certificação de competências - a necessidade de avançar numa perspectiva formativa

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02FormaoHumanizar cuidados de sade: uma questo de competncia

Maio de 2001

Ministrio da SadeSecretaria de Gesto de Investimentos em Sade Projeto de Profissionalizao dos Trabalhadores da rea de Enfermagem - PROFAE

SumrioEditorial3 Desenvolvendo idias para a organizao de um sistema de certificao de competncias na rea da sade

Artigos5 Qualificao, competncias e certificao: viso do mundo do trabalho Neise Deluiz 17 Qualificao, competncias e certificao: viso educacional Marise N. Ramos 27 Certificao de competncias: a necessidade de avanar numa perspectiva formativa La Depresbiteris 39 Certificao de competncias em educao profissional: concepo e implementao Cleunice Matos Rehem 45 Sistema de Certificao de Competncias PROFAE: bases conceituais Milta Neide Freire Barron Torrez 53 Certificao de competncias profissionais: o que o PROFAE est pensando e fazendo Cludia Maria da Silva Marques

Entrevistas61 Certificao ocupacional: aproximando formao e trabalho Nassim Mehedff Secretrio de Polticas Pblicas de Emprego do Ministrio do Trabalho e Emprego 65 Sistemas de certificao de pessoal como instrumentos de valorizao profissional Alfredo Lobo Secretrio Executivo do Comit Brasileiro de Certificao

Editorial

Desenvolvendo idias para a organizao de um sistema de certificao de competncias na rea da sadeEsta segunda edio da revista Formao traz para o leitor vrios elementos do debate de um importante, complexo e polmico tema da atualidade: a certificao de competncias. Quando assumimos a responsabilidade de promover a articulao entre os atores envolvidos com a prtica do auxiliar de enfermagem, a fim de organizar e implementar um sistema de certificao de competncias voltado para os egressos dos Cursos de Qualificao Profissional de Nvel Tcnico em Auxiliar de Enfermagem do PROFAE, assumimos tambm a responsabilidade de buscar, sistematizar e divulgar informaes sobre este tema. Foi com este propsito que realizamos, em novembro de 2000, o seminrio Certificao de Competncias para a rea da Sade: os desafios do PROFAE, cujos objetivos estavam focados em dois principais aspectos: abrir o debate sobre o tema (j existente nos setores do trabalho e da educao) entre os atores do setor sade, e analisar as perspectivas de organizao e implementao das metodologias a serem utilizadas pelo PROFAE. Nosso desafio hoje desenvolver um processo que possibilite identificar, promover e gerir os saberes que devem ser mobilizados pelos trabalhadores, para que estes atuem segundo a premissa bsica de melhorar a qualidade da assistncia em sade, incorporando em suas aes os princpios da integralidade da ateno, da humanizao do cuidado e do reconhecimento da autonomia e dos direitos do usurio dos servios de sade. Nesta edio so apresentados artigos e entrevistas (alguns deles, inclusive, relatos de apresentaes realizadas no prprio seminrio), que abordam de maneira atualizada e crtica o tema da certificao de competncias profissionais. Queremos oferecer ao leitor uma viso geral dos pressupostos e parmetros que orientam a organizao e implantao de sistemas de certificao, tanto na perspectiva do mundo do trabalho quanto na perspectiva educacional. Esperamos, desta maneira, estar contribuindo para o debate sobre este tema, e cumprindo nosso objetivo de tornar esta publicao um instrumento de divulgao e mobilizao de idias no campo da educao profissional em sade. Cludia Maria da Silva Marques Coordenadora do SCC/PROFAE

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Opinio

Qualificao, competncias e certificao: viso do mundo do trabalho1Neise Deluiz Doutora em Educao - Universidade Federal do Rio de Janeiro

As exigncias crescentes de produtividade e de qualidade e um contexto de mercado de trabalho instvel e flexvel ampliam os requisitos de qualificao dos trabalhadores e tornam cada vez mais generalizada a implantao de modelos de formao e de gesto da fora de trabalho baseados em competncias profissionais. Neste artigo, a autora mostra a importncia de ampliar a qualificao dos trabalhadores em sade, tanto na dimenso tcnica especializada, quanto na dimenso tico-poltica, comunicacional e de inter-relaes pessoais, para que eles possam participar como sujeitos integrais no mundo do trabalho. Nas ltimas duas dcadas, o mundo tem presenciado mudanas no contexto econmico, poltico, social e cultural. A configurao que o capitalismo vem assumindo a partir dos anos 1970 revela a crise do padro de acumulao capitalista estruturado sob o binmio taylorismo-fordismo, e sua alterao ou substituio por formas produtivas flexibilizadas e desregulamentadas, o que se convencionou denominar como a especializao flexvel (Piore e Sabel, 1984) ou toyotismo. A produo em massa fordista que vigorou a partir de 1913 na indstria automobilstica norteamericana era um padro de organizao industrial baseado na produo em srie, no uso intensivo de materiais e no capital fixo, com base material calcada na eletromecnica e na petroqumica, forte dependncia da energia oriunda do petrleo e localizao em grandes concentraes industriais. O fordismo adotava como forma de organizao do trabalho um modelo de gesto da mo-de-obra fundado na extrema diviso do trabalho e na fragmentao do saber, decorrentes do parcelamento das tarefas e da separao entre concepo e execuo. Mas o modelo de desenvolvimento fordista que atingiu seu auge entre anos ps II Guerra e o incio da dcada de 1970 era muito mais do que um modo de organizao da produo e do trabalho. Ancoravase na produo em larga escala e no consumo da ampla massa de trabalhadores, alinhava-se com a poltica econmica keynesiana do pleno emprego e da interveno do Estado na esfera econmica e apoiava-se na presena de um Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), que desenhava polticas sociais e de seguridade social que permitiam a produo e a reproduo da fora de trabalho. Na tica poltica, possibilitou o desenvolvimento de uma forte estrutura sindical e de um complexo sistema de relaes industriais, que inclua a participao dos trabalhadores tanto na esfera da produo, por meio dos sindicatos, quanto na esfera pblica, nos marcos da social-democracia.1 Texto base da palestra proferida pela autora no Seminrio Certificao de Competncias para a rea de Sade: os desafios do PROFAE, realizado em novembro de 2000, em Braslia-DF. 7

A crise que assolou o sistema capitalista no incio da dcada de 1970 e que gerou as transformaes no mundo da produo e do trabalho que hoje vivenciamos revelou as fragilidades do modo de organizao da produo e do trabalho industrial baseado no taylorismo/fordismo. A crise energtica dos anos 1970, a resistncia dos trabalhadores organizados produo fordista e as mudanas no mercado consumidor de bens e servios com demandas cada vez mais exigentes e segmentadas acirraram a concorrncia intercapitalista, fazendo com que as empresas se reestruturassem, adotando estratgias de racionalizao e diminuio de custos e de aumento da produtividade e qualidade de seus produtos e servios. Para enfrentar os mercados cada vez mais competitivos e instveis, as empresas passaram a investir em novas tecnologias de base microeletrnica e adotaram novas concepes organizacionais. O uso intensivo de tecnologias de base microeletrnica tem um papel relevante neste contexto, j que estas possibilitam ganhos de produtividade ao substituir em grande escala o trabalho vivo, permitem o surgimento de novos processos e produtos, e propiciam rpidas adaptaes na produo de bens e servios diante das flutuaes do mercado. As novas estratgias de administrao e de gesto da fora de trabalho possibilitam: a integrao dos processos produtivos; a flexibilizao no s de produtos e de processos, como tambm do trabalho; a descentralizao da produo, atravs da qual a empresa matriz (empresa-me) estabelece ampla rede de fornecedores subcontratados, terceirizando atividades; o enxugamento das estruturas de operao, para diminuir custos; e mudanas na diviso do trabalho, integrando funes anteriormente separadas como a produo e o controle de qualidade (Deluiz, 1994, 1995). Nos anos 1990, as mudanas na dinmica do capitalismo internacional

aprofundam-se e expandem-se. A internacionalizao dos mercados e sua crescente integrao, a tendncia formao de blocos regionais para o intercmbio industrial e comercial, a fuso de empresas que formam grandes conglomerados, e o deslocamento de plantas industriais e de empresas de servios para distintas regies do mundo em busca de maiores lucros, menores custos de produo e de mo-de-obra barata com fraco poder de organizao sindical, so alguns dos elementos de sinalizao das transformaes estruturais que configuram a globalizao econmica. O aprofundamento do processo de internacionalizao do capitalismo nas duas ltimas dcadas engendra um novo padro de relacionamento econmico entre os pases e a consolidao de reformas de amplo espectro, traduzidas em polticas de perfil neoliberal adotadas como sada para a crise econmica. Estas polticas defendem mudanas com relao ao tamanho e atribuies do Estado por meio das privatizaes, objetivando diminuir os gastos pblicos. Defendem tambm a no-interveno estatal na economia, na perspectiva do Estado mnimo, a nfase no mercado, com a desregulamentao das economias nacionais, e o desmonte das polticas sociais efetivadas pelo Estado de Bem-Estar Social. A intensificao deste processo tende a ampliar as desigualdades econmicas em escala mundial e as conseqncias sociais so visveis: o desemprego estrutural, a reestruturao do mercado de trabalho, a flexibilidade e a desregulamentao do trabalho, a terceirizao das atividades, o crescimento dos empregos p r e c r i o s , a e xc l u s o d e a m p l o s contingentes de trabalhadores do mercado formal e o empobrecimento da populao. As ameaas aos direitos dos trabalhadores ocorrem em um quadro de dificuldades de organizao e sindicalizao e de desmobilizao de movimentos reivindicatrios. A globalizao econmica corresponde

