cesário verde

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cesario

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  • O PERCURSO SENTIMENTAL DE CESRIO VERDE

    Biblioteca Breve SRIE LITERATURA

  • ISBN 972 566 - 143 - 5

    DIRECTOR DA PUBLICAO ANTNIO QUADROS

  • SLVIO CASTRO

    O Percurso Sentimental de Cesrio Verde

    ANLISE SEMNTICA DA OBRA POTICA

    MINISTRIO DA EDUCAO

  • Ttulo O percurso Sentimental de Cesrio Verde ___________________________________________ Biblioteca Breve /Volume 114 ___________________________________________ 1. edio 1990 ___________________________________________ Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Ministrio da Educao ___________________________________________ Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Diviso de Publicaes Praa do Prncipe Real, 14-1., 1200 Lisboa Direitos de traduo, reproduo e adaptao, reservados para todos os pases __________________________________________ Tiragem 5000 exemplares ___________________________________________ Coordenao geral Beja Madeira ___________________________________________ Orientao grfica Lus Correia ___________________________________________ Distribuio comercial Livraria Bertrand, SARL Apartado 37, Amadora Portugal __________________________________________ Composio e impresso Grfica Maiadouro Rua Padre Lus Campos, 686 4470 MAIA Maro 1990 Depsito legal n. 34 511/90 ISSN 0871 - 5165

  • NDICE

    Prefcio ............................................................................... 8

    1. Estruturas do percurso sentimental ............................. 11

    2. O Tempo inicial e o sistema da constante romntica .. 15

    2.1 Nascimento do poeta e aco da constante ........ 15

    2.2 A presena da constante...................................... 18

    2.2.1 A tpica essencial: o amor ............................... 19 2.2.2 A tpica de derivao: amor e morte ............. 21 2.2.3 A natureza como recorrncia romntica.......... 23

    2.3 A constante e o sistema formal ........................... 26

    2.3.1 A pluralidade do corpus lexical da constante...................................................... 27

    2.3.2 Tradio e modificao no corpus da constante...................................................... 29

    2.3.3 Ironia, auto-ironia, verve, no processo expressivo inicial ............................................. 31

    2.3.4 A primeira etapa do percurso sentimental de Cesrio Verde................................................... 33

    3. O Percurso e a tomada de conscincia: Baudelaire ... 36

  • 3.1. De Baudelaire para Cesrio Verde..................... 37

    3.1.1 O acto de nomear em Baudelaire ..................... 38 3.1.2 Linguagem e potica baudelairiana.................. 40 3.1.3 As relaes entre as artes em Baudelaire ......... 43

    3.2 De Baudelaire em Cesrio Verde........................ 47

    3.2.1 O plano directo da recorrncia baudelairiana ................................................... 48

    3.2.2 O plano indirecto da recorrncia baudelairiana ................................................... 52

    4. A Semntica assumida ................................................. 54

    5. Prtica e sntese da semntica assumida..................... 94

    6. Concluso ................................................................... 100

    Notas ao texto ................................................................. 102

    Bibliografia..................................................................... 114

  • A forma potica um complexo de complexos.

    Dmaso Alonso

  • 8

    PREFCIO

    A finalidade do presente estudo da obra potica de Cesrio Verde de descobrir por meio de uma anlise terico-literria as suas caractersticas artsticas e os termos inovadores por ela atingidos.

    Ainda que servindo-se de uma metodologia tambm apoiada na lingustica, este estudo no faz parte de seu mbito especfico. Aqui, ao contrrio das finalidades da lingustica, a palavra vem tomada num sentido vivo, activo, conforme os muitos nveis expressivos que lhe concede a poesia.

    Para a abordagem da linguagem potica de Cesrio mais do que nunca esta precauo tem de ser tomada, pois a sua pessoal e expressiva liberao dos cnones da lngua potica em busca de uma lngua nova, na literatura portuguesa do sculo XIX, representa uma realidade que se distende alm do prprio tempo histrico. Justamente para defrontar-se e procurar traduzir um tal sistema expressivo aberto, tomou-se a lngua como complexo de vida, com operaes coerentes e necessrias s finalidades da presente anlise, que principalmente literria.

    Cesrio Verde uma poesia que tende a movimentar afectivamente a atitude habitual do analista que a ela se interessa. Sendo um texto correspondente a determinado momento da literatura portuguesa, logo se revela, contemporaneamente, dentro e fora de seu tempo histrico.

  • 9

    Dentro, porque cria com o material que o seu sistema de ideias recolhe do mesmo tempo; fora, porque o poema que resulta desta operao, mantendo-se no espao existencial vivido, muitas vezes atinge o futuro que ns vivemos.

    uma poesia que leva um estudioso do alto nvel de Stephen Reckert a afirmar: o maior poeta da lngua portuguesa do sculo XIX: Cesrio Verde (1). Possivelmente quase certamente no o ; porm, se a afirmao crtico-categrica legtima, pode s-lo.

    Para a aferio das caractersticas artsticas e dos termos inovadores atingidos pela obra potica verdeana, partimos de princpios tericos da crtica romntica alem, principalmente de Schiller e de seu ensaio sobre a Poesia ingnua e sentimental, de 1796. Friederich Schlegel, na ampla dimenso de sua teoria crtica do romantismo, alarga esta referncia essencial para o melhor esclarecimento e desenvolvimento de nossas intuies. O pensamento filosfico de Schelling, no sector da esttica, perpassa por ambas as lies, principalmente naquela schleguiana.

    Os trs nomes da crtica romntica alem nos servem igualmente para levantar a estrutura erudita deste ensaio (erudio metodolgica que sempre quisemos contida nos limites do no-exibicionismo), estrutura que corresponde quilo que se pode chamar, em termos amplos e no convencionais, a crtica formalista de nosso tempo.

    s notas que acompanham este trabalho cumpre a finalidade de ampliar a anlise, inicialmente; verificar a crtica anterior endereada ao mesmo sujeito; propor a si mesmo e a quem interessar novos possveis caminhos de anlise crtica do fenmeno potico verdeano; esclarecer dvidas, mais pessoais do que de qualquer outro endereo; e, finalmente, citar as fontes bibliogrficas.

  • 10

    Para o desenvolvimento do estudo e correspondentes citaes do texto de Cesrio Verde nos servimos da lio de Joel Serro, e mais precisamente da 4. edio da Obra Completa de Cesrio Verde, Lisboa, Livros Horizonte, 1983. Mas tivemos igualmente sempre sob os nossos olhos as outras edies citadas no final deste estudo, na Bibliografia 1. Edies de Cesrio Verde.

    Recordando-me dos termos de um fragmento crtico de Schlegel sobre como deve ser um prefcio:

    Um bom prefcio deve ser contemporaneamente a raiz e o quadrado do livro,

    me apresso em concluir esta minha equao preliminar.

  • 11

    1 / ESTRUTURAS DO PERCURSO SENTIMENTAL

    O perigo do poeta sentimental totalmente livre no sistema de suas ideias aquele de idealizar o mundo real e objectivo. Esta possibilidade encontra em poesia sua soluo na conscincia do verbo da lngua potica e de seu uso (2).

    Quando Schiller, no seu famoso ensaio crtico sobre a poesia ingnua e sentimental, coloca o problema da possvel perda do poeta sentimental, o faz em relao a outro conceito crtico, o de seu homnimo quase antagonista, o poeta ingnuo. Este no poder encontrar-se jamais sob o perigo da idealizao do mundo real e objectivo, pois a imediata adeso natureza o elemento essencial de sua psicologia. Em contraposio, porm, esta mesma espontnea adeso natureza, tpica do poeta ingnuo, pressupe igualmente a inexistncia nele da total liberdade do eu, prpria do poeta sentimental em relao ao sistema de suas ideias. A liberdade racional do poeta sentimental constitui, ao mesmo tempo, seu poder e sua fraqueza. Numa complexa dualidade existencial, o poeta sentimental se confronta com o mundo objectivo ao mesmo tempo que tende a

  • 12

    valorizar sua profunda subjectividade. Assim, para ele existe somente uma possibilidade de salvao: a conscincia dos elementos pessoais para a expresso lrica; a capacidade de conhecer e de saber bem-usar o verbo da lngua potica. Enquanto o poeta ingnuo vive contnua e gloriosamente sua identificao imutvel com a natureza, o poeta sentimental deve construir lentamente a prpria posio diante do mundo, estruturando uma voz correspondente difcil conquista e, mais, fazendo-a manifestao de todo um indito sistema de ideias. O poeta ingnuo possui naturalmente o seu processo expressivo e no pode contradiz-lo; o poeta sentimental, para no cair na negao da poesia, deve elaborar um prprio sistema expressivo, num insone trabalho com a sua racionalidade livre e complexa (3).

    As propostas de Schiller sobre a lngua potica, e o correspondente uso, encontraro em Friederich Schlegel uma consolidao. Colocando o conceito de mitologia como o elemento central da criao potica, Schlegel elabora as linhas mestras da teoria romntica no ensaio Discurso sobre a mitologia. Mais tarde, servindo-se da lio schleguiana, Schelling escrever no seu estudo sobre a poesia de Dante e a Divina Comdia: A lei necessria da poesia moderna, para que se faa uma totalidade concluda, que o indivduo reduza a unidade aquela parte do mundo de sua manifestao; e que, a partir da matria que lhe oferece o seu prprio tempo, da histria e da cincia do mesmo, saiba criar a sua mitologia (4).

    As coordenadas da lio de Schlegel e da sntese de Schelling se referem quela dimenso que Schiller reserva ao poeta sentimental. O pensamento

  • 13

    schellinguiano concebe com clareza a dimenso de um poeta moderno para ele, romntico no processo de conhecimento do mundo a partir do ntimo sistema de suas ideias. A tomada de conscincia da complexidade de seu sistema pessoal, por parte do poeta, e a correspondente possibilidade de transformar seus sentimentos em expresses lricas lhe permitem a elaborao da equao terico-potica

    poesia poeta mito poesia coerente e aberta em todos os seus termos (5). Trata-se da poesia moderna, isto , de uma forma e de um correspondente sistema que se apresentam como um nico: diverso, novo, indito, livre e infinito momento de criao.

    Porm, para que seja possvel um tal de excepo, a poesia deve apresentar-se como totalidade concluda. A sucesso coerente de tantos poemas concludos resultando um sistema global edificar o tempo real da poesia moderna (6).

    Para atingir esta possibilidade-capacidade de criao do poema, o indivduo deve apropriar-se racionalmente daquela dimenso privada tpica de suas manifestaes no mundo, e partindo desta parte localizada do universo a sua mundividncia ele deve ordenar a mais profunda e consciente unidade. Desde ento, existindo j no universo afectivo do artista a certa viso do mundo, do seu mundo objectivo e real, com todos os elementos constitutivos histria, cincia, pensamento, sentimento , ele, indivduo-agora-poeta, engendra uma sua prpria e indiscutvel mitologia.

