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102 Capítulo IV Os Martins da Crus no contexto emigratório

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Capítulo IV

Os Martins da Crus no contexto emigratório

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Segundo filho do casal de lavradores, Manoel Martins e Andreza

Lourenço dos Reis, no dia 13 de fevereiro de 1732, no Lugar do Cruzeiro da Freguesia,

nascia o minhoto Valentim Martins da Crus. Emigrou, como tantos outros de sua região,

para o então eldorado Brasil. Era seu pai um lavrador e assinava sofregamente o nome

na certidão do filho. O da Crus, no nome de Valentim, sugere ser a indicação, por

costume local de referência, o lugar de morada dos pais ou a origem destes, como o de

seu nascimento e batismo, como veremos nas certidões.

No batizado do primogênito, Francisco, como se pode ver a seguir,

os pais são citados como moradores do Lugar da Crus. No caso de Valentim, segundo

filho do casal, aparecem como moradores do Lugar do Cruzeiro, de acordo com o

registro reproduzido. O mesmo se vê no registro de Maria, nascida dois anos após

Valentim, quando o casal se mantém como morador do Lugar do Cruzeiro. No batismo

do último filho, João, nascido seis anos depois, o casal se mudara para o Lugar do Vizo,

ou apontam para o mesmo lugar com as duas diferentes referências? Cruzando

informações com o testamento de João Martins da Crus, vimos que a casa onde

moravam e onde viveu João era conhecida como “da Crus” no Lugar do Viso, o que

pode significar estar a casa próxima a uma cruz, ou com uma Crus à porta ou mesmo

próxima ao Cruzeiro, no Lugar do Viso.

Pelas ruas ao entorno da Igreja Matriz, é possível ver várias

cruzinhas em pedra, por onde passava a procissão, e que aparecem, não raras vezes, no

portão de uma casa ou no muro ao lado. Podemos, por enquanto, supor que era esta a

indicação da casa dos Martins da Crus, ter à porta uma dessas cruzes. Por questão de

trabalho, salubridade ou ainda, por melhoria das condições da família, teriam adquirido

uma casa maior e melhor. Falamos em suposições do que pode de fato ter ocorrido. O

que importa é perceber a referência local como sobrenome, visto que os filhos ficaram

com o sobrenome de os Martins da Crus:

Francisco, filho de Manuel Martins e de sua mulher Andreza

Lourenço do Lugar da Crus, desta freguesia de S.M.de Alvarães,

nasceo aos trinta dias do mês de Março do ano de mil setecentos e

vinte seis. (1726), Foi batizado por mim, padre Francisco Machado

Pinto, coadjutor desta Igreja e Freguesia aos três de Abril do dito ano.

Foram padrinhos Paulo Martins do Lugar da Brigiela , solteiro, filho

de Manoel Afonso, já defunto e de sua mulher Maria Conceição do

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Lugar do Souto da Igreja desta freguesia. Assina comigo e rubrica

como testemunha Manuel Manco, do Lugar da Barreira, Manuel

Afonso do Lugar da crus todos desta freguesia.

Cruzinhas espalhadas pela passagem da procissão.

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Arquivo Municipal de Viana do Castelo - Assentos das Freguesias de Armonde e São Miguel de Alvarães

– Microfilmes ROLOS: 245 e 246. Registro de nascimento de Valentim

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Maria, filha legítima de Manuel Martins e de sua Mulher Andreza

Lourença, lavradores e moradores no Lugar do Cruzeiro desta

freguesia de S.M. de Alvarães, nasceo no dia três de Maio, digo, de

Junho de setecentos e trinta e quatro (1734) e foi batizada inocente,

por mim padre António Barreto Barboza, coadjutor desta Igreja aos

seis dias do dito mês e ano em qual pus os santos óleos. Foram

padrinhos, Gaspar Francisco do Lugar da (…) e Thereza, filha

legítima de António Fernandes, já defunto e de sua mulher Maria

Martins do Lugar de Xistro. Todos desta Freguesia. Assinou o

padrinho e testemunhas. Padre Antonio Francisco do Lugar do Couto

e Manuel Manso, da quinta do lugar (…) todos desta Freguesia. Seis

anos depois, nasceu outro menino:

João, filho legítimo de Manuel Martins e de sua mulher Andreza

Lourença, moradores do Lugar do Vizo,, desta freguesia de S.M.de

Alvarães, nasceo no primeiro dia do mês de Outubro do corrente ano

de mil setecentos e quarenta (1740) e foi batizado pelo o Reverendo

Francisco Machado Pinto, comissário do Santo Ofício, aos cinco dias

do dito mês e ano. Ao qual também pos os santos óleos o dito

reverendo que também é reitor desta Igreja. Foram padrinhos João

Afonso da Crus, solteiro filho legítimo de Domingos Afonso e sua

mulher Marta Lourença, já defuntos do dito lugar do Vizo. E

Francisca Barboza de Caldas, mulher de Manuel Fernandes Ramos do

Lugar do cruzeiro, todos desta freguesia. Foram testemunhas que de

presente estavam António Afonso de Oliveira do Lugar da Longueira ,

Manuel Manso Ca… do lugar do Viso, que com o padrinho aqui

assinaram e comigo Padre António Barreto Barbosa coadjutor desta

Igreja que fiz e assinei este assento, dia mês e ano supra.1

Os nascimentos na casa dos Martins da Crus revelam um espaço de

tempo entre dois a seis anos de diferença entre o nascimento de um filho e outro, fato

que comprova, para a freguesia de Alvarães, uma característica observada para outras

freguesias estudadas, em Norberta Amorim, para os comportamentos demográficos do

1 Arquivo Distrital de Braga (ADB) e Arquivo Municipal de Viana do Castelo (AMVC). Assentos das

Freguesias de Armonde e São Miguel de Alvarães – Microfilmes ROLOS: 245 e 246.

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Minho, nos séculos XVI, XVII e XVIII, tendo alta a idade média para os casamentos

para as mulheres e com uma fecundidade baixa, como visto.

O filho João, muito provavelmente fora o escolhido para suceder os

pais na administração e posse da lavoura. Sendo 6 anos mais velho que Valentim e

tendo este e Francisco vindo para o Brasil, a hipótese se faz valer pelas características

da sucessão minhota. No entanto, temos ainda Maria, que pode ter sido escolhida por

ser mulher e se casar “em casa”, ficando como sucessora na intenção de cuidar dos pais,

quando estes já não pudessem mais lidar com os trabalhos.

Francisco, mais velho, pode ter vindo antes de Valentim ou vieram

juntos. Não temos documentos que nos indique para onde ele teria ido e se estabelecido

no Brasil, pois não foi para Mato Grosso. Faleceu “nos estados do Brasil”, conforme

notícias que chegaram à freguesia no ano de 1800, com idade de 74 anos, informando

ainda a notificação de sua morte que havia deixado seus legados para João, o irmão

mais novo que ficou, se casou e faleceu, já viúvo de Angela Lourença, na mesma

pequena freguesia de nascimento, São Miguel de Alvarães, em 1820, aos 80 anos.

Percebemos que todos os homens tiveram vida longa. João, que ficou no

Minho, não nos revela surpresa nesse aspecto. Sem acidentes ou doenças fatais, a vida

para João passara ao entorno das suas pequenas lavouras, porém produtivas o suficiente

para deixá-lo em boas condições financeiras para o comum da população rural.

Conforme podemos observar em seu testamento feito pouco tempo antes da morte,

estando em perfeita saúde e juízo2, não deixou “herdeiros necessários ou forçados”,

como declara, nomeando como herdeiros e seus testamenteiros, o sobrinho, padre Luis

Martins, ao afilhado, padre João José Gomes, parente da freguesia de Fragoso, e o

compadre Manoel Pequeno do Lugar das Neves, da Vila do Punhe. A eles ficaram seus

bens, exceto os destinados à sua sobrinha, à Igreja, à criada e para as missas.