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globalizao do mundo do trabalho e da questo social. A internacionalizao da economia, a competio entre as empresas, o uso intensivo das inovaes tecnolgicas, a reduo dos postos de trabalho, o desemprego estrutural, o a u m e n t o d a e xc l u s o s o c i a l , o agravamento das diferenas sociais entre os pases ricos e os pobres e entre os ricos e os pobres dentro de um mesmo pas e a devastao do meio ambiente pelo uso predatrio das tecnologias so faces de uma mesma moeda. Trata-se da opo por um modelo de desenvolvimento pautado exclusivamente pela tica econmica, sem preocupao com o indivduo ou com as comunidades e sociedades. Segundo Dowbor (1998), tornou-se cada vez mais difcil identificar o bem-estar humano com o bem-estar da economia. O setor de servios vem sendo atingido, tal como o setor industrial, pelos processos de racionalizao e reestruturao, e sofre os impactos das transformaes tecnolgicas e das mudanas organizacionais nas empresas e instituies. O lado sombrio deste processo revela-se no enxugamento das estruturas de operao e na terceirizao de atividades, cujas conseqncias so o desemprego e o emprego precrio. O lado luminoso a possibilidade de um trabalho com novos contedos, a partir de novas concepes gerenciais e da introduo de tecnologias que exigem maior base de educao geral, alm de novos requisitos e atributos de qualificao profissional. Mudanas na natureza do trabalho e as novas exigncias de qualificao para os trabalhadores No contexto de crise da sociedade do trabalho ocorre um fenmeno paradoxal: a ampliao do desemprego e do trabalho precarizado e informal, e, simultaneamente, a emergncia de um trabalho revalorizado, no qual o trabalhador polivalente, multiqualificado deve exercer, cada vez mais, funes abstratas e

executar, cada vez menos, trabalho manual. Apesar da permanncia do paradigma taylorista/fordista nos espaos produtivos e mesmo de sua convivncia com os novos conceitos de produo, surgem novas tendncias em relao ao trabalho: este se torna mais intelectualizado, complexo, autnomo e coletivo (Schwartz apud Alaluf,1995). Com o avano tecnolgico, as tarefas tornam-se indeterminadas, dadas as possibilidades de mltiplos usos dos prprios sistemas computadorizados, e a tomada de decises passa a depender da captao de uma multiplicidade de informaes obtidas atravs das redes informatizadas. A complexidade advm do fato de que preciso lidar no s com smbolos e signos, mas com o novo, o incerto e o aleatrio nas atividades de trabalho. As novas exigncias do trabalho requerem no s uma flexibilidade tcnico-instrumental, como tambm a flexibilidade intelectual, tendo em vista as necessidades de melhoria contnua dos processos de produo de bens e servios. O trabalho no-qualificado, fragmentado, repetitivo, rotineiro e prescrito, caracterstico do modelo taylorista/fordista, substitudo, nas empresas e instituies que adotaram as novas formas de organizao do trabalho, por um trabalho polivalente, integrado, em equipe, com mais flexibilidade e autonomia. Um trabalho de arbitragem, onde p r e c i s o d i a g n o s t i c a r, p r e v e n i r, antecipar, decidir e interferir em relao a uma dada situao concreta de trabalho. A natureza deste tipo de trabalho reveste-se da imprevisibilidade das situaes, nas quais o trabalhador ou o coletivo de trabalhadores tem que fazer escolhas e opes todo o tempo, ampliando-se as operaes mentais e cognitivas envolvidas nas atividades. O trabalho individualizado cedeu lugar ao trabalho em grupo e as tarefas do posto de trabalho foramN 02 MAIO DE 20019

substitudas pelas funes polivalentes em ilhas de produo, grupos semi-autnomos e equipes de trabalho (Deluiz,1996). Por fim, devido a situaes de trabalho em constante mudana, a atividade inventiva dos trabalhadores passou a ser incessantemente mobilizada e o conhecimento incorporado como saber de gesto. Saber gerir a produo , tambm, saber gerir a si prprio na atividade produtiva (Neves e Carvalho,1997). Neste contexto, o contedo e a qualidade do trabalho humano modificaram-se. Capacidades de diagnstico e de soluo de problemas, e aptides para tomar decises, trabalhar em equipe, enfrentar situaes em constantes mudanas e intervir no trabalho para melhoria da qualidade dos processos, produtos e servios, passam a ser exigidas dos trabalhadores no quadro atual de mudanas na natureza e no processo de trabalho. As caractersticas do trabalho no setor sade O setor sade faz parte do setor de servios, integrando o conjunto das atividades denominado servios de consumo coletivo. Sofre de igual forma os impactos do processo de ajuste macroestrutural que vm atingindo o setor industrial nas duas ltimas dcadas: por um lado, a busca de produtividade e de qualidade pela via da reduo de custos, privatizaes e terceirizaes; por outro, as exigncias de melhoria de processos e servios, por meio de novas formas de organizao do trabalho e de investimentos em programas de capacitao profissional dos trabalhadores. O trabalho em sade guarda, entretanto, algumas especificidades. , no dizer de Offe (1991) um trabalho reflexivo2 , no qual as decises a serem tomadas implicam na articulao de vrios saberes que provm de vrias instncias, tais como a formao geral (com nfase no conhecimento cientfico), a formao profissional (com nfase no

conhecimento tcnico) e as experincias de trabalho e social (qualificaes tcitas), e que so mediados pela dimenso tico-poltica. Caracteriza-se pelas incertezas decorrentes da indeterminao das demandas, pelas descontinuidades e pela necessidade de prontido no atendimento a todos os casos, inclusive os excepcionais. Por isso, o trabalho em sade no pode seguir uma lgica rgida como a racionalidade dos critrios da produo material, sendo difcil a sua normatizao tcnica e a avaliao de sua produtividade (Offe,1991). As caractersticas do processo de trabalho em sade so a complexidade, a heterogeneidade e a fragmentao. A complexidade decorre da diversidade das profisses, dos profissionais, dos usurios, das tecnologias utilizadas, das relaes sociais e interpessoais, das formas de organizao do trabalho, dos espaos e ambientes de trabalho. A heterogeneidade revela-se pela diversidade dos vrios processos de trabalho que coexistem nas instituies de sade e que tm, muitas vezes, uma organizao prpria e funcionam sem se articular de forma adequada com os demais processos de trabalho. A fragmentao encerra vrias dimenses, tais como a fragmentao conceitual, ou seja, a separao entre o pensar e o fazer; a fragmentao tcnica, caracterizada pela presena cada vez maior de profissionais especializados e a fragmentao social, que estabelece relaes rgidas de hierarquia e subordinao, configurando a diviso social do trabalho no interior e entre as diversas categorias profissionais (Quintana, Roschke e Ribeiro,1994). A organizao do trabalho em sade apresenta um forte compo2. Claus Offe define o setor de servios como meta-trabalho, como trabalho reflexivo, enquanto proteo e resguardo, como certificao organizada das formas de reproduo social (p.17). Para o autor, o setor de servios abrange a totalidade daquelas funes no processo de reproduo social, voltadas para a reproduo das estruturas formais, das formas de circulao e das condies culturais dentro das quais se realiza a reproduo material da sociedade (p.15).

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nente gerencial taylorista/fordista, caracterizado por postos de trabalho separados, mas encadeados, tarefas simples e rotineiras, geralmente prescritas, intensa diviso tcnica do trabalho com a separao entre concepo e execuo e grande contingente de trabalhadores semi-qualificados com um mnimo de possibilidade de interveno autnoma no processo de trabalho. Apesar disso, verifica-se desde a dcada de 1980 a influncia do planejamento estratgico e da administrao participativa, e a preocupao com o maior envolvimento e comprometimento dos recursos humanos, tendo por objetivo a melhoria da qualidade do trabalho. A incorporao de novas tecnologias no setor sade tem implicado no surgimento de novos servios e ocupaes, e a reduo da mo-de-obra conseqente varia de acordo com a rea onde estas tecnologias so utilizadas e com a forma de gesto organizacional escolhida. De modo geral, as inovaes tecnolgicas tm implicado em aumento da produtividade do trabalho em sade e favorecido a busca de maior qualificao da fora de trabalho (Nogueira, 1987; Peduzzi,1997). Diante desse quadro, quais deveriam ser as propostas para a formao do profissional de nvel tcnico em sade? Considerando a concepo de sade que tem como referncia doutrinria a Reforma Sanitria e como estratgia de reordenao setorial e institucional o Sistema nico de Sade (SUS), tornase necessrio pensar uma formao de trabalhadores em sade (...) inspirada no paradigma da promoo da sade (que) aponta para a multisetorialidade, de um lado, e a interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade, de outro (BRASIL/ MEC/MS, 1999). No contexto atual de mudanas no processo de trabalho em sade, com a constante introduo de inovaes tecnolgicas e de novas formas de

organizao do trabalho em busca da melhoria da qualidade e da produtividade dos servios, tornam-se imperativos a compreenso global do processo de trabalho, a maior articulao entre os diversos setores para o desenvolvimento de modelos de ateno voltados para a qualidade de vida, a maior integrao das aes dos diferentes agentes que atuam na rea da sade dado o seu carter multiprofissional e interdisciplinar, a necessidade de agregar e recompor trabalhos antes parcelados, a comunicao entre os diferentes membros da equipe, a maior liberdade de deciso e autonomia para intervir no processo de trabalho (Deluiz, 1997), e a humanizao do cuidado na perspectiva do cliente (...) atravs da interao com o cliente/paciente (ponta) e a atuao dos servios de apoio (retaguarda) (id., 1999). fundamental, portanto, ampliar a qualificao dos trabalhadores em sade, tanto na dimenso tcnica especializada, quanto na dimenso tico-poltica, comunicacional e de inter-relaes pessoais (Peduzzi,1997) para que eles possam participar como sujeitos integrais no mundo do trabalho. O modelo das competncias: limites e possibilidade Diante das crescentes exigncias de produtividade e de qualidade dos setores produtivos e em um contexto no qual o mercado de trabalho instvel, flexvel e cambiante, ampliam-se os requerimentos relativos s qualificaes dos trabalhadores e torna-se cada vez mais generalizada a implantao de um modelo de formao e de gesto da fora de trabalho baseado no enfoque das competncias profissionais. A noo de competncia comeou a ser utilizada na Europa a partir dos anos 1980. Trata-se de uma noo polissmica que envolve vrias acepes e abordagens. Origina-se das Cincias da Organizao e surge no quadro de crise do modelo de organizao taylorista/fordista, deN 02 MAIO DE 200111

