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Catarse nº 40 – Dezembro 2014
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CATARSE Ano 2014 Número 40 Um jornal aberto para a comunidade
A UM PASSO DA CRUELDADE – QUE
PROFISSIONAIS A UNIVERSIDADE ESTÁ
FORMANDO?
Benedito Carvalho Filho
Usar seres humanos como cobaias de laboratórios foi uma prática muito
utilizada nos campos de concentração nazistas, em nome da ciência. A
crueldade ocorre quando a sociedade perde a dimensão humana da
medicina.
Quase no final dos anos 1970, mais exatamente em 1977, li o livro chamado A
fome de lucros: atuação das multinacionais de alimentos e de remédios na América
Latina, do jornalista Bernardo Kucinski e Robert J. Ledoga, editado em São Paulo pela
Editora Brasiliense, hoje esgotado.
A leitura desse livro, na época, me provocou muitas reflexões porque revela
como as multinacionais que detém o monopólio dos laboratórios farmacêuticos atuam
nos países mais pobres, sempre em busca de gigantescos lucros.
Hoje eu me pergunto: será que essa realidade mudou? Ou a fome de lucros
continua mais forte neste século?
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Essas interrogações vieram à minha mente quando li a reportagem de um jornal
local afirmando que alguns médicos amazonenses estariam fazendo (ou desejando fazer)
um boicote aos cidadãos para que eles não consumam remédios de alguns laboratórios,
a maioria desses remédios produzidos em outros países (ver jornal Catarse, nº 39, de
novembro).
Não se tratava de uma luta dos médicos contra as multinacionais com suas fomes
de lucros, que, como mostram os dois jornalistas citados acima, atuam nos países do
terceiro mundo usando povos como cobaias.
A indignação desses médicos veio à tona porque descobriram que esses
laboratórios colaboraram com a campanha da presidenta Dilma Rousseff. Ou seja,
tratou-se de uma tentativa de boicote político, cujo alvo foi bem determinado: a
presidente eleita democraticamente.
Por que esses médicos tão procurados pelas indústrias farmacêuticas
internacionais em seus consultórios públicos e particulares não denunciam os lobbies
dos vendedores de remédio?
Por que aceitam, por exemplo, os convites para participar em congressos
internacionais promovidos por grandes grupos internacionais que produzem esses
remédios?
Por que são tão complacentes e, muitas vezes, cúmplices das máfias com suas
fomes de lucro? Se for para politizar e esclarecer a sociedade, por que não denunciam o
que ocorre por detrás dos bastidores, ao invés de conclamar a população a não consumir
os remédios de alguns laboratórios farmacêuticos?
O grupo que faz essa proposta se autodenomina “dignidade médica”. O
substantivo dignidade, segundo o dicionário do Aurélio, significa “cargo e antigo
tratamento honorífico que confere ao indivíduo posição graduada; autoridade moral;
honestidade, honra, respeitabilidade; decência e decoro; respeito a si mesmo; amor a si
mesmo, decoro, amor próprio, brio e pundonor” (Ver Novo Dicionário do Aurélio
Buarque de Hollanda, Editora Positivo).
Quando alguns médicos falam de dignidade e pregam a “castração
química dos nordestinos” estão desonrando a si mesmo e violentando o ser
humano, que é mais que um animal. Isso nada tem a ver com dignidade. Possui
outro nome: crueldade.
Esses valores, como muitos outros, não se adquire somente invocando esses
substantivos. Honestidade, honra e respeitabilidade são valores que todo cidadão deve
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ter, independente da sua posição graduada. A honra não se adquire por hereditariedade,
muito menos a respeitabilidade e tantos outros valores. Por isso, quando alguns médicos
falam de dignidade e pregam a “castração química dos nordestinos” estão desonrando a
si mesmo e violentando o ser humano, que é mais que um animal. Isso nada tem a ver
com dignidade. Possui outro nome: crueldade.
Não podemos esquecer que, durante a Segunda Guerra Mundial, vários médicos
alemães realizaram “experiências” desumanas, cruéis e, muitas vezes, mortais, em
milhares de prisioneiros nos campos de concentração. Estas “experiências médicas”
imorais, realizadas durante o Terceiro Reich, têm muito a nos ensinar o quanto o poder
do homem pode ser destruidor. Por isso, a ética deve ser perseguida por todos os
médicos e pesquisadores.
Poderíamos nos alongar neste artigo relatando as atrocidades nazistas e tantas
outras que ocorrem nos tempos de hoje. Os médicos que pregam a dignidade deveriam
estudar história (que muitos devem ignorar) para não repetir da tragédia do passado.