Mas, as terras em que era foreiro, isto é, de outro proprietário, onde

produzia pagando tributos, no caso, para o Mosteiro de São Romão, às margens do rio

Neiva, e nas em que era prazeiro, i.é., explorador por um prazo, uma antiga modalidade

de exploração de terras dadas em concessão por um determinado período, que poderia

se estender indefinidamente, e ainda a que havia comprado. Foram as mesmas assim

divididas: a da Leira do Paçô, mais duas que havia comprado no campo da Divisa do

Viso e outra do Pradinho, ficaram para a sobrinha Maria Lourença. O Prazo da Divisa

2 Livro de registro de óbitos 1736-1830 APVC – disponível em www.familyseach.org.br.

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do Painça e do campo da Longueira, foreiros ao Mosteiro São Romão do Neiva, para os

testamenteiros, depois de respeitadas as suas disposições testamentais. Em alguns

testamentos de Alvarães, vimos que, deixar leiras de horta era o que de mais valioso

poderia receber os herdeiros.

A terra e a oportunidade de explorá-la para si tinham, para estes

pequenos agricultores, uma importância vital, era um privilégio, uma condição social

favorável e segura. Um bem que João repassou aos herdeiros, sabendo ser uma

conquista importante para a sobrevivência e desenvolvimento destes que, dando

continuidade à produção agrícola que o havia colocado nas boas condições, poderia lhes

garantir um futuro, considerando o contexto minhoto do período. Era garantia de uma

condição melhor do que a de jornaleiro, que se via obrigado a trabalhar em terras

alheias, muitas vezes pelo prato de comida. Deixar herança em foros e prazos, dinheiro

para as missas a serem rezadas por sua alma, de seus pais, sogros, tios e para as almas

do purgatório, era sinal de conforto financeiro oriundo da produção agrícola. Sinal de

uma situação privilegiada na zona rural minhota densamente ocupada, ainda que com

oscilações demográficas, devido ao grande fluxo de emigrantes durante o século XVIII

e XIX, a terra era símbolo de poder e independência no sustento da família. Inúmeros

estudos evidenciam a sujeição minhota ao fluxo migratório que acabava por definir sua

dinâmica econômica e social em função das ausências masculinas:

O Minho foi considerado um “viveiro de homens”, com muitos deles a

integrarem as sucessivas vagas migratórias, muitas das quais

acabaram por seguir o curso da expansão portuguesa [no caso do

Brasil do século XVIII intensificam-se as vagas, especialmente com a

expansão para as fronteiras a oeste] e contribuíram para “aliviar” uma

certa pressão demográfica na região, em função dos recursos

disponíveis.3

Uma criada que o servia, Joanna, também receberia sua atenção, caso

ainda estivesse servindo-o na hora de sua morte. Além de dinheiro para a criada, João se

declarava irmão de todas as confrarias da freguesia, mas informou seu desejo de ser

3 Os diferentes problemas acarretados por este movimento, notadamente o alto grau de ilegitimidade e de

crianças expostas estão na base do trabalho de Teodoro Afonso da Fonte: No limiar da honra e da

pobreza: A infância desvalida e abandonada no Alto Minho (1698-1924). Tese de doutorado. Univ. do

Minho, 2004. A citação se encontra na p. 69.

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amortalhado com o hábito da Irmandade de São Francisco. Todas, porém, foram

lembradas de suas obrigações para com ele na hora de sua morte, tendo que cumprir o

que mandava o costume.

Os pobres da freguesia também foram agraciados com 9:600$00 réis,

o que reforça ter sido pessoa de posse na Vila. Se essa condição foi sendo adquirida ao

longo de sua vida, ou se seus pais já a possuía, ainda não temos condições de desvendar.

O que nos parece é que tanto Francisco, como Valentim, com seus negócios no Brasil,

puderam ajudar a família até um dado momento, o que permitiu que seus pais

deixassem bens a João. Ele e Maria teriam sido os que ficaram e ajudaram os pais.

Maria se casou e João continuou na lida com a terra, recebendo herança dos pais,

fortalecendo seu crescimento, como vimos no seu testamento.