mundializao da economia, de exacerbao da competio nos mercados e de demandas de melhoria da qualidade dos produtos e de flexibilizao dos processos de produo e de trabalho. Neste contexto de crise, e tendo por base um forte incremento da escolarizao dos jovens, as empresas passam a usar e adaptar as aquisies individuais da formao, sobretudo escolar, em funo das suas exigncias. A aprendizagem orientada para a ao, e a avaliao das competncias baseada nos resultados observveis (Deluiz,1996). O modelo da competncia vem substituir a qualificao, um conceito-chave da sociologia do trabalho, caracterizada por ser multidimensional: qualificao do emprego, definida pela empresa a partir das exigncias do posto de trabalho; qualificao do trabalhador, que incorpora as qualificaes sociais ou tcitas; qualificao operatria (potencialidades empregadas por um operador para enfrentar uma situao de trabalho) e qualificao como uma relao social, resultado de uma correlao de foras capitaltrabalho (Hirata,1994). O conceito de qualificao estava vinculado escolarizao e sua correspondncia no trabalho assalariado, no qual o status social e profissional estava inscrito nos salrios e no respeito simblico atribudo a carreiras de longa durao (Paiva, 2000). O tradicional conceito de qualificao estava relacionado, portanto, aos componentes organizados e explcitos da qualificao do trabalhador: educao escolar, formao tcnica e experincia profissional. Relacionava-se, no plano educacional, escolarizao formal e aos seus diplomas correspondentes e, no mundo do trabalho, grade de salrios, aos cargos e s carreiras. A crise da noo do posto de trabalho associado ao modelo de classificaes e de relaes profissionais fordistas resultou, assim, na adoo de um novo modelo de organizao do trabalho e de gesto da produo

calcado nas competncias e no desempenho individual dos trabalhadores. Neste modelo importa no s avaliar a posse dos saberes escolares ou tcnico-profissionais, mas a capacidade de mobiliz-los para resolver problemas e enfrentar os imprevistos na situao de trabalho. Os componentes no organizados da formao, como as qualificaes tcitas ou sociais e a subjetividade do trabalhador assumem, no modelo das competncias, extrema relevncia. No contexto atual de crise da sociedade do trabalho assalariado e do trabalho prescrito, o modelo de competncia expressa uma profunda modificao na organizao do trabalho e nas relaes sociais dentro da empresa. Para Zarifian (1998) a competncia compreendida como: (...) um assumir de responsabilidade pessoal do assalariado frente s situaes produtivas. Assumir responsabilidades quer dizer uma atitude social de tal sorte que o assalariado vai, por conta prpria, tentar atingir o complexo de performances que ele dever respeitar e tentar enfrentar, sempre a partir de si mesmo, os eventos que ocor rem de for ma imprevista na situao produtiva. (...) Este assumir de responsabilidade uma atitude social de implicao (de engajamento), no sentido em que mobiliza for temente a inteligncia e a subjetividade da pessoa. Significa tambm assumir riscos, pois toda pessoa que aceita assumir responsabilidades corre o risco de fracassar, de no estar altura, e ento de sofrer uma avaliao negativa por parte da hierarquia e de colegas de trabalho. (...) A competncia pode ser definida tambm como o exerccio sistemtico de uma reflexividade no trabalho, que um distanciamento crtico face ao seu trabalho, o fato de que a pessoa questiona freqentemente sua maneira de trabalhar e os conhecimentos que ela mobiliza.

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A literatura corrente sobre a noo de competncia assinala, em termos gerais, que a competncia profissional a capacidade de articular e mobilizar conhecimentos, habilidades e atitudes, colocando-os em ao para resolver problemas e enfrentar situaes de imprevisibilidade em uma dada situao concreta de trabalho e em um determinado contexto cultural. Segundo Zarifian (1999) a competncia exprime uma mudana essencial nas organizaes, configurando uma nova forma de atuao do trabalhador diante destas transformaes e, ao mesmo tempo, um novo modelo de gesto da fora de trabalho. As competncias referem-se s modificaes dos contedos profissionais e dos ofcios. Os objetivos da adoo do modelo das competncias no mundo do trabalho so adequar a formao da fora de trabalho s novas exigncias do sistema produtivo, possibilitar maior flexibilizao do mercado de trabalho pela noo de empregabilidade (o trabalhador passa a ser responsvel por sua insero no mercado, mantendo suas competncias atualizadas) e unificar o sistema de qualificao profissional, tornando possvel a disponibilidade e a mobilidade dos trabalhadores, que passariam a ter livre circulao no mercado de trabalho setorial, intrasetorial, nacional e internacional. No modelo das competncias, os conhecimentos e habilidades adquiridos no processo educacional devem ter uma utilidade prtica e imediata e garantir a empregabilidade dos trabalhadores. A qualidade da qualificao passa a ser avaliada pelo produto final, ou seja, o trabalhador instrumentado para atender s novas necessidades do processo de modernizao do sistema produtivo. O capital humano das empresas precisa ser constantemente atualizado para evitar a obsolescncia e garantir o diferencial de competitividade necessrio concorrncia na economia globalizada. Nesta tica, a questo da empregabilidade colocada

como responsabilidade individual dos trabalhadores e as possibilidades de sua insero ou permanncia no setor formal e no informal dependem da posse daqueles saberes tericos, prticos ou metodolgicos mais adequados competio pelas ocupaes e empregos disponveis. A experincia internacional tem apontado diversas dificuldades na implementao de sistemas de certificao profissional baseada em competncias, entre elas a complexidade tcnica para a identificao de competncias no mercado, a padronizao e normalizao das mesmas, e a falta de agilidade tcnicoadministrativa das instncias encarregadas da normalizao, sobretudo no momento da sua incorporao aos currculos (BRASIL/MEC/SEMTEC, 2000). Outras dificuldades dizem respeito aos referenciais para definir as competncias e aos instrumentos para detectar os seus contedos e captar sua dinmica, isto , quais so as formas de articulao das competncias diante da necessidade de resolver problemas e de que modo so postas em ao em uma situao concreta. Ao d e f i n i r o d e s e n h o d e u m sistema de certificao profissional baseada em competncias (SCC), um dos aspectos a serem evitados a viso adequacionista da formao, voltada para o atendimento imediato das necessidades do mercado de trabalho e das exigncias empresariais. Ao reduzir a formao do trabalhador esfera profissional, em detrimento de uma formao integral que abranja a dimenso de cidadania, a abordagem das competncias tende a tornar-se reducionista, intrumentadora e tecnicista. Outro aspecto a ser enfrentado na definio do sistema a tendncia valorizao dos saberes profissionais operativos, evidenciando a separao e n t r e c o n c e p o e e xe c u o e a ruptura entre os princpios cientficos que fundamentam os conhecimentos profissionais e a sua operao. O SCC deve enfatizar a necessidade deN 02 MAIO DE 200113

ampliao da base de educao geral associada formao profissional, pois, do contrrio, corre-se o risco de se formar trabalhadores descartveis pela rpida obsolescncia de conhecimentos adquiridos de forma imediata e sem o aprofundamento necessrio. Um dos limites a serem considerados na formulao de um sistema de certificao profissional baseada em competncias a tendncia apropriao acrtica da noo de competncia, que conduz a uma abordagem individualizada e individualizante das relaes sociais da formao do trabalhador. preciso ressaltar que as competncias, mesmo tendo um contedo subjetivo e individual, so construdas ao longo da trajetria da vida profissional do trabalhador, o qual partilha de experincias e prticas coletivas. No contexto do trabalho em grupo, em equipe, parece paradoxal que a avaliao das competncias e a sua certificao estejam focadas nos resultados meramente individuais, desconsiderando o fato de que algumas das competncias dos trabalhadores s podero ser mobilizadas e articuladas dentro de coletivos de trabalho e em situaes grupais. Alm disso, os acordos particulares entre empregador e empregado em termos de uma carteira de competncias podem enfraquecer a negociao coletiva e desmobilizar a ao sindical. Em termos conceituais, devem ser apresentadas restries a um sistema de certificao profissional baseada em competncias que no considere a perspectiva histrica, isto , que no leve em conta que as competncias esto condicionadas pelo contexto econmico, social e poltico e so a expresso das relaes sociais e o resultado de negociaes e embates entre interesses nem sempre convergentes do capital e do trabalho. Dessa forma, as competncias a serem desenvolvidas no podem ser deduzidas diretamente do contedo do trabalho, pois refletem relaes de poder entre interlo

cutores sociais envolvidos no processo de produo de bens e de servios, cujos contornos variam historicamente e de acordo com cada contexto cultural. A mobilizao das competncias dos trabalhadores depende, assim, da conduta e estratgias empresariais e institucionais (evidenciada pelos mtodos de gesto da fora de trabalho) e da conscincia e organizao dos trabalhadores, e vai depender tambm das relaes de fora e de poder que se estabeleam no s no interior das empresas e instituies, como na prpria sociedade, onde interagem os atores sociais. Se a construo de competncias pertence aos trabalhadores como sujeitos desse processo, a sua mobilizao e articulao em situaes concretas dependero da possibilidade de constituio de organizaes qualificadoras. Nesse tipo de organizao podem ser criadas possibilidades para os trabalhadores intervirem na gesto do trabalho e nas decises que afetam o processo produtivo. Podem tambm ser criados espaos para a participao, onde os trabalhadores proponham modificaes para melhoria do processo de trabalho, discutam as concepes, mtodos e procedimentos de trabalho, estimulando o aumento da autonomia e do poder de deciso. Os espaos formativos deveriam, em igual forma, constituir-se como organizaes qualificadoras, propiciando aos educandos condies de participao, de dilogo, de negociao e de interveno, o que implicaria em mudanas nos mtodos de ensino e nas estratgias pedaggicas, alm de uma redefinio do papel dos docentes. Finalmente, um outro aspecto a ser enfrentado a preocupao excessiva dos sistemas de certificao profissional com o produto final, em termos de resultados ou desempenhos a serem avaliados, em detrimento da nfase ao processo de construo das competncias. Para o sistema formador fundamental