    Porm, existe um domnio do esprito, no qual a palavra no somente preserva a sua fora figurativa

  • 14

    original, mas dentro do geral a renova incessantemente: neste atinge, de certo modo, a prpria e eterna palingnese, a prpria ressurreio sensvel e espiritual, ao mesmo tempo. Tal regenerao se realiza quando a linguagem se configura em expresso artstica. Aqui ela recupera, ainda uma vez, a plenitude da vida; porm, esta vida no mais a vida vinculada miticamente, mas, sim, aquela liberada esteticamente (7).

    Desde ento predomina o universo da metfora. O poeta denomina as coisas e reedifica a realidade (8).

    O percurso sentimental de Cesrio Verde, de 1873 a 19 de Julho de 1886, talvez possa ser racionalmente compreendido nessas etapas tericas do processo potico. Com todos os percalos, ambiguidades, dvidas, convices e conquistas (9).

  • 15

    2 / O TEMPO INICIAL E O SISTEMA DA CONSTANTE ROMNTICA

    2.1 Nascimento do poeta e aco da constante

    O poeta sentimental ainda no consciente de seus elementos e potencialidades expressivas tende a repropor o sistema convencional das formas poticas. Assim agindo, como consequncia da predominncia do sistema cultural convencional sobre as ainda imprecisas potencialidades pessoais, o poeta se apoia na tradio potica. O primeiro Cesrio Verde, adolescente e no ainda capaz de uma conscincia global de seu tempo histrico-existencial, recorre constante romntica para a liberao de prpria afectividade lrica. A constante romntica , ento, aquela sntese das expresses mais estveis e caractersticas do romantismo em particular aquele seu nacional enquanto movimento potico historicamente localizado e definido (10).

    Nos poemas da primeira fase verdeana essas expresses se traduzem nas recorrncias romnticas

  • 16

    isto , aplicao directa da constante num texto posterior ou fora do tempo histrico da mesma com topoi determinados, temticas conservadas, formas poticas codificadas, mtrica, rimas, sistemas rtmicos estabilizados, traduzidos atravs de um lxico caracterstico de formas romnticas fixadas e numa sintaxe potico-formal identificada com os factos tpicos da linguagem do romantismo feito tradio. Porm, j que o jovem Cesrio no se apresenta tal qual simples e convencional cultor da composio potica tradicional, mas, sim, como clara potencialidade expressiva no processo lgico de auto-revelao, ele sabe imediatamente escolher determinados modelos da tradio romntica portuguesa. Esta capacidade de escolha, de limitao do processo de reproduo do sistema convencional, representa a revelao de autonomia do poeta sentimental nascente. A adeso, por exemplo, a Joo de Deus e no a outros entre os romnticos histricos uma chave clara de leitura para a compreenso do porqu da rpida presena e superao da tradio convencional no poema verdeano e da correspondente conquista de uma personalidade de alta modernidade potica.

    No seu poema Cadncias tristes, homenagem ao poeta de Flores do campo, usando o feminino sob o pseudnimo Margarida quando da primeira publicao na Tribuna, n. 52, 1874 , Cesrio, alm de ressaltar os ngulos que mais admira na forma potica de Joo de Deus, indica igualmente os valores poticos romnticos que lhe so mais congeniais (11).

    A primeira estrofe da composio mostra a adeso afectiva de Cesrio ao personagem Joo de Deus, o

  • 17

    bom Joo de Deus, onde o surrado adjectivo, como consequncia da magia do ritmo verdeano em ressonncias que partem de todos os elementos sintagmticos, consegue traduzir uma conotao nova, integrada mais no universo afectivo do homenageante que relacionada com a figura do destinatrio da homenagem. um dado, este, de grande significao, pois nos permite compreender a intensidade afectiva do autor do poema e, como consequncia, verificar os elementos poticos caros sua sensibilidade. Assim, na exaltao ilimitada do lirismo potico, se apresenta em termos de valores ideais a intensidade baixa e tmida da voz do poeta quando canta coisas simples e reais: um beijo, um olhar, um ideal plcido. A suavidade da voz lrica, nestes casos, vem acompanhada tais complementos coerentes pelo estado contemplativo e ingnua predisposio a certezas. Estas qualidades, vistas pelo jovem Cesrio em Joo de Deus, so dados suficientes para a conquista da serenidade e da tranquilidade quanto a qualquer perigo de ofensa ao lirismo ingnuo,

    Porque o teu rosto exprime uma serenidade, Que vem tranquilizar-me, noite, quando cismo!

    A capacidade humana, presente em Joo de Deus,

    de traduzir em gestos serenos quase sempre em voz baixa as qualidades simples da solidariedade e do amor, conduz posse da suave melodia prpria da comoo potica. Esta infinita capacidade de ternura, Joo de Deus a recolhe principalmente da alma feminina, fonte de todo lirismo. Por isso mesmo, os

  • 18

    seus versos deixaro de ser lidos no com as mudanas epocais do gosto potico,

    Mas s quando morrer a derradeira flor!

    Esta homenagem de Cesrio Verde a Joo de Deus

    em face do resultado atingido pelo texto potico verdeano depois de 1874 revela como nos grandes criadores poticos as razes iniciais da sensibilidade (isto , suas fontes estticas) funcionam quase to-somente como elementos catalisadores da definitiva sensibilidade artstica, nela perdurando apenas e vivamente como memria afectiva (12).

    2.2 A presena da constante

    O crescimento textual de um poeta aquele continuado processo de modificao expressiva, no plano global da linguagem, que compreende a sistemtica edificao de uma mitologia pessoal e a elaborao de um sistema potico especfico.

    A forma potica, ento, passa por vrias fases, traduzindo neste decurso desde o puro relativo de um momento ingnuo inicial at o quase absolutamente infinito da conquistada dimenso sentimental. O momento do absoluto infinito aquele, par hasard, das obras-primas. Ela, em todas as fases, se faz e se constri daquele processo dialgico entre o poeta e o mundo, por intermediao da palavra-mito.

    Ao lado da representao conceitual dos fenmenos percebidos, captados e vividos pelo poeta, a forma potica se apresenta na perene ambiguidade

  • 19

    tpica dos elementos da linguagem, fazendo-se assim uma realidade lingustica de vrios nveis de comunicao. Nela o significado no est estreitamente ligado ao plano conceitual, no estreitamente um conceito, mas, como diz Dmaso Alonso, representao da realidade (13).

    A linguagem do poeta traduz, tanto mais ou menos intensamente, seu mundo mitolgico quando na forma potica a relao entre significante e significado no apresenta desnveis significativos entre um e o outro.

    O primeiro Cesrio Verde enceta a elaborao do prprio sistema potico a partir de claras e determinadas expresses, interessadas tanto ao contedo poemtico quanto aos valores formais correspondentes. Tudo em coerncia com o sistema tradicional da constante romntica e, assim, formas e valores formais empregados como recorrncias da mesma (14).

    2.2.1 A tpica essencial: o amor

    O amor ocupa posio privilegiada nas composies dessa fase incipiente do poeta. Amor mulher amada, com variaes ao tema.

    O lirismo verdeano nasce sob a gide do sentimento amoroso. Nele a mulher ocupar vrias dimenses, desde o mximo de idealizao,

    No palcio isolado como um monge, Erram as velhas almas dos precitos, E nas noites de inverno ouvem-se ao longe

  • 20

    Os lamentos dos nufragos aflitos. Pudesse eu ter tambm uma procela E as lentas agonias ao p dela!

    (Responso)

    at uma intensa adeso ao real, com uso de conveniente lxico, de forte conotao metonmica:

    Quando, se havia lama no caminho, Eu te levava ao colo sobre a greda, E o teu corpo nevado como arminho Pesava menos que um papel de seda

    (Setentrional) Na actividade de reelaborao da constante, Cesrio

    canta a mulher amada com intenso sentido do maravilhoso de uma descoberta. Mas, claro, o plano desta descoberta se revela ainda ligado preferencialmente objectividade imediata do sujeito amado e, por isso mesmo, dela o poeta exalta mais que tudo os elementos exteriores: boca purpurina; a lua sorria no teu rosto; ecos teus cabelos de mbar, desmanchados; vagas de cabelo esparsas longamente; E a tua cabeleira, errante pelas costas; Aquele teu olhar moroso e delicado; Os teus pequenos ps, aqueles ps suaves; O som da tua voz, metlica, sonora.

    A capacidade de maravilhar-se diante do amor e da mulher amada muitas vezes j supera o plano da pura descoberta dos elementos exteriores, ainda que no atingindo verdadeira dimenso epistemolgica. Porm, atravs do maravilhoso imediato, o poeta idealizador

  • 21

    do universo amoroso muita vez atinge expresses de rara eficcia formal:

    Eu vim no sabes tu? para gozar em

    [Maio, No campo, a quietao banhada de prazer! No vs, descorado, as vestes com que

    [saio? E os jbilos que Abril acaba de trazer?

    (Ironias do desgosto) A mulher amada em geral idealizada e por isso

    mesmo quase inacessvel vem quase sempre relacionada com a natureza (15). O mundo objectivo o referimento para o canto amoroso, e a subjectividade do poeta se reserva to-somente como representao reflexa da natureza admirada. Para Schiller, esta identificao com a natureza o elemento essencial do poeta ingnuo. Porm, se a natureza sofre a idealizao por parte do poeta, a possibilidade de representao potica atinge os graus mnimos de valor. O grande perigo da interveno absoluta da constante potica se manifesta preferencialmente nesses momentos (16).

    2.2.2 A tpica de derivao: amor e morte

    O relacionamento entre amar e morte no primeiro Cesrio Verde se traduz, em geral, na negativa dimenso a que leva a presena absolutista da constante potica na fase de formao de uma individualidade artstica. Enquanto a tpica do amor,

  • 22

    por se relacionar quase sempre a possvel experincia existencial, de maior ou menor intensidade afectiva, no prescinde de um real, isto , da recuperao da natureza conforme o conceito de Schiller , aquela da morte liga-se fortemente conveno da informao cultural. O sistema de ideias do jovem Cesrio Verde ainda se apresenta, neste sentido, como uma grande nebulosa e a sua racionalidade ainda no interfere suficientemente no sistema das formas poticas expressas. Da, o sentido de uma representao, mais do que uma realizao, nos momentos expressivos dessa tpica to cara aos romnticos:

    E eu passo to calado como a Morte, Nesta velha cidade to sombria, Chorando aflitamente a minha sorte E prelibando o clix da agonia.

    (Setentrional) Ns teremos ento sobre os joelhos Um livro que nos diga muitas coisas Dos mistrios que esto para alm das

    [lousas, Onde havemos de entrar antes de velhos.

    (Eu e ela) O sentido literrio do uso dessa tpica alcana o

    mximo de intensidade naqueles momentos em que o jovem Cesrio faz da morte valor espiritual um elemento de chantagem quanto ao amor, em relao mulher, traduzindo aquilo que Mrio Praz chamou de

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    predominante tendncia sdica no poeta romntico (17):

    Mas quero s fugir das coisas e dos seres, S quero abandonar a vida triste e m Na vspera do dia em que tambm morreres, Morreres de pesar, por eu no viver j!

