo XX, n2 (2002) 11-59, maxime, p. 14 sqq.; Cf. ainda PaulRicoeur,Ideologia e utopia(trad. port.), Lisboa, 1991, p. 86 sqq.

    50 Girolamo Vida, autor que o seu tratado De arte poetica libri III (1531) tornaclebre, publica, com dedicatria a Reginaldo Pole, a sua obra De dignitate rei publicae seuciuilis societatis, em 1555; e Giovanni Botero, o jesuta que ficou conhecido pela sua Dellaragion di stato, tambm autor de uma outra obra significativa para a definio da cidadeideal do Renascimento, Delle cause della grandezza e magnificenza delle citt (1588).Nesta obra, analisa as causas que levam os homens a viver em sociedade e as quecontribuem para a grandeza urbana, tais como a comodidade do stio, a fertilidade da terra ea facilidade de transportes. Refecte sobre as causas da grandeza de Roma e lembra aliberdade e o privilgio da cidadania e por fim fala da construo de uma cidade e suamagnificncia. Vide Luigi Firpo, L'utopia nell'et della Controriforma, Torino, 1977;Helen Rosenau, The ideal city, its architectural evolution,New York, 1983; Evelio MorenoChumillas,Las ciudades ideales del siglo XVI. Introduccin y traduccin. Barcelona, 1991(esta obra inclui cidades ideais da segunda metade do Cinquecento, dos seguintes autores:Anton Francesco Doni, Francesco Patrizi da Cherso, Francesco Pucci, Ludovico Agostinide Pesaro, Ludovico Zccolo).

    51 significativo o nmero de obras, e de cidades ideais, que se inspiram nasmodernas repblicas italianas. Esto neste caso os tratados de: Gasparo Contarini, Demagistratibus et republica Venetorum (1543); Francesco Patrizzi da Cherso,La citt felice(Venezia, 1553)e, provavelmente da sua autoria, uma traduo italiana annoma de umarecolha de fbulas, composta originariamente na ndia, mas traduzida do grego, Delgoverno de' Regni; Ubertto Foglieta,Della repubblica di Genova (1559); Donato Giannotti,Della republica de' Viniziani; Paolo Paruta, Della perfezione della vita poltica; e vriosoutros autores, tais como Carlo Sigonio, Giovanni Maria Memmo, Bartolomeo Cavalcanti.Cf. Nair de Nazar Castro Soares, O prncipe ideal no sculo XVI cit., p. 128-132.

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    forma de constituio, se a monarquia, se a repblica, como acontece no De regis

    institutione et disciplinade D. Jernimo Osrio (1572).52

    A cidade ideal do Renascimento uma construo racional, na sua organizao scio-

    econmica, na sua esttica arquitectnica. Est organizada em diferentes classes sociais,

    com ricos e pobres, tem sistemas econmicos regidos pela existncia da propriedade, faz dopatrimnio em geral e do dinheiro em particular a base da organizao poltica e

    econmica.53 Valoriza a diviso e especializao do trabalho, dignifica ao mximo a

    actividade mercantil, que chega ao ponto de se tornar paradigma do prprio estado.

    Organiza o sistema sanitrio e a prtica da medicina, ajuda os necessitados, programa e

    incentiva a educao, tornando-se verdadeira obra prima de engenharia e arquitectura

    social, na resposta utilitase commoditas. No que toca grandeza e magnificncia de

    edifcios e monumentos, a cidade ideal reflecte, no seu aggiornamento, os padres da

    esttica clssica de que Vitrvio referncia privilegiada e, no sculo XV, Leon Battista

    Alberti se faz primeiro intrprete54.

    Construda dentro destas coordenadas est a Lisboa quinhentista, das Descobertas,

    que Gis descreve com o habitual duplo enfoque, poltico-econmico e religioso, desde os

    primrdios da Expanso Viagem do Gama a aco poltica e religiosa do Infante

    Navegador serviria tambm de abertura ao tema central da sua Fides sem deixar de

    aludir s suas origens mticas, ao fundador Ulisses, aos elementos do maravilhoso, aos

    gostos da poca, existncia de Trites, Nereidas e Sereias, que envolvem a cidade, num

    manto difano de fantasia. Uma concesso de Gis com vista atraco de estrangeiros!