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compreender: como as competncias se estruturam? Como so adquiridas? Que sujeitos sociais determinam quais as competncias necessrias ao trabalho e os seus respectivos contedos? Como aspecto positivo da constituio de um sistema de certificao profissional baseada em competncias pode-se assinalar a possibilidade de reconhecimento dos saberes dos trabalhadores provenientes de vrias fontes, validando-os independentemente da forma como foram adquiridos: no sistema educacional formal, no sistema de formao profissional ou na experincia profissional (Deluiz, 1996). tambm relevante em um sistema de certificao a possibilidade de construo de competncias ampliadas, abrangendo vrias dimenses anteriormente no reconhecidas ou no valorizadas na organizao do trabalho maneira taylorista/fordista. Diante desses limites e possibilidades, considera-se que um sistema de certificao profissional baseada em competncias deve compreender a competncia em termos gerais como a competncia humana de saber humanizar o conhecimento para que este possa servir aos fins ticos da histria e no descambe em mera instrumentao da competitividade (Demo,1997), ou a competncia humana como (...) apenas outro nome para a cidadania, e, como esta, apontar para o processo emancipatrio, que significa o processo histrico de conquista da condio de sujeito coletivo e autnomo. A emancipao depende substancialmente da formao da conscincia crtica, da elaborao histrica de um projeto alternativo, da organizao poltica coletiva e do desenvolvimento humano integral (id.,1997). A noo de competncia humana fundamental na rea da sade, na medida em que a nova viso de qualidade em sade considera no s os aspectos tcnico-instrumentais

envolvidos na prtica profissional, mas inclui a humanizao do cuidado na perspectiva do cliente. Diante do princpio da autonomia do paciente, a humanizao envolve um conjunto de amenidades de trato e de possibilidades de escolha onde se incluem os aspectos ticos. (...) Inclui a organizao do trabalho, a tecnologia no sentido amplo e no apenas material, o processo de trabalho, a equipe e o paciente. (...) Reconhece as perspectivas do fornecedor e do cliente, valorizando a autonomia das pessoas para assumirem a sua prpria sade (BRASIL/MEC/MS, 1999). Ao pensar a competncia humana, pano de fundo de onde se desdobram todas as demais competncias, necessrio compreend-la como um conceito poltico-educacional abrangente, como um processo de articulao e mobilizao gradual e contnua de conhecimentos gerais e especficos, de habilidades tericas e prticas, de hbitos e atitudes e de valores ticos, que possibilite ao indivduo o exerccio eficiente de seu trabalho, a participao ativa, consciente e crtica no mundo do trabalho e na esfera social, alm de sua efetiva auto-realizao (Deluiz, 1995). No que se refere rea da sade, e tendo como parmetro a Resoluo n 4, de 8/12/1999, da Cmara de Educao Bsica do Conselho Nacional de Educao, que explicita as competncias profissionais de nvel tcnico, a normalizao das competncias gerais e especficas deveria tomar por base os seguintes nveis de competncias com suas respectivas categorias de capacidades e habilidades:

Competncias tcnicas, isto , a capacidade de dominar os contedos das tarefas, das regras e dos procedimentos da rea especfica de trabalho, as habilidades para compreender os processos e lidar com os equipamentos, a capacidade de entender os sistemas e as redes de relaes, a capacidade de obter e usar as informaes.N 02 MAIO DE 200115

Competncias organizacionais oumetdicas, isto , a capacidade de autoplanejamento, de auto-organizao, de estabelecimento de mtodos prprios, de gerenciamento de seu tempo e espao, desenvolvendo a flexibilidade no processo de trabalho.

do mundo do trabalho, de ter conscincia da qualidade e das implicaes ticas do seu trabalho, de ter autonomia de ao e compromisso social, e de desenvolver o exerccio da cidadania. Um sistema de certificao profissional baseada em competncias na rea da sade que assuma como referncia doutrinria a Reforma Sanitria e os princpios normativos e organizativos do Sistema nico de Sade deve levar em conta no processo de normalizao e certificao das competncias que estas no podem se restringir dimenso tcnico-instrumental, tornando-se uma simples estratgia de adaptao s novas necessidades do processo produtivo, mas devem ser consideradas de forma ampliada, no sentido de abranger a dimenso tico-poltica no mundo do trabalho.

Competncias comunicativas, como a capacidade de expresso e comunicao com seu grupo, superiores hierrquicos ou subordinados, de cooperao, de trabalho em equipe, desenvolvendo a prtica do dilogo, o exerccio da negociao e a comunicao interpessoal. Competncias sociais, isto , a capacidade de utilizar todos os seus conhecimentos obtidos atravs de fontes, meios e recursos diferenciados nas diversas situaes encontradas no mundo do trabalho e a capacidade de transferir conhecimentos da vida cotidiana para o ambiente de trabalho e vice-versa. Competncias pessoais, isto , a capacidade de assumir a responsabilidade sobre o trabalho, de tomar a iniciativa, de exercitar a criatividade, de aprender, de ter abertura s mudanas, de desenvolver auto-estima, atributos que implicam no envolvimento da subjetividade do indivduo na organizao do trabalho. Competncias de cuidado, isto , a capacidade de interagir com o paciente levando em considerao suas necessidades e escolhas, valorizando a autonomia que este tem para assumir sua prpria sade, a partir da concepo de sade como qualidade de vida. Competncias de servio, a capacidade de compreender e se indagar sobre os impactos que seus atos profissionais tero direta ou indiretamente sobre os servios ou usurios, ou ainda de que forma os destinatrios (clientes ou usurios) sero beneficiados. Competncias scio-polticas, capacidade de refletir sobre a esfera

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Opinio

Qualificao, competncias e certificao: viso educacional1Marise N. Ramos Doutora em Educao - Universidade Federal Fluminense

As reformas educacionais que ocorrem em diversos pases evidenciam a busca de formalizao de uma pedagogia das competncias. Com a flexibilizao e a integrao dos processos produtivos, passou-se a valorizar a subjetividade e o saber tcito do trabalhador, destacando a qualificao real em contraposio qualificao formal. Neste artigo, a autora discute como a preparao do trabalhador passou a pressupor o desenvolvimento de conhecimentos de carter global, indo alm da aquisio formal de conhecimentos academicamente validados, e construindo saberes a partir de diversas experincias vividas no trabalho, na sua vida em geral, ou mesmo na escola.

1. O surgimento da noo de competncia no contexto de educao do trabalhador A educao moderna, como componente do projeto burgus desde o sculo XVIII, insere-se no plano de luta hegemnica devido, por um lado, sua dimenso de socializao e de formao de conscincias e, por outro, sua dimenso econmica fundamental ao projeto de progresso. O uso da cincia como fora produtiva gerou a necessidade de os trabalhadores dominarem certa quantidade de conhecimentos e habilidades, necessrias ao exerccio do trabalho em uma sociedade industrializada e urbanizada. A aprendizagem profissional, ento, voltouse para a escola que, aos poucos, passou a assumir o papel no s de socializao, mas tambm de transmisso do saber tcnico. As tcnicas que compem um processo produtivo, relacionando conhecimentos e destrezas necessrios para coloc-lo em funcionamento, medida que se aprimoraram,

condensaram-se em alguns ofcios parciais desse mesmo processo. Estes passaram a se constituir como bsicos mesmo em reas profissionais diferentes. Um novo tipo de saber, menos especializado do ponto de vista da produo completa do produto acabado, mas suficiente para garantir ao trabalhador alguma mobilidade entre as diferentes reas profissionais e mesmo no interior delas, vai-se constituindo e adquire, aos poucos, um carter de profisso, relacionado ao domnio de um ofcio. Isto tambm possibilitou que empregadores estabelecessem parmetros mnimos para a definio do perfil do trabalhador apropriado a um determinado posto de trabalho. Assim sendo, o ensino destinado formao de trabalhadores visava, alm do disciplinamento, a conferir o domnio de um ofcio. Funda-se, dessa maneira, a prtica institucionalizada da formao profissional.1 Texto base da palestra proferida pela autora no Seminrio Certificao de Competncias para a rea de Sade: os desafios do PROFAE, realizado em novembro de 2000, em Braslia-DF. As idias aqui expostas so aprofundadas na tese de doutorado da autora (Ramos, 2001). 19

Ofcios e profisses passam a ser classificados de acordo com o seu nvel de complexidade, implicando a construo da hierarquia social que, por sua vez, se relaciona com o nvel de escolaridade necessrio para o desenvolvimento de cada um deles. Nesses termos, certificados e diplomas obtidos em cursos de formao ou de educao profissional, que atestassem um determinado nvel de qualificao profissional, eram, na verdade, a expresso da capacidade potencial do trabalhador para desempenhar um determinado papel na diviso social e fabril do trabalho. O conceito de qualificao se associou elevao do saber profissional e social do trabalhador, em termos das aprendizagens desenvolvidas no prprio trabalho e nas experincias escolarizadas, medida que se buscou verificar como os processos de trabalho definiam o perfil do trabalhador em sua totalidade (como fora de trabalho e como sujeito histrico). Com a flexibilizao e a integrao dos processos produtivos, passou-se a valorizar a subjetividade e o saber tcito do trabalhador, destacando-se a qualificao real em contraposio qualificao formal. A preparao do trabalhador passou a pressupor o desenvolvimento de conhecimentos de carter global, tornando-se ineficaz sem uma slida educao bsica. A partir de ento, firmou-se um certo consenso sobre a idia de que a construo de aprendizados deva ir alm da aquisio formal de conhecimentos academicamente validados, mas construir saberes tambm a partir das mais diversificadas experincias que o sujeito enfrenta, seja no meio de trabalho, seja na sua vida em geral, seja na escola. nesse contexto que surge a noo de competncia, que hoje mobiliza um conjunto de sujeitos sociais tanto com o propsito de compreender seu significado quanto para implementar aes que a tenham como base.