Deveriam, também, ler mais literatura, como nos mostrou o professor Maurício
Tragtenberg, numa época de especialização, a literatura define os ideais de um período
de transição. Pois é nesses períodos que se põe dramaticamente ao homem está
interrogação: qual o sentido de sua vida, qual a significação do mundo que o cerca?
Em seguida, afirma:
O médico, engenheiro, advogado, encarnam especializações necessárias ao
exercício de suas atividades, mas têm em comum um atributo, de serem humanos e o de
enfrentarem idênticos problemas numa sociedade em transição.
Somos filhos de uma sociedade individualista e liberal e caminhamos para um
outro tipo de sociedade planificada. Como dar-se-á tal mudança? Quais os agentes
desse processo? Não sabemos. O que sabemos é que assistimos a um espetáculo de
crise, de transição, onde velhos quadros sociais desaparecem e novos ainda não se
estruturaram. (Ver seu artigo, A importância da literatura para a cultura universitária,
qualquer que seja a especialização, in. Tragtenberg, Teorias e ações libertárias, Editora
Unesp, 2011, p.3).
O que me deixa perplexo e assustado nos dias de hoje, com essa degradação do
capitalismo financeiro como vemos nos dias de hoje, é o tipo de formação que os
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médicos vêm adquirindo nas universidades públicas e privadas, onde prevalece a razão
instrumental, porque não existe no currículo dessas instituições de ensino nenhuma
formação humanística capaz de fazer com que os alunos reflitam criticamente sobre o
que aprendem e a realidade de seu país e do mundo.
O médico, por exemplo, está preocupado em classificar o corpo humano, sem se
importar em refletir sobre os fins. Para ele, conhecer é controlar e dominar a natureza e
os seres humanos, fazendo com que a ciência vá deixando de ser uma forma de acesso
aos conhecimentos para tornar-se um instrumento de dominação, poder e exploração,
alimentada por uma ideologia cientificista, pragmatista e eminentemente mercantil,
conforme nos mostra Max Horkheimer no seu livro Eclipse da Razão, Editora Centauro,
p. 29.
Isso, segundo Max Weber, na sua obra A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo, embora resulte em maior poder e domínio sobre a natureza, também
escraviza o homem, reprimindo a sensibilidade, a afetividade, a emotividade e as
demais formas sensíveis de conduta humana, gerando, como ele afirmou, especialistas
sem espírito e sensualistas sem coração, nulidades que imaginam ter atingido um nível
de civilização nunca antes alcançado.
São essas nulidades arrogantes que pensam ter atingido a civilização e o
“progresso” que estão sendo chocadas dentro das universidades brasileiras na
atualidade. Analisando por essa perspectiva, não é de estranhar que alguns médicos e
médicas, sem nenhum pudor, vão a público pregar a “castração química dos
nordestinos” e destilar seu ódio aos seus colegas cubanos que se dirigem para os
fundões do país para tratar de pessoas necessitadas. Aqui o preconceito, também,
assume dimensões dramáticas e preocupantes, como vimos na foto das universitárias
vaiando os médicos que desembarcaram no Aeroporto Pinto Martins, em Fortaleza.
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Até aqui estamos nos referindo aos médicos, mas essas reflexões servem para
todas as áreas do conhecimento. Sou professor da disciplina Sociologia Geral e Jurídica
na Universidade Federal do Amazonas e fico impressionado como boa parte dos alunos
e alunas dessa área é desmotivada ao cursar essa disciplina. Eles não percebem, e nem
desejam perceber, que o Direito é uma ciência social, pois nasce dos conflitos sociais.
Chamados de “operadores do Direito” são pragmáticos, não estão preocupados
em pensar os valores e o papel que vão desempenhar na sociedade. Podemos imaginar
que muitos, para atingir seus fins meramente mercantis, não terão o pudor de usar meios
discutíveis para “subir na vida”.
Entrar numa universidade pública e cursar uma Faculdade de Medicina ou uma
de Direito é um privilégio usufruído por uma pequena camada da classe média e alta da
cidade. Mas será que essas pessoas sabem que quem mantém essas universidades
públicas é o povo brasileiro?