    (Flores velhas) Esta possvel recorrncia do sadismo na poesia

    romntica, expresso de um satanismo ingnuo que finalmente ser resolvido por Baudelaire em termos de pura expressividade ontolgica, encontra no poema Cinismos uma sntese dos factores negativos do condicionamento total de uma constante potica convencional numa jovem individualidade potica (18).

    Porm, dentro em pouco, como veremos mais adiante, o sentido da morte, j ento isolado como elemento de um sistema metafsico, definidor de toda uma cosmoviso, guiar o poeta na maturidade expressiva. Ento a recorrncia puramente literria ceder o lugar a uma mitologia pessoal conquistada.

    2.2.3 A natureza como recorrncia romntica

    Nos primeiros poemas de Cesrio Verde, aqueles inteiramente tomados constante romntica, a natureza se apresenta predominantemente como forma potica tpica de um sistema artstico apreendido. A traduo dela no quase nunca directa, objectiva, mas

  • 24

    quase sempre em forma de transcrio. Mesmo quando os elementos materiais podem representar uma experincia directa vivida pelo poeta, o uso poemtico dos mesmos no atinge ou traduz a experincia real. Predomina, ento, o sintagma potico de representao tipicamente literria. Nele ou neles o plano denotativo no supera quase nunca a sua dimenso especfica, faltando, em geral, o tom afectivo capaz de lev-lo a uma conotao liberadora (19).

    O jovem Cesrio se comporta diante da natureza quase somente como um observador externo, raramente chegando recuperao da mesma. No consegue, assim, como ensinava Schlegel, reduzir a unidade aquela parte do mundo de sua manifestao. o que acontece em Setentrional, Responso, Eu e ela, Herosmos.

    Todavia, o poema Flores velhas, por determinados elementos estilsticos o uso do diminutivo, a intensidade de um processo comedido, de meia-voz; pela expressividade de um sistema rtmico enriquecido pela aco de uma fora imaginante particular preanuncia os futuros cantos da beleza do campo que fazem de Cesrio Verde um dos grandes lricos da lngua portuguesa do sculo XIX:

    Fui ontem visitar o jardinzinho agreste, Aonde tanta vez a lua nos beijou, E em tudo vi sorrir o amor que tu me deste, Soberba como o Sol, serena como o voo. Em tudo cintilava o lmpido poema Com sculos rimado s luzes dos planetas;

  • 25

    A abelha inda zumbia em torno da alfazema; E ondulava o matiz das leves borboletas. Em tudo eu pude ver ainda a tua imagem, A imagem que inspirava os castos madrigais; E as viraes, o rio, os astros, a paisagem, Traziam-me memria idlios imortais.

    J aqui, bem como nas estrofes restantes do poema,

    os valores so variados e salientes. O ritmo, muito pessoal; a perspectiva lrica j distanciada do convencionalismo da frase; os processos metafricos, principalmente o uso de uma tonalidade irnica subtil; e at mesmo uma citao potica da forte adeso dedicada a Joo de Deus, na estr. 5., v. 4:

    O ncter que nos vem dos mimos da

    [mulher. E ainda momentos particulares como: Ah! nunca mais vir, meu lrio, nunca

    [mais

    (estr. 12, v. 4); Agonizava o Sol gostosa e lentamente,

    (19,1).

  • 26

    2.3 A constante e o sistema formal

    Este mesmo poema, Flores velhas, pode ser tomado como referncia para a anlise das estruturas formais da constante romntica, recorrentes em Cesrio Verde. Nele, poema, e em seus valores estruturais temos a viso do todo formal da fase incipiente do poeta, de 1873-1874, com reflexos ainda em determinadas composies dos anos seguintes.

    Nessas estruturas, alm do bvio processo poemtico da fase, ideologicamente ligado melhor lio romntica, de grande realce a presena de um lxico fortemente atacado linguagem do romantismo. Muitas so as circunstncias lexicais expressivas neste sentido. Na primeira estrofe, o sintagma romntico a lua nos beijou apresenta-se como um primeiro plano sintctico-semntico, completado por outro sintagma da mesma caracterstica, o verso

    E em tudo vi sorrir o amor que tu me

    [deste. Fortemente pessoal neste poema o uso do

    diminutivo jardinzinho do 1. verso, enfaticamente lrico, bem como o distanciamento do predicativo de lua, do 4. verso em relao ao 2.:

    Fui ontem visitar o jardinzinho agreste, Aonde tanta vez a lua nos beijou, E em tudo vi sorrir o amor que tu me deste, Soberba como um sol, serena como um voo.

  • 27

    num procedimento de natureza plstica que j anuncia os prximos elementos impressionistas da potica verdeana.

    Tudo isso ganha especial expresso igualmente pela fora insuspeitada da rima BD, de beijou voo, realada pelo equilbrio clssico daquela AC, agreste deste.

    O lxico especfico da constante continuar no poema com os diversos exemplos: sculos (2,2); castos madrigais (3,2); E, plida Clarisse, alma ardente e pura (5,1); haurir do clix da ventura (5,3); O nctar que nos vem dos mimos da mulher (5,4). Esta 5. estrofe se modifica inteiramente no v. 2 pelo coloquialismo dos diversos sintagmas: Que no me desgostou nem uma vez sequer. E ainda: Ah! nunca mais vir, meu lrio, nunca mais! (12,4); saia roagante (13,3); soledade (14,3); mais doce que uma prece (16,1); clicas canes (17,4); E, plida mulher de longo olhar piedoso (22,3).

    2.3.1 A pluralidade do corpus lexical da constante

    As dimenses denotativa e conotativa do lxico tradicional, at aqui exemplificado com Flores velhas, se alarga pela fora de uma tradio estabilizada e feita sistema, em outros poemas.

    Cesrio demonstra sempre uma participao com a lio da constante, porm no permite que este sistema tradicional impere sobre o canto. Este ainda uma voz

  • 28

    ingnua, mas sempre em luta para conquistar-se uma expresso autnoma.

    Continua a recorrncia lexical romntica em outras composies:

    Setentrional

    Que bebemos, ns dois, do mesmo fel, E regamos com prantos uma accia Os teus cabelos de mbar, desmanchado Nas tuas formosssimas madeixas, Daquela cor das messes lourejantes

    Responsos Num castelo deserto e solitrio loura como as doces escocesas A contemplar as gndolas airosas Erram as velhas almas dos precitos

    Meridional vagas de cabelos esparsas longamente

    Deslumbramentos Milady, perigoso contempl-la

  • 29

    Seu ermo corao, como um brilhante

    Frgida Ouso esperar, talvez, que o seu amor me

    [acoite O sossegado espectro anglico da Morte. Estes so exemplos estruturalmente tradicionais,

    revivificados, porm, por instantneos da modernidade lexical, com apoio na expresso de ritmos desde j muito pessoais, e que j mostram uma obra em progresso. Basta um adjectivo, velho adjectivo revisitado para demonstr-lo. Como aquele ermo, do verso

    Seu ermo corao, como um

    [brilhante. (20).

    2.3.2 Tradio e modificao no corpus da constante

    O procedimento lexical de Cesrio Verde nesta primeira fase no se reduz, porm, adeso irrestrita a sintagmas tradicionais, mas se exprime igualmente atravs de um lxico realista. A presena desta alternativa lexical s fortes expresses sintagmticas da constante condicionadora nos permite individuar a j presente personalidade de um poeta ligado essencialmente ao real, ao mundo objectivo.

  • 30

    Para traduzir esta espontnea atitude realista em termos de testemunho claro de seu tempo histrico, falta-lhe to-somente a auto-determinao de uma linguagem pessoal. Todavia, esta lngua se mostra perenemente transitante na sintaxe tradicional ainda predominante nos poemas desta fase incipiente.

    Os momentos de modificao lexical, ainda espordicos e isolados, so do tipo de:

    Quando, se havia lama no caminho, Eu te levava ao colo sobre a greda, E o teu corpo nevado como arminho Pesava menos que um papel de seda

    (Setentrional) Ondula como um mar ensanguentado.

    (Responso) mantos de veludo esplndido e sombrio, Na vossa vastido posso talvez morrer! Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito

    [frio E quero asfixiar-me em ondas de prazer.

    (Meridional) Agonizava o Sol gostosa e lentamente

    (Flores velhas )

    Cobertos de folhagem, na verdura, O teu brao ao redor do meu pescoo, O teu fato sem ter um s destroo, O meu brao apertando-te a cintura;

    (Eu e ela) (21).

  • 31

    2.3.3 Ironia, auto-ironia, verve, no processo expressivo inicial

    Na modificao do tom expressivo dos poemas desta primeira fase, naquela busca insofrida pela conquista de uma linguagem pessoal, Cesrio Verde usa no sem moderao a ironia como elemento de metaforizao da expresso potica. Naturalmente, ao lado de uma constante e clara predisposio psicolgica para a atitude irnico-humorstica, nota-se a evidncia da recorrncia formal do humoour romntico. A raiz mais distante deste processo em Cesrio deriva possivelmente do sereno esprito satrico de Nicolau Tolentino, mais tendente a observar com destaque a realidade objectiva, matria de sua caricatura do mundo e dos homens, que exp-la a uma denncia moralizadora. Porm, esta raiz pr-romntica tolentiniana ainda se apresenta muito diluda na primeira potica de Cesrio(22). Em verdade, a ironia como elemento de modificao do nvel expressivo da linguagem potica no se apresenta, nesta fase inicial da produo verdeana, com a devida clareza. Pelo contrrio. Em geral, ela apenas recorrncia de formas romnticas convencionais, um eco que poucas vezes se transforma em clara voz:

    E eu que daria um rei por cada teu suspiro, Eu que amo a mocidade e as modas fteis,

    [vs, Eu morro de pesar, talvez, porque prefiro O teu cabelo escuro s venerveis cs!

    (Ironias do Desgosto)

  • 32

    Uma rpida tranformao da tonalidade expressiva se verifica, mas ainda sem modificao mais profunda do processo sintctico-semntico, quando o sistema humorstico se realiza atravs da auto-ironia:

    E tristssima Helena, em verdade, Se pudera na terra achar suplcios, Eu tambm me faria gordo frade E cobriria a carne de cilcios.

    (Setentrional) O processo irnico no consegue elevar-se a

    verdadeira metfora. Em geral, ao invs da modificao metafrica, verifica-se somente a presena de ecos discursivos, retricos. Como se em lugar da ironia o poeta no pudesse atingir outra expresso seno aquela carregada de uma nfase imaginativa superficial. Alguma coisa de conversvel e gracioso. A verve em lugar da ironia.

    Teus olhos imorais, Mulher, que me dissecas, Teus olhos dizem mais Que muitas bibliotecas!

    (Lbrica)

    Chora, chora, mulher arrenegada; Lacrimeja por esses aquedutos Quero um banho tomar de gua salgada

    (Lgrimas) (23).