2. A pedagogia das competncias: entre avanos e retrocessos Duas tendncias podem ser observadas quando se discute a noo de competncias em sua dimenso pedaggica. A primeira delas nega a associao com a pedagogia por objetivos, identificando-a como algo efetivamente novo e apropriado s transformaes sociais e econmicas de nossa poca. Assim, enquanto a qualificao expressaria a capacidade potencial do trabalhador, as competncias, por se centrarem no sujeito, seriam a forma como suas capacidades reais se materializariam e, portanto, expresses de sua qualificao real. Por essa tica, o surgimento da noo de competncia, principalmente a de ordem profissional, identificada com as transformaes produtivas que ocorrerem a partir da dcada de 1980, constituindo a base das polticas de formao e capacitao dos trabalhadores em diversos pases, principalmente naqueles onde h maiores problemas para vincular o sistema educativo com o produtivo. Isso porque esta noo enfatiza as aes e os resultados do trabalho e, por inferncia, das aprendizagens. Outra tendncia, a pedagogia por competncias, aceita a associao com a pedagogia por objetivos num primeiro momento, mas identifica o ponto em que as competncias se distinguem dos objetivos. Por esta tica, relacionam-se as origens da educao baseada em competncias ao movimento americano dos anos 1960, tendo como base uma ideologia conservadora e da eficincia social, a psicologia condutivista e o propsito de servir s necessidades especficas da indstria. A l g u n s a u t o r e s 2 consideram a problemtica dos objetivos em pedagogia ultrapassada, tanto devido evoluo do trabalho, quanto ao advento da psicologia cognitiva. A competncia toma o lugar da noo de comportamento antes associada aos objetivos e confundida com o2. Por exemplo, Malglaive (1995)

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prprio contedo da capacidade. Perrenoud (1999) menos enftico quanto a esta superao. Ele no considera que as abordagens advindas da tradio da pedagogia por objetivos estejam superadas totalmente, mas sim que seus excessos behaviorismo sumrio, taxonomias interminveis, excessivo fracionamento dos objetivos, organizao do ensino por objetivo, dentre outros foram controlados. Admite, ainda, que, s vezes, fala-se em competncias apenas para insistir na necessidade de expressar os objetivos de um ensino em termos de condutas e prticas observveis. Sendo assim, falar a respeito de competncia no acrescentaria muita coisa idia de objetivo, pois se pode ensinar e avaliar por objetivos sem preocuparse com a transferncia dos conhecimentos e, menos ainda, com sua mobilizao diante de situaes complexas. Neste caso, tal como os objetivos comportamentais se confundiam com o prprio domnio do conhecimento, a associao de uma competncia a um simples objetivo de aprendizado sugere, erradamente, que cada aquisio escolar verificvel uma competncia. Relacionando-se competncia e desempenho, e considerando que este ltimo seja um indicador mais ou menos confivel de uma competncia supostamente mais estvel, que medido indiretamente acepo desenvolvida tanto pela lingstica como pela psicometria, permanece o problema de sua conceituao. Podese, ento, descrever um conjunto de aes que remeta para a competncia subjacente, sem se perguntar como ela funciona. o que acaba por ser f e i t o q u a n d o s e t e n t a n o m e a r, classificar, repertoriar as competncias ao acrescentar o verbo saber ou a locuo ser capaz de a um verbo que caracterize um conjunto de aes semelhantes. Como diz Malglaive (1995.), isso designa, de fato, uma atividade e no uma capacidade ou competncia. Conseqentemente, mantm-se

aberta a questo de saber o que devem ter adquirido os estudantes para serem capazes de fazer o que se pretende que eles faam (id.). Ademais, aproximaes instrumentais da competncia esquecem muito freqentemente das dimenses sociais e simblicas da ao, no sentido em que Bourdieu (1980, apud Dietrich, 1999) censurou nas aproximaes lingsticas 3 : definindo a competncia como um sistema abstrato e preeminente, ignoram-se as condies sociais de sua produo, de sua difuso e de sua reproduo. Chegamos, ento, ao ponto em que podemos tentar explicitar a diferena entre objetivos comportamentais e competncias, sob a tica psicopedaggica: a competncia preocupa-se fundamentalmente com o domnio cognitivo que sustenta o desempenho ou o comportamento, com a inteligncia prtica, ou a estrutura e o funcionamento da competncia/capacidade; enquanto os objetivos comportamentais confundem o comportamento com o prprio domnio cognitivo. Os esquemas da inteligncia prtica so o que, provavelmente, Zarifian (1999) chama de competncias em ltimo-plano ou de competncias recurso, ou seja, aquilo que se apreende de mais estvel e de mais durvel das atitudes face ao real3. Existem algumas crticas relativas a abordagem que transporta para o campo das aprendizagens a abordagem lingstica da competncia: Perrenoud (1999), por exemplo, analisa que os seres humanos tm a faculdade, ancorada em seu patrimnio gentico, de construir competncias, contudo, nenhuma competncia estimulada desde o incio. As potencialidades do sujeito s se transformam em competncias efetivas por meio de aprendizados que no intervm espontaneamente e que tambm no se realizam da mesma maneira em cada indivduo. As competncias, portanto, seriam aquisies, aprendizados construdos, e no virtualidades da espcie. Dietrich (1999) tambm demonstra as limitaes da analogia lingstica, destacando que todo resultado implica uma reflexo sobre as condies de sua produo. A competncia implica levar em conta as condies de sua objetivao. Estruturada na ao, ela tributria dos meios concebidos e das finalidades consignadas pelos atores no plano de uma certa organizao do trabalho. A competncia, como fato, se constri na aprendizagem do poder e da regra, quer dizer, na relao com o outro(id.).

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e vida social, que poderia sustentar as competncias mais especificamente profissionais. Dito de outra forma, seriam os recursos mobilizveis pelas competncias correspondentes em situaes precisas. Igualmente a isso, autores australianos, como Athanzou e Gonczi (1995) denominam, por sua vez, atributos. Enquanto sistema interiorizado de aprendizagem saberes em uso que envolvem saberes terico e prtico, esses atributos englobam os conhecimentos de toda ordem, as habilidades e os valores. As competncias se objetivam quando esses recursos so colocados a servio de algo ou de algum (das situaes concretas de vida e/ou escolares e/ou de trabalho). Isto nos permite apropriar e adaptar a definio de P. Gillet (apud Malgalive, 1995) para conceituar a competncia, privilegiando a dimenso pedaggica: um sistema interiorizado de aprendizagens numerosas orientadas para uma classe de situaes de vida, escolares ou profissionais. O que se entenderia, ento, por desempenho? Conjugando as dimenses pedaggica e sociolgica das competncias, poderamos formular a seguinte definio para a noo de competncia: um saber interiorizado de aprendizagens orientadas para uma classe de situaes escolares ou profissionais que permite ao indivduo enfrentar situaes e acontecimentos com iniciativa e responsabilidade, guiados por uma inteligncia prtica sobre os eventos e coordenando-se com outros atores para mobilizar suas capacidades 4 . O desempenho seria a expresso concreta dos recursos que o indivduo articula e mobiliza no enfrentamento dessas situaes. Em outras palavras, competncia a condio do desempenho, sendo a primeira, o mecanismo subjacente que permite a integrao de mltiplos conhecimentos e atos necessrios realizao da ao. Observese que, nem se constata ou se avalia

a competncia somente atravs de resultados ou dos atos realizados, nem o desempenho reduz-se a isto, o que torna impossvel limit-lo a um conjunto de tarefas, operaes ou atividades descritas e codificadas com preciso. A observao do desempenho, na verdade, permite identificar o uso que faz o sujeito daquilo que sabe (a articulao e a mobilizao das capacidades ou dos saberes em uso). Portanto, ele o ponto de convergncia dos vrios elementos relevantes que compem a competncia ante uma situao. Assim, ser competente em algo implica aludir a essa convergncia, e no soma de cada um dos elementos envolvidos, ou execuo parcial de cada um deles. A convergncia desses elementos o que daria sentido, limites e alcances competncia. possvel estabelecer, ento, algumas premissas quanto ao desempenho: a) a realizao da ao propriamente dita nos termos j explicados; b) t r i b u t r i o d e p a r m e t r o s individuais (ateno, emotividade, sensibilidade, tica, etc.), postos em jogo tambm em relao ao coletivo, resultando da associao das dimenses cognitiva e compreensiva da inteligncia prtica; c) dependente das competncias a ele subjacentes e, portanto, permite inferi-las; d) para um mesmo desempenho, vrias competncias podem ser mobilizadas; e) o desempenho observado numa determinada situao no expressa a totalidade das competncias de um indivduo; f) o desempenho no se confunde com o resultado do trabalho ou com a soma dos atos realizados pelo sujeito, mas fruto da reflexo sobre as condies da produo desse resultado, sobre os meios concebidos4. Conjugao feita da abordagem de P Gillet (apud . Malgalive, 1995) e Zarifian (1999).

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para a realizao da atividade, sobre as finalidades consignadas em torno da realizao da atividade, sobre a organizao do trabalho em que se realiza a atividade e sobre as condies subjetivas e sociais de realizao da atividade; g) o desempenho pode se processar em diferentes graus de satisfao, e, dependendo do grau de aceitao, comprova que o indivduo competente, quer dizer, apropriado situao a tratar; h) o d e s e m p e n h o e n o a s competncias que pode ser observado diretamente e, por isso, pode ser tomado como o objeto da avaliao, permitindo inferir sobre um conjunto de competncias. i) a concluso relativa competncia do sujeito, no singular, s pode ser inferida da totalidade por ele enfrentada e, portanto, pelo desempenho global diante da organizao e das relaes sociais de trabalho. j) o desempenho competente faz uso de um espectro de habilidades, compreendidas como os procedimentos gerais e especficos dominados pelo sujeito e essenciais para o enfrentamento das situaes. 2.1. Alguns elementos para se pensar criticamente a formao baseada em competncias As reformas educacionais que ocorrem em diversos pases nos evidenciam a busca de formalizao de uma pedagogia das competncias. O termo pedagogia aqui deve ser compreendido tal como o faz Tanguy (1997), isto , no sentido amplo de uma atividade social que engloba seleo de saberes a serem transmitidos pela escola, sua organizao, sua distribuio numa instituio diferenciada e hierarquizada, sua transmisso por agentes especializados e sua avaliao por mtodos apropriados. Uma das idias que se tem como vlida em favor da pedagogia das competncias que o ensino fundado sobre os saberes disciplinares seria

