casos prÁticos de direitos reais resolvidos...casos práticos resolvidos – direitos reais 2...

28
www.direitoasaber.com 1 CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS Hipótese I Suponha que António, que sabia que o seu falecido pai era titular de um direito de enfiteuse, sobre o prédio X, pertencente em tempos a Xavier, considera que adquiriu este direito, por sucessão. Por seu turno, Bento, único herdeiro de Xavier, nunca ouviu falar de tal direito de enfiteuse. Quid iuris? A enfiteuse foi extinta em 1976 devido ao 25 de Abril pois violava a nova conceção política. A enfiteuse era quem trabalhava a terra, achava-se que a terra deveria ser de quem a trabalhava. Há quem concorde que deveria voltar a existir por costume como Oliveira Ascensão que defende a existência de direitos reais por costume. Em França, já está a voltar a existir porque há pouca gente a trabalhar a terra. Uma vez que a enfiteuse não vale como direito real, por força do princípio da tipicidade (art. 1306.º, n.º 1 CC), António não tem qualquer direito sobre o prédio X. DIREITO A SABER

Upload: others

Post on 29-Nov-2020

23 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

Page 1: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

www.direitoasaber.com 1

CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS

Hipótese I

Suponha que António, que sabia que o seu falecido pai era titular de um direito de

enfiteuse, sobre o prédio X, pertencente em tempos a Xavier, considera que adquiriu este

direito, por sucessão. Por seu turno, Bento, único herdeiro de Xavier, nunca ouviu falar de tal

direito de enfiteuse. Quid iuris?

A enfiteuse foi extinta em 1976 devido ao 25 de Abril pois violava a nova conceção política. A

enfiteuse era quem trabalhava a terra, achava-se que a terra deveria ser de quem a trabalhava. Há

quem concorde que deveria voltar a existir por costume – como Oliveira Ascensão que defende a

existência de direitos reais por costume. Em França, já está a voltar a existir porque há pouca gente a

trabalhar a terra.

Uma vez que a enfiteuse não vale como direito real, por força do princípio da tipicidade (art.

1306.º, n.º 1 CC), António não tem qualquer direito sobre o prédio X.

DIREITO A SABER

Page 2: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 2

Hipótese II

Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X, de que é

proprietária, em garantia da restituição de um mútuo, no valor de € 50.000,00. No documento

particular autenticado1 através do qual foi firmado o negócio, uma das cláusulas determina

que a hipoteca se mantém, ainda que a obrigação de restituição da quantia mutuada se extinga

por qualquer forma. Quid iuris?

Trata-se de uma hipoteca (direito ao credor de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou

equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que

não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo), art. 686.º CC – direito real de garantia,

isto é, direito que permite a um credor pagar-se preferencialmente pelo produto de venda de uma

coisa sobre a qual incide a garantia. Esta hipoteca é voluntária (art. 712.º CC – podendo ser por meio

de contrato [aqui presente] ou de testamento) e a forma foi respeitada (arts. 714.º e 363.º, n.º 3 CC).

Quando se constitui um direito real, existe hipoteca? Quando é feito o registo – exceção do

princípio da consensualidade (art. 408.º, n.º 1 CC), pois a regra é que os contratos são real quoad

effectum; no entanto, a hipoteca exige o registo para além do documento particular autenticado, pelo

que, é um contrato real quoad constitutionem.

Art. 730.º, al. a) CC – se pagar o empréstimo, a garantia extingue-se. As partes não podem

afastar a al. a) – esta consagra uma acessoriedade da hipoteca em que se acontecer algo à coisa

garantida, vai afetar também a garantia e esta norma é injuntiva, logo, o que as partes pretendem

redigir no contrato, envolve a modificação do tipo, pelo que é proibido por força do princípio da

tipicidade.

Neste momento, as garantias são acessórias mas discute-se, no âmbito da União Europeia, uma

futura autonomia das mesmas.

1 Escritura pública é um documento redigido pelo notário no cartório; no documento particular, as partes redigem o documento e

depois de assinarem, vão ao notário e confirmam o documento pelo notário e este autentica – o art. 363.º CC tem de ser articulado

com o DL n.º 766-A, de 29 de Março [art. 38.º - também pode autenticar os advogados, os oficiais de registo, solicitadores, etc.];

enquanto que no reconhecimento de assinatura apenas conferem se as assinaturas são iguais e não analisam o conteúdo.

Page 3: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 3

Hipótese III

Edu celebrou com Fábio, mediante escritura pública, um negócio jurídico pelo qual lhe

alienou o seu direito de propriedade sobre o prédio Y, mediante o pagamento de € 100.000,00.

Quid iuris?

Edu e Fábio celebram um contrato pelo qual alienam um direito real – de propriedade –

mediante o pagamento do preço (art. 874.º CC). Este negócio é válido porque foi celebrado mediante

escritura pública (art. 875.º CC) e, tem como efeito real, a transmissão da propriedade no momento

em que se celebra o contrato (art. 879.º CC) – depois das partes assinarem, o notário assinar e pôr

um selo branco. Trata-se de um contrato real quoad effectum – arts. 874.º, 408.º, n.º 1, 879.º, al. a) e

1317.º, al. a) CC.

1. Indique o momento de transmissão/constituição do direito real, considerando as

seguintes sub-hipóteses:

1.1 Edu nunca entregou as chaves do prédio Y a Fábio.

Se Edu nunca entregou as chaves, a transmissão da coisa é um mero efeito obrigacional, não

condicionando o efeito real e o direito transmite-se à mesma. Fábio pode exigir o cumprimento do

contrato (forma obrigacional) ou recorrer a uma ação de reivindicação.

1.2 Fábio apenas pagou metade do preço.

O pagamento do preço é apenas um efeito obrigacional que não influencia o direito real. Este

transmitiu-se no momento da celebração do contrato.

1.3 Afinal, Edu constituiu a favor de Fábio um direito de usufruto sobre o prédio Y.

Pode-se vender um direito de superfície, um direito de crédito – art. 874.º CC – ou “outro

direito”. Temos um contrato de doação porque Fábio não pagou preço nenhum.

1.4 Fábio não registou a aquisição.

O registo tem efeito meramente consolidativo, ou seja, apenas serve para permitir ao

proprietário evitar aquisições tabulares a favor de terceiros que estão de boa-fé e tenham celebrado

um contrato oneroso (arts. 17.º, n.º 2, 122.º e 29.º, n.º 1 CC).

1.5 Suponha que, afinal, Edu constituiu a favor de Fábio uma hipoteca voluntária sobre o

prédio Y, mediante documento particular autenticado, que nenhuma das partes levou ao

registo, nem tão-pouco o advogado que tratou do negócio.

A hipoteca voluntária (arts. 686.º e 712.º CC), respeitada que foi a forma (arts. 714.º e 363.º, n.º

3 CC), vai influenciar o momento da transmissão do direito real, que apenas se verifica após o

Page 4: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 4

registo da mesma (art. 687.º CC) – constitui uma exceção do princípio da consensualidade previsto

no art. 408.º, n.º 1 CC. Desta forma, ao direito real não se transmitiu.

1.6 Ficou convencionado que o direito de propriedade apenas se transmitiria com o

pagamento total do preço.

Trata-se de uma reserva de propriedade (art. 409.º, n.º 2 CC) e, portanto, uma exceção aparente

ao princípio da consensualidade2.

1.7 Afinal, a venda não era respeitante ao prédio Y mas sim a todas as laranjas do quintal

de Edu.

Por força do princípio da especialidade – que têm de ser individualizados – e pelo princípio da

consensualidade – que têm de ser separados – trata-se de uma obrigação genérica (art. 539.º CC),

pelo que, para que se transmita o direito real é necessário que o objeto da venda esteja determinado.

1.8 E se, na sequência da questão 1.7, fossem vendidos 50kg de laranjas?

Trata-se de uma obrigação genérica e só com a concentração das laranjas é que se transmite o

direito. Se a escolha couber ao credor ou a terceiros, concentra-se com a comunicação da escolha –

art. 408.º, n.º 2 CC (“determinada com o conhecimento” está incluída o art. 542.º CC); se a escolha

couber ao devedor, concentra-se com a entrega (art. 540.º CC).