    Mas Lisboa uma cidade bem real, confluncia e sede jurisdicional do mundo portugus,que vai merecer da pena de Gis, no gnero demonstrativo, epidctico, to representativo no

    Portugal do sculo XVI segundo os moldes retricos em vigor, desde a Antiguidade ao

    52VideDe regis institutione et disciplina, in H. Osorii, Opera omnia, Romae, 1592: I,336. 32-37. Cf. Nair de Nazar Castro Soares, O prncipe ideal no sculo XVI cit., p. 392-393.

    53 N. Maquiavel, em Discorsi sopra la prima deca de Tito Livio, livro II, cap. X,afirma que o dinheiro, longe de ser o nervo da guerra, pois so necessrias armi fedeli depreferncia a tropas mercenrias, o nervo da paz. A lio do Florentino foi seguida nosculo XVI.

    54No que toca grandeza e magnificncia, a cidade ideal reflecte o pensamento doautor clssico latino Vitrvio, em De architectura, dedicado a Augusto em 27 a. C. Arecepo desta obra notvel, desde o Quattrocento italiano, em autores como LeonBattista Alberti (1404-1472), em De re aedificatoria, que constitui o maior tratado depoltica e moral do seu autor, com importncia fulcral na histria das ideias doRenascimento, no que se refere edificao, organizao e administrao de cidades eestados.

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    Numa sociedade em que o dinheiro e a sua mobilidade fazem afluir a riqueza s mos

    de alguns privilegiados, os moralistas consideram a liberalidade um dever e uma virtude,

    designada por magnanimidade, assimilada magnificncia. esta uma forma de fazer valer

    a justia distributiva, ou melhor, um meio de restituir comunidade, sob a forma de

    edifcios pblicos ou religiosos, de fundaes caritativas ou educativas, os bensindispensveis ao bem comum, finalidade ltima do estado.62 A grandiosidade e

    sumptuosidade destas obras so o reflexo da magnanimidade do governante, do princeps,

    indispensvel sua fama, perante nacionais e estrangeiros. E estes esto, no s implcita

    mas explicitamente, entre o pblico destinatrio, quando Gis confessa a inteno de

    tornar manifesta aos estrangeiros a opulncia da cidade.63

    Palavras latinas recorrentes, na descrio dos monumentos de Lisboa, so as que

    significam beleza, magnificncia, riqueza, sumptuosidade, investimentos

    incalculveis.64

    Nos tratados humanistas desta poca, mais do que as virtudes polticas do prncipe,

    so apresentadas as suas virtudes morais, civis e humanas: a magnificentia, a honor, a

    dignitas, a gloria so as rodas do Carro tiunfal de Maximiliano I, desenhado por Drer,

    expresso do ideal doprincipe umanizzato.65

    poltica em Portugal, e dos mais representativos a nvel europeu, dada a importncia eprojeco internacional do Bispo de Silves, na Europa de ento. Neste tratado, que reflectea mundividncia da poca, a imagem do rei architectusserve a Osrio para exprimir a suaconcepo de iudex ingenii, que superintende estrutura e organizao da cidade; o ofciode rei, o regis officium, abarca todos os domnios da actividade humana, que esto sujeitos sua superintendncia, virtude, moderao, exemplo. Cf. Nazar de Nazar Castro Soares, Oprncipe ideal no sculo XVIcit., p. 404 sqq.

    62 Vide Aristteles, tica a Nicmaco 1122-1123a e S. Toms de Aquino, SummaTheol. 2a, 2ae, Q. CXXXIV, a. 1-4.

    63 Damio de Gis,Elogio da cidade de Lisboacit., p. 168-169.64Cf. as diversas descries de monumentos, in Damio de Gis, Elogio da cidade de

    Lisboacit., p. 132-133 (Capela de Santo Antnio: admirabili structura, et mira elegantiaelaboratum); p. 138-139 (Mosteiro dos Jernimos: incredibili sumptu ac magnificentiaconstructum); p. 140-141 (Pao Velho, A Santos: amplissima, magnificoque operepulcherrima); 144-145 (Mosteiro de S. Vicente: ditissimo caenobio Vicentio); 148-149 (ocentro da cidade: urbis amplitudo et magnificentia tanta); p. 166-167 (Casa da NovaAlfndega: magnificentiam, et operis pulchritudinem); p. 168-169 (Lisboa: urbis opulentia)etc.