  • 33

    O elemento retrico gracioso do uso da verve se verifica pelo facto que este aparente instrumento potico vem empregado na concluso do poema, quase como uma nova forma de chave de ouro (24).

    Ainda nos encontramos distante do uso pessoal e fortemente criativo da ironia e da auto-ironia de que ser capaz a poesia de Cesrio nos poemas da maturidade que estamos por defrontar.

    2.3.4 A primeira etapa do percurso sentimental de Cesrio Verde

    A verificao semntica resultado dos mltiplos elementos acima abordados mostra, nesta primeira fase da obra potica verdeana, uma instabilidade expressiva resultante da predominncia do discurso conceitual da constante romntica. A recorrncia das tpicas e dos elementos formais do romantismo, em sobreabundncia, tolhem ao poema incipiente a possibilidade de completar-se como forma exterior, ainda que aqui e ali pressentida naquilo que se poderia denominar insones formas interiores, potencialidades ainda inexpressas.

    Desta maneira, Setentrional um produto do que se pode chamar romantismo-realista, onde, junto a uma predisposio para a valorizao do real e do mundo objectivo, predomina uma linguagem tradicionalmente romntica. o caso tpico de realismo e idealizao, onde se verifica o grande choque entre natureza e no-conscincia do sistema das ideias do autor. Como consequncia, a

  • 34

    impossibilidade de racionalizao do sistema das ideias conduz a uma forma potica dispersa.

    Em Responso, alm das concluses relacionadas a Setentrional, verifica-se uma acentuao do convencional pelo uso no propriamente criativo de uma espcie de refro para o completamento de cada estrofe. Faz excepo a estrofe n. X:

    E s lajes, no silncio dos mosteiros, Ela conta o seu drama negregado, E o vasto carmesin dos reposteiros Ondula como um mar ensanguentado! Fossem aquelas mil tapearias Nossas mortalhas quentes e sombrias.

    Na composio Meridional-Cabelos, o tema

    tradicional da beleza dos cabelos da mulher amada como fonte reveladora de amor e prazer encontra bela, convincente expresso, na linguagem directa de todo o poema, de que os versos da 4. estrofe so exemplos:

    Deixa-me naufragar no cimo dos cachopos Ocultos nesse abismo ebnico e to bom Como um licor renano a fermentar nos

    [copos, Abismo que se espraia em rendas de

    Alenon! Nesta estrofe, de importncia rtmica a inslita

    rima to bom de Alenon. Flores velhas, conformando-se s melhores

    recorrncias j ressaltadas para Setentrional,

  • 35

    aperfeioa as qualidades poticas que ali podem ser entrevistas.

    Ironias dos desgostos acentua as caractersticas tpicas e formais da recorrncia romntica em Cesrio Verde, assim como acontece com A forca, Num tripdio de corte rigoroso, ridas Messalinas (irremediavelmente conceitual).

    Entretanto, um frescor ingnuo, de raro lirismo irnico (ainda que de um humour indeciso) se encontra em Eu e ela, qualidades que ressoam, porm em outro nvel expressivo, em Arrojos e Vaidosa.

    O romantismo-realista incipiente, tendente ao empenho com o social, mas um empenho ainda predominantemente conceitual, est nos versos de Ele, Impossvel, Esplndida. Manias e Herosmos so exemplos daquele satanismo ingnuo, to presente nas formas ultra-romnticas, mas que em Cesrio so igualmente preanncios de novos e mais amplos tempos de criao potica (25).

  • 36

    3 / O PERCURSO E A TOMADA DE CONSCINCIA: BAUDELAIRE

    A passagem da fase incipiente quela do incio da maturidade e autonomia na expresso da forma potica, Cesrio Verde a realiza sem demonstrar repentinos saltos de qualidade. Os primeiros poemas maduros j acontecem nos verdes anos de composies como Frgidas, Contrariedades. A conquista de uma metodologia pessoal e daquela capacidade de usar a lngua portuguesa como poucos poetas oitocentistas foram capazes surge como se fosse somente o esclarecimento do porqu da fase tpica da constante romntica. Lentamente o convencionalismo desse primeiro perodo comea a ceder o lugar voz autnoma, sem alteraes violentas do processo compositivo, como se j nas expresses convencionais residissem valores de autenticidade, apenas escondidos pela forma inconclusa. Este salto de plena vivncia, Cesrio o cumpre atravs do conhecimento de Baudelaire e da sua potica.

    As relaes entre Cesrio Verde e Baudelaire assim como acontece, em geral, entre o grande artista modelo e o grande artista que se est modelando se estruturam em formas absolutamente expressivas,

  • 37

    porm sem qualquer mitizao. Para Cesrio, Baudelaire servir como elemento catalizador das melhores expresses da potencialidade subjacente na aco dos modelos culturais da sua juventude (26).

    A presena de Baudelaire na obra verdeana se demonstra em vrios nveis, sem uma lgica ordenao, mas que se aprimora constantemente em direco de uma subtil absoro potica e, na maior maturidade, na transformao em pura memria afectiva (27).

    Assim, da presena de Baudelaire como pura palavra ou como tpica, Cesrio passa a Baudelaire como citao, como imitao, como poema, potica, para finalmente chegar pura dimenso afectiva constantemente recordada, porm j no mais exteriorizada.

    3.1. De Baudelaire para Cesrio Verde

    Baudelaire d a Cesrio assim como faz para com toda a poesia moderna ocidental (28) a capacidade de transformar os mitos da herana romntica em palavras de coerente modernidade. Esta fora baudelairiana de esclarecer a nebulosa de uma mitologia, que no consegue por longos tempos atingir o plano do smbolo nominal, a grande contribuio modernidade da forma potica legada pelo autor das Fleurs du mal. Depois dele, torna-se possvel a superao da linguagem prosaica ligada fatalmente aos limites do conceitual, para a conquista da linguagem potica, infinita, absoluta e livremente expressiva (28).

  • 38

    Por meio de intensa actividade objectiva ligada indagao de todos os meios expressivos da sensibilidade e de herica participao com o real, sem limitaes para a liberdade criativa do artista, Baudelaire concretiza os ideais de verbo potico teorizados por Schiller, Schelling, Schlegel. Apaixonadamente amante da paixo e friamente decidido a procurar os meios para exprimi-la: no mesmo Baudelaire que define com estas palavras Delacroix, podemos encontrar os termos da sua conquista definitiva dos mitos e dos smbolos (30).

    3.1.1 O acto de nomear em Baudelaire

    A modernizao da metfora e o alargamento do procedimento analgico por meio das correspondncias constituem a contribuio essencial de Baudelaire para o estabelecimento da forma potica moderna. Com ele, a modificao do mundo e a sua correspondente (re-) nomeao por meio de todos os sentidos permite poesia de tradio romntica de fazer-se infinita, concretizao do ideal shilleriano.

    A conquista baudelairiana da nomeao absoluta das coisas o resultado de sua adeso concepo do maudit como destino humano. Com disponibilidade total maldio, seja psicolgica quer social, seja moral quanto religiosa, Baudelaire contra si mesmo, mas para si mesmo atinge novas etapas na tomada de conscincia da liberdade no homem (31).

  • 39

    O seu Correspondances sintetiza a metodologia da conquista:

    La Nature est un temple o de vivants

    [piliers Laissent parfois sortir de confuses paroles; Lhomme y passe travers des forts de

    [symboles Qui lobservent avec des regards familiers. Comme de long chos qui de loin se

    [confondent Dans une tnbreuse et profonde unit, Vaste comme la nuit et comme la clart Le parfum, les couleurs et le sons se

    [rpondent. Il est de parfums frais comme des chairs

    [denfants, Doux comme les hautbois, verts comme les

    [prairies, Et dautres, corrompus, riches et

    [triomphants, Ayant lexpansion des choses infinies, Comme lambre, le musc, le benjoin et

    [lencens, Qui chantent les transports, de lesprit et

    [des sens. (32). A natureza, o mundo objectivo, dado inicial para

    a absoro de todo e qualquer conhecimento. Dele, com grandes afastamentos pela difcil viso das coisas,

  • 40

    s vezes partem palavras que no so sempre ntidas. Por ela, o homem que no sabe recolher sempre a nitidez das palavras circula como se numa floresta de smbolos que, sendo partes do universo deste mesmo homem e conhecendo-o, o contemplam com familiaridade. Nesta imensa floresta quase sempre inacessvel ao homem que no tem o olhar ntido, os sentidos se confundem num dilogo intermitente de perfumes, cores e sons que como ecos prolongados se perdem na distncia, formando uma unidade tenebrosa e profunda. Nesta unidade, existem perfumes que recordam o frescor de carnes infantis e a doura de obos, a verdura dos prados, ao lado de outros corrompidos, ricos e triunfantes, atravs de expanses sem limites como a do mbar, do musgo, do benjoim e dos incensos. Estes cantam a embriaguez do esprito e dos sentidos.

    Baudelaire, ento, confirma que tudo: forma, movimento, nmero, cores, perfumes seja no plano espiritual, quanto naquele da natureza significativo, recproco, convertvel e correspondente (33).

    3.1.2 Linguagem e potica baudelairiana

    A potica de Baudelaire se estrutura por meio dos instrumentos de linguagem que ele faz derivar da teoria das correspondncias. Assim, a sinestesia aquele movimento de percepo que, de uma primeira sensao, faz surgir uma secundria, logo elevada ao nvel afectivo da inicial, numa sntese sensorial infinita constri um sistema metafrico ilimitado, com

  • 41

    projeco de imagens poticas capazes de infinitas analogias.

    Por meio desta metodologia expressiva, a linguagem baudelairiana projecta uma mitologia nova, onde smbolo e palavra se combinam na totalidade de significante e significado.

    Os instrumentos lingusticos especficos deste procedimento levam Baudelaire a uma potica absolutamente pessoal e revolucionria. Dela o poeta faz derivar o seu conceito de beleza:

    Jai trouv la dfinition du Beau, de mon Beau. Cest quelque chose dardent et de triste Une tte

    sduisante et belle, une tte de femme, veux-je dire, cest une tte que fait rver la fois, mais dune manire confuse, de volupt et de tristesse; qui comporte une ide de mlancolie, de lassitude, mme de satit, soit une ide contraire, cest--dire une ardeur, un dsir de vivre, associs avec une amertume refluante, comme venant de privation et de dsesprance. Le mystre, le regret sont aussi des caractres du Beau (34).

    Conceitos tericos que se traduzem objectivamente nos versos seguintes do poema Hymne a la Beaut:

    Que tu viennes du ciel ou de lenfer,

    [quimporte, Beaut! monstre norme, effrayant,

    [ingnu! Si ton il, ton souris, ton pied, mouvrent

    [la porte Dun infini que jaime et nai jamais

    [connu? (35).