fator de xito para uns e de fracasso para outros, proposio que pode ser ilustrada pela constatao de que alunos reprovados nos bancos do ensino geral tm xito no ensino profissional. Assim entendida e utilizada, a noo de competncias tende a dar importncia s diferenas e particularidades individuais, sua demonstrao, ao seu carter distintivo (id.). O aluno singular ocuparia o centro do sistema educativo, instaurando-se o princpio de cursos individualizados em lugar de habilitaes mais ou menos estanques. Todas essas idias tm-se resumido sob a denominao geral de pedagogia diferenciada, tendo como fundamentos: processo centrado mais na aprendizagem do que no ensino; valorizao do aluno como sujeito da aprendizagem e construo significativa do conhecimento. Isto pressupe compreender o currculo de formao do sujeito trabalhador como seqncia de experincias de vida que contriburam para forjar sua personalidade, seu capital de conhecimentos, suas competncias, sua relao com o saber e sua i d e n t i d a d e ( Pe r r e n o u d , 2 0 0 0 ) , aceitando-se, portanto, que todos os percursos de formao so, de fato, individualizados, por mais que as experincias educativas e escolarizadas sejam vivenciadas em conjunto. A pedagogia diferenciada pressupe: a) modos de agrupamentos dos alunos estveis, diferentes da turma tradicional, aspecto para o qual muito contribui a organizao de grupos de projetos; b) processos e instrumentos de orientao que permitam orientar e acompanhar as trajetrias individualizadas e os encaminhamentos dos alunos a diversas atividades e/ou grupos. O propsito da pedagogia diferenciada possibilitar a efetiva e contnua transferncia das aquisies, e neste ponto que se voltar para as questes de como se aprende e em que medida as aprendizagensN 02 MAIO DE 200123

tornam-se transferveis aos contextos diferentes daqueles em que foram adquiridas. Ou seja, competncias consolidadas so transferveis a diversos contextos. Porm, ao serem encontrados novos desafios, h a construo de novas competncias. Portanto, a transferncia no uma simples transposio automtica, mas passa por um trabalho mental que supe o sujeito confrontado com uma nova situao, que congrega uma inteno dependente da confiana que tem o sujeito em seus prprios recursos a serem mobilizados em favor do enfrentamento da nova situao. A mobilizao de competncias, por isso, vai alm dos recursos s representaes do real ou saberes sistematizados incorporando os conceitos de saber e de conhecimento no sentido amplo, ou seja, como todo tipo de aquisies cognitivas. A servio das aprendizagens transferveis est a contextualizao do conhecimento, como estratgia importante na tecitura de uma rede de significaes. Isto, do ponto de vista pedaggico, significa estruturar um conjunto de experincias formadoras (ou situaes de aprendizagem) significativas, que nascem do currculo prescrito e se realizam por meio do currculo real. Isto configura, na verdade, a histria individual de formao de cada sujeito. Para que haja transferncia, entretanto, o conhecimento no pode se restringir s experincias formadoras, mas deve ultrapassar suas fronteiras como produto de um processo progressivo de abstrao. Po r i s s o , o s a p r e n d i z a d o s r e a i s contextualizam-se em situaes concretas, mas se enrazam em seus fundamentos cientficos. Em outras palavras, a transferncia ocorre a partir do conhecimento descontextualizado, isto , pronto para o uso em contextos diversos, como produto que supe mltiplas recontextualizaes e descontextualizaes. Como bem explica Novick (1997), a formao por competncias tem subestimado, em grande medida,

a dificuldade que apresenta o desenvolvimento curricular. por esta razo que muitas vezes se apresentam as normas ou os padres de competncias como se fossem as competncias em si mesmas ou o prprio currculo. Entretanto, bvio que as normas de competncias, ao no responderem lgica de ensino e de aprendizagem, no apresentem nenhuma seqncia que observe uma metodologia prpria para a formao. As normas expressam um objetivo, um resultado esperado e no uma metodologia de como aprender e chegar a este resultado. A descrio de atividades no suficiente para a aprendizagem como fundamento cientfico-tcnico de uma atividade. Este risco muito grande, sobretudo nas empresas que aplicam a formao baseada em competncias, onde muitas vezes a anlise funcional se converte em currculo, e a formao em uma aprendizagem condutivista de desempenho, atada a rotinas fixas e excessivamente reguladas. A nica maneira de gerar um marco curricular produzir um forte processo de anlise sobre os atributos subjacentes competncia. Assim procedendo, no s o contexto sciotcnico real deve ser considerado, pelo fato de ser um substrato privilegiado na proviso de cdigos que permitem resignificar conhecimentos, como tambm as relaes scio-histricas assumem relevncia, uma vez que determinam a construo da prpria subjetividade dos indivduos. Alguns autores 5 afirmam que o fato de a competncia implicar a resoluo de problemas ou alcanar resultados converte o currculo em um ensino integral, ao mesclar-se nos problemas os conhecimentos gerais, os conhecimentos profissionais e a experincia no trabalho, reas que tradicionalmente estavam separadas. Neste contexto, veremos o resgate de movimentos importantes na educao, tais como a problema5. Por exemplo, Athanozou e Gonczi (1996).

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tizao de Dewey, os centros de interesse de Decroly, o construtivismo de Piaget, entre outros, reunidos em princpios curriculares designados por globalizao, integrao, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade 6 . A pedagogia por projetos e por resoluo de problemas que normalmente recebem uma organizao diferente das grades curriculares faz agrupamentos diferentes das turmas tradicionais (tais como mdulos, unidades, ciclos, etc.) e tem sido evocada como estratgia metodolgica importante para a construo de uma aprendizagem significativa. Valoriza-se tambm a formao por alternncia, que pode envolver as estratgias citadas, como forma de integrao permanente do conhecimento sistematizado com as realizaes prticas. Se, do ponto de vista da educao inicial, isso enfrenta problemas culturais e operacionais, do ponto de vista da educao continuada pode responder necessidade de atualizao de trabalhadores j inseridos na vida produtiva. Com todo o potencial crtico que este debate suscita para se pensar as prticas educativas, deve-se ter cuidado para no realizar uma redefinio pedaggica de tal ordem que tudo se passe como se o conhecimento cientfico tivesse atingido um grau suficiente para que a escola (pelo menos a profissional) no tivesse mais que transmiti-lo, principalmente porque os processos automatizados seriam suficientes para capt-los e p-los em prtica. Por essa tica, a formao responsabilizar-se-ia somente por ordenar as atitudes e prticas profissionais em coerncia com a organizao e o funcionamento dos processos de produo. A escola perderia, em certa medida, a exclusividade como agente transmissora de conhecimento. Com variaes que no permitem fazer dessa afirmativa uma generalidade, a escola seria forada a abrir-se para o mundo econmico como meio de redefinir os contedos

de ensino e atribuir sentido prtico aos saberes escolares, de forma que s u a l e g i t i m i d a d e r e d u z i r- s e - i a utilidade prtica. A armadilha de se regressar ao tecnicismo educacional ou de se reduzir a educao profissional aos aspetos operacionais das atividades profissionais est presente o suficiente para que estejamos muito atentos ao pensar na apropriao das competncias como referncia educacional. 3. Avaliao e certificao de competncia: processo ou produto? Ainda que todas as formas de avaliao se refiram ao emprego de evidncias, sabemos que o propsito que vai definir a natureza e o processo do sistema de avaliao. Considerando-se a avaliao do aluno ou trabalhador em formao, pretende-se verificar as competncias adquiridas durante o processo de aprendizagem, evidenciando a capacidade do indivduo de mobilizar e articular, com autonomia, postura crtica e tica, seus recursos subjetivos, bem como os atributos constitudos ao longo do processo de ensino-aprendizagem conhecimentos, habilidades, qualidades pessoais e valores a que se recorre no enfrentamento de determinadas situaes concretas. Para que a avaliao em processo expresse concretamente as competncias desenvolvidas pelos indivduos, preciso que formao e avaliao por competncias sejam planejadas em conjunto, de forma coerente. nesse quadro que se resgata a dimenso formativa da avaliao, isto , seu papel essencial dentro da pedagogia diferenciada e da individualizao dos percursos de formao, permitindo aos docentes pronunciarem-se sobre os avanos educativos dos alunos e, com esses, contar com pontos de referncia para julgar onde esto, onde podem chegar e do que vo necessitar para continuar aprendendo.6. Localizao conceitual e histrica desses movimentos e princpios apresentada por Santom (1998).

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Ao s e p l a n e j a r o p r o c e s s o d e formao, deve-se considerar trs dimenses fundamentais da avaliao. Preferimos considerar que a dimenso acreditativa ou certificativa seja conseqncia dessas anteriores. Apresentamos as referidas dimenses, com base em Hernndez (1998): a) Diagnstica inicial: permite detectar os atributos que os alunos j possuem, contribuindo para a estruturao do processo de ensinoaprendizagem a partir do conhecimento de base dos mesmos. A avaliao diagnstica inicial deve tentar recolher evidncias sobre as formas de aprender dos alunos, seus conhecimentos e experincias prvias, seus erros e idias preconcebidas. Caber ao professor, se possvel em conjunto com o aluno, interpretar as evidncias, percebendo o ponto de vista do aluno, o significado de suas respostas, as possibilidades de estabelecimento de relaes e os nveis de compreenso que possui dos objetos a serem estudados. Sempre que possvel, o planejamento do projeto ou da prpria unidade didtica feita posteriormente a esta avaliao diagnstica inicial. Dependendo da estrutura institucional, essa dimenso da avaliao pode ter equivalncia com o que designamos de requisitos de acesso ou mesmo de seleo para o ingresso. O importante, nesse caso, a instituio p l a n e j a r- s e p a ra tal e decidir se tomar tempo para avaliar inicialmente os candidatos ou alunos dos cursos a serem oferecidos. b) Formativa: permite identificar o nvel de evoluo dos alunos no processo de ensino-aprendizagem. Para os professores, implica uma tarefa de ajuste constante entre o processo de ensino e o de aprendizagem, para se ir adequando a evoluo dos alunos e para estabelecer novas pautas de atuao em relao s evidncias sobre sua aprendizagem. A anlise dos trabalhos pode ser feita no sob a tica de se esto bem ou mal realizados, mas levando-se em conta a exigncia cognitiva das