    65Sobre a importncia destas virtudes na definio do prncipe ideal, na tratadsticaportuguesa do sculo XVI, e designadamente no De regis institutione et disciplina (1572)de D. Jernimo Osrio, vide Nair de Nazar Castro Soares, O prncipe ideal no sculo XVIcit., p. 274 e sqq.

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    At na Utopia de Thomas More, Rafael Hythodeu descreve com admirao a

    sumptuosidade dos edifcios, das pontes, das cidades, dos templos e mostra que a

    magnificncia podia ser colectiva.

    esta Lisboa e Gis inclui os seus arredores, Sintra-Colares, do lado do mar,

    Barreiro, Alenquer, sua terra natal, Santarm, subindo o percurso do Tejo a cidade doimprio lusitano que, na sua imponncia arquitectnica, na sua riqueza e abundncia,66

    traduzia todas as virtudes do rei, do governante zeloso da felicidade pblica.

    O pendor pela descrio de cidades e o gosto pela geografia, o principal auxiliar da

    histria comum a Joo de Barros, feitor que foi da Casa da ndia, hum dos maores

    amigos que eu tive nestes Reynos67 manifesta-o Gis nos seus escritos histricos

    latinos e nas suas crnicas.

    A descriao de Goa surge na pena de Gis, na Legatio, opulentissima e

    abundantssima, dotada de escolas, onde os professores ensinavam as lnguas latina e

    portuguesa.68As cidades de Ormuz e de Malaca descreve-as, na Chronica do felicssimo rei

    Dom Manuel, seguindo a enunciao dos motivos adequados s laudes urbium.69No se

    esquece de pr em relevo o stio, as casas de habitao e os monumentos, as gentes e

    sobretudo, no que se refere s formas de vida dos habitantes, as actividades ldicas e

    culturais, as festas, com acuidade especial para a msica, como fizera no Elogio da cidade

    de Lisboa.

    Por vezes, a descrio de uma cidade sugere-lhe outra que apresentada como termo

    de comparao, como o caso de Ormuz que lhe lembra Veneza.

    66 A descrio da riqueza e da abundncia de Lisboa no isenta de crtica social.Damio de Gis, no resiste a levantar um pouco o vu a uma situao que considera injusta.Vide, Damio de Gis, Elogio da cidade de Lisboacit., p. 168-169. So estes os termos em quefala das canastras do peixe alugadas todos os anos pelas autoridades aos pescadores poruns dois mil ducados. Sobre tal assunto sinto-me indeciso e perplexo por no saber se devocongratular-me com a cidade por aumentar o rendimento ou se devo reprovar um tipo tosub-reptcio de tirania como este; no tocaria aqui em tal matria se no fosse para tornarmanifesta aos estrangeiros a opulncia da cidade.

    Admirvel o carcter vertical do homem Damio de Gis, que no vacila em apontar odedo, quando a sua conscincia lho pede, mesmo que no seja politicamente correcto tal atitude perante a vida o levou condenao pela na Inquisio, onde no nega asacusaes, explica-as, integra-as no seu contexto, e na circunstncia prpria.

    67Vide O processo na Inquisio, inInditos Goesianospor Guilherme J. C. Henriques, vol. II cit., p.121.Sobre a importncia da geografia, nesta poca, cf. supra n. 46.

    68videLegatio Magni Indorum Imperatoris (...)., Antuerpiae, M.D.XXXII, C 2v-3r.69Damio de Gis, Crnica do felicssimo D. Manuel, 2 vols., Coimbra, 1949 e 1954:

    II, 197-108; III, 3-4.

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    Mas Lisboa a cidade, smbolo e expresso do imprio, da realidade concreta do pas

    que o rei personifica.70

    Muitos foram os autores, em prosa e em verso, que se ocuparam do elogio de Lisboa.Entre eles, os dois grandes amigos, Andr de Resende e Damio de Gis.