1.9 O prédio Y pertencia, afinal, a Guadalberto. No entanto, Edu adquiriu o prédio Y por

sucessão um mês depois do negócio jurídico que celebrou com Fábio.

Aqui estamos perante uma venda de bens alheios, suscetível de ser sanada – arts. 892.º e 895.º

CC – ou, se fosse do conhecimento de ambas as partes, estaríamos perante uma venda de bens

futuros – art. 408.º, n.º 2 CC.

É uma exceção aparente ao princípio da consensualidade. Não é possível que a propriedade se

transmita por vontade de António – art. 895.º CC – mas este tem obrigação de convalidar o negócio

e independentemente se adquirir o direito, este transmite-se.

Para o comprador, é uma exceção aparente ao princípio da consensualidade. Para o vendedor

resulta em responsabilidade contratual.

1.10 Afinal, Edu vendeu a Fábio o único botão do seu casaco.

O botão é um objeto determinado e o direito transmite-se no momento da separação porque é

uma parte componente – art. 408.º, n.º 2, 2.ª parte CC. A lei apenas define parte integrante (quanto a

coisas imóveis), mas parte componente refere-se a coisas móveis e, como tal, podem ser separadas.

O direito transmite-se com a separação por força do princípio da especialidade.

2 As exceções verdadeiras são o penhor e a hipoteca. É esta a posição do Prof. José Alberto Vieira porque ainda é o contrato que

transfere o direito.

Page 5: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 5

Diferentemente, se fosse “um” botão, seria uma obrigação genérica em que o direito se

transmitiria no momento da concentração, que depende de quem faz a escolha.

Page 6: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 6

Hipótese IV

António, proprietário e possuidor do automóvel Mercedes, emprestou-o a Beatriz, sem

qualquer contrapartida, durante um mês.

Nesse período, Beatriz vendeu a Carlos o auto-rádio do automóvel Mercedes, tendo de

imediato procedido à respetiva entrega.

Aprecie a situação jurídico-possessória do automóvel Mercedes.

1.º parágrafo

António – proprietário nos termos do direito real de gozo – celebrou com Beatriz um contrato

de comodato (art. 1129.º CC).

2.º parágrafo

Beatriz vendeu a Carlos uma coisa acessória – porque tem autonomia quando separado – do

automóvel; não se trata de uma parte integrante porque apenas existe para as coisas imóveis; nem de

uma parte componente. Como não lhe pertencia, trata-se de uma venda de bens alheios (art. 892.º

CC).

O automóvel é uma coisa composta (art. 206.º, n.º 1 CC) – trata-se de duas coisas, pelo menos,

com destino unitário – ou simples (art. 206.º, n.º 2 CC)?

Se as coisas perdem autonomia com a sua incorporação/junção/integração, é uma coisa simples.

O auto-rádio quando o tiram do carro ganha autonomia.

A venda do auto-rádio, do ponto de vista substantivo, é nula. António é titular de um direito de

propriedade (art. 1302.º CC – direito real de gozo), Beatriz é titular de um direito pessoal de gozo e

Carlos não tem nada.

Quanto à situação possessória, António tem a posse do auto-rádio, uma vez que tem a posse do

automóvel, nos termos do direito de propriedade (art. 1263.º, al. c) CC); Beatriz é mera detentora

(direito de propriedade), tem uma posse interdictal por força do direito pessoal de gozo.

Para existir inversão do título da posse (ato através do qual o detentor se opõe ao possuidor) é

necessário que haja mero detentor e, no caso em apreço, há – art. 1265.º CC – bem como, que seja

reconhecível para o possuidor; chega a ser um esbulho quanto ao possuidor. Tem de fazer uma

aposição dirigida e reconhecível ao possuidor e não fez, logo, Beatriz não tem posse.

Carlos tem posse? Tem corpus (controlo material da coisa com exclusão de terceiro e por

determinado certo lapso de tempo); aqui, caso se defenda uma teoria objetivista, exige-se um animus

possidendi, ou, se for uma teoria subjetivista, é necessário um animus domini – não há elementos

sobre o animus mas a jurisprudência resolve o problema dizendo que se presume – art. 1252.º, n.º 2

CC. Se não houver desqualificação – e não há –, Carlos tem a posse (art. 1263.º, al. c) CC). Pelo

Page 7: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 7

facto de entregar algo a outro não significa que haja tradição – esta tem de ser entregue pelo anterior

possuidor.

Ora, Carlos adquiriu a posse por apossamento (forma de aquisição de posse originária), ao

contrário da tradição que é uma forma de aquisição da posse derivada – art. 1263.º al. a) CC.

Requisitos: atos materiais sobre a coisa (já resulta do corpus), prática reiterada e publicidade. Quanto

à prática reiterada, a doutrina diz que não tem de ser mesmo reiterada propriamente dita (pode haver

um só ato) – relevante é a intensidade do ato de apossamento (da atuação) – ex.: no metro, alguém

rouba-me a carteira; há apossamento e apenas um ato foi praticado. Dada a intensidade do ato, basta

ser apenas um ato. Isto só acontece nas coisas móveis; quanto aos imóveis tem de ser reiterada.

Relativamente à publicidade, José Alberto Vieira desvaloriza este requisito porque podemos ter

vários tipos de posse, como a oculta; Menezes Leitão diz que sem publicidade há posse na mesma,

apesar de ser mais difícil para termos de usucapião.

Em suma, Carlos tem a posse por apossamento e esta é formal, não titulada, logo presume-se de

má-fé apesar de ser ilidível, efetiva, pacífica, pública e civil.

A posse de António, quando Carlos se apossa, deixa de ser efetiva – art. 1267.º, n.º 1, al. d) CC

(quando resulta apenas da lei). Este tem posse não efetiva porque houve um esbulho (ato de privação

em relação ao anterior possuidor) por parte de Carlos.

Quanto a ações possessórias a intentar, pode recorrer a uma ação de restituição da posse no

prazo de 1 ano; caso contrário, há caducidade. Se for intentada a ação, o tribunal vai decidir a favor

de António pois a posse deste é titulada (mais forte), tem a melhor posse porque é titulada e causal;

sendo causal, é ele que fica com a coisa – art. 1278.º CC.

Responda agora às seguintes questões autónomas:

1. Suponha que António celebrou com Beatriz um contrato de aluguer do automóvel

Mercedes, em contrapartida do pagamento mensal de € 300,00. Beatriz, que não sabe

conduzir, contratou Xavier para esse efeito. Quid iuris?

Quanto à situação substantiva, António é titular de um direito de propriedade (art. 1302.º CC –

direito real de gozo). Beatriz é titular de um direito pessoal de gozo e Xavier, quanto à coisa, não

tem nenhum direito real nem nenhum direito de crédito.

Quanto à situação possessória, António tem a posse, nos termos do direito de propriedade;

Beatriz é mera detentora com direito pessoal de gozo (art. 1253.º, al. c) CC), uma posse interdictal;

Xavier é mero detentor (art. 1253.º, al. c) CC – abrange contrato de trabalho e prestação de serviços).

2. António não procedeu ao pagamento do imposto de circulação referente ao ano de 2012.

Em Janeiro, vendeu o automóvel a Zeferino. Quid iuris?

A questão opõe ónus real contra obrigação propter rem. No primeiro, o atual titular do direito

real tem de suportar o pagamento e no segundo, o devedor é o que for titular do direito real. O que

interessa é que atualmente o carro pertence a Zeferino; se este não pagar, responde por aquela dívida.

Page 8: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 8

O ónus real reforça a garantia do credor – é obrigação do titular do direito real saber se existem ónus

reais quanto àqueles bens.

Page 9: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 9

Hipótese V

Em 2000, Daniel retirou um sinal de marcação rodoviária de proibição de ultrapassagem,

o qual se encontrava na via pública e, desde essa data, que o mantém na porta da sua casa.

Quid iuris?