Concluo este artigo com texto de Edgar Morin, pesquisador emérito do CNRS,
formado em História, Geografia e Direito antes de migrar para a Filosofia e a
Epistemologia. Ele sabe, por experiência própria, o que foi o Nazismo, pois participou
da Resistência na França ocupada, durante a Segunda Guerra Mundial. É autor de mais
de trinta livros, tornou-se um dos pensadores mais importantes do século XX, portanto
sabe muito bem o que significa os especialistas sem espírito e sensualistas sem
coração, nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes
alcançado. Nesta era de capitalismo financeirizado em que vivemos, ele sabe bem disso
e dos perigos da idiotização da sociedade:
Retomemos a fórmula de Wojeciechowski: “Ciência e tecnologia triunfaram e
fracassaram ao mesmo tempo”. Triunfaram materialmente; fracassaram moralmente.
A física nuclear explodirá a sua bomba no coração da ética. A biologia aí
instala uma máquina infernal.
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A ausência de controle, político e ético, dos desenvolvimentos da tecnociência
revela a tragédia maior resultante da disjunção entre ciência, ética e política.
Entre ciência e política, a ética é residual, marginalizada, impotente. A ética
está desarmada entre a ciência amoral e a política, frequentemente imoral. Esta é a
trágica situação da humanidade planetária.
O problema da ciência vai além dos cientistas. Clemenceau dizia que “a guerra
é um negócio sério demais para ser deixada nas mãos dos militares”. A ciência é um
assunto sério demais para ser deixado unicamente nas mãos dos cientistas. Sabemos
também que a ciência se tornou perigosa demais para ser deixada nas mãos dos
homens de Estado. Em outras palavras, a ciência tornou-se também um problema
cívico, um problema dos cidadãos. Mas ignoram cada vez mais um saber que lhe é
incompreensível, pois esotérico. Daí a necessidade e a dificuldade de uma “democracia
cognitiva”.
Uma introdução de uma regulação ética nas ciências exige uma nova
consciência, uma reforma do pensamento entre os cientistas e os cidadãos; necessita,
por outro lado, de um controle ético pela instância política, o que pressupõe um
controle ético da instância política.
O projeto de dominar a natureza ao qual Descartes destinava a ciência tornou-
se uma vulgata da civilização ocidental até o surgimento do problema da degradação
da biosfera. O controle é incontrolável; daí a pertinência da fórmula de Michel Seres:
trata-se agora de controlar o controle. Um tal controle tornou-se suicida para o
aprendiz de senhor.
Eu perguntaria: o surgimento de nova consciência, de que se refere Morin, ainda
é possível numa universidade engessada pelo pragmatismo, pelo produtivismo? Que
seres estamos formando (ou deformando)?
A ausência de controle, político e ético, dos
desenvolvimentos da tecnociência revela a tragédia maior
resultante da disjunção entre ciência, ética e política.
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OLHANDO MAIS DE PERTO A CRUELDADE E OS
PROFISSIONAIS QUE A UNIVERSIDADE ESTÁ
FORMANDO
Benedito Carvalho Filho
É possível, mesmo dentro das limitações e das resistências que encontramos no
interior das universidades brasileiras, buscar um saber que fuja da instrumentalização e
da tecnificação? Ou seja, como propor algo que vá além do saber técnico, operacional e
instrumental que vemos hoje se proliferar nas universidades, que formam (ou
deformam?) pessoas incapazes de perceber o mundo de forma mais aberta, crítica e
menos redutora?
Na matéria anterior, vimos as consequências trágicas que certo tipo de formação,
fortemente influenciada pela ideologia neoliberal, é capaz de produzir no interior de
instituições de ensino, colonizadas pelo mercado, como se vê hoje nas universidades
públicas brasileiras, pois, quando se pensa na formação dos alunos, logo se associa ao
onisciente “mercado de trabalho”, marcado por uma conjuntura de pós-fordismo,
acumulação flexível e a crise das formas de conhecimento. A fragmentação do
conhecimento e a valorização do conhecimento técnico, instrumental, nesta época de
“capitalismo tardio” levam à alienação das pessoas, prisioneiras nas suas formas de
pensar racional-finalista, unidimensional.
Não pretendo, ao fazer a crítica da instituição universitária, reduzir a discussão a
essa esfera e nem afirmar que tudo o que se produz em seu interior esteja dentro dessa
perspectiva. Mas as universidades, nas suas diversidades, não estão isoladas do mundo e
acabam reproduzindo, mesmo que de forma contraditória, os seus conflitos e impasses.
Não se trata de uma instituição neutra, preocupada com a formação de seus pupilos. São
espaços de conflito, onde se superpõem diversas visões de mundo com perspectivas
diferentes, algumas utópicas, outras conservadoras.