    Em prosa, alm de Gis, debruam-se, de forma mais ou menos completa, sobre

    aspectos polticos, scio-econmicos e religiosos de Lisboa, Joo Brando no Tratado da

    majestade, grandeza e abastana da cidade de Lisboa em 1552; Crisvo Rodrigues de

    Oliveira no Sumrio em que brevemente se contm algumas coisas assim eclesisticas

    como seculares que h na cidade de Lisboa.;71e ainda de forma espordica, comparando-a

    a Madrid, Gaspar Barreiros, na sua Chorografia.72

    A descrio de Lisboa figura ainda no Dilogo sobre a misso dos embaixadores

    japoneses Cria romanado jesuta Pe. Duarte de Sande. Este documentrio notvel da

    Europa do sculo XVI, traduzido na ntegra do original latino pelo Prof. Amrico da Costa

    70Vide Irisalva Moita, Lisboa no sculo XVI. A cidade e o ambiente, in O Livro deLisboa, Lisboa, 1994, p. 139-167; Vtor Serro, A cultura artstica no tempo de Damio deGis, 1502-1574: algumas notas para a caracterizao da arte portuguesa de Quinhentos,in Damio de Gis um humanista na Torre do Tombo cit., p. 58-67; Idem, Arepresentao da cidade, imagem da capital do imprio, no tempo de Damio de Gis, inDamio de GisHumanista Portugus na Europa do Renascimento, Lisboa-Biblioteca Nacional, 2002, p. 25-40.

    71Crisvo Rodrigues de Oliveira, Sumrio em que brevemente se contm algumascoisas assim eclesisticas como seculares que h na cidade de Lisboa , Lisboa, GermoGalhardo, 1554: Ed. Jos da Felicidade Alves, Lisboa, 1987; Joo Brando, Tratado damajestade, grandeza e abastana da cidade de Lisboa em 1552 . Ed. Jos da FelicidadeAlves, Lisboa, 1990.

    72 Gaspar Barreiros, Chorographia de alguns lugares que stam em hum caminho, que fezGaspar Barreiros anno de MDXXXXVI comedo na cidade de Badajoz em Castella, t de Milam em Itlia, c alguas outras obras, cujo catalogo vai scripto com os nomes dosdictos lugares, na folha seguinte. Impresso em Coimbra por Jo Aluarez impressor daUniversidade, & por mandado do doctor Lopo de Barros do desembargo d'elrei nossoSenhor, & conego na Se d'Euora. M. D. LXI.

    Ao descrever a cidade de Madrid (p. 53-55v.), no sem se desculpar pode ser queesta minha estima seja mal julgada, fala da cidade de Lisboa (p. 54) e sua superioridadeem relao cidade espanhola, no que se refere ao nmero de habitantes: dizem terLisboa XXX mil vizinhos, sendo Madrid tamanho lugar como a metade de Lisboa.

    Para se fazer uma ideia sobre o crescimento de Lisboa, no decurso dos anos, vide asdiferenas significativas entre o censo rgio de 1527 e os dados colhidos nos diferentesautores que escreveram depois desta data, in Damio de Gis, Elogio da cidade de Lisboa.Vrbis Olisiponis descriptio cit.: Introduo de Ildio do Amaral; e ainda o comentrio aotexto de Aires do Nascimento, p. 148, n.96.

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    Ramalho, dedica todo o captulo XVI ao elogio da cidade de Lisboa, Cabea do reino

    Lusitano, onde se percebe a recepo da obra goisiana, na forma, no contedo e no seu

    significado mais profundo. Nem falta mesmo o elogio dos reis, desde D. Afonso Henriques,

    que Lisboa merecidamente reconhece como seus pais e benfeitores egrgios, cabendo ao

    rei D. Joo II ser caracterizado pelo admirvel vigor e fortaleza de nimo, e no menorprudncia e santidade. Tambm Damio de Gis encarecera, em termos semelhantes, as

    qualidades do Prncipe perfeito, na Chronica do Prncipe Dom Joo III o que lhe viria a

    causar graves dissabores.73

    A obra de Francisco d' Ollanda, Da Fbrica que falece cidade de Lisboa, que se

    conserva em manuscrito, pretende oferecer solues para um maior enriquecimento do seu

    patrimnio, que o autor e avaliador dos objectos d'arte de Gis74 no veria

    realizar.75

    Em verso, Lisboa cantada desde o Cancioneiro Geral. Entre as composies que

    Garcia de Resende inclui na sua Miscelnea, referentes a esta cidade, pode destacar-se a