  • 42

    Para Baudelaire, a beleza, o belo, um monstro enorme, espantoso, ingnuo, que com a sua monstruosidade lhe abre as portas do infinito, o infinito amado e nunca conquistado. Para ele no importa donde venha a beleza, seja do cu quer do inferno, pois somente ela lhe revela a realidade das coisas. Baudelaire, aparentemente ligado a uma esttica neoclssica, chega exaltao do belo-feio, mais que feio, horrvel, hrrido, horrendo.

    Esta abertura esttica permitir ao poeta de Flores do Mal as imagens pessoais de suas poesias urbanas. Nelas, como notou Praz, a cidade vista a partir de um caractre maudit,

    O toute normit fleurit comme une fleur .............................................................. Je voulais menivrer de lnorme catin Dont le charme infernal me rajeunit sans

    [cesse Je taime, capitale infme! Courtisanes Et bandits, tels souvent vous offrez des

    [plaisirs Que ne comprennent pas les vulgaires

    [profanes (36).

    Eu te amo, capital infame! A Paris de Baudelaire, amada sadicamente, num contraste continuado de amor e dio, exaltao e negao, aquela paisagem vivssima desde sempre capital do mundo onde o promeneur solitaire vai em caa de emoes, e as mais radicais.

  • 43

    3.1.3 As relaes entre as artes em Baudelaire

    As artes aspiram seno a substituir-se uma outra, pelo menos a emprestar-se reciprocamente energias novas. Este o conceito bsico de Baudelaire para a questo da inter-relao das artes (37).

    Para que a mundiviso baudelairiana possa ser entendida no seu significado de criao de uma mitologia pessoal, transformada em smbolos e traduzida pela palavra, torna-se indispensvel verificar como o poeta compreendeu o sentido das outras artes e a relao possvel entre elas.

    Realizando uma revoluo de linguagem no plano da poesia, Baudelaire no pode permanecer fixado aos valores puramente lingustico-conceituais da expresso literria. Para cada vez mais superar os limites entre a prosa e a poesia, a fim de chegar forma potica sem limitaes isto , quele ponto onde ocorre a coerente identificao entre significante e significado , ele tende a indagar sobre novos possveis elementos externos arte literria. Encontrar esses elementos principalmente na msica e nas artes visuais.

    O interesse do crtico Baudelaire sobre os campos especficos das diversas artes, baseado na convico que entre elas existe a tendncia a um reciproco enriquecimento esttico, permite poesia baudelairiana um alargamento contnuo do mbito da linguagem potica.

    A msica ocupa um lugar particular nesta pesquisa crtica. Alm dos valores fonticos especficos da estrutura poemtica e nisso a experincia baudelairiana se desenvolve at alcanar a linguagem

  • 44

    potica alm dos cnones convencionais do verso e do poema, chegando criao de seus Poemas em Prosa , Baudelaire conquista novas condies de ritmo pela ateno crtica que dedica msica (38).

    Os grandes compositores romnticos que revolucionaram a tcnica compositiva e abriram novas perspectivas arte musical so seguidos e estudados pela constante racionalidade baudelairiana.

    Alm dos musicistas romnticos mais salientes Beethoven, Weber, Schubert, Lizt , Baudelaire se interessa em modo particular pela msica inovadora de Wagner. Naturalmente, no interesse especial que ele dedica obra wagneriana conta muito a natureza literria que percorre esta mesma obra. Pela mesma razo, Delacroix ser o pintor que guiar a crtica baudelairiana no terreno das artes visuais.

    Porm, o interesse pela linguagem musical de Wagner supera estes dados iniciais, procurando nela aquela inveno de uma sintaxe musical concretizada pelo autor do Parsifal nas suas variadas composies. Atravs dessa sintaxe de modernidade romntica plena de uma dramaticidade pica, plstica e musical, ao mesmo tempo Baudelaire instaura novas solues no seu prprio poema. Ele o faz tocando a msica wagneriana em todas as suas dimenses expressivas, como lhe acontece, num momento de magia e exaltao, quando escuta pela primeira vez a ouverture do Lohengrin, num concerto em Paris:

    Recordo que, desde as primeiras notas, me encontrei tomado por uma daquelas vises felizes que todos os homens dotados de imaginao j conheceram, no sono, atravs dos sonhos. Senti-me libertado da priso do corpo e reencontrei por associao

  • 45

    aquela extraordinria voluptuosidade que se prova nas grandes altitudes note-se que no havia ainda lido o programa que citei (onde Wagner dava a prpria interpretao da ouverture). Depois fui arrastado por aquela sensao deliciosa que provamos quando nos encontramos imersos numa profunda rverie em absoluta solido, mas uma solido de imenso horizonte e de larga, dispersa luminosidade: a imensidade por si mesma. Logo depois, provei a sensao de um claror mais vivo, de uma intensidade de luz que aumentava com tal rapidez que todas as possibilidades do vocabulrio no seriam suficientes para traduzir-lhe o sempre maior esplendor. Ento me se figurou claramente a imagem de uma alma que se movia dentro de um veculo luminoso, de um xtase feito de vontade e de conhecimento, suspenso acima do mundo natural e deste bem distante (39).

    O mito na obra musical de Wagner abrir novas perspectivas para a poesia baudelairiana, ainda que nele este mesmo mito tome direco absolutamente pessoal e independente.

    Delacroix o referimento absoluto para as indagaes crticas de Baudelaire no plano das relaes entre literatura-poesia-artes visuais.

    Essas relaes oferecem sempre a possibilidade de falsas conquistas. Muitas vezes, o valor plstico natural ao facto lingustico vem confundido com a prpria natureza plstica, intrnseca s diversas manifestaes das artes visuais. Schiller, no seu Sobre a poesia ingnua e sentimental j chama a ateno, pelo perigo que se encontra na passagem da poesia musical poesia plstica (40).

    Baudelaire se sente desde sempre atrado pelo valor plstico da linguagem literria e do significado,

  • 46

    em particular, da linguagem da pintura. Esse interesse corresponde quela intensa adeso que ele concede pintura de Delacroix, com pesquisas tericas que depois confluiro igualmente nos valores da linguagem de sua obra potica:

    Todo o universo visivo somente um armazm de imagens e de signos a que a imaginao dar um devido lugar e um valor relativo; uma espcie de pastagem que a imaginao deve digerir e transformar (41).

    Baudelaire escuta sempre Delacroix quanto esttica da pintura. Ainda jovem, em 1845, Baudelaire procura pela primeira vez o Mestre e o admira intensamente. A anotao que Delacroix faz no seu Dirio, com a data de 30 de Maio de 1886, sobre o poeta, no testemunho de grande adeso ao ainda jovem amigo. Depois de reentrado em casa, continuei a leitura de Edgard Poe. Esta desperta em mim aquele sentido de misterioso que no passado me preocupava maior mente na minha pintura e que foi, creio, desviado dos meus trabalhos decorativos, temas alegricos, etc., etc. No seu prefcio, Baudelaire diz que eu recordo em pintura este sentido de ideal to singular e que se compraz com o terrvel. Tem razo: mas, a espcie de desconexo e a incompreenso que se mistura s suas concepes, no se adequam ao meu esprito (42).

    Ainda assim e como demonstrao de sua complexa personalidade, na qual em geral vem reconhecida uma tendncia ao extremo nascisismo que, entretanto, a capacidade de ateno obra do outro, seja este Wagner ou Delacroix, contradiz (43) Baudelaire no perde de vista a vida e a obra de seu

  • 47

    Mestre para as artes visuais. Da lio exaltada e genial qualidades do tpico gnio romntico da pintura de Delacroix, ele retira elementos visivos que transformam sua linguagem potica, numa antecipao das formas impressionistas e simbolistas.

    Com o sentido visual apreendido com a pintura de Delacroix e de tantos outros artistas, na sua intensa actividade de crtico, o promeneur solitaire saber ver a sua Capital, em todas as suas cores, internos, paisagem, degradao, vcio, humanidade fantstica.

    Baudelaire amplia sua potica nas mais variadas direces, a partir de todos os instrumentos de sua linguagem. Desde a particular atitude misgina em relao mulher, as mais das vezes exaltada at destruio; o correspondente exasperado sentido do amor que, sendo para ele um sistema de conhecimento do mundo, igualmente instrumento de destruio do universo espiritual do pintor; o doloroso conhecimento da morte, vivido em atitude paralela ao conhecimento da realidade objectiva, na elaborao de um projecto metafsico, ele poeta da mais extremada maldio chega expresso de particular espiritualidade e a uma profunda viso social do mundo, ainda que quase sempre condicionada pela afectividade do homem que se consome quotidianamente na leitura de sua diversidade satnica e maldita (44).

    3.2 De Baudelaire em Cesrio Verde

    No processo de tomada de conscincia das infinitas possibilidades de expresso da poesia a partir de

  • 48

    Baudelaire, e no correspondente procedimento crtico do uso das convenes poticas presentes nos seus primeiros poemas, Cesrio assume e usa a sua descoberta por meio dos mais variados processos. Baudelaire aparece, ento, no texto verdeano seja num plano directo, pelas citaes e recorrncias dos meios tpicos da potica baudelairiana, quer num plano indirecto, pela absoro desta mesma potica.

    3.2.1 O plano directo da recorrncia baudelairiana

    Este plano comea pelo uso puro e simples do nome Baudelaire, logo transformado num signo muito especial e recorrente:

    Metlica viso que Charles Baudelaire Sonhou e pressentiu nos seus delrios

    [mornos. (Frgida)

    O emprego de nomes de pessoas ou de cidades

    uma adeso directa lio baudelairiana e, dela, Cesrio faz uso muito amplo, na ambio de atingir mais directamente o real. Este procedimento estilstico confere ao poema verdeano um tomo inslito em relao ao lxico e sintaxe potica portuguesa dos oitocentos (45):

    Balzac meu rival, minha senhora inglesa!

    (Frgida)

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    Arte no lhes convm, visto que os seus

    [leitores Deliram por Zaccone.

    (Contrariedades) Balem os carros de aluguer, ao fundo, Levando via frrea os que se vo. Felizes! Ocorrem-me em revista, exposies, pases; Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo,

    [o mundo! (O Sentimento dum Ocidental)

    Ah! Que de glria, que de colorido, Quando, por meu mandado e meu conselho, C se empapelam as mas de espelho Que Herbert Spencer talvez tenha comido!

    (Ns) O sistema de citao directa da recorrncia

    baudelairiana ocorre em Cesrio no sentido compositivo de uma nova fase de sua poesia. Assim, ele tanto compe o verso citando elementos tericos da potica de Baudelaire, como em casos do tipo:

    E engelhem, muito embora, os fracos os

    [tolhidos, Eu tudo encontro alegremente exacto. Lavo, refresco, limpo os meus sentidos, E tangem-me, excitados, sacudidos, O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!

    (Cristalizaes)

  • 50

    onde a teoria das correspondncias baudelairiana expresso feita citao de homenagem, ou ainda em referimentos a tpicas caracterizantes da obra de Baudelaire: ex. o emparedado

    Mas se vivemos, os emparedados, Sem rvores, no vale escuro das muralhas! Julgo avistar, na treva, as folhas das

    [navalhas E os gritos de socorro ouvir,

    [estrangulados (46). (Horas mortas)

    Em determinados momentos, as citaes directas

    passam do plano terico e da tpica para propor solues imagistas j presentes em Baudelaire:

    E tem a lentido duma corveta fina Que nobremente v num mar de calmaria.