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Certamente existem no interior das universidades intelectuais que se identificam
com certas visões, sejam conservadoras ou mais radicais, mas, como nos mostra Russel
Jacoby, da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, no seu livro chamado O fim da
utopia – política e cultura na era da apatia (editado no Brasil pela Editora Record), o
que parece predominar nos tempos de hoje é o conformismo, ou seja, intelectuais que,
encastelados nos muros da instituição universitária, abdicaram a utopia. Em sua maioria
“redirecionaram as suas preocupações intelectuais para os imperativos da
profissionalização”, como afirma o autor.
Isso significa que o conformismo e a apatia, hoje tão visíveis entre a população
jovem que frequenta as universidades, não é um fenômeno restrito à sua clientela.
Muitos professores, os intelectuais, os gestores, estão acomodados nas instituições e, na
maioria das vezes, muito pouco preocupados com o que se passa ao seu redor. Parece
que muitos estão focados somente na sua carreira, com a construção de seu “curriculum
Lattes” e pouco atentos ao que ocorre na sociedade. Um sinal disso é a ausência de
debates no ambiente universitário, o que desestimula os alunos e o corpo docente. Por
isso o universitário, longe de se tornar um ambiente fervilhante de confronto de ideias,
transforma-se num deserto, num “escolão”, como afirmou um intelectual da cidade. Não
é por acaso que muitos intelectuais têm afirmado que a discussão crítica atualmente
passa por outros canais e não mais pela universidade.
Muitos professores, os intelectuais, os gestores,
estão acomodados nas instituições e, na maioria
das vezes, muito pouco preocupados com o que se
passa ao seu redor. Parece que muitos estão
focados somente na sua carreira, com a construção
de seu “curriculum Lattes” e pouco atentos ao que
ocorre na sociedade.
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QUAL UNIVERSIDADE QUEREMOS PARA QUE A
DEMOCRACIA AVANCE EM NOSSO PAÍS?
Nesse sentido, são oportunas as reflexões críticas que filósofa Marilena Chauí
faz sobre aquilo que ela denominou de “Universidade Operacional.” Destaco alguns
trechos de sua fala em 8 de agosto de 2014, no auditório da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo (FAU-USP).
A universidade brasileira – afirma Marilena - submeteu-se à ideologia neoliberal
da sociedade de mercado, ou “sociedade administrada” (Escola de Frankfurt), que
transforma direitos sociais, inclusive educação, em serviços; concebe a universidade
como prestadora de serviços; e confere à autonomia universitária o sentido de
gerenciamento empresarial da instituição.
Em repetidas manifestações, o reitor da USP revela seu “lugar de fala”, sua
afinação com esse ideário, ao recorrer ao vocabulário neoliberal utilizado para pensar o
trabalho universitário, que inclui expressões como “qualidade universitária” (definida
como competência e excelência e medida pela “produtividade”) e “avaliação
universitária”.
Nesse contexto, a USP, como suas congêneres, transformou-se numa “fábrica de
produzir diplomas, teses”, tendo como parâmetros os critérios da produtividade:
quantidade, tempo, custo. “Esse horror do currículo Lattes. É um crime o currículo
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Lattes! Porque ele não quer dizer nada. Eu me recuso a avaliar alguém pelo Lattes!”,
disse Marilena.
“Vejo as pessoas desesperadas porque perderam 7 ou ganharam 7 da Capes
[Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior]. Não significa nada.
„Quero ser 7 porque Porto Alegre é 7‟. A gente incorporou a competição pelas
organizações, pela eficácia”, destacou Marilena. Mais tarde, acrescentou: “Fuvest e
Lattes são a prova da estupidez brasileira”.
A professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
esmiuçou o processo por meio do qual a universidade pública brasileira vem sendo
transformada e descaracterizada, desde os anos 1970, deixando de ser uma instituição
social para tornar-se uma organização, isto é, “uma entidade isolada, cujo sucesso e
cuja eficácia se medem em termos da gestão de recursos e estratégias de desempenho e
cuja articulação com as demais se dá por meio da competição”.
A “universidade operacional” corresponde à etapa atual desse processo, segundo
Marilena. De acordo com ela, “a forma atual de capitalismo se caracteriza pela
fragmentação de todas as esferas da vida social, partindo da fragmentação da produção,
da dispersão espacial e temporal do trabalho, da destruição dos referenciais que
balizavam a identidade de classe e as formas da luta de classes”. A passagem da
universidade da condição de instituição social (pautada pela sociedade e por uma
aspiração à universalidade) à de organização insere-se, diz Marilena, “nessa mudança
geral da sociedade, sob os efeitos da nova forma do capital, e, no Brasil, ocorreu em três
etapas sucessivas, também acompanhando as sucessivas mudanças do capital”.