tarefas propostas, a deteno dos erros conceituais observados e as relaes no previstas, levantando-se subsdios para o professor e para o aluno, que ajudem este ltimo a progredir no processo de apreenso dos conhecimentos, desenvolvimento e aprimoramento de destrezas, construo de valores e qualidades pessoais. Essa dimenso responsvel pelo que Perrenoud (1999) chama de regulao das aprendizag e n s 7 . Nesse caso, importante planejar em que momentos as evidncias de realizao das atividades sero insumos para o processo de avaliao. S possvel realizar esse planejamento em conjunto com o planejamento do projeto. c) Recapitulativa: apresenta-se como um processo de sntese de um tema, um curso ou um nvel educativo, sendo o momento que permite reconhecer se os estudantes alcanaram os resultados esperados, adquiriram algumas das habilidades propostas, em funo das situaes de ensino e aprendizagem planejadas. esta dimenso que se associar fortemente dimenso acreditativa ou certificativa. Este tipo de avaliao pode ser proposta aos alunos mediante estratgias e instrumentos das dimenses anteriores, aproximando-se, porm, os temas e as situaes mais diretamente das normas de competncias. Por outro lado, se a avaliao formativa foi precisa e cuidadosamente realizada e apropriadamente registrada, seja em memoriais de desempenho, em portflios ou documentos equivalentes, a avaliao recapitulativa pode constituir-se como mais uma etapa de metacognio, por exemplo, propondo aos alunos uma reconstruo do processo seguido ou de tomada de conscincia do momento em que aprenderam mais ou que desenvolveram novas competncias.1 Perrenoud (id.) fala de regulao das aprendizagens como articulao entre dispositivos didticos e observao formativa. Essa noo , em primeiro lugar, uma noo didtica, e a avaliao no tem mais nada de uma atividade separada. Isso significa que no pode ser pensada at o fim, sem referncia aos saberes em questo e s aes didticas do professor.

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A dimenso acreditativa ou certificativa (que legitima a promoo dos estudantes de uma etapa a outra, de um nvel de ensino a outro e/ou confere uma determinada certificao) o pice do processo de formao como inferncia viabilizada pelo completo e complexo sistema de avaliao implementado durante esse processo. Sua legitimidade em relao s normas de competncia est no fato de o programa de formao ter sido planejado segundo essas mesmas normas, permitindo que se tirem concluses, a partir do resultado das avaliaes processuais, sobre as condies de desempenho que tem o indivduo, segundo as normas especificadas. A dimenso acreditativa ou certificativa, por outro lado, a que se destaca quando o processo de avaliao ocorre independentemente do processo de formao, ainda que a dimenso formativa esteja sempre presente, em algum nvel, em qualquer avaliao. A forma e o nvel de aproveitamento que faz o indivduo dessa outra dimenso estaro relacionados com a conscincia do prprio quanto ao processo de construo de suas competncias e/ou do quanto e como ele devidamente orientado. Quando avaliado em processo de formao, essas trs dimenses da avaliao estaro relacionadas intrinsecamente e os percursos realizados posteriormente pelo indivduo sero, de certa forma, conseqncia das prprias evidncias obtidas pelas avaliaes, segundo uma orientao minimamente sistematizada pelo professor. Por outro lado, se avaliado de forma independente formao, o aproveitamento de qualquer evidncia para a construo de percursos posteriores, seja de trabalho, seja de formao, ficar a cargo do prprio indivduo. Algumas consideraes finais Uma questo que ainda nos parece pouco debatida no mbito das polticas educacionais implantadas com base na noo de competncia diz respeito s mediaes presentes na relao entre o processo de trabalho, o ensinar e o aprender. Nenhuma lista de tarefas, ou mesmo nenhum

retrato da complexidade de um processo de trabalho, traduz tudo o que pode acontecer no enfrentamento real do sujeito com a materialidade concreta do trabalho. Alis, a noo de competncia surge tambm para dar destaque imprevisibilidade dos processos. Isso perde completo sentido se considerarmos que o trabalho se orienta somente por normas prescritas. Se assim fosse, pouco precisaramos pensar a respeito de conhecimentos, valores e mediaes prprias da relao do homem com o mundo material e social. Portanto, o eixo do debate deve ultrapassar o questionamento sobre a validade ou no do saber disciplinar, ou a adequao de esses ou aqueles instrumentos de avaliao. Igualmente, o desafio de se buscar novas estratgias de ensino, do ponto de vista formativo, deve ser um problema posto no necessariamente pela noo de competncia, mas sim pela necessidade de se discutir o papel da escola e os propsitos dos processos de profissionalizao. bem verdade que a noo de competncia, se analisada segundo uma tica crtica, traz uma oportunidade bastante importante para enfrentarmos esse debate, motivando-nos a superar o risco de limitarmos nossas prticas pedaggicas ao tecnicismo; ou, ainda, o risco de cairmos numa investida irresponsvel contra as disciplinas. Cabe pensarmos que referncias terico-metodolgicas orientaro nosso debate, considerando a realidade do mundo profissional, poltico e social de hoje. A construo de saberes efetivamente significativos implica pensarmos a competncia numa dimenso humana e social, isto , para alm de uma caracterstica prpria do sujeito individual e abstrato.

Bibliografia ATHANASOU, James; GONCZI, Andrew. Instrumentacin de la educacin basada en competencias. Perspectivas de la teoria y la prctica en Australia. In: ARGUELLES, A. (comp.) CompetenciaN 02 MAIO DE 2001

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Opinio

Certificao de competncias: a necessidade de avanar numa perspectiva formativaLa Depresbiteris Doutora em Cincias da Educao - Universidade de So Paulo

Para que uma avaliao tenha uma dimenso educativa, expressa no seu carter formativo, devem ser pensadas estratgias de melhoria dos desempenhos dos candidatos certificao. Isso exige compromisso e responsabilizao da sociedade em suas mltiplas instncias no sentido de reduzir lacunas de formao. Neste artigo, a autora afirma que medir sem aliar medida uma funo formativa seria o mesmo que medir a febre de algum, descobrir suas causas, mas no administrar nenhum remdio para a cura. guisa de introduo Confesso que meu primeiro contato com a palavra competncia (h alguns anos atrs, por ocasio de um seminrio de educao profissional realizado em Crdoba, Argentina) foi assustador. Afinal, a palavra competncia, em espanhol, tem uma forte conotao de competir, lutar. Tornando a situao ainda mais complexa, os contextos econmico e poltico enfatizavam, na poca, a necessidade de uma maior competitividade do mercado. A idia subjacente era a da seleo de excelncias, mais do que do desenvolvimento de competncias, o que trazia o grande perigo de excluso de uma enorme faixa da populao sem oportunidades de formao. No se pode afirmar que esse perigo tenha acabado, mas certamente houve um avano na discusso sobre competncias, mesmo considerando o carter polissmico do termo:

Competncia a habilidade de algum de utilizar seu conhecimento para alcanar um propsito. Competncia profissional a capacidade de utilizar conhecimentos e habilidades adquiridos para o exerccio de uma situao profissional. Competncia a capacidade de mobilizao de saberes: saber-fazer, saber-ser e saber-agir. Competncia a mobilizao de um conjunto de capacidades para a resoluo de um problema.Apesar de um certo avano na proposio de competncias, no se pode ignorar a dificuldade de desenvolvlas e, sobretudo, de certific-las. novamente pertinente cuidar da no excluso, fator que pode ser uma decorrncia direta de um sistema de certificao. Afinal, o que fazer com aqueles que no se certificarem? Neste sentido, creio ser urgente uma discusso sobre as funes de sistemas que visam a certificar competncias profissionais, sob pena de estabelecermos processos classificatrios excludentes e estigmatizadores.29

Competncia a capacidade para aplicar habilidades, conhecimentos e atitudes em tarefas ou combinaes de tarefas operativas.

O papel formativo dos sistemas de certificao Certificar quer dizer atestar a certeza de, afirmar, passar a certido. Essa tomada de deciso envolve necessariamente um processo de julgamento, o que inclui medida e avaliao. Neste momento, fundamental diferenciar medir de avaliar. Guilford ( apud Depresbiteris, 2000) diz que medir significa atribuir um nmero a um evento, fenmeno ou objeto de acordo com uma regra logicamente aceitvel. A medida uma operao de descrio quantitativa da realidade. O exemplo mais explcito de medida o metro, grandeza padro que marca extenses lineares. A extenso do metro comparada dimenso do objeto a ser medido, o que nos possibilita saber quantas vezes a extenso do objeto cabe na extenso do metro. por isso que depois de medirmos uma rua podemos dizer que ela tem 300 metros. Na avaliao da aprendizagem, a maioria dos professores utiliza como medida o acerto em questes de teste. Po r e xe m p l o : n u m t e s t e d e d e z questes, a medida a quantidade de acertos, sendo que sua extenso mxima dez. Em dez acertos possveis, um aluno pode chegar ao limite mximo ou a quantidades menores. Para outros professores, a medida representada pelos desempenhos demonstrados pelo aluno, os conhecimentos que ele possui, a qualidade desse conhecimento, etc. De acordo com Medeiros (1999), existem algumas vantagens na quantificao metdica dos atributos que a medida exige, destacando-se a minimizao de algumas fontes de erro. A medida possibilita, igualmente, uma maior iseno s observaes e ao seu registro, permitindo que observadores independentes cheguem a resultados semelhantes, pela obedincia a regras claras e precisas na atribuio de nmeros. Assim, quanto maior o acordo entre esses observadores, tanto mais

impessoais tero sido suas apreciaes e, portanto, elas estaro mais prximas da realidade. Cumpre destacar que, quando se fala de medida, no se est falando apenas de registros numricos, mas de medidas de qualidade, que tambm podem ser obtidas pela composio de escalas de alcance. Essa afirmao importante, principalmente no contexto da educao profissional, na qual a mensurao das competncias assume caractersticas especiais. A idia de medir os conhecimentos no suficiente para servir de base para decises de avaliao. Agregam-se os conhecimentos, as habilidades e as atitudes adquiridas no apenas em sistemas formais de ensino, como tambm no prprio mundo do trabalho. luz dessa necessidade, cresce a responsabilidade da avaliao que deve apreender as competncias a partir da observao da pessoa em tarefas mais completas e complexas. A apreenso das competncias exige que se conhea aquilo que est sendo proposto para o perfil do profissional em termos de competncias e padres de desempenho desejados; que se v alm dos objetivos de ensino, verificando a atuao dos saberes saber-fazer e saber-ser mobilizadores das competncias; que conhecimentos e habilidades, anteriormente adquiridos, sejam reconhecidos. Esta afirmao terica traz srias conseqncias prtica da certificao: como medir competncias? Que grau de subjetividade vem carregado na mensurao de atitudes de trabalho? Como ser justo na medida do saber-fazer, respeitando as vrias estratgias de resoluo de um problema que diferem de pessoa a pessoa? Que indicadores escolher para observar? Que critrios determinar? Assim, devemos ir para alm do conceito de medida, refletindo sobre o conceito de avaliao. O que parece importante que, na verdade, toda