    (Deslumbramento)

    expressiva derivao dos versos baudelairianos:

    Quand tu vas, balayant lair de ta jupe laige, Tu fais leffet dun beau vaisseau qui prend

    [le large... Igualmente de directa derivao baudelairiana so aqueles versos aderentes a uma potica da putrefaco, do sujo e do nojo. Esta, como acontece na matriz original, se liga ao dualismo existencial vida e morte, dualismo que Cesrio viveu, caractersticas

  • 51

    psicoculturais muito autnomas, ainda que a maior parte da expresso literria do mesmo esteja ligada linguagem tpica de Baudelaire.

    O dualismo existencial que conduz linguagem de total liberdade na criao de imagens, do caso verdeano, se adequa ao canto da realidade urbana, num processo de adeso-repulso presente igualmente em Baudelaire para com a capital maldita (47).

    A fora muito intensa derivada do emprego da imagem livre se atenua de certo em Cesrio pela sua natural tendncia ironia:

    Vcios, sezes, epidemias, furtos, Decerto, fermentaram entre lixos; Que podrido cobria aqueles bichos! E que luas nos teus fatinhos curtos!

    (Em petiz) Sem canalizao, em muitos burgos ermos Secavam dejeces cobertas de

    [mosqueiros (48). (Ns)

    O satanismo destes recursos estilsticos sempre

    aderentes condio de existncia maldita em alguns momentos tomam a dimenso metafrica duma dramtica traduo da dor humana:

    E, enorme, nesta massa irregular De prdios sepulcrais, com dimenses de

    [montes,

  • 52

    A Dor humana busca os amplos horizontes, E tem mars, de fel, como um sinistro

    [mar (49). (Horas mortas)

    3.2.2 O plano indirecto da recorrncia baudelairiana

    O plano indirecto da recorrncia baudelairiana em Cesrio Verde se refere estabilizao da lio potica do autor de Flores do Mal transformada to-somente, e definitivamente, em pura memria afectiva. Esta estabilizao conduz o poema de Cesrio ao mximo de liberdade na criao imagista como se tal aco fosse igualmente uma filosofia de vida e tudo com tal intensidade at nos dar a perspectiva de uma conscincia trgica da existncia. Desde este momento da definitiva assuno de autonomia potica, o constante dualismo do sistema pessoal de Cesrio Verde dualismo no plano psicolgico, entre vida-morte, amor-morte, campo-cidade; e naquele social, entre revoluo-tradio, esprito burgus esprito inovador conduzir a obra verdeana a uma dimenso indita na poesia de lngua portuguesa do sculo XIX. Trata-se de alguma coisa de inslito apesar do relativamente pequeno nmero de poemas deixados por Cesrio pelo herosmo contido na linguagem potica e na amplido da mitologia potica criada em to poucos anos de vida. Uma inicial sensao de precaridade d lugar a uma admirao espontnea derivada da fora incontida que os poemas

  • 53

    verdeanos conseguem traduzir. Esta fora muito directamente ligada quele frisson que a forma potica de Baudelaire sempre possui deriva de uma ousadia imagista, metafrica, que conduz ao nascimento de uma inovadora linguagem impressionista. Atravs dela, Cesrio Verde se debrua sobre a realidade das coisas, numa transcrio plstica que d do mundo a sua mais profunda objectividade. uma transcrio de invenes e participao, pela qual a vida dos homens, principalmente daqueles mais amaldioados pela injustia e pela violncia os operrios, os pobres, os infelizes, os miserveis , encontra a mais moderna denncia. Junto a tal participao feita de um inslito herosmo, Cesrio vive a sua dimenso anterior, conseguindo transform-la em constante testemunho, principalmente potico.

    Desde ento, neste plano indirecto o definitivo na histria da potica verdeana Baudelaire somente memria, inicial provocao para a inveno das coisas. Memria que somente poder ser captada pelo fruidor do poema verdeano se criticamente integrado na dimenso das distines (50).

  • 54

    4 / A SEMNTICA ASSUMIDA

    Apreendida a lio de Baudelaire, naquilo que nela existe de essencial, isto , a capacidade infinita de defrontar-se com a existncia e da projectar a aco da liberdade absoluta do processo afectivo, Cesrio Verde inicia a fase complementar de sua expresso potica. Trata-se, ento, de abandonar definitivamente a norma da constante romntica; mais ainda, neg-la, super-la, se possvel atingir uma potica totalmente diversa ao ponto de sair do prprio tempo cultural bsico para um tempo indito. Este tempo indito seria a representao do mundo atravs dos instrumentos inslitos que a nova conscincia esttica assumida capaz de projectar. Criar uma forma de tal maneira nova para a poesia porventura feita da pulsao de todos os elementos objectivos da realidade Imediata que chegasse a ofender as sensibilidades lricas ligadas norma convencional. Como diria Mukarovsky, uma obra viva que oscile entre o estado passado e aquele futuro da norma potica, onde o presente vem advertido como tenso entre a norma passada e a sua violao destinada a transformar-se em parte da norma futura (51). um projecto da modernidade, a mesma modernidade que hoje, ao analisar a obra verdeana,

  • 55

    nos impele a consider-lo um poeta de excepo, mesma tendo em conta os limites gerais de uma obra geralmente irregular, poeta feito de um tempo indeterminado que chega a atingir at o nosso (52).

    Naturalmente, considerando uma to particular dimenso potica, reconhecemos que a operao expressiva de Cesrio na sua maturidade a representao maior de uma mitologia pessoal, com os mitos transformados em simbolos expressivos e representados por significantes de alta funcionalidade. Estes significantes verdeanos conseguem evolver-se to completamente ao ponto de superarem os estgios conceituais primrios para sedimentarem-se como complexos funcionais de subtis comunicaes. Desde ento, dizendo com Dmaso Alonso, na poesia verdeana o significado abandona o conceitual para fazer-se representao da realidade.

    Os motivos velhos no conhecimento novo do mundo

    Nesta passagem para a liberdade absoluta da expresso potica, Cesrio preserva determinados motivos da norma potica do passado que est por ser superado. So aqueles motivos das estruturas constantes de uma sensibilidade que, preservados ainda que modificados, indicam a continuidade dos tempos existenciais do poeta. O amor e a morte so os dois motivos centralizantes dessa continuidade existencial do canto verdeano.

    Os dois motivos j agora no se apresentam nem como estruturas complementares, um do outro, nem

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    como elementos absolutamente configurantes da potica geral do autor.

    O sentimento da morte, ainda que motivo menos expresso nessa fase da maturidade, aquele que sofre mais profunda alterao como significante potico. Ao contrrio da maneira tpica da recorrncia romntica, agora a morte representa para o poeta uma dimenso ontolgica. Ele a toma como expresso do prprio ser. Por isso mesmo, o antigo tom exterior com que o topos vinha tratado na fase da constante romntica cede agora lugar complexa interiorizao. A morte para Cesrio o referente da prpria vida, aquele dado que permite do negativo afirmar a grande adeso prpria eternidade. Para Cesrio Verde, a sua morte alguma coisa que est para alm do possvel, pela ansiosa afirmao do viver. Quando, porm, ele contempla e sofre a morte do(s) outro(s), como sofrer a ambiguidade absoluta, pois o sentimento da morte do outro sempre o sentimento da prpria morte pessoal, no considerada, indesejada.

    Em Cesrio predomina o desejo da eternidade da vida pessoal, como correspondente natural da busca da perfeio:

    Se eu no morresse, nunca! E eternamente Buscasse e conseguisse a perfeio das

    [cousas! (Horas mortas)

    Porm, diante dos males, misrias do mundo;

    diante das incertezas, das pequenas e muitas incertezas; diante da morte do outro, Cesrio sempre se confronta com a sua indesejada morte:

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    No desejamos, ns, os sem defeitos , Que os tsicos peream! M teoria, Se pelos meus o apuro principia, Se a Morte nos procura em nossos leitos! A mim mesmo, que tenho a pretenso De ter sade, a mim que adoro a pompa Das foras, pode ser que se me rompa Uma artria, e me mine uma leso.

    (Ns) A viso da morte, vivida em dimenso ontolgica,

    acompanha toda a poesia verdeana e lhe transmite aquele tom de ambiguidade que o leva

    A claridade, a robustez, a aco. Esta manh, sa com minha prima, Em quem eu noto a mais sincera estima E a mais completa e sria educao. ....................................................................... .......................................................................

    E enfim calei-me.

    Os teus cabelos muito loiros Luziam, com doura, honestamente; De longe o trigo em monte, e os calcadoiros, Lembravam-me fuses de imensos oiros, E o mar um prado verde e florescente.

    Vibravam, na campina, as chocas da manada;

    Vinham uns carros a gemer no outeiro, E finalmente, enrgica, zangada,

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    Tu inda assim bastante envergonhada, Volveste-me, apontando-me o formigueiro:

    No me incomode, no, com ditos detestveis No seja simplesmente um zombador! Estas mineiras negras, incansveis, So mais economistas, mais notveis, E mais trabalhadoras que o senhor.

    (De vero) Nunca mais amarei, j que no amas, E preciso, decerto que me deixes! Toda a mar luzia como escamas, Como alguidar de prateados peixes.

    a contemplar o mundo em variadas dimenses, desde o mximo de empenho com a realidade e com o seu tempo, at o mais intenso abandono consigo mesmo.

    Nesta ambiguidade diante da vida, a mulher e o amor actuam como referentes do desejo de integrao com a vida mesma. J ento o amor no mais visto naquela dimenso de superficialidade tpica dos primeiros poemas. O amor dedicado mulher agora se faz instrumento de construo do prprio ser do poeta. A mulher amada o ser objectivo, real, que dimensiona a realidade. Por ela o poeta se mede com o mundo e dele toma conhecimento. Atravs do amor, ele constri uma viso da vida. Por isso mesmo, a mulher , ao mesmo tempo, realidade possuda e possibilidade de no-conquista. Na dualidade de tal experincia, para no ceder ao convencionalismo dessas colocaes lricas com a correspondente perda

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    da conscincia do mundo objectivo , o poeta confronta sempre a amada com os limites imediatos do real. Assim, mesmo na perda do amor, ele no se perde. um constante jogo de nomeao de sentimentos e de relaes objectivas. Uma constante reapropriao da identidade sempre ameaada pela possvel impossibilidade do amor, atravs da comunicao irnica do lirismo amoroso.