Na primeira etapa (anos 1970, “milagre econômico”), a universidade tornou-se
“funcional”, voltada para o mercado de trabalho, sendo “prêmio de consolação que a
ditadura ofereceu à sua base de sustentação politico-ideológica, isto é, à classe média
despojada de poder”; na segunda etapa (anos 1980), passou a ser “universidade de
resultados”, com a introdução da ideia de parceria com as empresas privadas; a terceira
etapa (anos 1990 aos dias de hoje), em que virou “universidade operacional”, marca o
predomínio da forma organização, “regida por contratos de gestão, avaliada por índices
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de produtividade, calculada para ser flexível”, estruturada por estratégias e programas
de eficácia organizacional e “por normas e padrões inteiramente alheios ao
conhecimento e à formação intelectual”.
A tecnocracia associada a esse modelo, explicou, “é aquela prática que julga ser
possível dirigir a universidade segundo as mesmas normas e os mesmos critérios com
que se administra uma montadora ou um supermercado”. De modo que se administra
“USP, Volks, Walmart, Vale do Rio Doce, tudo da mesma maneira, porque tudo se
equivale”.
“A metamorfose da universidade pública em organização tem sido o escopo
principal do governo do Estado de São Paulo”, denunciou Marilena. Ela argumentou
que a reforma do Estado adotada pelo governo FCH (1995-2002) e efetivada pelos
governos estaduais do PSDB, particularmente o de São Paulo, pautaram-se pela
articulação com o ideário neoliberal (Estado mínimo, privatização dos direitos sociais)
e, no caso do ensino superior, realizaram a agenda de mudanças preconizada pelo Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) para a reestruturação das universidades da
América Latina e Caribe, em 1996, e baseada na redução das dotações orçamentárias
públicas às instituições de ensino superior.
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“Penso que a expressão perfeita dos desígnios do governo do Estado e do BID se
encontra na carta enviada pelo reitor da USP aos docentes em 21 de julho de 2014”,
afirmou a professora. “Sei que se tem debatido a falsidade dos números apresentados
por ele, a manipulação. A carta me interessa pelo vocabulário que ele usa. Ele começa a
carta se referindo a nós como o custeio. Somos o custeio, não somos o esteio da
Universidade. A partir daí já está tudo dito. Ele não começa pelas obras que foram feitas
sem necessidade, pelo esparramamento da USP pela cidade. Não. Ele começa por nós”,
enfatizou.
“O reitor não está usando essa linguagem porque caiu de paraquedas no mundo e
equivocadamente fala nessa linguagem. Ele tem uma concepção de universidade, uma
concepção política, uma concepção do conhecimento, uma concepção do saber. Minha
fala vai na direção de localizar o que é que tornou possível a um reitor da USP dizer as
coisas que ele diz”.(A palestra inteira da professora Marilena Chauí se encontra no site
http://www.youtube.com/watch?v=llXrRg4BaVg. Vale a pena ver).
Na primeira etapa (anos 1970, “milagre econômico”), a universidade
tornou-se “funcional”, voltada para o mercado de trabalho, sendo
“prêmio de consolação que a ditadura ofereceu à sua base de
sustentação politico-ideológica, isto é, à classe média despojada de
poder”; na segunda etapa (anos 1980), passou a ser “universidade de
resultados”, com a introdução da ideia de parceria com as empresas
privadas
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POR UMA MEDICINA HUMANIZADA E UM CORPO
NÃO FRAGMENTADO
Benedito Carvalho Filho
"Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de
ciência cuja ciência é só classificar, ignoram, em geral, que
o classificável é infinito e, portanto, se não pode classificar"
(Bernardo Soares/Fernando Pessoa, in "O Livro do
Desassossego")
As Ciências Humanas são fundamentais para a formação dos profissionais das
mais diferentes áreas, mas vêm sendo abandonadas em nome do aprimoramento técnico
especializado. Isso tem gerado, com vimos nos artigos anteriores, uma série de
problemas quando se trata de pensar os problemas de ordem ética e humanista.