[Situação substantiva]: Estamos perante uma coisa corpórea, móvel (art. 205.º CC), de domínio

público, fora do comércio.

[Situação possessória]: as coisas corpóreas podem ser suscetíveis de posse mas os bens de

domínio público, não podem ser alvo de apropriação individual; contudo, há exceções,

nomeadamente, há bens de domínio público que podem ser objeto de comércio – quando o Estado

age desprovido de ius imperii – e que são, portanto, suscetíveis de posse. Os sinais rodoviários, em

princípio compram-se, logo, é suscetível de posse pois estão no âmbito do comércio.

O Daniel tem corpus (controlo material da coisa com exclusão de terceiro); o importante é

tratar-se de um bem fora ou dentro do comércio: consoante esteja dentro do comércio, pode ser

suscetível de posse, mas estando fora do comércio já não é suscetível de posse.

Page 10: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 10

Hipótese VI

Em Janeiro de 1990, António, proprietário e possuidor desde 1970 do prédio X, sito em

Évora, celebrou com Beatriz um contrato pelo qual lhe alienou o direito de propriedade sobre

o referido prédio, em contrapartida do pagamento de cem mil contos. As partes formalizaram

o negócio através de documento particular autenticado por Carlos, notário amigo de António.

Na mesma data, António entregou a Beatriz as chaves dos portões de acesso ao prédio X.

De imediato, Beatriz iniciou obras de remodelação da habitação, tendo construído um

segundo piso e realizado melhoramentos no pavimento e instalado novas canalizações e sistema

elétrico. Construiu ainda uma vedação em torno da totalidade do prédio.

Seis meses depois, por ocasião do Verão, Beatriz emprestou o prédio X por toda a estação

a Daniela, sua amiga de infância, emigrada na Alemanha e que vinha passar este período a

Portugal.

Durante a sua estadia, Daniela esqueceu-se das chaves do prédio X, tendo estas sido

recolhidas por Felisberto, que logo nesse dia se introduziu na habitação e, tendo impedido a

entrada de Daniela, com dois ferozes dobermann.

Aprecie a situação jurídico-possessória do prédio X.

1.º parágrafo

[Análise substantiva]: António celebra com Beatriz um contrato de compra e venda (art. 874.º

CC), contudo, a forma não foi respeitada (art. 875.º CC), pelo que é nulo. Por força do princípio da

causalidade, o prédio X pertence a António – é titular de um direito real de gozo (art. 1302.º CC).

[Análise possessória]: Teoria objetivista (animus possidendi) vs. teoria subjetivista (animus

domini) – as chaves atribuem a possibilidade de atuar sobre a coisa/de praticar. Para saber se Beatriz

tem a posse, é preciso saber se esta tem corpus (domínio material sobre a coisa, com exclusão de

terceiros e de tempo suficiente) – ela tem; para a teoria subjetivista, é também necessário que tenha

animus. Consultar o art. 1253.º CC – não há normas desqualificantes.

Beatriz tem a posse nos termos do direito de propriedade. Adquiriu a posse por traditio com a

entrega das chaves – art. 1263.º, al. b) CC. A posse é não titulada (nulidade formal), logo, presume-

se de má-fé apesar de ilidível, é efetiva, pacífica, pública, formal e civil. Com a aquisição da posse

de Beatriz, António perdeu-a por cedência – art. 1267.º, n.º 1, al. c) CC.

2.º parágrafo

Os atos que Beatriz praticou são benfeitorias (art. 216.º CC), designadamente, a construção do

2.º piso é uma benfeitoria útil porque lhe aumentou o valor (ATENÇÃO: possibilidade de ser uma

acessão – o novo piso é uma coisa nova, não estava lá, construiu-se de novo; a acessão é uma

inovação enquanto que a benfeitoria é uma coisa melhorada – a doutrina discute este ponto); os

Page 11: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 11

melhoramentos do pavimento são também uma benfeitoria útil, ao passo que as novas canalizações e

o sistema elétrico são benfeitorias necessárias, se assumirmos que não havia antes sistema elétrico; e,

por fim, a vedação é uma benfeitoria útil ou acessão.

3.º parágrafo

[Análise substantiva]: Beatriz cede o imóvel para que Daniela se sirva dele, com a obrigação de

o restituir – estamos perante um comodato de coisa alheia (ela não está a transmitir o direito mas

apenas a ceder o gozo do prédio X). António continua a ser o proprietário (art. 1302.º CC – direito

real de gozo), Daniela tem um direito pessoal de gozo e Beatriz e Felisberto não têm nada.

[Análise possessória]: Daniela tem uma posse interdictal nos termos do direito de comodato e

Beatriz tem a posse nos termos do direito de propriedade (ela pratica os atos como se fosse

proprietária mas tem a posse). Terá Daniela o corpus? Sim, se é que esse corpus é desqualificado

porque há um título legal para ela ter corpus – é mera detentora (art. 1253.º, al. c) CC).

4.º parágrafo

Coloca-se a questão se o esquecer das chaves pode ser um ato de abandono (art. 1267.º, n.º 1,

al. a) CC)? A doutrina diverge. Para haver abandono tem de haver perda de corpus? A posse

mantém-se em Beatriz; como o esquecimento não é voluntário, não se trata de abandono.

Felisberto tem corpus porque introduziu-se na habitação, impediu o acesso a ela; terá animus?

Presume-se o animus quando tem posse – art. 1252.º, n.º 2 CC. Assumindo que Felisberto tem posse,

é nos termos do direito de propriedade, adquirindo-o por apossamento – art. 1263.º, al. a) CC –

forma de aquisição da posse originária. Quanto aos caracteres da posse, é não titulada, logo,

presume-se a má-fé, efetiva, formal, civil, pública e pacífica (?). A posse violenta é adquirida através

da coação no momento da aquisição da posse – esse momento é quando ele adquire o corpus pela

prática reiterada de atos materiais. José Alberto Vieira entende que a coação só é exercida sobre

pessoas enquanto que a doutrina clássica onde se insere Menezes Leitão, entende que é sobre

pessoas e coisas. Considerando que passado 3 dias, ele impede a entrada de terceiros, considera-se

que a posse é violenta – art. 1261.º CC.

Estando a posse em Felisberto, significa que Beatriz foi esbulhada – art. 1267.º, n.º 1, al. d) CC.

Beatriz tem 1 ano para reagir ao esbulho, sendo que o prazo conta-se a partir do momento em que a

violência cessa (a utilização dos dobermans, neste caso) – art. 1267.º, n.º 2 CC. Até esse prazo

iniciar, temos uma sobreposição de posses – art. 1267.º, n.º 1, al. d) CC – pois Beatriz tem uma

posse não efetiva nos termos do direito de propriedade e Felisberto tem uma posse efetiva. Durante

este ano, Beatriz pode recorrer ao art. 1279.º CC (providência cautelar) que tem como requisitos:

Beatriz tem de ter posse, essa posse ter sido esbulhada de forma violenta (preenchem-se todos).

Page 12: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 12

A posse será restituída a Beatriz sem ouvir, em audiência, o Felisberto – é uma exceção ao

princípio do contraditório porque o esbulho foi violento e aquele nem merece ser ouvido. Caso

contrário, pode recorrer a uma ação de restituição da posse (art. 1278.º CC).

Se houvesse passado 1 ano, o tribunal decidiria qual a melhor posse. A melhor é a causal mas

Beatriz não tem porque fez um negócio inválido; segue-se, então, a titulada. A posse desta é mais

antiga pelo que, a mesma era dada a Beatriz porque tem a posse mais de 1 ano, logo, mais antiga.

Daniela também podia intentar uma ação possessória (já não de restituição porque ela não tem a

posse) porque tem uma posse interdictal – art. 1133.º CC.

Se ninguém intentasse a ação no prazo de 1 ano, o direito extinguia-se e Felisberto continuava a

sua posse, Beatriz perdia-a, bem como Daniela.