    No campo; eu acho nele a musa que me

    [anima: E como necessrio que eu me afoite A perder-me de ti por quem existo, Eu fui passar ao campo aquela noite E andei lguas a p, pensando nisto. E tu que no sers somente minha, As carcias leitosas do luar, Recolheste-te, lida e sozinha, gaiola do teu terceiro andar! (53)

    (Noite fechada) Um ngulo especial, quase isolado, mas em

    correlao com o lirismo amoroso de Cesrio Verde, a referncia mulher em dimenso negativa, como a prostituta de tantos poemas, a actriz de Cristalizaes e as burguesinhas do Catolicismo de Ao gaz:

    As burguesinhas do Catolicismo Resvalam pelo cho minado pelos canos; E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,

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    As freiras que os jejuns matavam de [histerismo (54).

    A assuno da realidade

    A tomada de conscincia da realidade em Cesrio Verde da qual sairo os poemas definitivos se faz completamente, em duas dimenses: A) dimenso dos significantes; B) dimenso dos significados.

    A Dimenso dos significantes A conquista da renovada forma potica verdeana

    pressupe igualmente uma potica autnoma, livre e pessoal. Cesrio estrutura, no grande sistema da poesia nova da poca realista em contacto directo com os companheiros de gerao, de um Antero de Quental a um Ea de Queirs; de um Gomes Leal, um Guerra Junqueiro, a um Ramalho Ortigo uma prpria e inconfundvel potica, na dialctica interior do poema. uma potica do real, onde a viso do mundo imediato, quotidiano, quase absolutamente alheio a qualquer metafsica, materialisticamente concebido e racionalmente expresso, no concede espao ao lirismo tradicional. Interessa-lhe sempre e somente a vida que o rodeia (55), e aliando o pequeno-grande universo de suas experincias objectivas, de seu tempo real e histrico, com a mais ntima dimenso espiritual, projecta no poema a fora das dualidades do seu ser individual.

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    A, 1 O primeiro elemento da potica da dualidade encontra-se na tpica do emparedado:

    Mas se vivemos, os emparedados, Sem rvores, no vale escuro das muralhas!... Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

    (Horas mortas) A dramtica situao do homem emparedado na

    prpria existncia recebe, em Cesrio Verde, uma conotao de racionalidade que informa ao poeta a singularidade de sua situao no mundo. A mediao do racional faz com que a dimenso dramtica mais do que referida ao prprio sujeito do drama, se enderea viso do mundo deste mesmo sujeito. Porm, sendo um movimento profundo da afectividade ainda que mediado pelo plano da racionalidade esta tpica sempre traduz a dinmica existencial do poeta, ainda quando se trata daqueles momentos quando o empenho para com o mundo exterior e para com o outro condiciona em maneira completa o poema (56).

    Cesrio Verde um daqueles poucos assinalados, um daqueles raros exemplares de uma estirpe herica que vive o sentimento do muro.

    A, 2 Partindo desta tpica, a potica verdeana se

    alarga na apreenso do real. E o faz a partir de um autobiografismo esttico e, muitas vezes, literrio, que porm vem sempre equilibrado por uma profunda racionalidade:

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    Eu hoje estou cruel, frentico, exigente; Nem posso tolerar os livros mais bizarros, Incrvel! J fumei trs maos de cigarros

    Consecutivamente.

    .......................................................................

    .......................................................................

    Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta No fundo da gaveta. O que produz o estudo? Mais duma redaco, das que elogiam tudo,

    Me tem fechado a porta. A crtica segundo o mtodo de Taine Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa Muitssimos papis inditos. A imprensa

    Vale um desdm solene. (Contrariedades)

    A dialctica que predomina sempre na problemtica

    interior do poema verdeano se apoia precisamente nos elementos formais mais fechados, na procura do testemunho exacto:

    A adulao repugna aos sentimentos finos; Eu raramente falo aos nossos literatos, E apuro-me em lanar originais e exactos,

    Os meus alexandrinos. (Contrariedades)

    A exaltao dos valores formais da retrica clssica,

    como elemento disciplinador do lirismo, vem

  • 63

    imediatamente modificado pela atitude irnica, em confronto com estes mesmos elementos (57).

    Esta mesma ironia, em outra perspectiva da questo artstica, desmitiza a excelncia abstracta da potica da modernidade quando esta vem isolada em si mesma, e no situada na objectividade do mundo e das coisas:

    E eu que busco a moderna e fina arte, Sobre a umbrosa calada sepulcral, Tive a rude inteno de violentar-te Imbecilmente, como um animal!

    (Noite fechada) Cesrio edifica conscientemente a sua potica

    sentimental, em anttese com o poeta ingnuo, dando corpo diferenciao proposta por Schiller, quando ele mesmo teoriza em carta a Silva Pinto: Eu sou frio, pausado, calculista como todas as organizaes criadas neste meio comercial. E tu no. s ardente, imaginoso, excessivo, e isso leva a imensas decepes e a imensos desgostos (58).

    Esta potica da realidade verdeana ampliada constantemente pela dialctica do poema sempre em progresso conduz a uma especfica forma potica, na qual muitas vezes predomina a perspectiva do significante sobre a do significado; mas, na qual, na maior parte dos casos, verifica-se o contrrio, isto , a predominncia da perspectiva do significado. Porm, com o desenvolvimento da tcnica poemtica verdeana, os dois elementos tendem a uma quase coerente identificao.

  • 64

    A, 3 Para chegar a este resultado final de modernidade do poema, longo o exerccio de novos instrumentos significantes. A operao essencial, neste caso, a reduo da linguagem potica da concepo retrica tradicional onde vigem os elementos lingusticos tpicos da lngua da poesia a um determinado verso capaz de acolher igualmente a lngua da prosa. A inter-relao entre prosa-poesia, prosaico-potico, constitui a operao focal da herica proposta lingustico-potica de Cesrio Verde.

    O prosaico, neste caso, a identidade do real, matria-prima da poesia verdeana. Quanto mais real, tanto mais prosaico quanto mais prosaico, tanto mais potico (59).

    Para conquistar uma tal expresso, o poeta deve debruar-se fundamentalmente sobre a sintaxe potica, atravs da aplicao dos mais amplos elementos lexicais no-tradicionais. Faz-se o compromisso com o lxico realista que muitas vezes conduz ao feio que se transforma em novo ideal de beleza mas que, superada a ntima natureza de abstraces tpica da imagem prosaica poder chegar linguagem potica, com a reduo desta mesma imagem prosaica a imagem potica (60).

    O lxico realista de Cesrio Verde apresenta-se inovador seja no plano da denotao predominantemente nos casos dos nomes , seja na comunicao conotativa ainda os nomes e, em modo especial, nos adjectivos de qualidade e de intensidade.

    Este lxico inovador se mostra identificado com as pesquisas da nova potica realista, com as tendncias daquela gerao de 70 que tanto inovou no

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    pensamento e na expresso cultural de Portugal (61). Porm este igualmente um lxico especfico do autor de O Sentimento dum Ocidental. Os exemplos, nos dois sentidos, so copiosos: lama no caminho; papel de seda; gordo frade; Agonizava o Sol gostosa e intensamente; Nas trevas, a cortar pedaos de cortia!; Eu que sou feio, slido, leal; Uma chusma de padres de batina; altos funcionrios na nao; J fumei trs maos de cigarros; E a regateira como vendera a sua fresca alface; E dera o ramo de hortel que cheira; ralo do regador; couves repolhudas, largas; frugais abboras carneiras; Os de marmita, Para forrar, por ano, alguns patacos; chapu de coco; E eu que era um cavalo; barraces de gente pobrezita; os rapages, morosos, duros, baos; japonas, coletes, picaretes, valadores Atiram terra com as largas ps; Homens de carga; pano cru; suspensrios, aneurisma, tascas, cafs, tendas, portes, armamentos, sarampo, alfndega, armazens, coveiros, mdicos, Cho de lava, argila, areia, aluvies, Se uma vespa lanava o seu ferro; zanges, alta parreira moscatel; a Coroa, o Banco, o Almirantado; esterco, amanho, Dedos-de-dama, Tetas-de-cabra, enxs de martelo, abatiam os queixos com sezes; pulgo, lagarta, caracis, borregos, altas botas barrosas; Com fouce, sachos, enxadas; etc., etc. O enriquecimento lxico-sintctico da linguagem verdeana encontra elemento de intensificao conotativa no uso dos nomes de pessoas e lugares mesmo sendo este um procedimento usual da proposta realista. Todavia, Cesrio Verde apresenta um emprego dos nomes prprios no mais amplo

  • 66

    sentido semntico, de tal maneira que estes sintagmas se incorporam significativamente na mitologia pessoal do poeta.

    Bastam alguns exemplos: Balzac, Clarisse, Ana de ustria, Charles Baudelaire, Taine, Zaconne, Herbert Spencer, Hyde-Park, Madrid, Paris, S. Petersburgo, Berlim, Mlaga, Alicante, etc., etc.

    Outro instrumento lxico-sintctico de rara eficcia na linguagem verdeana, com marcantes referimentos semnticos, o vocabulrio de origem estrangeira. Este lxico especial uma das notas caracterizadoras do esprito de liberdade de que vive a expresso potica de Cesrio Verde, ao mesmo tempo que um dos signos mais salientes do ideal de internacionalismo da gerao de 70 (62).

    Ao lado dos elementos mais caractersticos do universo lexical verdeano, cumpre relevar a importncia para a modernidade de sua potica do uso de sintagmas ligados linguagem coloquial. Talvez mais do que em qualquer outro momento da linguagem de Cesrio, nesse como igualmente no caso de uso de diminutivos e aumentativos o imaginativo, o conceitual e o afectivo encontram complexos procedimentos de fuso, entre todos os termos, sem, entretanto, perda para nenhum dos elementos singulares.

    Mais morta do que viva, a minha [companheira

    Nem fora teve em si para soltar um grito; E eu, nesse tempo, um destro e bravo

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    [rapazito, Como um homenzarro servi-lhe de

    [barreira! (Em petiz)

    Pois bem. O Inverno deixou-nos. certo. E os gros e as sementes Que ficam doutros outonos Acordam hoje frementes Depois duns poucos de sonos.

    (Provincianas)

    Bem me lembro das altas ruazinhas, Que ambos ns percorremos de mos dadas. As janelas palravam as vizinhas; Tinham lvidas luzes as fachadas.

    (Noite fechada) O personalssimo lxico verdeano bom exemplo

    para esclarecimentos sobre os conceitos tericos referentes tonalidade lexical de uma obra literria (63).

    A, 4 Todos esses elementos lexicais, com

    endereos sintcticos, estruturam a mitologia potica verdeana, que cedo atingiu o nvel de smbolos, elementos que, ligando-se ao procedimento metafrico geral do poema, estabelecem a unidade poemtica definitivamente conquistada.

    No procedimento metafrico geral, a maturidade da linguagem potica verdeana se exprime apoiada em modo particular na ironia e no humour.

  • 68

    J agora, em maneira completamente distinta daquela presente nos primeiros poemas, o processo de metaforizao do mundo atravs da ironia nada mais tem a que ver com aquela incipiente expresso, ligada mais verve discursiva que ao verdadeiro humorismo criador.