Não é por acaso que temos nos deparado atualmente com fatos absurdos na área
da saúde. Médicos cometendo erros de diagnóstico, outros pedindo a castração química
dos nordestinos, a falta de respeito para com o ser humano, a troca de medicação
involuntariamente por falta de atenção, o tratamento do ser humano como se fosse uma
coisa que se manipula - ou seja, como dizia Max Weber, a transformação dos médicos
em especialistas sem coração, preocupados apenas com os aspectos técnicos,
instrumentais.
Não podemos esquecer que, quando a ciência se desvincula da ética, pode criar
monstros, como os médicos e cientistas no final da primeira metade do século XX, que
torturaram, mataram e cometeram, na época do nazismo, atrocidades bárbaras em nome
da eficiência técnica, usando seres humanos inocentes em experiências médicas e
chegando ao requinte macabro de cortar os cabelos de suas vitimas dentro de um padrão
industrial, que servia para fabricar chinelos para as tripulações dos submarinos alemães,
antes de enviá-las para as câmaras de gás. vitimando, sem distinção, homens e
mulheres, jovens, velhos ou crianças.
O profissional que nunca refletiu sobre temas filosóficos, históricos,
sociológicos e antropológicos possui enorme dificuldade em reconhecer-se no outro e
entender o mundo em que vive e a importância de suas ações para o progresso da
humanidade.
Não é por acaso que o processo civilizatório nos dias hoje está em decadência,
como podemos perceber pelo assustador aumento dos índices de violência em todo
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planeta e a banalização do desrespeito para com a vida, como vemos diariamente
através dos meios de comunicação e, também, ao nosso redor.
É possível repensar o ensino da sociologia, filosofia, psicologia e antropologia
nas universidades, de forma que permita aos profissionais da área médica e paramédica
adquirirem uma visão mais crítica e holística sobre seu campo de saber?
O QUE É O CORPO? UMA MAQUINA?
Relato uma experiência educativa. .
Nos anos 1980, atuando como professor de sociologia numa faculdade da cidade
de Fortaleza, passei por uma experiência de ensino com algumas turmas do curso de
fisioterapia e educação física. Percebi que o currículo da matéria estava voltado para o
ensino dos clássicos (Durkheim, Weber e Marx) e, dessa maneira, não havia como
estabelecer uma relação direta com o campo específico em que eles e elas estavam
estudando, pois estavam voltados exclusivamente para os conhecimentos de sua área.
Tinha consultado e lido diversos autores que afirmava que o corpo, quando
estudado sob diversas perspectivas, permitiria uma abordagem multidisciplinar. Por
isso, comecei o curso com uma pergunta: o que é corpo? E deixava as pessoas falarem
livremente. E os corpos dos alunos e alunas começaram a falar, pois eram corpos
falantes que, através de diferentes modos, simbolizavam o mundo, pois o corpo não é
somente, como apresentado do ponto de vista da física, um agregado de átomos, certa
massa e energia, que funciona de acordo com as leis gerais da natureza. Nem se reduz
somente a elementos químicos, feito de moléculas, funcionando como qualquer corpo
químico. Também não é somente um organismo vivo, membro de uma espécie (animal,
vertebrado, mamífero), capaz de adaptar-se ao meio por operações e funções internas,
dotado de um código genético hereditário, que se reproduz sexualmente.
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Fomos percebendo que corpo guarda muitos mistérios e exige múltiplos olhares.
Fomos percebendo, também, que os corpos humanos vivem em diversas
situações que não são homogêneas, quando pensamos na diversidade social, política e
econômica da sociedade. O corpo de um africano pobre, de um brasileiro que enfrenta a
seca no Nordeste, é muito diferente do corpo de um burguês, ou um remediado da classe
média. O corpo de um detento aprisionado em um presídio, ou de um operário
trabalhando na linha de produção, também diferenciam-se de outros indivíduos da
sociedade.
Fomos percebendo, então, que na sociedade, mesmo possuindo as mesmas
características biológicas, há uma heterogeneidade de situações que, direta e
indiretamente, vão determinar as interações sociais e a construção de um tipo de corpo e
da própria subjetividade. E isso tem a ver, principalmente, com a diferenciação de classe
social, o que nos leva a pensar que não existe um corpo, mas corpos vivendo em
situações muito heterogêneas o que leva a implicações sociais e éticas pois, na maioria
das vezes, a limitada formação dos médicos (oriundos quase sempre de uma classe
social privilegiada) faz com que não percebam que estão tratando seres diferenciados de
forma homogênea, quase sem levar em conta o contexto onde as pessoas vivem.