    Trovade Diogo Velho da Chancelaria, composta em 1516, que aborda o tema da caa que

    se caa em Portugal e contm um elogio hiperblico de D. Manuel, envolvido num

    ambiente de messianismo milenarista. ele muy virtuoso,/ exelente e justioso,/[...] rey

    de etro imperial que sojugou mays por diante/ toda a parte oriental. Lisboa beneficia

    de uma glria superior de cidades famosas como Damasco, Tria, Cairo. a porta

    prinipal onde afluem todas as riquezas, procurada pelos mais diversos povos, at h bem

    pouco, desconhecidos, que sero reunidos sob o signo da cruz, na prosperidade do reino do

    venturoso que nunqua outras jentes/ jamais vyrom mundo tal.76Contam-se ainda entre os poetas que cantaram Lisboa autores como Girolamo

    Britonio, em Vlysbonae regiae Lusitaniae carmen (1546) e Andr de Resende, em

    73Vide Duarte de Sande, S. J., Dilogo sobre a misso dos embaixadores japoneses cria romana. Prefcio, traduo e comentrio de Amrico da Costa Ramalho, Macau,CTMCDP - F. Oriente, 1997, p. 151-168. Cf. passo citado, p. 152.

    O prprio Dilogo refere que Lisboa festejada pelo stio, antiguidade, defesa,densidade populacional, abundncia de meios e amenidade do clima, juntai-lhe, sevos apraz, o que fundamental , pela religio e culto divino (p . 152-153).

    74 Cf. Joaquim de Vasconcelos, Damio de Goes. Sua descendncia em Flandres,Allemanha e Austria, Porto, 1897, p. 16.

    75Francisco d' Ollanda, Da fabrica que falece ha idade de Lysboa...Anno de 1571,manuscrito reproduzido fotograficamente por Jorge Segurado in Francisco d'Ollanda,Lisboa Ed. Excelsior, 1970.

    76Garcia de Resende, Cancioneiro Geral, ed. de A. J. da Costa Pimpo e A. FernandaDias, Coimbra, Instituto de Alta Cultura, 1973, 2 vols: vol. II, p. 247-249. Conhecido opapel das trovas durante os sculos XVI e XVII como acontece neste caso comoexpresso dos sentimentos polticos e religioso-escatolgicos.

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    Genethliacon e em Vincentius leuita et martyr (1545) umas dezenas de versos deste

    poema pico, so transcritos na Orao de Sapincia, proferida na Universidade de Lisboa,

    em 1534.77

    Se Resende, ao elogiar em prosa ciceroniana as litterae humaniores, une o canto da

    grandeza da cidade ao prestgio do saber, em que pe as maiores esperanas, Gis pdeconstatar, vinte anos decorridos, que a Universidade no ganhou grande nome antes de o

    rei Joo III a ter transferido para Coimbra.78No entanto, no seu olhar que percorre Lisboa,

    no deixa de mencionar a Universidade, e implicitamente a sua importncia para a grandeza

    e projeco de um pas. Encontravam-se os Estudos agora em outra cidade, longe do

    bulcio mercantil, no centro do pas, como recomendara o seu amigo Lus Vives ao patrono

    das letras e das artes, D. Joo III, no De tradendis disciplinis, que sara a lume em 1531,

    dedicado ao monarca portugus79

    77 Vide Andr de Resende, Genethliacon principis Lusitani (Bolonha, 1533). Onascimento do prncipe Manuel, quinto filho de D. Joo III, nascido a 1 de Novembro de1531, foi celebrado em Bruxelas pelo embaixador D. Pedro de Mascarenhas que ofereceuum banquete ao Imperador Carlos V, em que Damio de Gis participou. Estasfestividades, que Resende descreveu neste poema, ficaram clebres pela exuberncia eexotismo das iguarias do banquete, pela representao do Jubileu de Amor de GilVicente e pelo cortejo de ninfas e deuses, animais selvagens e monstros marinhos, de

    acordo com o imaginrio da poca, que se prende com a descoberta do novo mundo;Andr de Resende, Vincentius levita et martyr. Reproduction en fac-simil de l'ditionde Lus Rodrigues, Lisbonne, 1545. Introduction par J. Vitorino de Pina Martins. Braga,1981. Tendo por fonte principal a Eneida de Virglio, este poema pico, que revela umamplo conhecimento, a nvel de fontes clssicas e escritursticas, dos autores cristos,designadamente da Patrstica, dos autores modernos, e entre eles Erasmo que nemsempre, por prudncia, figura no ndice de autores poder ter influenciado directamenteCames, em muitos passos d' Os Lusadas (Ibidem, "Introduction I - Des Lusiades auVincentius Levita et Martyr", p. 23-53).