Page 13: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 13

Hipótese VII

Em Janeiro de 1990, António, proprietário e possuidor desde 1980 e com registo a seu

favor do prédio X, sito em Évora, celebrou com Bento, um negócio jurídico pelo qual lhe

alienou o referido prédio, pelo preço de cinquenta mil contos. O contrato foi celebrado

mediante documento escrito e assinado por ambas as partes, com as assinaturas reconhecidas

por Carlos, licenciado em Direito e amigo de ambos. Bento, que nunca registou a aquisição,

mudou-se de imediato para o prédio X, onde realizou diversas obras de melhoramento na

habitação.

Em Janeiro de 1995, Bento decidiu emigrar, razão pela qual vendeu o prédio X a Denise,

por documento escrito, mediante o pagamento do preço de setenta mil contos. Denise instalou-

se no prédio X, tendo remodelado a habitação com vista à abertura de um empreendimento de

turismo rural, mais tendo iniciado uma vasta plantação de oliveiras no terreno do mesmo

prédio.

Em Março de 2012, alertado por um amigo relativamente ao contrato celebrado com

Bento, António verificou que Denise ocupava o “seu” prédio, tendo exigido de imediato a

respetiva entrega, o que esta recusa até hoje.

Quid iuris?

1.º parágrafo

António é proprietário e possuidor (art. 1258.º CC): tem corpus (controlo material da coisa com

exclusão de terceiro; não basta mero contacto e o animus mínimo). A posse é pública (art. 1262.º

CC), efetiva, titulada (art. 1259.º CC), pacífica (art. 1261.º CC), de boa-fé (art. 1260.º CC), causal e

civil. De acordo com o art. 1268.º CC, quem tem posse é proprietário.

António celebra um contrato de compra e venda nulo com Bento por falta de forma – arts. 875.º

e 220.º CC, uma vez que o documento não é autenticado porque um licenciado em Direito não pode

autenticar; apenas um advogado o pode fazer. Por força do princípio da causalidade, o negócio

jurídico é nulo, logo, a propriedade não se transmite, mas a posse sim – art. 1263.º, al. b) CC – a

posse adquire-se por tradição material (vai viver de imediato para o prédio X). António perde, assim,

a posse por cedência – art. 1267.º, n.º 1, al. c) CC.

Bento é, assim, possuidor nos termos do direito de propriedade apesar de não possuir o mesmo;

a sua posse é não titulada (porque se trata de uma invalidade formal; se fosse substancial – ex.:

coação – já não implicava ser não titulada), formal (porque não é simultaneamente titular do direito

de fundo/proprietário), civil, efetiva, pública e presume-se de má-fé (art. 1260.º, n.º 2 CC) por ser

não titulada, no entanto, podia ser ilidível (neste caso, até em princípio seria, por força de uma

ignorância desculpável).

Page 14: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 14

Mas será que Bento pode ser proprietário (invocando a usucapião)? Através da usucapião são

necessários 20 anos (imóvel com má-fé – art. 1296.º CC; se ilidível, boa-fé, é apenas 15 anos); Bento

apenas tem a posse à 5 anos e como ela é de má-fé, são necessários 20 anos.

Por sua vez, pode Bento valer-se da acessão de posse, nos termos do art. 1256.º CC?

A acessão está relacionada com a invocação da posse do anterior possuidor, que acresce à posse

do atual possuidor, para este poder invocar a usucapião. É facultativa e pode ser invocada quando se

verifica uma aquisição derivada da posse, por título distinto de sucessão por morte. Ou seja, se Bento

(ilidindo a boa-fé) invocar a acessão, acresce o tempo que este tem a posse ao tempo que António

tinha a posse (15 anos no total, já sendo suficiente para invocar a usucapião).

NOTA:

· a) negócio tem ou não que ser válido;

· b) posse de menor âmbito;

· c) contra quem pode ser invocada a usucapião.

a) A este respeito, Manuel Rodrigues e Santos Justo defendem que o título deve ser válido tanto

substancial como formalmente. Por sua vez, Pires de Lima e Antunes Varela defendem que apenas

devem ser válidos em termos formais. Por último, Menezes Cordeiro e Menezes Leitão não exigem a

validade.

b) Tem a ver com a restrição que se faz quando estão em causa posses com classificações ou

fundamentadas em direitos diferentes. Ex.: Se X tinha posse e direito de propriedade, e Z tinha posse

fundada em direito de usufruto, ao usar a acessão, o Z não pode obter os benefícios do direito de

propriedade. Há limitação relativamente ao seu direito.

c) José A. Vieira defende que se pode invocar a posse de mais que um anterior proprietário,

mas não se pode invocar a usucapião contra este (estes). Ou seja, se Z teve posse por 5 anos, Y por

5, X por 5, e W, atual possuidor por 5, W pode invocar a acessão para a sua posse atingir os 20 anos.

No entanto, não pode invocar a usucapião contra Z, ou Y, ou X. Se o prazo da usucapião for de 10

anos – 1294.º, a) – então ele pode usar a tempo de X, e invocar a posse contra Z.

A posse é a mesma porque é derivada por traditio, logo, pode ficar com o tempo da outra, não é

automático, tem de ser invocada (regime da prescrição). Neste caso, tendo em consideração a

divergência doutrinária, mesmo que se adote a opinião de Menezes Cordeiro e José Alberto Vieira

(acham que como a lei é omissa quanto a esta condição e a acessão pode ser aplicada na mesma),

falharia sempre porque apesar dos requisitos estarem preenchidos, nunca pode beneficiar da acessão

contra a qual a usucapião funciona. Ou seja, Bento pode usar a acessão, mas não pode invocar a

usucapião contra António, visto que é o tempo deste que lhe permite atingir o prazo necessário.

Quanto às benfeitorias (art. 216.º CC): despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa (arts.

1273 e 1275.º CC); neste caso, é uma benfeitoria útil, pois não sendo indispensável, aumenta o valor

da mesma.

Page 15: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 15

Será que com essa obra poderia tornar-se proprietário através da acessão da propriedade, já que

não pode através da usucapião porque falha a acessão na posse?

Em primeiro lugar, a usucapião é melhor, no sentido em que tem a vantagem de não se pagar,

mas tem a desvantagem de ter de esperar pelo prazo. Na acessão da propriedade, tem de pagar para

ser proprietário, mas não tem de esperar pelo prazo.

Quanto à acessão da propriedade, o Prof. Pires de Lima e Antunes Varela, defendem que esta é

subsidiária para os casos em que a lei não remete para benfeitorias, mas no caso da posse remete

para o art. 1273.º CC, logo, não se pode aplicar; a acessão da propriedade implica um estranho (ex.:

detentor) e na posse há um vínculo jurídico, pelo que, a única maneira para adquirir a propriedade é

a usucapião – sem ela, só há direito a indemnização por via das benfeitorias.

Para José Alberto Vieira, fora dos casos em que a lei remete para as benfeitorias, é acessão

mesmo na posse quando não cabe no art. 1273.º – interpretação restritiva pois é muito difícil

incorporar sem se ser proprietário – critério do grau de Manuel Rodrigues:

· alteração só de benfeitorias se continuar a ser a mesma coisa, mas simplesmente melhor;

· alteração da acessão de propriedade – alteração substancial (inovação já é coisa diferente

[pode ser tanto no solo como numa construção que está no solo – art. 1340.º CC], o valor tem que

ser maior do que no início e se não quiser ser proprietário, aplica-se as benfeitorias ou inversão do

título da posse (por ex.: de mero detentor, passava a possuidor, mas não é o caso).

· (…) maior valor mas não diferente = benfeitoria.

Requisitos da acessão:

· reunião de duas ou mais coisas (união se se diferenciarem e mistura se não se diferenciarem);

· inseparabilidade normativa (provocaria estragos);

· conflito de deveres (art. 335.º CC);

· incorporação no solo com carácter de permanência.

É uma aquisição potestativa. Se houver má-fé já não pode haver acessão. Logo, neste caso, se

não for substancial: é benfeitoria; mesmo que seja substancial, é benfeitoria porque há má-fé (a não

ser que beneficie de ilidir a má-fé).