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avaliao deveria incluir uma medida, mas nem toda medida indica que haver uma avaliao. Quando se transferem esses conceitos para os sistemas de certificao verificamos que muitos sistemas podem obter medidas, mas ser que avaliam competncias? Diriam alguns que evidentemente sim, uma vez que a medida subsidia uma deciso de certificar ou no as competncias que sero mobilizadas profissionalmente. Contudo, deve-se levantar o problema da finalidade da avaliao. Uma tomada de deciso dicotmica certificado ou no certificado traduz um papel somativo da avaliao, bastante prximo de uma finalidade meramente administrativa. Por que ento no romper com essa viso pragmatista, utilitria, e envolver a avaliao com uma funo formativa, que exige aes de natureza mais educativa: propor aes de recuperao para que as pessoas possam contar com novas oportunidades de certificao. Seria uma espcie de no fechar a porta queles que num primeiro momento no possussem as competncias necessrias ao desempenho da profisso. Mas isso deveria ser funo da avaliao nos sistemas educacionais, diriam alguns. Evidentemente. Porm, no se poderia encarar os sistemas de certificao como parte de um sistema educativo maior em que a responsabilidade no caberia apenas e to somente s instituies de educao profissional, mas tambm sociedade em seu projeto coletivo de desenvolver competncias de maneira eqitativa? Numa analogia simples, medir sem aliar medida uma funo formativa seria o mesmo que medir a febre de algum, descobrir suas causas, mas no administrar nenhum remdio para a cura. Uma sociedade que implanta sistemas de competncia no deveria responsabilizar-se pela no excluso

dos no certificados e oferecer-lhes chances de desenvolver essas competncias e novamente passar pela certificao? Afinal, como diz Hadji (1997), aqueles que acreditam na necessidade de uma avaliao formativa consideram como princpio essencial que a avaliao deve auxiliar no aprender. Desta maneira, certificar sem possibilitar recuperao e novas oportunidades de passar pelo processo rotular, classificar de modo estanque, registrar uma marca indelvel, muitas vezes prejudicial prpria auto-estima da pessoa. Reforando, a funo formativa de um sistema caracteriza-se pela busca de melhoria dos diversos componentes que o integram. Para a pessoa que passa pelo processo de certificao, a aprendizagem maior seria a de se auto-avaliar, podendo obter clareza sobre aspectos que esto interferindo na qualidade de seu perfil profissional. Assim, outra funo importante da certificao numa perspectiva formativa a de estimular um processo de auto-avaliao. Nunziati (apud Hadji, 1997) diferencia autoavaliao do processo pelo qual a pessoa atribui a si mesma uma nota ao examinar seu trabalho. Nesse processo, a pessoa faz uma comparao entre o desejado e o realmente alcanado, numa perspectiva de anlise final. Na verdade, aqui est implcita a idia da medida. Na autoavaliao encontra-se a premissa de auto-regulao, ou seja, a anlise que uma pessoa faz de seu desempenho de maneira consciente, na permanente busca de melhoria. A auto-avaliao tambm poderia ser estendida ao sistema educacional, no qual as informaes de certificao poderiam subsidiar aes de melhoria dos desempenhos dos educandos, dos processos de ensino, das formas de desenvolver a aprendizagem, dos desempenhos dos formadores, e das prprias formas de avaliao da aprendizagem.N 02 MAIO DE 200131

Neste sentido, a explicitao das concepes de avaliao e certificao uma fase fundamental, uma vez que elas daro feio ao sistema. So diferentes os sistemas de certificao que encaram a avaliao numa perspectiva classificatria, daqueles que vem, alm do carter somativo, a funo formativa da avaliao, que propicia orientao para o candidato quanto s aes de melhoria de seu desempenho, prevendo futuras buscas de certificao. Em sntese, para que a avaliao tenha, alm do carter somativo de natureza decisria, uma dimenso educativa, que se expressa no carter formativo da avaliao, devem ser pensadas estratgias de melhoria dos desempenhos dos profissionaiscandidatos certificao. Isso exige compromisso e responsabilizao da sociedade em suas mltiplas instncias no sentido de reduzir lacunas de formao. Nesse sentido, poder-se-ia pensar num fluxo assim caracterizado:

e atitudes, a ele deveriam ser indicadas as competncias que precisam de melhor desenvolvimento e possveis aes de recuperao. Para isso fundamental contar com uma rede de aes que possam ajudar o candidato nessa trajetria de profissionalizao. Os principais passos para a construo de sistemas de certificao de competncias Mesmo considerando que a instituio formadora no pode certificar e que deve recorrer a outra instituio para faz-lo, h necessidade de se considerar uma profunda integrao entre ambas para que seja respeitada a natureza das competncias que sero medidas e avaliadas. A encomenda de certificao para outra instituio no isenta a solicitante da responsabilidade de definir uma filosofia e uma poltica de trabalho. No caso de instituies de educao profissional, a responsabilidade se torna maior, na medida em que cada profisso tem um ethos que no pode ser meramente

DIAGNSTICO DAS COMPETNCIAS

AVALIAO E CERTIFICAO DAS COMPETNCIAS

AES DE ORIENTAO E RECUPERAO

O diagnstico corresponderia fase de apresentao do candidato para passar pela avaliao de competncias. O candidato poderia vir com uma documentao preparada que explicitasse conhecimentos, habilidades e atitudes j adquiridas por meio de cursos ou na vivncia concreta de trabalho. Nesse momento, seria feita uma anlise comparativa entre o conjunto de saberes e as competncias do perfil profissional. Se o candidato atendesse aos padres desejados, poderia seguir para a avaliao com vistas certificao. Caso o candidato mostrasse lacunas e problemas graves em termos de conhecimentos, habilidades

traduzido em questes avaliativas fora de contexto. Outro argumento nesse sentido o de que essas instituies deveriam incorporar uma atitude de auto-avaliao de suas aes e, sobretudo, responsabilizar-se pelas futuras aes de recuperao. Alguns passos metodolgicos para a construo de um sistema de certificao poderiam ser os seguintes:

Identificar, a partir do perfilprofissional de competncias, aquelas que devero ser objeto de avaliao;

Definir critrios especficos dequalidade para cada unidade de competncia, bem como de evidncias para o alcance dos critrios;

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Estabelecer diferentes tcnicas e instrumentos de avaliao; Comparar os resultados da medida com as competncias e padres definidos no perfil e com critrios mais especficos relacionados s unidades de competncia; Julgar o valor sobre o alcance ou no desses critrios (tomada de deciso sobre a atribuio da certificao); Definir aes de orientao para melhoria dos desempenhos, no vislumbre de novas oportunidades de certificao.1- Definir competncias a serem avaliadas bvio dizer que o perfil de competncias deve ter sido definido a partir de atores representativos da profisso que ser objeto da certificao. Participao, transparncia de critrios e acesso s informaes so princpios essenciais de uma avaliao numa perspectiva democrtica. Este perfil vai servir como base para a anlise de quais competncias sero focos da avaliao. 2- Definir critrios e indicadores de qualidade Trata-se da fase mais delicada do sistema, uma vez que dela vai depender a qualidade dos desempenhos e, num sentido mais amplo, ela que vai imprimir credibilidade ao processo. Critrios muito pouco exigentes podem dar origem a profissionais no habilitados. Por outro lado, critrios muito exigentes podem estar alm do possvel na realidade. fundamental, nesse momento, que se busquem respostas s seguintes questes:

O que fazer com critrios cujos indicadores sejam muito difceis de detectar?No se pode esquecer que critrios, parmetros, padres, so termos usados em avaliao como sinnimos para designar uma base de referncia para julgamento. Para Ardoino (apud Figari 1996), a noo de referncia vem do latim referre, que significa, literalmente, reportar. Assim, para avaliar nos referimos a alguma coisa preexist e n t e , d e m o d o a f u n d a m e n t a r, garantir nossa opinio, nosso juzo. Um catlogo de cores, por exemplo, uma referncia que indica os diversos padres de tonalidade. Um quadro referencial envolve critrios e indicadores. Os indicadores so evidncias utilizadas para decidir se uma pessoa atendeu ou no aos critrios. Um indicador um construto terico, da a necessidade de identific-lo antes da anlise de uma realidade. Cada critrio define o que se julga poder esperar legitimamente do objeto avaliado. , por meio dos critrios, que se pode realizar a leitura do objeto. Segundo Hadji (1997), a coerncia entre critrios e indicadores que possibilita equilibrar subjetividade e objetividade. Os indicadores devem desvelar o prprio objeto e devem ser, ao mesmo tempo, representativos da realidade avaliada (objetividade externa) e significantes com relao a uma expectativa precisa (objetividade interna ou coerncia). Contudo, preciso ressaltar que o significado no est c o n t i d o n o i n d i c a d o r, e s i m n a interpretao do avaliador. Lesne (apud Hadji,1997) diz que avaliar colocar em relao, de forma explcita ou implcita, um referido (o objeto de uma investigao) com um referente (aquele que desempenha o papel de norma, o que d e v e r s e r, o q u e o m o d e l o , o objetivo pretendido). O referente

Que critrios de desempenho soos mais relevantes para a competncia em anlise?

possvel avaliar