Os diálogos se aprofundaram e, progressivamente, fomos percebendo os
múltiplos discursos sobre a forma como o corpo foi concebido ao longo da história,
influenciando as correntes de pensamento e as práticas médicas, naturalizando certos
procedimentos na medicina.
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Posteriormente, através de uma pequena bibliografia, fomos fazendo um
levantamento das diversas correntes de interpretação do corpo até chegarmos à
modernidade, quando surge um novo modelo epistemológico que modificou
radicalmente a forma como o corpo passou a ser conceptualizado na medicina (e em
outras profissões da área de saúde). Surge uma nova episteme, como afirma Michel
Foucault, que irá ter profunda influência no campo da medicina.
Qual foi esse modelo?
Ele foi abordado pelo artigo de um professor gaúcho chamado A concepção do
corpo dos acadêmicos do Curso de Educação Física de Santa Maria, escrito em 1998.
No primeiro capítulo, ele aborda as concepções de corpo no Ocidente, desde a Grécia
clássica até à modernidade, demonstrando como Descartes foi o principal pensador do
mundo que concebeu o corpo como uma máquina.
Essa visão de mundo, que via o corpo como máquina, como mostra o autor, tem
se colocado como paradigma emergente, em oposição ao atual paradigma Newtoniano-
Cartesiano, ainda perdurante em nosso meio científico.
Esse novo paradigma, se referendou primeiramente nas descobertas da física
quântica, nas três primeiras décadas do século XX e tem um caráter holístico e
ecológico.
O caráter holístico, afirma o autor, nos mostra que nenhum elemento possui
identidade e existência em seu interno total; o segundo está relacionado com a nossa
participação e interação nos processos do universo, através da divisão de nossa
consciência, ou seja, pela autotransformação; a terceira considera a síntese como
ponto fundamental na compreensão do mundo; a quarta, afirma que a matéria é dotada
de energia e intencionalidade, onde os elementos se organizam em sistemas de
interação complexos.
Esta concepção, ainda emergente, propõe uma abordagem transdisciplinar sem
desconsiderar outros sistemas filosóficos existentes, e sem hierarquias, onde os
fenômenos podem ser explicados a partir de suas relações com o meio circundante de
uma maneira integrada e independente.
Silva, ao citar outro autor, mostra com Descartes privilegiou a mente em relação
ao corpo e construiu seu raciocínio baseado na ideia de que tudo é constituído da soma
das partes, concluindo que os dois são separados e fundamentalmente diferentes ao
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afirmar que não há nada no conceito de corpo que pertença à mente, e nada na ideia
que a mente pertença ao corpo.
Ou seja, sua concepção de corpo humano concebia-o como indistinguível de um
animal-máquina, movida pela mente, considerando as várias funções biológicas como
operações mecânicas, a fim de mostrar que os organismos vivos eram nada mais que
autômatos.
Nessa concepção, ainda bem presente na formação do médico e outros
profissionais da saúde, o homem não é corpo em ação, mas tem o corpo em ação para
alcançar determinados resultados, enfim, determinados objetivos. Podemos pensar, a
partir desse pressuposto, que temos uma “medicina de resultado”, onde o corpo deve ser
dissecado e classificado e visto como uma máquina onde os especialistas vão dividi-lo,
fragmentá-lo e se tornarem especialistas em cada pedaço.
Ainda segundo Silva, o que irá determinar a condições corporais não é a visão
maquínica, mas as riquezas de experiências e a forma como estas forem vividas. E
conclui: O nosso corpo é mais do que a cabeça, costas, pernas e braços, ele é “nós”.
Com tudo que implica sentimentos, pensamentos, história e cultura reunidas e
impressas em cada célula que se constituí. Por isso, tomar consciência do próprio
corpo é ter acesso a ser inteiro.
O nosso corpo, como afirma a filósofa Marilena Chauí, é visível-vidente, táctil-
tocante, sonoro-ouvinte-falante, meu corpo se vê vendo, se toca tocando, se escuta
escutando e falando. Meu corpo não é uma coisa, não é uma máquina, nem é um feixe
de ossos, músculos e sangue, não é uma rede de causas e efeitos, não é um receptáculo
para a alma ou uma consciência: é meu modo fundamental de ser e de estar no mundo,
de me relacionar com ele, e de ele se relacionar comigo. Meu corpo é um sensível que
sente e se sente, que se sabe sentindo. É uma interioridade externalizada. Esse é o ser
ou essência de meu corpo. Meu corpo tem, como todos os entes, uma dimensão
metafísica ou ontológica.