2.º parágrafo

Bento ainda não era o proprietário (a usucapião não pode e a acessão da propriedade talvez,

mas não), pelo que estamos perante uma venda de bens alheios (art. 892.º CC); além disso, também

seria nula por falta de forma (arts. 875.º e 289º CC) pois não basta documento escrito – Denise não

é, portanto, proprietária mas passa a ser possuidora por força do art. 1263.º, al. b) e Bento perde a

posse à luz do art. 1267.º, n.º 1, al. c) CC.

A posse de Denise é não titulada (por falta de forma), presume-se de má-fé mas que pode ser

ilidível (art. 1260.º, n.º 2 CC), pacífica (não foi violenta), civil, efetiva, pública e formal (pois não é

titular).

Page 16: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 16

Pode Denise aumentar a sua posse para trás para ficar proprietária?

Só é possível se for através da acessão (art. 1256.º CC) – facilita a usucapião para alguém que

tenha sucedido na posse de modo diferente da sucessão. Quanto aos requisitos para a acessão, se

seguirmos a opinião da regência e de Menezes Cordeiro, a falta de validade do contrato não é

problema; a posse é a mesma porque é derivada por traditio, logo, pode ficar com o tempo da outra

posse – o prazo não é automático, tem que ser invocado. Não pode aceder à posse de António porque

é a pessoa contra quem vai tentar beneficiar da usucapião mas pode beneficiar da posse de Bento,

que é de 5 anos, aumentando assim a sua posse para 23 anos.

Quanto ao prazo necessário para a usucapião (art. 1294.º CC), se Denise optar pela al. b)

precisa da acessão mas se, no entanto, conseguir ilidir a presunção do art. 1294.º, al. a) CC, não

precisa visto que tem a posse à 18 anos e o tempo exigido é de 15 anos.

Por fim, é necessário preencher o requisito da boa posse – para invocar a usucapião, a posse

deve ser civil, pacífica e pública (todos preenchidos); o Prof. Oliveira Ascensão é o único a defender

que a posse deve também ser efetiva mas é o único na doutrina a exigi-lo.

Uma vez que todos os requisitos estão preenchidos, pode haver usucapião.

Relativamente ao empreendimento de turismo rural e a plantação de oliveiras, não é

indispensável para a conservação do prédio X, mas aumenta o seu valor, logo é uma benfeitoria útil.

Neste caso, Denise seria ressarcida de acordo com as regras do enriquecimento sem causa, pois não é

possível o seu levantamento (art. 1273.º CC). No entanto, a partir do momento em que é uma

inovação, de acordo com o critério do grau de Manuel Rodrigues, e que preenche os requisitos da

acessão, se ilidir a má-fé, torna-se proprietária se pagar (o valor tem de ser superior ao do início, tem

de ser uma obra substancial e não tendo de esperar os anos da usucapião – art. 1340.º CC).

Quanto aos frutos da oliveira – art. 1270.º CC – são do possuidor de boa-fé, se ilidir a

presunção. Se não ilidira, o possuidor tem de restituí-los, respondendo pelo valor que um

proprietário diligente poderia ter obtido hipoteticamente – art. 1271.º CC. Os encargos são repartidos

pelo titular do direito e pelo possuidor, na medida do direito de cada um sobre os frutos (art. 1272.º

CC).

3.º parágrafo

António é proprietário e possuidor desde 1980: a posse é titulada, de boa-fé, pacífica, pública,

causal, civil e efetiva. Este, celebrou um contrato de compra e venda com Bento (arts. 874.º e 875.º

CC), tendo este sido anulado substancialmente. António continua, assim, proprietário (o princípio da

causalidade só transmite o contrato, quando válido).

Bento é possuidor, uma vez que o contrato inválido não obsta a que se transmita a posse – esta,

transmitiu-se com tradição simbólica (art. 1263.º, al. b) CC); António perde, assim, a posse (art.

1267.º al. c) CC). Admitindo que Bento tem corpus, a posse deste é titulada porque tem um mero

vício substancial, presume-se de boa-fé, pacífica, pública, civil, formal, efetiva – está de facto em

Page 17: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 17

controlo material e não meramente jurídico; se não tivesse ido viver para o prédio X é que não era

efetivo. Bento iniciou a posse em 1990.

A usucapião só é possível com acessão da posse. Como tal, Bento não pode aceder à posse

contra a pessoa contra quem vai beneficiar da usucapião. Assim, António é proprietário e Bento é

possuidor.

Em 2010, já passaram 20 anos, logo, como a posse é pública (posse boa) e pacífica, se invocar a

usucapião, como já tem o prazo suficiente – pode usucapir sem ter de aceder a nenhuma posse. Se

não invocar, ainda pode ser proprietário através da acessão da propriedade (requisitos, divergência

doutrinária de acessão da propriedade na posse).

Se não invocar nada disso, António é proprietário e Bento simplesmente pode ser possuidor e

ser indemnizado pelas benfeitorias necessárias e pelas úteis por enriquecimento sem causa. O

António está a agir com uma ação de reivindicação e Bento pode defender-se com as ações

possessórias.

5. Suponha que, afinal em Janeiro de 1990, António vendeu o prédio X a Bento e a

Beatriz, por dez mil contos e mediante outorga de escritura pública, tendo o pagamento sido

efetuado através de um cheque de Bento, no valor de nove mil contos, e a entrega em dinheiro

de mil contos por parte de Beatriz. Quid iuris?

Estamos perante o regime da compropriedade – art. 1403.º CC. Por quota entende-se a porção

ideal de cada um dos contitulares em relação ao direito. O Prof. Menezes Leitão acha que existe

apenas um direito mas em termos quantitativos, a porção pode variar.

Para saber qual a quota de Bento e de Beatriz, tem aplicação o art. 1403.º, n.º 2 CC que faz

funcionar uma presunção de 50/50 %.

Portanto, cada um tem a posse nos termos da compropriedade – art. 1406.º, n.º 2 CC – ou

composse, ou seja, cada um é possuidor nos termos da sua compropriedade e é mero detentor na

parte do direito do outro consorte – art. 1253.º, al. c) CC.

5.1 Bento e Beatriz iniciaram obras na habitação, que estava quase em ruínas e da qual

apenas se conseguiram aproveitar as paredes laterais e a fachada, em pedra, em que

despenderam 15 mil contos. Em 2013, o Supremo Tribunal de Justiça declarou definitivamente

nulo o contrato celebrado entre António, Bento e Beatriz, na sequência do que aquele exigiu a

entrega imediata do prédio X. Considerando que o prédio X vale, atualmente, cerca de €

150.000,00, indique, justificadamente, como podem Bento e Beatriz reagir à pretensão de

António.

O contrato celebrado não é válido, de modo que António é o proprietário e Bento e Beatriz

nunca o foram. Portanto, o prédio é de António porque o negócio jurídico é nulo. Bento e Beatriz

têm a posse por constituto possessório – art. 1263.º, al. c) CC – que exige como requisitos: negócio

Page 18: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 18

jurídico real (este requisito tem suscitado muita discussão; para José Alberto Vieira, o negócio tem

de ser válido pois o inválido não pode ter efeitos – e seguindo esta teoria, como podem Bento e

Beatriz.

Page 19: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 19

Hipótese VIII

António recebeu, por herança, um prédio sito na Avenida Almirante Reis, composto por

três pisos e 6 apartamentos.

1. António pretende constituir o prédio em propriedade horizontal.

A propriedade horizontal vem prevista no art. 1414.º e ss. do CC, constituindo um novo direito

real. Propriedade horizontal significa que não pode estender a sua propriedade nem para cima nem

para baixo porque há pessoas a viver no prédio por baixo e por cima de si.

Para constituir uma propriedade horizontal é necessário que

· se trate de um edifício (arts. 1414.º e 1438.º-A CC, que permite que sejam vários edifícios), e

neste caso, é um prédio;

· que tal edifício seja suscetível de suportar frações autónomas (art. 209.º CC) – tem 6

apartamentos, logo pode;

· e que tais frações sejam independentes entre si (arts. 1414.º e 1415.º CC).

Todos os requisitos estão preenchidos.