    Na sua orao de 1534 (L. Andreae Resendii Lusitani Oratio pro rostris pronunciatain Olisiponensi Academia Calendis Octobribus MDXXXIIII. Edio moderna: Andr deResende, Orao de sapincia, Traduo de Miguel Pinto de Meneses. Introduo e notasde A. Moreira de S. Lisboa, 1956), notvel a afirmao da antiguidade e nobreza dacidade de Lisboa, associada ao elogio das litterae humaniores, lustre do tempo, em versosmelodiosos, cheios de erudio clssica 52 versos do poema Vicentius leuita et martyr(vv. 150-201), publicado posteriormente, em 1545.

    78Damio de Gis,Elogio da cidade de Lisboacit., p. 144-145.79 Esta obra ir exercer influncia sobre a orientao da reforma de ensino, em

    Portugal, levada a cabo pelo rei D. Joo III. Vide J. S. da Silva Dias, A poltica cultural dapoca de D. Joo III, Coimbra, 1969, p. 582.

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    Ainda em verso latino, Diogo Mendes de Vasconcelos entoa os louvores da cidade de

    vocao ocenica, Lisboa, e a grandeza do Tejo80 que, no dizer de Gis em amplexo

    imenso de mar, abarca a frica e a sia e dita leis e normas por todas as costas do

    Oceano81.

    S de Miranda e Antnio Ferreira, no seu fascnio pelos poetas clssicos, imitaode Horcio e Virglio, contrapem o bulcio, a agitao da grande cidade, e at a sua

    riqueza e exuberncia por vezes com o acinte crtico que o Velho do Restelo

    imortalizara aurea mediocritas, ao viver sem cuidado, ao colher o dia que passa, que o

    campo proporcionava.

    Apesar disso, a imagem das grandezas de Lisboa, da capital do Imprio, de que todos

    os homens de Quinhentos se orgulhavam, perpassa, de forma no indelvel, nas suas

    poesias82.

    Digna de nota a obra potica de Pero de Andrade Caminha, contemporneo de Gis,

    que sponte sua contra ele testemunhou na Inquisio, por descargo de sua consciencia,83

    revelando-se um verdadeiro pao, dos retratados na vasta literatura da poca, de que

    exemplo aEpistola de uita aulica, dedicada por Andr de Resende a Damio de Gis,

    que a inclui na edio dos seus Opuscula aliquot (Lovaina, 1544).

    Pero de Andrade Caminha, na Ode VII, composta por doze sextilhas, que dedica a S

    de Miranda a denunciar o debate ideolgico que a empresa das Descobertas fomenta

    80Vide Obra potica de Diogo Mendes de Vasconcelos. Fixao do texto e traduode J. G. Freire, Coimbra, 1963-1964 (Humanitas 15-16). As embarcaes do Tejo, quetanto impressionaram Damio de Gis, so tambm cantadas por este poeta, no estiloretrico quinhentista (vv. 18-26, p. 86-91): ingentes gerit alueo carinas,/ [...) quae pontodominantur et per undas/ immensi Oceani uagantur, oras/ Eoasque petunt bibuntqueGangem:/ quas et Sol oriens uidet cadensque/ et cum se medio sub axe librat,/ miraturqueparem suis quadrigis/ cursum conficere, ut tibi potentes/ submittant Arabum Indiaequereges: transporta no seu leito grandes navios/ que dominam os mares e vagueiam/ pelasondas do Oceano imenso, chegam/ s praias do Oriente e bebem as guas do Ganges,/navios que o sol no s divisa ao nascer e ao pr-se/ mas tambm quando paira no meio dofirmamento/ e se admira de realizarem percurso semelhante/ ao das suas quadrigas, a fim de submeterem ati/ os poderosos reis da Arbia e da ndia.