O fato de João ter sido o único homem a ficar com os pais e ter recebido

de Francisco o direito aos legados que lhe cabia, certamente contribuiu para ser um

homem relativamente bem sucedido, de uma condição confortável na aldeia, dentro do

contexto de aldeão de uma pequena freguesia minhota, além de ter recebido de herança

dos pais, a metade de uma Boucinha, sendo a outra metade da herança da tia, no valor

de 12 mil réis, do qual tinha direito ao terço desse valor. Não é possível pensar da

mesma forma em relação ao irmão Valentim, que não lhe deixou nada no testamento,

nem mesmo em seu registro de morte, feito pela Igreja de Alvarães, onde omite

qualquer preocupação com quem ficaria com o legado dos pais, que lhe caberia, como o

fez Francisco. Muitas podem ser as razões, porém as desconhecemos. Não podemos

afirmar que essa era a condição econômica da família Martins da Crus no momento em

que Francisco e Valentim se retiraram para o Brasil. Podem ter saído para aliviar a

tensão na divisão das terras, mas não necessariamente por pobreza extrema ou fome.

João tinha ainda o terço de uma quinta da herança da tia, Vitória Martins,

para quem o marido, João Affonso, que pode ser o mesmo João Afonso que o batizou

ainda solteiro, lembrou de encomendar missas. No entanto, até o momento do

testamento não usufruíra desses bens, uma vez que informou que a quinta estava sendo

explorada por Gaspar Lourenço dos Reis, mesmo sobrenome da mãe, Andreza

Lourenço dos Reis, entretanto, não o identifica como tio; além de uma leira no campo

das Barreiras, que Gaspar diz ser de um prazo, mas João afirma não ser e lhe pertencer

pelo mesmo inventário da tia, no valor de 24 mil réis. Pelas reclamações, João, Gaspar

parece aproveitar de sua condição confortável: Gaspar ainda lhe devia 20 mil e 140 réis

que havia pedido emprestado numa ida de João a Lisboa quando das custas de uma

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demanda de Gaspar, além de 12 mil e 800 réis de uma “Paulina” que pediu que João

trouxesse, mais o empréstimo de 6 mil e 400 contos de réis por conta de missas por sua

tia, que Gaspar pediu a João “dizer”, mas que ele não havia levado dinheiro.

Quanto às suas dívidas, deixou para seus testadores a responsabilidade de

pagar 41 mil e 6 contos de réis, por um empréstimo que o compadre Manoel Pequeno

lhe fizera, caso não o tivesse já pago até sua morte. Nomear como um dos herdeiros e

testamenteiros Manoel Pequeno das Neves, o parente da Vila do Punhe, já representava

a garantia aos seus direitos e consideração por parte de João. Entre estes, pedia que

aceitassem a herança, dividindo igualmente entre si o que lhes coubesse.

Francisco e Valentim tiveram sorte na empreitada de emigrar para o

Brasil, como se pode ver pelas idades que faleceram. Não sabemos de Francisco, mas de

Valentim podemos afirmar que soube muito bem se fazer no Brasil, viver nas minas

com o conforto do poder econômico e social. Um documento do cartório do segundo

ofício de Cuiabá, assinado por seu genro, Manoel Rodrigues, nos revela algo a mais da

trajetória de Valentim rumo ao eldorado Brasil. Aponta o documento para uma bem

provável passagem pelo Rio de Janeiro: Manoel, o genro, como inventariante e

administrador dos bens deixados pelo sogro, reconhecendo uma dívida no Rio de

Janeiro referente ao inventário de um tal Manoel Francisco Gomes, para quem Valentim

havia, em algum momento, administrado seus bens. Tal dívida foi citada por Valentim

em seu testamento, quando pediu que o genro a pagasse, como veremos mais adiante.

Manoel Rodrigues fez uma procuração para Joaquim Marques Batista de

Leão, administrador da casa de Francisco de Araujo Pereira, do Rio de Janeiro, para

pagamento da dívida no valor de 2:353$466 (Dois contos, trezentos e cinquenta e três

mil, quatrocentos e sessenta e seis réis).4 Muitos desses jovens emigrantes vinham

como ajudantes de caixeiros viajantes, sendo uma oportunidade para embarcar,

principalmente após as proibições de 1720, o que pode ter possibilitado que chegassem

ao Mato Grosso, tendo ouvido ou mesmo visto, se acaso tivesse vindo a negócios, as

oportunidades de ali se estabelecer, sozinho.