A propriedade horizontal é, neste caso, constituída por negócio jurídico unilateral, mortis causa

(testamento – ele recebe-o por herança3) – art. 1417.º CC – devendo ser celebrado por escritura

pública ou por documento particular autenticado – art. 22.º DL n.º 116/20084. Está também sujeito a

registo – art. 2.º CRPr – mas só para consolidar o direito.

2. De acordo com o título constitutivo, tanto o telhado como o sótão que o antecede

pertence à fração autónoma “AA”, situada no último piso.

O título constitutivo é um ato modelador do estatuto da propriedade horizontal e as suas

determinações têm carácter real. De acordo com o art. 1418.º, n.º 1 CC, o seu conteúdo é obrigatório.

As partes comuns do prédio – art. 1421.º, n.º 1 CC – quando obrigatórias constam do n.º 1,

onde se insere o telhado – art. 1421.º, n.º 1, al. b) CC – porque serve de cobertura a toda a

construção, e como tal, não ser afastada tal normal. O telhado é fundamental para o uso comum do

prédio, pelo que não é possível atribuir a propriedade exclusiva a qualquer condómino – fração

autónoma.

Como tal, o título constitutivo é nulo, podendo ser afeto ao uso exclusivo da fração “AA”,

mediante conversão pelo art. 1421.º, n.º 3 CC, através do princípio da conservação do negócio

jurídico.

3 Quando recebemos algo por herança, não há tradição (o homem está morto!) – o herdeiro sucede na posição do “de cuius”. O

herdeiro é que entra na esfera jurídica do “de cuius”. 4 O DL n.º 116/2008 não exige a forma para a propriedade horizontal mas temos o DL n.º 263.º-A/2007, de 23 de Julho em que a

forma também é a mesma que é exigida para o primeiro decreto referido.

Page 20: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 20

No que diz respeito ao sótão (ou águas furtadas), o Prof. Menezes Leitão defende que cabe na

al. b) do art. 1421.º, n.º 1 CC por estar ligado/junto ao telhado e, portanto, seria imperativamente

comum.

3. António vendeu a Bento a fração autónoma correspondente ao lugar de estacionamento

“AI”, situado no piso -1 do edifício.

O lugar de estacionamento presume-se uma parte comum – art. 1421.º, n.º 2, d) CC – no

entanto, esta presunção é ilidível, podendo a mesma constar do título constitutivo ou resultar da sua

natureza. Não posso vender partes comuns; se for fração autónoma, já se pode vender.

4. A fração autónoma “BC” tem acesso único a um pátio do prédio, considerando os

restantes condóminos que têm direito a utilizar este pátio sempre que lhes aprouver.

Trata-se de uma parte comum – art. 1421.º, n.º 2, al. a) CC – no entanto, é uma presunção

ilidível pela sua natureza (ser de acesso único). É óbvio que se o único acesso ao pátio for através da

habitação de um dos condóminos, não se lhe pode atribuir natureza comum.

5. Apesar de a fração autónoma “DD”, situada no rés-do-chão, dispor de licença de

utilização para comércio, emitida pela Câmara Municipal, o título constitutivo determina que

a mesma se encontra afeta a habitação.

Há um desencontro entre o título constitutivo e o que foi aprovado pela entidade pública

competente, o que acarreta a nulidade do título constitutivo – art. 1418.º, n.º 3 CC. Contudo, se se

quiser alterar o fim que se dava à coisa, só é possível fazendo uma alteração do mesmo por

unanimidade – art. 1419.º, n.º 1 CC.

6. O título constitutivo não determina as possíveis finalidades a que as diversas frações

autónomas podem ser destinadas.

As finalidades a que as frações autónomas se destinam não têm que constar obrigatoriamente

do título constitutivo – tal conteúdo é supletivo. O próprio art. 1418.º, n.º 2 CC diz “pode ainda

conter” – é uma faculdade.

7. O título constitutivo determina que a fração autónoma “FS” é destinada a habitação,

tendo o condómino instalado um escritório de advocacia na mesma.

O fim de habitação consta do título constitutivo, pelo que é proibido ao condómino dar-lhe um

fim diferente do que consta do título – art. 1422.º, n.º 2, al. c) CC. Pode o condómino alterar o seu

fim necessitando, para isso, da autorização da assembleia de condóminos, aprovada por maioria de

2/3 – art. 1422.º, n.º 4 CC.

Page 21: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 21

8. Em Junho de 2012, Nélio, proprietário da fração autónoma “SD”, decidiu instalar um

aparelho de ar condicionado (e respetiva tubagem) na parte exterior da sua fração, na parede

do prédio, apesar das reclamações da condómina Luísa, que contesta o ruído do aparelho, que

se ouve mesmo com a janela e a porta fechadas. Além disso, por causa do ar condicionado de

Nélio, Luísa deixou de poder estender os lençóis, uma vez que o aparelho está somente a 25 cm

do seu estendal.

Apesar do art. 1421.º, n.º 1, al. a) CC apenas se referir às paredes mestras, a doutrina e

jurisprudência têm entendido que constituem obrigatoriamente partes comuns do edifício todas as

paredes exteriores ao mesmo.

9. Em assembleia de condóminos regularmente constituída, foi tomada a seguinte

deliberação: É proibida a utilização de aspiradores entre as 22h e as 10h.

Pelo art. 1430.º CC, a assembleia dos condóminos só pode incidir sobre algo para a parte

comum e não sobre frações autónomas – quando o faça, tal deliberação é nula. No entanto, já resulta

do art. 1346.º CC, quanto aos proprietários, uma norma de proibição de ruído.

Quando tal norma seja violada, podem os outros condóminos chamar a autoridade, instaurar

uma ação de condenação para não fazerem barulho ou suscitar o regime da responsabilidade civil,

com direito a uma indemnização.

a. A assembleia de condóminos foi convocada mediante carta registada com aviso

de receção para as moradas de todos os condóminos. Contudo, César, administrador,

tinha sido informado por Dário, proprietário da fração autónoma “RT”, que a

correspondência deveria ser remetida para Coimbra, onde este reside, uma vez que a

casa da Avenida Almirante Reis se encontra arrendada.

Requisitos da convocação (art. 1432.º CC): quanto à forma deve ser carta registada com

aviso de receção – assinado (n.º 1); quanto ao prazo de antecedência, devem ser 10 dias; e a

aprovação deve conter o dia, hora, local, ordem dos trabalhos da reunião e deliberação por

unanimidade. Quanto ao Dário, nos termos do n.º 9 do art. 1432.º CC, deve comunicar o seu

domicílio ao administrador, César, como o fez.

Se faltar algum destes requisitos, a convocação da assembleia é nula.

b. A assembleia reuniu com apenas três condóminos, cujas frações correspondem

a metade do prédio.

Quem não participou na deliberação é que pode pedir a anulação – art. 1433.º, n.º 1 CC. A

nulidade nunca se convalida; já a anulabilidade pode convalidar-se se os restantes condóminos não

reagirem – art. 1432.º, nºs 7 e 8 CC.

Page 22: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 22

Hipótese IX

Em Janeiro de 2011, António, proprietário do prédio X, composto por terreno com

sobreiros e uma casa de habitação, constituiu a favor de Bento e de Beatriz um direito de

usufruto sobre o referido prédio. Nos termos do documento escrito e autenticado que as partes

assinaram, o usufruto foi constituído para sempre, sendo convencionado que Bento e Beatriz

podiam somente beneficiar dos frutos naturais.

No mês seguinte, Bento e Beatriz cortaram metade dos sobreiros e plantaram pinheiros.

Em Abril desse ano, Bento e Beatriz iniciaram renovaram a pintura da habitação, apesar

de esta não estar ainda em mau estado. No entanto, em resultado disso, a casa ficou com muito

melhor aspeto, o que valorizou o prédio.

Nessa mesma data, António alienou a Denise o seu direito, em troca de € 100.000,00,

reclamando Bento e Beatriz que tinham direito de preferência na alienação.

Em Maio, Bento e Beatriz reclamam de Denise as despesas referentes à limpeza do

terreno com vista a prevenir incêndios.