    81Damio de Gis,Elogio da cidade de Lisboacit., p. 82-83 e 188-189.82 Maria Helena da Rocha Pereira, Uma descrio potica da Lisboa quinhentista,

    Humanitas 35-36 (1983-1984) 349-357, faz uma anlise das composies destes autores: Sde Miranda (cartas a S e Meneses e Antnio Pereira); Antnio Ferreira (cartas I.10; II. 2;II. 4; II. 9).

    83Vide O processo na Inquisio, inInditos Goesianoscit., p. 45.

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    O texto da cidade estrutura-se a partir de imagens, dos aspectos narrativos que as

    integram e dos padres estticos que as informam. Atravs da retrica do andar, assente

    em duas figuras, a sindoque e o assndeto,87cria-se um texto complexo, com uma

    linguagem, um discurso, um estilo prprios, no espao literrio de todos os tempos.88

    Esta retrica do andar, que Damio de Gis reiteradamente assume,89

    torna-se umaretrica do olhar olhar do patriota e do humanista definidora da Vrbis Olisiponis

    descriptio, do texto da cidade quinhentista, nas suas dimenses simblica, perceptiva e

    semitica, que nos fornece os contornos estticos do Imaginrio para que ainda hoje nos

    transporta.

    O Imaginrio de Lisboa permanece em autores, nacionais e estrangeiros, ao longo daspocas.

    Pode assim falar-se da Lisboa de Gis, da Lisboa de Cesrio e de Ea, da Lisboa

    cinzenta doLivro do desassossegode Fernando Pessoa, da Lisboa cidade branca do fadoe da saudade, da luz mediterrnica dos roteiros tursticos, da Lisboa dos romances deThomas Mann e de Hanns-Josef Ortheil, da Lisboa de Jos Saramago, Jos Cardoso Pires eMrio de Carvalho, da Lisboa da arte cinematogrfica, com a realizao de filmes, como osde Alain Tanner, Dans la ville blanche (1982/1983); de Wim Wenders, Lisbon Story(1995), ao ritmo da banda sonora dos Madredeus e da voz de Teresa Salgueiro; deRoberto Faenza,Afirma Pereira (1996), protagonizado por Marcello Mastroianni; de WolfGaudlitz, Taxi Lisboa (1997), com o subttulo portugus, Uma viagem portuguesa memria de um sonho. Vide, neste particular, Rogrio Paulo Madeira, O Imaginrio deLisboa nos Romances Bekenntnisse des Hochstaplers Felix Krull de Thomas Mann eSchwerenter de Hanns-Josef Ortheil, Coimbra, 2002, Introduo, p. 19-47; Stephen

    Reckert, O signo da cidade, in O Imaginrio da Cidade, Lisboa, 1989, p. 9-3187 A sindoque, que toma a parte pelo todo e o assndeto que faz a escolha do espao,onde o olhar saltita, sem atender a elementos de ligao, conformam a topografia literriado texto da cidade.

    88 Vide Stephen Reckert, Ibidem; Rogrio Paulo Madeira, O Imaginrio de Lisboacit.: 1. 1. Imagem, imaginrio e texto da cidade; 1. 2. Imagologia e intertextualidade erespectiva bibliografia, p. 19-31.

    89Gis passeia-se de um passado mtico a um passado histrico, a um presente glorioso que deles o reflexo e que se concretiza na monumentalidade e magnificncia dos edifcios que descreve. Efaz um persurso pela cidade, pelas colinas e vertentes, a saltitar de lugar em lugar, deedifcio em edifcio, registando pormenores curiosos sobre o comrcio, as artes, osofcios, parando a ver as ruas movimentadas com as mais variadas gentes, o Tejo e oseu esturio, os navios, a azfama do porto, a agitao da cidade. E neste deambularcitadino, a retrica do andar implica a retrica do olhar e ambas se conjugam,porque retricas, na sua finalidade de docere, mouere, delectare.

    No faltam no discurso de Gis expresses de lugar, verbos de movimento, a dar aorientao e a localizao precisa do que quer descrever.Cf e. g.: Quod si [...] persequiuellem (p. 140); non longe discedamus (p. 140);.unde rursus eadem uia in aduersummontem conscenditur (p.140); Mox pari accliuitate collis nascitur (142); Cuius sinistrampartem (p. 142);Ad reliqua igitur urbis ornamenta[...] ueniamus (p. 152) etc.

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