Falecendo fora da Freguesia, estando no Brasil ou qualquer outra

parte, como Lisboa, Porto ou Viana do Castelo, ou ainda na América, tinham, da mesma

forma como os habitantes locais, seus registros de óbito anotados, por notícias que

chegavam. A intenção em relação ao defunto era dar a estes ausentes o direito de terem

4 Cartório do 2º Ofício de Cuiabá, Livro1, 1821-1822 – Esc.79v. a 80v. Procuração Fl.130-131 do livro

nr.4.

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sua alma encomendada pela família que lhes faziam o bem d’alma,5 com as missas que

teriam direito. O “bem d’alma” eram legados pios, ou seja, custos para as missas pós-

morte. Abusos dos párocos nessa questão, tidos como autoridades locais especialmente

para a gente humilde do campo, fez com que se limitassem à própria Igreja e ao Estado

as obrigações nas terças, das terças dos bens dos defuntos os gastos com os “bem

d’alma”, na segunda metade do século XVIII, com limitações impostas por Marquês de

Pombal.6

A distância e as agruras que muitos passaram no Brasil, especialmente no

século XVIII, vindos para as minas ou nos negócios a que estivessem envolvidos,

fizeram com que deixassem de enviar notícias aos parentes deixados para trás. Alguns

se separaram de namoradas ou noivas, que esperavam pela volta do prometido, quem

sabe com dinheiro para começarem a vida a dois em melhores e mais promissoras

condições, inclusive para a família de ambos. Não raro, essa espera se fez eternamente

na vida de muitas mulheres. Era elevado o celibato, assim como a ilegitimidade. Sinais

de uma saga minhota também percebida em Alvarães, de marcada emigração de seus

homens jovens que se fizeram ausentes, não raras vezes, a deixarem os parentes sem

notícias há mais de 10 e até 20 anos, fazia com que fossem notificados seus

desaparecimentos como mortos, nos registros. Penso que ao saberem as idades ao

saírem da freguesia naquela altura, as teria suficiente para serem dados como mortos no

Brasil, estando ou não. A longa espera sem qualquer informação de seus entes, por

tantos anos, impunha, para efeitos de herança ou chance de um novo casamento, para

quem deixou esposa, a definição de seu estado.

A exemplo, ganha destaque o caso de João Peixoto, do Lugar de Meiriçô,

que deixou esposa e filhos. Estando nos estados do Brasil e “sem dele haver notícia

alguma há muitos anos, nem por escrito nem de pessoa alguma há mais de 10 anos, se

reputa agora falecido na forma do costume deste arcebispado e leis do reino”.7 Seu

falecimento foi registrado em 1779, para que seu filho, João Martins da Torre, pudesse

lhe fazer o bem d’alma.

Sem ter deixado esposa e filhos para trás, mas tendo lá sua família que

ainda teria direito a algum legado que lhe coubesse, como de costume, Valentim

também teve seu registro de morte. Interessante notar que o testamento de Valentim foi

5 Registro de óbitos, Freguesia de São Miguel de Alvarães, anos de 1736 a 1830. 6 CAPELA. Viriato. op. cit. s/p 7Idem. ano de 1779.

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aberto em novembro de 1812, em Cuiabá, quando faleceu, tendo sido seu inventário

elaborado por ele mesmo, em setembro e, no entanto, já fora dado como morto em

Alvarães, em julho do mesmo ano. Eram as “leis do reino” para os emigrados que não

dessem notícias por longos períodos. Pelo registro que se segue, havia mais de 6 anos

que findara seu inventário, portanto, deixado seu legado de direito à disposição, mas a

falta de notícias fez com que, em julho de 1812, (seria coincidência o ano?), fosse então

dado como já falecido. “Se satisfazer a seus legados na forma da Constituição desta

Freguesia”. (Livro de registro de óbitos 1736-1830 APVC ). Podemos entender aqui ter

ele perdido seus direitos em bens que os pais pudessem ter lhe agraciado, visto que

Valentim não deixou legado algum para seus parentes em Alvarães, segundo testamento

feito em Cuiabá, em setembro de 1812. Missas também eram dadas como legado. A

Igreja de Alvarães podia ter rezado uma ou algumas missas pela alma de Valentim,

cumprindo a Constituição da Freguesia.