    A ironia verdeana se apresenta, ento, numa profunda atitude de reflexo, como complexo elemento de linguagem. Atravs dele, o poeta supera a contingncia da expresso imediata ainda que sempre ligado objectividade nomeada. A metfora da ironia faz-se, assim, instrumento de perene recriao da realidade, significante que permite a contnua intuio do significado.

    E foi, ento, que eu, homem varonil, Quis dedicar-te a minha pobre vida, A ti, que s tnue, dcil, recolhida, Eu, que sou hbil, prtico, viril.

    (A dbil) E atravs a imortal cidadezinha, Ns fomos ter s portas, s barreiras, Em que uma negra multido se apinha De teceles, de fumos, de caldeiras.

    (Noite fechada) Porm, desempenhando o seu papel na pea Sem que inda o pblico a passagem abra, O demonico arrisca-se, atravessa Covas, entulhos, lamaais, depressa, Com seus pezinhos rpidos, de cabra!

    (Cristalizaes)

  • 69

    A ironia verdeana toca todos os limites expressivos,

    na participao intensa com a objectividade e na auto-contemplao de sua colocao existencial, atingindo aquele carcter reflexivo que tanto interessava a Walter Benjamim (64):

    Porm, hostis, sobressaltados, ss, Os homens arquitectam mil projectos De vitria! E eu duvido que os meus netos Morram de velhos como os meus avs!

    (Ns) A, 5 A largueza do significante em Cesrio Verde

    uma das muitas razes de sua modernidade perene-se refora com a sabedoria rtmica do verso que to fortemente o caracteriza. Aparentemente se apoia, como ele mesmo o diz, na sabedoria do alexandrino, na disciplina que o metro impe, mas principalmente na ampla respirao que o mesmo permite ao canto, desde que este mesmo alexandrino no seja reproposto conforme as lies j usuradas.

    O alexandrino de Cesrio Verde, como consequncia de sbio uso da sinalefa, do enjambement, do hiprbato, comparaes, metforas e metonmias de imagens, hiprboles, etc., um verso de doze slabas que permite a recolha afectiva de muitos outros metros. Por inata sabedoria, nos limites aparentes das slabas mtricas convencionais, o verso verdeano se compraz em variedade de ritmos. At chegar sensao do verso livre, nos inumerveis momentos de inveno rtmica:

  • 70

    Foi quando em dois veres, seguidamente [a Febre

    E a Clera tambm andaram na cidade.

    Ou ainda: Eu hoje estou cruel, frentico, exigente

    e mais ainda: E o meu desejo nada em poca de banhos, Chora-me o corao que se enche e que se

    [abisma. Dentro de uma aparente disciplina mtrico-formal,

    encontra-se a genial capacidade de modificar a exactido formal para a conquista da exactido informal de um ritmo compacto de liberdade expressiva. Trata-se de uma aparente instintividade que encontra, entretanto, razes na conscincia da tradio rtmica portuguesa, desde as conquistas camonianas at s convenes mtricas neoclssicas e ao esprito divinatrio da lio romntica.

    Muitos so os instrumentos retricos e lingusticos para a realizao rtmica verdeana. Uma em particular deve ser destacada: a propriedade rtmica das rimas. Essas so de vrias espcies, desde aquelas ligadas ao convencionalismo do verso portugus, at as outras, de improvisas iluminaes.

    Das primeiras podem ser exemplos, j notados pela lio clara de Melo Nbrega, rimas com eliso de

  • 71

    vogais realizada na elocuo normal como aproximao rmica entre formas dactlicas e paroxtonas:

    Aceito os seus desdns, seus dios

    [idolatro-os; E espero-a nos sales dos principais teatros.

    Ou ainda o tipo chamado de rima surda, como consequncia do encadeamento dos versos:

    E saio. A noite pesa, esmaga. Nos Passeios de lajedo arrastam-se as impuras: moles hospitais! Sai das embocaduras Um sopro que arrepia os ombros quase

    [nus. (65). Particularmente significativa e de interesse rtmico,

    com reflexos no plano sintctico-semntico, so as rimas feitas com palavras estrangeiras:

    procura da libra e do shilling Eu andava abstracto e sem que visse Que o teu alvor romntico de miss Te obrigava a morrer antes de mim!

    E, mais, os casos das rimas excepcionais, carregadas

    no somente de inveno rmica, mas de intensidade como significante:

    Era admirvel neste grau do Sul! Entre a rama avistar teu rosto alvo, Ver-te escolhendo a uva diagalvo,

  • 72

    Que eu embarcava para Liverpool. Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos Ocultos nesse abismo ebnico e to bom Como um licor renano a fermentar nos

    [copos, Abismo que se espraia em rendas de

    [Alenon! Metlica viso que Charles Baudelaire Sonhou e pressentiu nos seus delrios

    [mornos, Permita que eu lhe adule a distino que

    [fere, As curvas da magreza e o lustre dos

    [adornos!

    E ainda mais as rimas internas, aguando as rimas convencionais:

    Oh! As ricas primeurs da nossa terra E as tuas frutas cidas, tardias, No azedo amoniacal das queijarias Dos fleumticos farmers de Inglaterra! Di-me a cabea. Afafo uns desesperos

    mudos: Tanta depravao nos usos, nos costumes! Amo, insensatamente, os cidos, os gumes

    E os ngulos agudos. A, 6 Cesrio Verde com estes e mais

    significantes que percorrem toda a sua obra consegue

  • 73

    responder de modo positivo ao temor expresso por Schiller sobre o perigo que correm os poetas que procuram passar da poesia musical para a poesia plstica. A instintiva predisposio de Cesrio para a valorizao de tudo que de fora, unida lenta e herica conquista de seus significantes, lhe permite a assuno de uma linguagem caracteristicamente plstica. Para tanto, a forma potica verdeana teve de atingir aquela capacidade de percepo imediata da imagem que Bergson definiu na sua anlise da imaginao criadora:

    Nenhuma imagem substituir a intuio da durao, mas muitas imagens diversas entre si, desligadas da ordem de coisas demasiado distintas, podero, com a convergncia da prpria aco, dirigir a conscincia sobre o preciso ponto onde se deve recolher uma determinada intuio. Escolhendo as imagens as mais disparatadas possveis, impedir-se- que uma qualquer delas possa usurpar o lugar da intuio que ela deveria reevocar, j que neste caso ela seria imediatamente expulsa pelas rivais... (66).

    A modernidade de Cesrio Verde a mesma modernidade que tanto conta para ns, hoje, est precisamente neste sentido imaginstico. Ele, por natural predisposio pessoal e por continuada pesquisa de expresso, conquista um inslito equilbrio e eficcia formal entre o musical e o plstico na forma potica.

    O sentido plstico da forma verdeana se encontra naquela capacidade de empregar significantes poticos que nos impressionam pelos seus ntimos, intensos e sempre captveis valores visivos. Os diversos elementos que ento podemos recolher de volume,

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    cromatismo, de representao das linhas, signos, de especialidade compositiva no nos chegam como imitao das artes visuais, mas como elementos visivos da prpria linguagem. No existem quadros no poema verdeano, mas, sim, materiais de imediata percepo visiva que nos conduzem a ver os significantes poticos expressos.

    Cesrio Verde como poucos poetas do sculo XIX atinge a dimenso da linguagem impressionista dentro do natural expressionismo lingustico (67).

    Nele, esta conquista que naturalmente no pode atingir as maiores consequncias pela morte imatura prematura faz-se ainda mais comovente se se considerarem os limites ambientais, existenciais e histrico-culturais que lhe serviram de fundo. Mais ainda se uma tal considerao for comparada a outras semelhantes, em particular de Baudelaire. Pode-se dizer que em Cesrio a experincia impressionista interessando todos os sectores da arte de vanguarda do sculo XIX ocorre em larga antecipao, fazendo com que o impressionismo literrio seja anterior ao impressionismo pictrico.

    A lngua potica portuguesa se enriquece e alarga expressivamente com significantes revolucionrios de tipo:

    Na nvoa azul, a caa, as pescas, os

    [rebanhos Entre um saudoso gs amarelado Eu sinto ainda a flor da tua pele Toda mar luzia como escamas Luziam, com doura, honestamente Vibra uma imensa claridade crua

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    Um cheiro salutar e honesto a po a forno E fere a vista, com brancuras quentes Amareladamente, os ces parecem lobos.

    Os significantes de impressionismo lingustico da

    inveno verdeana so elementos essenciais para a florao da prxima potica simbolista. Certamente que significantes da intensidade dos acima citados e muitos outros existentes no texto verdeano so claros smbolos capazes de traduzir todo um amplo e ao mesmo tempo concreto universo lrico, porm, a poesia verdeana mantm-se coerente na sua potica epocal, e tem de Simbolismo somente aquilo que este movimento essencial da revoluo esttica preserva da lio do Realismo (68).

    B Dimenso dos significados

    Atingida a especial dimenso do significante, os significados de Cesrio Verde, nas mais das vezes, no so conceitos, mas, sim, inventivas representaes da realidade.

    A mitologia pessoal do poeta se apresenta pronta para a expresso objectiva. uma mitologia totalmente ligada ao seu tempo s suas lutas, conflitos, injustias, ideais, conquistas; sua cincia, poltica, sua ideologia como desejava Schiller para a mais correspondente natureza do poeta da revoluo moderna, que ela j no mais se limita dimenso usual do realismo. Como acontece com os grandes lricos no dizer de Cassirer Cesrio Verde conquista a capacidade de desdobrar a viso mtica no mximo de intensidade e na plenitude da conscincia da fora objectiva. Porm, e mais (acrescentamos) esta

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    objectividade se livra de toda e qualquer constrio realista (69).

    B, 1 O universo dos significados verdeanos vive

    da constante existencial do poeta. A mensagem de Cesrio Verde, que tem permitido tantas leituras aos analistas de seu texto, leituras muitas vezes no correspondentes mensagem expressa, um coerente sistema de aparentes contradies. De ambiguidade mitolgica ela pulsa, o que muitas vezes apresenta o plano objectivo das aparentes contradies verdeanas. Nele, como em todo grande lrico, a mitologia pessoal se alimenta seja da dimenso correspondente maior coerncia com o prprio universo ontolgico, seja do plano ideologicamente assumido de valores no sempre harmoniosos com este mesmo universo ontolgico.

    Esta dualidade se expressa principalmente na grande dicotomia da maturidade expressiva de Cesrio, a do campo-cidade. Esta dicotomia, para a melhor compreenso potica dos significados verdeanos, deve ser lida com a chave da dialctica ontolgica vivida pelo poeta. Desta maneira nos ser possvel verificar como o campo, a vida ligada mais directamente natureza livre e, por correspondncia, a uma cosmoviso apoiada na tradio e na estabilidade dos valores existenciais comuns de todo um longo tempo histrico-cultural, corresponde mais ntima predisposio do homem Cesrio Verde. Mas, ao mesmo tempo conhecida j a sua fora de unificao entre significantes e significados captaremos e especfica expresso verdeana relacionada com os