Em Outubro, Denise comunicou que pretendia instalar no telhado da habitação do prédio

X um conjunto de painéis solares, com vista a vender à EDP eletricidade, tendo enfrentado

séria oposição de Bento e de Beatriz.

Logo de seguida, Denise pretende plantar mais sobreiros, na parte norte do terreno, que

estava totalmente desocupada e entregue ao mato.

Quid iuris?

1.º parágrafo

É constituído um usufruto (art. 1439.º CC) de coisa corpórea e imóvel (prédio), pelo que,

António é proprietário e Bento e Beatriz estão em situação de co-usufruto. Isto porque, existe uma

situação de comunhão, a favor de duas pessoas, em simultâneo (arts. 1441.º e 1403.º CC).

A circunstância de as partes determinarem a constituição do usufruto “para sempre” é proibida

pelo art. 1306.º CC – o usufruto tem de ser temporário; não existe usufruto perpétuo. Deve-se,

portanto, proceder a uma redução pelo art. 292.º CC, caso contrário o contrato será nulo por ir contra

um conteúdo injuntivo.

Relativamente ao benefício exclusivo dos frutos naturais caberem aos usufrutuários e, nesse

seguimento, os frutos eventuais ao proprietário também implicariam a nulidade da cláusula por ir

contra conteúdo injuntivo. Para o Prof. José Alberto Vieira só podia ser assim se fosse de obra

posterior, enquanto que para Oliveira Ascensão pode haver alterações parciais.

Ainda assim, a forma exigida para o contrato de usufruto é determinada pelo art. 22.º do DL n.º

116/2008 – escritura pública ou documento particular autenticado – pelo que, tendo sito apenas por

documento escrito, acarreta a nulidade do contrato por falta de forma – art. 220.º CC.

Page 23: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 23

2.º parágrafo

O usufrutuário pode arrendar pois o arrendar é um poder de fruição e não de disposição, logo

pode sempre.

O arrendatário tem direito de preferência (art. 1091.º CC) em relação à pessoa que lhe deu o

arrendamento e não em relação à venda do proprietário.

3.º parágrafo

A pintura trata-se de uma benfeitoria.

5.º, 6.º e 7.º parágrafos

A limpeza para evitar incêndios faz parte da administração do usufrutuário – art. 1445.º CC, de

acordo com o critério do bom pai de família – pelo que não podem exigir despesas nenhumas ao

proprietário.

Quanto à instalação de painéis solares por parte do proprietário, o proprietário tem direito a

fazer melhorias desde que não vá contra os usufrutuários e, neste caso, Bento e Beatriz podem não

querer (art. 1471.º CC).

Responda agora às seguintes questões autónomas:

1. Afinal, António concedeu a Bento a nua propriedade do prédio X, reservando para si o

usufruto durante vinte anos, vindo porém a falecer após dez anos, deixando como único

herdeiro o seu filho Xavier.

Aqui, Bento é proprietário e António usufrutuário durante 20 anos; no entanto, a morte

desde e a existência de seu filho, não acarreta para este a herança do usufruto porque quem fica com

o usufruto que se extingue é Bento. Trata-se de uma pre dedutionem – arts. 1443.º e 1476.º CC.

2. Na sequência da questão 1., suponha que o usufruto foi constituído por toda a vida de

António. Após cinco anos, este transmitiu o direito a Zezinho, que faleceu dois meses depois,

deixando como herdeiros os seus três filhos.

Nesta situação já não é o proprietário que fica com a coisa porque ainda não passou o prazo,

logo os herdeiros de Zezinho herdam até António morrer, de acordo com a posição de José Alberto

Vieira. Para Carvalho Fernandes, os herdeiros não herdam, pois com a morte de Zezinho também se

extingue o usufruto – art. 1444.º CC – em caso de transmissão.

No caso anterior, ainda não tinha passado o prazo mas António não tinha passado o usufruto a

ninguém, logo o prazo não interessa e o usufruto extinguiu-se.

Page 24: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 24

Hipótese X

Berto constitui, sobre a sua quinta destinada à produção de castanhas, um direito de

usufruto a favor de Canuto, por 35 anos.

1. Canuto celebra com Diana, vizinha com uma escola de equitação, um contrato em que

lhe permitia andar a cavalo pela quinta e alimentar os seus cavalos com a sua erva até à sua

morte.

Temos aqui uma servidão predial constituída pelo usufrutuário. Como sabem, são direitos reais

de conteúdo aberto – podem incluir poderes de gozo destinados ao aproveitamento de quaisquer

utilidades de uma coisa, desde que haja uma relação entre dois prédios, e um deles beneficie de uma

transferência de utilidades.

O usufrutuário PODE constituir servidões prediais sobre o prédio usufruído. Porém, essas não

podem exceder o tempo de duração do usufruto. É aqui o caso. O contrato é nulo quanto a qualquer

duração da servidão predial após os 35 anos. Art. 1460.º CC.

Porque é que isso é assim? A ideia é a mesma subjacente à própria existência de limites de

“forma e substância” e “destino económico da coisa” (vide adiante) → a proteção do proprietário.

Notem que nos termos do art. 1483.º CC, após a extinção do direito de usufruto (vejam MESMO o

art. 1476.º ss. com atenção) o usufrutuário deve devolver a coisa ao proprietário. Imaginem o que era

o proprietário voltar ao gozo exclusivo da coisa que lhe pertence e vê-la onerada com vínculos que

lhe seriam oponíveis por terem eficácia real (por exemplo, servidões prediais, direitos reais de

habitação… etc.) ou por resultarem de direitos pessoais de gozo (por exemplo, o usufrutuário que

arrendou o imóvel por um período que excederá a duração do usufruto).

É certo que o artigo 1444.º, n.º 1 permite a oneração da coisa objeto do usufruto e a própria

venda do direito (ao contrário do objeto do direito real de habitação ou do direito real de uso →

artigo 1488.º). Mas não pode exceder a duração.

2. 34 anos depois, Canuto vende a Diana as castanhas da produção da quinta que ainda

não tinham sido colhidas, imediatamente antes do usufruto se extinguir. A quem pertencem as

castanhas?

Como sabem, quem tem poder de fruição faz seus os frutos naturais percebidos (arts. 212.º-

213.º CC).

O contrato é válido – trata-se de uma compra e venda de coisa futura.

Neste caso, “a alienação subsiste” (art. 1448.º CC); mas o preço que Canuto tiver recebido

deverá ser entregue ao proprietário Berto, dado que o usufruto caducou antes da colheita dos frutos

pendentes.

Recordem-se que nos termos dos arts. 1446.º e 1439.º, o poder de fruição do usufrutuário (o

poder de fruição é um dos poderes de gozo, isto é, de aproveitamento das utilidades da coisa) é

Page 25: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 25

pleno. Nisso difere do poder de fruição do morador usuário ou do usuário, que é restrito ao limite

das suas necessidades, fixadas de acordo com a sua condição social (arts. 1484.º, n.º 1 e 1486.º CC)

3. Berto decide arrasar por completo o souto, e vender a madeira das castanheiras. Quid

iuris? (baseado no Ac. STJ 08-07-2003 (Afonso Correia))

Temos aqui um problema atinente aos limites do usufruto. É uma questão difícil a de

articularmos o art. 1439.º e art. 1446.º CC, provavelmente o problema mais difícil do regime dos

direitos reais menores. Discute-se qual dos dois limites (“não alterar a forma ou substância” e

“respeito pelo destino económico da coisa”) é imperativo. Há quem diga que apenas a parte final do

art. 1439.º é injuntiva e o art. 1446.º é supletivo e, portanto, pode ser afastado por negócio jurídico

(Oliveira Ascensão; Menezes Leitão); há quem diga que apenas a parte final do art. 1446.º é

imperativa (Menezes Cordeiro) e que o art. 1439.º é supletivo; e há quem diga que os dois são

injuntivos (José Alberto Vieira). O que não se pode dizer é que são os dois supletivos, sob pena de o

tipo legal do direito de usufruto ser supérfluo perante o direito de propriedade, do qual apenas se

distingue, no essencial, por ter limitações, à partida, do gozo.