Revogou qualquer outro que houvesse validando aquele que então

elaborou em setembro de 1812, isto é, ninguém, além de seus filhos pardos e tidos com

a escrava, teria direito ao seu legado. Se os parentes em Portugal tomaram

conhecimento dessa sua vontade e decisão, não sabemos, mas, o que se percebe é um

descompromisso total com o irmão que lá ficou, João. Sabia já serem falecidos os pais,

ou seja, teve disso notícia de alguma forma. Ou lá esteve, ou alguém de lá lhe mandara

notícias, o que nos parece mais provável diante das afirmativas do padre em seu registro

de morte ou seu desaparecimento em 1812.

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Livro de registro de óbitos 1736-1830 APVC – disponível em www.familyseach.org.br

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Um homem que angariou, nos estados do Brasil, bens inimagináveis aos

seus parentes em Alvarães, em terras, escravos, mineração e produção agrícola, não

poderia realmente requerer dos seus uma parte qualquer que tenha sido dos parcos

recursos que pudessem ter lhe deixado. Com seu status alcançado em Mato Grosso, não

poderia e nem mesmo poderia ter feito parte de seus objetivos retornar à Aldeia, como

um dos famosos “brasileiros”. Tinha aqui constituído família grande e fora dos padrões

ditos normais, mesmo para a sociedade mato-grossense do período, para um homem de

seu status econômico, imaginasse na pequena Aldeia de Alvarães. Ao observar o

testamento do irmão João, percebe-se a pobreza dos bens deixados em relação às terras

lavradias. João deixou leiras de horta como foreiro do Mosteiro de São Romão do Neiva

e prazeiro da coroa, enquanto Valentim deixou terras com lavoura de milho, cana-de-

açúcar, feijão, engenho de açúcar, escravos e casas na capital, além de ter dado dotes

para as filhas.

A utopia do Brasil para homens como Valentim realizou-se muito além

do que ele próprio pudesse ter sonhado ao deixar Alvarães. Ter seguido para as novas

ocupações portuguesas no Centro-Oeste da colônia o transformaria, de um simplório

aldeão minhoto, em homem de prestígio e poder, ainda que não se embrenhasse no

universo político. Mas sabia fazer sua política particular na manutenção desse poder,

com contatos importantes na capitania. Investiu a princípio na mineração e se tornou um

agricultor de peso nos últimos anos do século XVIII, inclusive como provedor de

alimentos à Fazenda Real. Mais tarde, já na primeira década do século XIX, ainda foi

considerado como um homem de poder, visto ter, conforme seu testamento, “mais de

cinquenta escravos”, o que o mantinha como um grande proprietário.

Em relação aos “brasileiros” que retornaram à aldeia natal, mas que não

representaram todo o imaginário de riqueza propalada ao saírem para o Brasil, podemos

pensar serem aqueles que não teriam tido, de fato, o sucesso desejado, e os que o

conquistara, ao voltar, investiram nas construções de suas casas de retorno, ajudaram a

algum parente, pequenos investimentos e não muito mais do que isso. Os que haviam

fixado residência e negócios nas cidades costeiras do Brasil desenvolviam múltiplas

atividades, muito diferentes e menos seguras que aqueles que haviam se fixado nos

sertões, na zona rural - como Valentim e muitos outros portugueses fixados em Mato

Grosso, Minas Gerais e Goiás, por exemplo, e que não lhes garantia, por tempo

indeterminado, a segurança dos rendimentos dos negócios. A maioria era empregada, o

que dificultava ainda mais uma poupança suficiente para voltar.