Diante de uma medicina mercantilizada, como essa que temos diante de nós,
onde a crueldade revela suas tragédias; onde grassa um saber médico que se autointitula
“científico”; que fragmenta o corpo transformando-o numa máquina; é mais do que
necessário e urgente que haja uma profunda transformação na formação do ensino da
medicina nas universidades públicas e privadas de nosso país.
Uma medicina que vê o saber médico como fonte de poder, centrada numa visão
que só enxerga as patologias com seus conjuntos de rótulos e classificações e o corpo
como desprovido e subjetividade, torna-se uma grande tragédia para sociedade. Torna-
se a medicina do holocausto.
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A RATAZANA COM PHD
Alguns dias depois de ter feito os comentários acima sobre os profissionais que a
universidade está formando, o jornal Folha de São Paulo, no dia 17 de novembro de
2014, publicou um artigo do filósofo, escritor e ensaísta Luiz Felipe Pondé chamado A
ratazana com PhD.
Não concordo com muitas coisas que Pondé escreve, mas, apesar de suas ironias
e exageros, nesse artigo ele reflete sobre coisas que revelam o mal estar nas
universidades e provocam discussões, pois toca em questões que estão diante de nossa
realidade e, muitas vezes não queremos ver.
Ironicamente, introduz o seu texto levando o leitor para o ambiente universitário:
- Imagine que você está numa reunião de colegiado de qualquer universidade
brasileira. Desafio você a contar quantas vezes ouvirá a palavra “alunos” ao longo de
uma reunião. Provavelmente nenhuma. Refiro-me aqui especificamente ao universo do
mestrado e do doutorado.
Perguntará o leitor assustado: “Como assim? A universidade não foi feita para
os alunos??!”. Responderá o professor: “Coitadinho dele, ingênuo. Não: a
universidade existe para fazer relatórios burocráticos que supostamente medem a
qualidade da pós-graduação. Servimos a burocracia da produtividade e só isso”.
Citando Franz Kafka (1833-1924), em uma de suas obras chamada O Processo,
publicada em 1925, ele afirma que se ele vivesse hoje escreveria um conto no qual nós,
acadêmicos, seríamos representados como ratos aterrorizados pela grande ratazana
“empoderada” (essa palavra horrível que alguém inventou em alguma noite em que
vomitava continuamente...), a rainha de todos os burocratas, seres nascidos para
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tornar qualquer criatividade real inviável. A originalidade é perseguida a pauladas nos
corredores das universidades.
Segundo Pondé, o aluno é a variável menor porque ele não “conta” ponto
nenhum para a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior), apenas como média quantitativa que medem a rapidez com a qual mestrados
e doutorados são concluídos.
Ao se referir às universidades públicas e privadas, Pondé é implacável:
Se a for uma universidade pública, então, em que o salário não depende do
número de orientandos e alunos em sua disciplina, o aluno é menos importante do que
banheiros limpos. Se for numa privada, ele contará, é claro, nos contratos dos
professores com números que garantem salários. E só.
Diante dessa situação, o aluno, como todo miserável numa cadeia alimentar em
que é parte mais fraca, sonha em virar predador: submete-se ao matadouro porque
quer passar em algum concurso. Mas, se quiser, trate de arranjar alguém que manipule
uma banca a seu favor. Além, claro, de atender às exigências da ratazana rainha.
E prossegue:
Todo professor sabe que deve correr atrás de pontuar nos relatórios, porque,
inclusive, se não o fizer, derruba a nota do seu departamento, e isso será punido das
mais diversas formas. Você até pode dar aula medíocre, repetindo conteúdos ou
fazendo o aluno dar seminários no seu lugar. Isso em nada impacta a “produtividade”.
A ratazana rainha no enxerga números.
Citando alguns livros, Pondé mostra que no ensino médio, nem sempre
quantidades implicam qualidades (vale muito a autoajuda e as tecnobobagens
aplicadas à educação, na moda aqui no Brasil). Ainda que o livro se ocupe do ensino
médio, ele pode servir de luz para o tema em geral.
Sobre as “listas qualis”, Pondé é taxativo:
Espero que um dia superemos esse paradigma vazio das “listas qualis” que, na
realidade, aferem nada, em termos de conteúdo, do que significa a relação com a
formação do aluno. Por quê? Simples: porque, mesmo que publiquemos muito segundo
parâmetros “qualis”, a qualidade do ensino de pós-graduação no Brasil é cada vez
mais burocrática.
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