Para Menezes Cordeiro, a parte final do art. 1446.º é imperativa; o art. 1439.º é supletivo na

parte em que se refere à forma e substância.

Esta posição é seguida pelo TRpt 07-01-2003 (Emídio Costa): o Tribunal considerou

admissível que, pelo consenso do proprietário de raiz e do usufrutuário, fosse afastado o limite da

conservação da forma e substância da coisa.

Argumentos:

1. Porque o art. 1439.º consagra a definição legal que não vincula intérprete, que não está

obrigado a aceitar a Doutrina dos legisladores materiais.

➔ Crítica: temos de ter algumas reservas quanto a este argumento, pois é difícil de

compatibilizar com o princípio da tipicidade em Direitos Reais. As definições legais têm de

contar para alguma coisa num sistema de numerus clausus. E não é apenas uma noção

doutrinária – é aquela que o legislador escolheu. E no Anteprojeto de Pires de Lima, era

claramente assumido que tinha de ser feita referência à “forma e substância” no usufruto como

limite, sob pena de esse direito ficar “desfigurado” (estou a citar).

2. Argumento comparatístico: a fórmula tradicional “salva rerum substantia”, que era usada no

Direito Romano, foi abandonada em Itália e na Alemanha, e substituída por “destinação económica

da coisa”. Em Itália, o Código Albertino (séc. XIX) ainda falava de “forma e substância”. Mas isso

gerava dificuldades enormes, grande insegurança jurídica. Porque discutir o que é a “forma” e a

“substância” pode chegar a pontos metafísicos (quando é que sei que um químico se transformou

noutro?). A jurisprudência italiana no séc. XIX adotou a fórmula “destino económico da coisa”

precisamente para interpretar o que seria a forma e a substância, como critério mais prático. E assim,

Page 26: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 26

o “destino económico da coisa” terá sido acolhido, por importação dogmática da Alemanha e de

Itália, como o limite do usufruto relevante. O art. 1439.º CC seria, então, um resquício doutrinal

romano, uma derivação de “salva rerum substantia” (sem prejuízo da substância da coisa).

➔ Não concordo com o Prof. Menezes Cordeiro. Quanto à importação do critério do

BGB, porque logo no parágrafo seguinte ao que o Prof. Menezes Cordeiro cita (e que fala sobre

“respeito da destinação económica anterior”), o BGB diz que o usufrutuário não pode

“transformar” ou “modificar na sua essência” a coisa… isso é reconhecido também como um

elemento legal típico do direito de usufruto, pelo que é inderrogável.

➔ Por outro lado, nada nos diz que a importação de uma noção legal estrangeira

também signifique a importação da sua injuntividade. Isto é, só por na Alemanha ou em Itália o

“destino económico da coisa” ser um elemento a respeitar no usufruto, e inderrogável, isso não

significa que tal seja assim em Portugal.

Para Oliveira Ascensão e Menezes Leitão, o art. 1439.º é injuntivo, e o art. 1446.º não.

1. Argumento sistemático: o art. 1445.º dá a entender que o título constitutivo do usufruto pode

modificar o requisito do respeito pelo destino económico.

2. Finalidade dos limites do poder de gozo do usufrutuário: proteger o proprietário. Se eu usar

um apartamento usufruído só para estudar lá e puser lá todos os meus livros (o que contraria o

destino económico da coisa), quando o proprietário o usava para habitação, não estou a prejudicar o

seu direito se lhe puder restituir o apartamento como estava antes, como manda o art. 1483.º.

Trata-se de distinguir entre as qualidades de uma coisa (o que permite dizer que uma cadeira é

uma cadeira, uma pousada é uma pousada, um estábulo é um estábulo), quanto à “forma e

substância” e quanto aos termos em que o proprietário usava a coisa (destino económico da coisa).

É consentâneo que se deve aferir o destino económico da coisa em termos subjetivos. O que

interessa é o que o proprietário fazia com a coisa; não aquilo que em abstrato se pode fazer com

ela.

Para José Alberto Vieira, o direito português acolheu os dois limites ao direito tipificado do

usufrutuário. O primeiro é de origem romana (forma e substância), o segundo é italiano e alemão

(art. 1446.º in fine CC). Logo, o art. 1439.º, parte final, e o art. 1446.º, parte final, são imperativos.

JAV: “forma” no art. 1439.º, deve ser interpretado como “destino económico da coisa”. À

fórmula latina “salva rerum substantia” não pertencia a “forma”, pelo que se trata de um acrescento

italiano. Trata-se do destino económico.

➔ Critica: só pelo facto de o destino económico da coisa no Direito italiano ser um

limite injuntivo ao gozo do usufrutuário, isso não significa que nós, para além da própria ideia,

importemos também a injuntividade.

Page 27: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 27

➔ Outra dificuldade desta teoria: art. 1450.º, n.º 1 tornar-se-ia redundante, dado que o

respeito pela forma e substância e pelo destino económico da coisa aparecem lado a lado na

limitação do poder de realizar benfeitorias na coisa usufruída. Se, como entende o Prof. José

Alberto Vieira, “forma” e “destino económico da coisa” se identificam, teríamos de ler o art.

1450.º, n.º 1 CC como “o usufrutuário tem a faculdade de fazer na coisa usufruída as

benfeitorias úteis e voluptuárias que bem lhe parecer, contanto que não altere o seu destino

económico ou substância, nem o seu destino económico”.

O QUE ACONTECE SE O USUFRUTUÁRIO VIOLAR ESSES LIMITES?

➔ RC aquiliana (art. 483.º CC)

➔ Inversão do título da posse!! (art. 1265.º CC) o que era possuidor em termos de usufruto e

detentor em termos de propriedade passa a possuir em termos de propriedade, por atuar fora dos

limites do seu direito. Portanto o nu-proprietário deverá acautelar-se, pois o usufrutuário poderá a

partir daqui usucapir a coisa como proprietário; poderá defender-se por meio do art. 1482.º,

conjugado com ações possessórias e de reivindicação.

“o usufrutuário, no exercício do seu direito, não pode alterar a forma e substância da coisa,

sob pena de estar a exercer sobre ela um poder de que apenas goza o proprietário: o de disposição”

(RPt 05-12-2005 (Abílio Costa))

Page 28: CASOS PRÁTICOS DE DIREITOS REAIS RESOLVIDOS...Casos práticos resolvidos – Direitos Reais 2 Hipótese II Carlota celebrou com Daniela um contrato de hipoteca sobre o prédio X,

Casos práticos resolvidos – Direitos Reais

www.direitoasaber.com 28

Hipótese XI

Heitor e Inês, parceiros, vivem há cerca de 7 anos juntos, partilhando igualmente mesa e

leito, no apartamento que pertence ao primeiro, em Lisboa. Certo dia, Heitor morre sufocado

com um rebuçado. Os filhos deste, que concorrem à herança, fartos da parceira do pai,

querem vê-la finalmente fora daquela casa. Inês, por sua vez, quer arrendar o apartamento e

voltar a mudar-se para a sua casa em Cascais.

Leiam o artigo 5.º da Lei n.º 6/2001 e 7/2001, que consagram atribuições de direitos reais de

habitação.

Em relação ao arrendamento, seria nulo, por violar o art. 1488.º CC.

1. E se Inês quiser transformar o apartamento num local de culto? Pode?

Art. 1446.º CC ex vi art. 1490.º CC. O Prof. José Alberto Vieira explica que os limites do

usufruto do art. 1439.º, parte final e art. 1446.º, parte final, são também limites implícitos dos

direitos reais de uso e de habitação.

2. Inês, logo depois da morte de Heitor, muda-se para a casa de Cascais, e desinteressa-se

por inteiro das infiltrações da antiga casa do casal. Em breve, o soalho estala e o apartamento

tem enormes manchas de bolor. O que podem os filhos de Heitor fazer?

Arts. 1482.º e 1472.º, n.º 1, ex vi art. 1490.º CC: reparações ordinárias cabem ao usufrutuário –

a Inês só podia escapar a essas despesas renunciando ao direito. Isto é uma obrigação propter rem.