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Conforme vimos em Marta Lobo8, sobre a ideia de riqueza maior do que

a propriamente dita, que poderiam explicitar nas suas construções diferenciadas e ações

na aldeia natal, vemos igualmente, na obra de Jorge Fernandes Alves, “Os Brasileiros”

referente aos retornados, no século XIX, ao Porto:

A idéia do brasileiro quarentão que volta não endinheirado mas com

algum “pé de meia” que lhe permite estabelecer-se de forma

independente através de um pequeno comércio, oficina ou exploração

agrícola é a mais correta, segundo os indicadores sociais apurados

[...]” 9

Muito embora o autor lembrasse que, no universo dessa maioria de

emigrados e retornados com poucos recursos, ainda que fosse mais do que teriam

conseguido na própria terra, “para além de contribuir para a construção ou adaptação da

casa, aplicado em valores mobiliários, garante pequenas rendas que dão ao “brasileiro”

uma capacidade econômica líquida acima da grande maioria da população [...]”10

O

autor, evidenciando a complexidade dos números da emigração, ainda tocante ao século

XIX, após analise dos números dos desembarcados do Brasil, entre 1858 e 1861,

enxergou uma certa credibilidade na destacada fala do governador civil do Porto

referindo-se aos retornados, afirma que:

Pode dizer-se que de 100 indivíduos que emigram, regressam apenas

40, dos quaes 20 voltam tão pobres como foram e com a saúde

deteriorada [podemos concordar ao pensarmos naqueles que vieram

para as minas enfrentando suas inúmeras dificuldades], 15 com

pequenos capitais e sufficientes apenas para estabelecerem a sua

industria em melhores condições, ou comprarem alguma propriedade

nas localidades d’onde são naturaes, e 5 com boas fortunas.11

Garantindo o capital adquirido como proprietários de terras no Brasil,

para homens como Valentim, não havia qualquer motivação para que fizesse parte desse

8 LOBO, Marta Maria. Op. Cit. 9 ALVES. Jorge Fernandes. Os Brasileiros: Emigração e retorno no Porto oitocentista. Faculdade Letras

da Univ. do Porto, Porto 1994, p. 334. 10 Idem, ibidem. 11 APUD, Idem, p. 252.

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grupo, mantendo-se como um rico senhor de Chapada dos Guimarães até o fim dos seus

dias. Foi um emigrado para quem o sonho de enriquecimento se realizou.

Na freguesia de Alvarães, a emigração também se constituiu solução e

abrigo para as dificuldades locais aos homens de inúmeras freguesias minhotas. Dos

198 atestados de óbito trabalhados, que abarcam os anos de 1736 a 1830, 39 homens

“absentes nos estados do Brasil,” tiveram suas mortes ali registradas. Apenas duas

dessas anotações dão a saber os lugares em que estariam ao morrer. Um deles, o

sargento mor Antonio Fernandes, solteiro, do “lugar do Souto da Igreja”, estava nas

minas do Cuiabá, e Antonio Francisco Pereira, também sargento-mor, havia se

estabelecido em Minas Gerais, nas minas de Ouro Preto. Faleceram nos anos de 1784 e

1785, respectivamente. Lembrando que, já nas Memórias Paroquiais, tem-se o número

de 254 fogos e 152 ausentes, referindo-se, contudo, aos ausentes em geral.12

Cruzeiro. Foto da autora.

Altar-Mor restaurado, da Igreja de São Miguel

de Alvarães, onde foi batizado Valentim em 1732.

Foto da autora.

12 CAPELA, Viriato. As freguesias do distrito de Viana do Castelo nas Memórias Paroquiais

de 1758. - Alto Minho: Memória, História e Património. Disponível em repositorium.sdum.uminho.pt,

s/p

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Queda do Rio Neiva que movimenta a Azenha D’Almerinda

Azenha antiga – D’Almerinda – restaurada. Vista da frente da Azenha.

.

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Rua em Alvarães com indicação para seguir a Neiva e São Romão – proximidades da vida de Valentim.

Foto da autora. Até 06 de Abril de 2011, era conhecida como Neiva e a partir de então São Romão do

Neiva.

Entrada de Alvarães pelo Lugar da Costeira – Fotos da autora.